Jagas e sobas no \"Reino de Benguela\": vassalagem e criação de novas categorias políticas e sociais no contexto da expansão portuguesa na África durante os séculos XVI e XVII

June 12, 2017 | Autor: Mariana Candido | Categoria: Colonialism, Angola, Decolonizing Knowledge
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Paul Lovejoy

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ÁFRICA

HISTÓRIAS CONECTADAS

© 2015 by Alexandre Vieira Ribeiro, Alexsander Lemos de Almeida Gebera e Marina Berthet. Proibida a reprodução, total ou parcial, por qualquer meio ou processo, seja reprográfico, fotográfico, gráfico, microfilmagem etc. Essas proibições aplicamse também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autorais é punível como crime (Código Penal, art. 184 e §§; Lei 6.895/80), com busca, apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98 – Lei dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126). Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello Vice-Reitor: Antônio Claudio Lucas de Nóbrega Pró-reitor de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação: Roberto Kant de Lima Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História: Ana Maria Mauad Vice-Coordenadora: Samantha Viz Quadrat Revisão: Vilma Aparecida Albino Projeto Gráfico de miolo e capa: Leandro Dittz e Sílvia Dantas/ D29

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Ribeiro, Alexandre Vieira. África: histórias conectadas / Alexandre Vieira Ribeiro, Alexsander Lemos de Almeida Gebera, Marina Berthet. – Niterói : PPGHISTÓRIA-UFF, 2014. 288 p. il. ISBN : 9788563735188 1. História da África. I. Gebera, Alexsander Lemos de Almeida. II. Berthet, Marina. III. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-graduação em História. IV. Título. CDD 960.1

ÁFRICA

HISTÓRIAS CONECTADAS

Sumário CRAVIDÃO

OS DE ES P M E T M E S E CONEXÕ

Narrativas de escravização no Sudão Central no século XIX...................13 (Paul Lovejoy) Jagas e sobas no “Reino de Benguela”: vassalagem e criação de novas categorias políticas e sociais no contexto da expansão portuguesa na África durante os séculos XVI e XVII.............................39 (Mariana P. Candido) Ngolas, Sobas, Macotas e Tagomanos: distribuição de poder e dinâmicas comerciais no antig Ndongo.................................................77 (Flávia Maria de Carvalho) Sociedades negreiras: a comunidade de comerciantes “brasileiros” em Benguela em fins do século XVIII.............................................................99 (Estevam C. Thompson) Em busca da liberdade: formas de alforria na África e na América...117 (Carlos Leonardo Kelmer Mathias)

PRODUÇÃO DE SABERES E NEGOCIAÇÕES SOCIOPOLÍTICAS EM CONTEXTO COLONIA L As partes do gorila e a “partilha da África”.............................................133 (Sílvio Marcus de Souza Correa)

Entre os “ditames do coração:” Amadeu Castilho Soares e o ensino colonial para Angola .............................................................147 (Carla Susana Alem Abrantes) Entre navio e terra firme: missões e resistência ao domínio colonial, Namíbia, 1811-1906..................................................165 (Marion Brepohl de Magalhães) Despir o casaco pelas costas: administração da justiça colonial em Moçambique, ínicio do século XX..........................................................181 (Fernanda do Nascimento Thomaz)

TODOLÓGICAS, E M S A ST O P O R P S NOVA IVAS NOVAS PERSPECT As fotografias de uma época das roças de São Tomé e Príncipe...................................................................201 (Augusto Nascimento) Predadores: quando a utopia se transformou num borrão......................................................................253 (Silvio de Almeida Carvalho Filho) A institucionalização dos Estudos Africanos nos Estados Unidos: advento, consolidação e transformações.................................................265 (Roquinaldo Ferreira)

Paul Lovejoy

CONEXÕES EM TEMPOS DE ESCRAVIDÃO

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Jagas e sobas no “Reino de Benguela”: Vassalagem e criação de novas categorias políticas e sociais no contexto da expansão portuguesa na África durante os séculos XVI e XVII Mariana P. Candido1

A chegada dos portugueses à África Centro-Ocidental foi marcada por processos de contato, reconhecimento, classificação e estranhamento, nos quais populações africanas eram descritas com relação a eventos e episódios anteriores. Comércio, conquista e subjugação dos povos encontrados, seja nas Américas, na África ou na Ásia, foram a tônica da expansão europeia. Com o objetivo de melhor governar e controlar, os conquistadores se tornaram obcecados com a identificação e classificação dos territórios e povos encontrados em categorias familiares aos europeus, tais como “tribos”, “reinos”, ou de acordo com a religião, como pagãos ou gentios.2 1 Universidade do Kansas. 2 Ver, entre outros, Frederick Cooper e Ann Laura Stoler (orgs.), Tensions of empire: colonial cultures in a Bourgeois world. Berkeley: University of California Press, 1997, p. 1-40; Mahmood Mamdani, Citizen and subject: contemporary Africa and the legacy of late colonialism. Princeton: Princeton University Press, 1996; Pamela Scully, “Malintzin, Pocahontas, and Krotoa: indigenous women and myth models of the Atlantic world”, Journal of Colonialism and Colonial History, v.  6, n.  3, 2005; Jean Comaroff

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Os exploradores que atuavam em nome da Coroa portuguesa esperavam encontrar organizações políticas semelhantes às que existiam na Península Ibérica, centralizadas e sob a autoridade de um monarca. Esse foi o caso nos reinos do Congo e Ndongo, nos finais do século XV e início do XVI, respectivamente, porém não foi o que ocorreu ao sul do rio Cuanza.3 Quando os portugueses chegaram ao chamado “Reino de Benguela”, uma área vagamente definida como “ao sul do rio Cuanza”, imaginaram que encontrariam uma organização política semelhante aos territórios mais ao norte, ou seja, habitado por súditos de um só soberano, supostamente o rei de Benguela.4 Porém um soberano único que cone John L. Comaroff, Of revelation and revolution, v. 1: Christianity, colonialism, and consciousness in South Africa. Chicago: University of Chicago Press, 1991; Catarina Madeira Santos, “Administrative knowledge in a colonial context: Angola in the eighteenth century”, The British Journal for the History of Science, v. 43, n. 4, p. 539-556, 2010. Para o problema das classificações no Brasil, ver Ângela Domingues, Quando os índios eram vassalos. A colonização e relações de poder no Norte do Brasil na segunda metade do século XVIII. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000; Mariza de Carvalho Soares, “A ‘nação’ que se tem e a ‘terra’ de onde se vem: categorias de inserção social de africanos no Império Português, século XVIII”, Estudos Afro-Asiáticos, v. 26, n. 2, p. 303-330, 2004. Sobre os gentios, ver Giuseppe Marcocci, “Escravos ameríndios e negros africanos: uma história conectada. Teorias e modelos de discriminação no Império Português (ca. 1450-1650)”, Tempo, v. 16, n. 30, p. 41-70, 2011; João Figueirôa-Rêgo e Fernanda Olival, “Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e espaços atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII)”, Tempo, v. 16, n. 30, p. 115-145, 2011. 3 Para mais detalhes sobre os reinos do Congo e Ndongo, ver John K. Thornton, The Kingdom of Kongo: civil war and transition, 1641-1718. Madison: University of Wisconsin Press, 1983; John Thornton, “The development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750”, Journal of African History, v. 25, n. 2, p. 147167, 1984; Beatrix Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII. Estudo sobre fontes, métodos e história. Luanda: Kilombelombe, 2007, p.  169-242; Ilídio do Amaral, O Reino do Congo, os Mbundu (ou ambundos), o Reino dos “Ngola” (ou de Angola) e a presença portuguesa de finais do século XV a meados do século XVI. Lisboa: Ministério da Ciência e da Tecnologia/Instituto de Investigação Científica Tropical, 1996; Marina de Mello e Souza, Reis negros no Brasil escravista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002; Pascoal Leite de Aguiar, Administração colonial portuguesa no Congo, em Angola e em Benguela, v. 1. Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2006. 4 Para as semelhanças entre o Reino do Congo e a monarquia portuguesa, ver John Thornton, “Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation”, History in Africa, v. 8, p. 183-204, 1981. Ainda não há um estudo detalhado sobre o que era ser português em Angola, como há para outras regiões do continente africano. Sobre a proble-

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trolava uma vasta área territorial e distintos grupos linguísticos não parece ter existido ao sul do Cuanza, como tampouco parece ter existido em outras partes do mundo, inclusive na Europa.5 Nos séculos XVI e XVII, a área próximo ao litoral era habitada por populações centralizadas sob chefaturas, como os mundombes ou os quilengues, assim como grupos nômades, com populações menores que se dedicavam ao pastoreio, à caça ou à coleta, como os grupos kwadi, kwadu e kung (respectivamente corocas/mocorocas, moquimbas e mucuancalas nas fontes portuguesas).6 No entanto, a designação “Reino de Benguela” se consolidou matização do significado do ser “português” em Angola que muitas vezes incluía os chamados “filhos da terra”, africanos negros ou mulatos e súditos da colônia do Brasil, ver Mariana P. Candido, Fronteras de esclavización: esclavitud, comercio e identidad en Benguela, 1780-1850. Cidade do México: El Colegio de México Press, 2011, p. 79-80; idem, “South Atlantic exchanges: the role of Brazilian-born agents in Benguela, 16501850”, Luso-Brazilian Review, v. 50, n. 1, p. 53-82, 2013; Roquinaldo Ferreira, “Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica”, Revista de História, v. 155, n. 2, p. 17-41, 2006. Para estudos que apontam nessa direção, ver Peter Mark, “Constructing identity: sixteenth-and seventeenth-century architecture in the Gambia-Geba region and the articulation of Luso-African ethnicity”, History in Africa, v. 22, p. 307-327, 1995; Gerhard Seibert, “Creolization and creole communities in the Portuguese Atlantic: São Tomé, Cape Verde, the Rivers of Guinea and Central Africa in Comparison”, in Toby Green (org.), Brokers of change: Atlantic commerce and cultures in precolonial Western Africa. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 29-51; Tobias Green, “Building creole identity in the African Atlantic: boundaries of race and religion in seventeenth-century Cabo Verde”, History in Africa: A Journal of Method, v. 36, p. 103-125, 2009. 5 Para mais sobre o assunto, ver Jean-Frédéric Schaub, La France espagnole: les racines hispaniques de l’absolutisme français. Paris: Seuil, 2003; António Manuel Hespanha, “Depois do Leviathan”, Almanack Braziliense, v. 5, p. 55-67, 2007. 6 Para mais detalhes sobre a variedade de organizações políticas no interior de Benguela, ver os estudos etnólogos dos missionários Carlos Estermann, The ethnography of Southwestern Angola. New York: Africana Pub. Co, 1976; R. P. Ch. Estermann, “Quelques observations sur les Bochimans !Kung de l’Angola Méridionale”, Anthropos, v. 41/44, n. 4/6, p. 711-722, 1946; E. O. J. Westphal, “The linguistic prehistory of Southern Africa: Bush, Kwadi, Hottentot, and Bantu linguistic relationships”, Africa: Journal of the International African Institute, v. 33, n. 3, p. 237-265, 1963. Para o trabalho de historiadores que trabalharam sobre essa região, ver Jan Vansina, How societies are born: governance in West Central Africa before 1600. Charlottesville: University of Virginia Press, 2004, p. 144-147; Beatrix Heintze, Fontes para a história de Angola no século XVII. Stuttgart: Franz Steiner, 1985, p. 303; Mariana Candido, An African slaving port and the Atlantic world: Benguela and its hinterland. New York: Cambridge

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e pode ser vista não só nas fontes primárias dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, como também em mapas, como um território delimitado. O chamado “Reino de Benguela” até então inexistente como entidade política africana passou a existir como espaço imaginado sob domínio do Império Português, desfrutando em alguns momentos de autonomia e, na maior parte, sob controle do governador do Reino de Angola.7 Em si, esse episódio demonstra a fragilidade da presença portuguesa na região e evidencia o desconhecimento sobre os territórios e populações encontradas e, teoricamente, dominadas. Também revela o imaginário de uma colonização em que povos conquistados deveriam governar-se à moda europeia, com reis, reinos, monarquias, o que leva inevitavelmente à criação de novas instituições e modos de governabilidade.8 A inexistência de um estado africano que possa ser identificado como o “Reino de Benguela” ou ainda de um soberano que seja o rei de Benguela não impediu que historiadores nos séculos XX e XXI continuassem a usar essa terminologia como se tal estrutura política tivesse algum significado fora do âmbito do Império Português ou ainda alguma relevância para as populações que viviam nessa região.9 University Press, 2013, p. 275-292. 7 Para mais sobre a organização do Reino de Benguela, ver Ralph Delgado, O Reino de Benguela: do descobrimento à criação do governo subalterno. Lisboa: Edição do Autor, 1945. 8 Ver, entre outros, Serge Gruzinski, A colonização do imaginário: sociedades indígenas e ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI-XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; Lauren Benton, “Spatial histories of empire”, Itinerario, v. 30, n. 3, p. 1934, 2006; Beatriz Perrone-Moisés, “Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do período colonial”, in Manuela Carneiro da Cunha (org.), História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 115-132; Sherwin K. Bryant, Rivers of gold, lives of bondage: governing through slavery in colonial Quito. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2013; Karen Graubart, With our labor and sweat: indigenous women and the formation of colonial society in Peru, 1550-1700. Stanford: Stanford University Press, 2007. 9 Para alguns exemplos, ver Delgado, O Reino de Benguela...; Linda M. Heywood (org.), “Portuguese into African: the eighteenth century Central African background to Atlantic creole culture”, Central Africans and cultural transformations in the American diaspora. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 95; Linda M. Heywood e John K. Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles, and the making of the foundation of the Americas, 1585-1660. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 51; Estevam Costa Thompson, “Negreiros in the South Atlantic: the community of ‘Brazilian’ slave traders in late eighteenth century Benguela”, African Economic History, v. 39, p. 73-128, 2011, cf. p. 74.

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Esse mesmo processo de nomenclatura e classificação, assim como a criação de novos espaços e símbolos de poder, também pode ser percebido no uso do termo “jaga”. A historiografia sobre os jagas, que será analisada posteriormente, é extensa e apresenta distintas interpretações.10 Assim como devemos ter cautela com o uso do termo “Reino de Benguela” diante da ausência do rei de Benguela, o mesmo deve ser feito ao tentar analisar os chamados povos jagas. As fontes primárias, produzidas em um contexto de conflitos territoriais e ideológicos com populações centro-africanas, marcadas por uma forte influência da teologia cristã e preocupação econômica com a expansão do comércio transatlântico de escravos, devem ser interpretadas com cautela, para evitar generalizações que não se aplicam a contextos específicos. Os jagas foram descritos como canibais, militarmente agressivos, caracterizados como “uma horda feroz, nômade, antropófaga, destruidora, que vivia da guerra e do saque”, como pode ser visto nos relatos de Filippo Pigafetta e Duarte Lopes, António de Cadornega ou E. Ravenstein.11 Linda Heywood e John Thornton os identificam como “um grupo misterioso que invadiu o Congo desde o leste ao redor do

10 Entre outros, ver Gladwyn Murray Childs, “The peoples of Angola in the seventeenth century according to Cadornega”, The Journal of African History, v. 1, n. 2, p. 271-279, 1960; Jan Vansina, “The foundation of the Kingdom of Kasanje”, The Journal of African History, v. 4, n. 3, p. 355-374, 1963; Anne Hilton, “The Jaga reconsidered”, The Journal of African History, v.  22, n.  2, p.  191-202, 1981; Beatrix Heintze, “The extraordinary journey of the Jaga through the centuries: critical approaches to precolonial Angolan historical sources”, History in Africa, v. 34, p. 67-101, 2007; Joseph C. Miller, “Requiem for the ‘Jaga’”, Cahiers d’Études Africaines, v. 13, n. 49, p. 121-149, 1973; John K. Thornton, “A resurrection for the Jaga”, Cahiers d’Études Africaines, v. 18, n. 69-70, p. 223-227, 1978; François Bontinck, “Un mausolée pour les Jaga”, Cahiers d’Études Africaines, v.  20, n.  79, p.  387-389, 1980; Paulo Jorge de Sousa Pinto, “Em torno de um problema de identidade. Os ‘jagas’ na história do Congo e Angola”, Mare Liberum, v. 18-19, 1999; Joseph C. Miller, “Thanatopsis (Thanatopsie)”, Cahiers d’Études Africaines, v. 18, n. 69-70, p. 229-231, 1978. 11 A citação é de Alberto da Costa e Silva, A manilha e o libambo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 3. Ver também António da Silva Rêgo, A dupla restauração de Angola, 164l-1648. Lisboa: Divisão de Publicações e Biblioteca/Agência Geral das Colónias, 1948, p. 140; Filippo Pigafetta e Duarte Lopes, Le Royaume de Congo & les contrées environnantes (1591). Paris: Chandeigne, 2002; António de Oliveira de Cadornega, História geral das guerras angolanas, 1680-1681, v. 1. Lisboa: Agência-Geral das Colónias, 1972; E. G. Ravenstein (org.), The strange adventures of Andrew Battell of Leigh, in Angola and the adjoining regions. London: Hakluyt Society, 1901.

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ano de 1570”.12 Outros historiadores também fazem menção aos jagas no interior de Luanda e ao sul do rio Cuanza, problematizando a possibilidade de eles serem um grupo específico ou ramificações dos imbangalas.13 O fato de os jagas serem descritos pelos cronistas europeus como povos guerreiros, canibais, caracterizados por um comportamento extremamente violento não deveria ser uma surpresa, afinal o encontro com “canibais” era constante no período da expansão europeia. Hans Staden, por exemplo, descreveu os tupinambás como canibais e selvagens, alimentando a fantasia europeia dos trópicos como terras perigosas, com populações exóticas que viviam na barbárie, em oposição à civilização europeia.14 Na costa oriental africana, os zimbas também foram descritos como canibais.15 Assim o encontro com os jagas não foi uma exceção na expansão portuguesa. Este capítulo analisa como os jagas do “Reino de Benguela” eram descritos nos relatos e fontes portuguesas. Para tanto, começo com uma breve descrição da chegada dos portugueses no chamado “Reino de Benguela” e problematizo a arbitrariedade do uso do conceito “reino” para essa região. Posteriormente, examino o processo de classificação dos povos encontrados e, mais especificamente, como o termo “jaga” era empregado em Benguela e no seu interior, no século XVII.

12 Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles..., p. 83. 13 Vansina, “The foundation of the Kingdom...”; Hilton, “The Jaga reconsidered”; Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 38-60. 14 Alida C. Metcalf, Go-betweens and the colonization of Brazil, 1500-1600. Austin: University of Texas Press, 2005, p.  63-66; Beatrix Heintze, “Propaganda concerning ‘man eaters’ in West Central Africa in the second half of the nineteenth century”, Paideuma, v. 49, p. 125-135, 2003. Para a visão dos europeus como canibais, ver Kwasi Konadu, African world histories: Transatlantic Africa, 1440-1888. New York: Oxford University Press, 2014, p. 98-125. 15 E. A. Alpers, “The Mutapa and Malawi political systems to the time of the Ngoni invasions”, in T. O. Ranger (org.), Aspects of Central African history. London: Heinemann, 1968, p. 1-28; M. D. D. Newitt, “The early history of the Maravi”, The Journal of African History, v. 23, n. 2, p. 145, 2009; Eric Allina, “The Zimba, the Portuguese, and other cannibals in late sixteenth-century Southeast Africa”, Journal of Southern African Studies, v. 37, n. 2, p. 211-227, 2011.

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A expansão portuguesa e a criação do “Reino de Benguela” Dom João III (1521-1557) expediu duas ordens para a exploração da região ao sul do Cuanza. A primeira, através de uma carta de mercê datada de 20 de setembro de 1542, concedia a seu irmão, dom Luís, licença “para mandar descobrir, por quem aprouvesse, desde o rio d’Angola” – a primeira designação dada ao Cuanza – “até o cabo da Boa Esperança, ao longo da costa, dois rios”.16 O “Reino de Benguela” ainda não havia sido “inventado” apesar dos contatos com outros estados localizados ao norte do rio Cuanza. Quatro anos depois, um regimento foi outorgado em 7 de junho de 1546, autorizando nova exploração no então designado “Reino de Benguela” e aos seus “diversos reis e senhores gentios”.17 Vale lembrar que o chamado Reino de Benguela indicado no regimento de 1546 se refere à vasta região ao sul do Cuanza, não exatamente o território mais ao sul, entre os rios Catumbela e Cuvaco (também designado Marimbondo), que posteriormente veio a ser conhecida como o Porto de São Filipe de Benguela. As referências a Benguela anteriores a 1617 dizem respeito ao território visitado por Diogo de Soveral em meados do século XV, seguindo as instruções do regimento de 1546, e por Lopes Peixoto na década de 1570. Essa região ao longo do rio Longa era conhecida anteriormente como Quissonde e, depois de 1617, como Benguela-Velha.18 Quando Diogo de Soveral chegou ao rio Longa, as instruções eram claras: ele deveria entregar os presentes ao potentado mais importante, supostamente o rei de Benguela, com o objetivo de estabelecer relações comerciais e adquirir o direito de resgate em escravos, ouro, prata e outros metais. Henrique Pais havia recebido o direito do comércio de escravos por um ano e deveria organizar o embarque de cativos para a ilha de São Tomé, de onde seriam enviados a Lisboa ou negociados com comerciantes estabelecidos ali, indicando o caráter comercial da exploração e a importância do tráfico de escravos para a Coroa portuguesa em princípios do século XV.19 A expedição seguia o modelo de trocas comerciais já estabelecidas na 16 Ilídio do Amaral, O consulado de Paulo Dias de Novais: Angola no último quartel do século XVI e primeiro do século XVII. Lisboa: Ministério das Ciências e Tecnologia/ Instituto de Investigação Científica Tropical, 2000, p. 58. 17 António Brásio, Monumenta missionária africana, v. 2. Lisboa: Agência do Ultramar, 1953, p. 138-146. 18 Candido, An African slaving port..., p. 37-44. 19 Alfredo de Felner, Angola. Apontamentos sobre a colonização dos planaltos e li-

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Costa da Mina e no Reino do Congo. Motivada pela busca de metais preciosos, a Coroa portuguesa instruía, no regimento de 1546, acesso às minas de ouro e prata e o estabelecimento do resgate.20 Pouca informação permanece dessa expedição, inclusive porque ela parece não ter retornado a São Tomé com os escravos e minerais adquiridos. Não sabemos quantas pessoas foram enviadas ao chamado “Reino de Benguela” nem os eventos que se sucederam aí. A tripulação dos três navios jamais regressou e, segundo o geógrafo Ilídio do Amaral, foram comidos por antropófagos, uma vez mais enfatizando a ideia dos povos dessa região como canibais e inimigos da ordem e civilização.21 Apesar do fracasso dessa operação e da incapacidade de localizar um rei, o “Reino de Benguela” permaneceu presente no imaginário português, afinal a nomeação de regiões, a toponímia, deve ser entendida como parte do processo de tomada de posse e conquista, ainda que seja somente imaginária.22 Em 1563, o padre Antônio Mendes mencionou a existência de disputas territoriais entre os reis de Benguela e de Angola, embora ele não esclarecesse a identidade desses soberanos, o limite dos seus territórios ou ainda os detalhes de tais disputas.23 Segundo Mendes, toral do sul de Angola. Extraídos de documentos históricos. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1940, p. 407-412, “Carta de doação a Paulo Dias de Novais”, 6 de setembro de 1571; David Birmingham, The Portuguese conquest of Angola. London: Oxford University Press, 1965, p.  2 (apoio do Institute of Race Relations); Amaral, O Reino do Congo..., p. 86-87. 20 Para a motivação da procura por minas e como esta moldava ambições imperiais, ver Stuart Schwartz, “Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal”, Tempo, v. 12, n. 24, p. 202-223, 2008; Robert W. Harms, The diligent: a voyage through the worlds of the slave trade. New York: Basic Books, 2002, p. 35-37; Glenn J. Ames, “An African Eldorado? The Portuguese quest for wealth and power in Mozambique and the Rios de Cuama, c. 1661-1683”, The International Journal of African Historical Studies, v. 31, n. 1, p. 91-110, 1998; Amaral, O Reino do Congo..., p. 86. 21 Ver Amaral, O Reino do Congo..., p. 87; Heintze, “Propaganda concerning ‘man eaters’...”. 22 Para mais sobre o assunto, ver Edmundo O’Gorman, La invención de América: investigación acerca de la estructura histórica del Nuevo Mundo y del sentido de su devenir. México: Fondo de Cultura Económica, 1995; Gruzinski, A colonização do imaginário..., p. 71-72, 118-122; Berta Maria Oliveira Jacob, A toponímia de Luanda: das memórias coloniais às pós-coloniais. Lisboa: Universidade Aberta, 2011, p. 40-52. 23 Heywood. e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles..., p. 51-54; Delgado, O Reino de Benguela, p. 16; Amaral, O Reino do Congo..., p. 199.

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o rei de Benguela e outros senhores que juntamente fazem guerra os vimos juntar aproximadamente 50 mil homens, em esquadrões de mil escaramuceiros [...] e foram como toda essa gente atacar 12 senhores grandes que estavam levantados contra o rei e os capturaram a todos e as mulheres, filhos, escravos, com mais de 3 mil cabeças de gado e rebanhos de ovelhas e cabras, muito cobre e marfim.24

Essa expedição foi seguida de outra na década de 1570, sob o comando de Lopes Peixoto, sobrinho do primeiro capitão e governador de Angola, Paulo Dias de Novais. A carta de doação de Paulo Dias de Novais, concedida pelo rei dom Sebastião I, tinha por objetivo sujeitar e conquistar os povos encontrados, “assim para se nele haver de celebrar o culto e os ofícios divinos e acrescentar a Santa Fé católica e promulgar ao Santa Evangelho, como pelo muito proveitoso”.25 Mais uma vez, comércio, conquista e evangelização caminhavam lado a lado. O infante dom Sebastião I esperava o envio de novas expedições ao sul do Cuanza, com o objetivo de chegar às tão sonhadas minas de prata, mas também para conquistar “homens bárbaros semelhantes a bestas”, como definido pelo jesuíta espanhol José de Acosta.26 Lopes Peixoto partiu com 70 homens de Luanda e “fazendo essa gente assento no dito sítio do morro [de Benguela] se arrocharam de pau a pique e começaram a resgatar, tratando também de fazer a fortaleza que traziam por ordem”.27 Lopes Peixoto, munido de ordens da Coroa portuguesa, via a sua ação como parte da expansão territorial do Império centrada na conversão e no resgate. No entanto, os habitantes do chamado morro de Benguela, ao longo do rio Longa, não viram essa presença estrangeira com os mesmos olhos e, baseados em distintas interpretações sobre o direito de ocupação da terra, resistiram e atacaram as forças portuguesas. Foram poupados somente dois homens, que regressaram a Luanda e contaram a história do conflito a Paulo Dias de Novais.28 Os encontros iniciais entre europeus e africanos na costa da África foram marcados 24 Brásio, Monumenta missionária..., v. 2, p. 495, “Carta do irmão António Mendes ao padre geral”, 9 de maio de 1563. 25 Amaral, O consulado de Paulo Dias de Novais..., p. 49. Ver também Delgado, O Reino de Benguela..., p. 20. 26 A citação se encontra em Marcocci, “Escravos ameríndios...”, p. 47. 27 Benguela e seu sertão, 1617-1622. Lisboa: Imprensa Nacional, 1881, p. 7. 28 Ibidem. Ver também Brásio, Monumenta missionária..., v. 3, p. 332, doc. 87, “Carta do padre Diogo da Costa ao provincial de Portugal”, 31 de maio de 1586; Delgado, O Reino de Benguela..., p. 21-22; Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles..., p. 52-54.

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por desentendimentos e disputas sobre o direito de assentamento e comércio. As autoridades africanas se recusavam a submeter-se ao controle de forças europeias, marcadas pela debilidade numérica, porém com acesso às armas de fogo e convencidas da sua superioridade moral e religiosa.29 Esses contatos moldaram os primeiros anos da presença portuguesa na região, motivada pela noção de direito de conquista e expansão da cristandade, com o aval de Roma.30 Conquista, religião e comércio de escravos faziam parte da tríade da presença portuguesa na África Central, desde o final do século XV. O ataque que resultou na morte de Lopes Peixoto e suas tropas suspendeu, ainda que temporariamente, a febre de conquista e ocupação ao sul do Cuanza. Enfrentando dificuldades para consolidar seu poderio sobre os estados do Congo e Ndongo, a Coroa portuguesa priorizou os recursos humanos e materiais nessas regiões, evitando enviar novas expedições ao sul do Cuanza nas últimas duas décadas do século XVI.31 O ataque dos jagas no Reino do Congo, na década de 1570, e a subsequente tentativa de reconquista do reino, assim como a conquista das minas de ouro do Mwene Mutapa, se deram ao mesmo tempo em que foi enviada a expedição de Lopes Peixoto ao sul do Cuanza. Com a força militar dispersa em várias frentes, a solução foi abandonar o sonho de ocupação do “Reino de Benguela”.32 Apesar da expulsão dos portugueses e da dificuldade em contatar o suposto rei de Benguela, o padre Diogo da Costa, em 1586, insistia na existência 29 Para casos semelhantes na África Ocidental, ver John W. Blake, Europeans in West Africa, 1450-1560. London: The Hakluyt Society, 1941; Harvey M. Feinberg, Africans and Europeans in West Africa: Elminans and Dutchmen on the Gold Coast during the eighteenth century. Philadelphia: American Philosophical Society, 1989; M. D. D. Newitt, A history of Portuguese overseas expansion, 1400-1668. London: Routledge, 2005, p. 25-26. John Thornton problematiza a superioridade bélica dos europeus nos séculos XVI e XVII. Ver John Kelly Thornton, Warfare in Atlantic Africa, 1500-1800. London: Routledge, 1999. Para os estranhamentos em outros espaços, ver O’Gorman, La invención de América...; Tzvetan Todorov, A conquista da América. A questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003; Gruzinski, A colonização do imaginário...; Iris M. Zavala, Discursos sobre la “invención” de América. Amsterdam/Atlanta: Rodopi, 1992. 30 Para mais sobre esse assunto, ver Thornton, “The development of an African Catholic Church...”; Souza, Reis negros...; Mariana Candido, “O limite tênue entre a liberdade e escravidão em Benguela durante a era do comércio transatlântico”, Afro-Ásia, v. 47, p. 239-268, 2013. 31 Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 167-236; Linda M. Heywood, “Slavery and its transformation in the Kingdom of Kongo: 1491-1800”, The Journal of African History, v. 50, n. 1, p. 1-22, 2009, cf. p. 6. 32 Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 244-245.

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dessa autoridade e entidade política. Desde o Porto de Luanda, o padre enviou notícias a Lisboa de que “o rei de Benguela já mandou há dias pedir sua amizade ao governador e quer ser sujeito ao rei de Portugal, dizem que é gente de muito entendimento e o Reino muito farto e rico em minas”.33 Ou seja, a expedição de Lopes Peixoto nada fez para erradicar a ideia da existência de um reino centralizado ao sul do Cuanza; ao contrário, exacerbou a necessidade da conquista não só do ponto de vista econômico, mas também religioso. De morro inicial, Benguela transformou-se em “reino”; embora inexistente como entidade política, ganhou vida como espaço imaginado na lógica do expansionismo português, adaptando novas circunstâncias à imagem da Península Ibérica.34 Apesar do envio dessas duas expedições em meados do século XVI e da pressão dos religiosos para a conquista do “Reino de Benguela”, o local atualmente conhecido como Benguela continuava desconhecido pelos portugueses até 1617. Um viajante inglês, Andrew Battell, passou pela localidade abandonada pelos portugueses às margens do rio Longa, em princípios do século XVII. O relato de Battell, entretanto, deve ser interpretado, como afirmou Jan Vansina, “como reminiscências orais que foram registradas por escrito por outros”, e não como um relato contemporâneo ou ainda produzido pelo próprio Battell, devido ao fato que foi publicado décadas depois por outro autor.35 Apesar de sua limitação, esse relato reforçou uma série de ideias que povoavam o imaginário português, inclusive no que diz respeito à existência de um poder centralizado e da violência exercida pelos jagas. Segundo Battell, a população que vivia ao longo do rio Longa era chamada de endalambondos e não possuía um governo organizado devido aos ataques perpetrados pelas forças imbangalas que tinham capturado parte da população e seu rebanho. Os habitantes eram ainda descritos como “muito traiçoeiros e aqueles que comerciarem com essas pessoas deve ter muita cautela”.36 Ape33 Brásio, Monumenta missionária..., v. 3, p. 332, “Carta do padre Diogo da Costa ao provincial de Portugal”, 31 de maio de 1586. 34 O’Gorman, La invención de América..., p. 153. 35 Jan Vansina, “On Ravenstein’s edition of Battell’s adventures in Angola and Loango”, History in Africa, v. 34, p. 321-347, 2007, cf. p. 323. 36 Ravenstein, The strange adventures..., p. 17. O relato de Battell foi coletado e publicado pela primeira vez por Samuel Purchas, Purchas his pilgrimage. London: William Stansby for Henrie Fetherstone, and are to be sold at his shop in Pauls Church-yard at the signe of the Rose, 1614. Como a maior parte dos investigadores que me antecedem, usei a edição de Ravenstein. Para críticas sobre essa edição, ver Vansina, “On Ravenstein’s edition...”. Para uma contribuição à metodologia de como ler e interpretar esse tipo de fontes, ver Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 67-131.

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sar de haver sugerido a ausência de qualquer forma de governo, Battell relatou a existência de um soberano local, o príncipe Hombiangymbe, fazendo uso de uma nomenclatura europeia.37 Notícias sobre o “Reino de Benguela” continuavam a chegar a Lisboa, apesar do fracasso português em estabelecer presença ao sul do Cuanza. O investigador real Domingos de Abreu e Brito, que havia visitado partes do ultramar no final do século XVI, declarou que havia mais depósitos minerais em Benguela do que no Peru, despertando a cobiça da corte.38 Rumores sobre o grande volume de marfim e número de cativos existentes também atraíam a atenção da Coroa portuguesa.39 O resultado foi o envio de um novo regimento ao governador de Angola, promulgado no ano de 1611, em que o rei dom Felipe II de Portugal, ou Felipe III da Espanha, declarava: Fui informado que o reino de Benguela, que está 80 a 90 léguas do baluarte do porto de Luanda, é cheio de minas de cobre finíssimo, as quais começam ao longo do mar 6 ou 7 léguas pela terra adentro, e que é tanto o cobre que os mesmos negros sem terem aparelhos o fundem em coisas que fazem na terra, fazendo campainha e argolas que resgatam com outras províncias [...] De Benguela se poderá levar ao Brasil por lastros dos navios de escravos [o cobre], sem custar de frete coisa alguma e que no porto do mesmo reino se poderá abrir resgate de escravos de maior rendimento que o de Angola por ser terra muito povoada pelo sertão. E de marfim será outro resgate de muita consideração em rendimento de muitos contos, pela grande quantidade que tem, cm muito mais que virá em se resgatando, posto que é gente muito guerreira e traidora e de ruim natureza. [...] E posto que não houve por bem que por hora se tratasse da dita conquista, mandei ao governador Dom Manuel Pereira por carta de 7 de março e dois de outubro de 1610 que enviasse uma pessoa ao reino de Benguela de confiança e prática das coisas daquelas partes que se informasse muito ao certo destas coisas e que em particular levasse a cargo fazer resgate de todo o cobre que achasse e assentar o trato com o rei de Benguela de maneira que ficasse aberto e corrente.40 37 Ravenstein, The strange adventures..., p. 21. 38 Domingos de Abreu e Brito, Um inquérito à vida administrativa economica de Angola e do Brasil em fins do século XVI. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1931, p. 1415, 39. 39 Idem, op. cit., p. 39; Brásio, Monumenta missionária..., v. 4, p. 599, “Memórias de Jerônimo Castanho a el-rei”, 5 de setembro de 1599. 40 Brásio, Monumenta missionária..., v. 4, p. 32-33, “Regimento do governador de Angola”, 22 de setembro de 1611.

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O interesse pelo chamado “Reino de Benguela e o seu sertão” era pautado pela possibilidade de lucros comercias e pelas vantagens que o comércio de escravos poderia trazer. Foi nesse contexto de expansão portuguesa, demanda por minerais, competição entre as Coroas europeias e o espírito de cruzada religiosa que a Coroa portuguesa enviou Manuel Cerveira Pereira para conquistar e fundar Benguela. Os jagas e os demais habitantes deveriam ser dominados, conquistados e evangelizados, e suas riquezas apreendidas pelo Infante Pio, como Felipe II de Portugal era conhecido.41

A fundação de São Filipe de Benguela No dia 11 de abril de 1617, Manuel Cerveira Pereira partiu de Luanda com 130 soldados para a ocupação do “Reino de Benguela”. Vitorioso na conquista de Cambambe, onde se supunha a existência de depósitos de prata, Manuel Cerveira Pereira era a autoridade ideal para liderar a conquista do “Reino de Benguela” depois de duas tentativas frustradas de acesso às supostas minas que existiriam aí. As minas de Cambambe, ao final, eram de chumbo, não de prata, mas isso ainda não era do conhecimento da Coroa portuguesa. Em Benguela, Pereira tampouco foi feliz. As manilhas de cobre que os habitantes do litoral, os mundombes, utilizavam para adornar pescoços e tornozelos eram provenientes, provavelmente, das minas de Catanga, no interior do continente. Nem em Cambambe nem em Benguela, Cerveira Pereira conseguiu descobrir riqueza mineral.42 Cerveira Perei41 Para mais sobre a importância de Benguela no século XVII, ver Candido, An African slaving port..., p. 31-87. Para uma excelente análise do papel de Manuel Cerveira Pereira como governador português em Angola, em 1603-1606 e 1615-1617, ver Flávia Maria de Carvalho, “O governo de Manuel Cerveira Pereira em Angola no século XVII”, in Alexandre Vieira Ribeiro e Alexsander Lemos de Almeida Gebara (orgs.), Estudos africanos: múltiplas abordagens. Niterói: UFF/PPG-História, 2013, p. 222-240. Sobre o sertão como espaço imaginado, uma ideologia geográfica a ser conquistada, ver Antonio Carlos Robert Moraes, “O sertão. Um ‘outro’ geográfico”, Terra Brasilis (nova série), revista da Rede Brasileira de História da Geografia e Geografia Histórica, n. 4-5, 2012. 42 Felner, Angola..., p. 339-342; Cadornega, História geral..., v. 1, p. 60, 171; Candido, An African slaving port..., p. 44-50. Para o papel de Manuel Cerveira Pereira no Cambambe, ver Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 104-106; Carvalho, “O governo de Manuel Cerveira Pereira...”, p. 228-230. Para mais sobre os mundombes, ver Maria Alexandra Aparício, “Política de boa vizinhança: os chefes locais e os europeus em meados do século XIX, o caso do Dombe Grande”, in II Reunião Internacional de História da África. São Paulo: CEA-USP/SDG-Marinha/Capes, 1997, p. 109-116; Ma-

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ra permaneceu na enseada, onde Lopes Peixoto havia fundado Benguela no século XV. Mas, diante do que ele considerou um porto desprotegido, decidiu procurar outra localidade. A primeira Benguela, fundada em meados do século XVI, foi oficialmente abandonada por Cerveira Pereira e passou a ser designada como Benguela-Velha. Chegando à baía localizada entre os rios Catumbela e Marimbondo (Cavaco), achou que a localização oferecia a proteção de um porto natural e, ao desembarcar suas tropas, entre eles vários escravos pessoais, ordenou a construção de uma fortaleza, e nomeou a localidade São Filipe de Benguela em honra ao rei Filipe II.43 Ao chegar durante o período das secas e mais fresco, conhecido como a temporada do cacimbo, que vai dos meses de maio a agosto, Cerveira Pereira não notou certos problemas, como a abundância de água devido aos rios e aos pântanos ao redor da localidade, que favorecia a proliferação de mosquitos. Os rios também atraíam animais ferozes, que posteriormente atacariam a localidade e seus residentes. Em 1617, entretanto, Cerveira Pereira afirmou: [O] mar aqui tem muito peixe e a terra é muito boa, disposta a tudo o que quiserem plantar e assim há canaviais de açúcar e algodão. Tem dois rios [...] dele bebemos [a água] que é riquíssima. [...] Há muito peixe, assim como tainhas grandes. Dentro da cidade temos muitos porcos [...] Quem não se desmanda não morre. Eu até o presente [...] não tive nenhum achaque, seja Deus louvado.44

Devido à abundância de gado, a baía ficou conhecida como baía das Vacas.45 Apesar da força limitada da presença portuguesa e do fato de a maioria da população mundombe resistir à presença das tropas estrangeiras, na História geral das guerras angolanas, António de Cadornega clamava o controle português do Reino de Benguela, “com sua cidade de São Filipe beira-mar, sita na província chamada dos Quimbundos, com a qual confina a dos Sumbis, e pelo sertão adentro com a província do Genge, toda povoada de quilombos de Jagas, outros riana P. Candido, “Slave trade and new identities in Benguela, 1700-1860”, Portuguese Studies Review, v. 19, n. 1-2, p. 59-75, 2011. 43 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Angola, cx. 1, doc. 74, 28 de agosto de 1617. Ver também Ralph Delgado, A famosa e histórica Benguela: catálogo dos governadores. Lisboa: Gráfica Lisbonense, 1940, p. 61; Felner, Angola..., p. 333. 44 AHU, Angola, cx. 1, doc. 87, 2 de julho de 1618. 45 Felner, Angola..., p. 325. Sobre a importância do gado ao sul do Cuanza, ver Joseph C. Miller, Kings and kinsmen: early Mbundu states in Angola. Oxford: Clarendon Press, 1976, p. 262-263.

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lhe chamam os Quilengues”.46 Cadornega sugere a discrepância sobre o uso do termo “jaga”, ponto que retornarei mais adiante. As ações de Pereira e seus homens eram influenciadas pelos relatos de encontros anteriores entre os portugueses e as populações na costa ocidental da África, no Congo, em Angola e no Brasil. E fundamentadas nos princípios de conquistar, evangelizar e civilizar, ideais eurocêntricas como bem definiu António Manuel Hespanha.47 Os mundombes habitavam o litoral e estavam sob a liderança de Peringue, nomenclatura que designava o governante, o título e a instituição política, assim como o espaço territorial ocupado por aqueles que reconheciam sua liderança.48 Inicialmente os relatos de Manuel Cerveira Pereira são silenciosos sobre a população local, designando-os como negros ou gentios. Esses chamados gentios resistiram à chegada dos portugueses, inicialmente de forma pacífica, afastando-se da costa em busca de refúgio no interior sob a proteção de um outro líder.49 Não sabemos o que a população local achou dos eventos, tampouco a motivação do líder para retornar à baía das Vacas com seus súditos semanas depois e requisitar “amizade e reconhecimento da vossa majestade”.50 Os únicos documentos disponíveis são as cartas deixadas por Manuel Cerveira Pereira e outros exploradores portugueses, que tendem a ser silenciosas sobre a população local, dando a impressão de que esse era um território desabitado a ser “descoberto” pe46 Cadornega, História geral..., v. 3, p. 168; Benguela e seu sertão, p. 17; Delgado, O Reino de Benguela..., p. 62. Os quilengues, no século XX, estavam divididos em dois subgrupos, quilengue-humbe e quilengue-musho, pertencentes ao grupo linguístico nhaneka-humbe-va-nyaneka-lunkumbi). E se diferenciavam dos habitantes do litoral, os mundombes ou ndombes, falantes da língua umbundu. Para mais detalhes sobre o mapa étnico dessa região no século XX, ver José Redinha, Distribuição étnica de Angola: introdução, registo étnico, mapa. Luanda: Centro de Informação e Turismo de Angola, 1968, p. 16-19. A grande dificuldade é entender como as identidades étnicas mudaram com o tempo. Para uma descrição do século XVII, além de Cadornega já citado, ver Childs, “The peoples of Angola...”. 47 Hespanha, “Depois do Leviathan”, p. 61. 48 AHU, Angola, cx. 1, doc. 87, 2 de julho de 1618. Para mais sobre os mundombes, ver Olindo Casimiro de Figueiredo, “Estudo antropométrico sobre mundombes”, Mensário Administrativo, 10, p. 37-47, 1948; Para a invisibilidade dos habitantes de Benguela como mundombes nas fontes portuguesas, ver Childs, “The peoples of Angola...”; Candido, “Slave trade and new identities...”. 49 AHU, Angola, cx. 1, doc. 86, 15 de junho de 1618. 50 AHU, Angola, cx. 1, doc. 87, 2 de julho de 1618.

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los portugueses. Depois do retorno do líder ao litoral, ele foi finalmente chamado de Peringue e identificado como “fidalgo” nas cartas de Manuel Cerveira Pereira, sugerindo aliança à Coroa portuguesa. Nomear instituía e/ou reordenava poderes locais entre africanos e entre estes e os portugueses. Reconhecer uma autoridade africana, mesmo a contragosto e em clima de conflito, reforçava essa autoridade perante a Coroa portuguesa e outras populações africanas, em processos muito semelhantes às “invenções dos chefes” pelos britânicos e franceses no século XIX, que receberam mais atenção dos africanistas.51 A pequena força portuguesa havia estabelecido a cidade de Benguela, que se tornou “a cabeça do reino de Benguela”.52 O escrivão da fazenda real, Vicente Borges Pinheiro, destacou que, no final do século XVII, no sertão daquele reino de Benguela há jagas e sobas muito poderosos que a nossa gente comercializa com alguns. São poucos os vassalos que sua majestade tem daquelas bandas em razão de que nunca tivemos poder bastante nem para a conquista nem os obrigar a obediência e por este respeito sucede algumas vezes roubarem e matarem os pumbeiros no sertão.53 51 Para mais sobre o assunto, ver T. O. Ranger, “The invention of tradition in colonial Africa”, in E. J. Hobsbawm e T. O. Ranger (orgs.), The invention of tradition. Cambridge: Cambridge University Press, 1992, p. 211-261; Sara Berry, Chiefs know their boundaries: essays on property, power, and the past in Asante, 1896-1996. Porstmouth (NH): Heinemann, 2001; Clifton Crais, “Chiefs and bureaucrats in the making of empire: a drama from the Transkei, South Africa, october 1880”, American Historical Review, v. 108, n. 4, p. 1.034-1.056, 2003; Carolyn Hamilton, Terrific majesty : the power of Shaka Zulu and the limits of historical invention. Cambridge (MA): Harvard University Press, 1998. Para como o processo de reconhecimento reforçava as autoridades africanas, ver Ana Paula Tavares e Catarina Madeira Santos (orgs.), “Uma leitura africana das estratégias políticas e jurídicas. Textos dos e para os dembos”, Africae monumenta. A apropriação da escrita pelos africanos. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002, p. 243-260; Santos, “Administrative knowledge in a colonial context...”; Beatrix Heintze, “The Angolan vassal tributes of the 17th century”, Revista de História Económica e Social, v. 6, p. 57-78, 1980; Beatrix Heintze, “Translocal kinship relations in Central African politics of the 19th century”, in Ulrike Freitag e Achim von Oppen (orgs.), Translocality. The study of globalising processes from a Shouthern perspective. Leiden: Brill, 2010, p. 179-204. 52 AHU, Angola, cx. 12, doc. 161, 20 de novembro de 1684. 53 Mani era o título político nos reinos do Congo e Ndongo. Ver Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 277-386; Joseph C. Miller, “Central Africans during the era of the slave trade, c. 1490s-1850s”, in Linda M. Heywood (org.), Central Africans and

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A classificação de líderes políticos africanos como sobas ou jagas revela como o colonialismo português categorizou a população supostamente sob domínio. Os exploradores e administradores portugueses classificaram os líderes da região centro-africana como mani, dembo ou soba, independentemente da organização política ou ainda do grupo linguístico a que pertenciam. O título de soba, assim como sobado para o espaço político administrado por um soba, é um termo kimbundu, que significa chefe, rei ou régulo, dependendo da fonte.54 Os portugueses empregaram o título para líderes não falantes do kimbundu, como aqueles situados ao sul do Cuanza, apesar de o título sòmá existir nas regiões dos falantes de umbundu.55 Um ano após a fundação de Benguela, Cerveira Pereira relatou: Se levantou contra nós um jaga que estava afastado desta cidade uma distância de quatro léguas para a parte de Angola, correndo conosco com muita amizade e queria ser nosso amigo por ser inimigo do gentio desta terra [Peringue]. [...] O qual, depois de haver corrido em boa amizade conosco, se foi, apoderandose de tudo a que esse conhecia por ser do gentio desta terra. Os nossos escravos, induzidos por ele e pelos de sua companhia, que eram muitos, nos começaram a fugir e deixar de ser cristãos e de maneira que ficamos sem gente preta.56

O relato reforça a fragilidade da presença portuguesa e de como dependiam da cooperação e até da proteção da população local. Autoridades locais que resistiam à presença portuguesa se aproveitavam da situação para saquear os portugueses e seus aliados, atraindo escravos e outros inconformados com a situação. Os jagas eram descritos como perigosos e ameaçadores, que tinham por hábito comer seus escravos. Os portugueses então trocavam os cativos dos cultural transformations in the American diaspora. Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 40-43; Beatrix Heintze, “Written sources and African history: a plea for the primary source. The Angola manuscript collection of Fernão de Sousa”, History in Africa, v. 9, p. 77-103, 1982. Dembo era o título dos Ndembu. Vansina, How societies are born..., p. 187-190; Catarina Madeira Santos, “Escrever o poder. Os autos de vassalagem e a vulgarização da escrita entr 54 Miller, Kings and kinsmen..., p. 302. Em alguns dicionários de kimbundu, “soba” é traduzido como “rei” ou “régulo”. Ver Antonio da Silva Maia, Lições de gramática de quimbundo (português e banto). Cucujães: Tipografia das Missões, 1964, p. 168. 55 Candido, An African slaving port..., p. 35. 56 AHU, Angola, cx. 1, doc. 87, 2 de julho de 1618.

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jagas por mercadorias baratas e os enviavam às Américas. Segundo a lógica cristã, o resgate das almas daqueles que seriam canibalizados pelos jagas justificaria moralmente a venda desses seres humanos como escravos. A escravidão, na ótica portuguesa católica dos séculos XVI e XVII, era um ato de caridade que salvaria os cativos do canibalismo.57 Portanto, o encontro com povos antropófagos era conveniente à Coroa portuguesa, sejam eles mundombes, jagas, ou quilengues, pois teologicamente justificava a escravização destes, o seu transporte e a exploração de seu trabalho nas Américas.58 Apesar de recém-criada em 1617, Benguela despertara interesses, pois já era um pouco mais do que uma fortaleza de pau a pique, atraindo comerciantes de regiões vizinhas e do interior, que, anteriormente à chegada dos portugueses, se dirigiam à baía das Vacas para obter peixe seco, conchas e outros produtos dos mundombes.59 Além de Peringue, outros potentados, como o líder Quitumbela, haviam solicitado aliança com os portugueses em busca de proteção contra os ataques dos coletores e caçadores kwandu, chamados de moquimbas na documentação portuguesa.60 Agricultores e pastores ofereciam víveres, além de 57 Silvia Hunold Lara, Campos da violência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p. 4144; Metcalf, Go-betweens..., p. 177-180; Marcocci, “Escravos ameríndios...”, p. 46-49. 58 A legalidade da escravidão dos vassalos portugueses seria um problema para a administração portuguesa em Angola e Benguela. Infidelidade e deslealdade política eram interpretadas como quebra de contrato, tornando passível a escravização e a justificativa da escravidão. Para mais sobre o assunto, ver Roquinaldo Ferreira, “Slaving and resistance to slaving in West Central Africa”, in Keith Bradley e Paul Cartledge (orgs.), The Cambridge world history of slavery, v. 3. [S.l.]: Cambridge University Press, 2011; idem, Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola and Brazil during the era of the slave trade. New York: Cambridge University Press, 2012, p. 88-123; Mariana P. Candido, “African freedom suits and Portuguese vassal status: legal mechanisms for fighting enslavement in Benguela, Angola, 1800-1830”, Slavery & Abolition, v. 32, n. 3, p. 447-459, 2011; idem, “O limite tênue...”; idem, “The Transatlantic slave trade and the vulnerability of free blacks in Benguela, Angola, 1780-1830”, in Mark Meuwese e Jeffrey A. Fortin (orgs.), Atlantic biographies: individuals and peoples in the Atlantic world. Leiden: Brill, 2013, p. 193-210. 59 Carlos Ervedosa, Arqueologia angolana. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 70-72; Candido, An African slaving port..., p. 31-32. 60 AHU, Angola, cx. 1, doc. 87, 2 de julho de 1618. Para mais informação sobre os Kwandu, ver E. O. J. Westphal, “The linguistic prehistory of Southern Africa: Bush, Kwadi, Hottentot, and Bantu linguistic relationships”, Africa: Journal of the International African Institute, v. 33, n. 3, p. 237-265, 1963.

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marfim, cobre e cativos aos agentes portugueses.61 A procura pelas minas de cobre e prata continuava a exercer fascínio nos agentes portugueses, convencidos de que um Eldorado os aguardava no interior do continente e de que, graças à riqueza mineral, conseguiriam autonomia política diante da Coroa espanhola.62 Cobre era essencial como moeda de troca no mercado asiático. Em Malabar, por exemplo, era trocado por pimenta. Comerciantes holandeses adquiriam cobre nos mercados chineses e japoneses e o permutavam em Gujarat, na Índia, por tecidos e especiarias.63 Além de seu valor de troca, o cobre também era importante matériaprima na fabricação dos tachos para o processamento de açúcar nos engenhos em São Tomé e no Brasil. O cobre era ainda utilizado na confecção de armamento e na cunhagem de moedas.64 A busca por minas nas terras do soberano Cbo Kalunda levou a uma série de conflitos e à captura de um grande número de pessoas.65 Oficiais portugueses capturaram e sequestraram homens, mulheres e crianças em processos semelhantes ao que haviam empreendido no Congo e Ndongo.66 Após esse conflito, ainda no ano de 1618, Cerveira Pereira declarou ter despachado dois navios da baía das Vacas 61 AHU, Angola, cx. 1, doc. 87, 2 de julho de 1618; Brásio, Monumenta missionária..., v. 6, p. 315-318; Carlos Estermann, The ethnography of Southwestern Angola. New York: Africana Pub. Co, 1976, p. 2, 151-152. 62 Aguiar, Administração colonial..., v. 1, p. 152; João Medina e Isabel de Castro Henriques, A rota dos escravos: Angola e a rede dos comércio negreiro. Lisboa: Cegia, 1996, p.  83; Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p.  101-102. Para a importância da prata das colônias espanholas em Portugal, ver C. R. Boxer, “Brazilian gold and British traders in the first half of the eighteenth century”, The Hispanic American Historical Review, v. 49, n. 3, p. 454-472, 1969, cf. p. 455. 63 Sanjay Subrahmanyam, The political economy of commerce: Southern India, 15001650. [S.l.]: Cambridge University Press, 2002, p. 84-85, 245. 64 Schwartz, “Prata, açúcar e escravos...”, p. 222. 65 AHU, Angola, cx. 1, doc. 86, 15 de junho de 1618; Felner, Angola..., p. 556, “Auto que mandou fazer o ouvidor geral e provedor da Fazenda Pedro Neto de Melo”, 15 de junho de 1618. 66 Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 277-383; José C. Curto, Luso-Brazilian alcohol and the legal slave trade at Benguela and its hinterland, c. 1617-1830, in H. Bonin e M. Cahen (orgs.), Négoce blanc en Afrique Noire: l’évolution du commerce à longue distance en Afrique noire du 18e au 20e siècles. Paris: Publications de la Société Française d’Histoire d’Outre-Mer, 2001, p.  353; Thornton, The Kingdom of Kongo..., p. 6-7, 44; Joseph C. Miller, “The paradoxes of impoverishment in the Atlantic zone”, in David Birmingham e Phyllis Martin (orgs.), History of Central Africa, v. 1. London: Longman, 1983, p. 131-145.

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carregados de escravos e cabeças de gado.67 O comércio de escravos e seu envio ao mundo atlântico começou com as primeiras expedições portuguesas ao chamado “Reino de Benguela”. Benguela não era um “um porto menor, envolvido apenas no comércio local de alimentos”, como argumentaram Heywood e Thornton para o século XVII.68 Desde a sua fundação, o porto transformou-se em local de embarque de indivíduos sequestrados e escravizados, tornando-se no terceiro maior porto escravista na costa africana.69 As guerras de conquistas que seguiram ao confronto com Peringue e Cbo Kalunda fizeram parte da expansão portuguesa. Os cativos de guerra eram enviados inicialmente às colônias espanholas nas Américas, principalmente aos portos de Cartagena e Buenos Aires, e posteriormente ao Brasil.70 Segundo a “Relação da conquista de Benguela”, produzida pelo governador de Angola, Fernão de Sousa, em 1626, os sobas aliados dos portugueses eram Peringue, vizinho do porto, e Quizamba, que assiste na baía de São Francisco. Estes resgatam de ordinário mantimentos e as mais coisas da terra por contaria. Outros sobas não são amigos que 67 Adriano Parreira, “A primeira conquista de Benguela”, História, Lisboa, v.  12, n. 128, p. 64-68, 1990, cf. p. 67. 68 Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles..., p. 116. 69 Candido, An African slaving port..., p. 150-154. 70 Para mais sobre o assunto, ver David Wheat, “The first great waves: African provenance zones for the Transatlantic slave trade to Cartagena de Indias, 1570-1640”, The Journal of African History, v. 52, n. 1, p. 1-22, 2011; Linda A. Newson e Susie Minchin, From capture to sale. Leiden: Brill, 2007; Antonio García de León, “La malla inconclusa. Veracruz y los circuitos lusitanos en la primera mitad del siglo XVII”, in Antonio Ibarra e Guillermina del Valle Pavón (orgs.), Redes sociales e instituciones comerciales en el Imperio Español, siglos XVII a XIX. Cidade do México: Unam/Instituto Mora, 2007, p.  41-83; David Wheat, “Garcia Mendes Castelo Branco, fidalgo de Angola y mercaders de esclavos en Veracruz y el Caribe a principios del siglo XVII”, in María Elisa Velázquez (org.), Debates históricos contemporáneos: Africanos y Afrodescendientes en México y Centroamérica. Cidade do México: Inah, 2011, p. 85-107. Kara Schultz vem desenvolvendo pesquisa sobre o comércio entre Angola e Buenos Aires, encontrando indícios para o embarque de escravos em Benguela, no começo do século XVII. Ver Kara D. Schultz, “Buenos Aires: a seventeenth-century African port city between the Spanish and Portuguese empires”, comunicação apresentada na conferência Colonial (Mis)understandings: Portugal and Europe in Global Perspective, 1450-100. Lisboa, Centro de História de Além-Mar, 2013.

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podem resgatar e algumas vezes o fazem com vacas por contarias. Há três jagas Caconda, Anguri e Capinguena; não há mais jagas naquele distrito, estes resgatam peças por fazendas. Os direitos das peças cobrou sempre o conquistador Manuel Cerveira Pereira.71

Além da clara indicação da existência do comércio de escravos em Benguela nos primeiros anos de contato com os portugueses, essa passagem revela a classificação das autoridades locais em duas categorias: sobas ou jagas. E enfatiza diferenças: os jagas eram os que comercializavam escravos com súditos portugueses, mais do que os sobas. As fontes ressaltam a dependência/concorrência em relação ao fornecimento de escravos pelos jagas. E, ao comparar os jagas com os sobas, salienta que os “outros sobas não são amigos que podem resgatar” – ao fazer referência ao resgate de escravos, deixa implícito que sobas deveriam ser amigos da Coroa portuguesa, autoridades com quem se fazia comércio amplo, que incluía seres humanos e produtos variados, como víveres, enquanto a troca com os jagas se restringia ao comércio de cativos. Fazia-se comércio com sobas e jagas, mas os primeiros seriam, ou deveriam ser, amigos e fiéis à Coroa portuguesa.

Conceitos africanos ou invenções portuguesas: sobas, jagas e a vassalagem A expansão portuguesa baseava-se na conquista e ocupação do território e dos povos encontrados, o que exigia a assinatura de tratados de vassalagem com os governantes locais que garantissem o acesso a terra, rotas de comércio e proteção aos agentes portugueses. Enquanto a pilhagem era constantemente utilizada como mecanismo de apropriação, as alianças com governantes locais eram necessárias e essenciais para o sucesso da conquista e do comércio. Para justificar o uso da violência e de tropas nas chamadas guerras de conquista, era importante empregar uma linguagem que fizesse uso de termos associados à barbárie e oposição à cristandade. Os contatos e conflitos expressam também como a Coroa portuguesa via o seu papel na expansão marítima e uma visão religiosa de mundo, onde a violência, as negociações, as alianças, o comércio e a conquista eram valores compatíveis.72 Alianças, como as estabelecidas com os governantes Peringue e Kitumbela, demonstram como autoridades africanas se inseriam nas redes comerciais portuguesas e, inevitavelmente, no mundo atlântico. Tratados entre iguais, entre 71 Felner, Angola..., p. 566, doc. 96, “Relação da conquista e presídio de Benguela”. 72 Para mais sobre o assunto, ver Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 473-504.

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governantes portugueses e africanos, eram assinados fazendo-se uso de categorias europeias de vassalagem, inclusive na sua terminologia, assim como de instituições locais, como o undar.73 O undar era uma cerimônia de posse, provavelmente imposta pelos portugueses após assistirem à transmissão de poder no estado do Ndongo.74 Os súditos e os membros mais velhos de linhagens que compunham a liderança reconheciam a nova autoridade que não só controlava o mundo político, como também o poder sobrenatural. Durante a cerimônia do undar, aquele que subia ao poder se deitava no chão e terra ou areia eram jogados sobre seu corpo. O pó era então espalhado pelo peito e pelos braços, marcando a ascensão ao poder e o fato de os anciões terem aceito o novo líder da comunidade. No caso das cerimônias de undamento patrocinadas pelo capitão-mor ou, posteriormente, pelo governador de Benguela, o agente português era quem depositava areia ou eventualmente farinha sobre o corpo da nova autoridade a ser empossada. O undamento significava a aceitação da nova autoridade das suas responsabilidades, entre elas obediência à Coroa portuguesa. Combinando práticas antigas e novas, locais e estrangeiras, o tratado de vassalagem, em português, era assinado por todos os envolvidos. A materialidade do papel e da assinatura indica a importância que a escrita adquiriu nesse contexto de encontros e negociações.75 Autoridades 73 Os estudos de Beatrix Heintze são referências para os estudos sobre vassalagem em Angola. Heintze, “The Angolan vassal tributes...”, p.  57-78; idem, “Luso-African feudalism in Angola?: the vassal treaties of the 16th to the 18th century”, Revista Portuguesa de História, Coimbra, Inst. Hist. Económica e Social, v. 18, p. 111-131, 1980; idem, “Ngingi a Mwiza: um sobado angolano sob domínio português no século XVII”, Revista Internacional de Estudos Africanos, v. 8-9, p. 221-234, 1988. A vassalagem também era imposta às populações indígenas nas Américas. Ver Domingues, Quando os índios eram vassalos...; Cunha, História dos índios no Brasil... Para outras instituições incorporadas pela administração portuguesa, ver Ferreira, Cross-cultural exchange in the Atlantic world...; António Manuel Hespanha, “Luís de Molina e a escravização dos negros”, Análise Social, v. 35, n. 157, p. 937-960, 2001, cf. p. 950-952. 74 Heintze, “Luso-African feudalism...”, p. 116; idem, Angola nos séculos XVI e XVII..., p. 387-428; Santos, “Escrever o poder...”, p. 86-88; René Pélissier, História das campanhas de Angola: resistência e revoltas (1845-1941). Lisboa: Estampa, 1997, p.  63-64; Carvalho, “O governo de Manuel Cerveira Pereira...”, p. 225-226. 75 Heintze, “Luso-African feudalism...”; idem, “Ngingi a Mwiza...”; idem, “The Angolan vassal tributes...”; Santos, “Escrever o poder...”; Ana Paula Tavares e Catarina Madeira Santos, Africæ monumenta: Arquivo Caculo Cacahenda. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 2002. Para mais sobre a importância da comercialização do papel no interior de Benguela, ver Candido, An African slaving port..., p. 173180. Para o uso dos documentos escritos em distintos impérios, ver Ann Laura Stoler,

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africanas que assinavam o contrato de vassalagem faziam um juramento solene de obediência e lealdade e os portugueses prometiam proteção e reconheciam o governante como representante legítimo de seu povo, o que provocou uma série de disputas entre os sobas e os seus súditos, que não necessariamente se sentiam representados pelos aliados das forças coloniais. Ou seja, agentes portugueses acabaram por incorporar uma prática local, o undar, que reforçava o seu poder entre a população local ao mesmo tempo que as autoridades africanas se apropriavam do tratado de vassalagem para ganhar espaço político diante de seus súditos e outras autoridades com quem tivessem algum tipo de disputa. No processo, novos valores e instituições eram formados, ganhando novos significados, e todos os atores envolvidos copiavam práticas que fossem relevantes e que favorecessem uma melhor comunicação e um melhor entendimento.76 No século XVIII, durante as cerimônias de vassalagem, as autoridades africanas eram “carimbadas com a marca Real no peito esquerdo para o seu povo o respeitarem, obedecerem e reconhecerem como vassalo de Sua Majestade Portuguesa”.77 Os sobas vassalos, assim como os escravos despachados do Porto de Benguela, eram obrigados a levar em seu corpo a marca da violência da presença portuguesa. Não está claro se as marcas a ferro eram feitas nos sobas nas cerimônias de vassalagem no século XVII. Os vassalos tinham a obrigação de pagar dízimos e outros impostos, muitas vezes na forma de escravos. Também eram obrigados a permitir a entrada de comerciantes, missionários e funcionários coloniais em seus territórios e a oferecer carregadores, além de retornar escravos fugidos e ceder soldados para as guerras pretas. Tratados de vassalagem eram acordos diplomáticos, políticos e comerciais que seguiram em uso pelo Estado português até 1920.78 Os tratados de vassalagem reconheciam “Colonial archives and the arts of governance”, Archival Science, v. 2, p. 87-109, 2002; David Dery, “‘Papereality’ and learning in bureaucratic organizations”, Administration & Society, v. 29, n. 6, p. 677-689, 1998; Bhavani Raman, “The duplicity of paper: counterfeit, discretion, and bureaucratic authority in early colonial Madras”, Comparative Studies in Society & History, v. 54, n. 2, p. 229-250, 2012; Rebecca J. Scott, “Paper thin: freedom and re-enslavement in the diaspora of the Haitian revolution”, Law and History Review, v. 29, n. 4, p. 1.061-1.087, 2011; Bhavani Raman, Document Raj: writing and scribes in early colonial South India. Chicago: University of Chicago Press, 2012. 76 Toby Green, The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1300-1589. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 154-155. 77 Arquivos Nacionais da Torre do Tombo, conde de Linhares, maço 46, doc. 4, 9 de julho de 1765. Para mais sobre o assunto, ver Santos, “Escrever o poder...”, p. 81-95. 78 Para as obrigações dos vassalos, ver Heintze, “The Angolan vassal tributes...”; San-

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a legitimidade política e territorial das autoridades africanas e seus súditos bem como estabeleciam uma série de obrigações e direitos, além de fortalecer o poder dos sobas diante de outras autoridades africanas.79 Após o tratado de vassalagem, em 1618, o soba de Peringue, por exemplo, foi obrigado a fornecer escravos ao governador Cerveira Pereira para serem empregados no serviço público. Os tratados utilizavam códigos e símbolos familiares, como a prática do undar e a formação de alianças diplomáticas entre governantes.80 Com os tratados de vassalagem, os súditos dos novos aliados da Coroa portuguesa se transformavam em súditos do Estado português e, teoricamente, deveriam ser protegidos.81 A vassalagem implicava o reconhecimento da autoridade da Igreja católica através do batismo e da inserção no mundo cristão, ainda que fosse somente pró-forma. Vassalos da Coroa não deveriam ser escravizados e deportados para as Américas, como vários casos apresentatos, “Escrever o poder...”; Rosa da Cruz e Silva, “Saga of Kakonda and Kilengues: relations between Benguela and its interior, 1791-1796”, in José C. Curto e Paul E. Lovejoy (orgs.), Enslaving connections: changing cultures of Africa and Brazil during the era of slavery. Amherst: Humanity Books, 2003, p. 245-259. 79 AHU, Angola, cx. 9, doc. 25, 10 de abril de 1666. Sobre classificações e direitos, ver Pamela Scully, Liberating the family?: gender and British slave emancipation in the rural Western Cape, South Africa, 1823-1853. Portsmouth (NH): Heinemann, 1997, p. 3446; Karen B. Graubart, “Indecent living: indigenous women and the politics of representation in early colonial Peru”, Colonial Latin American Review, v. 9, n. 2, p. 213, 223-224, 2000; Candido, “O limite tênue...”. Para a relação das autoridades africanas com a administração portuguesa em séculos posteriores, ver Jill R. Dias, “Changing patterns of power in the Luanda hinterland. The impact of trade and colonisation on the Mbundu (ca. 1845-1920)”, Paideuma, v. 32, p. 285-318, 1986; Philip J. Havik, “Direct or indirect rule? Reconsidering the roles of appointed chiefs and native employees in Portuguese West Africa”, Africana Studia, v. 15, n. 2, p. 29-56, 2010; Heintze, “Ngingi a Mwiza...”. 80 Para as obrigações do soba Peringue’s, ver Delgado, O Reino de Benguela..., p. 67. Para a semelhança entre as instituições políticas no Congo e em Portugal, ver Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles..., p. 106-107; John K. Thornton, “‘I am the subject of the king of Congo’: African political ideology and the Haitian revolution”, Journal of World History, v. 4, n. 2, p. 181-214, 1993. 81 António Manuel Hespanha afirma que os africanos não eram vassalos da Coroa portuguesa e portanto a Coroa não exercia proteção jurídica e moral sob esses povos. Não é o que a documentação portuguesa revela. Ver Hespanha, “Luís de Molina e a escravização...”, p. 940.

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dos aos juízes de fora argumentaram.82 Entretanto, é importante ressaltar que a vassalagem e o cristianismo não protegeram a maioria dos centro-africanos da deportação, apesar de ser difícil estimar quantos dos africanos deportados dessa região eram vassalos e/ou cristãos.83 A vassalagem incorporava as autoridades locais ao Estado colonial. Seguindo o modelo que haviam empregado ao norte do Cuanza, os oficiais portugueses instalavam os sobas no poder e estes passavam a ser responsáveis pela cobrança de impostos e recrutamento militar. A função e o uso desses sobas no Império Português não era diferente dos “chefes” empregados pelos britânicos no norte da Nigéria ou na África Oriental, no século XIX e início do século XX, porém é importante ressaltar a diferença temporal dos dois processos e como o período pós-industrial criou mecanismos distintos de poder entre sociedades europeias e africanas.84 Os sobas vassalos transformavam-se em intermediários coloniais, em 82 José C. Curto, “The story of Nbena, 1817-1820: unlawful enslavement and the concept of “original freedom” in Angola”, in Paul E. Lovejoy e David V. Trotman (orgs.), Trans-Atlantic dimensions of ethnicity in the African diaspora, London: Continuum, 2003, p. 44-64; José C. Curto, “Struggling against enslavement: the case of José Manuel in Benguela, 1816-20”, Canadian Journal of African Studies, v. 39, n. 1, p. 96-122, 2005; Candido, “African freedom suits...”; Ferreira, “Slaving and resistance...”; Candido, An African slaving port..., p. 191-236. 83 Heintze, “Luso-African feudalism...”; Candido, “African freedom suits...”. Sobre o catolicismo dos africanos nas Américas, ver, entre outros, Mariza de Carvalho Soares, Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000; Souza, Reis negros...; Eduardo França Paiva, Escravidão e universo cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001; Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles...; Thornton, “The development of an African Catholic Church...”; John K. Thornton, “On the trail of voodoo: African christianity in Africa and the Americas”, The Americas, v. 44, n. 3, p. 261-278, 1988; James H. Sweet, Recreating Africa: culture, kinship, and religion in the African-Portuguese world, 1441-1770. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003. Para a recepção do catolicismo entre os africanos da África Centro-Ocidental, ver Wyatt MacGaffey, Religion and society in Central Africa: the BaKongo of lower Zaire. Chicago: University of Chicago Press, 1986, p. 191-216. 84 Para mais sobre o papel dos chefes africanos no Império Britânico, ver Berry, Chiefs know their boundaries...; Emily Lynn Osborn, Our new husbands are here: households, gender, and politics in a West African state from the slave trade to colonial rule. Athens: Ohio University Press, 2011; Benjamin N. Lawrance, Emi Osborn e Richard L. Roberts (orgs.), Intermediaries, interpreters, and clerks: African employees in the making of colonial Africa. Madison: University of Wisconsin Press, 2006; Richard L. Roberts, Litigants and households: African disputes and colonial courts in the French Soudan,

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busca de novas oportunidades que poderiam preservar a sua posição no contexto da conquista colonial. A vassalagem alterou títulos, instituiu novos grupos no poder e tornou-se um importante fator na identificação e classificação da população, separando os aliados e vassalos da Coroa portuguesa daqueles que se opunham à invasão e conquista. As autoridades coloniais e os comerciantes itinerantes reforçavam o poder dos sobas diante de seus súditos, oferecendo tecidos, bebidas alcoólicas, armas e pólvora, além de fácil acesso a uma série de mercadorias associadas ao mundo atlântico. Ao mesmo tempo, lucravam com a situação, contando com aliados militarmente mais poderosos que a força colonial e com acesso aos mercados no interior. As alianças comerciais e políticas que foram estabelecidas entre a administração portuguesa e os sobas não devem apagar a violência e o poder inerente entre esses contatos.85 Classificações impostas pelos portugueses, como a categorização de governantes locais como sobas ou jagas, foram influenciadas por atividades econômicas e modos de vida. Os agricultores, por exemplo, eram vistos como menos ameaçadores do que os proprietários de gado, caracterizados por sua mobilidade territorial. A experiência colonial portuguesa no século XVII não foi tão diferente do colonialismo francês ou britânico dois séculos posteriores, quando os pastores fulanis representavam uma ameaça às fronteiras coloniais e à cobrança de tributo.86 As autoridades coloniais portuguesas faziam uso dos termos “jaga” e “soba” na correspondência oficial sem explicar o seu significado, indicando que esses conceitos eram fluidos e polissêmicos no contexto colonial, no século XVII. Há décadas historiadores discutem o significado do termo “jaga”. O viajante Andrew Battell, que visitou Benguela-Velha no começo do século XVII e residiu entre os “jagas”, descreveu-os como “os maiores canibais e devoradores de homens em todo o mundo. Eles se alimentam de carne humana [apesar] da quantidade de 1895-1912. Portsmouth (NH): Heinemann, 2005. 85 Para o papel central da violência na construção dos impérios europeus, ver Comaroff e Comaroff, Of revelation and revolution..., v. 1; Frederick Cooper e Ann Laura Stoler (orgs.), Tensions of empire: colonial cultures in a bourgeois world. Berkeley: University of California Press, 1997; Crais, “Chiefs and bureaucrats...”; Clifton Crais e Pamela Scully, Sara Baartman and the hottentot Venus: a ghost story and a biography. Princeton: Princeton University Press, 2010; Raman, “The duplicity of paper...”. 86 A. G. Adebayo, “Jangali: Fulani pastoralists and colonial taxation in Northern Nigeria”, The International Journal of African Historical Studies, v. 28, n. 1, p. 113-150, 1995, cf. p. 125-127.

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gado existente no país”.87 A descrição de populações não europeias como antropófagos é uma alegoria comum nas narrativas de viajantes durante o período da expansão europeia. Canibais, por exemplo, poderiam e deveriam ser atacados em guerras justas, pois a antropofagia era considerada um pecado contra a natureza. Encontrar povos antropófagos favorecia os interesses da Coroa portuguesa de ocupação do território, bem como o ataque às populações locais, a apropriação de minerais e riquezas, a aquisição de escravos. A escravidão era interpretada como salvação diante de um mal maior que seria o canibalismo.88 Os jagas eram vistos como povos sem fé, rei ou ordem, bandos de nômades que viviam do ataque e pilhagem, e que, segundo Baltasar Rebelo de Aragão, os portugueses não conseguiam controlar.89 Mas quem eram os jagas? O padre capuchinho Giovanni Cavazzi argumentou que os jagas eram oriundos do interior do continente africano e que haviam se associado a bandos imbangalas, explicação apresentada por vários cronistas do século XVII, como Cavazzi,

87 Ravenstein, The strange adventures..., p.  21. Para outras crônicas sobre os jagas como canibais, ver Beatrix Heintze, “Contra as teorias simplificadoras”, in Manuela Ribeiro Sanches (org.), Portugal não é um país pequeno. Contar o “império” na póscolonialidade. Lisboa: Livros Cotovia, 2006, p. 223-224. A associação de canibalismo entre os jagas permanece em estudos mais recentes. Em uma publicação de 1995, os jagas foram descritos como “um grupo selvagem do sul dos rios Congo e Cuango, que na década de 1580 atacaram e saquearam São Salvador e outros centros”. Ver Benjamín Núñez, Dictionary of Portuguese-African civilization, v.  1. London: Hans Zell Publishers, 1995, p. 223. 88 Beatriz Perrone-Moisés, “A guerra justa em Portugal no século XVI”, Revista da SBPH: Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, v. 5, p. 5-10, 1989. Ângela Barreto Xavier, A invenção de Goa: poder imperial e conversões culturais nos séculos XVI e XVII. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008; Heintze, “Contra as teorias...”, p. 215-228; Candido, “O limite tênue...”; Metcalf, Go-betweens..., p. 177-179; Robin Law, “Human sacrifice in pre-colonial West Africa”, African Affairs, v. 84, n. 334, p. 53-87, 1985, cf. p. 58-59; Hespanha, “Luís de Molina e a escravização...”, p. 959. Para os rumores sobre canibalismo em outros períodos, ver Luise White, Speaking with vampires: rumor and history in colonial Africa. Berkeley: University of California Press, 2000. 89 Ver Ilídio do Amaral, O rio Cuanza (Angola), da Barra a Cambambe, reconstituição de aspectos geográficos e acontecimentos históricos dos séculos XVI e XVII. Lisboa: MCT/IICT, 2000, p. 37-38; Pinto, “Em torno de um problema de identidade...”, p. 230. Ver também o relato do médico holandês Olfert Dapper (que nunca visitou a África) disponível em Robert O. Collins, Central and South African history,. Princeton: Markus Wiener Publishers, 1990, p. 33-37.

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Cadornega e Battell, e aceita por vários historiadores.90 Em todas as crônicas, seja de oficiais portugueses, viajantes ou missionários, os jagas são vistos como tiranos, violentos, selvagens, antropófagos e nunca são descritos como ocupantes legítimos do território, defendendo sua pulação, seu rebanho ou seus campos de ataques das forças portuguesas. O que proponho é uma revisão de como o termo era aplicado em Angola, partindo das fontes portuguesas utilizadas na região de Benguela. Porém, antes de analisar o caso específico de Benguela, tentarei resumir o debate historiográfico para que a minha contribuição seja mais evidente. Na década de 1960 e em estudos posteriores, Vansina afirma que os jagas eram imbangalas originários da região de Quilengues, no interior de Benguela. Pastoralistas, esse grupo migrou em grupos pequenos para o norte, ultrapassando o rio Cuanza, e no processo incorporou grupos dispersos, alguns com experiência militar.91 A historiadora Beatrix Heintze identificou vários grupos jagas ao norte e ao sul do Cuanza, durante o século XVII e, assim como Vansina, afirma que esses grupos pastoralistas se deslocaram do sul rumo ao norte, baseado no relato de Cadornega, que descreveu a existência de campos militares jagas no interior de Benguela, apesar de ele não ter visitado a região.92 Seguindo o argumento de Vansina e Heintze e usando as mesmas fontes, Paulo Jorge de Sousa Pinto afirma que existiam “muitos jagas” na África Centro-Ocidental, embora ele tenha reconhecido que nem todos os jagas faziam parte do mesmo grupo.93 Historiadores encontraram grandes di90 Giovanni Antonio Cavazzi, Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola, v. 1. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1965, p. 173-175; Ravenstein, The strange adventures..., p. 18-20; Cadornega, História geral..., v. 1, p. 11-14. Ver também Amaral, O Reino do Congo..., p. 225-226; Miller, Kings and kinsmen..., p. 182183; idem, Way of death: merchant capitalism and the Angolan slave trade, 1730-1830. Madison: University of Wisconsin Press, 1988, p. 4-5; John Thornton, “The African experience of the ‘20. and Odd Negroes’ arriving in Virginia in 1619, The William and Mary Quarterly, v. 55, n. 3, p. 421-434, 1998, p. 428-430. 91 Jan Vansina, “More on the invasions of Kongo and Angola by the Jaga and the Lunda”, The Journal of African History, v. 7, n. 3, p. 421-429, 1966; idem, How societies are born..., p. 197; David Birmingham, “The date and significance of the Imbangala invasion of Angola”, The Journal of African History, v. 6, n. 2, p. 143-152, 1965; Heywood e Thornton, Central Africans, Atlantic Creoles..., p. 94. 92 Cadornega, História geral..., v.  3, p. 249-250; Heintze, “The extraordinary journey...”, p. 83; idem, “Translocal kinship relations...”, p. 189. 93 Heintze, “The extraordinary journey...”, p. 83; Pinto, “Em torno de um problema de identidade...”, p. 196.

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ficuldades para definir se os jagas eram um grupo étnico ou somente um bando militarmente organizado. Os jagas no “Reino de Benguela”, argumento, são uma criação dos portugueses, englobando no mesmo termo grupos que viviam em regiões diversas, com organizações políticas variadas e falantes de línguas diferentes. Segundo os relatos de cronistas, os jagas ora estavam no Congo, no Cafuxe e no Zenze, no interior de Luanda, assim como no Libolo e no Bailundu, no “Reino de Benguela”.94 Isabel de Castro Henriques, fazendo uso do relato de Battell e outros, enfatizou como os jagas não eram uma exclusividade da África Central, afinal outros grupos tinham sido identificados em Serra Leoa.95 Diante dessa multiplicidade de jagas, eles só poderiam ser o mesmo grupo no imaginário português. Anne Hilton e Thornton afirmaram que os jagas eram grupos ancestrais dos yakas, que haviam sido deslocados pela expansão dos estados Congo e Tio, e que haviam invadido o Reino do Congo em 1568 para tentar quebrar o monopólio do manicongo sobre o comércio de escravos, interpretação essa que o Joseph Miller rejeitou devido ao problemático uso das fontes primárias.96 Hilton afirma que, no antigo Reino do Congo, “jaga” designava o “outro”, o desconhecido, não necessariamente um grupo específico. E, provavelmente, essa definição entrou no universo português na África Central, sendo utilizada para nomear grupos fora do controle português, cujo conhecimento era limitado ou nulo. Talvez o historiador que tenha feito uma interpretação mais próxima da ideia que defendo para os jagas do Reino de Benguela seja Joseph Miller. Para Miller, as invasões jagas no Congo, na década de 1560, eram conflitos internos ou disputas políticas que foram interpretadas como invasões pelos cronistas portugueses. Ele afirmou que a representação dos jagas nas fontes portuguesas foi moldada por noções de civilização contra a barbárie e que a ênfase na crueldade dos jagas reforçava a visão de benevolência das intervenções militares portuguesas.97 Ou, como explicou François Bontinck, os portugueses justificavam a conquista como legítima contra os

94 José Joaquim Lopes de Lima, Ensaios sobre a statistica das possessões portuguezas na Africa Occidental e Oriental; na Asia Occidental; na China, e na Oceania, v. 3. [S.l.]: Imprensa Nacional, 1844, p. xxxv, 200-201. 95 Isabel de Castro Henriques, Percursos da modernidade em Angola: dinâmicas comerciais e transformações sociais no século XIX, Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical, 1997, p. 192-195. 96 Hilton, “The Jaga reconsidered”, p. 191-202; Thornton, “A resurrection for the Jaga”; Miller, “Thanatopsis (Thanatopsie)”. 97 Miller, “Requiem for the ‘Jaga’”, p. 122-123.

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que acreditam ser pagãos ou gentios.98 Ou seja, no século XVII, em Benguela, os agentes da Coroa portuguesa utilizaram o termo “jaga” provavelmente derivado da experiência anterior no Congo, em 1568, para se referir a qualquer grupo desconhecido ou que resistisse ao controle português.99 Um episódio de interesse nessa discussão é o caso do governante de Caconda, inicialmente identificado como um jaga na “Relação da conquista de Benguela”, escrita por Fernão de Sousa em 1626.100 Caconda era uma importante entidade africana no interior de Benguela, que controlava o comércio de escravos e oferecia uma alternativa para o acesso a escravos diante da resistência dos governantes de Matamba e Cassange no interior de Angola.101 Ainda que vendesse escravos aos portugueses em Benguela, o jaga de Caconda resistia a maiores contatos com as forças coloniais para preservar sua autonomia política. Em 1659, enfrentando problemas com um governante vizinho que ameaçava seu poder, o jaga enviou um pedido de auxílio militar ao governo de Benguela. Com a colaboração das tropas e armas portuguesas, o jaga derrotou militarmente seu opositor, resultando na morte de muitos homens, na captura de mulheres e na apropriação de grãos e cabeças de gado.102 A aliança militar, porém, durou pouco. E novembro de 1672, Francisco da Távora, governador de Benguela, informou que: o jaga de Caconda, com ajuda dos seus vizinhos, se levantou em suas terras, e [juntos] roubaram fazendas, prenderam pumbeiros, entre eles quatro homens brancos, que já se acharam e que os capitães mores pediam que se lhes enviasse socorro para lhe fazerem guerra ao sito jaga, não obstante o capitão Francisco Dias Cordeiro pedia auxílio de gente e armas para fazer guerra. [...] Não há mais solução que atacá-lo.103 98 Bontinck, “Un mausolée pour les Jaga”, p. 387-389. 99 Hilton, “The Jaga reconsidered”, p. 196; Thornton, “A resurrection for the Jaga”. 100 Felner, Angola..., p. 566, doc. 96, “Relação da conquista e presídio de Benguela”. 101 Silva, “Saga of Kakonda and Kilengues...”, p. 245-260. Para mais detalhes sobre o jaga de Caconda, ver João Carlos Feo Cardoso de Castello Branco e Torres, Memórias contendo a biographia do vice almirante Luiz da Motta Feo e Torres. A história dos governadores e capitães generais de Angola, desde 1576 até 1825 e a descrição geográfica e política dos reinos de Angola e Benguela. Paris: Fantin Livreiro, 1825, p. 219-222; Delgado, O Reino de Benguela..., p. 120-122; Jan Vansina, Kingdoms of the Savanna. Madison: University of Wisconsin Press, 1966, p. 180-182. 102 Delgado, O Reino de Benguela..., p. 213-215. 103 AHU, Angola, cx. 10, doc. 80, 29 de novembro de 1672; AHU, Angola, cx. 11, doc.

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Depois de anos de conflitos, o jaga de Caconda declarou vassalagem à Coroa portuguesa e foi forçado a abrir o seu território aos portugueses, apesar de a relação nunca ter sido de submissão. Em 1674, Caconda foi identificado como um soba, não como um jaga na documentação oficial, destacando uma vez mais como o processo de nomeação de entidades africanas era político. Segundo o relato, “havia se levantado o soba de Caconda, com alguns mais de seus vizinhos”, sugerindo que a autoridade africana ignorava qualquer acordo de vassalagem que possa ter assinado com a Coroa portuguesa entre 1672 e 1674. Súditos que se rebelassem e levantassem armas contra a Coroa portuguesa eram passíveis de guerra justa; porém, em 1682, Caconda foi novamente chamado de soba quando autorizou – ou foi forçado a autorizar – a construção do primeiro presídio português, ou fortaleza, no interior de Benguela, nas margens do rio Lutira. O presídio de Caconda foi fundado em 1682, nas terras do soba Bongo, tributário do soba de Caconda, localizado a 40 léguas de Benguela.104 Dois anos depois, em 1684, os agora chamados jagas de Bongo e Caconda juntaram forças e atacaram o presídio português, que sofria constantemente de falta de pessoal militar. Segundo o relato do capitão-mor, “o Jaga de Caconda estava com toda a sua guerra sobre o dito presídio”.105 A fortaleza de pau a pique foi arrasada e as forças portuguesas foram obrigadas a fugir. O governo de Benguela enviou uma nova expedição que derrotou Bongo e o levou a migrar para o interior do continente. A localização do presídio era problemática, sujeita ao ataque constante das autoridades africanas que não viam com bons olhos a presença militar portuguesa no interior. Sua localização foi mudada em 1769, durante o governo de Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho, quando este ordenou que “o presídio de Caconda, formado de pau a pique, já três vezes mudado e reduzido 4, 7 de março de 1674. Sobre essa revolta, ver Aguiar, Administração colonial portuguesa..., v. 1, p. 195-196. 104 AHU, Angola, cx. 12, doc. 161, 20 de novembro de 1684; AHU, Angola, cx. 13, doc. 51, 7 de fevereiro de 1688. Ver também Lima, Ensaios sobre a statistica..., p. 51. Para mais sobre rebeldia dos súditos e guerra justa, ver Hespanha, “Luís de Molina e a escravização...”, p. 942. 105 AHU, Angola, cx. 13, doc. 51, 7 de fevereiro de 1688. Esse episódio é descrito em vários estudos, ver Torres, Memórias contendo a biographia..., p. 211-213; Ralph Delgado, Ao sul do Cuanza (ocupação e aproveitamento do antigo Reino de Benguela). Lisboa: Imprensa Beleza, 1944, p.  231; Aguiar, Administração colonial portuguesa..., v. 1, p. 261; Mariana P. Candido, “Trade, slavery and migration in the interior of Benguela: the case of the Caconda, 1830-1870”, in Beatrix Heintze e Achim von Oppen (orgs.), Angola on the move: transport routes, communications, and history. Frankfurt am Main: Lembeck, 2008, p. 63.

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pela sua infeliz situação a um só morador paisano, escolha-se nas terras vizinhas, sadias e férteis um melhor terreno, em que vivessem os soldados, pudessem casar e adiantar a população”.106 Em 1688, um novo conflitou alterou uma vez mais como as autoridades portuguesas se referiam ao líder Caconda. Se, na década de 1670, ele era chamado de soba, a situação mudou depois de 1688. Segundo o relato, “ao amanhecer de 3 de fevereiro, o Jaga de Caconda estava com toda a sua guerra sobre o dito presídio [de Caconda], batendo-os com arma de fogo, pelejando até as 3 horas da tarde, com perda do inimigo”.107 Porém o relato deixa claro que as forças portuguesas estavam em desvantagem numérica e temerosas de seu destino. Do presídio, soldados portugueses içaram uma bandeira branca. No entanto, o governador de Angola, Luís Lobo da Silva, insistiu que o jaga de Caconda era quem queria capitular e que só faria isso diante do capitão-mor do presídio. O capitão saiu do presídio com “três soldados com que chegou a avistar ao Jaga, o qual mandou degolar [o capitão] sem lhe falar palavra. Os dois soldados escaparam para contar o sucedido”. Segundo as testemunhas, sentou-se o mesmo jaga sobre a cabeça do degolado em desprezo aos brancos; invadindo logo o presídio sem alguma resistência fazendo-se senhor das munições, armas, fazendas e quanto no presídio havia, e até os escravos dos brancos, fazendo os escravos prisioneiros mas depois os mandou para o presídio de Benguela.108

Diante desse ato de rebeldia e desdém pelo tratado de vassalagem e pela Coroa portuguesa, o líder Caconda foi então novamente chamado de jaga. O soba/jaga de Caconda fez tudo que poderia chocar uma autoridade colonial no século XVII. O dito Jaga tinha em seu poder três imagens de Cristo nosso senhor e de sua mãe, a virgem Maria, e sacrilegamente, teria bebido no cálice sagrado e profanado vestimentas sacerdotais que havia no presídio, pelo que o conselho declarou a guerra justa e lícita e que se mandara guerra para resgatar as imagens, cálice e vestimentas.109 106 Biblioteca Nacional, Lisboa (BNL), cód. 8.553, 24 de novembro de 1768. 107 AHU, Angola, cx. 13, doc. 51, 7 de fevereiro de 1688. 108 AHU, Angola, cx. 13, doc. 51, 7 de fevereiro de 1688. 109 AHU, Angola, cx. 13, doc. 51, 7 de fevereiro de 1688. Ver também AHU, cód. 545, fl. 43, 14 de março de 1688. Para os debates teológicos sobre a guerra justa e sua aplicação aos africanos, ver Hespanha, “Luís de Molina e a escravização...”, p. 943-947.

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Os ataques ao soba/jaga de Caconda revelam a inabilidade da administração colonial para impor a vassalagem e efetivar a conquista, apesar dos sucessivos ataques e da pilhagem de indivíduos, gados e produção agrícola. Também indicam como as classificações estavam sujeitas à natureza das relações mantidas com a administração portuguesa, que nem sempre eram estáveis. Enquanto os sobas eram aliados, os jagas eram uma oposição à presença colonial. O comportamento do soba/jaga de Caconda abriu espaço para uma guerra justa, uma justificação religiosa e militar utilizada pela monarquia portuguesa em seus ataques contra muçulmanos, judeus, gentios e outros considerados grupos “infiéis”. A legitimação da guerra por uma perspectiva religiosa cruzou o Atlântico e foi usada contra muçulmanos na costa do norte da África e na região da Senegâmbia, assim como contra as populações indígenas no Brasil, revelando como experiências prévias influenciaram as ações portuguesas na África Central.110 O rei de Portugal, Pedro II, autorizou uma guerra justa para punir a autoridade de Caconda e seus súditos, embora tenha encontrado dificuldades para enviar tropas. Os escravos dos residentes de Luanda enviados para a guerra justa resistiram ao embarque receando serem enviados ao Brasil.111 Em abril de 1689, as tropas coloniais de Benguela, com o reforço de soldados vindos de Luanda, capturaram “toda a fazenda que tinha e o gado. [...] muita perda para esses [o jaga e seus macotas] pois esses admiram mais as suas vacas que as suas mulheres e filhos”. Para reforçar o apelo religioso, afirmavam que “do nosso lado nenhum morreu, graças à padroeira de Benguela [Nossa Senhora do Pópulo]”.112 As forças coloniais do presídio de Caconda temporariamente fortalecidas com o envio de soldados de Benguela e Angola destruíram campos cultivados, roubaram gado, mataram e capturaram mulheres, homens e crianças, que foram transformados em botim de guerra.113 Caconda foi certamente uma autoridade militarmente forte, bem organizada e com apoio de seus súditos. Pelos relatos, não está claro se Caconda chegava a ser um estado centralizado ou uma chefatura. Fica claro, porém, a sua capacidade de 110 Marcocci, “Escravos ameríndios...”; Perrone-Moisés, “A guerra justa...”, p. 6; Ligia Bellini, “Notas sobre cultura, política e sociedade no mundo português do séc. XVI”, Tempo, v. 4, n. 7, p. 143-167, 1999, cf. p. 156-160; Lauren Benton, “The legal regime of the South Atlantic world, 1400-1750: jurisdictional complexity as institutional order”, Journal of World History, v. 11, n. 1, p. 27-56, 2000, cf. p. 46-48. 111 AHU, Angola, cx. 13, doc. 51, 7 de fevereiro de 1688; AHU, cód. 545, fl. 45, 3 de abril de 1688. 112 AHU, Angola. cx. 13, doc. 89, 2 de março de 1689. 113 Uma lei de 1570 autorizava a escravidão dos gentios capturados em guerras justas. Ver Perrone-Moisés, “A guerra justa...”, p. 6.

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mobilizar pessoal e a formação de um Exército profissional, além de seu interesse em armas, pólvora e outras mercadorias que o presídio português dispunha. A captura de gado, assim como de indivíduos, por Caconda, alguns escravos das forças coloniais, revelam a importância do comércio e da acumulação de dependentes. As pessoas escravizadas poderiam ser facilmente incorporadas a outras organizações políticas como dependentes ou vendidas a comerciantes de escravos transatlânticos já estabelecidos em Benguela. A acumulação de rebanhos de gados era uma importante fonte de recursos, podendo ser aproveitados não só o leite e a carne, como também o couro, e ser ainda utilizados os gados para fertilizar os campos cultivados. O gado, assim como os cativos, eram fontes de riqueza e prestígio social para as sociedades do interior de Benguela.114 Em 1691, o jaga de Caconda pediu um salvo-conduto para ir a Benguela, a fim de renegociar uma nova aliança. Apesar da autorização e da promessa de proteção, o governador de Benguela aprisionou o jaga e o enviou a Luanda, local onde ele faleceu sob custódia da Coroa portuguesa.115 Esse episódio demonstra como os jagas não formavam um grupo único em Benguela e eram somente uma designação que resultava da relação mantida entre a autoridade africana e o poder colonial. Enquanto era aliado, Caconda era soba. Ao atacar as forças portuguesas foi chamado de jaga. Como esse evento demonstra, as autoridades portuguesas caracterizavam os jagas como um grupo militarmente organizado, que resistia à presença portuguesa, uma interpretação próxima a que Joseph Miller apresentou para os eventos no Congo, na década de 1560. Até o final do século XVI, no conflito que resultou no abandono da tentativa colonial em Benguela-Velha, as autoridades portuguesas se referiam à população local que expulsou os portugueses como jagas. Todos aqueles que resistiam ao 114 AHU, Angola, cx. 13, doc. 89, 2 de março de 1689. Para a importância do gado, ver Wilfrid Dyson Hambly, The Ovimbundu of Angola. Chicago: Field Museum of Natural History, 1934, p.  153-154; Vansina, How societies are born..., p.  129-131; Linda Heywood, Production, trade and power. The political economy of Central Angola, 1850-1930. New York: Columbia University, 1984, p.  27-28 (Ph.D. Thesis); Norman Etherington, The great treks: the transformation of Southern Africa, 1815-1854. Harlow: Longman, 2001, p. 10-18; John L. Comaroff e Jean Comaroff, “Goodly beasts, beastly goods: cattle and commodities in a South African context”, American Ethnologist, v. 17, n. 2, p. 195216, 1990. 115 AHU, cód. 545, fl. 53V, 17 de fevereiro de 1691. Esse episódio foi descrito por cronistas do século XVIII e XIX. Ver Elias Alexandre da Silva Corrêa, História de Angola, v. 1. Lisboa: Ática, 1937, p. 305-309; Torres, Memórias contendo a biographia..., p. 213-214. Para mais sobre o assunto, ver Delgado, Ao sul do Cuanza..., v. 1, p. 230231; Joseph C. Miller, “Angola Central e Sul por volta de 1840”, Estudos Afro-Asiáticos, v. 32, p. 7-54, 1997, cf. p. 23.

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colonialismo, às relações comerciais impostas pela administração colonial e à conversão ao cristianismo eram classificados como jagas. Um exemplo final é o caso da autoridade política de Quissama, repetidamente chamada de jaga na documentação portuguesa até a assinatura do primeiro tratado de vassalagem. Em 1694, o governador de Angola, Gonçalo da Costa de Meneses, declarou que “o soba da Quissama está disposto a receber a luz da Igreja e o santo batismo”.116 Somente a partir desse momento ele foi chamado de soba e não jaga, assim como o governante de Caconda, enfatizando o significado do termo para descrever autoridades que se recusavam a reconhecer o colonialismo português como legítimo

Conclusão A nomeação e a criação de novas categorias, como o Reino de Benguela, jagas ou sobas, revelam como a Coroa portuguesa via a si mesma e o seu papel no contato com populações até então desconhecidas. Há um aspecto de improvisação imperial, para usar um termo cunhado por Sanjay Subrahmanyam, porém não devemos esquecer o processo de formação de um império baseado em ideais cristãos de conversão e resgate dos povos considerados gentios.117 O ato de nomear organizações políticas, povos, baías, morros e qualquer referência geográfica deve ser visto como um ato de tomada de posse, parte do processo de conquista, ainda que formal do território. Assim foi com o “Reino de Benguela”, que de designação de morro passou a nomenclatura de um vasto território, identificado em documentos portugueses expressando tomada de posse simbólica, fazendo uso de um vocabulário político disponível. O termo “reino” foi empregado, mas, no caso dos povos encontrados, basearam-se na dicotomia entre aliadosmoradores em oposição a inimigos-invasores, usando termos locais como “sobas” e “jagas”, que ganharam outros significados no contexto da expansão portuguesa. O emprego dos termos “jaga” e “soba” estava relacionado à conquista do “Reino de Benguela” e à formação de uma comunidade política imaginada ou pretendida, em que os povos aí residentes deveriam ser vassalos ou inimigos. Não havia outra opção. Ainda que o estudo se baseie em casos na documentação portuguesa sobre 116 AHU, Angola, cx. 15, doc. 8, 13 de março de 1694. 117 Para mais sobre o assunto, ver Sanjay Subrahmanyam, Improvising empire: Portuguese trade and settlement in the bay of Bengal, 1500-1700. Delhi: Oxford University Press, 1990; Heintze, Angola nos séculos XVI e XVII..., p.  243-274; António Manuel Hespanha e Catarina Madeira Santos, “Os poderes num império oceânico”, in António Manuel Hespanha (org.), História de Portugal, o Antigo Regime, v. 4. Lisboa: Estampa, [s.d.].

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Benguela, eles representam os ideais da Coroa portuguesa como um todo, e as fontes produzidas pelas autoridades portuguesas devem ser reavaliadas tanto para o Reino de Angola como para o Reino do Congo, para uma melhor compreensão desses processos de nomeação e classificação como intimamente vinculados à conquista e à expansão do comércio de escravos. Ataques e tratados de vassalagem assinados entre autoridades portuguesas e centro-africanas nos anos iniciais do projeto colonial em Benguela, no século XVII, serviram de modelo para a expansão portuguesa nos próximos séculos. Primeiramente, demonstram a limitação do Estado colonial e a importância de alianças políticas com os governantes locais para garantir o controle e acesso ao comércio. Também revelam o intenso intercâmbio cultural entre os atores envolvidos e como africanos e portugueses ajustaram suas instituições a nova situação, a exemplo da vassalagem e do undamento. Esses conflitos indicam ainda como as guerras se tornaram endêmicas na região, gerando um número importante de cativos para abastecer o comércio transatlântico. Alianças diplomáticas eram fundamentais para exercer controle sobre o território, os súditos e participar ativamente no comércio de longa distância. E não devemos esquecer que esses relatos revelam a existência de múltiplas organizações políticas em Benguela e seu interior, de tamanhos e estruturas variados, apesar da ausência de um líder único que representasse o “Reino de Benguela”. Não obstante a sua inexistência antes da chegada dos portugueses, o reino passou a existir como categoria introduzida pelo Império Português. Os jagas, assim como o “Reino de Benguela”, eram uma invenção portuguesa que ganharam novo significado e dimensão. Ao contrário de se referir a um grupo específico em Benguela, o termo “jaga” foi empregado para nomear grupos desconhecidos que ameaçavam a existência do projeto colonial ou ainda cuja estrutura política e social era estranha para a administração portuguesa. Em suma, os jagas só existiam como grupo no imaginário dos agentes europeus, sejam eles missionários, funcionários coloniais, militares ou comerciantes. Situação paralela foi encontrada na África Ocidental, quando os zimbas passaram a representar tudo o que se opunha aos valores portugueses e a ser constantemente retratados como “grupo belicoso”.118 O encontro com novos povos fez uso de padrões de reconhecimento de diferenças e semelhanças baseados em entidades já conhecidas (mouros, turcos, infiéis), no entanto, impôs a sua própria classificação e hierarquia. A linguagem 118 Miller, “Requiem for the ‘Jaga’”, p. 125; Alpers, “The Mutapa and Malawi political systems...”, p. 21.

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empregada na correspondência oficial é altamente formalizada e revela formas de pensar e estereótipos que informaram o encontro com grupos desconhecidos. Era mais fácil reconhecer e compreender estruturas políticas semelhantes às que existiam na Península Ibérica, o que explica seu sucesso relativo nos primeiros anos no Congo, ao deparar-se com uma monarquia, ou ainda no Ndongo. Ao encontrar populações organizadas em entidades políticas menores, não centralizadas, ou grupos nômades, os agentes portugueses recorreram a termos utilizados anteriormente. No entanto, os historiadores escreveram sobre esses grupos como se eles tivessem algum significado para as populações locais no século XVII, ou como se estes representassem comunidades no passado, perdendo de vista que, em alguns casos, essas nomenclaturas eram apenas criação dos agentes europeus.

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