Jean Piaget, Arauto da Auto-Organização, e Algumas de suas Contribuições ao Estudo da Auto-Organização

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Jean Piaget, Arauto da Auto-Organização, e Algumas de suas Contribuições ao Estudo da Auto-Organização RICARDO PEREIRA TASSINARI Departamento de Filosofia – UNESP Marília, SP [email protected]

ALEXANDRE AUGUSTO FERRAZ Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas Campinas, SP [email protected]

KÁTIA BATISTA CAMELO PESSOA Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia – UNESP Marília, SP [email protected] Resumo: Michel Debrun é um dos grandes estudiosos do conceito de auto-orga-

nização e seus trabalhos (1996abc) influenciaram diversos trabalhos na área, em especial, no Brasil, junto ao Grupo Interdisciplinar CLE Auto-Organização, grupo idealizado e criado por ele, em 1986, sediado no Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Nosso objetivo, neste texto, é analisar o porquê e em que sentido Debrun (1996b, p. 11 e p. 21), em um de seus textos inaugurais e seminais sobre o conceito de auto-organização, cita Jean Piaget   como   um   “arauto”   da   auto-organização; mais ainda, buscaremos em nossa exposição realizar uma análise que permita uma articulação entre o conceito de auto-organização de Debrun e a teoria piagetiana, visando contribuir para futuros trabalhos interdisciplinares relacionando as duas teorias. Palavras-chave: Jean Piaget; auto-organização; Michel Debrun; adaptação; inteligência.

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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1. Introdução e objetivos A obra piagetiana é complexa e extensa. Jean Piaget é o fundador de duas áreas do conhecimento contemporâneo: a Psicologia Genética e a Epistemologia Genética. Bem resumidamente, podemos dizer que ambas têm por objetivo analisar a gênese dos conhecimentos e das estruturas a eles necessárias, desde suas origens orgânicas até os níveis mais complexos, em especial, o do Conhecimento Científico. A Psicologia Genética é um estudo experimental e teórico, no domínio da Psicologia, que visa verificar questões de fato sobre a gênese do Conhecimento e de suas estruturas; a Epistemologia Genética se encontra em um plano filosófico e se constitui tanto de análises dos conhecimentos gerados pela Psicologia Genética quanto de análises histórico-críticas da gênese do Conhecimento Científico e de suas estruturas. Debrun (1996, 11) se refere a Piaget como tendo destacado o caráter criativo e construtivo da noção da auto-organização e Debrun (1996b, p. 21) remete à dialética da assimilação e acomodação estabelecida por Piaget. Dado o limite de um artigo científico e a complexidade e extensão da obra piagetiana, inclusive no tempo, por ser a expressão de um pensamento vivo, e dada nossa intenção de realizar uma análise que permita uma articulação entre o conceito de auto-organização de Debrun e a teoria piagetiana, decidimos por apenas destacar, neste trabalho, alguns caracteres de auto-organização na relação entre biologia e conhecimento, mais especificamente sobre as noções de assimilação e acomodação (como parte do processo de organização-adaptação), citadas por Debrun (1996b, p. 21), analisando o texto de Piaget (2008a) intitulado O Problema Biológico da Inteligência, introdução da obra O Nascimento da Inteligência na Criança, livro basilar de todo o desenvolvimento do pensamento de Piaget posterior a sua publicação (as demais citações da obra piagetiana serão no sentido de tornar mais claras algumas das noções empregadas em nossa discussão). Notemos ainda que trataremos aqui da noção de inteligência apenas em relação às definições iniciais das noções de assimilação e acomodação (polos complementares e indissociáveis do processo de organização-adaptação), por questões de delimitação, pois ultrapassaria os limites do presente Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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trabalho um estudo de sua constituição e funcionamento (como, por exemplo, sua característica essencial de coordenação de meios e fins ou de possibilitar a constituição do pensamento científico), mesmo relativo aos primeiros anos de vida, como realiza Piaget (2008a). 2. O problema biológico do conhecimento: Piaget e a inteligência como adaptação O estudo da relação entre biologia e conhecimento em Piaget (2008a) nos leva a considerar, inicialmente, certos fatores hereditários que condicionariam o desenvolvimento intelectual, porém, como nos diz Piaget (2008a, p. 13-14), tal implicação pode ser entendida sob dois sentidos biologicamente diferentes: os fatores hereditários estruturais e os funcionais. Os fatores hereditários de ordem estrutural vinculam-se à constituição do sistema nervoso e órgãos sensoriais. Essa constituição estrutural, ainda que seja limitada, influi na construção das noções mais fundamentais, tais como na nossa noção de espaço, tempo, causalidade e permanência dos objetos no espaço, por exemplo (cf. Piaget, 2008b). A atividade hereditária de ordem funcional tem outro sentido distinto. Trata-se da hereditariedade do próprio funcionamento e não da transmissão desta ou daquela estrutura. Nesse sentido, a atividade funcional da razão ou inteligência, não proviria da experiência, mas estaria ligada à “hereditariedade geral” da própria organização vital, uma vez que, [...] assim como o organismo não poderia adaptar-se às variações ambientais se não estivesse já organizado, também a inteligência não poderia aprender qualquer dado exterior sem certas funções de coerências (cujo termo último é o princípio da não contradição), de relacionamentos, etc., que são comuns a toda e qualquer organização intelectual. (PIAGET, 2008a, p.14).

Piaget (2008a, p. 14) observa que esse segundo tipo de realidade psicológica hereditária é de extrema importância para o desenBresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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volvimento da inteligência. O uso do termo funcional é empregado, justamente, por se tratar de um aspecto responsável pelo funcionamento do organismo, sem o qual não haveria a possibilidade efetiva de seu desenvolvimento. A organização intelectual, como um núcleo funcional que origina-se da organização biológica, é uma forma de “adaptação ao meio”, um caso particular desta. Com efeito, Piaget nos diz: A inteligência é uma adaptação. Para apreendermos as suas relações com a vida, em geral, é preciso, pois, definir que relações existem entre o organismo e o meio ambiente. Com efeito, a vida é uma criação contínua de formas cada vez mais complexas e o estabelecimento de um equilíbrio progressivo entre essas formas e o meio. Afirmar que a inteligência é um caso particular da adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é, essencialmente, uma organização e que sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo estrutura o meio imediato. Para descrever o mecanismo funcional do pensamento em verdadeiros termos biológicos, bastará, pois, destacar as invariantes comuns a todas as estruturações de que a vida é capaz. (PIAGET, 2008a, p. 15).

Um organismo, ao construir-se materialmente, adquire novas formas que o permitem assimilar os elementos do seu universo; a inteligência, por sua vez, estende as formas do organismo a estruturas suscetíveis de aplicarem-se aos dados do meio. Assim, Piaget (2008a, p. 16) salienta que: Num sentido e no começo da evolução mental, a adaptação intelectual é, portanto, mais restrita do que a adaptação biológica, mas, prolongando-se esta, aquela supera-a infinitamente; embora, do ponto de vista biológico, a inteligência seja um caso particular da atividade orgânica e as coisas percebidas ou conhecidas sejam uma parcela limitada do meio a que o organismo tende adaptar-se, opera-se em seguida uma inversão dessas relações. Mas isso em nada exclui a busca de invariantes funcionais.

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Piaget observa que o próprio desenvolvimento mental é uma construção contínua que também pode ser observada sob dois aspectos distintos: sob o aspecto das estruturas variáveis e do aspecto funcional. As estruturas variáveis, que são aquelas estruturas originais que surgem a cada estágio do desenvolvimento, cuja equilibração1 é progressiva, marcam as diferenças de um nível de conduta para outro distinto – motivo pelo qual cada estágio constitui uma forma particular de equilibração. Essas estruturas variáveis são as formas de organização da atividade mental (sensório-motora e, posteriormente, também representativa) que permitem uma equilibração que completam cada vez mais as anteriores. A esse respeito, notemos que o próprio Piaget, no livro A Equilibração das Estruturas Cognitivas: Problema Central do Desenvolvimento (PIAGET, 1976, p. 4) escreve: “É por isso que falaremos de equilibração enquanto processo e não somente de equilíbrios, e sobretudo de equilibrações ‘majorantes’ que corrigem e completam as formas precedentes de equilíbrio.” Como todo processo de conhecimento consiste em levantar novos problemas na medida em que resolve os precedentes, não podemos esperar que exista uma forma última de equilíbrio no que diz respeito aos sistemas cognitivos. Por isso, Piaget (1976, p. 34) diz que a razão deste melhoramento necessário de todo equilíbrio cognitivo está em que o processo de equilibração acarreta de modo intrínseco uma necessidade de construção, logo de ultrapassagem, pelo próprio fato que ele não assegura uma conservação estabilizadora senão no interior de transformações das quais esta última constitui somente a resultante. Neste contexto, Piaget ressalta:

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Piaget (1976, p. 7) usa o termo equilibração, em contraposição ao termo equilíbrio, para mostrar que não se trata de um estado final a ser atingido, determinado desde o início, mas de um processo de “construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas” que conduzem “não a formas estáticas de equilíbrio, mas a reequilibrações melhorando as estruturas anteriores”. Sobre a noção de equilibração, veja Ramozzi-Chiarottino, 1972, Cap. 2, Apostel, Mandelbrot e Piaget, 1957 e Piaget 1976. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Na verdade, um sistema não constitui jamais um acabamento absoluto dos processos de equilibração e novos objetivos derivam sempre de um equilíbrio atingido, instável ou mesmo estável, permanecendo cada resultado, mesmo se for mais ou menos durável pleno de novas aberturas. Seria, pois, assaz insuficiente conceber-se a equilibração como uma simples marcha para o equilíbrio, pois que ela é além disso constantemente uma estruturação orientada para um melhor equilíbrio, não permanecendo num estado definitivo nenhuma estrutura equilibrada, mesmo se ela conservar em seguida suas características especiais sem modificações. Convém, por isso, referir-se além das equilibrações simples, sempre limitadas e incompletas, as equilibrações majorantes no sentido destes melhoramentos. (PIAGET, 1976, p. 35).

Com relação aos aspectos funcionais, Piaget diz que eles são responsáveis pela passagem de qualquer estado para outro seguinte, possibilitando um funcionamento constante; além disso, são comuns a todos os estágios, consistindo num movimento contínuo e perpétuo de reajustamento ou de equilibração. Assim, para explicar a constituição da inteligência é preciso buscar pelos seus “invariantes funcionais” mencionados nas citações logo acima, isto é, por certos funcionamentos constantes no desenvolvimento de qualquer organismo, possibilitando, assim, a passagem de um estado inferior para outro superior. As funções importantes são análogas em todos os organismos, mas, dependendo de um grupo para outro, elas correspondem a órgãos diferentes; no entanto, diferentemente das estruturas variáveis, “as grandes funções do pensamento permanecem constantes [...] e tais funcionamentos invariáveis entram no quadro das duas funções biológicas mais genéricas: a organização e a adaptação.” (PIAGET, 2008a, p. 16). Piaget (2008a, p. 16) nota que a definição de certos biólogos de adaptação é dada pela conservação e sobrevivência, tal que o equilíbrio entre o organismo e o meio confunde-se com a própria vida. Contudo, para ele há graus na sobrevivência, de modo que implica em mais ou menos adaptação. Assim, segundo ele, é necessário distinguir a adaptação-estado da adaptação-processo, pois, é na Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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sequência do processo que as coisas se esclarecem. O próprio Piaget (1936/1977, p. 11, itálico nosso) diz que, por definição, “há adaptação quando o organismo se transforma em função do meio e essa variação tem por efeito um incremento das interações entre o meio e ele, favorável à sua conservação.”2 Nesse contexto amplo, de um ponto de vista formal, o organismo é, segundo Piaget (2008a, p. 16-17), “um ciclo de processos físico-químicos e cinéticos que, em relação constante com o meio, engendram-se mutuamente.” Assim, aos elementos a, b, c, etc. desse organismo como uma totalidade organizada correspondem aos elementos x, y, z provenientes do meio, cujo ciclo pode ser representado em um esquema do tipo: 1) a + x →  b; 2) b + y →  c; 3) c + z →  a; etc. Os processos desse esquema podem ser tanto uma reação química (quando o organismo ingere substâncias x que ele transforma em substâncias b que fazem parte de sua estrutura) quanto também comportamentos (por exemplo, quando um ciclo de movimentos corporais a combinados com movimentos exteriores x chega a um resultado b que participa igualmente do ciclo de organização). A interação entre organismo e meio, segundo esse esquema, constitui em uma relação de “assimilação”, como designa Piaget, na medida em que “o funcionamento do organismo não destrói, mas conserva o seu ciclo de organização e coordena os dados do meio de modo a incorporá-los nesse ciclo.” (PIAGET, 2008a, p. 17).

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Fizemos uma tradução mais literal do original de Piaget (1936/1977, p. 11) em relação à tradução brasileira (PIAGET, 2008a, p. 16), por se tratar da definição de uma noção central em nossa discussão aqui. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Contudo, se o meio produzir uma variação transformando x em x’, pode ser que o organismo não se adapte e seu ciclo seja rompido, ocorre então a morte do organismo, ou ele pode se adaptar, mantendo a sua organização e dando origem a um novo ciclo: 1) a + x’ => b’; 2) b’  + y => c; 3) c + z => a; etc. Isso significa que o organismo e sua organização, embora tenham se modificado, mantiveram certo fechamento em relação ao meio, no sentido de preservarem a sua identidade funcional e organizacional. São essas transformações resultantes dessas pressões que o meio exerce sobre o organismo que Piaget (2008a, p. 17) denomina de “acomodação”. Assim, a adaptação é um processo de equilibração entre assimilação e acomodação, tais como dois polos que se complementam, pois […]  toda  ligação  nova  se  integra  num  esquematismo  ou  numa  estrutura anterior: a atividade organizadora do sujeito deve ser, então, considerada tão importante quanto as ligações inerentes aos estímulos exteriores, pois o sujeito só se torna sensível a estes últimos na medida em que são assimiláveis às estruturas já construídas, que eles modificarão e enriquecerão em função das novas assimilações. (PIAGET & INHELDER, 2003, p. 13).

Como qualquer outra forma de adaptação, a adaptação intelectual é um estabelecimento de uma equilibração progressiva entre um mecanismo assimilador e uma acomodação complementar, ela pode ser aplicada à inteligência, uma vez que “a inteligência é assimilação na medida em que incorpora nos seus quadros todo e qualquer dado da experiência.” (PIAGET, 2008a, p. 17). Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Assim, a adaptação e seus polos, assimilação e acomodação, se apresenta como uns dos principais “invariantes funcionais” acima mencionados. Mas, e a auto-organização? Piaget raramente usa o termo auto-organização; entretanto, como veremos, a concepção de organização que ele introduz traz consigo a noção de auto-organização. Segundo Piaget, a função de organização, do ponto de vista biológico, é inseparável da adaptação: “são os dois processos complementares de um mecanismo único, sendo o primeiro o aspecto interno do ciclo do qual a adaptação constitui o aspecto exterior.” (PIAGET, 2008a, p. 18). Assim, a inteligência, como um caso particular da adaptação biológica, tanto em sua forma prática quanto reflexiva, possui esse duplo e interdependente aspecto da totalidade funcional, a adaptação e a organização, e a relação entre ambas são as mesmas existentes no plano orgânico: [...] as principais “categorias” de que a inteligência faz uso para adaptar-se ao mundo exterior – o espaço e o tempo, a causalidade e a substância, a classificação e o número etc. – correspondem, cada uma delas, a um aspecto da realidade, tal como os órgãos do corpo são relativos, um por um, a uma característica especial do meio; mas, além da sua adaptação às coisas, essas categorias também estão implicadas umas nas outras a tal ponto que é impossível isolá-las logicamente. (PIAGET, 2008a, p. 19).

Essa dupla invariante funcional, organização e adaptação, exprimem uma concordância do pensamento com as coisas (adaptação), bem como uma concordância do pensamento consigo mesmo (organização), e são inseparáveis, uma vez que, “é adaptando-se às coisas que o pensamento se organiza e é organizando-se que [o pensamento] estrutura as coisas.” (PIAGET, 2008a, p.19). Por fim, comentemos sobre o outro aspecto do desenvolvimento mental enquanto uma construção contínua: as estruturas variáveis. Toda a Obra de Piaget pode ser vista como um estudo Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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pormenorizado no que se refere às questões estruturais. Lembremos que, de acordo com ele, [...] uma estrutura é um sistema de transformações que comporta leis enquanto sistema (por oposição às propriedades dos elementos) e que se conserva ou se enriquece pelo próprio jogo de suas transformações, sem que estas conduzam para fora de suas fronteiras ou façam apelo a elementos exteriores. Em resumo, uma estrutura compreende os caracteres de totalidade, de transformações e de autorregulação. (PIAGET, 2003, p. 8).

Segundo os estudos dessas estruturas variáveis, principalmente pela Psicologia Genética, podemos chegar ao entendimento de como se constituem as estruturas necessárias ao conhecimento do sujeito epistêmico, o sujeito do conhecimento, a partir das invariantes funcionais organização, adaptação, assimilação e acomodação (cf. TASSINARI, 2011, RAMOZZI-CHIAROTTINO, 1972, 1984 e 1988, e, em especial, PIAGET, 2001, 2008a, 2008b, 2010), sendo que estas estruturas não se encontrariam então pré-formadas no sujeito (como uma das espécies de apriorismo), nem se encontrariam já presentes no meio (como uma das espécies de empirismo), mas emergiriam efetivamente da interação entre o sujeito e seu meio (cf. PIAGET, 1983a). Esse processo de organização-adaptação, compreendido como acima, exemplifica claramente, a nosso ver, a noção de auto-organização, como introduzida por Debrun (1996abc), em especial, a noção de auto-organização secundária, como veremos a seguir. 3. Piaget e a auto-organização secundária segundo Debrun A teoria da auto-organização de Debrun (1996abc) não é uma teoria formal ou mesmo axiomática, entretanto, ela estabelece um conjunto de categorias originais que nos permitem pensar o fenômeno da auto-organização. Debrun (1996abc) apresenta, de forma progressiva, algumas definições de auto-organização e suas justificativas; um dos aspectos interessantes em relação a própria forma de exposição da noção de auto-organização no texto de Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Debrun é que ela própria se desenvolve de forma auto-organizada (cf. TASSINARI, 2003, p. 158-159). Nossa intenção, nesta seção, será, por um lado, analisar caracteres de auto-organização dos processos inteligentes descritos na seção anterior, a luz da teoria da auto-organização de Debrun; por outro lado, mostrar como a análise dos processos inteligentes realizada por Piaget especifica uma das dinâmicas possíveis da auto-organização secundária, na nomenclatura de Debrun, e, por fim e em vista do exposto, explicitar porque Debrun (1996b, p. 11) considera Piaget um dos “arautos” da AutoOrganização. Discutiremos aqui a teoria de auto-organização de Debrun (1996abc), mas sem a expor em detalhes; sua leitura será aqui pressuposta, já que ela é introduzida nos capítulos iniciais do livro que inaugura a séria Auto-Organização: Estudos Interdisciplinares, da qual o presente volume faz parte. Debrun (1996b, p. 4), começa sua exposição com uma definição preliminar, parcial e provisória de auto-organização: embora não se produza do nada, “uma organização ou “forma” é auto-organizada quando se produz a si própria.” A partir dessa definição, Debrun (1996b, p. 4) comenta que, na base de toda organização, há elementos discretos e que, no caso da auto-organização, esses elementos não determinam mecanicamente o processo que vai se desenrolar a partir deles. Já neste ponto, podemos ver o quanto a análise dos processos inteligentes, exposta na seção anterior, apresenta as características apontadas por Debrun: como vimos, os elementos (internos e externos) constitutivos do ciclos que compõe o organismo são a base da dinâmica dos sistemas inteligentes, pois ajudam a estabelecer essa dinâmica que se produz a si própria, com certos invariantes funcionais de assimilação, acomodação, adaptação e organização. Vimos também que, nesse caso, não há uma determinação mecânica do processo: o processo se estabelece em termos de uma equilibração e a adaptação é uma forma (organizada, ou melhor, auto-organizada) que se produz a si própria. Assim, a concepção de Piaget está de acordo com as considerações de Debrun (1996b, p. 4) de que, na auto-organização, os elementos em sua base constituem apenas um Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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material ou alicerce, sendo que o que há de novo, de “emergente” na auto-organização, deve ter suas origens ao nível do próprio processo, e não nas suas condições de partida, e nem no intercâmbio – material, energético, informacional, simbólico – com o ambiente. Com efeito, mais adiante, Debrun (1996b, p. 4) propõe uma nova definição preliminar de auto-organização na qual explicita essas características: Há auto-organização cada vez que o advento ou a reestruturação de uma forma, ao longo de um processo, se deve principalmente ao próprio processo – a características nele intrínsecas –, e só em grau menor às suas condições de partida, ao intercâmbio com o ambiente ou à presença eventual de uma instância supervisora.

A definição acima se aplica aos processos inteligentes, tal como analisados por Piaget, já que, como vimos na primeira seção, a dinâmica da (auto-)organização-adaptação, com seus dois polos, a assimilação e a acomodação, estão centradas no próprio organismo enquanto ele constitui sua identidade através de seu próprio processo. Mais ainda, segundo Piaget, como vimos, o processo da totalidade organismo-meio depende da interação do organismo com o meio: o organismo se modificará devido a essa interação e a interação dependerá do organismo, mas sem que um ou outro determine o processo da totalidade. Podemos considerar, como faz Debrun (1996b, p. 9), que, nos processos inteligentes analisados, o motor principal da autoorganização reside na própria interação entre os elementos “realmente distintos” e soltos, ou entre partes “semidistintas” no seio de um organismo. “Semidistintas” significa aqui que o organismo não é um ente “holístico”, em que tudo fusiona com tudo – mas que, todavia, existe uma “interioridade” ou “acavalamento” entre as partes, expresso em que cada parte é codeterminada pelas outras e que tem a possibilidade de substituí-las, ou não, para preencher tal ou qual papel.

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Debrun (1996b, p. 10), a partir da consideração do motor da auto-organização, começa a diferenciar duas modalidades de autoorganização: a primária e a secundária. A primeira modalidade de auto-organização é chamada de primária, para destacar que ela não parte de uma “forma” (ser, sistema etc.) já constituída, mas que, ao contrário, há “sedimentação” de uma forma durante o processo. A segunda modalidade de auto-organização é chamada de secundária à medida que ela não parte de simples elementos soltos, mas de um ser ou sistema já constituído que se modificará durante o processo de auto-organização, como aquela que, por exemplo, ocorre com o organismo que consegue passar, a partir de suas próprias operações, exercidas sobre si próprio, de determinado nível de complexidade – corporal, intelectual, existencial – para um nível superior (mais adiante analisaremos a dificuldades relativas a possibilidade desses processos). Entendemos que a análise de Piaget dos sistemas inteligentes está diretamente relacionada à auto-organização secundária, já que ele parte de um sistema já inicialmente constituído, que são os organismos, a partir de seus nascimentos, tendo, entretanto, vários aspectos de auto-organização primária (comentaremos alguns desses aspectos na próxima seção). Para Debrun (1996c, p. 25-26), o organismo passa por processos de aprendizagem mais ou menos complexos; contudo, o sujeito permanece nele como sendo o núcleo de sua própria organização. É nesse sentido que Debrun afirma que quanto mais um sistema se auto-organiza, mais ele “se centra sobre si mesmo”. Vimos, na seção anterior, que, segundo Piaget, o organismo com sua organização, embora se modifique, mantém certo fechamento em relação ao meio, através da dinâmica da adaptação, com seus dois polos, assimilação e acomodação, dinâmica essa que leva o processo-organismo a manter a sua identidade funcional e organizacional, bem como a cada vez mais se centrar sobre si mesmo. Nesse caso, temos uma aprendizagem que se dá através da incorporação, Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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ou, nas palavras de Piaget, assimilação dos dados dos objetos aos esquemas de ações do sujeito e pela modificação, ou, como diz Piaget, acomodação desses esquemas de ação em função da pressão que objeto externo exerce sobre sua ação, o que faz com que essa aprendizagem seja resultante de um processo que se centra cada vez mais sobre si mesmo e se auto-organiza, por adaptação, na medida em que essa leva a constituição de formas de atividade cada vez mais complexas. Segundo Debrun, os organismos têm um grau de subjetividade, seja ela qual for. Um ser humano, por exemplo, é um organismo com uma “forma-sujeito” que possui uma “face sujeito”: No caso de um organismo humano podemos [...] constatar a presença de um sujeito, e definiremos esse organismo como uma “forma-sujeito”, possuindo uma “face-sujeito”. É, em geral, uma “face-sujeito” que, frente a um desafio externo ou interno, “decide”, orienta, impulsiona e controla a autotransformação do organismo rumo a um nível de complexidade superior. (DEBRUN, 1996b, p. 11).

Entretanto, segundo Debrun, esta face-sujeito não se coloca como onipotente em relação ao resto do organismo: ela aparece como uma parte entre outras, cujo papel (e natureza) é particularmente importante, mas não de ordem diferente dos outros papéis. A ideia de Debrun é a seguinte: devido à combinação, no organismo, da autonomia relativa das partes, as partes diretoras só podem exercer sobre as outras – de modo geral e, em especial, durante a constituição de novos patamares de atividade – um papel hegemônico, mas não dominante. O papel hegemônico de certas partes significa que elas “dirigem”, mas têm para tanto de “solicitar” às outras, senão não conseguem nada. Tal categoria de “hegemonia” é inspirada em Gramsci (1975). Notemos que, nos processos inteligentes, segundo Piaget, o organismo tem uma face-sujeito, mas o aumento de complexidade não está determinado por um centro organizador (pelo que não haveria novidade e criação e sim uma espécie de apriorismo, que Piaget rejeita): não há um supervisor – ou seja, alguém ou algo que Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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“olha de cima” (super-visor) e que dita como deverá ser o desenrolar do processo. Ao contrário, o processo se dá a partir da interação entre sujeito-organismo (ou sujeito-epistêmico) e ambiente, sem que essa interação determine a dinâmica do sistema, apenas por cada um dos lados dessa relação. Na medida em que há uma construção endógena do sujeito, essa construção só se efetiva em relação ao objeto, e esse fator implica a assimilação dos dados externos e uma acomodação interna, ou seja, uma transformação do sujeito que se adapta ao meio. Há uma autonomia relativa entre as partes e a facesujeito do organismo-sujeito-epistêmico, pois ela é uma parte entre outras, decorrente justamente do processo pelo qual o organismo constitui sua própria identidade. Em especial, é esse o sentido de que as estruturas variáveis do sujeito epistêmico, necessárias ao conhecimento, citadas no final da última seção, não estão determinadas de início, mas se constroem a partir da interação, sem que seu desenrolar estivesse já predeterminado no sujeito (uma forma de apriorismo) ou pelo meio (uma forma de empirismo); segundo Piaget, há construção verdadeira, decorrente do próprio processo e, nesse processo, o sujeito é hegemônico, no sentido dado por Debrun. Contudo, ele não é determinante, senão um conhecimento verdadeiramente novo nunca se apresentaria ao sujeito epistêmico, como de fato ocorre. Lembremos, aqui, da denominação usual ao pensamento de Piaget de construtivista e interacionista. Vemos assim como a análise dos processos inteligentes de (auto-)organização-adaptação, feita na seção anterior, é uma grande contribuição à análise da auto-organização secundária, introduzida por Debrun, principalmente por ser uma análise do motor da constituição das estruturas variáveis do organismo, em especial, das estruturas do sujeito epistêmico que possibilitam o conhecimento, como salientado no final da seção anterior. Analisemos com um pouco mais de detalhe a possibilidade dessa contribuição, principalmente em relação ao “núcleo das objeções em relação à ideia de auto-organização”, que leva Debrun a considerar Piaget um dos arautos da auto-organização. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Debrun (1996b, p. 13), a partir das considerações anteriores, formula uma nova e mais rica definição de auto-organização, que leva em conta a especificação que o aspecto “organização” traz para o aspecto “auto”, que reside, de um lado, na própria existência dos elementos, e de outro, na integração de tais elementos numa “forma”: Há auto-organização cada vez que, a partir de um encontro entre elementos realmente (e não analiticamente) distintos, desenvolve-se uma interação sem supervisor (ou sem supervisor onipotente) – interação essa que leva eventualmente à constituição de uma “forma” ou à reestruturação, por “complexificação”, de uma forma já existente.

A qual completa com duas definições auxiliares: a) Há auto-organização primária quando a interação seguida de eventual integração se realiza entre elementos totalmente distintos (ou havendo, pelo menos, predominância de tais elementos), num processo sem sujeito nem elemento central nem finalidade imanente – as possíveis finalidades situando-se a nível dos elementos. b) Há auto-organização secundária quando, num processo de aprendizagem (corporal, intelectual ou existencial), a interação se desenvolve entre as partes (“mentais” e/ou “corporais”) de um organismo – a distinção entre partes sendo então “semirreal” –, sob a direção hegemônica mas não dominante da “face-sujeito” desse organismo.

Chegamos assim a uma definição mais elaborada de autoorganização secundária. Inicialmente, notemos que a análise de Piaget dos processos inteligentes satisfaz a definição geral acima de auto-organização já que o processo se desenvolve a partir de um encontro entre elementos realmente (e não apenas analiticamente) distintos, o organismo e seu meio, bem como entre os elementos constitutivos desses, que estabelece uma interação sem supervisor (ou sem supervisor onipotente) – interação essa que leva eventualmente à constituição Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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de uma “forma” ou à reestruturação, por “complexificação”, de uma forma já existente. Em síntese, a análise de Piaget dos processos inteligentes traz consigo as noções fundamentais para a ideia de uma auto-organização, que residem, justamente, em os processos não estarem determinados por um centro organizador, embora haja a subjetividade intrínseca de um sujeito, esse é um sujeito minorado. A partir daí, como diz Debrun (1996b, p. 11), seria um equívoco pensar que deveríamos desistir da ideia piagetiana (1983b) de auto-organização, a qual pressupõe o caráter criativo e construtivo do sujeito. Aceitando-se que a face-sujeito é uma entre as outras partes e que há uma autonomia relativa entre as partes, é possível aceitar, também, que há uma interação entre as partes, sem a qual o sistema não se constituiria, tal como ocorre na relação mente, cérebro e o corpo. Logo, o organismo-sujeito, com certa autonomia, é uma parte entre as outras, cujo papel hegemônico direciona o organismo, mas não o domina. Apesar dessa face-sujeito ser importante em relação ao organismo como um todo, ela não é onipotente e não o sobrevoa como mero expectador. Ao contrário, a interação entre as partes que se correlacionam permitem a manutenção e o desenvolvimento de todo sistema. Vemos assim, como a análise de Piaget dos processos inteligentes também satisfaz a definição de auto-organização secundária, introduzida logo acima, já que apresenta um processo de aprendizagem (corporal, intelectual e existencial), no qual a interação se desenvolve entre as partes (“mentais” e “corporais”) de um organismo – a distinção entre partes sendo então “semirreal” –, sob a direção hegemônica, mas não dominante, da “face-sujeito” desse organismo. A característica secundária da auto-organização se torna mais forte quando o organismo consegue ultrapassar determinado grau de complexidade tanto corporal, intelectual, existencial, ajustando-se a partir de suas próprias operações para um nível superior; o que nos leva ao núcleo das objeções feitas à ideia de auto-organização. Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Segundo Debrun (1996b, p. 11), o núcleo das objeções em relação à ideia de auto-organização surge em razão, justamente, da possibilidade lógica da passagem, realizada pela face-sujeito que, frente a um desafio externo ou interno, decide, orienta, impulsiona e controla a autotransformação do organismo rumo a um nível de complexidade superior. Debrun levanta a questão: “como um ser ou sistema, sendo o que ele é, pode passar, lançando mão exclusiva ou essencialmente dos seus próprios recursos, para novo patamar ‘ontológico’?” Ele nos diz ainda que, se a concepção inatista prevalecer, a resposta é que a maturação progressiva de uma estrutura inata só aos poucos revela suas potencialidades e que, nesse sentido, não há aumento de complexidade, mas somente explicitação de uma complexidade já dada de antemão. Podemos acrescentar que, se a concepção empirista prevalecer (no sentido de que as estruturas necessárias ao conhecimento estariam já presentes no objeto do conhecimento), também não haveria auto-organização, pois os objetos dirigiriam de fora todo o processo. Assim, a concepção construtivista-interacionista de Piaget permite superar ambos aspectos, inatista e empirista, rumo a uma noção de construção auto-organizada. É no contexto da resposta a essas objeções que Debrun cita Piaget (1983b), como um dos “arautos” da auto-organização, por ter mostrado o caráter criativo ou construtivo que se efetiva no processo de conhecimento. Em especial, como citado no final da seção anterior, temos que, a partir da noção do processo de (auto-)organização-adaptação, Piaget mostra, em sua obra, como, partindo dos ciclos que dão origem aos esquemas reflexos, é possível ao organismo-sujeito (dependendo de sua interação com o meio) construir, primeiramente, esquemas de ação e, posteriormente, com a representação, esquemas operatórios concretos e formais, que possibilitam a constituição das estruturas necessárias ao conhecimento científico, como as noções de espaço, tempo, causalidade, permanência dos objetos, conservação da substância, do peso, do volume, número, classes, relações, etc.

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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4. Piaget e a auto-organização primária Vamos, nesta seção, discutir alguns aspectos da auto-organização primária, introduzidas na seção anterior, em relação aos processos inteligentes, tal como analisados por Piaget, e expressos na primeira seção. A modalidade da auto-organização primária retrata um processo sem sujeito, tal que, elementos “soltos”, cortados de seu passado, despojados de conexões lógicas ou causais, a partir de um encontro casual, podem desenvolver uma interação “selvagem” ou contida dentro de um quadro operacional. Assim, o “auto”, nesse caso, é o próprio processo que não decorre de causalidades ou afinidades nem obedece a um supervisor externo. Neste ponto podemos remontar às noções biológicas, referentes à Epistemologia Genética, que Piaget considera como base para a interação que o sujeito realiza com o meio: como vimos, na primeira seção, existe uma organização biológica – diretamente relacionada às estruturas anatômicas e morfológicas – que possibilita o funcionamento dos processos do sujeito epistêmico. Essa organização se faz com um sujeito que incorpora dados exteriores aos esquemas de ações e acomoda esses àqueles. Nesse caso, existe uma interação entre as estruturas, ou elementos que constituem tais estruturas, fazendo com que exista uma “auto” organização aos moldes de Debrun. Vimos, na primeira seção, com relação aos aspectos funcionais, que eles são responsáveis pela passagem de qualquer estado para outro seguinte, possibilitando um funcionamento constante; além disso, são comuns a todos os estágios, consistindo num movimento contínuo e perpétuo de reajustamento ou de equilibração. Foi assim que concluímos que, para explicar a constituição da inteligência era preciso buscar pelos seus “invariantes funcionais”, isto é, por certos funcionamentos constantes no desenvolvimento de qualquer organismo, possibilitando, assim, a passagem de um estado inferior para outro superior.

Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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Podemos ver, nesse processo descrito por Piaget, o “ajuste organizatório” de que fala Debrun (1996a, p. xxxiv). Segundo Debrun, no processo de auto-organização, existe um ajuste organizatório que propicia o surgimento de uma “forma”; parece haver uma aceitação, isto é, certo consenso entre as partes, contudo sem que haja plena consciência. Esse ajuste, entre outras coisas, não foi planejado de cima para baixo por um engenheiro, ele se fez no “aqui e agora”. Além disso, esse ajuste não é, também, o término de um sistema dinâmico, cujos elementos são pré-ajustados e, desse modo, não haveria ajuste, no sentido aqui considerado. Debrun (1996a, p. xxxv) propõe que um ajuste pode ser, talvez, “o resultado de livre jogo das leis da natureza e dos acasos que surgem na encruzilhada de múltiplas sequências determinísticas”, o que, ao nosso ver, é justamente o caso do desenvolvimento da inteligência por meios de processo de organização-adaptação descritos por Piaget. Em especial, como diz Debrun, ajustes desse tipo não são repetíveis, uma vez que eles não seguem uma “lei de construção” empírica ou formal; no caso de Piaget, existe uma construção, mas por equilibração, desenvolvida pelo próprio processo de organização-adaptação que se desenrola por interações que ocorrem aqui e agora. Para Debrun (1996a, p. xxxv), alguns autores, dentre eles Piaget, veriam no ajuste a expressão de uma dialética de assimilação e acomodação entre um sujeito individual ou coletivo e seu ambiente; nesse caso, ainda segundo Debrun, ocorre uma solução “à la Piaget”. Por fim, salientemos que, segundo Debrun (1996c, p. 27), as duas modalidades – primária e secundária de auto-organização – têm pontos em comum e que podemos identificar esses pontos comuns na análise de Piaget dos processos inteligentes, tanto a partir dos ciclos bioquímicos do organismo referidos na primeira seção deste trabalho, relativos à auto-organização primária, quanto a partir dos invariantes do próprio funcionamento da inteligência enquanto adaptação, relativos à auto-organização secundária, como vimos na seção anterior. O primeiro ponto diz respeito a ser um trabalho realizado sobre si mesmo, seja destes ciclos bioquímicos, enquanto processos de uma totalidade orgânica, seja do funcionamento das estruturas mentais, segundo os invariantes organização, adaptação, assiBresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.; Gonzalez, M.E.Q.; Pellegrini, A.M.; Andrade, R.S.C. de (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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milação e acomodação, que leva o sujeito-epistêmico a um conhecimento do mundo. O segundo ponto se refere a que esse trabalho leva a uma “centração” crescente do sistema sobre ele mesmo. “Centração”, aqui, quer dizer que o sistema ou ser está cada vez mais “voltado para si mesmo”, no sentido de autogerir-se e de construção de sua própria autonomia, mas, em relação ao ambiente e, portanto, em um processo dialético-construtivista. Vimos como, tanto do ponto de vista dos ciclos bioquímicos quanto da constituição da estrutura mental, existe essa centração desses processos sobre si próprios. O terceiro ponto remete ao fato de que esse “trabalho de si sobre si” implica, por sua vez, um começo real. Com efeito, a cada nova fase da construção das estruturas variáveis, face ao funcionamento constante, que comentamos no final da primeira seção, existe um começo real dessas novas estruturas que não são o simples prolongamento programado das estruturas anteriores, mas são os resultados, o fruto de uma nova equilibração que se estabelece entre organismo e meio. E por fim, também se aplica aos processos inteligentes, tal como caracterizados por Piaget, que comporta ambas as modalidades de auto-organização, o último ponto apontado por Debrun: pressupor uma pluralidade de elementos tal que a interação entre esses elementos seja o motor principal da auto-organização; o que vimos no decorrer deste trabalho. 5. Considerações finais Na medida em que o sujeito-organismo epistêmico se desenvolve, construindo a si mesmo e ao seu real, os processos inteligentes, tais como vimos, caracterizados por Piaget, apresentam as características de auto-organização, como pensadas por Debrun, fator que levou Debrun a considerar Piaget um dos “arautos” da auto-organização. As trocas entre sujeito e objeto permitem a constituição e complexificação dos seus sistemas de esquemas de ação e, posteriormente, com a representação, dos esquemas operatórios concretos e formais (que permitem a constituição das estruturas necessárias ao Bresciani  Filho,  E.;;   D’Ottaviano,  I.M.L.;;   Gonzalez,  M.E.Q.;;   Pellegrini,  A.M.;;   Andrade,  R.S.C.  de  (orgs.). Auto-organização: estudos interdisciplinares. Coleção CLE, v. 66, p. 415-438, 2014.

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conhecimento científico, como as noções de espaço, tempo, causalidade, permanência dos objetos, conservação da substância, do peso, do volume, número, classes, relações etc.). Vimos, neste texto, segundo Piaget, que as fases iniciais de construção de um sujeito-organismo, podem ser estendidas a todo o desenvolvimento, mas essa constituição e complexificação ocorrem por meio de processos inteligentes que se apresentam como uma forma de equilibração que vem a constituir as estruturas necessárias ao conhecimento, permitindo ao sistema sujeito-epistêmico passar de um estado de menor complexidade para outro de complexidade maior, sem, contudo, haver a supervisão de um agente externo. Em especial, a constituição e complexificação dos processos inteligentes apresentam dois aspectos: o funcional e invariável e o das estruturas variáveis. O aspecto funcional dos processos inteligentes se explicita por meio de invariantes comuns a todas as estruturações em quaisquer organismos: (auto-)organização, adaptação, assimilação e acomodação. Vimos, ainda, como esses invariantes funcionais se constituem como categorias que permitem pensar os processos de “autoorganização secundária”, segundo a caracterização de Debrun (1996abc). Nesse contexto, a inteligência, como caracterizada por Piaget, se expressa como funcionamento do próprio processo de (auto-)organização-adaptação, sendo que uma de suas principais funções é estruturar o universo, tal como o organismo estrutura o meio imediato. Referências APOSTEL, L.; MANDELBROT, B.; PIAGET, J. Logique et équilibre. Paris: PUF, 1957. DEBRUN, M. Prefácio - Por que, quando e como é possível falar em auto-organização? In: DEBRUN, M.; GONZALEZ, M.E.Q.; PESSOA JR., O. (orgs.). Auto-Organização: estudos interdisciplinares. Campinas: CLE/UNICAMP, p. xxxiii-xliii, 1996a. (Coleção CLE, v. 18.)

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