Jaime Cubero, uma vontade anárquica de saber

June 15, 2017 | Autor: Nildo Avelino | Categoria: Anarchist Studies, Anarquismo
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Jaime Cubero

Prefácio Jaime Cubero, uma vontade anárquica de saber “O militante anarquista vale mais pela coerência de suas atitudes, de seu modo de proceder, no lar e na atuação pública, do que por sua capacidade de escrever ou discursar.” Edgard Leuenroth, 1963. Seu melhor livro Jaime o escreveu com a própria vida: um estilo de existência, um modo de ser e estar no mundo, uma maneira de agir e de se conduzir em relação a si e aos outros, faziam da sua vida uma prática de liberdade. Mais do que dar à anarquia a forma meramente exterior da escritura, Jaime interiorizou-a em seu modo de ser, inscrevendo-a cuidadosamente em cada um de seus gestos, atos e palavras. Como o bom artesão cuja habilidade transforma matéria bruta em obra de arte, Jaime, artesão de si mesmo, conferiu à própria vida uma forma anárquica. A anarquia era para ele uma técnica de si: uma arte que se aplica a si mesmo com o propósito de transformar a própria vida em obra, atribuindo-lhe uma forma anárquica. Como mostrou Michel Foucault, era o que os gregos chamavam de tékhne toû bíou, as artes da existência.1 Em se tratando do anarquismo, seria preciso colocá-lo entre as técnicas de existência cujo objetivo é fazer da vida individual um exercício de liberdade. Esse é o sentido de se dizer que o anarquismo é uma ética e que o anarquista é alguém que se constitui a si mesmo como sujeito anárquico. Os anarquistas sempre conferiram à ética uma importância crucial, é o que explica a existência desse extraordinário investimento em escolas modernas, ateneus libertários, centros de cultura, círculos de estudos, grêmios recreativos, grupos de 1

M. Foucault. A hermenêutica do sujeito. Curso no Collège de France (1981-1982). Trad. Márcio Fonseca e Salma Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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teatro etc., que povoam a história do anarquismo dos últimos 150 anos – na balança dessas atividades, o sindicato e a luta sindical pesam bem pouco. Na medida em que o comportamento anárquico não se adquire espontaneamente, mas por meio de práticas e exercícios, todos esses ambientes criados pelos anarquistas cumprem a importante função de operadores éticos: mais do que mera propaganda, são espaços destinados para a assimilação dos valores do anarquismo e para a constituição da subjetividade anárquica. Nesse amplo universo de pedagogia anarquista, o ensino passa necessariamente pelo exemplo e pela adequação entre conhecimento e conduta individual. Jaime sabia-o bem, por isso afirmava a importância de um saber com vontade: “o importante não é o saber, mas o saber sabendo o porquê do que se sabe” (“Educação independente da escola”; “O anarquismo: uma visão da educação da criança na família”). Tema da máxima urgência, diz Jaime, o de devolver ao saber suas motivações e intenções; o de evidenciar que em todo saber reside uma vontade que o afirma ou que o rejeita. Só então será possível fazer os indivíduos perceberem que eles fazem o que não querem e que não fazem o que querem. É no plano volitivo, portanto, bem mais do que no intelectivo, em que está dada a possibilidade para que o saber cesse de pesar sobre nós como um fardo, para que produza liberdade em vez de conformidade e para que sua força possa assumir a forma de uma vontade livre. Como diz Jaime, não basta conhecer as coisas para ser capaz de um ato livre, é preciso também um querer agir livremente, pois “o saber fornece apenas as notas, a matéria do ato; a vontade, a capacidade de escolha e de resolução” (“A concepção anarquista do homem”). Nesse sentido, Jaime distinguiu entre “ato de liberdade” como possibilidade para agir, e “ato livre” como vontade de ação. Naquilo que é, sem dúvida, uma das mais belas páginas do anarquismo brasileiro, ele dirá que mesmo o pássaro da gaiola é capaz de realizar o primeiro e o escravo, embora livre de suas correntes, ainda não é capaz do segundo. Ora, “a liberdade de exercício [o ato de liberdade] até os opressores dão. Todos tem a liberdade de andar, comer, trabalhar, apoiar os dominadores e fazer tudo o que não os ponha em risco.” Já o ato livre não pode

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ser dado nem limitado por ninguém, por que sua ação é ética: um indivíduo pode ter suas pernas amarradas, e mesmo amputadas, sem que seja destruída sua vontade de movimento. Aqui reside a autêntica liberdade: “Essa liberdade, diz Jaime, é inimiga dos poderosos. E eles sabem disso, por isso a anulam. [...] Liberdade não é ausência de restrições”. Foi, portanto, uma falsa liberdade que a democracia legou aos homens quando, concedendo-lhes liberdade de ação, anulou neles a vontade para agir. Contudo, a liberdade é inseparável do querer. Jaime conferiu à ética uma importância prática e teórica fundamental no interior do seu anarquismo; para aqueles que o conheceram, essa foi, sem dúvida, a particularidade que mais distinguia seu caráter pessoal. Mas é também um dos traços que torna sua reflexão hoje bastante atual. Em nossa atualidade a ética anarquista torna-se um problema político urgente e fundamental na medida em que hoje vivemos imersos em relações de poder que são exercidas, sobretudo, no plano da subjetividade, fazendo com que a dominação política assegure seus efeitos pelo fato de estar ancorada na nossa própria maneira de ser e de sentir, em nossos desejos e afetos. Durante muito tempo o marxismo induziu a pensar o capitalismo exclusivamente como modo de produção e a perceber a luta contra a exploração econômica como a mais importante. Mesmo entre os anarquistas a força retórica do marxismo ofuscou o que havia dito Malatesta, e antes dele Proudhon: bem mais do que exploração econômica, o capitalismo produz, sobretudo, uma sujeição política de fundo moral: produz também uma maneira de ser e de existir no mundo. Consequentemente, o capitalismo não é simplesmente um modo de produzir coisas, produz igualmente padrões de vida nos quais os indivíduos são levados a transformar seu tempo em tempo de trabalho e sua força em força de trabalho. Assim, mais do que uma economia de mercado dotada de modo de produção de riquezas materiais, o capitalismo estabeleceu também uma economia subjetiva munida de instituições destinadas à produção de subjetividades. Toda mercadoria produzida exige também a produção de certas maneiras de existir e de sentir que deverão ser assimiladas pela subjetividade dos indivíduos: antes de produzir

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carro, é preciso produzir desejo de carro; antes de produzir televisão, é preciso produzir desejo de televisão. Como assinalou Félix Guattari, a produção do desejo de consumir é mais importante que a produção do objeto de consumo, pois é o desejo que “fornece a matéria prima de toda e qualquer produção”.2 Nesse sentido, o consumo de um bem material qualquer implica também o consumo e a assimilação de desejos, valores, sensibilidades, maneias de ser e existir a ele associadas. De tal modo que a palavra de ordem do neoliberalismo foi desde o início ‘mudar o homem para adaptá-lo ao mercado’: adaptar sua conduta, seu comportamento e sua ação aos valores do mercado. Não por acaso a grande obra de Ludwig von Mises intitular-se A ação humana. Coloca-se aqui toda a urgência da questão ética. Em nenhum outro regime como o democrático a produção do desejo foi tão necessária: desautorizada a impor simplesmente pela força, a democracia precisa fazer os indivíduos desejarem autoridade, polícia, prisão, patrão, governo, pouco recorrendo aos instrumentos de violência e terror do passado, mas fortemente atuando no campo da ética, dos valores e das sensibilidades. Por essa razão a luta contra a dominação hoje, para ser eficaz, deve estabelecer como alvo essa economiapolítica da produção de subjetividades. Hoje, mais do que nunca, a ruptura política e econômica deve ser acompanhada e revestida por um tipo de ruptura ética: uma ruptura operada no âmbito de nossos próprios desejos e das nossas maneiras de desejar. Como resistir a um poder que nos faz desejar nossa própria dominação? A história do anarquismo nos ajuda a encontrar uma resposta. Tal como é possível apreender em sua história, o anarquismo jamais se configurou simplesmente como ideologia ou como teoria ou como racionalidade (seja ela política, como no absolutismo; econômica, como no liberalismo; ou histórica, como no marxismo). Se o anarquismo jamais desempenhou nenhum desses papéis, foi precisamente por ter se configurado como uma ética, como atitude e comportamento, como modo de 2

Félix Guattari; Suely Rolnik. Micropolítica, cartografias do desejo. 4ª ed., Petrópolis: Vozes, 1996.

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ser e maneira de existir no mundo, como estilo de existência. O que não quer dizer em absoluto que o anarquismo seja ausente ou esvaziado de política. No fundo, a separação que se faz entre ética e política é completamente inconsistente. Toda ruptura política digna desse nome é também uma ruptura ética: negar a autoridade do Estado implica na negação dos valores estatais. Quando isso não ocorre, não é possível falar efetivamente em ruptura, mas de mera substituição, embora com outro nome. Assim, para haver ruptura política efetiva, ela deve ser acompanhada necessariamente de uma ruptura ética. Encontrase no anarquismo, e isso desde o início da sua história, uma indissociável vinculação entre ética e política. Assim, mais do que outra política, o anarquismo também se constituiu historicamente como outro tipo de experiência do mundo. Basta pensar na formidável subversão de valores, jamais vista na história do Ocidente, promovida pela Revolução Espanhola. Nela desapareceram as formas servis e protocolares de tratamento, que reforçam e reproduzem no plano da linguagem as relações políticas de dominação, tais como Senhor, Dom e até mesmo o pronome formal de respeito Usted foram substituídos pelo simples camarada e tu, e o solene Buenos dias! deu lugar ao fraternal Salud!.3 Foi igualmente uma disposição ética que impediu, até o último momento, o processo de militarização das milícias revolucionárias: embora colocando gravemente em perigo a própria vida, os milicianos recusaramse a utilizar o convencional capacete de aço sustentando com firmeza que “um espanhol livre não se comporta como um militar”.4 Portanto, a configuração ética do anarquismo tal como pode ser apreendida na sua própria história, o subtrai do campo fechado da teoria, da ideologia, da racionalidade, para colocá-lo no campo da experiência entendida não como uma maneira de conhecer as coisas ou como instrumento para aquisição de conhecimento sobre as coisas: é sobretudo uma maneira de 3

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George Orwell. Lutando na Espanha e Recordando a guerra civil. 2ª ed., trad. Affonso Blacheyre. Rio de Janeiro: Globo, 1987. Henry Pachter. España, crisol político. Buenos Aires: Editorial Proyección, 1966.

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fazer coisas. Nesse sentido, o anarquismo não é uma teoria. Foi Todd May quem sugeriu que, diferente do liberalismo (detentor de um conhecimento jurídico) e do marxismo (detentor de um conhecimento estratégico), o conhecimento do anarquismo é de tipo tático.5 Ao contrário do direito e da estratégia, a tática não requer uma teoria, mas sim habilidade e técnica (tékhne); ela exige um saber-fazer desprovido de valor universal e adaptado às circunstâncias. A tática é sempre circunscrita pelo campo das experiências particulares; enquanto a estratégia opera a partir de uma teoria com validade universal: por exemplo, a teoria da vanguarda, do partido, do sindicato, da cúpula, da linha de frente etc. O teórico Lenin sabia-o bem quando afirmou, em Que fazer?: “sem teoria revolucionária não há revolução”. Os anarquistas diriam que sem experiência revolucionária não é possível nem o revolucionário nem a revolução. Ora, sendo o pensamento anarquista uma reflexão tática, ele é incapaz de falar em nome do outro, de lhe dizer qual é o melhor caminho ou a melhor ação; sua única possibilidade é a de se expressar a partir da própria experiência da luta contra o poder. E como existem diversas lutas contra diferentes poderes (poder paterno, professoral, médico, heterossexual, patronal, estatal etc.), cada luta produzirá seu próprio saber tático sem jamais assumir o caráter global e universal das teorias estratégicas de vanguarda. Pelo contrário, são saberes locais correspondentes ao tipo de luta específica contra formas de dominação particulares. Entretanto, há algo que articula esses diferentes saberes anárquicos: trata-se do tipo de experiência procedente de uma mesma vontade de não deixar-se governar. Em 1849 Proudhon resumiu essa experiência na seguinte frase: “O problema não é saber como ser melhor governado, mas como ser mais livre.” Em vez de descobrir a melhor forma de governo a tarefa é desenvolver uma vontade de não ser governo; substituir nos indivíduo o desejo de governo por uma vontade de não governo. Assim, embora o anarquismo apresente uma multiplicidade de saberes, ele possui também esse “denominador comum” que os faz convergir e que os articula: uma vontade de não ser 5

Todd May. The Political Philosophy of Poststructuralist Anarchism. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 1994.

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governado ou um tipo de inservidão voluntária. * * * Uma das maiores lições de Jaime foi, sem dúvida, ter nos mostrado a importância da ética e insistido que “para o anarquista, todos os valores se subordinam aos valores éticos.” Nestes tempos em que boa parte do anarquismo brasileiro sofre de obsessão por uma cega eficiência política, ignorando que a organização, e mesmo a maior das vitórias, nada importam quando desvirtuam o comportamento individual; as palavras de Jaime surgem como centelhas iluminando o horizonte: “contra toda a desmoralização do ato humano, a luta anarquista não tem limite”.

Nildo Avelino Manhattan/New York City, outono de 2015

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