Jesus é Deus? - uma reflexão sobre a divindade de Cristo na História

May 24, 2017 | Autor: Jefferson Ramalho | Categoria: History, History of Christianity, Cristology
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Jesus é Deus? uma reflexão sobre a divindade de Cristo na História

Jefferson Ramalho

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© 2008, Editora Reflexão - Editora e Livraria LTDA - EPP São Paulo, para a presente edição

Revisão Rosana Brandão

Capa Caroline Dias de Freitas

Diagramação Littera Textos Impressão e acabamento

Ramalho, Jefferson Jesus é Deus? – uma reflexão sobre a divindade de Cristo na História. São Paulo: Editora Reflexão, 2008. ISBN 978-85-61859-02-2

Índices para catálogo sistemático: 1. História 2. Cristologia 3. Teologia

Todos os direitos reservados à

Editora Reflexão - Editora e Livraria LTDA - EPP Rua Fernão Marques, 226 03160-030 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3487-8961 Fax (11) 2021-1586 [email protected] | www.editorareflexao.com.br

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para Ricardo Bitun

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“Perguntar por quem és tu, Jesus Cristo, para nós hoje? significa confrontar nossa existência com a dele e sentir-se desafiado por sua pessoa, sua mensagem e pela significação que se desdo-bra de seu comportamento. Sentir-se atingido por Cristo hoje é pôr-se no caminho da fé, que compreende quem é Jesus não tanto dando-lhe títulos novos e nomes diferentes mas ensaian-do viver aquilo que ele viveu: tentar sempre sair de si, buscar o centro do homem não nele mesmo, mas fora, no outro e em Deus, ter a coragem de pular na brecha em lugar dos outros, de ser um Cristo-arlequim ou o Cristo-idiota de Dostoiewski, que nunca abandona os homens, prefere os marginalizados, que sabe suportar e aprendeu a perdoar, que é revolucionário mas que jamais discrimina e se encaixa onde o homem está, que é vaiado e amado, considerado louco mas manifestando uma sabedoria que confunde. [...] Ele é a permanente e incômoda memória daquilo que deveríamos ser e não somos.” Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador pp. 181 e 182

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Prefácio

Ao iniciar a leitura, já nos textos que precedem a Introdução, o leitor perceberá que a interrogação frente ao título da obra é retórica, ou, como o quer a linguagem cartesiana, uma interrogação para levantar dúvida metó-dica. Trata-se, na verdade, de uma obra que revela uma fé inabalável. Munido dessa fé e com a perspicácia de um pesquisador, o autor se põe em marcha para conduzir o leitor e acompanhá-lo na travessia do ár-duo caminho que o leva ao Concílio de Nicéia. O leitor perceberá, então, que o autor repete os lemas de santo Agostinho: “creio para compreender”, “entendo para crer mais” e o de santo Anselmo de Cantuária: “a fé procura o entendimento”. Mas o leitor perceberá também que a fé não lhe tolhe a visão crítica. É justamente por tê-la que, embora privilegiando a busca de argumentos que defendem a importância histórica do Concílio de Nicéia, Jefferson Ramalho não deixa de retratar os acordos, os conchavos, denun-ciando as barganhas entre Igreja e Estado e os interesses políticos. De fato, Jefferson empenha-se em ir mostrando ao leitor, passo a pas-so, desde as origens, lá atrás, tentando detectar a divindade de Cristo na mente, no coração, na fé e na prática de vida dos primeiros cristãos. Apre-sentará quais as personagens que marcaram definitivamente a disputa, do lado ortodoxo e do lado “herético”, quais os arautos que defenderam a divindade de Cristo e quais a negaram. Como surgiu Ário, aquele que defen-derá por meio de suas pregações e canções, que Jesus Cristo não é gerado da substância do Pai, mas sim uma criatura criada do nada. Nesses autores

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Jefferson encontrará o conteúdo e os argumentos teológicos nos quais o cristianismo sustenta sua convicção acerca da divindade de Jesus. Estruturalmente, é assim que abre a obra, buscando as origens do arianismo e a polêmica que Ário levantou para passar pela intervenção de-cisiva do imperador Constantino até chegar ao primeiro Concílio Ecumêni-co realizado na cidade de Nicéia, no ano 325. Contudo, sua preocupação não está em apenas mostrar tal itinerário. O autor também examina a relevância e sustentabilidade dos argumentos a favor do dogma da divindade. Nessa linha, adverte, especificamente na parte final do livro, que as igrejas não devem se contentar somente com a defesa do dogma, mas também em fazê-lo frutificar na sociedade. Cada cristão deve ser agente libertador da sociedade. O mais importante é que Jesus, o Filho de Deus, esteja encarnado nas ações de cada crente e de cada ser humano. Por isso mostra a relação da cristologia com a soteriologia, como necessidade de uma solidariedade urgente. Na verdade, é nessa relação da cristologia com a soteriologia que resi-de a questão central do arianismo. Negando que o Filho seja Deus igual ao Pai, de sua mesma substância ou natureza, nega-se todo valor salvífico da morte de Jesus Cristo. Há um esvaziamento da dimensão salvífica da sua pessoa e da sua obra. Se Jesus é uma criatura, embora a mais perfeita, a primeira em qualidade e excelência, não pode operar a salvação que é obra exclusiva de Deus. Compreende, então, o leitor, o alcance e a dimensão para a fé, dessa discussão. Para seguir com seu objetivo, o autor busca auxílio em autores de tendências diversas e até mesmo antagônicas, entre ortodoxos e progressis-tas, conforme se comprova pela análise da bibliografia. Além disso, o autor coloca-se numa perspectiva de diálogo, ele mesmo procurando parcerias em diversas correntes de reflexões cristãs. Dize-me com quem andas e te direi quem és! A bibliografia indica com quem anda o autor. Nesse caso, muito bem acompanhado, pois os autores citados e consultados são seus verdadeiros companheiros, são os parceiros do diálogo. Como professor de Teologia e História do dogma que fui por mais de uma década, em curso de pós-graduação, sinto-me à vontade para prefaciar esta obra do jovem escritor, Jefferson Ramalho. Jovem, mas com uma ba-

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gagem cultural invejável. Além de graduado em Teologia, é licenciando em História e estudioso da Filosofia e da Religião de um modo geral. Também não lhe falta experiência prática na área do ensino: é professor de História da Igreja e História das Religiões. É sua primeira obra, mas já revela muita maturidade acadêmica. Ele tem fôlego necessário para levar a termo seu projeto de dar continuidade a esta obra. Aguardamos as próximas publica-ções que completarão a tríade anunciada. Só podemos encerrar este prefá-cio desejando que o autor não pare, mas leve avante seu intento de escrever a trilogia sobre a história do dogma da divindade do Filho de Deus. Se Tomás de Aquino, após uma experiência mística, reconheceu que tudo o que havia escrito sobre Cristo lhe parecia palha, o que se poderá dizer de nós? Contudo, é preciso escrever. Escrever é o exercício de reescre-ver o que praticamente já foi escrito por outros. Escritura é sempre um ato de reescritura. Por isso, é preciso reescrever o escrito para nos expressar ou para confessar nossa fé. Boa leitura!

São Paulo, festa da Santíssima Trindade

Roque Frangiotti Doutor em Teologia Sistemática pela Universidade de Estrasburgo, França

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Sumário

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 11 PARTE 1: ABORDAGEM HISTÓRICA 1. O arianismo e suas origens ............................................................................... 21 2. Tentativas iniciais contra o arianismo ............................................................. 33 3. O Concílio de Nicéia.......................................................................................... 49 4. O Arianismo após o Concílio ........................................................................... 65 PARTE 2: ABORDAGEM DOGMÁTICA 5. As evidências pré-nicenas sobre a divindade do Logos ................................ 87 6. Sobre a divindade do Logos no credo de Nicéia .......................................... 111 7. Sobre a divindade do Logos na obra de Atanásio ........................................ 117 8. Sobre a divindade do Logos na obra de Hilário de Poitiers ....................... 123 9. A divindade do Logos segundo os capadócios ............................................. 135 10. Por que crer na divindade do Logos? .......................................................... 151 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 183 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................... 187

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Desenvolver uma pesquisa que reunisse um conteúdo sobre a divindade de Jesus Cristo – o λόγος1 (Logos) encarnado – tornou-se um objetivo bastan-te desafiador desde a sua idealização. A convicção de que Jesus Cristo é Deus, parece ainda ecoar desde Nicéia, mesmo em meio a tantas repulsas adotadas e lançadas pelo pensamento moderno contra esse princípio da fé cristã. A divindade do λόγος é de fato repudiada por diversos intelectuais que na maioria das vezes se baseiam apenas em argumentações científicas. Não caindo no equívoco de desprezar a extensa bagagem de conhecimen-tos que tais pesquisadores possuem, é necessário salientar que estes em sua maioria sequer mencionam que a religião cristã também contém suas peculiaridades reflexivas e sua histórica construção teológica. Antes de prosseguir, é preciso enfatizar que durante a leitura alguns rotularão o autor como mais um conservador academicamente ingênuo, confor-me já previsto na apresentação. Em outros momentos, especialmente nas úl-timas páginas, haverá aqueles que preferirão afirmar ser o autor não mais que um liberal em fase de formação. Entretanto, deve ficar claro que não houve 1

Para Fílon de Alexandria o Logos é o “princípio que Deus gerou de si mesmo antes de todas as criaturas. Ele é certa potência racional (logiké) que o Espírito Santo chama ora “glória do Senhor”, ora “Sabedoria”, ora “anjo”, “Deus”, “Senhor” e “Logos” (Verbo-Palavra) [...] e leva todos os nomes, porque segue a vontade do Pai, e nasceu da vontade do Pai. [...] Em Fílon, o Logos é o universal ativo e inteligente, instrumento e desígnio de Deus, o único mediador entre Deus e as suas criaturas.” (cf. FRANGIOTTI, Roque. His-tória das heresias: séculos I a VII conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 81-83.).

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nenhum interesse em assumir vínculos com tais identidades. Ao contrário, reconhecemos a contribuição que ambas oferecem à história da teologia cristã. Assim, este livro está totalmente desvinculado de qualquer identidade teológica, e a comprovação disso se dá durante a tentativa de construção da pesquisa. Há momentos em que teólogos essencialmente conservadores são citados com louvor, em outras situações as ponderações de teólogos, não necessariamente liberais, mas ao menos progressistas, são menciona-das como fontes indispensáveis para a sustentação de determinados posi-cionamentos, especialmente por serem leituras inovadoras. Prosseguindo, a história do pensamento cristão em si é inegavelmente uma ciência humana repleta de diversidade e que ao mesmo tempo possui sua galeria de pensadores. Devido à seriedade demonstrada em suas produções li-terárias receberam posteriormente os merecidos reconhecimentos por parte de outros ramos do saber como a Filosofia, a História e até mesmo a Psicologia. Quando um investigador contemporâneo tenciona realizar uma pes-quisa a respeito da historicidade de Jesus, por exemplo, para tornar sua produção ainda mais valiosa, deve levar em consideração os escritos dos mais importantes pensadores da teologia cristã. Neste sentido, tal pesqui-sa, além de ser apresentada de maneira aceitável à ambiência acadêmica, não incorrerá no perigo de ser rejeitada como de pouca credibilidade. Atualmente muito tem sido pesquisado, escrito e publicado sobre ques-tões referentes a Jesus Cristo. Obras e artigos que tentam de alguma forma recaracterizar determinados princípios aceitos pelos cristãos e que no decor-rer da história, devido às controvérsias que se sucediam, eram colocados em debate no intuito de esclarecê-los, defini-los e sustentá-los teologicamente. Freqüentemente são publicados livros como o best-seller O código Da Vinci, de Dan Brown, repleto de equívocos históricos e teológicos e es-truturado em sensacionalismos que tocam determinados conteúdos da fé cristã, recebendo a reprovação dos teólogos em geral. Erwin Lutzer, Darrell L. Bock, Peter Jones e James L. Garlow foram alguns dos escritores da atualidade que enxergaram a necessidade de refutar O código Da Vinci que, em suas linhas e entrelinhas, demonstra uma clara tentativa – ainda que Dan Brown a recuse – de desconstrução da convicção cristã acerca da divindade de Jesus Cristo. Conforme Lutzer corretamente observou, Brown deixou claro a seus leitores que foi Constantino quem estabeleceu tal dogma e que o fez com interesses políticos. De fato a leitura do livro de Brown de certa

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maneira traz essa informação. Sendo assim, as interpretações e impressões que os leitores terão a respeito do cristianismo original não serão as melhores, sobretudo os leitores que pouco conhecem a historicidade dos fatos. Quanto aos artigos freqüentemente publicados em revistas reconhe-cidas por suas contribuições no campo do conhecimento, tratam-se de matérias que tentam numa perspectiva científica, e às vezes sustentadas em descobertas arqueológicas, invalidar a historicidade de determinados acontecimentos e personagens bíblicos. Não há nenhuma reprovação aqui em relação a tais pesquisadores por realizarem suas investigações, não raro, polêmicas. Dentro da própria te-ologia cristã moderna surgiram reconhecidos e competentes teólogos que adotaram uma visão mais crítica sobre as narrativas bíblicas, tendo muitos até chegado a conclusões claramente incompatíveis às tradições mais orto-doxas. Estes, porém, produziram seus argumentos após exaustiva pesquisa histórica, exegética e em alguns casos até mesmo sistemática, extraindo seus argumentos da própria teologia cristã e não do exterior. A pesquisa alemã do século XIX sobre a historicidade de Jesus, por exemplo, objetivava na realidade identificar todas as possibilidades de separar o Jesus das narrativas neotestamentárias do Jesus histórico. Portanto, pode não ser sustentável esse gênero de pesquisa que tem sido realizada atualmente sobre a possibilidade de um Jesus completamente distinto da apresentação do Novo Testamento canônico. Na verdade, pode ser uma forma de pesquisa já há muito superada. É o que podemos observar com a obra História da pes-quisa sobre a vida de Jesus, de Albert Schweitzer2, que reprovou todas as ten-tativas de se realizar uma interpretação sobre Jesus à luz da modernidade. Tais pesquisas, destacadas sobretudo nas perspectivas de teólogos mo-dernos como Hermann Samuel Reimarus, Henrich Paulus e David Friedrich Strauss, não só caíram no descrédito devido à refutação de Schweitzer, como também por sustentarem idéias que acabariam por negar o aspecto essencial e substancial da divindade de Jesus Cristo. Com isso não se gera-va nenhuma contribuição à vida prática até mesmo do cristão dos tempos modernos. O próprio Liberalismo Teológico, com todo seu valor e sua eru-dição em termos de pesquisa científica, devido a significativa influência que gerou na academia, na prática talvez tenha falhado, pois, não conseguiu produzir qualquer contribuição às almas dos cristãos mais leigos. 2

Obra já publicada em português com o título A busca do Jesus histórico (Fonte editorial, 2003).

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Entretanto, ao indagar o padre e doutor em teologia, José Comblin, acerca da discussão sobre o Jesus histórico a partir das pesquisas do irlan-dês John Domenic Crossan, ele me respondeu que os biógrafos de Jesus re-futados por Schweitzer, não puderam contar com recursos específicos que só surgiriam em meados do século XX. Ele ainda completou dizendo que uma pesquisa sobre o Jesus histórico como a de Domenic Crossan jamais seria refutada pelo alemão Schweitzer. Rudolf Bultmann, um dos teólogos mais competentes do século passado, negou toda a relevância atribuída à História em relação às narrativas bíblicas. Nesse sentido seu pensamento tende a afirmar diretamente que o fundamen-tal sobre os textos bíblicos é apenas a mensagem que deles pode ser extraída e não o fato de tais narrativas ocorrerem ou não na História, referindo-se principalmente aos eventos miraculosos registrados nas Escrituras. Logo, a reprovação deve ser direcionada ao pesquisador que utiliza ape-nas ferramentas externas ao lidar com algo específico. É como querer explicar ou provar racional e cientificamente certas narrativas bíblicas como a passa-gem à seco dos israelitas pelo mar Vermelho, a preservação de Sadraque, Me-saque e Abede-Nego na fornalha, a criação do homem e até mesmo os even-tos sobre Jesus como seu nascimento virginal, seus milagres, sua ressurreição e conseqüentemente sua divindade. Como já afirmara Günther Bornkamm, “o Filho eterno de Deus, vindo do céu, nascido miraculosamente da virgem, passou sua vida na Terra, provando sua divindade com milagres sem conta”3. Uma proposta ideal seria no sentido de que a fé não buscasse tanto desvalorizar a ciência e seus caminhos, e que a ciência não tencionasse explicar o inexplicável – e até paradoxal – da fé. Dessa forma pode ser identificado um dos conceitos do termo mito: tudo o que não pode ser definitivamente prova-do por via racional. Os milagres de Jesus narrados no Novo Testamento são todos uma coleção de mitos da tradição cristã, que só podem ser cridos por meio da fé. Assim, quando um teólogo cristão considera a ressurreição de Jesus uma narrativa mitológica, não significa que ele esteja necessariamente negando sua historicidade e sim tratando a temática de maneira coerente à luz da racionalidade, como de fato deve ser investigada. Explicar os aspectos da fé com coerência só é possível quando feito de maneira integral, ou seja, levando em consideração todas as informações

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BORNKAMM, Günther. A Bíblia Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Teológica, 2003. p. 24.

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existentes dentro da reflexão sobre o assunto, o que envolve a consulta de textos patrísticos, escolásticos, reformados, iluministas e até liberais. A partir daí é que será possível afirmar que tal verificação foi desenvolvida “cientificamente” e não reduzindo-se às fontes que só trazem informações favoráveis ao que se quer defender, em uma investigação unilateral. Sobre a divindade de Cristo, objeto de estudo desta obra, muitos a têm negado, chegando a afirmar que somente a partir do Concílio de Nicéia e por intermédio da autoridade política do imperador Constantino, é que se tornou uma doutrina presente nas comunidades cristãs. Todavia, trata-se de um argu-mento histórica e teologicamente insustentável, pois bem antes de Nicéia, já era comum a prática de reconhecimento da divindade de Jesus Cristo pela cris-tandade primitiva. Os próprios pais pré-nicenos desenvolveram escritos que direta ou indiretamente demonstravam a convicção que tinham a respeito. No que se refere à estrutura deste livro, consideramos importante di-vidi-lo em duas partes, subdivididas em dez capítulos, sendo os mesmos organizados em tópicos, quando necessário. A primeira parte chamamos Abordagem histórica. Nela estão contidos os capítulos de 1 a 4. O capítulo 1 tratará de Ário e de suas convicções teológicas. Será neste contexto que o presbítero controverso será conhecido. Suas certezas teológicas e seus argumentos para tais idéias também serão brevemente considerados. Posteriormente, no capítulo 2, a ênfase será colocada no modo como a cristandade daquele momento reagiu à controvérsia ariana. Alexandre, bispo de Alexandria, teria sido o grande adversário de Ário. Nesse capítulo comentaremos sobre reuniões, sínodos e primeiras condenações às idéias arianas e também sobre o pano de fundo histórico, social e político da épo-ca: o Império Romano, com ênfase na pessoa de Constantino. O capítulo 3 é o principal da abordagem histórica. Nele estarão todas as peculiaridades iniciais e conclusivas a respeito do Concílio de Nicéia. Apesar da condenação do arianismo, ainda se fez necessário observar o processo de reação ariana após o Concílio, o que é feito no capítulo 4. Mesmo com a condenação estabelecida pelo imperador Constantino, a he-resia chegaria a estar à frente do próprio Império; o que se daria por meio de um dos herdeiros de Constantino, o ariano Constâncio. Ainda no capítulo 4 haverá uma reunião de informações a respeito de Atanásio. Os cinco exílios que ele enfrentou também serão abordados, bem como suas experiências como bispo de Alexandria.

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O capítulo 5 é o primeiro da segunda parte, Abordagem dogmática so-bre a divindade do Logos, momento em que o dogma será teologicamente examinado. O quinto capítulo, portanto, traz informações e citações de tex-tos patrísticos prénicenos, seguidos de breves comentários e interpreta-ções. Para isso foram selecionados os escritos de Justino Mártir (c. 100 – c. 165), Ireneu de Lião (c. 120 – c. 202), Tertuliano (c. 160 – c. 215), Orígenes (c. 185 – c. 254) e Eusébio de Cesaréia (c. 265 – c. 339). O conteúdo dos do-cumentos é uma prova suficiente de que no aspecto teológico o cristianis-mo já sustentava a convicção acerca da divindade do λόγος, o que mostra tratar-se não apenas de uma prática de fé, mas uma convicção teológica produzida pelos principais pensadores cristãos dos primeiros séculos. No sexto capítulo, a divindade do λόγος será comentada somente com base nas argumentações e definições do Concílio. Embora os capítulos de cunho histórico tenham breves informações a respeito, será nesse ponto que as especificidades sobre o Credo formulado a partir da decisão dos bis-pos presentes serão desenvolvidas. Cada frase será analisada, objetivando maior compreensão sobre o principal documento do Concílio. “A negação da divindade de Cristo por parte dos arianos era o problema crucial para os membros do Concílio de Nicéia. Por essa razão, o Credo afirma várias coisas que apontam claramente para a divindade de Jesus Cristo.”4 No sétimo capítulo é elaborada uma exposição dos escritos de Ataná-sio, revelando suas fortes convicções. Também serão feitos breves comen-tários de algumas de suas obras. No oitavo capítulo é apresentada uma exposição breve da obra magna de Hilário de Poitiers (c. 315 – c. 367), o Tratado sobre a Santíssima Trin-dade. Sua importância consiste no fato de ter sido o grande opositor do pensamento ariano no ocidente europeu, de tal modo, que foi chamado por alguns de “o Atanásio do Ocidente”. Mas, antes de comentar sua reflexão dogmática, é feita uma breve leitura da sua vida e obra. O capítulo 9 traz uma reflexão feita a partir das contribuições dos conhecidos pais capadócios: Basílio de Cesaréia (c. 329 – c. 379), Gregório de Nazianzo (c. 329 – c. 390) e Gregório de Nissa (c. 330 – c. 395). Ini-cialmente houve interesse em desenvolver um aprofundamento na pesqui-sa, chegando até mesmo a trabalhar com a cristologia definida nos três 4

CAMPOS, Heber Carlos de. As duas naturezas do redentor. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004. p. 143.

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primeiros concílios ecumênicos posteriores ao de Nicéia: Constantinopla, Éfeso e Calcedônia. Mas certamente esse aprofundamento romperia com a delimitação preestabelecida para a investigação. Desenvolveremos essa abordagem no próximo volume, como capítulo introdutório. O décimo e último capítulo conclui a pesquisa apresentando algumas propostas de aplicação do pensamento sobre a divindade de Cristo, seja sob a ótica acadêmica seja sob a prática para a experiência de vida daqueles que reconhecem em Jesus Cristo algum aspecto divino. Grosso modo seria o mesmo que concluir com as respostas às seguintes questões: Quais as demonstrações bíblicas em torno da temática? Qual o valor da crença e da defesa teológica sobre a natureza divina de Jesus Cristo? E quais devem ser as atitudes comuns na vida de quem crê, professa e defende o dogma da divindade de Cristo? Des-sa maneira, as primeiras etapas da pesquisa são concluídas. Ao final do livro destaca-se o ideal que deve existir nos âmbitos aca-dêmico e eclesiástico, em que a divindade de Jesus Cristo é um dos artigos de fé mais definidos e defendidos. As considerações finais apontarão aquilo que deve ficar como uma mensagem a todos os leitores. O objetivo da presente obra, portanto, não seria outro senão o de ofe-recer uma contribuição a dois mundos da comunidade cristã: o acadêmico e o eclesiástico. Não haveria sentido contribuir apenas para um deles. A teolo-gia que se desenvolve deve fundamentalmente servir a Igreja e a sociedade, caso contrário não servirá para muitas coisas. Do mesmo modo, deve ter considerável grau de academicismo a fim de que a teologia cristã não dei-xe de ser reconhecida apenas como uma importante vertente do saber por aqueles que se concentram em outras áreas do conhecimento científico. Lembrando que até o período de transição da Idade Média para a Idade Moderna, a teologia ainda era considerada uma das principais formações acadêmicas da Europa. Aos poucos essa realidade se perdeu, pois as ciências se multiplicaram em muitos ramos. Hoje, porém, deve haver uma investida competente por parte de estudiosos da teologia, no intuito de mostrá-la ao mundo acadêmi-co não como uma ciência ultrapassada, como alguns intelectuais já afirmaram. Ao contrário, deve ser reconhecido que a teologia, além de permanecer viva para o mundo, continua exercendo sua relevante contribuição à sociedade.

Jefferson Ramalho

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Parte 01

Abordagem histórica

PARTE 1 Capítulo

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ABORDAGEM HISTÓRICA

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O ARIANISMO E SUAS ORIGENS

Alexandria, Palestina e Constantinopla foram os principais cenários de atuação da controvérsia ariana. Mas Alexandria, o berço da controvérsia, além de possuir grande importância política e econômica, era a capital reli-giosa onde atuava o bispo Alexandre, superior eclesiástico de Ário. A controvérsia ariana foi a principal heresia cristológica da história do cristianismo. Nela nega-se o princípio de fé sobre a natureza divina de Jesus Cristo. Por causa desse movimento, após sucessivas discórdias, sí-nodos e debates teológicos, as autoridades religiosas e políticas no séc. IV perceberam a necessidade de um Concílio que definisse como dogma,se o Filho realmente possuíra, ou não, natureza divina. Deveria ser definido o nível de semelhança ou mesmo de igualdade substancial entre a natureza divina do Filho e a natureza divina do Pai. Ário (c. 256 – c. 336), um presbítero de Alexandria, negara a natureza substancial e coeterna do Filho em relação ao Pai. Para ele, o Filho tornara-se Deus, mas não o era por essência. O conceito, se aceito, atentaria contra o sentido de culto cristão até então realizado. O que era considerado mo-noteísmo poderia ser considerado politeísmo. Por outro lado, essa era uma das acusações de Ário, ao observar um cristianismo que afirmava ser da mesma essência divina o Filho e o Pai. Com significativa aceitação por parte de alguns cristãos da região, Ário influenciava cada vez mais pessoas, por meio de suas pregações, palestras e escritos. O que parecia apenas uma ousada agressão à autoridade ecle-siástica do bispo Alexandre (c. 250 – c. 328) a fim de usurpar seu poder religioso, tornou-se uma verdadeira controvérsia teológica. Acreditou-se, num primeiro momento, que a condenação infligi-da a Ário, presbítero de Alexandria, por seu superior, o bispo Ale-xandre, fosse a sanção legítima e definitiva de um erro difundido numa única comunidade cristã, ainda que importante, e portanto

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isolado. Ário, realmente, por volta de 320 (e, segundo alguns estudiosos, também antes) começara a pregar e a difundir sua dou-trina, obtendo a aprovação de numerosos sequazes, chamados “arianos”. Mas tal ensinamento suscitou prontamente graves opo-sições: Alexandre convocou Ário para um debate público, e suas doutrinas foram confutadas. Convidado a cessar sua pregação, recusou-se: aliás, difundiu ainda mais suas idéias em Alexandria. Alexandre, então, convocou um concílio de cerca de cem bispos, egípcios e africanos, e excomungou Ário junto com os presbíteros e bispos que se haviam enfileirado com ele e não haviam querido condenar suas idéias perversas (322-323 d.C.).

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A avaliação que historiadores do cristianismo têm feito preocupa-se em afirmar que Ário estivera à frente de uma manifestação de cristãos con-tra Alexandre, acusado de adepto do sabelianismo6. Ário, após ouvir um dos sermões de Alexandre, passou a considerá-lo assim, pois, conforme sua análise, as idéias do bispo de Alexandria reduziam o Pai, o Filho e o Es-pírito Santo a aspectos de uma única divindade. Assim, Ário concluíra que Alexandre estava apresentando uma proposta de abandono à perspectiva monoteísta do cristianismo, a fim de uma nova concepção, que, segundo a avaliação de Ário estava mais próxima do politeísmo. Em contrapartida, o bispo Alexandre negava ser adepto do politeísmo, afirmando que Ário era quem na realidade defendia tal perspectiva. Se o Filho não era essencialmente Deus, mas apenas uma criatura, a prática das igrejas cristãs de adoração ao Filho estaria equivocada, tendo de ser aban-donada. Para Alexandre, se o Filho fosse apenas uma criatura, não poderia ser reconhecido, tampouco, adorado como Deus, pois a cristandade estaria adotando na prática alguns elementos do paganismo. 5

MORESCHINI, Claudio; NORELLI, Enrico. História da literatura cristã antiga grega e latina, vol.2. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 44-45. 6

Movimento difundido por Sabélio. Também era chamado de “patripacionismo”, “modalismo” e “monarquianismo”. Ensinava que Deus é trino, não em si mesmo, mas somente me sua revelação. Nesse sentido, os nomes Pai, Filho e Espírito Santo são apenas três maneiras em que Deus se revela ou se relaciona com a sua criação. É fundamental salientar que nos primórdios do desenvolvimento do pensamento teoló-gico cristão, surgiu a necessidade de responder às heresias que apareciam no seio da cristandade. Teólogos diversos afirmam que a heresia parte sempre de uma verdade da qual uma parte é enfatizada em detrimento da outra.

PARTE 1

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ABORDAGEM HISTÓRICA

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Deve-se observar que o costume da igreja cristã fora no sentido de reconhecer a divindade eterna do Filho. A colocação de Mark Noll corrobora com muita propriedade: As orações da igreja sempre tinham sido feitas a Deus em nome de Cristo, de tal modo que separar o Filho do Pai parecia cortar a possibilidade de que os seres humanos se comunicassem com o divino. [...] Os crentes comuns geralmente não possuíam a habi-lidade técnica para rebater os argumentos de Ário; todavia, como seres adoradores, eles sabiam que o retirar a divindade de Cristo era afastar a esperança de suas almas.

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Nesse conflito de idéias iniciou-se a controvérsia que culminou no pri-meiro concílio ecumênico da igreja cristã. Historicamente, o cristianismo vivia um momento de paz que jamais conhecera. O imperador Constantino (280-337) interpretava a discórdia entre os dois líderes religiosos como uma desordem desnecessária. Assim, na tentativa de eliminar o problema, enviou uma carta8 aos dois adversários teológicos, mas não obteve sucesso. Para compreender o que levou Constantino a convocar o Concílio de Nicéia, é preciso conhecer historicamente as personagens centrais do episódio. Assim será menos desafiadora a compreensão de determinados enigmas que provocaram o Concílio. Ário, Alexandre e Constantino são protagonistas, o que torna indispensável uma análise quase que detalhada acerca de cada um. Sem falar da importância cedida pela própria história a outra personagem daquele momento: Atanásio (295-373)9. A razão de se iniciar com a biografia de Ário é apenas cronológica. Sendo o arianismo a própria problemática e conseqüentemente a causa do Concílio, tornase obrigatório fazer primeiro uma abordagem em torno da pessoa de Ário e de suas convicções teológicas.

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NOLL, Mark A. Momentos decisivos na História do Cristianismo, 1ª. ed. São Paulo: Edi-tora Cultura Cristã, 2000. p. 60. 8

Para ler a carta do imperador a Ário e Alexandre, cf. item 2.3 intitulado Constantino, o imperador. 9 A respeito de Atanásio, será estudado no capítulo 4.

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Ário, o presbítero De acordo com as informações fornecidas por Ambrogio Donini10, Ário nascera, possivelmente, na Líbia por volta de 256. Teria se formado na es-cola de Luciano de Antioquia (morto em 312), que compartilhava das idéias de Paulo de Samosata e fazia uma interpretação dos pontos essenciais da fé cristã de acordo com a filosofia aristotélica. Com Ário, teriam estudado na mesma escola alguns de seus ilustres companheiros como Eusébio de Nicomédia. A íntima amizade construída entre Ário e Eusébio durante os estudos em Antioquia foi suficiente para que os dois permanecessem ami-gos durante toda a vida, de tal maneira a unir até mesmo as convicções que tinham a respeito da pessoa do Filho. Compartilhavam dos mesmos conceitos teológicos por terem sido alunos do mesmo mestre. A maior parte das informações coletadas por historiadores sempre apontou novos aspectos e características peculiares da pessoa de Ário. Como tantas outras, a descrição feita pelo historiador romancista Daniel-Rops mostra o fascínio exercido por essa figura histórica: Ário, tinha em si uma mistura inextricável de qualidades e defeitos, fundidos no cadinho desse orgulho que encontramos sempre nos grandes hereges. Nada nele era insignificante: nem a inteligência, nem o caráter, nem a violência, nem a ambição. O seu belo rosto macilento, o seu ar de austeridade modesta, a severidade serena e vibrante das suas palavras, tudo parecia feito para seduzir, e por isso eram muitas as jovens apaixonadas que o rodeavam. Sábio e dotado do dom da dialética como só o podia ter um ocidental im-buído de espírito grego, era – segundo se diz – virtuoso, duro para consigo mesmo, dado a penitências e asceses, aureolado de digni-dade e quase de santidade [...] quanto a Ário, nada se podia dizer contra ele no plano moral; e não era menos perigoso por isso.

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No período histórico estudado, Ário já tinha entre sessenta e setenta anos. No ano 314, o bispo Alexandre o colocou como responsável pela igreja de São 10

DONINI, Ambrogio. História do Cristianismo: das Origens a Justiniano, vol. 10, 1..ed. Lisboa, Portugal: Edições Setenta, 1988. p. 228. 11

ROPS, Daniel. A Igreja dos Apóstolos e dos Mártires. 1. ed. São Paulo: Quadrante, 1988. p. 446s.

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Baucalis. Assim, com sua personalidade carismática, não seria difícil alcançar um considerável número de adeptos. Com sua excelente oratória, Ário come-çara a difundir suas perspectivas primeiro em seu terreno de trabalho. As infor-mações a seu respeito contam que ele possuía uma prática de converter suas convicções teológicas em música e poesia. E assim, durante as reuniões, as pessoas chegavam a ficar extasiadas devido a emoção que sua retórica poética produzia. Uma de suas principais produções foi um poema chamado Thalia – que significa O Banquete – que em pouco tempo já era conhecido e cantado por muitos naquela região oriental do mar Mediterrâneo. Além de bom orador, Ário também possuía características físicas admiráveis. Diz-se que o presbítero era um homem magro, alto e que, apesar da idade avançada, ainda possuía seus cabelos grisalhos. Mas o que destacava mesmo em Ário era sua capacidade de convencer os leigos que por ele eram acompanhados e assistidos em São Baucalis. Há indícios de que Ário interessara-se pela função de bispo metropo-litano, mas que não conseguira obter sucesso nesse objetivo. Alexandre é quem fora eleito para a sede de Alexandria pelos bispos egípcios na suces-são de Áquila. Este tivera importante participação na trajetória eclesiástica de Ário. Apesar das limitadas informações a respeito de Áquila, afirma-se que, foi ele quem ordenou Ário a presbítero da igreja, por volta de 311. A função exercida por Ário em São Baucalis era de uma importância peculiar. J. W. C. Wand argumenta que lá “se localizavam os celeiros onde eram armazenados os grãos enviados para Roma. Houve várias razões para que Ário fosse indicado para assumir essa posição.”12 Portanto, havia um aspecto econômico na região, que conseqüente-mente favorecia quem fosse exercer a função de responsável pela igreja local. Wand prossegue ao pontuar as importantes razões que levaram Ário à condição de líder religioso em São Baucalis: “além de ser uma pessoa de presença dominante, alto, circunspecto e com uma grande reputação no que diz respeito ao ascetismo, ele havia sido discípulo do mártir Luciano de Antioquia, e ainda mantinha boas relações com os confessores.”13 Apresentando-se à comunidade cristã da região como um ministro de bons resultados, Ário se desenvolvia como superior eclesiástico, além 12

WAND, J. W. C. História da igreja primitiva, até o ano 500. 1. ed. São Paulo: Editora Custom, 2004. p. 173. 13 Ibid., p. 173.

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de ser um pregador admirado por muitos. Dentre os que o reconheciam como um ministro de íntegras características morais e de agradável re-tórica, estavam os trabalhadores dos portos, os marinheiros e principal-mente as mulheres. Estas certamente uniam o útil ao agradável; além de admirarem o Ário eloqüente nas pregações e nos pensamentos, também admiravam o Ário da bela aparência física que possuía. Ao comentar a mesma questão, o historiador Richard E. Rubenstein complementa afir-mando que “a irmandade das virgens da igreja havia escandalizado a vizi-nhança por protestar publicamente quando o padre foi expulso da cidade por ordem do bispo Alexandre.”14 À medida que Ário se desenvolvia em suas atividades eclesiásticas, suas convicções acompanhavam esse crescimento. Assim, após três anos de atuação na igreja de São Baucalis, o bispo Alexandre recebera informa-ções por escrito de que os ensinamentos de Ário acerca da relação entre o Pai e o Filho tinham certa diferença quando comparados às convicções que a igreja da época possuía. Grosso modo, o que Ário de fato questio-nava era a divindade do Filho. A partir dessas primeiras informações re-cebidas pelo bispo Alexandre a controvérsia ariana teve seu início. Roger Olson argumenta:

Por trás dos ensinos de Ário estava Orígenes, que provavelmen-te tinha influenciado Luciano. No começo do século IV, Orígenes ainda era considerado por muitos cristãos o maior mestre da igre-ja. Ainda não era considerado herege por todos. Isso aconteceria somente no século VI, em parte por causa da suposta influência sobre hereges como Luciano [de Antioquia], Ário e outros.

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Embora não existisse ainda uma sólida dogmática na teologia cristã do quarto século, era na prática que as certezas doutrinárias do cristianis-mo seriam identificadas. Dentre tais convicções, uma delas era a de que a morte de Jesus Cristo fora o único acontecimento histórico que teria a sufi14 RUBENSTEIN, Richard E. Quando Jesus se tornou Deus: a luta épica sobre a divin-dade de Cristo nos últimos dias de Roma. Rio de Janeiro: Editora Fisus, 2001. p. 78. 15 OLSON, Roger. História da Teologia Cristã: 2000 anos de tradição e reformas. São Paulo: Editora Vida, 2001. p. 146.

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ciência de redimir os seres humanos. Desse modo, a ressurreição de Jesus efetuada por Deus também poderia ser efetuada na humanidade. Todavia, se válida a perspectiva de Ário, tal remissão não teria qualquer coerência. Nesse sentido, Rubenstein comenta e questiona que se Ário estivesse cor-reto em sua teologia, ou seja, se Jesus não era Deus por natureza – se mereceu sua deificação ao desenvolver sua sabedoria e virtude – então todos nós poderíamos fazer o mesmo. [...] Por que então Cristo seria essencialmente di-ferente e superior a nós? E se Ele não é, que significado teria para nós sermos cristãos?

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As convicções de Ário A leitura do pensamento ariano17 feita por leigos certamente gera dúvi-das e até mesmo conflitos de reflexão. A fundamentação de Ário, apesar de insustentável após submetida a uma análise exaustiva da intertextualidade bíblica e após uma apuração exegética, possui uma capacidade de persu-asão suficiente para convencer aqueles que não dispõem de ferramentas como a hermenêutica e a exegese, oferecidas apenas pela teologia. Historicamente,faz-se obrigatório em uma investigação dessa natu-reza a coleta do máximo de informações possíveis, não apenas sobre a vida, mas principalmente sobre o pensamento e a certeza teológica de Ário, dentro de uma perspectiva mais desenvolvida da época patrística. Sua con-trovérsia possui determinados aspectos que devem ser analisados tanto individual quanto comparativamente ao pensamento oposto, nesse caso, o pensamento do bispo Alexandre. A gravidade do pensamento ariano foi tamanha para a igreja da épo-ca, pois em definir que o Filho não é coeterno com o Pai, Ário estabelecia bases para uma série de outras idéias em relação à pessoa do Filho. Rops fornece afirmações que supostamente sejam do próprio Ário, que devem 16 17

RUBENSTEIN, op. cit., p. 82.

Esta leitura do pensamento ariano só é possível por meio das informações fornecidas por seus adversários. A obra de Atanásio, por exemplo, é talvez a documentação primá-ria que traz as informações mais precisas a esse respeito.

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ser citadas para que se conheça que grau de reflexão atingiu sua oposição ao pensamento de Alexandre: ... Ário acrescentava: “Deus é incomunicável, porque, se pudes-se comunicar, teríamos de considerá-lo um ser composto, sus-cetível de divisões e mudanças”, dedução que só a imprecisão dos termos tornava aceitável. Ora, continuava Ário, se ele fosse composto,mutável e divisível, seria mais ou menos corporal; mas isso não pode ser, donde se conclui que é sem dúvida incomu-nicável e que, fora dEle, tudo é criatura, incluído Cristo, o Verbo de Deus. Aqui está o ponto exato em que se situa o erro: Jesus, o Cristo, o Filho, não é Deus como o Pai; não é seu igual nem é da mesma natureza que Ele. Entre Deus e Cristo abrese um abismo, o abismo que separa o finito do infinito.

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Rops ainda prossegue com outros comentários, concluindo que a perspectiva de Ário levou aqueles que o seguiram a crer que o Filho, sendo uma criatura, estaria sujeito ao pecado, o que é inadmissível. Há linhas de pesquisa que preferem adotar a teologia da impecabilidade de Cristo, pois considera-se que não teria sentido um ser sujeito a erros redimir a humanidade. A natu-reza divina de Cristo, no que se refere a esta questão, suplantaria a natureza humana. Há quem argumente contra tal pensamento, citando, por exemplo, a narrativa da tentação de Jesus, mas independentemente do fato que tentou estimular Jesus ao pecado, sua divindade é que teria prevalecido na situação. Quando apresentado no Novo Testamento como o segundo Adão, possivelmente uma das idéias é a de que a perfeição moral existia em Jesus por natureza, tal como existia em Adão antes da queda. O que, porém, deve-se considerar é que Jesus representou historicamente o que já teria ocorrido em regiões celestes desde a fundação do mundo, conforme relata o texto do Apocalipse19, fazendo alusão ao chamado Cordeiro de Deus. Na opinião de Rops, “se Jesus não for coeterno com o Pai, a fé cristã perde a essência, não havendo realmente encarnação ou redenção”. Cabe aqui uma provoca-ção: e se a fé cristã estiver equivocada? 18

ROPS, op. cit., p. 448.

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Ap 13.8

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Luigi Padovese enfatiza que “do ponto de vista estritamente cristológico, o arianismo chegava a negar a alma de Cristo, que acabava por ser supérflua, uma vez que a presença do Verbo num corpo humano já era suficiente para se falar de 20

encarnação e para constituir realmente um homem”. As acusações que Ário recebera afirmavam que ele salientava a unicidade e a transcendência divinas, destacando que somente o Pai possuía a caracte-rística eterna e substancial de Deus. Conseqüentemente Deus não transfere qualquer aspecto de sua natureza a outro ser. Assim, o Filho teria sido feito por Deus, o que então passou a caracterizar o Criador como Pai e a sua primeira criatura como Filho. Este, porém, não era Deus eterna e essencialmente, mas tornara-se divino por ser, na opinião de Ário, a primeira criação de Deus. De igual modo, posteriormente, o Filho teria sido seu auxiliar na criação de todas as outras coisas. Assim, Deus só teria se tornado Pai a partir da criação do Filho. Moreschini e Norelli salientam que por meio desse princípio: Ário se aproximava mais do ensinamento filosófico contemporâ-neo que da tradição cristã, ainda que se possa encontrar para a doutrina de Ário um precedente no subordinacionismo típico da cultura alexandrina, já detectado no maior teólogo daquele am-biente, Orígenes. Segundo muitos estudiosos, os antecedentes da doutrina ariana já podem ser encontrados num discípulo de Oríge-nes, Dionísio de Alexandria.

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Lorenzo Perrone comenta acerca das dúvidas existentes sobre o arianismo e suas origens, que explicam a razão pela qual alguns historiadores contemporâneos debatem a respeito das reais ênfases teológicas do presbítero Ário: No passado, em geral se sustentou que a questão predominante re-feriase à doutrina sobre Deus e às suas implicações trinitárias; hoje há a propensão a crer que se referisse, em primeiro lugar, ao tema cristológico-cosmológico, e talvez também acompanhado por fortes instâncias soteriológicas. Acima de tudo, [...] é preciso levar em consideração a parcialidade das testemunhas históricas, provenientes quase todas de fontes hostis e tendenciosas, e as próprias oscilações 20

PADOVESE, Luigi. Introdução à teologia patrística. São Paulo: Edições Loyola, 1999. p. 53.

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MORESCHINI; NORELLI, op. cit., p. 46.

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de caráter tático expressas, às vezes, pela personagem, conforme as circunstâncias em que teve que declarar suas convicções doutriná-rias. Apesar dessas limitações, é possível trazer à luz alguns aspectos centrais das idéias professadas por Ário, ou pelo menos aquelas for-mulações que oferecem o pretexto ao conflito dogmático...

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Olson pondera que as implicações desse debate não estavam apenas limitadas às discussões cristológicas. Atingiam também determinados as-pectos soteriológicos da doutrina cristã. Segundo Olson, “para Ário e seus seguidores, a salvação significava seguir espontaneamente o exemplo de Cristo de submissão a Deus. Se Cristo não optou, de modo humano, por seguir a vontade de Deus, seu exemplo não tinha utilidade”.23 Sobre as obras escritas pelo próprio Ário, conforme já comentado, não se tem disponível, senão fragmentos ou citações em Atanásio e historia-dores dos séculos IV e V. Seu pensamento é conhecido por meio de fontes contrárias às suas idéias, o que não significa, porém, que tais referências tenham sido primariamente compostas pelo próprio Ário, conquanto expli-citem sua teologia. Robert C. Gregg e Dennis E. Groh, seguindo esse méto-do, explicam o pensamento de Ário:

E Cristo não é o verdadeiro Deus, mas por participação [...] até ele foi feito Deus [...] O Filho não conhece o Pai com exatidão e o Logos não vê o Pai com perfeição, e ele não percebe o Pai com exa-tidão e nem o Logos o compreende; isso porque ele não é o verda-deiro e único Logos do Pai, mas somente em nome ele é chamado Logos e Sabedoria, e pela graça é chamado Filho e Poder.

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Carregado de ebionismo25, Ário rejeitava a utilização dos termos gre-gos αγέννητος αρχή como defesa da idéia apostólica de que Jesus era Filho 22

ALBERIGO, Giuseppe (org.); PERRONE, Lorenzo. História dos Concílios Ecumênicos, 2. ed. São Paulo: Paulus, 1995. p. 20. 23

OLSON, op. cit., p. 149.

24

GREGG, Robert C; GROH, Dennis E. Early Arianism: A view of salvation, Philadelphia, Fortress, 1981, p. 9. 25

Movimento contemporâneo da igreja primitiva, que além de negar a divindade de Jesus, afirmava que ele era filho biológico de José. Composto por judeus cristãos, o ebionismo era contrário à perspectiva paulina e favorável à lei de Moisés considerada pelos ebionitas como prática necessária à salvação.

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de Deus. Interpretava como uma contradição, pois o fato de o Filho ter sido gerado também implicava afirmar que não era eterno, ou seja, teve um princípio, ainda que atemporal. Ário aceitava apenas a afirmação de que o Filho seria uma criatura singular e superior a qualquer outra, po-rém, não chegava a ser Deus como o Pai. Patrocinado e protegido por seu companheiro Eusébio de Nicomédia, Ário enquanto estava exilado em 320, teria enviado uma carta ao bispo Alexandre. De acordo com o pesquisador protestante Heber Carlos de Campos, nessa correspondência, o presbítero desenvolvera sua profissão de fé sobre a relação entre o Pai e o Filho: Reconhecemos um Deus, que é o único não-gerado [...], o que é au-toexistente, único eterno, o único sem começo [...], o único verda-deiro, o único possuindo imortalidade, o único sábio, o único bom, o único soberano, o único juiz de todos etc. Visto que ele é singular, transcendente e indivisível, o ser ou essência [...] da divindade não pode ser compartilhada ou comunicada. Pois, para comunicar sua substância a algum outro ser, conquanto exaltado, implicaria que ele é divisível [...] e sujeito a mudança [...], o que é inconcebível. Além disso, se qualquer outro ser fosse participar na natureza divina em qualquer sentido válido, isso resultaria numa dualidade de seres di-vinos, visto que a divindade por definição é singular. Portanto, qual-quer coisa mais que existia deve ter vindo à existência, não por qual-quer comunicação do ser de Deus, mas por um ato de criação de sua parte, i.e., deve ter sido chamado à existência do nada.

26

Campos ainda enfatiza que Ário negou a divindade ontológica do Filho e sustentou a convicção de que o Filho estaria em uma condição intermediária entre o Pai e as criaturas no aspecto essencial de sua natureza, e não apenas no sentido de comunicação e relacionamento do ser humano com seu Criador, conforme defende a ortodoxia tradicional. Após expor sobre a presença de ebio-nismo no conceito ariano, Campos complementa com as seguintes palavras: Ário sustentava que Jesus Cristo era uma criatura. Ele foi a pri-meira criação [...] de Deus. Ele não deve ser comparado com as outras criaturas, porque difere delas, tendo a primazia entre todas. 26

CAMPOS, op. cit., p. 143. É importante dizer que divisível, sujeito à mudança e singular, já são conceitos filosóficos presentes no médio platonismo quando este se refere a Deus.

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Todavia, ele não possui auto-existência. Através do Filho, o Espíri-to Santo foi criado e assim também os homens e o mundo. Nesse sentido, ele era o mais alto dos seres criados. O Filho criou todas as coisas por causa do poder que lhe fora atribuído. Por causa do que ele fez, dos milagres, curas e da glória que ele mostrou em sua ressurreição, a igreja atribuiu-lhe a qualidade de Deus. A adoração da pessoa de Cristo foi uma espécie de cortesia que a igreja come-çou a lhe prestar. [...] Portanto, segundo os arianos, Jesus Cristo não era essencialmente Deus.

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Diante da controvérsia, algumas tentativas de solução foram desenvolvi-das, oriundas de diferentes partes. O fato de Ário gerar uma divisão teológica e conseqüentemente eclesiológica no âmbito cristão em que se localizava, foi suficiente para que ocorressem debates, sínodos e, finalmente, um grande concílio. Por essa razão,uma verificação do conceito oposto, o pensamento de Alexandre, bispo de Alexandria e superior de Ário,também faz-se necessária.

27

Ibid., p. 144.

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TENTATIVAS INICIAIS CONTRA O ARIANISMO

Para que haja compreensão sobre as primeiras tentativas de combate ao arianismo, e até sobre as condenações que lhe foram sancionadas pelo Con-cílio de Nicéia, é imprescindível que se faça um levantamento daquilo que a historiografia tem registrado sobre o pensamento do bispo Alexandre. Apesar das limitadas informações, o que se tem é de suficiente valor para fazer com que o pesquisador moderno perceba a tamanha veemência com que o bispo Alexandre combateu o arianismo. Sua convicção acerca da divindade de Cristo era fundamentada em argumentações tão sólidas que permitiram desmascarar o arianismo não apenas como uma contro-vérsia no seio da igreja do quarto século, como também considerá-la defi-nitivamente uma heresia. Moreschini e Norelli afirmam que a princípio é inverossímil que Alexandre, formado pela mesma tradição alexandrina e seguramente bom conhecedor de Orígenes, conside-rasse Ário um herege extremado, [...]. A teologia de Alexandre ba-seia-se no mistério da divindade do Filho, explicada com Jo 1.18 (“Deus Filho único, que está no seio do Pai”).

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Alexandre teria governado o patriarcado do Egito entre 312 e 328, mas o que de fato o fez conhecido foi sua reação contra o arianismo: condenou Ário em um sínodo no ano 320 e depois tornou públicas duas cartas de sua própria autoria contra o presbítero controverso. A primeira mais restrita, pois destinada apenas aos bispos. A segunda com repercussão mais inten-sa, objetivando frear a maneira como o arianismo vinha se expandindo. Há informes de que os escritos de Alexandre sobre Ário e suas idéias foram chamados Deposição de Ário. Olson enfatiza que essas cartas foram

28

Moreschini; Norelli, op. cit., p. 47.

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uma tentativa de esclarecer o porquê da condenação de Ário pelo Sínodo de Alexandria. Segundo Olson, nessa carta encíclica, o arcebispo de Alexandria faz um resumo su-cinto da heresia de Ário e dos arianos a respeito de Deus e do Filho de Deus e pede que seus colegas, bispos e ministros do império, não acolham os hereges, nem aceitem o pedido do bispo Eusébio para tratá-los bem.

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Alexandre, o bispo Conforme Rubenstein disserta, o bispo Alexandre, “em 318, proferiu uma série de sermões, sustentando firmemente que Jesus Cristo era Deus Eterno sob a forma de homem e que as crenças em contrário eram heré-ticas. Se esses sermões se destinavam a provocar uma reação pública, ele foi bem sucedido”.30 Também deve ser mencionado que Alexandre liderava o território da igreja oriental de maior extensão na época. Seu governo eclesiástico era na prática sobre todos os outros bispos que exerciam seus cargos nos limes desse consi-derável terreno. A extensão desde a metrópole Alexandria até as regiões de Te-bas e Núbia era sujeita à autoridade religiosa de Alexandre, ou seja, os bispos de todo esse território o respeitavam, além de muitas vezes lhe serem submissos. A liderança do bispo Alexandre era consideravelmente notória, de tal maneira que as convocações de sínodos e concílios eram sempre definidas por ele. Tal pres-tígio fazia de Alexandre um bispo muito benquisto na cristandade do Oriente, chegando inúmeras vezes a proferir sermões em diferentes lugares. Tendo conhecimento das pregações de Alexandre, Ário ousadamente desafiou as opiniões de seu superior por meio da publicação de uma carta. O que fez com que o bispo Alexandre o convocasse para defender sua pro-posta teológica. Ário e seus seguidores se opunham à crença na igualdade do Pai e do Filho, argumentando que tal, perspectiva afetava a imutabilidade divina. O simples fato de o Filho ter se encarnado e sofrido como ser humano na his29

OLSON, op. cit., p. 151.

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RUBENSTEIN, op. cit., p. 82.

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tória, provava, segundo Ário,a mutabilidade de Deus. Logo, Deus em Cristo seria mutável. Se Cristo é mutável, não pode ser essencialmente Deus: era outra das argumentações de Ário contra a teologia de Alexandre. Alexandre também acusou Ário de não crer na imutabilidade de Deus, pois se Deus só se tornara Pai a partir da existência e criação do Filho, Deus não seria imutável, pois passara por um processo de mutabilidade a partir do instante em que se tornara Pai. Mas Alexandre concordava com Oríge-nes, afirmando que o Pai gerara o Filho eternamente, não havendo um tem-po em que o Pai não tenha sido Pai ou que o Filho não tenha sido Filho. A opinião contrária à proposta de Ário, defende que o maior equívoco da teologia ariana foi o de restringir a existência e a ação de Deus à relativi-dade do tempo e do espaço. Tendo-se em vista o fato de que Deus é Absolu-to, não poderia habitar dentro do padrão limitado que o homem estabelece para o χρόνος (cronos = tempo) da história. Se, por outro lado, Ário estava correto, seria indiferente afirmar que Deus reduziu-se à realidade temporal para passar por um processo de mutação em sua natureza. O que Alexandre avaliava sobre o arianismo era a negação da divinda-de do Filho. O historiador protestante Justo González reforça que “a igreja desde o começo tinha adorado a Jesus Cristo, e que se a proposta de Ário fosse aceita a igreja teria de deixar de adorá-lo”.31 E a questão da adoração está diretamente relacionada ao dogma. O que não deve ficar aparente é que Alexandre fosse um superior re-ligioso que tivesse satisfação na ocorrência de conflitos como aquele. Ao contrário, o que se sabe a respeito do bispo de Alexandria é que se tratava de um homem tolerante, calmo e amável. Sua intrépida reação ao arianis-mo, porém, foi algo consideravelmente antagônico à sua personalidade; possivelmente em função da ameaça que o arianismo representava. Padovese comenta a maneira como Alexandre iniciava sua resposta à controvérsia ariana: Para afastar a objeção ariana de que a geração é semelhante à ge-ração corpórea, o bispo alexandrino esclarecerá que ela se deu de modo inexplicável, sem divisão ou por eflúvio. Segundo Alexandre, 31

GONZALEZ, Justo L. E até aos confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo vol. 2. São Paulo: Vida Nova, 1995, p. 92.

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a única nota que distingue o Filho do Pai é o fato de ser gera-do. Quanto ao mais, o Filho é imagem e marca perfeitíssima dele, reproduzindo em tudo, em relação ao modelo, uma semelhança total. Se, em suas afirmações, Alexandre demonstra não possuir uma linguagem técnica para definir a união do Pai e do Filho, na polêmica com Ário, porém, preserva a condição de Cristo, verda-deiro Filho e verdadeiro Deus.

32

Não há dúvidas de que em todos os momentos da história do pensa-mento cristão, a fim de que algumas doutrinas fossem definidas, houve uma perceptível influência filosófica. Assim como ocorreria com o protes-tantismo do século XIX devido à modernização do pensamento e da ciência e à valorização atribuída à razão humana, nas Idades Antiga e Medieval não foi diferente. Dessa maneira, procura-se relacionar a teologia cristã em determinada época com alguma linha específica da filosofia. O período patrístico, por exemplo – momento em que aconteceu a controvérsia ariana – destaca-se pela forte influência da filosofia platônica. Do mesmo modo, no período escolástico a filosofia presente na teologia cristã passou a ser essencialmente aristotélica. Por essa razão, corretamente ou não, historiadores da religião e teólogos de todas as épocas têm pretendido apresentar as relações estabelecidas entre certos pontos da teologia cristã e algumas perspectivas filosóficas. Adolf von Harnack, porém, discorda da observação feita por alguns pesquisadores que comparam a oposição entre a teologia de Alexandre e a teologia ariana com a oposição entre o platonismo e o aristotelismo. Toda-via, Harnack afirma ser “correto dizer que a oposição não pode ser entendi-da se não considerarmos os diferentes métodos filosóficos aplicados”.33 Alexandre e seus presbíteros teriam reagido com veemência contra Ário e seus ensinamentos, pois as idéias arianas não só manchavam a teologia cristã no seu aspecto prático sobre a crença na divindade do Filho, como também ameaçava a questão da salvação proposta pelo cristianismo. Olson salienta que “os cristãos da atualidade tendem a separar a salvação, como perdão e ‘um relacionamento pessoal com Deus’, da crença doutrinária. Essa 32

PADOVESE, op. cit., p. 70.

33

HARNACK, Adolf von. History of Dogma, vol. 4. Berlim: Willians & Norgate, 1898, p. 6.

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diferenciação ficou completamente desconhecida da maioria dos cristãos da 34 história da igreja. O que a pessoa acreditava tinha muita importância”. A convicção de que o Filho é essencialmente Deus é exatamente o que diferencia o cristianismo de outras religiões monoteísticas, como o Judaís-mo. Os teólogos e líderes cristãos sempre solidificaram a certeza de que o Filho é Deus, também diferenciando a religião cristã de filosofias monote-ísticas como o estoicismo e o platonismo. Diante da negação de Ário, o bispo Alexandre não pôde esconder sua frustração; aquele presbítero além de benquisto, possuía extrema competência como líder e mestre religioso. Olson, conservador que é, salienta ainda que Alexandre tinha toda razão de ficar chocado e alarmado, especial-mente porque os ensinamentos de Ário haviam se tornado atraen-tes às massas de cristãos alexandrinos [...]. A conseqüência, con-forme corretamente supunha Alexandre, seria o fim do evangelho segundo o conhecemos e nele cremos. Pois só seremos salvos se Jesus Cristo for Deus.

35

A divindade do Filho era, em certo sentido, um ponto pacífico da te-ologia cristã até Ário dar início à controvérsia, pois quando o cânon do Novo Testamento ainda nem havia sido definido, o que poderia servir de ferramenta contra heresias, a prática da fé na encarnação do Verbo e na divindade de Jesus Cristo já se concretizara havia muito tempo. Caso essa convicção fosse abandonada pela práxis da teologia cristã – que já existia sem qualquer autoridade escrita, pois o cânon ainda estava em processo de definição – não mais existiria a esperança de os cristãos serem coparticipantes na vida do Criador, serem alvo de seu favor imere-cido, receberem sua graça perdoadora e serem restaurados à sua imagem e semelhança, como era o homem antes da Queda. Todo o significado de ser cristão, ainda que racionalmente absurdo, seria descaracterizado. Historicamente, o papel de Alexandre e sua teologia foi a primeira arma contra o arianismo, porém, serviram muito mais para abrir o caminho que se-ria posteriormente trilhado por Atanásio, principal adversário da controvérsia 34

OLSON, op. cit., p. 153.

35

Ibid., p. 153 – 154.

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ariana, especificamente no Concílio de Nicéia. Com a morte do bispo Alexan-dre, em 328, Atanásio tornou-se seu sucessor no bispado de Alexandria. Mas, até que tratemos desse assunto, outras questões precisam ser consideradas.

Reações anteriores ao Concílio Uma vez conhecidas as características e o pensamento de Ário e Ale-xandre, a próxima verificação a ser feita na história da controvérsia ariana diz respeito às primeiras providências que a igreja do Oriente tomou contra tal problemática - as únicas que a liderança eclesiástica da época poderia ter em relação ao arianismo. A tentativa não consistia apenas em combater a teologia de Ário, mas principalmente em impedir que suas idéias continu-assem se espalhando como já vinha ocorrendo. Embora teologicamente o combate já pudesse ser considerado bastan-te desafiador, na prática o conflito seria bem maior. A prova histórica é o fato de que mesmo após o Concílio de Nicéia, o arianismo, condenado pela igreja, continuou a crescer; o que não desvaloriza a importância histórica da decisão pró-ortodoxia no processo conciliar de Nicéia. Todavia, antes de o Concílio acontecer, o bispo Alexandre mergulhou na tentativa de mostrar à cristandade que o arianismo era uma perspectiva totalmente 36 contrária aos princípios da tradição cristã. A negação da di-vindade do Filho não apenas re-caracterizaria a essência da fé cristã, como também tornaria vã toda a prática de culto cristão até então realizado. Por-tanto, o pensamento de Alexandre pode ser resumido com a seguinte afir-mação: se Jesus Cristo não for eterna e substancialmente Deus, a religião cristã torna-se inútil, irrelevante e desnecessária. Se o Filho não for Deus, não há cristianismo autêntico. A proposta do cristianismo só tem sentido, segundo Alexandre, se Jesus Cristo de fato for essencialmente Deus. Alimentando tais convicções, Alexandre reagiu de diversas formas contra o presbítero Ário, que, por sua vez, jamais se deu como vencido, permanecendo no

labor de expandir sua teologia. Georges Suffert37 chega a afirmar que Alexandre, a fim de reagir contra as idéias de Ário, teria promo36

Tradição cristã tem a ver com o chamado depósito de fé, ou seja, o que foi transmitido por meio da pregação apostólica, a saber, a pregação dos santos apóstolos. 37

SUFFERT, Georges. Tu és Pedro. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

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vido uma reunião local, com a presença de aproximadamente cem bispos vindos da Líbia e do Egito, não apenas para analisar as idéias arianas como também para combatê-las. Dentre os bispos vindos do Egito, Segundo e Téonos teriam sido depostos por defenderem as idéias de Ário. O referido sínodo teria se realizado em 319, aproximadamente seis anos antes do Concílio de Nicéia, que condenaria de vez o arianismo. Já o historiador romancista Daniel-Rops, considera a possibilidade de Alexan-dre ter convocado esse sínodo um pouco mais tarde, precisamente em 321, por insistência de alguns cristãos preocupados com a fama de tantos erros teológicos provenientes da igreja de São Baucalis, onde Ário exercia seu trabalho ministerial desde 313. Independentemente de qual tenha sido a data precisa do sínodo con-vocado por Alexandre, Ário esteve presente nele de maneira tranqüila, a princípio. E a tranqüilidade de Ário tinha relação com o fato de que muitos o apoiavam e também se dirigiram ao sínodo. Segundo Rops, apenas dois ou três bispos estavam a favor de Ário. Tudo foi conduzido normalmente e apenas em torno da reflexão teológica em questão. Porém, quando Ário afirmou que Cristo, sendo humano, era uma criatura sujeita ao pecado, houve grande exaltação por parte dos aliados a Alexandre. Com isso, Ário foi condenado com seus seguidores. Foi proposto que ele se submetesse ou que se afastasse do cargo de presbítero. Ário preferiu a segunda opção. Sobre o novo momento da vida de Ário, após sua condenação no síno-do convocado por Alexandre, Perrone faz as seguintes considerações: Graças às amizades feitas durante o período de estudo em An-tioquia, ele recorreu aos “colucianistas”, que haviam se tornado membros influentes do episcopado oriental, e a outros expoentes dele. Em particular, recebeu apoio dos bispos da Palestina, entre os quais Eusébio de Cesaréia, o grande historiador eclesiástico e personalidade de grande respeito, e sobretudo da parte do bispo da capital, Eusébio de Nicomédia. Este reuniu um sínodo que re-admitiu Ário e seus sequazes na comunhão eclesial e deu conhe-cimento de suas decisões ao episcopado oriental, convidando-o a exercer pressão sobre Alexandre, para que revisse seu juízo.

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ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 21.

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Rubenstein faz uma das melhores exposições sobre a controvérsia ariana. Ao comentar a respeito do sínodo que Eusébio de Nicomédia teria convocado em 319 ou 320 em sua cidade, contribui com informações que não estão presentes na maioria dos escritos sobre o assunto. Os bispos convocados eram procedentes de uma província chamada Bitínia, e naque-le sínodo procuraram analisar superficialmente a teologia ariana antes de aprová-la ou condená-la. Assim Rubenstein relata: Orientados por Eusébio, os bispos de Bitínia tiveram pouca dificulda-de em declarar os conceitos de Ário aceitáveis. Admitiram-no imediatamente à comunhão e enviaram uma carta enérgica ao bispo Alexandre, exigindo que ele fizesse o mesmo. Pela primeira vez, um concílio de bispos se encontrou especificamente para revogar um decreto de excomunhão decretado por outro concílio. O estranho resultado disso foi que um padre a quem tinha sido negada a comunhão com outros cristãos numa cidade era bem-vindo à igreja de outra! Obviamente não havia motivos para que os bispos de uma diocese aceitassem as doutrinas ou as decisões anunciadas pelos bispos de outra.

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Tal atitude fortalecera bastante o presbítero Ário, que aproveitou o apoio dos bispos da Bitínia e dos dois Eusébios principalmente, e dirigiu-se para o sul da Líbia, onde foi apoiado pelo bispo Paulino de Tiro. Posteriormente, Ário foi também para a Palestina, onde recebera o apoio de Eusébio de Ce-saréia. Este não era tão político e articulador como Eusébio de Nicomédia, mas tinha suas qualidades no campo do conhecimento, de tal modo que sua principal característica para a história da igreja e do pensamento cristão é de que fora importante teólogo e seu primeiro grande historiador. Além do concílio que Eusébio de Nicomédia organizara em favor de Ário, Eusébio de Cesaréia também convocou um breve sínodo em 321 ou 322 na própria cidade de Cesaréia. Assim que Ário chegou à Palestina, Eu-sébio o recebeu de forma cordial, pois antes de desembarcar em Cesaréia, Eusébio de Nicomédia já havia enviado uma carta de recomendação ao seu homônimo reivindicando apoio ao presbítero e conseqüentemente desa-poio ao bispo Alexandre. Em função disso, Eusébio conversou com Ário,

39

RUBENSTEIN, op. cit., p. 86.

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percebendo que suas idéias eram muito próximas da teologia de Orígenes – teólogo que Eusébio muito admirava. Então, Eusébio convocou o sínodo em sua cidade, onde não somente apoiou Ário, mas também exigiu oficial-mente que Alexandre o readmitisse como presbítero de São Baucalis. Rubenstein comenta que Ário não esteve presente no primeiro concí-lio que Alexandre reunira, em 318. Com a primeira condenação conciliar das idéias arianas,e conseqüentemente de Ário e seus seguidores, muitas manifestações públicas aconteceram. “Sobretudo as mulheres jovens que admiravam o padrepoeta se mostraram enfurecidas com sua exoneração e se aglomeravam nas ruas despudoradamente, exigindo sua readmissão.”40 Com isso, aumentavam as batalhas entre arianos e grupos adeptos da teo-logia defendida por Alexandre. Alexandre resolveu reafirmar a condenação de Ário, organizando um grande sínodo, reunindo aproximadamente cem bispos. Há uma certa aglo-meração de informações a esse respeito, e a imprecisão das datas contri-buem ainda mais para que haja dificuldade na pesquisa. Não é possível identificar por meio de uma leitura panorâmica, se os sínodos menciona-dos por Suffert e Rops referem-se à primeira reunião de Alexandria, que condenou Ário e o conduziu ao encontro com os bispos Eusébio de Nico-média e Eusébio de Cesaréia,ou ao grande sínodo que Alexandre convocou devido aos apelos feitos em defesa de Ário. Diante da atitude dos dois Eusébios, Alexandre resolveu emitir suas correspondências de justificação. Por meio dessas cartas, o bispo de Alexandria além de pontuar cada equívoco teológico de Ário, aproveitou para fazer um apelo aos bispos e líderes eclesiásticos do Oriente, para que não acolhessem nenhum ariano em suas comunidades. Do mesmo modo, Alexandre pedia aos líderes que não dessem crédito aos apelos dos Eusébios, tendo-se em vista a possibilidade de uma propagação ainda maior das idéias de Ário. Não obstante à imprecisão de dados, a informação da qual se pode ter certeza é que ocorreram quatro reuniões. A primeira que inicialmente condenou o presbítero, destituindo-o de seu cargo eclesiástico. A segunda que Eusébio de Nicomédia organizara a fim de readmitir Ário e seus seguidores, além de apelar para uma revisão de sua situação em Alexandria. A terceira convocada pelo his-

40

Ibid., p. 84.

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toriador Eusébio, em sua cidade Cesaréia, na qual a ortodoxia ariana fora defendida e, assim como no concílio de Nicomédia, exigido que o bispo Alexandre reconduzisse Ário à sua função eclesiástica. E, finalmente, a quarta convocada por Alexandre no intuito de reforçar a condenação às idéias arianas. Nesse quarto sínodo, o bispo Alexandre redigiu uma encíclica reafir-mando a posição de várias igrejas contra a teologia ariana e conseqüente-mente condenando a atuação de Ário em sua função eclesiástica. Ário teria retornado à Alexandria – numa atitude de desafio ao bispo Alexandre – para exigir um encontro público no qual pudesse expor seu pensamento e ser reconduzido a seu cargo. Alexandre, porém, recusou encontrar-se publi-camente com Ário, o que provocou maiores manifestações dos adeptos da teologia ariana contra os que preferiam a teologia de Alexandre. Possível de se observar até aqui é que a cristandade estava à caminho de um verdadeiro cisma. De um lado os defensores de Ário e favoráveis às suas idéias, do outro lado os defensores da perspectiva defendida pelo bispo Alexandre. Após esta leitura, o que precisamos considerar é o pano de fundo político da controvérsia e a participação fundamental do imperador romano.

Constantino, o imperador Incansavelmente, Alexandre e seu assistente, o diácono Atanásio, escreviam e enviavam cartas aos clérigos do Oriente, no intuito de refutar cada vez mais as convicções de Ário, fazendo com que o conflito a cada nova etapa ganhasse maior proporção. Constantino, maior autoridade política da época, percebeu que a religião que ele próprio defendera em 313 por meio do Edito de Milão, quando proibiu as perseguições religiosas contra o cristianismo, estava se dividindo. A princí-pio, ele não deu importância à discussão entre Alexandre e Ário, porém, com a intensificação da controvérsia, considerou fundamental sua intromissão. A primeira participação deu-se por meio de uma carta aos dois líde-res em conflito, emitida pelo correspondente imperial, Ósio de Córdoba. A esse respeito, Kenneth S. Latourette comenta: Logo o imperador havia intervindo nos assuntos da igreja acerca da controvérsia donatista. Agora se sentia obrigado a agir nessa divisão

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que assumia um caráter muito mais sério. Para este fim, primeiro escreveu a Alexandre e a Ário, mandando uma carta através de seu conselheiro em assuntos eclesiásticos, Ósio, bispo de Córdoba, convidando-os a acertarem suas diferenças e a perdoarem um ao outro.

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Há informações de que Ósio de Córdoba era um assistente imperial já acostumado a lidar com discussões. Sua experiência o preparara para convocar superiores em divergência. Já presidira um concílio de bispos na Espanha, além de representar Constantino em diversas situações conflitu-osas em comunidades cristãs espalhadas pelo império. Com sua sensatez e mansidão no ser e no falar, não haveria melhor opção para Constantino, senão contar com seu conselheiro Ósio na resolução de questões relacio-nadas à fé. Sua relação bastante próxima do imperador, fez com que muitos o interpretassem como um dos poucos que conseguiam acalmar Constan-tino em seus momentos de turbulência existencial. Daí quão tamanha era a confiança que Constantino depositava em Ósio de Córdoba. Para Rubenstein, “o emissário compreendia perfeitamente a importância dessa sua missão em Alexandria. [...] Certamente devia ser posto um fim a essas disputas doutrinais inconvenientes entre os bispos e os sacerdotes ocidentais, o mais rápido possível”.42 Rubenstein narra da seguinte forma a chegada de Ósio de Córdoba ao palácio do bispo Alexandre, com a carta de Constantino: Ósio foi ao palácio e entregou a carta ao bispo. Não ficou muito claro se ele chegou a se encontrar com Ário durante sua visita à Alexan-dria, uma hipótese que parece bastante improvável, já que o sacer-dote estaria lá incógnito. Ário havia retornado várias vezes à cidade, ignorando a ordem de Alexandre de manter-se longe. Seus segui-dores ainda celebravam secretamente os serviços eclesiásticos e fo-mentavam brigas nas ruas, portanto, uma conversa com ele, mesmo se fosse possível, representaria um claro insulto a Alexandre. 41

43

LATOURETTE, Kenneth Scott. Historia del Cristianismo: tomo 1, 3. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de

Publicaciones, 1976. p. 201. Obra publicada em português pela Editora Hagnos. 42 43

RUBENSTEIN, op. cit., p. 73. Ibid., p. 74

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Por meio da carta, Constantino deixou claro seu pensamento sobre a controvérsia ariana. Além de considerá-la uma discussão desnecessária, enfatizava que em vez de os cristãos aproveitarem aquele momento de expansão, devido ao fim das perseguições religiosas, o que estavam fazendo era simplesmente gerar motivos de zombarias aos pagãos. Segundo o imperador, aquele não era o melhor momento para se estabelecer uma discussão teológica. Embora do ponto de vista político Constantino estivesse relativamente certo, ele não tinha noção da gravidade da controvérsia para o prosse-guimento da missão cristã. Por não conhecer os princípios essenciais do cristianismo, ele acreditava tratar-se de um mero debate, podendo ser tran-qüilamente resolvido com uma simples reconciliação. Para melhor com-preensão da visão que Constantino teve da discussão ariana, vale a pena conhecer sua carta emitida a Ário e a Alexandre: Conheço a origem de vossa incompatibilidade. Tu, Alexandre [o bispo de Alexandria], perguntaste a teus padres o que cada um pensava sobre certo texto da Lei (Pr 8.22) ou, de preferência, sobre um detalhe insignificante. Tu, Ário, emitiste imprudentemente uma reflexão que não deveria ser concebida, ou, caso o fosse, não de-veria ser comunicada. A partir daí, instalou-se a divisão entre vós, a comunhão foi recusada, o povo santo se dividiu e a unidade foi rompida. Pois bem! Que cada um de vós perdoe o outro e siga os conselhos de vosso servo. De que se trata, portanto? Em princípio, não se devem formular essas questões para evitar a obrigação de respondê-las. Tais pesquisas não são prescritas por nenhuma lei, sendo sugeridas pela ociosidade, mãe das vãs querelas. Elas po-dem servir de exercício ao espírito, mas devem ficar guardadas em nós mesmos e não ser propostas levianamente nas reuniões públi-cas nem confiadas inconsideradamente aos ouvidos do povo. Com efeito, quantas pessoas existem que sejam capazes de compreen-der um assunto tão difícil, ou de explicá-lo convenientemente? Vós não tendes nenhuma incompatibilidade referente aos preceitos da lei e não introduziste nenhum novo dogma relativo ao culto de Deus. Ambos estais no mesmo sentimento e é fácil para vós entrar na mesma comunhão. Não é justo nem honesto que, disputando com obstinação acerca de uma questão insignificante, abuseis da autoridade que tendes sobre o povo, para comprometê-lo em vossas querelas...

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Embora professem a busca da verdade, os filósofos não concordam entre si em relação a vários pontos. Esses desacordos não os impedem de conservar entre si a unidade na mesma busca. Não seria mais justo que vós, que sois ministros de Deus, permanecês-seis unidos na profissão da mesma religião [...]? Podeis conservar a união, embora não estejais absolutamente de acordo no que diz res-peito a um artigo de importância bastante pequena. Tendes ambos a mesma fé referente à Providência e ao culto de Deus [...]. Conservai entre vós a sinceridade da amizade, a verdade da fé, a observação da lei de Deus. Recorrei à caridade e reconduzir o povo à união...

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Após ler a carta do imperador, Alexandre a considerou bastante di-plomática e ao mesmo tempo insultuosa. Com a rigidez de cada palavra escrita por Constantino, a perplexidade do bispo Alexandre foi inevitá-vel. Em seu diálogo com Ósio, o bispo não omitiu sua percepção do que estava acontecendo na mente do imperador. Se por um lado Alexandre preocupara-se com o fato de que Constantino chegara até mesmo a per-der o sono por causa da controvérsia teológica que tomara conta da igreja cristã no Oriente, por outro lado se admirava com a dificuldade do im-perador em identificar o perigo que o arianismo representava para a fé cristã. Para um historiador moderno não é difícil compreender as razões de Constantino em não dar importância à discussão em torno das idéias arianas. Sua não familiarização com a língua grega e seus compromissos políticos eram motivos suficientes para impedi-lo de simplesmente perce-ber a importância da controvérsia. Tais motivos justificam a condição de leigo em que Constantino se encontrava acerca dos princípios teológicos e até mesmo devocionais que a cristandade respectivamente cria e praticava. Ósio de Córdoba, conquanto tivesse recebido determinações para inves-tigar minuciosamente a questão ariana e suas controvérsias, demonstrava em determinados momentos certa preferência pela teologia do bispo Alexandre. Mas sua posição o impedia de tomar partido. Sua missão era simplesmente 44

COMBY, Jean. Para ler a História da Igreja I: das origens ao Século XV. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 91. Carta de Constantino ao bispo Alexandre e ao sacerdote Ário, extraída da obra Vida de Constantino, de Eusébio de Cesaréia (EUSÉBIO, Vida de Constantino., II, 69).

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comunicar as observâncias de Constantino e fazer com que este estivesse sempre bem informado a respeito do andamento das investigações. Certamente, diante de tantas indagações, (quem seria de fato o presbítero Ário e quais seus intentos? quem era o diácono de Alexandre e qual seu grau de participação no caso?) Ósio não enxergava outra saída a não ser permane-cer em sua exaustiva pesquisa e em seu permanente acompanhamento. É notório que quando Ósio chegou com a carta imperial, a quantidade de adeptos da teologia ariana já era suficiente para derrotar a posição do bispo Alexandre, caso houvesse uma votação. Nesse caso, a reação dos anti-arianos certamente não seria das melhores. Àquela altura, nenhum dos dois lados estava disposto a perder o debate. Alexandre e seu diácono Atanásio já haviam caracterizado o pensamento de Ário uma heresia contra a divindade do Filho. Por isso não é difícil deduzir qual seria a reação dos anti-arianos diante de uma possível derrota. Sobre a posição que seria tomada por Cons-tantino, considerando o insucesso de sua carta, Rubenstein comenta: Apesar do empenho de inúmeros bispos, que exigiam a reintegra-ção de Ário, ainda era duvidoso se o imperador aceitaria como re-sultado final o favorecimento dos arianos. A tendência era apoiar a autoridade contra qualquer rebelião e, afinal de contas, o bispo Alexandre tinha o poder de exercer toda a autoridade sobre os sa-cerdotes do Egito e da Líbia.

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Não há registros deixados por Ósio sobre ele ter conversado diretamente com Alexandre e com Atanásio. Mas é possível que isso tenha ocorrido, tendo-se em vista a competência do correspondente imperial em suas investigações e as pessoas com as quais ele se comunicaria, as de maior status na socieda-de composta por cristãos, sobretudo, as que protagonizavam a situação. Convencido da perspectiva defendida por Alexandre e Atanásio, Ósio resolveu comunicar o imperador sobre a importância da existência de uma igreja sem divisões em seu corpo doutrinário. Como os cristãos sem-pre estiveram convictos de que o Filho é Deus, Ósio salientou que tal unidade não poderia se romper. Caso contrário, até o império seria poli-ticamente prejudicado, pois precisava ter em seus territórios uma igreja 45

RUBENSTEIN, op. cit., p. 88.

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unida em todos os aspectos. Todavia, na correspondência ao imperador, Ósio esclareceu sobre a impossibilidade de uma solução entre arianos e anti-arianos. Apresentou sua opinião contrária aos pensamentos de Ário, além de sugerir uma estratégia que resolvesse a controvérsia que só pro-vocara inimizades entre os cristãos. No Oriente, os bispos já tinham conversado secretamente sobre a importância de um encontro que resolvesse assuntos que impediam um cres-cimento mais significativo do cristianismo. Ósio sugeriu ao imperador que convocasse um grande concílio, salientando a necessidade de que tal reu-nião ocorresse em uma localidade desfavorável a Ário e aos dois Eusébios. Assim seria mais tranqüilo para o imperador efetuar uma persuasão contra o arianismo, diante de todos os bispos que se reunissem no encontro. Ósio não se constrangeu em apresentar sua idéia ao imperador, afirmando que se Constantino defendesse a teologia de Alexandre dificilmente os bispos presentes se posicionariam contra sua autoridade política. Antes, porém, foi agendado um outro sínodo de bispos, que se reuniu em Antioquia entre 324 e 325, sob a presidência de Ósio, no qual fizeram-se presentes bispos da Síria, Palestina e toda a Ásia Menor. Um dos mo-tivos do encontro foi a sucessão do bispo Filogonio de Antioquia, recém falecido e um dos importantes aliados do bispo Alexandre. No intuito de preservar a teologia adotada pelo bispo falecido, Alexandre apoiou Eus-tátio, um dos candidatos à sucessão episcopal de Antioquia. Rubenstein comenta que “os arianos tinham 46

proposto um candidato próprio, apoiado por Eusébio de Cesaréia.”

O sínodo acabou se voltando mais para a controvérsia ariana do que propriamente na questão da sucessão de Filogonio. Aquela que era a ques-tão primária do encontro, tornou-se a secundária. Mesmo com a ausência de diversos arianos, como o bispo Paulino de Tiro, Eusébio de Cesaréia esteve presente com uma comitiva. Certo de sua capacidade retórica, Eu-sébio tencionava defender Ário, convidando a todos para que estivessem no encontro. É provável que Eusébio confiasse em seu prestígio diante dos outros bispos, além de se considerar inatingível devido ao relacionamento muito próximo que tivera de Constantino, anos antes.

46

Ibid., p. 92.

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Como Ósio já estava, quase declaradamente, a favor do bispo Alexandre e absolutamente contra Ário e suas idéias, dirigiu-se para Antioquia de navio pelo rio Orontes no início de 325, não apenas para presidir o sínodo, mas principalmente para defender a convicção cristã sobre a divindade do Filho. Alexandre e Atanásio elaboraram uma confissão de fé. Aprovado e assi-nado por 56 bispos, o documento sinodal, além de apresentar declarações anti-arianas, trouxe alguns anátemas contra aqueles que se recusavam em aceitar a perspectiva de que Jesus Cristo era o único Filho gerado do Pai, que não fora criado e que sempre existira, sendo, portanto, Deus imutável e inalterável. Como conseqüência, os pensamentos condenados pelo sínodo de Antioquia foram aqueles que afirmavam ser o Filho uma criação de Deus, não-eterno e nãoimutável por natureza. Assim Rubenstein complementa: Todos os presentes declararam sua adesão tanto à declaração quanto aos anátemas, exceto três bispos: Teódoto de Laodicéia, Narciso de Nerônia e Eusébio de Cesaréia. Como oficial presiden-te, Ósio chamou cada bispo isoladamente e diante de todo concílio questionou seus credos. Cada um expressou sua visão. O concílio então declarou as três visões heréticas e excomungou os bispos.

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Tendo-se em vista o quanto Eusébio de Cesaréia era benquisto pela cristandade, sua excomunhão teve repercussão bastante negativa, independentemente do motivo que gerou a situação. Como aconteceria o gran-de concílio ecumênico dentro de poucos meses, tanto Eusébio quanto os outros dois bispos excomungados teriam a chance de reconciliação com a igreja, desde que estivessem do lado que fosse aprovado pelo Concílio. Ósio então tratou de informar o imperador sobre os resultados do sínodo de Antioquia. Devido à responsabilidade com que desenvolvera a investi-gação e à propriedade com que presidira o encontro de bispos, que, em certo sentido, antecipou a condenação do arianismo, Ósio foi escolhido para presidir na pequena cidade asiática de Nicéia, o primeiro concílio ecu-mênico da história da igreja cristã.

47

Ibid., p. 93.

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03

O CONCÍLIO DE NICÉIA

Após verificar os antecedentes históricos do Concílio de Nicéia, resta considerar de que modo ocorreria aquele encontro que pretendia ser defini-tivo na resolução da controvérsia ariana. Em certo sentido, todos os sínodos anteriores foram suficientes para que a cristandade tivesse uma idéia de qual seria a posição optada pelos superiores que se reunissem em Nicéia. Para que o Concílio seja compreendido, não basta conhecer apenas o que foi visto até aqui. Os preparativos para o encontro também são de va-liosa importância, pois oferecem detalhes que sustentam o Concílio como fato de considerável relevância para a história da igreja, provando que aquela não foi uma reunião qualquer, mas um divisor de águas na história do dogma da divindade do Filho de Deus. A escolha do local, e os motivos que levaram à definição, as correspondências do imperador convocando os bispos e os lados (ariano ou anti-ariano), que teoricamente seria favorecido com a escolha de Nicéia como sede do Concílio, são peculiaridades que não podem ser omitidas, pois ba-seiam toda a reflexão histórica em torno da temática. Tradicionalmente, segundo Donini, a Igreja Romana leva em conside-ração os 21 concílios, qualificando-os como ecumênicos. Por outro lado, a tradição protestante reconhece apenas os quatro primeiros concílios: Ni-céia (325), Constantinopla (381), Éfeso (431) e Calcedônia (451).48 Roma, naquele período, experimentava uma realidade de crise civil diante da qual ninguém ousaria questionar as decisões do imperador. O fato é que anos antes, Constantino estava no trono do império ao lado de seu cunhado Licínio. Mas, em determinado momento, eles se confronta-ram, tendo Constantino prevalecido. Licínio, derrotado pelo irmão de sua esposa Constância, resolveu ir para Nicomédia. Sabendo que Eusébio fora aquele que ensinou os princípios da fé cristã a Constantino, Licínio pediu ao bispo que convencesse o imperador a perdoá-lo. Eusébio de Nicomédia 48

DONINI, op. cit., p. 232.

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e Constância foram até Constantino e conseguiram convencê-lo. Posterior-mente, Licínio foi até seu antigo companheiro de império e também ex-ad-versário para se reconciliar. Constantino além de perdoá-lo e de conceder-lhe a possibilidade de ir para Tessalônica, jurou não causar qualquer dano a Licínio ou à sua família. Todavia, meses depois, Licínio e o filho de apenas nove anos foram brutalmente estrangulados por homens jamais descober-tos. Há quem afirme estar Constantino envolvido nos crimes. Quando chegou a notícia sobre a morte de Licínio, o processo de convocação para o grande concílio já estava em andamento. A preocupação do imperador estava voltada quase que integralmente para a resolução do problema que aos poucos dividia a igreja; o que sem dúvida não seria in-teressante para Roma49, que vivia os piores momentos de sua história po-lítica. Vale lembrar que 50

no século IV, a Pax Romana já não existia mais, os bárbaros tentavam tomar o império e a economia de Roma experimentava uma de suas piores fases, senão a pior. Tendo em vista a progressão da reli-gião cristã, a maneira com que Constantino tanto a defendera – a começar pelo Edito de Milão em 313 – o Concílio era claramente uma estratégia que pretendia protelar a definitiva decadência do Império Romano. É importante conhecer o pano de fundo, pois Constantino seria um dos protagonistas do Concílio, por ele próprio presidido, embora não pas-sasse de um simples leigo em assuntos concernentes à teologia cristã.

Os preparativos para o Grande Encontro Para que o encontro ocorresse teria que ser muito bem organizado e preparado. Uma questão fundamental seria decidir o local em que o Con-cílio ocorreria. Anteriormente a cidade escolhida foi Ancira, na região da Galácia, mas a razão da mudança para outro local foi bastante peculiar e até mesmo preventiva, conforme o comentário de Perrone: A questão não é secundária, desde que se considere a importância que a situação geográfica adquire na história dos concílios ecumê-

49

Aqui o termo “Roma” não se refere apenas à cidade histórica, capital do Império Romano do Ocidente e que hoje é a capital da Itália, mas diz respeito à toda a extensão do império. 50

Nome dado ao período de paz e prosperidade econômica vivido por Roma nos pri-meiros séculos de império.

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nicos, e não só dos antigos. Talvez a escolha de Ancira – localida-de fora de mão em relação aos maiores centros eclesiásticos e à própria residência do imperador – tenha sido determinada inicial-mente pela presença, nessa sede episcopal, de um firme opositor do arianismo como Marcelo, antes que Constantino, com o pen-samento no resultado do concílio antioqueno, decidisse retomar a iniciativa de política mais moderada, de modo a evitar o apro-fundamento das diferenças entre os lados adversários, segundo a linha manifestada na sua carta a Alexandre e Ário.

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O imperador então decidiu pela cidade de Nicéia da Bitínia, na Ásia menor, bem próximo à Constantinopla. Era um dos lugares mais apreciados por ele, pois lá Constantino além de possuir uma residência, também tinha sua corte e seu capelão administrando todos os assuntos concernentes ao Império do Oriente e à Igreja. Constantino não viu razões para que o Concílio acontecesse em Roma, pois quando esteve no Ocidente, residira em Milão, fazendo com que a velha Roma ficasse totalmente esquecida por parte da corte imperial. Além disso, Nicéia realmente representava muito para o imperador. Quanto à decisão de mudança de Ancira para Nicéia e sobre a possível influência que o anti-ariano Marcelo poderia exercer no Concílio, Rubens-tein relata: Entre os motivos declarados oficialmente estava o ar maravilhoso de Nicéia, a beleza do lago, as instalações do palácio imperial que permitiam um encontro deste porte, e as dificuldades da viagem pelo interior dos bispos mais idosos. Mas certamente havia moti-vos mais complexos e interessantes em jogo. Ancara era a cidade do bispo Marcelo, e Marcelo – um homem brilhante, mas às vezes imprudente – era um advogado tão ferrenho da identidade de Cris-to com Deus que até os outros anti-arianos achavam seus pontos de vista controversos. Se o arianismo fosse condenado em Ancara, o local poderia sugerir que Marcelo havia desempenhado um papel determinante e que o resultado 52

do concílio teria sido forjado. 51 52

ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 23 e 24.

RUBENSTEIN, op. cit., p. 95 e 96. A diferença entre os termos Ancira e Ancara é apenas de tradução. Enquanto alguns autores preferem Ancira, outros – dentre os quais está Rubenstein – preferem traduzir como Ancara.

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Há também um terceiro motivo que fez com que o encontro não aconteces-se em alguma cidade do lado ocidental do império: naquele período, os clérigos orientais eram muito mais interessados em discussões teológicas que os cléri-gos ocidentais, o que não proporcionaria um debate de grandes repercussões. O Oriente tinha essa tendência de maior interesse pelas especulações sobre a teologia cristã, tanto que no século IV existia maior capacidade intelectual entre a população de fala grega, e menor entre o povo romano de fala latina. A mudança definitiva para Nicéia, além de motivos relacionados ao cli-ma e à proximidade que tinha das demais cidades do Oriente, pareceu ini-cialmente favorável aos arianos. Isso porque uma cidade muito próxima de Nicéia era Nicomédia, local onde residia o bispo Eusébio, declaradamente defensor de Ário e de suas idéias. Pelo prestígio que Eusébio possuía em sua região, poderia exercer considerável influência entre os bispos, fazendo com que o arianismo prevalecesse naquele encontro. No que tange os objetivos particulares que promoveram o Concílio de Nicéia, Perrone salienta: A iniciativa de convocar o concílio foi, sem dúvida, do imperador, embora não seja de se excluir a influência dos seus conselheiros de política eclesiástica, entre os quais sabemos que se destacava Ósio de Cordova. A presença do bispo espanhol ao lado de Cons-tantino, ainda que tenha contribuído para se fazer ouvir a voz do Ocidente, de modo algum portava representação formal de Roma. Por outro lado, as razões que levaram o imperador a convocar o concílio não residiam unicamente nos problemas [...] levantados no Oriente cristão pela controvérsia ariana. O programa de Cons-tantino era de alcance maior e visava realizar a pacificação geral e a nova organização da Igreja, que já se tornara importante institui-ção de apoio do Império Romano.

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Com o Concílio agendado e a cidade definida, as convocações foram enviadas aos bispos do Oriente. É importante considerar que muitos dos bispos convocados tinham sido vítimas da perseguição do império, antes do edito de 313. Se no período de perseguições religiosas muitos locais

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ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 24.

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onde os cristãos se reuniam, tinham sido transformados em locais de ado-ração pagã ou de culto ao imperador, com Constantino os líderes da re-ligião, antes perseguida, são convocados para um encontro de interesse mútuo, ou seja, tanto da igreja quanto do império. Todos os bispos do Oriente foram convocados para o Grande Concí-lio, além de não terem de se preocupar com qualquer despesa. Todos os gastos com transporte e hospedagem seriam por conta do império. Além de desfrutarem dessas regalias, os bispos ainda poderiam se hospedar na residência imperial, caso preferissem. Embora todos tenham sido convidados, nem todos compareceram. Certamente alguns pequenos detalhes, dentre os quais as dificuldades com o idioma, serviram de razão para que nem todos estivessem presentes em Nicéia, principalmente os bispos ocidentais. Provavelmente, conforme Ru-benstein assegura: ... a predominância do clero oriental pode ser atribuída à falta de interesse dos bispos ocidentais na controvérsia ariana, que ain-da parecia para a maioria um assunto “grego” meio obscuro. Mas também representava a extensão, a força e a vitalidade do cristia-nismo oriental – uma das razões porque Constantino tinha decidi-do localizar ali a nova capital na Ásia Menor.

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Segundo Latourette, “enquanto uma grande maioria era do interior do império, diz-se que veio um da Pérsia e talvez um dos godos. Também vie-ram muitos representantes do clero menor e dos laicos”.55 Donini informa que havia “certeza da presença de cinco bispos, um da Calábria, um da Gá-lia, um da Panónia, Ceciliano de Cartago e, da Hispânia, Ósio de Córdova”. E ainda que “assistiram todavia aos trabalhos, que se desenrolaram sob a direção do imperador, mais de duas mil pessoas”.56 O número aproximado de bispos presentes foi de pouco mais de trezen-tos. O papa Silvestre I (314 – 335) que não esteve presente no Concílio por 54

RUBENSTEIN, op. cit., p. 102.

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LATOURETTE, op. cit., p. 202. DONINI, op. cit., p. 233.

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problemas de saúde e pela idade bastante avançada, foi oficialmente repre-sentado por dois presbíteros chamados Vito e Vicêncio. Dos que estavam em Nicéia, muitos se conheciam apenas de ouvir falar ou então por meio das correspondências trocadas a fim de tratar das questões eclesiásticas. De todos os encontros e sínodos que a igreja organizara até aquele momento, o Concílio de Nicéia foi o que reuniu maior número de bispos e líderes. Daí uma das ra-zões iniciais de sua evidente importância para a história do cristianismo. É necessário salientar que não é possível estabelecer o número exato de bispos presentes no Concílio de Nicéia. O número de 318 bispos é sim-bólico e não exato, pois não há fontes que possibilitam tal certeza. A razão pela qual o número 318 foi adotado por alguns historiadores, está baseada na passagem bíblica acerca dos 318 servidores do patriarca Abraão. Por essa razão, após o quarto século, alguns estudiosos passaram a chamar o Concílio de Nicéia de o concílio dos 318 padres. Na abordagem feita por Hans Kessler, dos aproximados 300 participan-tes, apenas sete eram oriundos do Ocidente. Além dessa informação, Kessler ainda disserta sobre os partidos de diferentes idéias presentes no encontro: Podem-se distinguir três partidos no concílio: 1) os arianos e origenistas de esquerda, de orientação cosmológica, sob Eusébio de Nicomédia († 341), que ficaram na defensiva desde o início; 2) o partido origenista de centro, em geral com interesse mais cos-mológico do que soteriológico, que constituía o grupo principal e tinha em Eusébio de Cesaréia († 340) seu porta-voz; 3) os anti-arianos, com origenistas de direita, de orientação soteriológica e congregados em torno de Alexandre de Alexandria († 328), e não origenistas, congregados em torno de Eustácio de Antioquia († an-tes 337), Marcelo de Ancira († c. 374) ou Hósio de Córdova († 357), entre os quais se forma então a nova ortodoxia e que determinam substancialmente a decisão do concílio. Eles não se contentam em assumir o – equívoco – termo homousios (da mesma essên-cia, consubstancial), sugerido pessoalmente pelo imperador, numa confissão batismal mais antiga, formulada em termos histórico-salvíficos, mas acrescentam explicações adicionais em linguagem essencialista, visando excluir a doutrina de Ário.

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SCHNEIDER, Theodor (org.); KESSLER, Hans. Manual de Dogmática vol. 1, 2. ed. Petrópolis,

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Dos presentes no Concílio, muitos não eram clérigos. Entre leigos, di-áconos e presbíteros, estava presente o jovem Atanásio, auxiliar do bispo Alexandre. Sua presença tornou-se fundamental para que o arianismo fos-se condenado. Atanásio é um dos maiores, senão o maior, anti-arianos que estiveram em Nicéia, o que se tornou notável apenas com o andamento da reunião, pois a princípio sua participação foi bastante discreta. Embora Ário não estivesse presente, pois sua participação não foi per-mitida, alguns bispos de considerável importância o representaram. Eu-sébio de Cesaréia e Eusébio de Nicomédia, apesar de muito observados devido ao apoio declarado ao arianismo, eram seus principais defensores. A presença de muitos leigos na reunião, conforme afirmou Perrone, demonstrou “o grande interesse despertado pela controvérsia sobre o aria-nismo e a aproximação do momento conciliar às instâncias judiciárias, que requeriam a intervenção de pessoal especializado”.58 Assim estava tudo preparado para o início da grande reunião ecumênica que resolveria o pro-blema dogmático a respeito da divindade de Cristo. Foi no Concílio de Nicéia que a controvérsia seria resolvida e o dogma da divindade do Filho estabelecido; o que não significa o banimento daque-la controversa doutrina. O cristianismo já tinha como prática o culto à pes-soa de Jesus Cristo, reconhecendo-o como Deus. A reunião serviria tanto para refutar o pensamento de Ário como para fortalecer uma convicção já existente no seio da cristandade desde a fundação do cristianismo. O Filho não se tornou Deus em Nicéia, apenas passou a ser dogmaticamente reco-nhecido como tal, pois na prática de culto cristão isso já era uma certeza.

Peculiaridades históricas do Concílio As poucas e até repetitivas informações sobre o Concílio de Nicéia são suficientes para originar uma imagem de como tudo aconteceu. A data de início foi 20 de maio de 325, com Constantino presidindo a cerimônia no palácio imperial, precisamente no Salão de Julgamento do Imperador. Nas primeiras fileiras ficaram posicionados aqueles clérigos que possuíam maior

RJ: Vozes, 2000. p. 306. 58

ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 26.

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importância para a igreja. Após todos estarem acomodados, Constantino entrou de maneira cerimonial, com sua coroa de ouro e diamantes, e com suas vestes de púrpura. Sentou-se em uma poltrona totalmente trabalhada, em determinado ponto do Salão, afastado dos bispos. Após todos estarem acomodados, o bispo Eusébio de Cesaréia se levantou para iniciar a reunião, dando boas-vindas a Constantino àquele momento conciliar da cristandade. Quanto a isso, Perrone levanta a possibilidade de Eustáquio de Antioquia ter sido o bispo que proferiu as primeiras palavras do encontro. Perrone com-plementa que “o imperador responde à saudação com uma alocução em que renova os augúrios da concórdia eclesial. De novo Constantino recorda a recente vitória contra Licínio e a desagradável surpresa de ver perturbada a paz da igreja, no momento em que a ordem do Estado fora restabelecida”.59 Informações históricas afirmam que Eusébio de Cesaréia relatou posteriormente sobre o Concílio, destacando que Constantino teve ao lado e em todo o tempo o seu fiel emissário Ósio de Córdoba. Afirma-se que diver-sas vezes ele sussurrava nos ouvidos do imperador, ato muito contestado por presentes, porém silenciado pelos guardas imperiais. Apenas 28 bispos presentes eram arianos declarados. Como Ário não teve licença para participar, foi representado por Teogno de Nicéia e Eusé-bio de Nicomédia. Sobre tal afirmação, Rubenstein parece discordar, pois comenta que assim como Atanásio, Ário também estivera presente, contu-do, na condição de padre e não de bispo. O imperador também expôs seus intuitos públicos e políticos, discur-sando brevemente em latim com uma tradução grega proferida por seu tra-dutor particular, do qual não se tem o nome. O pronunciamento de Cons-tantino foi aceito e aprovado pelos presentes. Nele, o imperador comparava aquela controvérsia a uma guerra civil e apelava aos cristãos presentes que expusessem suas idéias da maneira mais honesta e convicta possível, pois apenas assim a paz reinaria na Igreja Oriental. Alexandre, contando com o auxílio do jovem Atanásio, dirigiu o proces-so jurídico contra as perspectivas arianas. Todavia, a convicção dos bispos arianos presentes no Concílio era inegociável, pois acreditavam na possibi-lidade de persuadirem tanto os demais bispos como o próprio Constantino.

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Ibid., p. 27.

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Após possível manifestação de alguns lucianistas, Eusébio de Cesaréia teria apresentado na reunião o credo professado por sua igreja local, propondo assim uma alternativa para se resolver o problema em torno da discussão. Rubenstein discorre com o seguinte comentário a respeito da manifestação de Eusébio de Cesaréia: Não foi possível estabelecer precisamente a ordem dos eventos de-pois do discurso de Constantino, mas parece que Eusébio de Ce-saréia justificou logo no início do debate a própria ortodoxia. Seus juizes nominais eram os bispos, mas a audiência verdadeira a quem seu apelo se dirigia era o imperador. Ele apresentou um credo pró-prio que, segundo disse, era baseado no credo batismal tradicional usado na sua cidade e com base nisso pediu que o readmitissem à comunhão juntamente com seus bispos correligionários.

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A proposta doutrinária de Eusébio era bastante próxima da teologia defendida pelo bispo Alexandre, conseqüentemente distinta da opinião aria-na. Mesmo em excomunhão, Eusébio de Cesaréia apresentou uma versão dogmática sobre Jesus Cristo que poderia até ser considerada como mais próxima da perspectiva contrária aos conceitos de Ário. O credo proposto por Eusébio na intenção de solucionar o problema ariano dizia: Creio em um só Deus, Pai, todo-poderoso, criador de todas as coi-sas visíveis e invisíveis. Um Senhor Jesus Cristo, o Logos [a palavra] de Deus, Deus de Deus, luz de luz, vida de vida, Filho gerado, o primeiro gerado de toda a criação, gerado antes de toda eternidade pelo Pai, através de quem vieram todas as coisas. Deus que para nos salvar foi encarnado e viveu entre os homens, que sofreu e ressus-citou no terceiro dia, ascendeu aos céus para junto do Pai, e voltará com toda a pompa e glória para julgar os vivos e os mortos.

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Para Constantino, o credo de Eusébio seria suficiente para solucionar o problema. A única observação feita pelo imperador foi a de que deveria ser acrescentado no texto um termo que explicasse a co-substancialidade 60

RUBENSTEIN, op. cit., p. 105.

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KELLY, J. N. D. Early Christian Creeds. 3. ed. Londres: Longman, 1972. p. 182.

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do Filho em relação ao Pai. O termo grego é ομοούσιος, que na verdade é uma união de duas palavras que juntas significam “da mesma substância”. Sendo inserido o termo, o credo estaria então afirmando que o Filho e o Pai são coeternos, ou seja, da mesma essência e da mesma substância. Até o termo ομοούσιος não estar no texto, a teologia de Ário não seria afeta-da. Porém, com a inserção, o credo deixava de ser aparentemente ariano e passava a ser totalmente ligado à perspectiva defendida por Alexandre. Retomando o pensamento de Ário e identificando-o na proposta de Eu-sébio, é importante frisar que o presbítero controverso não negava a divin-dade do Filho, mas dizia que tal divindade era metafórica. Jesus Cristo só era divino pelo fato de ter sido adotado por Deus como seu Filho. Nesse sentido, tornou-se Deus devido a relação íntima de adoção com o Deus verdadei-ro, mas não era eternamente divino. A partir do momento que ομοούσιος foi acrescentado no texto de Eusébio, a convicção ariana foi removida. A sugestão de Constantino certamente partiu da influência de Ósio de Córdoba, que enxergou a ortodoxia ariana no texto de Eusébio, vendo o quanto o Filho fora condicionado a uma subordinação diante do Pai. A fim de combater tal conceito, Ósio possivelmente foi quem informou o imperador sobre a necessidade de complementar o texto com o termo que posicionaria o Pai e o Filho na mesma condição no que diz respeito à divindade. Perrone salienta ao comentar sobre o credo proposto por Eusébio que por meio daquelas “inserções anti-arianas declara-se com maior evidência o objetivo doutrinário de Nicéia, destinado a combater erros específicos professados pelo arianismo ou, pelo menos, atribuídos a ele pela maioria do episcopado”.62 Com a proclamação de que o Filho e o Pai são da mesma ουσία, ou seja, da mesma substância divina, conseqüentemente seriam essencialmente iguais. Com a definição, nenhum ariano convicto se submeteria em assinar o documento que professasse tal teologia. O que a história parece demonstrar sobre esse momento, é que Constantino não percebeu a possibilidade de um protesto ou manifestação daqueles arianos que considerassem o termo ομοούσιος uma provocação mais do que uma tentativa de solucionar a con-trovérsia. Isso porque a palavra ομοούσιος, conforme nos informa Rubens-

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ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 30.

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tein, era um termo que “já havia transitado nos círculos teológicos orientais por algum tempo, mas a maioria dos clérigos não gostava dele, já que era um termo usado na filosofia grega e que não se encontrava na Escritura. Além disso, [...] o termo tinha sido associado com a heresia de Sabélio”. Após as discussões iniciais sobre a controvérsia, os arianos tiveram a oportunidade de expor seus pensamentos. É provável que Eusébio de Nico-média tenha lido uma carta que ele mesmo escrevera para os bispos presen-tes. Conforme a informação dissertada por Olson, a declaração de Eusébio teria ocorrido de forma bastante infeliz e desastrosa para os arianos: Logo após a abertura do sínodo, alguém solicitou a leitura da posi-ção ariana para que pudessem saber exatamente o que seria debati-do. Nesse momento, os arianos, ou pelo menos alguns deles, come-teram um grave erro estratégico. Alexandre e seus bispos devem ter ficado muito satisfeitos. O bispo Eusébio de Nicomédia levantou-se diante do concílio e leu uma negação clara e direta da divindade do Filho de Deus, enfatizando que ele era uma criatura e de nenhum modo igual ao Pai. [...] Antes que Eusébio terminasse a leitura, al-guns bispos já tampavam os ouvidos com as mãos e gritavam para que alguém pusesse fim às blasfêmias. Um bispo que estava perto de Eusébio deu um passo à frente, arrancou-lhe o manuscrito das mãos, jogou-o no chão e pisoteouo. Houve comoção entre os bis-pos que só foi interrompida por ordem do imperador.

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Depois da manifestação de revolta pelo que se tinha proferido contra a divindade do λόγος, o ambiente ficou mais propício para que a posição aria-na fosse reprovada. Historiadores afirmam que a carta lida por Eusébio foi reduzida a pedaços por aquele bispo que a tomou de suas mãos. Também há informações de que mais tarde, o conhecido bispo Ambrósio de Milão (337-397), ao comentar sobre esse episódio envolvendo Eusébio de Nicomédia, confirmaria que naquela carta havia um explícito desdém à perspectiva de defesa à divindade do Filho. Segundo Rubenstein, Ambrósio comentara: Uma passagem da carta mencionava a palavra homoousios zombeteiramente, para mostrar como era ridículo igualar o Filho ao 63

OLSON, op. cit., p. 157.

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Pai: imagine! Alguns tolos afirmarem que Jesus Cristo, o Filho de Deus, e o Criador onipotente, incognoscível, eram feitos da mes-ma matéria essencial. [...] Dificilmente uma idéia poderia ser mais absurda 64

que esta!

Não há dúvidas de que esse momento do Concílio tenha sido positivo para o bispo Alexandre e seu diácono Atanásio. Após a inserção do termo ομοούσιος no credo de Eusébio de Cesaréia, surgiu uma dúvida na mente dos arianos do porquê de ele aceitar tal acréscimo. Além de concordar com a inserção de ομοούσιος, Eusébio foi conseqüentemente aceito pela igreja que antes o excomungara por ter supostamente defendido a perspectiva ariana. Com os acréscimos, o credo ficou da seguinte forma: Πιστεύομεν εις ένα θεον πατέρα παντοκράτορα, πάντων ορατων τε και αοράτων ποιητήν. Και εις ένα κύριον `Ιησουν Χριστόν τον υιον του θεου γεννηθέντα εκ του πατρος μονογενη τουτέστιν εκ της ουσίας του πατρός, Θεον εκ Θεου, φως εκ φωτός, Θεον αληθινον εκ θεου αληθινου, γεννηθέντα ου ποιηθέντα, ομοούσιον τω πατρί, δι’ ου τα πάντα εγέ-ντο, τα τε εν τω ουρανω και τα εν τη γη, τον δι’ ημας τους ανθρώ-πους και δια την ημετέραν σωτηρίαν κατελθόντα και σαρκωθέντα, ενανθρωπήσαντα, παθόντα και αναστάντα τη τρίτη ημέρα, ανελθό-ντα εις τους ουρανούς, ερχόμενον κριναι ζωντας και νεκρους. Και εις το αγιον πνευμα. Τους δε λέγοντας ην ποτε ότε ουκ ην και πριν γεννηθηναι ουκ ην και ότι εξ ουκ οντων εγένετο, η εξ ετέρας υποστάσεως η ουσίας φάσκοντας ειναι η κτιστον η τρεπτον η αλλοιωτον τον υιον του θεου, τους αναθεματίζει η καθολικη και αποστολικη εκκλησία.

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Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coi-sas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas 64 65

RUBENSTEIN, op. cit., p. 108.

DROBNER, Hubertus R. Manual de Patrologia, 1. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, p. 251 e 252.

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todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e nova-mente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele era quando não era”, e “Antes de nas-cer, Ele não era”, ou que “foi feito do não existente”, bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência”, ou “feito”, ou “mutável”, ou “alterável” a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatematiza.

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As decisões do Concílio Após a definição do Credo, o concílio prosseguiu em suas decisões finais no que tange à discussão em torno da controvérsia. Os arianos mais convictos não aceitaram o Credo, considerando-o bastante suspeito e obscuro em sua linguagem. O termo ομοούσιος ainda causava profundo incômodo aos seguido-res de Ário. Em determinado instante, por ordem imperial, os bispos presentes foram impelidos a assinar um documento no qual continha o Credo já definido. Assim, quem assinasse o documento estaria declarando concordar com a teo-logia presente no Credo. Rubenstein solidifica essa informação comentando: Em meados de junho, Ósio percebeu o óbvio: apesar de todas as diferenças de interpretação, a grande maioria dos bispos estava disposta a assinar o credo. Por isso, ele leu o documento em voz alta antes da assembléia, declarando que representava a posição da Santa Igreja Apostólica. Constantino então mandou distribuir uma cópia do documento para cada bispo para que fosse assina-do imediatamente. Todos assinaram, à exceção de dois seguido-res mais dedicados de Ário, da Líbia, que o imperador mandou imediatamente para o exílio juntamente com Ário e vários padres. Todos os outros assinaram, inclusive os dois Eusébios, Paulino de Tiro e Teógnis de Nicéia. Segundo um historiador antigo, os bispos exilados da Líbia, ao deixarem o salão, pararam diante do seu ex-líder, Eusébio de Nicomédia, e o criticaram duramente por ele ter se curvado ao desejo do imperador.

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BETTENSON, Henry. Documentos da Igreja Cristã, 3. ed. São Paulo: ASTE/Simpósio, 1998, p. 62.

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RUBENSTEIN, op. cit., p. 111.

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Pelo fato de Constantino influenciar sobremaneira nas decisões finais do Concílio, não significa que tenha sido ele o mentor do dogma da divin-dade de Jesus Cristo, conforme muitos defendem de maneira equivocada. Entretanto, não é incorreto concluir que muitos bispos arianos foram co-agidos a assinar o documento de oposição ao pensamento de Ário. Alguns deles chegaram depois a se explicar pelo que fizeram. Eusébio de Nico-média chegou a emitir uma longa correspondência aos seus congregados afirmando que o termo ομοούσιος não tinha realmente o significado que o Concílio lhe atribuíra. Segundo Eusébio, ele só assinara porque em sua perspectiva, o termo ομοούσιος não definia teologicamente que o Filho pos-suía a mesma essência e substância do Pai. Logo, o Filho não era Deus. Eusébio de Nicomédia ainda chegou a hospedar alguns arianos em sua cidade, o que possivelmente tenha sido o motivo pelo qual Constantino o mandaria para o exílio junto a Teógnis de Nicéia. No mesmo Concílio aproveitou-se ainda para serem esclarecidas ou-tras questões que incomodavam a vida da igreja. A data para a celebração da Páscoa e da Ressurreição foram então definidas, resolvendo assim outra controvérsia em andamento. Fixou-se também um determinado número de ordenanças para com o episcopado. Limitou-se a coabitação das mu-lheres com o clero. De acordo com Sócrates, um historiador do início do quinto século, alguns bispos impuseram aos clérigos que já eram casados, a renúncia à vida conjugal. Sobre esse momento de finalização do grande encontro ecumênico da igreja do quarto século, Robert A. Baker comenta: Após o credo ocorreu a condenação de todos os que negaram sua doutrina, mencionando-se especificamente a declaração dos aria-nos de que Cristo não existiu por toda a eternidade. Deve-se notar que este credo faz prevalecer a unicidade de Cristo com Deus e Pai. As palavras mais importantes eram “de uma só substância com o Pai”. Constantino decidiu então que este credo traria paz religiosa e política, evidentemente com o conselho do bispo Ósio de Córdo-ba, seu conselheiro eclesiástico. Por isso, com sua aprovação foi adotado o credo, e dirigiu um decreto de deportação contra Ário e os que seguiram seu critério. [...] Mais tarde, Constantino mudou de posicionamento a nível de idéias doutrinárias, e fez Ário voltar do exílio, para que então Atanásio fosse exilado. Uma mudança

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de pensamento doutrinário não influenciou sua mente política. É provável que Constantino tivesse pouca compreensão acerca dos princípios do cristianismo. Seu batismo diferente, suas normas éticas e morais, e sua retenção do ofício pagão que garantia seu lugar como deus romano após sua morte, eram em si mesmos evi-dências de seu caráter espiritual.

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Em resumo, após a resolução do problema em torno da controvérsia aria-na, outras questões foram resolvidas. Contudo é importante destacar que a condenação de Ário e de seus seguidores não significou o fim do arianismo. Essa perspectiva, apesar de considerada herética por parte da igreja reunida em Nicéia, continuou alcançando mais adeptos. Até mesmo um dos sucesso-res e filho do imperador, por ser ariano convicto, adotaria o arianismo como movimento religioso oficial do império enquanto esteve no poder político de Roma. Trata-se de Constâncio, sobre quem comentaremos mais à frente. A fim de despedir-se de maneira formal e ao mesmo tempo amigá-vel, Constantino organizou em seu palácio um inesquecível jantar para os bispos que estiveram em Nicéia naquele período de decisões conciliares. O motivo do jantar de despedida era duplo: o primeiro era em função do aniversário do imperador e o segundo era em função do encerramento do Concílio Ecumênico. Barnes menciona que sobre esse último encontro en-tre bispos e imperador, Eusébio de Cesaréia teria comparado a um encontro celestial de Cristo com seus discípulos. Constantino teria cumprimentado e elogiado os bispos pela compe-tência eclesiástica demonstrada durante a estadia, além de presenteá-los. Após compartilhar sobre sua suposta experiência de conversão ao cristia-nismo, Constantino esclareceu a respeito da intenção de defender a causa cristã enquanto estivesse à frente do império. Conclamou-os a permane-cerem firmes e convictos quanto ao que fora definido no Concílio, além de salientar sobre sua crença de que Deus teria sido o único e verdadeiro condutor daquelas decisões. Independentemente da decisão que o Concílio de Nicéia tenha toma-do em relação à controvérsia ariana, duas coisas devem ser enfatizadas. 68

BAKER, Robert A. Compendio de la Historia Cristiana, 1. ed, Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1974, p. 63s.

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Primeira, que a crença na divindade de Cristo era uma convicção prática e teológica dos cristãos que viveram antes de Nicéia; o que será comentado no capítulo dedicado aos pais da igreja pré-nicenos. Ainda que Constantino tivesse todos os interesses políticos por trás de sua intromissão na contro-vérsia, não foi ele que, por assim dizer, inventou a divindade de Cristo. Se-gunda, como diz Roque Frangiotti, não pode ser negado que “começa aqui uma longa história em que o poder civil e o eclesiástico se dão as mãos”.69

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FRANGIOTTI, op. cit., p. 94.

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O ARIANISMO APÓS O CONCÍLIO

Este capítulo tem a pretensão de apresentar duas relevantes aborda-gens históricas. Primeiramente a pesquisa se detém em aspectos pessoais daquele que se tornou a principal personagem do Concílio, por ter defendido categoricamente a divindade do Filho diante da controvérsia ariana. Trata-se de Atanásio que inicialmente tivera uma participação muito discreta, mas que durante o desenrolar do encontro se manifestou como um dos teólogos de grande competência entre os que estavam presentes. De simples diáco-no e auxiliar do bispo Alexandre, o modesto Atanásio tornou-se o primeiro maior defensor da convicção cristã a respeito da divindade do Filho, o que o colocaria na condição de um dos mais importantes pais da igreja antiga. As experiências pós-nicenas de Atanásio ocorreram paralelamente ao fato que terá evidência nos segundo e terceiro tópicos do presente capítulo. A reação ariana após ter seu grande mentor condenado e exilado, não demora-ria para acontecer. Ário e todos os demais cristãos que adotaram sua teologia foram aos poucos se manifestando e mostrando para a cristandade da época, que não estavam anulados, apesar de condenados. Com a morte de Cons-tantino a reação ariana se tornaria ainda mais evidente. O principal fator que contribuiu para que isso ocorresse foi que Constâncio, um dos filhos de Cons-tantino, era declaradamente contra as decisões nicenas. Quando ele se tornou o único imperador romano, após a morte de seus dois irmãos Constantino II e Constante, seria muito mais fácil fazer de Roma um império ariano. Sendo assim, os arianos passaram a ter tantos privilégios, que não havia quem dissesse ter sido Ário condenado alguns anos antes por um concílio oficial da igreja. Do mesmo modo, Atanásio sofreria diversas per-seguições – mesmo antes de Constantino morrer – chegando a ser cinco vezes exilado, o que não era comum ocorrer com um bispo da igreja. O de-senrolar desse novo período e o epílogo de toda a sua abordagem histórica será nosso objeto de reflexão nas próximas páginas.

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A relevância de Atanásio Atanásio nasceu em 295 d.C. na cidade de Alexandria, tendo recebido desde cedo uma formação clássica de elevadíssimo nível, embora alguns estudiosos da Patrística como A. Hamman afirmem não existir informações precisas sobre sua formação: Nada sabemos a respeito de sua formação, de seus mestres, de seus estudos. Ele próprio conta-nos que alguns de seus mestres pereceram durante a perseguição. Eram, portanto, cristãos. Foi a Igreja que formou Atanásio. De certo modo, é aí que ele faz carrei-ra. É seu ambiente de vida, sua pátria, sua família. Ele a defenderá com a intrepidez com que os filhos defendem sua mãe.

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Ainda jovem, conheceu as perseguições de Diocleciano, as quais terminaram em 305 com a morte do imperador. Isso pelo fato de Diocleciano ter sido o último dos imperadores romanos que exerceram impiedosas perseguições aos cristãos da Idade Antiga. O desenvolvimento de Atanásio aconteceu em ambiente cosmopolita em que proliferavam maniqueus e gnósticos 71. Possuía uma inteligência pe-netrante e era acostumado às sutilezas do espírito oriental, porém, saben-do desmascarar as aparências falsas e livrar-se de armadilhas. Atanásio também era muito conhecido, principalmente pelos mais simples, como os marinheiros do porto de Alexandria. Acreditava que se a doutrina ariana não fosse condenada pela igreja, o cristianismo padronizado genuinamente na proposta do evangelho chegaria ao fim. Antes de Nicéia, Atanásio era apenas um diácono de Alexandria, mas após o Concílio se tornou o principal nome da igreja no processo de oposição à teologia ariana. Três anos após o Concílio, com a morte de Alexandre em 70 71

HAMMAN, A. Os Padres da Igreja, 3. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1980, p. 109.

Maniqueus: seguidores do maniqueísmo, movimento propagador do seguinte ensi-namento: o Universo foi criado por dois princípios antagônicos: Deus representando o bem e o Diabo representando o mal. Gnósticos: seguidores do gnosticismo, o qual afir-mava se fundamentar no conhecimento (gr: γνώσις), que eles consideravam uma sabe-doria mística e sobrenatural, que os conduziria a um pleno entendimento do universo. Ter esse conhecimento seria salvar-se deste mundo. Eles não criam na encarnação e na ressurreição de Cristo.

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328, Atanásio o sucedeu na mesma cidade onde atuara como diácono. Mas isso não impediu que o empenho demonstrado na defesa da fé apostólica lhe custasse cinco exílios. Berthold Altaner e Alfred Stuiber são os historiadores que melhor sintetizaram a respeito dos exílios sofridos por Atanásio: Quando Atanásio recusou readmitir Ário na Igreja, o sínodo de Tiro (335), em conseqüência de falsas acusações dos melecia-nos, o depôs e o imperador Constantino o exilou para Tréveros (1º exílio). Após a morte deste, pôde regressar, em 337, a Alexan-dria. Pouco depois, foi deposto novamente pelo Sínodo de Antio-quia (339). Atanásio refugiou-se (340) junto do papa Júlio I, em Roma (2º exílio). Só em 346, morto Gregório, o bispo intruso em sua sede, o imperador Constâncio, a pedido do Sínodo de Sárdica (343), permitiu seu retorno a Alexandria. Quando, sob a pressão do imperador Constâncio, pessoal-mente presente ao Sínodo de Milão (355), este procedeu, mais uma vez, à sua deposição, Atanásio abrigou-se (350) entre os mon-ges do deserto egípcio (3º exílio); teve por sucessor a Jorge, da Capadócia (assassinado em 361). Chamado de volta pelo impe-rador Juliano, juntamente com outros bispos exilados, Atanásio trabalhou com ardor e zelo e, em particular, mediante as decisões de um sínodo em Alexandria, em 362, pela reconciliação entre os semi-arianos e os adeptos de Nicéia. Em conseqüência disso, foi expulso, ainda no mesmo ano, “como perturbador da paz e inimi-go dos deuses” (4º exílio); pôde, no entanto, regressar depois da morte de Juliano (363). O 5º exílio lhe sobreveio sob Valente (365). Diante da atitude firme e ameaçadora dos fiéis, porém, foi cha-mado novamente, passados 4 meses (366); e de então em diante, pôde governar em paz sua grei, até sua morte, em 373.

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Uma fonte mais precisa afirma que o bispo Atanásio morreu na noite de 2 para 3 de maio de 373, em Alexandria. Sobre a importância histórica de sua personalidade e de seu pensamento teológico, Earle E. Cairns comenta: Atanásio constituiu-se no principal defensor daquilo que seria a interpretação ortodoxa. Seus pais, ricos, tinham lhe permitido 72

ALTANER, Berthold e STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrina dos padres da Igreja, 2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1972, p. 275 e 276.

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receber sua educação teológica na famosa escola catequética de Alexandria. Sua obra “De Incarnatione” indicava qual era a sua cristologia. No concílio, este jovem, de menos de 30 anos, defen-deu a idéia de que Cristo existiu desde a eternidade com o Pai e era da mesma essência (homoousios) com o Pai, embora fosse uma personalidade distinta. Ele insistia nesta interpretação porque cria que, se Cristo fosse menor do que Ele mesmo afirmava ser, não poderia ser o Salvador dos homens. Segundo Atanásio, o relacio-namento entre Pai e Filho tinha muita importância na questão da salvação eterna do homem. Achava ele que Cristo era co-igual, coeterno e da mesma substância com o Pai, e, por estas idéias, ele conheceu o exílio cinco vezes antes de morrer.

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Cairns ainda ressalta que Atanásio recebera sua educação teológica na escola catequética de Alexandria, o que pode estar de acordo com as pers-pectivas de Altaner e Stuiber. Atanásio usou diversas deduções a fim de combater o pensamento aria-no. Inicialmente utilizou as Escrituras, apresentando o ensinamento bíblico que defende a deidade de Cristo, aproveitando para responder aos argumen-tos que eram usados por Ário. Ainda afirmou que as passagens erradamente usadas pelos arianos no intuito de provar a inferioridade do Filho em relação ao Pai, eram momentos nos quais as Escrituras referem-se à natureza humana de Jesus. A segunda atitude de Atanásio foi apelar para a adoração a Cristo, tanto do Novo Testamento como em sua própria época. Se o Filho não fosse Deus, o ato de adorá-lo poderia ser interpretado como uma forma de idolatria. Em sua terceira argumentação, Atanásio salienta que apenas Deus é capaz de salvar o homem – assunto registrado em seu texto A encarnação do Verbo. Williston Walker, além de reconhecer a importância de Atanásio para os posicionamentos teológicos definidos no Concílio, explica a relação entre a questão debatida e a soteriologia, de acordo com a interpretação de Atanásio: Para ele (Atanásio), a questão debatida tinha a ver com a salvação, e a fonte principal de sua força estava em haver conseguido que ela fosse assim compreendida. O conceito grego da salvação havia

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CAIRNS, Earle E. O cristianismo através dos séculos: uma história da Igreja Cristã, 2. ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 1995, p. 108.

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sido, desde os primórdios da tradição da Ásia Menor, a transforma-ção da mortalidade pecaminosa do homem em uma divina e bem-aventurada imortalidade – a infusão de “vida”. Somente unindo-se a perfeita divindade com a perfeita humanidade, em Cristo, pode-ria cumprir-se a transformação do humano em divino, nele, ou ser comunicada por ele aos seus discípulos. Como afirmou Atanásio: “(O Cristo) foi feito homem para que nós pudéssemos ser feitos divinos”. Ao seu modo de ver, o grande erro do arianismo era que sua idéia não dava base para uma real salvação.

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A última defesa de Atanásio sobre a divindade de Cristo consiste de temas filosóficos, como afirmar que Deus jamais teria sido irracional sem sua razão ou palavra. Em um de seus escritos após o Concílio, Atanásio enfatizou sobre a cosubstancialidade do Filho em relação ao Pai: Fosse ele [o Verbo] uma mera criatura e não teria sido adorado nem mencionado [como na Bíblia]. Mas ele é de fato o verdadeiro descendente da substância do Deus que é adorado, seu Filho por natureza, não uma criatura. Portanto ele é adorado e crido por ser Deus [...] Os raios do sol pertencem realmente a ele e apesar disto a substância do sol não é dividida nem diminuída. A substância do sol é indivisa e seus raios são perfeitos e indivisos. Estes raios não diminuem a substância da luz, mas são um verdadeiro descenden-te dela. Assim também nós entendemos que o Filho é gerado não de fora do Pai mas do próprio Pai. O Pai continua indiviso enquan-to “o selo de sua substância” (Hebreus 1.3) é eterno e preserva a semelhança e a imagem 75

imutável do Pai.

Para complementar, é relevante considerar a importância de outra personagem do Concílio de Nicéia e de seu contexto. Trata-se do já citado Marcelo de Ancira, audaz defensor do monarquianismo econômico. Nessa perspectiva, conforme comenta Padovese: ... Deus é uma mônada indivisível e o Logos uma faculdade operativa deste, desprovida de real subsistência. No momento da encarnação, 74

WALKER, Williston. Historia de la Iglesia Cristiana, 1. ed. Buenos Aires: Editorial “La Aurora”, 1957, p. 118. Livro publicado em português pela Editora ASTE. 75 Orações contra os Arianos 2:24,33.

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a mônada ter-se-ía dilatado – mas sem distinção de pessoas – em díade e, com o envio do Espírito Santo, em tríade. Trata-se, porém, de uma fase de passagem ligada à economia (criação e redenção) e, ao seu término, a tríade seria reabsorvida na mônada originária.

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Assim como Atanásio, Marcelo é um dos principais adversários do arianismo. Antes, durante e depois do Concílio, ele sempre se posicionou decididamente contra as idéias de Ário, não se importando com qualquer conseqüência que essa oposição pudesse gerar. Em um momento futuro, suas perspectivas seriam colocadas em questão e condenadas durante uma reunião de bispos em Constantinopla convocada por Eusébio de Nicomé-dia. Além de condenado, Marcelo foi submetido a um exílio no Ocidente. Entretanto, este foi um dentre tantos momentos de condenação e exílio que Marcelo viveria ao lado daqueles que compartilhavam de suas convic-ções anti-arianas, inclusive Atanásio. Sobre a experiência de Atanásio como bispo de Alexandria, comenta-remos no próximo tópico, onde também trataremos da posterior expansão do arianismo, mesmo depois de condenado em Nicéia. Com a morte de Constantino em 337, o novo processo de expansão do pensamento ariano se tornou mais dinâmico, mesmo com Ário tendo morrido antes do impe-rador. O fato de um dos herdeiros do trono ser declaradamente ariano e conseqüentemente antiniceno, fez com que o império ficasse dividido até no aspecto teológico. Assim, a controvérsia mesmo já considerada heréti-ca, não deixava de se espalhar pelos territórios do império.

A questão ariana após o Concílio Tencionando fechar a abordagem histórica aqui proposta, é importan-te destacar sobre o processo de expansão do arianismo pós-niceno. Não apenas após a morte do imperador, mas até mesmo imediatamente após as decisões do Concílio. 76

PADOVESE. op. cit., p. 71. Mônada: segundo Gottfried Wilhelm von Leibniz, mônadas são substâncias simples (imateriais) que teriam em si a sua própria determinação, per-feição essencial e finalidade interior (centros de força que comporiam a realidade, sós ou agregados) MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual Esquemático de História da Filosofia, 1. ed. São Paulo: Editora LTR, 1997, p. 145.

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Com a ascensão de Constâncio ao domínio de todo o império, o arianis-mo não seria somente privilegiado pelo fato de o novo imperador ser ariano, mas fundamentalmente por ele ter espontaneamente concedido todo o apoio que um movimento religioso poderia receber de uma autoridade política. Os antecedentes históricos à momentânea preponderância a que che-gou o arianismo são demasiadamente importantes, não podendo ser omi-tidos. É certo que alguns níveis de detalhamento não serão citados, porém, quanto à essência das informações não há por que escondê-las. Rubenstein destaca que antes da transição política no império, “Ário e vários seguidores se encontravam no exílio em Iliria, próximo à costa da Dalmácia. [...] Eusébio de Nicomédia, banido do Oriente, estava na Gália, provavelmente com 77

Teógnis de Nicéia e um pequeno grupo de escolta”. Trata-se de um momento em que os arianos desenvolviam um plano de reaparecimento no cenário da igreja cristã do Oriente. Constantino, porém, não pretendia experimentar um novo período de controvérsias, muito me-nos de procedência ariana. Para ele já estava tudo definido após Nicéia. A estratégia inicial dos arianos partira do próprio Ário e seu velho companheiro Eusébio de Nicomédia. Com o argumento de que aceitariam o credo niceno, ou seja, de que não tinham qualquer dificuldade com o uso do termo ομοούσιος, solicitaram uma reconciliação com todos os clérigos anteriormente opostos às convicções arianas. Em torno de 327, os arianos estavam dispostos a montar sua cam-panha de reintegração na Igreja. Nisso tiveram o apoio incons-ciente dos antiarianos que imaginaram consolidar sua aparente vitória de Nicéia, denunciando aqueles cuja interpretação do Cre-do niceno julgassem herética. Eusébio de Cesaréia era um alvo óbvio para esses adeptos da linha dura, já que, antes mesmo da sua partida para Nicéia, ele havia escrito uma carta à sua con-gregação, explicando que homoousios não significava que Jesus e Deus eram idênticos ou iguais, mas sim que a sua divindade os colocava acima da ordem criada. Porém Eustátio da Antioquia, um bispo anti-ariano a quem Ósio tinha instalado no poder no Concílio de Antioquia, teve uma reação violenta em relação a esse assunto. Numa série de cartas e sermões, denunciou esbravejando

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RUBENSTEIN, op. cit., p. 126.

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que os arianos tinham fingido aderir ao Credo niceno, mas que na 78

verdade pretendiam subverter seu significado verdadeiro.

A postura de Eustátio foi bastante imprópria, pois Eusébio de Cesaréia agora ocupava o lugar de Ósio que partira para a Espanha. Assim, Eusébio insistia em tentar conciliar sua teologia com o subordinacionismo ariano. Mas se ele estava exercendo a função de líder religioso mais próximo de Constantino, não era a pessoa melhor indicada para ser vítima de uma acu-sação. Foi nesse sentido que Eustátio se precipitou. Aproximadamente dois anos após o Concílio, a reação ariana se eviden-ciou por meio de seus principais líderes. Eusébio de Cesaréia, com o apoio de Constantino, organizou um encontro de bispos, no qual Eustátio foi con-siderado herege e excomungado da igreja. As principais acusações contra ele eram de imoralidade, pois teria vivido com uma mulher que não era le-galmente sua esposa, e por ser adepto do sabelianismo. Para substituí-lo em suas funções episcopais em Antioquia, foi indicado Paulino de Tiro. Após o breve encontro que condenou Eustátio em Antioquia, o padre Eusóio e o próprio Ário escreveram para Nicomédia, reivindicando uma espécie de audiência na qual pudessem ser ouvidos acerca da intenção que tinham de serem readmitidos pela igreja. Constantino, após saber da carta, enviou outra como resposta, ordenando-lhes que se dirigissem a Nicomé-dia, onde seriam recebidos na corte imperial. Juntando o poder de persuasão das palavras de Ário e a personalidade sensível do imperador, este não hesitou em se disponibilizar na investida por uma reconciliação de Ário com os bispos da igreja. A condicional inicial foi de que tanto Ário quanto Eusóio escrevessem um credo, a fim de se-rem previamente aceitos no processo de avaliação. Vale ressaltar que nesse credo não fizeram uso do termo ομοούσιος, embora tenham produzido um documento muito semelhante ao credo de Eusébio de Cesaréia. Como apenas um concílio poderia alterar as decisões de outro con-cílio, Constantino precisou convidar um determinado número de clérigos para se achegarem a Nicomédia e decidirem aquela questão em torno do pedido de reconciliação feito por Ário e Eusóio. 78

Ibid., p. 127.

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A respeito do processo de restauração do arianismo ainda sob a gestão de Constantino, por meio de um novo concílio, mas dessa vez em Nicomé-dia, Rubenstein informa: ... aconteceu no início do ano 328. Os bispos estudaram o credo de Ário, interrogaram pessoalmente Ário e Eusóio e declararam suas opi-niões ortodoxas. Em seguida os readmitiram solenemente para a co-munhão. Ário, extasiado, ofereceu-se para ajudar o imperador a res-tabelecer a paz na Igreja. Constantino imediatamente escreveu para o bispo Alexandre, exigindo que permitisse o retorno de Ário à cidade e à sua igreja. Neste ínterim, logo que a decisão do concílio se tornou pública, Eusébio de Nicomédia e Teógnis de Nicéia também pediram sua reintegração. [...] Os bispos anti-arianos de Nicomédia e de Nicéia foram rapidamente despedidos e substituídos pelos exilados.

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Em breve, Eusébio de Nicomédia se tornaria bispo e principal superior político da cidade de Constantinopla. Foi a partir desse contexto que Mar-celo de Ancira seria perseguido, excomungado e deposto, tendo sofrido as mesmas acusações que condenaram Eustátio da Antioquia. Perrone, além de considerar de maneira mais precisa a data do concí-lio para novembro de 327, porém salientando que ocorrera em Nicéia e não em Nicomédia conforme Rubenstein definira, interpreta que a “reabilitação de Ário, inclusive no aspecto doutrinário, não foi considerada ainda madura. Por isso, Constantino preferiu não submeter ao exame dos bispos a profissão de fé que lhe fora enviada por Ário e Eusóio, e que ele próprio reconhecera como ortodoxa”.80 O ano da reconciliação de Ário com a igreja seria 335, porém, ain-da há um processo bastante detalhado até chegar tal momento. E o que se evi-denciou neste período foram os sucessivos exílios enfrentados por Atanásio.

O bispado de Atanásio e as definições subseqüentes Sobre o novo período da propagação ariana, é mister conhecer algumas peculiaridades a respeito da ascensão de Atanásio à função episcopal de Ale-

79

Ibid., p. 132.

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ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 48.

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xandria. O imperador, após ter reconsiderado o posicionamento teológico de Ário e seus adeptos, emitiu uma carta ao ainda vivo bispo Alexandre a fim de que ele e todos os clérigos de Alexandria aceitassem as decisões do Concílio de Nicomédia e conseqüentemente abrissem as portas para Ário retornar. To-davia ele mostrouse absolutamente fechado a qualquer reconciliação. Seguia o ano de 328, quando Atanásio se tornou bispo de Alexandria, apesar da intensa oposição clerical. Não bastou Alexandre ter constante-mente declarado seu desejo de tê-lo como sucessor. Um dos requisitos para ser bispo era a idade mínima de trinta anos. Segundo alguns biógrafos de Atanásio, isso não seria um fator problemático, pois o jovem diácono já tinha 32 ou 33 anos quando Alexandre falecera em 17 de abril de 328. De qualquer maneira, Atanásio dirigiu-se para Alexandria, pois alguns clérigos já teriam se reunido no intuito de eleger o novo bispo. Devido a sua personalidade impetuosa e reputação de violento, muitos clérigos estavam realmente duvidosos em escolhê-lo para uma função de tamanha importância. Diante de tantas dúvidas para escolher o novo bispo de Alexandria, Atanásio usou sua veemência e persuadiu alguns bispos para que o acom-panhassem à igreja de Dionísio, onde seria secretamente eleito e ordenado bispo. Procedimento feito com base em uma das definições eclesiológicas de Nicéia, que afirmava ser necessária a presença de pelo menos três bis-pos para que um candidato ao episcopado fosse eleito. Além disso não foi difícil para Atanásio – tendo em vista sua forte influência – conseguir um decreto do Conselho de Alexandria, salientando que ele havia sido esco-lhido pela população para exercer o episcopado naquela cidade. Em 7 de junho de 328 foi então realizada a cerimônia de consagração do novo bispo de Alexandria. Sobre a maneira e os recursos por meio dos quais Atanásio tornou-se bispo, Roque Frangiotti desenvolve a seguinte avaliação, visuali-zando inclusive as conseqüências da “trama”:

Esse procedimento informal vai-lhe criar embaraços mais tarde e sua eleição será considerada inválida (cf. Apol. II, 6,4). Contudo, Constantino reconheceu e homologou sua consagração. Os 46 anos de seu episcopado (328 a 373) pertencem a um período dos mais conturbados que se possa imaginar da igreja antiga. Atanásio lutou contra Ário e seus correligionários, contra os cismáticos e, por vezes, contra certos defensores tortos e intransigentes do sím-

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bolo de Nicéia. Constantino, Constâncio, Juliano, Valente tentam se livrar dele, ou reduzi-lo ao silêncio. Todos fracassam diante de sua firmeza e intransigência.

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Para obter a aceitação de Constantino, o novo bispo teria lhe enviado o documento de consagração, acompanhado de uma carta na qual Atanásio explicava todo o processo de sua ordenação. Certamente por reconhecer as habilidades eclesiásticas do antigo diácono de Alexandre, o imperador concordou com sua ascensão à função de bispo da cidade de Alexandria. Deve ser lembrado que ao mesmo tempo os bispos estavam reunidos em Alexandria, ainda planejando acerca da eleição de um novo líder episco-pal para a cidade, não tendo a informação de que secretamente Atanásio já havia sido consagrado, além de reconhecido pelo próprio imperador. Os desafios que ele teria de enfrentar ao regressar a Alexandria seriam a resistência dos melecianos em reconhecer sua autoridade episcopal e a in-sistente reivindicação de Eusébio de Nicomédia sobre a reintegração de Ário, Eusóio e os demais arianos, conforme a decisão do Concílio de Nicomédia. Diante de uma falsa informação apresentada pelos arianos de que seu recém-episcopado seria deposto pelo imperador, caso se recusasse aceitar Ário e seus sequazes em Alexandria, Atanásio não hesitou em negar-se a tal reivindicação. Usou como argumento a condenação que Ário e seus adeptos haviam recebido no Grande Concílio, tendo sido considerados heréticos, e que uma reunião de menor importância – fazendo alusão ao encontro de bispos em Nicomédia – não teria suficiente força, para revogar as decisões de um concílio de maior reconhecimento no seio da cristandade, a saber, o de Nicéia. Com isso, os arianos representados por Eusébio de Nicomédia ape-laram ao imperador. Agora Constantino enviaria uma correspondência ao bispo recémordenado, alegando que a paz da igreja era o fator de maior importância e que se Ário e os arianos não fossem aceitos em Alexandria, ele destituiria Atanásio de seu mais novo ofício religioso. Fazendo uso de sua personalidade bastante calculista, Atanásio espe-rou o momento ideal para responder à imposição imperial. Sua resposta consistiu em afirmar que teria a maior satisfação em se submeter à vontade

81

ATANÁSIO, Santo: A Encarnação do Verbo. Introdução de Roque Frangiotti. São Paulo: Paulus, 2002, p. 13 e 14. (Patrística, v. 18).

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do imperador, mas que para ele se tratava de uma situação muito específica e que não poderia nem mesmo cogitar uma possibilidade de reintegração de Ário na igreja de Alexandria. Em uma de suas declarações, Atanásio teria afirmado que não havia lugar algum para os inimigos de Jesus Cristo na Igreja de Deus. Diante desse depoimento, o conflito que parecia ter encer-rado com as decisões de Nicéia, estava apenas recomeçando. Em 330, Atanásio entra em choque novamente com os arianos e com o próprio imperador, e por recusar a comunhão com Ário a pedido do próprio Constantino. Atanásio recusou-se a restituir a Ário, que voltava do exílio, a igreja que ele ocupara em Alexandria, até a realização do concílio de Nicéia. O patriarca do Egito resistiu a Constantino que repetidas vezes manifestou a vontade de reinte-grar Ário na comunhão católica.

82

Para investir contra Atanásio, os arianos reuniram uma série de acusações que tinham contra a sua pessoa. Desde homicídios e covardes atos de violên-cia até a destruição de patrimônios da igreja. Os informes sobre esse momento de aflição experimentado pelo bispo de Alexandria estão sempre voltados para as peculiaridades referentes as acusações que lhe eram direcionadas. Os arianos teriam acusado Atanásio de quebrar o cálice e de reduzir a nada o altar da igreja de Mareotis, onde atuava o padre Isquiras. Outra acu-sação teria sido de assassinato. Conforme os melicianos, um bispo ariano de Hipsele, chamado Arsênio teria sido vítima fatal da violência covarde de um anti-ariano, que a mando de Atanásio não apenas o matara como também decepara uma de suas mãos, além de eliminar os demais presentes e incendiar toda a casa. A fim de provar parte dessa acusação, os arianos chegaram a apresentar uma mão decepada. Contando com a forte influência de Eusébio de Nicomédia, os arianos tiveram a oportunidade de dar ênfase a tais acusações em um breve sínodo reunido na cidade de Tiro, no ano 335. O que, porém, teve maior repercus-são foi a acusação levantada por Eusébio de Nicomédia: [...[ o bispo tinha dito aos seus confidentes que se o impe-rador o forçasse a comparecer em Tiro, ele saberia como revidar.

82

Ibid., p. 14.

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Que usaria seu controle sobre o porto de Alexandria para manter os navios de grãos egípcios presos, impedindo-os de navegar para os portos do Mediterrâneo. ... o Egito e a Líbia, que possuíam as terras cultiváveis mais ricas do Mediterrâneo, eram o celeiro do mundo romano. As gran-des cidades como Constantinopla, Antioquia, Atenas e Roma não sobreviveriam um mês sem os fornecimentos mensais dos grãos do Egito. Um retardo dessas remessas significaria uma explosão de rebeliões por todo o império, e possivelmente até derrubaria o imperador, sendo ou não cristão.

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Constantino teria ficado perplexo diante de tão séria acusação. Imediatamente após Eusébio encerrar, exigiu uma explicação de Atanásio. Esse, além de negar tudo o que fora dito a seu respeito, salientou que não pos-suía quaisquer posses. Eusébio novamente tomou a palavra, e interrom-pendo Atanásio enfatizou ser o bispo de Alexandria um homem possuidor de muitas riquezas e suficientemente poderoso e influente para impedir o fornecimento de grãos, conforme acusara. Embasbacado, o imperador dirigiu ferrenhas repreensões a Atanásio, que por sua vez contra-atacou com duras respostas. Tamanha foi a infelicidade de Atanásio ao proceder dessa forma! Custou-lhe um inflexível castigo. Constan-tino condenou-o ao exílio em Tréveros, na Gália, por tempo indeterminado. A partir de então, Ário se dedicaria totalmente ao processo de sua reconciliação e conseqüente reintegração na igreja do Oriente. Simultanea-mente dedicava-se ao lado de seus sequazes no trabalho de expansão das suas perspectivas teológicas sobre a natureza de Cristo. Mas uma noite antes do dia em que ocorreria o grande evento ceri-monial de reintegração do presbítero Ário à igreja, seu estômago foi aco-metido por uma irresistível dor que o matou em poucos minutos, após ele ter entrado no banheiro. Conforme narra a história, Ário estava caído ao lado do vaso sanitário quando seus amigos chegaram. Certamente a idade avançada e a ansiedade pelo dia seguinte fizeram com que ele se tornasse uma vítima não apenas de uma forte dor estomacal, mas também de um fatal ataque cardíaco.

83

RUBENSTEIN, op. cit., p. 162 e 163.

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Com seus aproximados setenta anos, Ário morreu deixando muitas mentes convictas de que sua teologia era a verdadeira. Pela influência que Eusébio de Nicomédia tinha politicamente, houve momentos em que mui-tos chegaram a identificar o arianismo com outra nomenclatura: eusebia-nismo. Para alguns bispos era desconfortável afirmar que seguiam as pers-pectivas de um presbítero. Por essa razão preferiam se identificar como seguidores da teologia de Eusébio. O fato é que mesmo alguns não reconhecendo mais a originalidade do arianismo, ainda assim investiram suas vidas na difusão cada vez maior da teologia do presbítero controverso, já morto. Em contrapartida estava Ata-násio, mesmo exilado, intentando contra o pensamento ariano. O conflito entre arianos e atanasianos consolidou-se na prática, com a morte do imperador Constantino. Os relatos afirmam que em seu leito de morte, Constantino foi batizado por Eusébio de Nicomédia, após fazer sua pública confissão cristã. Rubenstein disserta de modo breve, mas com muita propriedade e riqueza de detalhes sobre o dia do falecimento do imperador: Ele morreu em 22 de maio, na festa de Pentecostes, depois de ter reinado durante 31 anos, os últimos sete como regente único do Império Romano Unido. A procissão, conduzida por seu filho Constâncio, le-vou o caixão de ouro com seu cadáver para Constantinopla, onde ele foi sepultado num lugar de honra na igreja dos Santos Apóstolos.

84

Com a morte de Constantino em 337, seus três filhos herdaram o po-der político daquelas terras. Constantino II ficou com as Gálias, Grã-Breta-nha, Espanha e Marrocos. Constâncio ficou com a maior parte do Oriente e Constante herdou territórios dentro das partes que pertenciam a seus dois irmãos, abrangendo o Norte da África, a Itália e outras partes que faziam divisa de território com o norte da Itália. Após invadir o território de Constante, em 340, Constantino II foi der-rotado fatalmente em campo de batalha. Agora todo o Ocidente do império seria governado por Constante, que posteriormente acabou sendo morto pelos soldados do seu irmão Constâncio. Com isso, o ariano Constâncio assumiria o domínio de todo o Império Romano. 84

Ibid., p. 174.

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O maior de todos os problemas para a igreja era o fato de que o novo imperador não apenas cria, mas defendia integralmente a doutrina ariana. Fazendo uso da amizade que tinha com Eusébio de Nicomédia, nomeou-o como bispo de Constantinopla. No mandato de Eusébio já estava bem definido que o arianismo predominaria no império. Os exilados eram libertos conforme um decreto dos dias de Constâncio, o que trouxe Atanásio de volta para casa. Seu retorno encontrou lamentavelmente um mundo cristão quase que totalmente aria-no no Oriente. E a batalha dessa vez possuía um agravante, um fator bas-tante complicado para Atanásio no sentido de refutar o arianismo já difuso: a controvérsia anteriormente condenada em Nicéia tinha agora total apoio do imperador de Roma. Novamente acusado de assassino e assaltante, Atanásio foi condenado em um Concílio na cidade de Tiro, sendo, dessa feita, substituído por um presbítero muito bem indicado chamado Gregório da Capadócia. Rubenstein relata: A violência nas cidades orientais terminou dessa vez com a expulsão de Atanásio, de Marcelo de Ancara e de Paulo de Constantinopla, além de diversos bispos anti-arianos do episcopado, culminando com seu exílio para o Ocidente. Muitos desses exilados viajaram para Roma, enquanto Atanásio que já estava foragido buscou pro-teção com o bispo Júlio e o imperador. Os arianos se congratularam por libertarem o Oriente dos seus adversários mais poderosos.

85

A proteção imediata do Ocidente representada pelo então papa Júlio não foi bem-sucedida. A convocação de um Concílio em 343 na cidade de Sérdica teria sido a principal tentativa de apoio a Atanásio no intuito de provocar sua recondução ao bispado de Alexandria. Mas não houve apro-vação imediata à proposta de Júlio. Tendo em vista a condição papal dos tempos modernos, parece pa-radoxal a atitude por parte dos bispos em recusar uma proposta do sumo pontífice, entretanto, ele ainda possuía uma autoridade eclesiástica muito limitada. O Pontífice Romano era apenas o principal clérigo do Ocidente, exercendo seu relativo poder apenas sobre seus subordinados regionais. 85

Ibid., p. 182.

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JESUS É DEUS?

Os bispos de Alexandria, Antioquia, Cesaréia e Constantinopla possuíam semelhante autoridade episcopal. Portanto, o que o papa Júlio decidisse não era obrigatoriamente uma ordem que deveria ser acatada por outros bispos de diferentes metrópoles, inclusive do Oriente. Quando Gregório da Capadócia, que havia tomado seu posto na sede de Alexandria, morreu em 345, Constante, impera-dor do Ocidente, pressionou seu irmão Constâncio, impe-rador do Oriente, em favor de Atanásio convidando-o para retornar e 86 reassumir seu patriarcado. Pode ser estabelecido que a partir desse novo retorno, Atanásio dedi-cou-se quase totalmente ao desenvolvimento de sua obra teológica e de seus trabalhos pastorais. O que prejudicou o prosseguimento do aglome-rado de trabalhos seria o 87

suicídio do imperador do Ocidente, Constante. Isso porque, agora, Constâncio, o ariano herdeiro de Constantino, era o único imperador de Roma.

Nessa época, os simpatizantes do arianismo tinham se dividido em três grupos principais, e cada grupo, por sua vez, ganhou a po-sição superior. No primeiro fluxo de vitória, foram os arianos que tiraram proveito máximo da situação. Sua fórmula estava baseada na idéia de que o Filho era distinto do Pai, e, por essa razão, eles foram chamados Anomoeanos.

88

Atanásio foi novamente condenado em um concílio na cidade de An-tioquia. Dessa vez, seu substituto seria um convicto ariano chamado Jor-ge da Capadócia, o qual teria dedicado toda a sua vida acadêmica na ci-dade de Alexandria. De acordo com Rubenstein, o imperador Constante não teria se suicidado, segundo relatam outros historiadores, inclusive J. W. C. Wand. Para Rubenstein, no processo de substituição de Atanásio por Jorge da Capadócia, o imperador do Ocidente tinha sido “derrubado do 86 87

ATANÁSIO, op. cit., p. 17.

Há duas opiniões sobre a morte de Constante, suicídio ou assassinato a mando de seu irmão Constâncio. 88 WAND, op. cit., p. 189.

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trono e brutalmente assassinado por um usurpador até então totalmente 89 desconhecido”. O assassino seria posteriormente descoberto. Teria sido um general gaulês chamado Magnêncio. Defensor ferrenho do arianismo, Constâncio investiu todo seu poder político em prol da expansão da teologia ariana naquele que já era um império cristão, apesar das controvérsias. Enquanto único imperador ro-mano, uma das primeiras atitudes despóticas de Constâncio em favor do pensamento ariano foi perseguir Atanásio, condenando-o mais uma vez ao exílio. Essa condenação se deu em dois concílios. O primeiro foi reunido em Arles no ano 353 e o segundo aconteceu em Milão no ano 355. Ambos sob forte influência imperial, decidiram que Atanásio deveria ser exilado pela terceira vez. Rubenstein comenta:

... teve início uma campanha de intensidade sem precedentes dentro da Igreja dirigida pelo Estado, em busca de uma fórmula de fé que fos-se geralmente aceita e que tivesse o nível de determinação necessário para forçar os dissidentes a aceitá-la. No esforço de terminar de vez com a controvérsia e unificar o mundo cristão, Constâncio convocou no mínimo nove concílios da igreja, a maioria deles no Ocidente.

90

É registrado que esses Concílios91, entretanto, não tiveram o desenvolvimento esperado por Constâncio. Um único resultado consideravelmente posi-tivo foi que a maioria dos bispos cristãos, independentemente da linha teológi-ca que defendiam, aderiu a uma confissão de fé por eles mesmos formulada. Conforme os Concílios se processavam, o número de bispos partici-pantes aumentava. Mas as decisões e os credos adotados não eram sufi-cientes para evitar conflitos e discórdias entre os clérigos que sustentavam posicionamentos distintos. Quanto a Atanásio, este viveria escondido nos próximos anos, tendo que se submeter à proteção de alguns monges nas regiões do vale do Nilo. Teria sido nesse período do terceiro exílio que Ata-násio escrevera sua obra Apologia de sua fuga, na qual defendera sua atitu-de diante da condenação imposta pelo imperador ariano. 89

RUBENSTEIN, op. cit., p. 210.

90

Ibid., p. 220.

91

Os concílios dos anos 350, sob a autoridade imperial de Constâncio foram: Sirmio-ne (351), Arles (353), Beziers (353), Milão (355), Sirmione (357, 358 e 359) e Rimini-Selêucia (359).

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JESUS É DEUS?

O imperador faleceu aos 44 anos, na Cecília, em 3 de novembro de 361. Seu sucessor foi Juliano, o Apóstata. Com apenas 31 anos, Juliano mostrou no princípio uma política repleta de tolerância. Mas com o objetivo de es-tabelecer o velho paganismo no império já cristianizado. Tal tolerância se deu com uma declaração oficial a fim de que os exílios fossem revogados. Aproveitando o ensejo, Atanásio não hesitou em retornar para Alexandria, onde instantaneamente convocou um sínodo, precisamente em 362. No sínodo, Atanásio não contou somente com a participação de bispos do próprio Egito, mas estiveram presentes tanto clérigos oriundos do Oci-dente quanto do Oriente. “Nesse concílio [...] Atanásio levou os dois grupos a reconhecer a ortodoxia básica um do outro e, assim, a legitimidade, em linha de 92

princípio, das duas fórmulas rivais: una substantia e treis hypostaseis.” Entretanto, o ódio que Juliano sentia do bispo Atanásio era intenso. O suficiente para que seu retorno para Alexandria fosse acometido por consi-derável turbulência. Uma correspondência enviada por Juliano a Ecdício – uma das autoridades egípcias – foi o ápice da perseguição que o imperador apóstata exercera sobre Atanásio: Ouso que Atanásio com sua audácia ordinária, tomou posse daquilo que ele chama o trono episcopal. Nada me será mais agradável do que conseguires expulsar do Egito este maldito Atanásio que, sob o meu reinado, o celerado ousa batizar mulheres gregas de nascimen-to ilustre. Ele, um pequeno homem de nada, gloria-se de desafiar a morte. [...] Não tenho pior inimigo do que aquele para quem pedis benevolência. Repito: expulsai-o de vossa cidade (Carta 6, 25,5).

93

Não suportando ver o explícito avanço de Atanásio no labor eclesi-ástico em prol da união dos cristãos, Juliano o enviou aos 24 de outubro de 362 a mais um exílio. Atanásio ficou exilado no deserto egípcio até setembro de 363. Cerca de oito meses se passaram, até que o imperador Juliano – no intuito de literalmente parecer-se com Alexandre o Grande, velho conquis-tador do mundo antigo – enfrentou os persas em uma batalha próximo a 92

ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 53.

93

ATANÁSIO, op. cit., p. 21.

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Ctesifon. Não apenas Juliano morreria, mas também o sonho da restaura-ção pagã em Roma. Os oficiais elegeram Joviano como imperador romano, mas este mor-reria rapidamente.94 Um de seus poucos feitos como católico adepto da fé nicena foi estabelecer o cristianismo como a principal de todas as religiões existentes em Roma. Tendo encontrado-se com Atanásio no exílio, permitiu-lhe o retorno. Certamente com isso renasciam as esperanças de Atanásio. Com a precoce morte de Joviano, o trono foi empossado por Flávio Valentiniano. Concentrado em Milão, Valentiniano apesar de manter-se neu-tro aos debates doutrinários da igreja, beneficiou os arianos ao nomear como imperador romano no Oriente, seu jovem irmão Valente. Como se declarou abertamente pró-ariano, alguns nicenos come-çaram logo a acusá-lo de atrocidades e de atos de perseguição. A política de Valente, embora comprometida com a tolerância, era um tanto limitada – já que posteriormente, no decorrer da sua carreira, acabou oprimindo e atormentando o clero egípcio du-ramente. [...] Os debates teológicos e a política eclesiástica eram permitidos, mas as ações de turbas ou os escândalos com as exco-munhões e deposições mútuas não eram tolerados.

95

Querendo tornar evidente sua identidade ariana, Valente ordenou que todos os bispos nicenos fossem banidos. Para não ser preso, Atanásio resolveu exilar-se no deserto egípcio onde permaneceu até que um novo edito permitisse seu retorno, o que ocorreria apenas três meses depois, precisamente aos 31 de janeiro de 366.96 Após seu quinto exílio, Atanásio desfrutaria de suficiente tranqüilidade até 373, ano de sua morte. Mas es-ses sete anos que se seguiram foram suficientes para que ele se dedicasse tanto ao trabalho pastoral quanto à revisão de suas obras. Embora não fosse mais o líder das forças nicenas, [...] ele foi pran-teado como um grande homem público e um teólogo belicoso, a 94

O período em que Joviano esteve no poder foi bastante breve. A historiografia informa que ele morreu acidentalmente ao dormir em uma tenda e ser sufocado pela fumaça de um braseiro que se encontrava bem próximo. 95 96

RUBENSTEIN, op. cit., p. 245.

Para maiores detalhes a respeito dos exílios de Atanásio, conferir Rubenstein, p. 151 a 253.

84

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própria personificação da causa nicena. Atanásio foi exilado cinco vezes, mas sempre conseguiu retornar à sua tão amada cidade. [...] Na verdade, se o bispo tivesse um caráter mais “santo” [...], talvez não tivesse sido exilado tantas vezes. Contudo se tivesse uma per-sonalidade mais calma, mais amorosa, provavelmente não teria tanta energia, determinação e violência para suportar tudo, para vingar-se dos inimigos e por fim vencer.

97

Quanto a Valente, morreu em Adrianópolis no campo de batalha, po-rém, seu corpo não foi encontrado. Há quem caracterize tal derrota como a mais horrenda de todas que Roma sofrera. Sobre o episódio, nicenos como Ambrósio interpretariam como um real julgamento divino. Na gestão imperial de Teodósio, o arianismo seria definitivamente considerado anti-bíblico, pois sua preferência religiosa era favorável ao Cre-do niceno. Sua investida em prol da consolidação da ortodoxia nicena no mundo romano foi marcada pela promulgação do documento Cunctos po-pulos assinado em 28 de fevereiro de 380, na cidade de Tessalônica. “Com esse ato, Teodósio pretendia, antes de tudo, manifestar sua determinação de restaurar a unidade religiosa do império sobre a base da ortodoxia nice-na, superando assim a divisão entre Oriente e Ocidente. Ao mesmo tempo, o edito marcava o fim oficial do arianismo”.98 O documento dizia: Queremos que as diversas nações sujeitas à nossa Clemência e Moderação continuem professando a religião legada aos romanos pelo apóstolo Pedro, tal como a preservou a tradição fiel e tal como é presentemente observada pelo pontífice Dâmaso e por Pedro, bispo de Alexandria e varão de santidade apostólica. De confor-midade com a doutrina dos apóstolos e o ensino dos Evangelhos, creiamos, pois, na única divindade do Pai, do Filho e do Espírito Santo, em igual majestade e em trindade santa. Autorizamos os seguidores desta lei a tomarem o título de Cristãos Católicos. Re-ferentemente aos outros, que julgamos loucos e cheios de tolices, queremos que sejam estigmatizados com o nome ignominioso de hereges, e que não se atrevam a dar a seus conventículos o nome

97

Ibid., p. 255.

98

ALBERIGO; PERRONE, op. cit., p. 58.

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de igrejas. Estes sofrerão, em primeiro lugar, o castigo da divina condenação e, em segundo lugar, a punição que nossa autoridade, de acordo com a vontade do céu, decida infligir-lhes.

99

Assim, concluiu-se historicamente a questão da divindade de Cristo, definindo o cristianismo niceno como a religião oficial do Império Romano. Conforme também encerra Frangiotti, dessa maneira, definitivamente: O arianismo desaparece como doutrina oficial, mas vai sobreviver por muito tempo ainda, entre os bárbaros invasores do Império do Ocidente: visigodos, ostrogodos, vândalos, burgúndios e lon-gobardos só vão se converter ao cristianismo romano pelos fins do século VII.

99

100

BETTENSON, op. cit., p. 58.

100

FRANGIOTTI, op. cit., p. 98. Para maior aprofundamento no tema do arianismo pós-niceno entre os bárbaros, conferir PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1982, p. 45, 51, 52 e 54.

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Parte

02

Abordagem dogmática

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AS EVIDÊNCIAS PRÉ-NICENAS SOBRE A DIVINDADE DO LOGOS

Informar que a divindade de Cristo passou a ser comentada e conseqüentemente discutida somente no quarto século, seria desenvolver uma abordagem incompleta. A leitura dos textos patrísticos dos séculos ante-riores podem provar isso. Conforme Olson salienta, “os padres da igreja antiga afirmaram e defenderam vigorosamente a verdadeira humanida-de e a verdadeira divindade de Jesus Cristo muito antes de os concílios ecumênicos estabelecerem a doutrina da igreja oficial sobre a pessoa de Jesus Cristo”.101 Partindo desse princípio, é necessário fazer uma seqüência de consul-tas aos textos pré-nicenos que mostram a convicção da natureza divina de Jesus, a fim de que não se omita tais fontes, pois são de alta confiabilidade por simplesmente se tratarem de documentações primárias.

Justino Mártir O primeiro trabalho patrístico aqui pesquisado é o de Justino Mártir, também conhecido como Justino de Roma. Suas argumentações acerca da divindade do Λόγος102 são diversas vezes apresentadas em seu Diálogo com o judeu Trifão. Justino reconhece que seu discurso teológico é racionalmente absur-do. À luz da perspectiva filosófica, que muitas vezes exige argumentações lógicas e racionalmente explicáveis e convincentes, as palavras de Justino 101

OLSON, Roger. História das controvérsias na teologia cristã: 2000 anos de unidade e diversidade. São Paulo: Editora Vida, 2004. p. 323. 102

A partir dessa citação do termo grego Λόγος, será adotada a forma maiúscula para a letra Λ, sempre

que for uma referência ao Logos Divino, uma vez que se reconhece que o termo, na presente pesquisa, refere-se à Palavra de Deus, isto é, ao Deus encarnado. Não é, portanto, para mostrar uma posição ortodoxa e fundamentalista, mas apenas para simbolizar reverência à pessoa de Cristo.

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– conforme ele próprio reconhece – tornam-se essencialmente frágeis. To-davia, ele não abre mão de suas convicções e permanece argumentando: ... mesmo que eu não pudesse demonstrar que o Filho do Cria-dor do universo preexiste como Deus e que nasceu como homem de uma virgem, nem por isso deixa de ser provado que Jesus é o Cristo de Deus. Pelo contrário, já está totalmente demonstrado que ele é o Cristo de Deus, seja qual for a sua natureza. [...] Com efeito, amigos, há alguns de vossa descendência que confessam Jesus como o Cristo, mas afirmam que ele é homem nascido de homem. Não estou de acordo com eles, mesmo que a maioria dos que pensam como eu dissessem isso. De fato, o próprio Cristo não nos mandou seguir ensinamentos humanos, mas aquilo que os bem-aventurados profetas pregaram e ele próprio ensinou.

103

Altaner e Stuiber deixam a explicação de que Justino não hesitou em identificar o aspecto subordinacionista na relação entre o Λόγος e o Pai. Segundo eles, Justino defendera que “o Logos-Filho foi proferido ‘ad extra’, isso é, tornouse uma Pessoa divina, mas subordinado ao Pai, unicamente com a finalidade de assistir à criação e ao governo do mundo”.104 Justino chama o Λόγος de o Verbo-Sabedoria que é gerado pelo Pai. Nes-se contexto, sua reflexão restringe-se em identificar a pessoa do Λόγος na autoapresentação da Sabedoria em Provérbios (Pr 8.21-36). Justino declara: Amigos, apresentar-vos-ei outro testemunho das Escrituras sobre um princípio anterior a todas as criaturas que gerou, certa po-tência racional de si mesmo, que é chamada pelo Espírito Santo Glória do Senhor, às vezes Filho, outras Sabedoria, ou ainda Anjo ou Deus, Senhor, Palavra. Ela mesma se auto-denomina Chefe do exército, ao aparecer em forma de homem a Josué, filho de Nave. Todas essas denominações lhe são atribuídas por estar a serviço da vontade do Pai e por ter sido gerada 105

pela vontade do Pai.

103

Justino, Mártir, Santo Justino de Roma: I e II apologias, Diálogo com Trifão: diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995, p. 180. (Patrística, v. 3). 104 ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 79. 105

Justino, Mártir, op. cit., p. 204.

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Em momento brevemente posterior, Justino faz uma citação do Salmos 45.713 ao discorrer sobre a idéia de que o Verbo é o Cristo. Tendo citado o trecho dos Salmos, Justino comenta que “essas palavras dão a entender clara-mente que se deve adorar a ele, que é Deus e Cristo, testemunhado pelo Cria-dor deste mundo. E, de modo não menos claro, nos anunciam que o Verbo de Deus fala, como se fosse com sua filha, com aqueles que nele crêem ...”.

106

Os principais questionamentos de Trifão mostram que a cristologia defendida por Justino salientava a natureza divina de Jesus, apesar do aspecto subordinacionista presente em seu pensamento. Abaixo, estão três das vá-rias conclusões às quais Trifão chegou ao discordar de Justino: Vós, que procedeis das nações, podeis reconhecê-lo como Senhor, como Cristo e como Deus, conforme o indicam as Escrituras. Vós que, a partir do seu nome, viestes a ser chamados de cristãos. Nós, porém, que servimos ao próprio Deus que fez este mundo, não temos nenhuma 107

necessidade de confessá-lo ou de adorá-lo.

Seria melhor dizer que este Jesus nasceu homem dos homens, e que se demonstra pelas Escrituras que ele é o Cristo. Deveríeis crer que ele mereceu ser escolhido para Cristo por ter vivido de maneira perfeita conforme a lei. Contudo, não venhais com mons-truosidades, a não ser que queirais provar ser tão estúpidos como os gregos.

108

Estás tentando demonstrar algo incrível e pouco menos impossível, isto é, que Deus poderia suportar, nascer e tornar-se homem.

109

Acompanhando de perto a cristologia de Justino, observa-se que em sua dogmática, o Λόγος é o Espírito preexistente de Deus, encarnado na pessoa humana de Jesus de Nazaré. Não obstante, alguns consideram a explicação de Justino um tanto quanto confusa e obscura no que tange à diferenciação entre Λόγος e Espírito. Os mesmos analistas não deixam de 106

Ibid., p. 208.

107

Ibid., p. 208.

108

Ibid., p. 214.

109

Ibid., p. 216.

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reconhecer que a reflexão estabelecida por ele foi por assim dizer o inicio da formação do pensamento trinitário. Na teologia de Justino, Jesus foi identificado como o Λόγος cósmico, sendo com isso o agente de Deus no processo da criação. Os recursos uti-lizados por Justino ao propor essa identificação são os primeiros versos do quarto evangelho e alguns conceitos helenísticos tanto a respeito do termo quanto da filosofia em torno do vocábulo Λόγος. Nas palavras de Olson ao comentar o pensamento de Justino, “esse Λόγος (Cristo) estava no mun-do antes de Jesus Cristo. Falava tanto por meio dos profetas judeus como dos filósofos gregos. Justino chamou-o Λόγος σπερματικός, a ‘semente do Logos’ presente em cada ser humano e fonte de toda 110

a verdade quando é compreendida e enunciada”.

Frangiotti explicitou o pensamento desse pai da igreja de modo bas-tante claro. Na introdução à II Apologia, discorre a respeito da participação do Λόγος seminal, concluindo o parágrafo com a defesa da tese de que a verdadeira ciência e o conhecimento irrefutável estão restritos aos cristãos. Nesse sentido, o Λόγος σπερματικός também pode ser denominado razão seminal, que está presente de maneira individual na existência de cada ser humano, relacionando-se de modo peculiar com o λόγος de cada um. E cada ser humano pode ser animado e dirigido por essa relação entre o seu λόγος particular e o Λόγος divino. “Assim, em CristoLogos, os cristãos têm a plenitude do conhecimento e da revelação (10,1).”111 Na obra de Justino, o chamado Χριστός-Λόγος está diretamente rela-cionado aos aspectos de criação e de salvação exercidos por Deus. Esse é o centro do seu pensamento. Nesse plano encontra-se um espaço para a sabedoria racional da filosofia clássica, porém, é evidente o caráter de sub-missão da razão humana à singular inteligência Divina.

Ireneu de Lião A segunda cristologia a ser analisada neste capítulo será a de Irineu de Lião. Forte apologista e opositor do gnosticismo, Ireneu considerou a im-

110

OLSON, op. cit., 2001, p. 60.

111

Justino, Mártir, op. cit., p. 89.

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portância de se falar sobre Jesus Cristo como verbo encarnado e salvador. Seu pensamento se diferenciava de algumas interpretações diferentes sobre Jesus, existentes em sua época. Para ele, tais interpretações eram nada mais que idéias comunicadas por Satanás. Em função disso, Ireneu enxergou a necessidade de desenvolver uma cristologia que refutasse os errôneos pen-samentos que apareciam sobre a pessoa e a existência de Jesus Cristo. Para não haver dúvidas sobre a maneira como Ireneu interpretava essencialmente a pessoa de Cristo, é importante verificar o que ele mesmo comentou em um de seus escritos: ... e a vinda, o nascimento pela Virgem, a paixão, a ressurreição dos mortos, a ascensão ao céu, em seu corpo, de Jesus Cristo, dileto Senhor nosso; e a sua vinda dos céus na glória do Pai, para recapitular todas as coisas e ressuscitar toda carne do gênero hu-mano; a fim de que, segundo o beneplácito do Pai invisível, diante do Cristo Jesus, nosso Senhor, Deus, Salvador e Rei, todo joelho se dobre nos céus, na terra e 112

nos infernos e toda Língua o confesse; e execute o juízo de todos ...

As palavras de Ireneu revelam sua convicção acerca da divindade do Filho. Ao chamá-lo Deus, Ireneu estabelece em sua teologia o princípio da cosubstancialidade do Filho com o Pai. Essa relação, portanto, mostra-se mais uma vez presente em uma composição teológica pré-nicena. Utilizando a narrativa dos dias em que Maria ficara grávida por obra do Espírito Santo, Ireneu defende a perspectiva de que Jesus de fato possuíra não apenas a natureza humana, mas também a natureza divina. Para Ireneu, a palavra-chave nesse texto do evangelho de Mateus é Εμμανουήλ (Deus conosco): Com isso afirma claramente que se realizou a promessa feita aos pais, do nascimento do Filho de Deus da Virgem e que justamente este é o Cristo Salvador, anunciado pelos profetas, sem distinguir, como os hereges, um Jesus nascido de Maria e um Cristo descido do alto. Mateus poderia dizer de outra forma: “A geração de ‘Jesus’ 112

Ireneu de Lião: Sistemas gnósticos, Teorias gnósticas e sua reputação, Doutrina cris-tã, Continuidade entre Antigo e Novo Testamento, Escatologia Cristã. São Paulo: Paulus, 1995, p. 62. (Patrística, v. 4).

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deu-se assim...”; mas o Espírito Santo, ao prever esses intérpretes perversos e ao precaver-nos contra as suas fraudes, disse por meio de Mateus: “A geração de ‘Cristo’ deu-se assim...” e acrescenta que ele é o Emanuel, para que não o julgássemos simples homem [...] e para que sequer suspeitássemos que um era Jesus e outro o Cristo e soubéssemos que é uma única e idêntica pessoa.

113

A convicção de Ireneu acerca da divindade do Λόγος está vinculada à sua oposição às heresias que surgiam em seu tempo. O uso que ele faz das Escritu-ras é freqüente, principalmente das passagens mais próximas da defesa à con-cepção de natureza divina na pessoa de Jesus de Nazaré. Tendo citado a passa-gem da epístola de Paulo aos Gálatas sobre a vinda do Filho na plenitude dos tempos, Ireneu reconheceu dentre outras coisas a divindade de Jesus Cristo: Pode-se ver, de tudo isso, que todas as coisas previstas pelo Pai são realizadas com ordem e tempestividade, no tempo prefixado e conveniente, por nosso Senhor, único e idêntico, rico e multímodo, por-que obedece à vontade rica e multíplice do Pai e é ao mesmo tempo Salvador dos que se salvam, Senhor dos que estão submetidos ao seu poder, Deus das coisas criadas, Unigênito do Pai, Cristo profeti-zado e Verbo de Deus, encarnado quando veio a plenitude do tempo em que o Filho de Deus se devia tornar Filho do homem.

114

Na intenção de que o pensamento cristológico de Ireneu seja bem compreendido, outras passagens de seus escritos podem ser aqui mencionadas. Ao defender a afirmação de que Jesus não é apenas homem, Ireneu escreveu: Além disso, os que dizem ser homem pura e simplesmente, gerado por José, permanecem na antiga escravidão da desobediência e morrem nela, porque ainda não unidos ao Verbo de Deus Pai, não recebem a liberdade por meio do Filho, como ele próprio diz: “Se o Filho vos emancipar, sereis verdadeiramente livres”. Ignorando o Emanuel, nascido da Virgem, são privados do seu dom, que é a vida eterna, e não recebendo o Verbo da incorruptibilidade, per-

113

Ibid., p. 316.

114

Ibid., p. 322.

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manecem na carne mortal, devedores da morte, sem o antídoto da vida. [...] Desprezam esse nascimento sem mancha que foi a encarnação do Verbo de Deus, privam o homem da sua elevação a Deus e manifestam ingratidão para com o Verbo de Deus, que se encarnou por eles. Esse é o motivo pelo qual o Verbo de Deus se fez homem e o Filho de Deus Filho do homem.

115

Tal comentário, mesmo escrito há cerca de 1800 anos, para muitos permanece consideravelmente atualizado. Sua aplicabilidade na vida de uma pessoa do início do século XXI, em certo sentido, não resultaria di-ferentemente da mesma aplicação efetuada na vida de alguém que viveu nos tempos de Ireneu. Para as teologias mais ortodoxas, não crer na plena divindade do Λόγος continua sendo sinal de aprisionamento espiritual e impossibilita a proposta bíblica de real relacionamento entre o ser humano e o seu Criador. Ireneu prossegue, no mesmo sentido, afirmando: Já demonstramos pelas Escrituras que nenhum dentre os filhos de Adão é chamado Deus e Senhor, no sentido absoluto da palavra; e que somente ele, à diferença de todos os homens de então, foi proclamado, na plena acepção do termo, Deus, Senhor, Rei eterno, Filho único e Verbo encarnado, por todos os profetas, pelos após-tolos e pelo próprio Espírito; é realidade que pode ser constatada por todos os que atingiram ainda que ínfima parcela da verdade. [...] Por um lado, ele é homem sem beleza, sujeito ao sofrimento, montado num burrinho, dessedentado com vinagre e fel, despre-zado pelo povo, descido à região da morte; por outro, é o Senhor santo, o Conselheiro admirável, sobressaindo pela beleza, o Deus forte, que há de vir sobre as nuvens como juiz universal. Tudo isso foi prenunciado pelas Escrituras sobre ele.

116

As duas extremidades das naturezas, as incomensuráveis grandeza e gló-ria da natureza divina e a plena humilhação do Deus que se fez homem – e o fez da maneira mais paupérrima possível – são os sinais de que a encarnação do Verbo é um ato escandaloso e racionalmente absurdo. Ireneu reconhece 115

Ibid., p. 336.

116

Ibid., p. 337.

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isso, pois na citação anterior mencionou os dois extremos. Não há dúvidas de que a idéia sobre um Deus santo e incorruptível que se tornou homem seme-lhante aos pecadores seja uma conclusão ilógica. Assim, a única maneira de se crer em tal perspectiva seria por meio de um “elemento” denominado fé. Isso não quer dizer que as argumentações de Ireneu ou de qualquer ou-tro pensador cristão sejam inválidas. Do ponto de vista teológico, ao mesmo tempo que se reconhece a impossibilidade de desenvolver uma explicação consistente e convincente da natureza divina do Filho, não se despreza o fato de que biblicamente a divindade do Λόγος é suficientemente sustentável. Tan-to que o mais utilizado recurso dos pensadores cristãos foram as Escrituras. Como desfecho da análise do pensamento cristológico de Ireneu, pode ser observada a relação feita da pessoa de Jesus de Nazaré com um atributo restritamente divino. O poder de perdoar pecados pertence tão somente a Deus, todavia, o homem Jesus o fez da maneira mais natural possível. É fato que todas as atitudes de cunho sobrenatural que Jesus efetuou foram reali-zadas debaixo de uma certa dependência. É clássica a afirmação de que to-dos os feitos sobrenaturais do Filho – embora fosse Deus – foram realizados na dependência do Pai, inclusive o gesto de perdoar pecados, que diferente-mente da efetuação de milagres, só poderia ser feito por alguém que possui uma natureza divina, senão vejamos o comentário de Irineu a respeito: Por isso, ao perdoar pecados sarou um homem e ao mesmo tempo revelou claramente quem ele era. Com efeito, se somente Deus pode perdoar pecados e se o Senhor os perdoava sarando um homem, está claro que ele era o Verbo de Deus, feito Filho do homem, porque recebera do Pai o poder de perdoar os pecados, como homem e como Deus; como homem participou dos nossos sofrimentos e como Deus perdoa as dívidas que tínhamos com Deus, nosso Criador.

117

Tertuliano Para a tradição antiga, Tertuliano não pode ser reconhecido como um pai da igreja. Apesar de sua ampla produção teológica em torno do pen-samento trinitário, o simples fato de ele ter possivelmente abandonado a 117

Ibid., p. 564 e 565.

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igreja em aproximadamente 207 e ter aderido ao Montanismo, o tornou impossibilitado de ser canonizado. Apesar disso, não se pode negar que Tertuliano foi o precursor – ou talvez o pai – das doutrinas ortodoxas da trindade e da dupla natureza da pessoa de Jesus Cristo. Leonardo Boff informa que Tertuliano “criou 509 substantivos novos, 284 adjetivos, 28 advérbios e 161 verbos. Não é de se admirar que vem dele a palavra consagrada Trinitas (Trindade) e a fórmula que irá exprimir a fé verdadeira sobre Deus trino: ‘una substantia, tres personae’: uma substân-cia em três pessoas”.118 Segundo a tradição, o motivo da apostasia de Tertuliano foi a insa-tisfação que passou a ter com a decadência moral e teológica da igreja. Embora Jerônimo tenha afirmado sobre uma possível ordenação a pres-bítero, não há mais registros a respeito do trabalho eclesiástico praticado por Tertuliano. No aspecto teológico, independentemente do suposto abandono da igreja, é importante voltar a salientar que Tertuliano foi o maior pensa-dor cristão no que tange à questão trinitária antes dos concílios e credos, que só seriam ocorridos e formulados nos séculos IV e V. Fica explícito que embora tenha vivido mais de cem anos antes dessas decisões dog-máticas e conciliares, Tertuliano desenvolveu uma teologia muito próxi-ma daquilo que seria definido nos primeiros Concílios Ecumênicos que a igreja realizaria. No intuito de defender sua teologia, Tertuliano tentou argumentar que o culto cristão a Jesus Cristo, diferentemente dos cultos aos deuses roma-nos ou ao imperador, não era uma forma de politeísmo. Isso porque a prá-tica de adoração ao Filho e a afirmação de que Deus é único, geraram dúvi-das nas mentes de alguns. Como recurso, Tertuliano utilizou o conceito do Λόγος de Deus. “O Logos, conforme Tertuliano explicou cuidadosamente, é tanto Deus como o rebento de Deus mediante o qual ele se relaciona com a criação. Esse Λόγος, obviamente, é Cristo, o Filho do Pai.”119 Altaner e Stui-ber também expõem o pensamento doutrinário de Tertuliano, concordando que em sua perspectiva, “a alma do filho é como uma espécie de rebento 118

BOFF, Leonardo. A trindade, a sociedade e a libertação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1986. p. 73. 119

OLSON, op. cit., 2001, p. 94.

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da alma do genitor, o que explica a semelhança de caráter e de índole entre pais e filhos”.

120

Altaner e Stuiber ainda comentam: Tertuliano fala inequivocamente das duas naturezas na única pessoa de Cristo. Foi ele que abriu o caminho para esse dogma no Ociden-te. Encontramos em suas obras expressões como essas: “proprietas utriusque substantiae (in una persona), “duplicem statum, non confusum, sed coniunctum in una persona deum et hominem Iesum” (Prax. 27). Os milagres de Jesus revelam sua real divindade: os senti-mentos e a paixão, sua verdadeira humanidade (carn. Chr. 5).

121

Hans Kessler trabalha com o pensamento de Tertuliano de modo consideravelmente preciso, enfatizando sua disputa apologética com algumas tendências que se opunham às questões cristológicas das naturezas huma-na e divina do Filho. Assim, Kessler não apenas comenta, mas também faz citações de determinados escritos do próprio Tertuliano: Em termos antignósticos está em jogo para ele a real entrada de Deus na carne para salvá-la: um Deus que não suje as mãos com a sujeira deste mundo não salva nada. Deus amou e redimiu o ser humano corporal inteiro. Com toda a firmeza Tertuliano sustenta a fé bíblica de que Cristo, que é o Logos de Deus, era um ser humano real e carnal, que o Filho de Deus foi crucificado, morreu, foi se-pultado e ressuscitou. [...] A confrontação antimonarquianista com Práxeas o obriga, embora ele mesmo seja defensor da unicidade ou monarchia de Deus (contra o politeísmo), a explicar como Deus – sem destruir sua unicidade – pode ter um Filho e como este pôde tornar-se humano de maneira real (não de modo docético, nos mol-des das mitologias pagãs). A substância divina una teria três figuras (personae) que devem ser distinguidas, mas não estão divididas. [...] A encarnação não deve ser entendida como se o Logos (sermo) houvesse sido “transformado” em carne e “modificado” segundo sua substância (divina) ou como se houvesse surgido uma espécie de “mistura” de ambos. Pois neste caso o Verbo não teria podido redimir a carne (Tertuliano, Adv. Prax. 27,6-9). A diferença entre ambas as realidades (substantiae), a divina e a humana, precisa ser

120

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 169.

121

Ibid., p. 168.

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mantida rigorosamente na união de ambas: “Conhecemos duas categorias de ser, inconfusas, porém unidas numa única pessoa, o Deus e ser humano Jesus, (...) e a particularidade de cada uma das duas substâncias foi preservada a tal ponto que, por um lado, o Es-pírito (= o Logos) realizava nele sua obra, isto é, as demonstrações de poder, as obras e sinais, e por outro lado, a carne (o ser humano) também o fazia, sentindo fome diante do diabo, tendo sede dian-te da mulher samaritana, chorando por causa de Lázaro, sentindo medo até a morte e, por fim, 122

morrendo” (27,11).

Um diferencial na teologia de Tertuliano está no ponto em que ele não deixa de reconhecer o caráter absurdo da encarnação do Filho de Deus. Di-ferenciandose de alguns pensadores da igreja que por assim dizer tencio-naram estabelecer uma explicação filosófica, Tertuliano sustentou a idéia de que determinadas questões referentes a Deus devem ser cridas exata-mente por possuírem esse aspecto racionalmente absurdo e inexplicável. Ricardo Quadros Gouvêa ao desenvolver sua introdução ao pensamen-to de Sören Aabye Kierkegaard (1813 – 1855), pensador importantíssimo do século XIX, relacionou a encarnação do Verbo com a relevância do paradoxo. Essa perspectiva parece bastante semelhante à teologia de Tertuliano, pois também evidencia a necessidade do cristianismo autêntico ter suas crenças vinculadas ao racionalmente absurdo. “Para Kierkegaard, cristianismo sem ofensa racional não é mais cristianismo do Novo Testamento.”123 O professor Gouvêa completa seu raciocínio em torno do pensamento kierkegaardiano: ... se um cristão não reconhece o paradoxo da cristologia calcedo-niana clássica, da encarnação, da reconciliação e da ressurreição, para que mais tarde, após o reconhecimento da paradoxalidade e tudo que ela acarreta, possa acreditar apesar da impossibilidade, ele ou ela não atingiu realmente a fé genuína. [...] Qualquer fé que necessita do suporte da lógica, evidência científica, e reflexão filo-sófica está demasiado próxima de um simulacro para ser chamada de fé verdadeira ...

122

124

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 299 e 300.

123

GOUVÊA, Ricardo Quadros. Paixão pelo paradoxo: uma introdução à Kierkegaard. 1. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2000, p. 163. 124

Ibid., p. 164 e 165.

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JESUS É DEUS?

Já é possível compreender o quanto Tertuliano formou com sua teolo-gia as bases da ortodoxia eclesiástica tanto no Ocidente quanto no Orien-te. Nem sempre é possível rastrear o quanto suas idéias influenciaram os teólogos posteriores, porém, não é difícil identificar suas argumentações presentes em muitos escritos desses mesmos pensadores cristãos. Seme-lhante a diversas cristologias posteriores, no que se refere à questão das duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo, Tertuliano teria comentado: “Ve-mos nitidamente [em Jesus Cristo] a dupla condição que não é confundida, mas conjugada em uma só pessoa – Jesus, Deus e homem”.125 Tertuliano define em sua teologia trinitária que o Deus crido pelos cris-tãos é existente em três pessoas, numa mesma substância (una substantia, tres personae). Sendo a substância mesma nas três pessoas, não há qual-quer possibilidade de divisão. Ao apresentar tal especificidade da mesma substância presente nas três pessoas da trindade argumentada por Tertu-liano, Boff comenta:

Substância é o que responde pela unidade dos Três divinos; pessoa demarca o que distingue. Em Deus, portanto, existe a unidade de substância igual no Pai, no Filho e no Espírito Santo e a diversi-dade das Pessoas do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que se de-riva dessa mesma substância; esta, ao comunicar-se eternamente, mantém a comunhão e a unidade com as comunicações. Em ou-tros termos, a unidade de Deus é sempre a unidade das Pessoas; o uno de Deus resulta dos Três.

126

Apesar de o Pai ser de certa maneira “maior” do que o Filho, um nun-ca existiu sem o outro. Assim, o Λόγος existiu com o Pai antes de todas as coisas passarem a existir. Do mesmo modo ocorre com o Espírito. Segundo Tertuliano, o Pai, o Verbo e o Espírito são eternamente indivisos e insepará-veis. A esse respeito Olson argumenta: Quando Tertuliano começou a explicar a humanidade e a divin-dade de Cristo, empregou os mesmos conceitos básicos da subs125

OLSON, op. cit., 2004, p. 324. Esta passagem é uma tradução diferente de parte da mesma citação feita por SCHNEIDER e KESSER. 126

BOFF, op. cit., p. 74.

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tância e da pessoa: Jesus Cristo era tanto substância divina como substância humana (que Tertuliano às vezes confusamente chama “espírito” e “carne”), mas sendo também uma só pessoa e não duas pessoas ou duas identidades. [...] Tertuliano afirmou que as duas naturezas de Cristo “agiam distintamente” e, embora as duas naturezas sejam “unidas” em Jesus, não devem ser confundidas de modo que as duas sejam capazes das mesmas atividades e expe-riências. [...] O raciocínio por trás disso é garantir que a divindade em Jesus Cristo não experimente o que é impróprio para o ser di-vino: a limitação, a imperfeição e o sofrimento.

127

Orígenes Quanto a Orígenes, o mais reconhecido e capaz pensador cristão do período patrístico antes de Agostinho, deve ser desenvolvida uma cuidado-sa verificação tanto em sua composição primária quanto nas opiniões a seu respeito, construídas por diferentes pesquisadores. Já em vida, Orígenes foi considerado o mais insigne teólogo da igreja grega. Ninguém, amigo ou inimigo, pôde subtrair-se à sua influên-cia. Não houve nome, na Antigüidade cristã, mais discutido que o de Orígenes; nenhum foi pronunciado com tão apaixonado entusiasmo ou tão profunda indignação. Homens nobres e doutos aderiram a ele. Não poucos heréticos alegaram sua autoridade, mas também mestres ortodoxos dele aprenderam. Orígenes tinha a intenção de ser cristão ortodoxo e o queria ser, o que se pode deduzir do simples fato de ter ele em grande estima o magistério da igreja e de conside-rar um erro de doutrina mais pernicioso do que um desvio moral.

128

Apesar dos supostos equívocos e das nove proposições que seriam condenadas em 543 pelo imperador Justiniano I, Orígenes possivelmente escreveu mais que qualquer outro pai da igreja antiga, tendo produzido cerca de dois mil livros, conforme informaria Jerônimo com base no elenco organizado por Eusébio. “Numerosos escritos, todavia, são produções de improviso, isso é, sermões e discursos que foram estenografados; somente 127

OLSON,

128

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 205.

op. cit., 2001, p. 98.

100 JESUS É DEUS?

assim se explica o copioso acervo de obras e também não poucas excentri-cidades 129 na linguagem e no estilo.” No que tange à questão trinitária, Boff introduz que para Orígenes “a trindade significa um eterno dinamismo de comunicação; não deve ser pensada como uma realidade fechada sobre si mesma mas como um pro-cesso de 130 realização eterna”. Nesse sentido, pode-se afirmar que embora Deus possua sua singularidade, no aspecto divino ele não está isolado, pois semelhantemente à luz que é capaz de emitir brilho, Deus Pai originou seu Filho. Boff ainda destaca que Orígenes foi “o primeiro teólogo a usar a pa-lavra υπόστασις (pessoa) para caracterizar os Três divinos em Deus”.131 De acordo com Padovese, “Orígenes chega a afirmar que alma e corpo, em contato com o Verbo, divinizam-se”.132 Assim, processa-se um fenômeno por meio do qual o corpo e a alma presentes no homem Jesus, assimilaram o mais elevado nível de excelência por meio da junção com ele. E o resultado da fusão teria sido exatamente a divinização dos referidos corpo e alma. Orígenes foi então um dos primeiros teólogos “a oferecer uma expli-cação sistemática da crença cristã a respeito de Deus e de Jesus Cristo e do relacionamento entre eles”.133 Na observação de Kessler: Orígenes diz acerca do mesmo Logos que não houve nenhum ins-tante em que ele não fosse. O Logos precisa existir desde a eter-nidade porque Deus necessita desde a eternidade de um referen-cial com o qual se relaciona [...]. A nova idéia da geração eterna do Logos ainda permanece ambígua em Orígenes, porque ele não distingue claramente entre Criador e criação. Orígenes fala agora expressamente de três “hipóstases” eternas da divindade, sendo que “hipóstase” refere-se, em termos do médio-platonismo e do neoplatonismo, à realidade metafisicamente autônoma ou a reali-zação concreta. Contudo, Orígenes continua vendo essas hipósta-ses num relacionamento escalonado e subordinado; elas são uma através da unanimidade e identidade da vontade.

134

129

Ibid., p. 205.

130

BOFF, op. cit., p. 73.

131

Ibid., p. 73.

132

PADOVESE, op. cit., p. 53.

133

OLSON,

134

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 302.

op. cit., 2001, p. 110.

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Para Orígenes não existia qualquer dúvida quanto à divindade do Λόγος, que, por sua vez, tornou-se Jesus Cristo com eterna e mesma natu-reza. Tal convicção foi uma de suas declarações mais freqüentes, embora tenha reduzido o Λόγος a algo com certa inferioridade em relação ao Pai, o que pode ser chamado de subordinacionismo. Mas, apesar de a geração do Λόγος proceder do Pai, nenhuma ausência de semelhança substancial exis-tia entre eles. Portanto, Orígenes jamais deixou de salientar a respeito da divindade do Λόγος. E para Orígenes, apesar do aspecto subordinacionista, Jesus era totalmente homem e totalmente Deus. Em sua obra Contra Celso135, Orígenes faz diversas vezes afirmações de defesa à divindade do Λόγος. Para efeito de investigação, algumas dessas passagens foram selecionadas e citadas, seguidas de breves comentários e reflexões. “Examinando tudo o que os homens sem fé afirmam e analisando a fundo a base de todas as questões, encontro aí uma série de elementos que me parecem estar em harmonia com o fato de que Jesus foi um ser divino e digno de ser proclamado Filho de Deus.”136 Após horrenda ofensa lançada por Celso às pessoas de Jesus e Maria, Orígenes não hesitou em responder com tais palavras. Celso teria chegado a acusar Maria de adúltera e vagabunda por ter sido expulsa por José em fun-ção do suposto adultério que cometera. E quanto a Jesus, acusou-o de ter aprendido poderes mágicos com os egípcios no período em que lá permane-ceu escondido. Em função desses poderes, ao retornar para sua terra, Jesus não só se vangloriaria como também teria se auto-proclamado Deus. Para tais ofensas, a resposta de Orígenes foi absolutamente pertinente. 135

Cf. ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 209. Nessa obra, seus autores informam que Contra Celso (8 livros), “é a mais importante apologia pré-nicena, embora, às vezes, um tanto superficial. Orígenes a escreveu com mais de 60 anos, a pedido de seu amigo Ambrósio, para refutar o Alethès lógos do filósofo platônico Celso. Este apresentara Cristo como impostor vulgar e atribuía os aspectos extraordinários de sua vida a uma invenção po-ética de seus primeiros discípulos, assim como a rápida propagação do cristianismo à impressão que produziram os quadros aterradores do juízo final e do fogo do inferno na plebe”. Essa vasta composição de Orígenes trata-se, portanto, de uma resposta à obra O discurso verdadeiro contra os cristãos (178 d.C.), de Celso. 136

ORÍGENES. Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, p. 68. (Patrística, v. 20). Para aprofun-damento no pensamento do filósofo Celso, é indispensável a leitura atenta do capítulo VIII, intitulado As críticas do filósofo Celso contra os cristãos, da obra: FRANGIOTTI, Roque.

Cristãos, judeus e pagãos – acusações, críticas e conflitos no cristianismo antigo. Apa-recida, SP: Idéias e Letras, 2006, p. 127 – 166.

102 JESUS É DEUS?

Ainda no mesmo contexto, Orígenes afirmara que “temos, no entanto, mais um motivo de espanto: como explicar que os discípulos de Jesus, que, na opinião de seus detratores, não o teriam visto ressuscitado dos mortos e não se teriam 137 convencido de que ele era um ser divino?”. Comentando a respeito das profecias acerca das duas vindas de Cris-to, Orígenes profere sobre a incredulidade de Celso e de qualquer outro homem. Ele adjetiva a segunda vinda como “unicamente gloriosa e divina, sem qualquer mistura de fraqueza humana com sua divindade. Seria muito longo citar as profecias; por ora basta que citemos o Salmo 44 [...]. Cristo aparece nesse salmo claramente proclamado como Deus...”.138 Após citar o contexto de Salmos 44.3-8, Orígenes comenta: “Observe que o profeta dirige-se a um Deus cujo ‘trono é de Deus para sempre e eterna-mente’ e ‘o cetro de seu reino é cetro de retidão’; e ele declara que esse Deus recebeu a unção de um Deus que era seu Deus [...]”.139 Na leitura de Olson: Um dos principais argumentos de Celso contra o cristianismo era que a encarnação necessariamente atribuiria a imperfeição de Deus. Se Deus “veio” aos seres humanos, então necessariamente mudou, para pior! Mas Deus não pode passar por nenhuma transformação, seja para melhor ou para pior, de acordo com Celso e com todos os de-mais pensadores gregos (especialmente os platônicos). Orígenes re-cusou-se a abrir mão das duas afirmações cruciais da doutrina cristã: que Deus é uno e perfeito de todas as maneiras [...] e que Jesus Cristo é Deus. Os poucos intérpretes incultos de Orígenes que alegam que ele não ensinava a plena e verdadeira divindade do Filho, Jesus Cristo, simplesmente estão errados. Orígenes, em todas as obras, freqüente-mente se referia a Jesus Cristo como o “Verbo Divino, que é Deus”.

140

Para a indagação: a conduta de Jesus terá sido indigna de um Deus? Orígenes projetou a seguinte resposta: Mas se Celso acredita nos evangelhos para nele encontrar uma oca-sião de acusar Jesus e os cristãos, e não acredita neles quando eles

137

Ibid., p. 71.

138

Ibid., p. 99.

139

Ibid., p. 100.

140

OLSON, op. cit., 2001, p. 111.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 103

provam a divindade de Jesus, poderemos dizer-lhe: muito bem, meu caro, ou recusa acreditar no todo e não penses em nos formular acusação, ou acredita no todo e admira que o Logos de Deus tenha se tornado homem na intenção de socorrer o gênero humano.

141

A fim de que não fiquem dúvidas quanto à convicção de Orígenes acer-ca da divindade do Λόγος, ainda no livro II de Contra Celso, ele salientou em específicos momentos sobre a questão de maneira clara e direta: Silenciando de novo os fatos que indicam a divindade de Je-sus, Celso lhe faz censuras a partir daquilo que está escrito dele no evangelho. [...] houve de fato um sinal divino vindo do céu, o eclipse do sol e outros milagres: provas de que o crucificado tinha algo de divino e superior ao comum dos mortais ... Celso, que tira acusações contra Jesus e os cristãos de textos evangélicos que ele nem mesmo sabe interpretar corretamente e cala o que estabelece a divindade de Jesus, acaso pretende ficar atento às manifestações divinas?

142

Orígenes de fato censura o pensamento judaico e conseqüentemente sua afirmação de que Jesus não deve ser considerado Deus e que não há dificuldades em se negar os sofrimentos que ele suportara em prol dos ho-mens. A essa espécie de conclusão acerca do Λόγος, Orígenes responde que “a finalidade de sua primeira vinda [...] foi [...] de difundir milagrosamente sua doutrina com um poder divino através de todo o gênero humano”.143 Desenvolvendo uma breve resposta à declaração de Celso de que os milagres efetuados por Jesus não passaram de feitiços, Orígenes enfatiza a filiação divina do Verbo escrevendo: “Ora, para nós é evidência que ele curou aleijados e cegos, e por isso acreditamos que ele é o Cristo e o Filho de Deus”.144 Toda a atribuição judaica oferecida à pessoa de Moisés na obra de Celso, é quase que desarraigada por Orígenes quando ele estabelece uma séria comparação entre Jesus e o herói do judaísmo: “Ainda que lutes corajosamente 141

ORÍGENES, op. cit., p. 156 e 157.

142

Ibid., p. 158 e 159.

143

Ibid., p. 160.

144

Ibid., p. 167.

104 JESUS É DEUS?

para defender Moisés, como certamente sua história pode receber uma justificação impressionante e manifesta, sem que saibas, em toda apologia de 145 Moisés, provarás apesar de tudo que Jesus é mais divino do que ele”. Para Olson, “Orígenes viu um propósito importante em explorar e esclarecer a idéia do Λόγος porque servia para demonstrar como Deus, que transcende o 146

mundo, podia se relacionar ao tempo e à história pela encarnação”. Como subordinacionista, ele reconheceu que o Λόγος, ape-sar de eterno e essencialmente divino, em certo sentido está de alguma ma-neira subordinado ao Pai. “Apesar de acentuar a eternidade do Filho de Deus, e de o chamar ομοούσιος, só o Pai é αυτόθεος; o Λόγος, denominado δευτερος θεος, não é, como o Pai 147 Distinguindo a descida divina do απλως αγαθός, mas εικών αγαθοτετος.” Λόγος de uma descida angelical, Orígenes discorre no combate ao pensamento de Celso levantando a seguinte questão:

... por que não examinar seriamente, naquilo que eu disse de Jesus e nas profecias que lhe dizem respeito, quem é aquele que deve-mos acreditar ser Deus ou Filho de Deus que desceu até os ho-mens: Jesus, que levou a bom êxito e realizou tão grandes obras, ou aqueles que, sob pretexto de oráculos e adivinhações, [...] divi-dem a alma daqueles que aderem a eles, sob pretexto de honrar a múltiplos deuses, e não ao único, manifesto e verdadeiro Deus?

148

“O Λόγος assumiu um corpo verdadeiro e é Homem-Deus (Θεάνθρωπος). Orígenes foi quem plasmou esta expressão [...]. A união das duas naturezas em Cristo é extremamente íntima.”149 “... os milagres que ele realizou, não por magia como acredita Celso, mas por sua divindade predita pelos profe-tas, lucravam com o testemunho de Deus. Dessa forma, honrando o Filho que é o Λόγος, o homem nada faz de insensato.”150 Nesse aspecto da adoração e da honra a ser dada ao Λόγος divino, Orígenes ainda complementa no mesmo contexto que deve ser prestado o 145

Ibid., p. 178.

146

OLSON, op. cit., 2001, p. 112.

147

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 212.

148

ORÍGENES, op. cit., p. 384 e 385.

149

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 212 e 213.

150

ORÍGENES, op. cit., p. 616.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 105

devido culto ao “Pai da Verdade e ao Filho que é a Verdade: eles são duas realidades pela υπόστασις, mas uma só pela humanidade [...]; de modo que aquele que viu o Filho, resplendor da glória, expressão da substância de Deus, viu a Deus 151

nele que é a imagem de Deus”. Observando todas as citações e observações feitas na cristologia de Orígenes, aparentemente o Λόγος apenas é quem poderia encarnar-se, pois para o Pai não é apropriado inserir-se no tempo e na história. Todavia, não significa que o Λόγος ao encarnar-se tenha experimentado uma transfor-mação real simplesmente por tornar-se humano na pessoa histórica e ter-rena de Jesus de Nazaré. Apesar do considerável grau de dificuldade em desenvolver uma fiel interpretação do pensamento cristológico de Orígenes, ao tratar da ques-tão da preexistência da alma humana de Jesus, é perceptível que ele tenha defendido a perspectiva de que Deus preparou entre a carne humana e a deidade uma espécie de substância-alma. Assim teria sido na preexistência que a encarnação propriamente começara. “A razão e o propósito dessa especulação é explicar como um ser divino, mesmo que estivesse de alguma maneira subordinado a Deus, era capaz de se unir 152

à carne e ao sangue sem ser maculado pela imperfeição.”

Portanto, se-gundo

Orígenes, estabeleceu-se uma junção entre o Λόγος e a alma humana, os quais na preexistência se desenvolveram até que tal união culminou na geração do DeusHomem na pessoa de Jesus. De acordo com Orígenes, “o Deus-homem nasce, como dissemos, na substância, sendo um intermediário cuja natureza não era contrária à tomar para si um corpo”.153 Na compreensão de Olson: A segunda consideração de Orígenes é que, até mesmo na encar-nação – durante toda a existência humana terrestre de Jesus Cristo – , o Logos divino em si nunca experimentou uma alteração real. Somente o corpo e a alma humana de Jesus sofreram e morreram. O Logos divino assumiu a existência humana, mas não foi macu-lado pela imperfeição da criatura. 151

Ibid., p. 618.

152

OLSON, op. cit., 2001, p. 112.

153

154

ORÍGENES, De principiis 2 - Os princípios fundamentais apud OLSON, op. cit., 2001, p. 113.

154

Ibid., p. 113.

106 JESUS É DEUS?

Há uma série de questões levantadas a respeito da cristologia proposta por Orígenes. Alguns questionam se de fato Jesus foi de algum modo consi-derado totalmente Deus e totalmente humano. É indubitável que para ele o Λόγος era considerado divino, ou seja, como Filho de Deus, encarnado em Jesus de Nazaré, ainda que eternamente subordinado a Deus Pai. Mas é um tanto quanto enigmático na teologia de Orígenes se de fato essa natureza divina esteve presente na existência de Jesus enquanto esteve na terra. Para Olson, o que possivelmente dificultou Orígenes de estabelecer de modo absoluto “a divindade de Jesus Cristo foi seu compromisso anterior à idéia grega de a natureza divina ser simples, imutável, impassível e imperturbá-vel pelo tempo ou pela emoção (απάθεια)”.155 Nossa reflexão prefere afirmar que diante das citações primárias aqui apresentadas, torna-se difícil aceitar que Orígenes não tinha convicção da natureza divina do Filho. Novamente ao discorrer sobre a adoração e sobre o culto entregues a Deus, na obra Contra Celso, Orígenes salienta que é a Jesus “que proclamamos Filho de Deus, mas para usarmos os termos de Celso, do Deus a quem oferecemos adoração suprema, e sabemos que é seu Pai que lhe deu exaltação suprema”.156 Está aparentemente explícito que o culto à pessoa de Jesus Cristo está vinculado a uma espécie de reconheci-mento de sua supremacia, a qual foi por Deus de antemão estabelecida.

Eusébio de Cesaréia Além das reflexões cristológicas, este tópico apresentará breves informações biográficas daquele que ficou conhecido como “pai da História da Igreja”, sobretudo, por ter sido o primeiro pensador cristão a escrever uma obra historiográfica a respeito do cristianismo, intitulada História Eclesiástica. Eusébio nasceu, possivelmente, em Cesaréia, na região da Palestina, por volta de 265 d.C. “Fez seus primeiros estudos com o douto sacerdote de Antioquia, Doroteu, e depois com o sábio, Pânfilo, um dos mais ardorosos seguidores de Orígenes.”157 155

Ibid., p. 113.

156

ORÍGENES, op. cit., p. 620.

157

CESARÉIA, Eusébio. História eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 9. (Coleção Patrís-tica, v. 15). As informações introdutórias presentes no livro são de Roque Frangiotti.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 107

“Eusébio encontra-se no ponto crucial de duas idades. Por sua forma-ção cultural, pelo âmbito de seus interesses e por suas obras, que recolhem a herança 158

do passado, pertence ainda à época pré-nicena.” Por essa razão considera-se indiscutível que ele tenha que fazer parte das abordagens do presente capítulo, mesmo sabendo que ele tenha participado decisivamen-te de toda a controvérsia ariana, inclusive do próprio Concílio de Nicéia. Foi, sem dúvida, o pensador cristão mais erudito de seu tempo. É Eu-sébio de Cesaréia não porque nascera nessa cidade – o que inclusive é im-provável – mas porque lá foi educado e de lá se tornou bispo em 313, ano em que o chamado Edito de Milão fora promulgado. É indispensável saber sobre a importância que Pânfilo exerceu no pro-cesso de formação intelectual de Eusébio de Cesaréia. Pânfilo era de Berito – atual Beirute – contudo estudara em Alexandria, aos pés de Piério, suces-sor intelectual de Orígenes. Posteriormente, Pânfilo foi para Cesaréia com a incumbência de organizar e complementar a biblioteca de Orígenes. Aproveitando para se dedicar ainda mais aos seus estudos, Pânfilo concentrou-se definitivamente em Cesaréia, onde acabou conhecendo Eusébio. Devido a amizade construída entre eles, juntos escreveram a Apo-logia em favor de Orígenes, obra composta por cinco livros escritos en-quanto Pânfilo já se encontrava preso, vítima da perseguição que o Im-pério Romano ainda exercia sobre os cristãos. Eusébio o acompanhara na prisão, até que Pânfilo foi decapitado em 16 de fevereiro de 310. A partir daí, Eusébio, que superara seu mestre na paixão pelos estudos, escreveria um sexto e último livro para aquela obra, além de escrever, em 311, uma biografia de Pânfilo. “No final de 324, ou início de 325, um sínodo em Antioquia excomun-gou Ário e seus adeptos, entre eles também Eusébio.”159 Fica claro que ini-cialmente, Eusébio era simpatizante da cristologia de Ário, conseqüente-mente opositor dos que defendiam a perspectiva da consubstancialidade do Verbo em relação ao Pai. No fim das contas, Eusébio acabou defendendo a posição mais ortodoxa, baseada no símbolo da igreja de Cesaréia, que ele próprio formulara. De forma bastante relutante, aceitou a idéia de consubs-

158

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 222.

159

DROBNER, op. cit., p. 232.

108 JESUS É DEUS?

tancialidade. Hubertus R. Drobner afirma que as preocupações de Eusébio “consistiam em que esse conceito trazia em seu bojo tendências sabelia-nistas, 160 não fazendo suficiente distinção entre Deus Pai e Deus Filho”. O fato é que Eusébio aceitaria oficialmente o Credo definido em Ni-céia, não pronunciando mais em favor do arianismo. Todavia, há indícios muito prováveis de que ele tenha participado de medidas tomadas contra alguns pensadores nicenos, inclusive Atanásio, que seria deposto em 335 pelo Sínodo de Tiro, no qual Eusébio estivera presente. Por ordem do imperador, escreveu contra a teologia de Marcelo de Ancira, que seria de-posto em 336. Para muitos historiadores, Eusébio tinha na verdade uma proposta intermediária, ou seja, de conciliação e tolerância; uma teologia que estivesse entre a ariana e a nicena. Não obteve êxito. Talvez o posi-cionamento assumido por ele fosse em função da condição em que se encontrava. Lendo com cuidado sobre sua vida, é possível perceber que sua relação com o imperador era bastante amigável. Eusébio acreditava que Constantino era um político levantado por Deus para pôr fim à perse-guição à religião cristã. Com isso, Eusébio assume uma postura bastante política em muitos momentos, o que acaba ficando evidente em suas ati-tudes como bispo, diante de problemas internos da cristandade daquele período, como a própria controvérsia ariana. O que mais interessa, porém, na presente leitura sobre Eusébio, é a sua maneira de pensar e escrever sobre a divindade do Filho. Em sua obra máxima, História Eclesiástica, Eusébio dedica o Livro Primeiro à reflexões sobre a pessoa de Jesus Cristo. Embora seja uma produção historiográfica, está claro que a História Eclesiástica de Eusébio é muito mais uma obra com objetivos dogmáticos e até apologéticos. Contudo, não perde por causa disso o seu caráter histó-rico, afinal, é graças a ela que hoje se tem informações a respeito da igreja pós-apostólica até o ano 324, precisamente. Para não se aprofundar nas peculiaridades sobre a obra, já que esse não é o objetivo, basta dizer que a História Eclesiástica foi um dos pri-meiros fatores que marcaram aquele momento de transição da igreja, que de perseguida se torna protegida do império. Mais do que isso, a obra de

160

Ibid., p. 232.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 109

Eusébio representa um pensamento preponderante na mentalidade cristã da época que acreditava ser aquele um momento de triunfo da igreja, após três séculos de intensa perseguição e martírios. Cabe agora conhecer algumas afirmações de Eusébio no livro primeiro da História Eclesiástica, deixando claro que independentemente de suas posições amigáveis para com o arianismo, ele acreditava e defendia que de alguma maneira, Jesus Cristo é Deus: “Filho genuíno e unigênito de Deus, Senhor, Deus e rei de todas as coisas criadas, dotado pelo Pai de domínio, poder e também de divindade, força e honra.”

161 162

“Por conseguinte, estava convicto de ser o Cristo algo divino.”

“Alguns profetas se tornaram figuras de Cristo. Todos eles de algum modo se assemelharam ao verdadeiro Cristo, Verbo divino, único sumo sa-cerdote universal e rei único de toda a criação.”163 “... é adorado como Deus por ser o Verbo de Deus preexistente, subsisten-te antes de todos os séculos, e ter recebido do Pai augusta veneração.”164 “... Tendo sido anunciada a todos os homens a divindade de nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, seu poder de fazer milagres atraiu multidões ...”165 Essas e outras frases de Eusébio, mostram a maneira como ele traba-lhava teologicamente a questão da divindade do Filho. Está de certo modo bastante claro que Eusébio, diferentemente de outros pensadores pré-ni-cenos, faz afirmações que dão margem para duas leituras antagônicas. É possível ver em suas colocações tanto uma cristologia ariana como uma cristologia da consubstancialidade. Portanto, diferentemente dos pais da Igreja anteriormente trabalhados neste capítulo, Eusébio é o pensador pré-niceno que não deixa clara sua 161

CESARÉIA. op. cit., p. 32.

162

Ibid., p. 39.

163

Ibid., p. 40s.

164

Ibid., p. 43.

165

Ibid., p. 66.

110 JESUS É DEUS?

posição cristológica. O que torna sua reflexão mais enigmática é o fato de que sua obra antecede o Concílio de Nicéia, tempo em que Eusébio era mais simpatizante de Ário que opositor. Por isso as suas afirmações dão margem para duas interpretações.

PARTE 2 Capítulo

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 111

06

SOBRE A DIVINDADE DO LOGOS NO CREDO DE NICÉIA

Uma vez conhecidas as reflexões de alguns pais pré-nicenos acerca da divindade do Filho, é importante destacar determinados pontos do Credo definido em Nicéia. A fim de relembrá-lo, pois já foi citado na abordagem histórica, segue outra citação na íntegra: Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra; o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e nova-mente deve vir para julgar os vivos e os mortos; e no Espírito Santo. E a quantos dizem: “Ele era quando não era”, e “Antes de nascer, Ele não era”, ou que “foi feito do não existente”, bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência”, ou “feito”, ou “mutável”, ou “alterável” a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatematiza.

166

O Credo definido e adotado em Nicéia trouxe em seu conteúdo a es-sência da ortodoxia cristã sobre a divindade do Λόγος. Quanto à questão do Espírito Santo há apenas uma citação, mas a teologia a esse respeito só seria acrescentada no Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 381. A condenação do arianismo está explícita nas palavras do Credo de Nicéia que foi aceito pela maior parte dos bispos presentes, mesmo consi-derando que muitos “deles tenham assinado com certa hesitação, especial166

BETTENSON. op. cit., p. 62.

112 JESUS É DEUS?

mente os membros de uma das partes divididas do partido de Eusébio de Cesaréia 167 que tinham simpatia maior pelos arianos”. Uma maneira de compreensão do Credo que pode ser adotada é a de inserir comentários em alguns pontos fundamentais. Não visando apro-fundamento mas apenas uma breve leitura, será possível alcançar algumas conclusões suficientes acerca do que o Credo realmente definiu. Cremos em um só Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas visíveis e invisíveis A declaração inicial do Credo reconhece Deus como único, pai, capaz e criador de todas as coisas. Tal reconhecimento demonstra que ao se referir a Deus com tais características, declara-o como soberano sobre tudo. A última colocação afirma essa soberania de tal modo que dizer Deus é sobe-rano não se reduz em apenas afirmá-lo como grande, mas em perceber que sua soberania em si mesma estabelece que ele está no controle absoluto de todas as coisas em todos os momentos da história e de toda a eternidade. Tanto aquilo que é visível como o que não é, inclusive os sentimentos, dese-jos e vontades dos seres humanos estão sujeitos à sua vontade e soberania. Isso é o que significa afirmar que ele é criador até do invisível. E ser criador é o mesmo que ter o domínio sobre a criação. Até mesmo os lapsos, desvios e rebeliões da criação são parte de um plano soberanamente determinado por Deus. Apenas assim é que a sua grandeza será reconhecida. ... e em um só Senhor Jesus Cristo, o Filho de Deus, gerado pelo Pai, unigênito, isto é, da substância do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra Essas foram as expressões nicenas de fé em Cristo e, ao mesmo tempo, de condenação ao arianismo. Jesus é confessado pelo Credo como Único Filho de Deus e semelhantemente Senhor. Essa declaração sustenta, do ponto de vista

167

CAMPOS. op. cit., p. 155.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 113

teológico, a convicção cristã na divindade de Jesus Cristo. E de um modo muito peculiar, o Credo de Nicéia foi definido no intuito de preservar a essência do conteúdo bíblico a respeito dessa divindade. Como afirma Kessler, “ele não queria ir além da Escritura, mas conservar a intenção de suas afirmações em vista dos novos questionamentos”.168 Sobre o mesmo contexto, Campos comenta: Após afirmar que a pessoa do Filho é distinta da do Pai, encontramos outra afirmação de Nicéia que nos ajuda a en-tender a Pessoa do Filho. Nicéia não somente afirmou que o Filho não foi feito, mas afirmou de modo positivo que ele foi “gerado”, o que aponta para a sua pessoalidade, e não para o fato de ele ser criatura. [...] Há uma diferença muito grande entre ser feito e ser gerado. Se ele é uma criatura, então não pode ter sido gerado. Portanto, a idéia de geração exclui a possibilidade ariana de o Filho ter sido feito.169 Com a declaração de que o Filho foi gerado pelo Pai, o Credo de Ni-céia explicita sobre a união que há no aspecto essencial das naturezas de ambos. Essa relação de proximidade é denominada co-essencialidade ou consubstancialidade. Também é importante salientar que há uma grande discrepância no pro-cesso de geração dos seres humanos. Enquanto os homens existem a partir de uma relação sexual, o Filho é coeterno com o Pai. Dizer que Ele foi gerado pelo Pai não significa que tenha sido criado, mas que é da mesma natureza, da mesma essência e da mesma substância. Sua existência é eterna tal qual a existência do Pai. Embora sejam individualmente distintos no aspecto pesso-al, são um no aspecto divino, ou seja, um não existe antes do outro. As colocações Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não feito, de uma só substância com o Pai, complementam tal abordagem. O mesmo é dizer: Deus Filho de Deus Pai, Luz Filho de Luz Pai, Deus Filho Verdadeiro de Deus Pai Verdadeiro. Segundo Rubenstein, essa declaração “era a resposta à afirmação de Ário que Jesus era divino, mas não idêntico ao Criador”.170 168

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 307.

169

CAMPOS. op. cit., p. 158.

170

RUBENSTEIN. op. cit., p. 110.

114 JESUS É DEUS?

Segundo Agostinho, “pode-se dizer ‘Deus de Deus’, aplicando essa denominação a cada uma das duas pessoas divinas, sem se indicar por aí dois 171 deuses, mas um só Deus”. Sobre o uso do vocábulo “consubstancial”, embora o Concílio preten-desse utilizar apenas palavras presentes na Bíblia, Kessler enfatiza que isso não foi possível: Assim, precisou-se recorrer a termos da filosofia helenista, “nãobíblicos” e estranhos à tradição comunitária: [...] consubstancial é, de certa maneira, a tradução da metáfora bíblica “Filho” para o conceito de uma filosofia da essência. [...] Requeria que se dissesse que o Filho é Deus mesmo segundo sua essência e está no mesmo plano do ser que o Pai, de modo que quem se encontra com Jesus Cristo encontra-se com este Filho e, por meio dele, com o Pai.

172

Dizer “pelo qual foram feitas todas as coisas, as que estão no céu e as que estão na terra”, é o mesmo que expor o atributo de Criador à pessoa do Filho. Semelhantemente ao Pai, ele não é apenas Deus e coeterno, mas também Criador. o qual, por nós homens e por nossa salvação, desceu, se encarnou e se fez homem, e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao céu, e novamente deve vir para julgar os vivos e os mortos

Nesse trecho está presente o aspecto soteriológico da divindade do Fi-lho. Sua manifestação histórica, ou seja, sua encarnação e conseqüentemen-te tudo o que experimentou na própria pele é a resposta de Deus ao homem, que se encontra perdido em suas depravações e incapaz de por si só aproxi-mar-se de seu Criador. A fim de que seja regenerado e reconduzido a Deus, o único meio para que isso aconteça é a providência da salvação eterna por meio da morte de um ser justo. Para isso, o Λόγος manifestou-se historica-mente a fim de ser sacrificado como um ser humano injusto. Sua experiência sacrificial, apesar de essencialmente importante para a humanidade, foi antes de qualquer coisa a representação da eternidade na história. O que segundo 171

AGOSTINHO, Santo. A trindade. São Paulo: Paulus, 1994, p. 222. (Patrística, v. 7).

172

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 307.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 115

o Novo Testamento acontecera antes da fundação do mundo foi representa-do historicamente no tempo e no espaço, em prol da criação manchada pela injustiça. Além de Deus, justo, criador, luz, coeterno e da mesma substância que o Pai, o Filho é também salvador da humanidade injusta. Campos destaca que “a idéia de Cristo ser uma criatura era fatal para o 173

conceito de salvação esposado por Atanásio”. Portanto, “o verdadei-ro motivo e a preocupação positiva do concílio [...] era a fé na redenção: era preciso tornar a 174

realidade da redenção concebível no contexto que se modificara”. “As Escrituras afirmam que ele é divino e que, para a salva-ção, é necessário que ele seja divino.”

175

E a quantos dizem: “Ele era quando não era”, e “Antes de nas-cer, Ele não era”, ou que “foi feito do não existente”, bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus “de outra substância ou essência”, ou “feito”, ou “mutável”, ou “alterável” a todos estes a Igreja Católica e Apostólica anatematiza.

Apresentando as proposições de Ário, esse último trecho do Credo ser-viu para mostrar qual seria a interpretação que a igreja deveria fazer da-queles que rejeitassem o que ali estava definido. Ário e seus adeptos que se negaram em assinar o Credo foram considerados hereges e condenados ao exílio. Mas o conteúdo do último tópico é de considerável importância, pois brevemente são recolocados os pontos de maior dificuldade para Ário. Primeiramente, a questão da coeternidade é reconsiderada. O Credo de-fine que, de fato, Jesus existe junto com o Pai antes de todas as coisas e não a partir de determinado momento. Ele não foi criado por Deus, que a partir daí seria considerado Pai, mas é eterno Deus e Criador, junto com o Pai. É verdade que as palavras eterno e eternidade não aparecem no texto formulado em Nicéia com respeito ao Filho, mas ela pode

173

CAMPOS. op. cit., p. 156.

174

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 307. De acordo com Kessler, “a condição de criatura não deve ser atribuída ao Filho preexistente (ele é consubstancial com o Pai), mas unica-mente à natureza humana por ele assumida, portanto ao ser humano Jesus”. 175

OLSON, op. cit., 2001, p. 159.

116 JESUS É DEUS?

ser deduzida muito facilmente porque o Credo combate a idéia ariana de que ele “foi feito do não-existente” ou que ele tenha sido “feito”. Se ele foi feito do não-existente, isto quer dizer que houve um tempo em que ele não era, mas só veio a ser depois de ter sido feito. Isto implica numa noção temporal. Todavia, quando o credo combate a temporalidade do Filho, ele está afirmando a sua eter-nidade, colocando-o na mesma situação do seu Pai.

176

Sobre a consubstancialidade, Kessler disserta que a produção teológica de Nicéia estabeleceu que “o Filho, que em Jesus Cristo se fez carne ou ser hu-mano e nele se nos depara, não é a primeira criatura (não criado); ele é, antes, o único que foi gerado/nascido do Pai”.177 Para Kessler, é certo que há: ... um relacionamento cheio de vida do “Pai” sem origem e origi-nário com o “Filho” que lhe corresponde eternamente: Deus – ao contrário do que pensa Ário – está cheio de vida infinita, rica em relações. Logo, o Filho preexistente pertence inteiramente à es-sência divina indivisa, está na mesma categoria como o Pai...

178

Considerar o Filho como um ser mutável e alterável é o mesmo que assemelhá-lo a qualquer criatura. Sendo Deus, conforme já defendido, não há qualquer possibilidade de transformação essencial no Λόγος. Todavia, os que aceitam tal hipótese são categoricamente qualificados pelo Credo de Nicéia como hereges.

176

CAMPOS. op. cit., p. 161.

177

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 306.

178

Ibid., p. 306.

PARTE 2 Capítulo

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 117

07

SOBRE A DIVINDADE DO LOGOS NA OBRA DE ATANÁSIO

Os textos de Atanásio que permaneceram até os presentes dias são suficientes para que sua teologia seja compreendida de um modo claro e não apenas por meio de uma verificação secundária como normalmente é feito em hipóteses histórico-dogmáticas a respeito de alguns pais da Igreja, cujos escritos se perderam no decorrer dos séculos. Não se está afirmando que obras secundárias são irrelevantes para um trabalho de pesquisa, mas certamente quando se tem à disposição a documentação primária de determinado objeto de estudo, a confiabilidade do trabalho ocorre de modo instantâneo. Na maioria das vezes, a credibilidade dada a uma investigação histórica está diretamente relacionada às fontes que foram consultadas e examinadas. Antes de realizar qualquer leitura no conteúdo teológico dos textos de Atanásio, convém observar a importância de suas produções literárias. Sobre as obras dogmáticas que ele escreveu, Moreschini e Norelli comentam: Entre os escritos dogmáticos, dedicados à defesa da ortodoxia, destacam-se os quatro livros Contra os arianos, dos quais, porém, o quarto não é autêntico. São enviados a todos os cristãos (à dife-rença de muitas epístolas de Atanásio, que têm como destinatários sobretudo colegas), com o objetivo de informá-los da nova here-sia. [...] Contra os arianos constitui, de todo modo, um momento central da vida e da atividade de Atanásio, tanto que mesmo suas obras polêmicodogmáticas posteriores [...] retomam alguns moti-vos das temáticas 179

expostas nos três livros Contra os arianos.

No interesse de mostrar teologicamente a incoerência da proposta ariana, Atanásio escreveu tais obras. Todavia, a grande obra dogmática de Atanásio, e que aqui será consideravelmente citada é A encarnação do Ver179

MORESCHINI; NORELLI, op. cit., p. 59 e 60.

118 JESUS É DEUS? 180

bo . Nesse texto Atanásio relaciona três aspectos essenciais da fé cristã, uns com os outros. Os aspectos são a encarnação do Verbo propriamente dita, a divindade de Jesus Cristo como natureza eterna e a necessidade dessas duas convicções para a perspectiva da salvação. É como afirmar que sem ser Deus, o Verbo não poderia salvar o homem pecador e o Verbo só poderia salvar o pecador tornando-se semelhante aos homens, mesmo sendo Deus. No segundo caso, tratase diretamente da encarnação. Além da obra dogmática, Atanásio também escreve Contra os pagãos, na qual, embora tenha tratado mais sobre a irrelevância do pensamento politeísta dos antigos gregos, há alguns dizeres diretos e explícitos sobre a divindade de Cristo. A seguir estão algumas das colocações de Atanásio: “... falo do próprio Verbo, o Verbo de Deus bom do universo, o próprio Deus vivendo e agindo; ele é o único e o próprio Verbo do Pai bom; e ele que organizou este universo e o aclara pela sua providência.”181 “Mas Deus existe e não é composto; também seu Verbo existe, e não é composto, mas é Deus único e Filho único, que, Deus bom procedendo do Pai como de boa fonte, ordena e contém todas as coisas.”182 Ainda em Contra os pagãos, Atanásio faz muito uso da terminologia “Deus Verbo”: “A obediência a este Deus Verbo dá a vida aos seres terrestres, reúne os que estão nos céus.”183 “Pelo único impulso e mandamento do Deus Verbo, todas as coisas são postas em ordem, cada uma opera o que lhe é próprio e todas em conjunto realizam ao mesmo tempo uma ordem única.”184 180

Quanto à data do texto há muitas posições distintas. Mesmo não tendo em qualquer momento citado o nome

de Ário ou dos arianos nessa obra, Atanásio faz referências diretas sobre o que eles pensavam. E, atacando com veemência, Atanásio escreveu esta que certamente se tornou a principal de todas as suas composições. Para a maioria, o texto foi escrito entre 332 e 335. 181

ATANÁSIO, Santo. Contra os pagãos; A encarnação do Verbo; Apologia ao imperador Constâncio;

Apologia de sua fuga; Vida e conduta de S. Antão. São Paulo: Paulus, 2002. p. 105. (Patrística, v. 18). As informações introdutórias presentes no livro são de Ro-que Frangiotti. 182

Ibid., p. 106.

183

Ibid., p. 107.

184

Ibid., p. 109.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 119

Olson comenta que a linha inicial do pensamento teológico de Ataná-sio empregou a metafísica para sustentar a hipótese de igualdade entre o Pai e o Filho. “O âmago do argumento é que se o Pai é Deus, o Filho deve forçosamente também ser Deus, pois de outra forma, o Pai teria passado por uma mudança ao se 185 tornar Pai.” Quando Atanásio se dispôs a escrever a clássica obra A encarnação do Verbo, a relação metafísica entre o Filho e o Pai tornou-se fator de compli-cação. Pareceu difícil relacionar a imutabilidade da natureza divina com a mutabilidade da natureza humana. Na tentativa de resolver essa questão, Atanásio reporta-se aos pais da Igreja anteriores a ele, oferecendo ao final uma argumentação não muito persuasiva, mas tolerável. Os arianos, po-rém, percebendo a dificuldade de Atanásio ao explicar a relação, sustenta-ram ainda mais suas teses de oposição à divindade do Λόγος. O argumento soteriológico de Atanásio para sustentar sua cristologia defende que “se o Filho de Deus não é ‘verdadeiramente Deus’ no mesmo sentido que o Pai, fica impossível a salvação como uma nova criação. So-mente Deus pode desfazer o pecado e fazer com que uma criatura compar-tilhe da natureza divina”.186 Segundo os dizeres do próprio Atanásio: “... como teria o Verbo poder, se fosse uma criatura, para desfazer a sentença de Deus e remir o pecado, em contraste com o que está escrito nos Profe-tas, que essa é obra de Deus?”.187 Atanásio explorou a idéia a fim de comprovar a divindade de Cris-to, em debate contra os arianos e semi-arianos. Ireneu, Atanásio e muitos teólogos cristãos, a partir de então, compartilham de uma idéia comum: a não ser que Jesus Cristo fosse tanto “ver-dadeiramente Deus” como “verdadeiramente homem”, a salvação simplesmente não poderia ocorrer. [...] O evangelho diz respeito à salvação mediante Jesus Cristo e, se Jesus Cristo não fosse tanto Deus como humano, não poderia unir Deus e os homens. A salva-ção acabaria, então, sendo reduzida a ter uma vida moral virtuosa (o modalismo cristão), a obter algum conhecimento secreto (gnos185

OLSON, op. cit., 2001, p. 172.

186

Ibid., p. 173.

187

Four discourses against the Arians 2.67. apud SHAFF, Philip. A select library of the Nicene and

post-Nicene fathers of the Christian Church, 14 vols., Grand Rapids, Eerd-mans, 1984.

120 JESUS É DEUS?

ticismo) ou a meramente receber o perdão dos pecados, mas ser deixado na mesma condição caída e corrupta de antes.

188

Para compreensão mediante uma direta consulta à obra de Atanásio, segue abaixo sua convicção a respeito da divindade do Λόγος de maneira bastante explícita: Uma vez que o espírito dos homens havia caído no domínio do sensível, o Verbo se abaixou até se tornar corporalmente visível, a fim de atrair a si os homens enquanto homem e fazer com que a sensi-bilidade humana se inclinasse para ele; de então em diante, vê-lo-iam como homem, e suas obras os persuadiram de que ele não é apenas homem, mas Deus, Verbo, Sabedoria do Deus verdadeiro.

189

Discorrendo a respeito do aspecto salvador da encarnação, Atanásio comenta: “Efetivamente, dar ordens aos demônios e exorcizá-los não constitui obra humana, mas divina. Pois, ao curar doenças a que o gênero humano está sujeito, como julgá-lo ainda homem e não Deus?”190 “... por ocasião de sua morte, ou antes em vista do troféu alcançado sobre a morte, isto é, a cruz, toda a criação confessa não ser simplesmente homem aquele que corporalmente se manifesta e sofre, e sim o Filho de Deus...”191 Diante de tudo o que ocorreu no momento da crucificação de Jesus, conforme a narrativa de Mateus (cf. Mt 27.45-51): trevas, terremoto, mon-tanhas se dividindo e pessoas alarmadas, Atanásio afirma que tais “prodí-gios mostravam que o crucificado era Cristo Deus, a criação era sua serva, enquanto o temor que sentiam atestava a presença do Senhor. Assim, por-tanto, o Verbo que é Deus se revelou aos homens por meio das obras”.192 Há uma série de discussões sobre a possibilidade ou impossibilidade de Jesus Cristo ter tido a experiência de pecar. Os mais ortodoxos defendem a opi188

OLSON, op. cit., 2001, p. 173 e 174.

189

ATANÁSIO, op. cit., p. 146.

190

Ibid., p. 150.

191

Ibid., p. 151.

192

Ibid., p. 151 e 152.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 121

nião de que a sua natureza divina era suficiente para evitar qualquer obstáculo que aparecesse como tentador diante de sua humanidade. Muitos atualmente têm defendido a separação das duas naturezas, chegando a afirmar que a na-tureza humana de Jesus venceu as tentações sem qualquer elemento divino que o auxiliasse. Certamente a dependência em relação ao Pai foi uma praxe da experiência de Jesus, porém, sua natureza divina sempre esteve presente em sua atuação como ser humano. Para que o homem pudesse ser salvo por intermédio da entrega sacrificial de Cristo, seria obrigatoriamente necessário que este fosse Deus. Um pecador ainda que nunca tivesse cometido pecado, jamais poderia salvar outro pecador. Essa é a posição mais ortodoxa. “A encarnação do Senhor é o único instrumento que proporciona a salvação ao homem, porque [...] foi realizada com vistas à redenção. Mas a redenção só é 193

possível se se admite que o Cristo encarnado é Deus...” “Portanto, segundo o argumento de Atanásio, se o Filho de Deus que veio a ser Jesus Cristo não fosse realmente Deus da mesma forma que o Pai é Deus, nós, humanos, não seríamos salvos por ele...”194 Assim, Jesus não revelaria de fato o Pai aos seres humanos. Deus se revela em Cristo a ho-mens que são autonomamente impossibilitados de enxergá-lo. Sendo ape-nas homem, Jesus não poderia ser a revelação do Pai aos pecadores. Para esse fim, é necessário que Jesus seja realmente consubstancial com o Pai. O consubstancial seria, segundo os arianos (e de fato assim era), estranho à tradição do cristianismo, porque não-escriturístico. Mas Atanásio responde que em todo o caso o termo abarca o es-sencial do problema, porque só o consubstancial faz ver a relação entre o Filho e o Pai, não porque se deva fazer disso um símbolo de luta, como por seu turno eram as várias definições arianas, sur-gidas uma atrás da outra. O consubstancial era justificado única e simplesmente porque manifestava a natureza de Deus e sua ati-vidade salvífica: a verdade que ele indica se encontra confirmada nos fatos e no significado mais profundo das Escrituras.

195

193

MORESCHINI; NORELLI, op. cit., p. 62.

194

OLSON, op. cit., 2001, p. 175.

195

MORESCHINI; NORELLI, op. cit., p. 72.

122 JESUS É DEUS?

Atanásio também reprovou a iniciativa de se requisitar uma explicação lógica acerca de Deus. Em sua segunda carta, das quatro que enviou ao bispo Serapião no intuito de apresentar ou mesmo defender o dogma da divindade do Espírito Santo, Atanásio dissertou: Não se deve crer que o “consubstancial” possa transpor a inacessibilidade absoluta de Deus, que exige somente nossa adoração. Muito menos aceitável é a tomada de posição dos heréticos que, no cúmulo da soberba humana, acham possível recorrer à lógica para falar de Deus, 196

“como se não existisse nada que eles não pos-sam compreender.”

A exigência de explicações racionais sobre as coisas divinas, segundo Atanásio, é prática comum entre os heréticos. Da mesma forma ocorre no processo de investigação e discussão sobre outras questões peculiares à prerrogativa divina. Nesse aspecto, o cristianismo se diferencia de todos os seguimentos religiosos existentes. Ele propõe elementos que não podem ser intelectualmente compreendidos nem logicamente explicados. Quando o ser humano aceita tal proposta, significa que sua decisão foi a de crer em tais elementos por meio da fé. Crendo para depois compreender à luz de argumentos bíblicos e teológicos, é uma atitude coerente e freqüentemente aceitável. O equívoco está em crer somente após a compreensão. E a compreensão que tais pensamentos nor-malmente exigem não é outra senão a que procede da lógica e dos fatores que não rompem com a natureza e com o humanamente possível. Mas Jesus teria dito: “bemaventurados os que não viram e creram.”197 O diferencial do Deus proposto pelo cristianismo autêntico do evange-lho, reside exatamente nesse tópico. Ele não se reduz à possibilidade de ser compreendido por meio de argumentações lógicas e racionais, mas somen-te por meio de sua Palavra, de seu ato de se revelar aos homens por meio da Escritura, do Verbo, da proclamação e da manifestação no interior de cada ser humano individualmente escolhido para seu plano de salvação.

196

Ibid., p. 73.

197

Jo 20.29b (Revista e Atualizada no Brasil).

PARTE 2 Capítulo

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 123

08

A DIVINDADE DO LOGOS NA OBRA DE HILÁRIO DE POITIERS

Uma breve história da vida e obra de Hilário de Poitiers Com relativo retardo, a controvérsia ariana atravessou fronteiras, chegan-do ao Ocidente, sobretudo no império de Constâncio, o herdeiro ariano de Constantino. “A luta entre arianos e nicenos suscitou no Ocidente, como no Oriente, numerosas obras polêmicas de nível modesto, que todavia constituem o húmus sobre o qual se erguerão as grandes personalidades de Hilário, Mário Vitorino e Ambrósio.”198 Além destes, outros como do já conhecido Ósio de Córdoba, Gregório de Elvira, Febádio, Potâmio de Lisboa, Eusébio de Vercelli e Lucifero de Cagliari se destacam na história do combate ao arianismo que chegou ao Ocidente em meados do quarto século. Foram teólogos que escreveram cartas, tratados e comentários no intuito de refutar as doutrinas arianas. Mas o principal de todos foi Hilário de Poitiers (315 - 367), que “retomou todas as temáticas exegéticas, espirituais, teológicas de seu tempo, imprimin-dolhes o sinal de sua individualidade, e, não contente em contribuir com o pensamento à definição da ortodoxia, tentou alcançar o objetivo também com obras polêmicas, com tratados históricos, com hinos de conteúdo religioso”.199 Hilário não foi um teólogo que se baseou no Credo de Nicéia para apresentar suas reflexões anti-arianas, mas a exposição de sua proposta de refutação à controvérsia, teve como ponto de partida a obra de Tertualino, Contra Práxeas, altamente reconhecida no Ocidente ainda na metade do quarto século. “É a exposição mais clara, pré-nicena, da doutrina eclesi-ástica sobre a trindade; foi redigido contra o patripassiano Práxeas; nesse escrito aparece pela primeira vez o termo trinitas.”200 Citado por Atanásio na Apologia ao imperador Constâncio, Hilário nasceu em uma nobre família da Gália, por volta de 315. “Recebeu a formação retó198

MORESCHINI; NORELLI, op. cit., p. 316.

199

Ibid., p. 322.

200

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 163.

124 JESUS É DEUS?

rica e filosófica de seu tempo. Suas investigações concernentes ao sentido da vida encaminharam-no para o estudo da Sagrada Escritura e o batismo.”201 Em sua principal obra dogmática intitulada Tratado sobre a Santíssima Trindade, Hilário dá a entender que se convertera à fé cristã já adulto, entregando-se fervorosamente à prática religiosa, posteriormente ao serviço eclesiástico e à produção teológica. A historiografia também relata que Hilário foi casado, e, possivelmente, teve uma filha chamada Abra. “Seja como for, Hilário só recebeu o batismo depois de adulto, tendo sido por volta de 350 elevado à cátedra episcopal de Poitiers, e por volta de 355 atraindo a oposição de grupos arianos, entre os quais sobretudo o do 202 bispo Saturnino de Arles.” Sobre o início do episcopado de Hilário em Poitiers, Maria Thaís Robbe comenta ter sido relativamente tranqüilo: Neste período de sua vida, dedicado à pregação e aos encargos do ministério, escreveu o seu comentário ao evangelho segundo Mateus. O arianismo que ameaçava a Igreja do Oriente ainda não causava perturbação na Gália; porém, durante o sínodo de Milão, em 355, quando o Imperador obrigou os bispos a confirmar a condenação de Atanásio e enviou para o exílio os que se opuseram a sua vontade, Hilário viu-se envolvido na controvérsia ariana, rompendo, juntamente 203

com os demais bispos da Gália, com os partidários do imperador.

A condenação de Atanásio pelo sínodo de Milão (355), que encontrou forte resistência no Ocidente, e a reação ariana que teve início a partir daí, parecem haver fornecido a Hilário a ocasião para publicamente se opor a isso. Ele até então não se havia salientado de maneira especial, de modo que quase nada sabemos a respeito de sua vida anterior.

204

Posteriormente, Hilário seria rejeitado no sínodo de Biterra (atual Béziers), por declarar-se opositor do arianismo. Como o imperador Constâncio era aria-no, não foi difícil para ele atender ao pedido dos bispos adversários no sentido 201

Ibid., p. 362.

202

DROBNER, op. cit., p. 264.

203

HILÁRIO, Santo. Tratado sobre a Santíssima Trindade. São Paulo: Paulus, 2005, p. 13. (Coleção Patrística). 204

DROBNER, op. cit., p. 264.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 125

de que Hilário fosse de alguma maneira condenado. Constâncio optou por en-viálo ao exílio na Frigia, localizada na Ásia Menor. Essa experiência foi bastante positiva, pois lá no exílio Hilário foi sobremaneira enriquecido com o contato que passou a ter com a teologia cristã produzida no Oriente, que sem dúvida era mais sólida e avançada que a teologia desenvolvida pelos cristãos ocidentais. De 356 a 359, tempo em que Hilário ficou exilado na Frigia, foi o período suficiente para que ele iniciasse sua própria teologia. Sobre isso Drobner se aprofunda: Ao que tudo indica, ele gozava de uma ampla liberdade de movi-mentos e mantinha correspondência com bispos da Gália. Apren-deu a teologia de Orígenes, que marcou sua espiritualidade e sua compreensão da Bíblia, manteve contato com os homoiusianos, chegando assim a uma visão diferenciada do problema e ao empe-nho de encontrar um caminho teológico viável entre um nicenismo radical, que trazia consigo o perigo do sabelianismo, e a total re-jeição da igualdade de essência entre o Filho e o Pai (anomeus).

205

“Data dessa época o início de seu livro Adversum Valentem et Ursa-cium. Também redigiu o Tratado sobre a Santíssima Trindade, que antes foi chamado Da fé contra os arianos, e o livro De Synodis.”206 Enquanto permanecia exilado na Frigia, Hilário não só tinha contato com aquelas preciosas produções teológicas que o Ocidente desconhecia, como também mergulhava profundamente na língua grega, no intuito de posteriormente compartilhar por meio de sua própria obra exegética todos os esclarecimentos possíveis da teologia cristã aos seus leitores de língua latina. É importante destacar que em seu Comentário a Mateus, Hilário adotou a interpretação alegórica como critério exegético, não desconsiderando, po-rém, em muitos momentos, o método histórico-gramatical. Mas tudo isso, Hilário fez com o texto da Vulgata, ou seja, não foi um ensaio de interpretação desenvolvido a partir da leitura dos textos do Evangelho na língua original. O período em que Hilário esteve exilado é marcado pela reunião de três sínodos: Sírmio (357), Rimini (359) e Selêucia (setembro de 359), mas vale lembrar que ele só esteve presente no terceiro, quando defendeu o uso do termo ομοούσιος, afirmando que não implicaria uma suposta ade-são ao sabelianismo.

205

Ibid., p. 264.

206

HILÁRIO, op. cit., p. 13. Texto contido na introdução escrita por Maria Thais Robbe.

126 JESUS É DEUS?

Como foi o próprio imperador quem obrigou a realização dos sínodos de Rimini e Selêucia, Hilário assumiu uma postura bastante polêmica e ao mesmo tempo ousada. Escreveu uma obra intitulada Contra Constâncio, em que, além de acusar o imperador de tirania maior que seus antecesso-res Nero e Décio207, enfatizou não ter sido atendido por Constâncio a res-peito da solicitação que fizera, pedindo “uma audiência em Constantinopla, com a finalidade de pôr a 208

descoberto a mentira de seu antigo adversário Saturnino”.

“Porém, o escrito, 209

dirigido aos bispos ocidentais, só veio a lume após a morte do imperador.”

Possivelmente no início de 360, Hilário retornou a Gália com a convic-ção de que voltara para trabalhar por um restabelecimento real da ortodo-xia no Ocidente. Antes de morrer em 13 de janeiro de 367 ou 368 - o ano ainda é consi-derado incerto pelos historiadores - Hilário se destacou por obter no sínodo de Paris, em 361, a condenação dos dois bispos arianos Arles e Périgueux e a rejeição das doutrinas de Valente, Germinio de Sírmio e Ursácio210; além disso, Hilário “em 364, por ocasião do advento do novo Imperador, Valen-tiniano, reuniu-se com outros bispos, tentando afastar o bispo ariano de Milão, Auxêncio, mas foi obrigado a voltar a Poitiers. Escreveu então sua

207

Gaius Messius Quintus Trajanus Decius (201 - 251), imperador romano (249 - 251). Tendo sido

promovido à dignidade imperial, após a morte de Filipe, o Árabe parece que observou com certa desconfiança o poder crescente dos cristãos, e determinou reprimi-lo. Vendo as igrejas cheias de prosélitos e os templos pagãos esvaziados, em-preendeu a Oitava Perseguição Geral contra o Cristianismo. O papa Fabiano foi um dos primeiros a sofrer o martírio. Informação extraída do site wikipédia no endereço: http:// pt.wikipedia.org/wiki/D%C3%A9cio. 208

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 365.

209

DROBNER, op. cit., p. 265.

210

Germínio de Sírmio, Ursácio e Valente é conhecido como o “trio ilírico”. Eram aria-nos, mesmo que do partido homeano, pois preferiam não falar do homoousios nem do homo(i)ousios - de mesma e semelhante substância, respectivamente, mas ao contrário dizer que o Filho é “semelhante” - homoios - ao Pai. Às vezes são chamados de “arianos políticos” por causa da ambigüidade de tal postura. As atitudes do trio levaram à “Blas-fêmia de Sírmio”, quando um sínodo congregado nessa cidade proibiu o uso dos termos homoousios e homo(i)ousios, declarando que ninguém pode duvidar de que o Pai é maior que o Filho em honra, dignidade, esplendor, majestade e no nome do próprio Pai [...] e que o Filho está subordinado ao Pai”. - cf. GONZALEZ, Justo L. Dicionário ilustrado dos intérpretes da fé. Santo André, SP: Editora Academia Cristã, 2005. p. 292.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 127

obra Contra Auxencium”.211 Mesmo com a deposição de Auxêncio decretada no sínodo de Milão, Hilário e seu “entusiástico companheiro”212 Eusébio de Vercelli não viram tal decreto ser consolidado. O imperador Valentiniano in-terveio, argumentando que em seu comando não admitiria conflitos como os que ocorreram no período em que Constâncio esteve no poder. Como a deliberação do sínodo não pôde ser aplicada, o bispo “Auxêncio permane-ceu em sua cátedra até 213 morrer, em 374 (suceder-lhe-á Ambrósio)”. A fase final da vida de Hilário é marcada, portanto, por seu dedicado trabalho como pastor na Gália e por sua valiosa produção teológica e exegética. Ainda dedicou-se à composição de hinos litúrgicos, os quais tinham como objetivo celebrar a glória de Deus em forma de poesia. Drobner destaca: Em 13 de maio de 1851 o papa Pio IX concedeu-lhe o título ho-norífico de Doutor da Igreja, e até hoje o período de sessões dos tribunais ingleses, assim como o semestre de primavera nas uni-versidades de Oxford e Durham, é chamado de “Hilary Term”, por começar tradicionalmente no dia 13 de janeiro, festa de S. Hilário, ou em uma data muito próxima.

214

Percebe-se que a pesquisa que se preocupou com a importância de Hilá-rio não deixou de valorizar sua participação na História, contudo, no proces-so de combate teológico à controvérsia ariana, o mais importante dos títulos que ele recebeu por defender a fé nicena foi o de “Atanásio do Ocidente”.

Tratado sobre a Santíssima Trindade “Na concepção de Hilário, a base fundamental da igreja é a fé na divin-dade de Cristo.”215 Em seu Tratado sobre a Santíssima Trindade, obra com-posta durante o exílio de 356 a 360, Hilário afirma em vários momentos sua convicção na divindade de Cristo, mostrando por meio de suas reflexões 211

HILÁRIO, op. cit., p. 14.

212

DROBNER, op. cit., p. 266.

213

MORESCHINI; NORELLI, op. cit., p. 329.

214

DROBNER, op. cit., p. 266.

215

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 365.

128 JESUS É DEUS?

que “o Filho é gerado pelo Pai e é Deus como o Pai é Deus. Não é, porém, a 216 mesma Pessoa”. Na obra de Altaner e Stuiber, o comentário sobre esse Tratado de Hi-lário descreve-o como sendo sua obra capital, constituindo em seus doze livros “o que de melhor foi escrito em defesa da verdadeira divindade e con-substancialidade do Filho, contra os arianos.”

217

Afirmam ainda:

A obra, ardente de entusiasmo pela doutrina que defende, apresenta uma teologia mais positiva do que especulativa. Como polemista, Hi-lário se sente obrigado a levar em conta o sentido histórico-gramati-cal da Sagrada Escritura. Apesar da utilização do trabalho intelectual de teólogos gregos, a obra é uma notável produção pessoal.

218

Nas palavras de Drobner, “por um lado Hilário pretende defender a doutrina trinitária ortodoxa contra os arianos, mas além disso ele quer também suas bases teológicas”.219 Em todo caso, em seu pensamento Hi-lário baseia-se nas reflexões trinitárias de Novaciano e Tertuliano, além do apoio buscado na denominada teologia homoiusiana. Contudo, Hilário foi capaz de construir sua própria reflexão sobre a Santíssima Trindade. Para isso ele utiliza e aplica uma metodologia exegética de considerável aprofundamento, deixando “para trás as analogias sensíveis comumente apresentadas por seus adversários”.220

Na introdução à versão brasileira da obra de Hilário, Maria Thaís Rob-be destaca que no pensamento do Bispo de Poitiers está explícito: Se Cristo não é Deus, consubstancial ao Pai, então nós não somos salvos, já que a salvação só pode ser obra divina. Sendo Deus de Deus, o Filho assumiu nossa humanidade para dar-lhe sua vida divina, para fazêla participar da sua glória e imortalidade. Com São Paulo, Hilário mostra como Cristo, sendo Deus, despojou-se 216

HILÁRIO, op. cit., p. 19.

217

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 363 e 364.

218

Ibid., p. 364.

219

DROBNER, op. cit., p. 268.

220

Ibid., p. 270.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 129

da sua glória, deixando a “forma de Deus” para assumir a “forma de servo”, sem deixar de ser Deus.

221

Para seguir a mesma forma adotada nos capítulos sobre o tema nas perspectivas dos pais pré-nicenos e na obra de Atanásio, o presente tópico também traz algumas reflexões e comentários desenvolvidos por Hilário em seu Tratado sobre a Santíssima Trindade. A primeira afirmação diz que a mente humana “ultrapassa a razão natu-ral e entende mais sobre Deus do que imaginava. Reconhece ser seu Criador o Deus de Deus e ouve que o Deus Verbo, no princípio estava com Deus”.222 Como comentário do famoso prólogo de João, essas palavras de Hilário trazem duas convicções. A primeira, obviamente, é a que tem sido demons-trada como opinião unânime entre todos que até aqui foram objeto de leitura como Orígenes, Tertuliano, Atanásio e todos os outros que escreveram a favor da divindade do Filho. O mesmo pode ser considerado sobre os pensamentos dos pais capadócios que serão lidos no próximo capítulo. Contudo, a segunda convicção que Hilário aparentemente desenvolve é acerca da possibilidade de a mente humana ultrapassar suas limitações para atingir a compreensão a respeito da encarnação e, conseqüentemente, da divindade do Λόγος. É do conhecimento de muitos que na história do pensamento, vários teólogos e filósofos insistiram em afirmar que a existência de Deus e de to-dos os elementos sobrenaturais que lhe são peculiares, não podem ser pro-vados racionalmente. Na filosofia moderna, por exemplo, Immanuel Kant seguia essa certeza, sem ao mesmo tempo negar a existência de Deus. Ao contrário, ao trabalhar com tal temática, “Kant analisa as provas agrupan-do-as em três argumentos principais: o argumento ontológico, o cosmoló-gico e o físicoteológico”.223 221

HILÁRIO, op. cit., p. 19.

222 Ibid., p. 32. 223 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 13. (Coleção Os Pensadores). Texto da introdução escrito pela filósofa brasileira Marilena de Souza Chauí. “O argumento ontológico, encontrado em Santo Anselmo (1033 - 1109) e em Descartes, afirma que o homem tem idéia de um ser perfeito, que necessariamente deve existir porque se não existisse não seria perfeito. Kant mostra que a existência é uma das categorias a priori do entendimento e como tal não tem nenhuma validez [...] a não ser quando aplicada à intuição espaço-temporal. O argumento cosmológico para provar a existência de Deus consiste na enumeração de causas dos fenômenos até se chegar a

130 JESUS É DEUS?

Quando foi feita a leitura da obra do pré-niceno Tertuliano, identifi-cou-se algo semelhante como a relação entre a incapacidade racional de percepção de certos absurdos como a encarnação do Verbo com a aceita-ção do chamado paradoxo, da filosofia de Kierkegaard. Portanto, as crenças na divindade do Filho, na encarnação do Verbo, na Santíssima Trindade, na existência de Deus e em tantos outros conceitos racionalmente absurdos da fé cristã, são objetos de reflexão filosófica de muitos pensadores, que, grosso modo, chegaram aparentemente a uma mesma conclusão. No entanto, a colocação de Hilário não parece estar de acordo com essa conclusão, pois ao afirmar que a mente ultrapassa sua razão natural, o que de fato ele pretende dizer é que a percepção de Deus e de suas peculia-ridades são observáveis pela alma humana. Também é possível que Hilário ao fazer tal afirmação, esteja em pleno acordo com os teólogos e filósofos que defendem a limitação da racionalidade. Nesse caso, ele estaria dizendo que quando a mente consegue ultrapassar seus limites para perceber o Sa-grado, ela não o faz autonomamente, mas é levada pelo poder do próprio Sagrado à compreensão daquilo que por si só, ela jamais compreenderia. Sobre esse tema, o bispo de Poitiers faz os seguintes comentários: Tudo isso ultrapassa os limites da inteligência humana, incapaz de entender os desígnios celestes apenas com o senso comum, que julga haver na natureza das coisas somente aquilo que com-preende ou pode provar por si mesmo. Mas as virtudes de Deus, segundo a magnificência do poder eterno, não são avaliadas pela inteligência, mas pela infinidade da fé.

224

A fé não considera Deus segundo o senso comum da inteligência, nem julga, de acordo com os elementos do mundo, a Cristo, em uma causa não causada, que seria Deus. Para Kant o erro dessa argumentação é óbvio: não há motivo algum para se cessar a aplicação da categoria de causalidade. Finalmente, o argumento físico-teológico (todos os seres da natureza cumprem algum fim, servem para alguma coisa, logo deve haver um fim último: Deus) utiliza indevidamente o concei-to de fim. Kant mostra que se trata de um conceito metodológico, empregado para des-crever a realidade, mas do qual não se pode extrair nenhuma outra conseqüência, como fazem os teólogos. Não é lícito, sem se sair dos limites da experiência, tirar da adequação a finalidades quaisquer conclusões referentes a um ser superior.” O argumento físico-teológico é também chamado em outras obras de argumento teleológico. 224

HILÁRIO, op. cit., p. 33 e 34.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 131

quem a plenitude da divindade habita corporalmente, pois, já que nele está a infinidade do eterno poder, esse poder eterno da infini-dade supera toda a compreensão da mente terrena.

225

O complemento da reflexão de Hilário sobre a fragilidade da mente humana em relação a Deus, confirma que nesse sentido: A mente trêmula e ansiosa já encontra mais esperança do que pen-sava. Em primeiro lugar, é imbuída do conhecimento de Deus Pai. Aquilo que anteriormente, pelo senso natural, afirmava sobre a eternidade, infinidade e beleza de seu Criador, agora aceita como ser próprio também do Deus Unigênito.

226

A respeito da consubstancialidade existente entre o Pai e o Filho, Hilá-rio com palavras simples e ao mesmo tempo valendo-se de reflexão com-plexa e linguagem estritamente filosófica afirma: O Deus Verbo se fez carne, para que, pelo Deus Verbo feito carne, a carne fosse elevada, até ser Deus Verbo. Para que se conhecesse que o Verbo feito carne não era outro senão o Deus Verbo e que não deixava de ter a carne de nosso corpo, habitou entre nós, e o que habitou entre nós não é outro, senão o mesmo Deus.

227

Durante toda a obra, Hilário trabalhou com o tema da consubstancia-lidade entre o Pai e o Filho. No livro segundo, por exemplo, uma de suas defesas consiste em dizer que “como o Pai tem a vida em si mesmo, tam-bém foi dado ao Filho ter a vida em si mesmo. É o Perfeito que procede do Perfeito, porque é todo do todo, sem divisão nem separação, porque um está no outro, e a plenitude da divindade está no Filho”.228 Após salientar que “o Verbo é uma realidade, não um som, é uma substância, não um modo de expressar-se, é Deus, não é um som vago”229, 225

Ibid., p. 34 e 35.

226

Ibid., p. 32.

227

Ibid., p. 33.

228

Ibid., p. 61.

229

Ibid., p. 64.

132 JESUS É DEUS?

Hilário faz a correta distinção entre a natureza de Deus em Cristo e o conceito de tempo: Se estava no princípio não é limitado pelo tempo. Se era Deus, não se trata de um som de voz. Se estava junto de Deus, então nada se altera nem se elimina, pois o seu ser não desaparece no outro, e se afirma que está junto do único Deus ingênito, do qual procede o único Deus unigênito.

230

Consideramos correta essa distinção, pois de fato há uma separação imensurável entre os limites do tempo e do espaço em relação à divindade do Pai e do Filho. Trata-se de uma só divindade, de tal maneira que é correta a afirmação de Hilário quando diz “a verdade e a divindade do Pai e do Filho não são separadas por uma diversidade de significação ou por uma diferença, mas a fé se corrobora para a confissão do genitor e do gerado”.231 Isso nada mais demonstra que a perfeição da plenitude da divindade em ambos é real. Muitas ainda são as afirmações que Hilário faz sobre a consubstancia-lidade entre Pai e Filho. Ele faz uso do termo ομοούσιος presente no Credo de Nicéia, defendendo que a distinção de substâncias entre o Pai e o Filho representaria divisão e imperfeição na divindade e faz também alguns co-mentários muito próximos das palavras do Credo: “Nosso Senhor Jesus Cristo, quando ensinou a verdade de sua natu-reza, demonstrou a divindade do Deus verdadeiro que procede do Deus verdadeiro, 232 pelo nome, nascimento, natureza e poder.” “Porque, como o Pai é Espírito, assim também o Filho é Espírito, como o Pai é Deus, o Filho é Deus, como o Pai é luz, o Filho é luz.”233 A leitura cuidadosa da obra de Hilário conduz qualquer leitor à per-cepção de sua capacidade apologética. Para defender a certeza cristã da divindade do Filho contra o arianismo, Hilário também escreve algumas reflexões de considerável aprofundamento:

230

Ibid., p. 64.

231

Ibid., p. 87.

232

Ibid., p. 43.

233

Ibid., p. 78 e 79.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 133

“Confessar um só Deus, sem o Deus Cristo, é irreligião, e pregar o Deus Unigênito, Cristo, sem confessar a existência de um só Deus, é falta de fé.”234 “Dizem os hereges que Cristo não vem de Deus, isso é, que não é Filho, nascido do Pai, nem é Deus por natureza, mas por criação, e que em seu nome está significada a adoção, porque, assim como são muitos os filhos de Deus, também seria filho, devido à munificência da divindade. Como são muitos os deuses, também ele seria Deus, sendo maior a indulgência em 235

relação a ele pelo afeto da adoção e do nome.” “Será preciso, para confessarmos a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, usar o testemunho daquele por cuja autoridade os hereges, ao confes-sarem 236

somente um único Deus, julgam dever negar que o Filho seja Deus.”

A última preocupação de Hilário que precisa ser apontada está rela-cionada à defesa do Jesus-Deus-Salvador. Em muitos momentos de sua obra, o Bispo de Poitiers estabelece relações diretas de sua cristologia com a soteriologia. Grosso modo, suas colocações deixam claro que não há possibilidade de salvação sem a existência de uma natureza divina na pessoa do Filho. Mais precisamente é correto afirmar que o Filho é sal-vador porque é Deus. A seguir, alguns trechos das afirmações que Hilário faz a respeito dessa relação:

“Não há salvação alguma a não ser em Cristo, Deus Verbo, que no princípio estava junto de Deus.”237 “Ele próprio, feito carne, iria tornar a dar a eternidade da vida aos que são caducos, mortais e corpóreos.”238 “A fraqueza humana não tente ir além e diga somente isso, porque somente nisso há salvação: que tenha nascido o Senhor Jesus Cristo antes da encarnação.”239

234

Ibid., p. 41.

235

Ibid., p. 100.

236

Ibid., p. 110.

237

Ibid., p. 37.

238

Ibid., p. 86.

239

Ibid., p. 486.

134 JESUS É DEUS?

O objetivo pretendido no presente capítulo não consiste em demonstrar um aprofundamento nas reflexões de Hilário, mas transmitir um pouco da sua convicção a respeito da divindade do Filho. As leituras e releituras cuida-dosas de sua obra possibilitarão o início desse aprofundamento. Para encer-rar a exposição da cristologia de Hilário, sobretudo a respeito da divindade do Filho, seguem algumas citações diretas da obra do bispo de Poitiers. “Na verdade, o Filho de Deus não é um Deus falso, nem um Deus ado-tivo, nem é Deus somente pelo nome, mas é verdadeiramente Deus.”240 “Ou o Filho de Deus é verdadeiro Deus para que seja Deus, ou, se não é verdadeiro Deus, não pode também ser o que Deus é, porque, se não há a natureza, não lhe compete o nome da natureza; se, porém, existe nele o nome da natureza, não pode deixar de haver nele a verdade da natureza.”241 “Sendo ele mesmo Deus, também pela força da natureza, Deus está nele. Porque ele é Deus e porque nele está Deus, não há Deus além dele, pois não lhe vem de nenhuma outra parte que seja Deus, e nele está Deus, tendo em si aquilo que ele mesmo é e aquele do qual ele mesmo subsiste.”242 “Não se atribui a Cristo outra divindade, para que seja Deus, pois é Deus por natureza, pela natividade, vindo de Deus. Tem de Deus o ser Deus, não é outro Deus. Não se atribui a ele ser outro Deus, porque há nele a ver-dade de Deus. [...] O Pai é Deus, o Filho é Deus. Em Deus está Deus.”243 “O Senhor Jesus Cristo é Deus, não por causa alguma, ou mediante algo, mas é Deus que nasceu como Deus. Quem, pela geração, é Deus, não passou a ser Deus depois do nascimento, por alguma causa, mas, porque nasceu, é Deus.”244 Como nenhum outro teólogo cristão do Ocidente, Hilário de Poitiers dissertou com grande propriedade e competência a respeito da divindade do Filho em sua obra clássica, o Tratado sobre a Santíssima Trindade. Mas deve ser destacado que a presente reflexão sobre seu pensamento é pano-râmica. Para maior aprofundamento de sua teologia, a leitura cuidadosa da obra citada seria um primeiro passo. 240

Ibid., p. 137.

241

Ibid., p. 143.

242

Ibid., p. 162.

243

Ibid., p. 163.

244

Ibid., p. 430.

PARTE 2 Capítulo

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 135

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A DIVINDADE DO LOGOS SEGUNDO OS CAPADÓCIOS

Após as produções de Atanásio e Hilário, o que normalmente se veri-fica em torno da pesquisa sobre a divindade do Λόγος são as importantes contribuições dos três pais capadócios: Basílio de Cesaréia, Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa. É importante conhecer o que se fala a respeito daquele momento, a fim de que as reflexões desses três teólogos sejam compreendidas, levando em consideração seu contexto e realidade. Olson afirma que a preocupação dos cristãos da igreja primitiva girava em torno daquilo que era construído teologicamente por parte dos pensadores cristãos da época: Boa parte da teologia era fundada em sermões e levava em conta a reação do povo. Ao mesmo tempo, é claro, teólogos treinados na filosofia e na interpretação bíblica realizavam conferências e se correspondiam em um nível de debate mais filosófico. Mas esta-vam preocupados com as crenças, adoração e vida cristã dos lei-gos, mas os leigos interessados nos debates dos teólogos. [...] si-tuação que mudou completamente no cristianismo moderno para seu empobrecimento e 245

prejuízo.

No quarto século havia perceptivelmente uma busca intensa pela racionalização dos enigmas divinos. Diante disso, homens como Atanásio e os próprios pais capadócios perceberam-se na condição de defensores da fé cristã tradicional, tendo que, a partir de dado momento, combater qual-quer proposta de racionalização dos princípios do evangelho. A trindade, por exemplo, seria um dos mistérios inescrutáveis; submetido a uma saba-

245

OLSON, op. cit., 2001, p. 177 e 178.

136 JESUS É DEUS?

tina de exames racionalistas, não permaneceria; ao contrário, tornar-se-ia irrelevante e até mesmo incoerente. Os defensores ortodoxos da doutrina da trindade sabiam que es-tavam na presença de um mistério quando examinaram o Deus três-em-um e a igualdade de Jesus Cristo com o Pai. Se, por vezes, usaram fórmulas e terminologia complexas e de difícil entendi-mento foi apenas para preservar o mistério.

246

Os pais capadócios são assim conhecidos por terem procedido da região da Capadócia, na Ásia Menor Central (atual Turquia), onde desen-volveram suas funções eclesiásticas. Como teólogos, eles contribuíram na construção da dogmática cristã, desenvolvendo uma exposição cla-ra, munindo-se de ampla e esclarecida linguagem de defesa em torno da doutrina da Santíssima Trindade. Tencionando não apenas combater as heresias que negavam a convicção trinitária, os capadócios também trabalharam em favor da formação de uma ortodoxia que fosse aceita e praticada por toda a igreja da época. “A teologia capadócia é uma tentativa de interpretar o termo central ομοούσιος insistindo na plena divindade do Filho e na sua eterna distinção do Pai.”247 Não havia concordância integral nas opiniões dos capadócios, porém, eles eram absolutamente concordantes na questão trinitária, es-sencialmente ao afirmarem que Deus é de única substância e ao mesmo tempo três pessoas.

Basílio de Cesaréia Possivelmente Basílio nasceu em 330 - data imprecisa, mas freqüente-mente utilizada em quase todos os textos historiográficos que tratam a seu respeito. Sua família já era possuidora de elevados bens. O pai, proprietário de muitas terras.

246 247

Ibid., p. 178.

MEREDITH, Anthony. The Cappadocians, Crestwood, N. Y., St. Vladimir’s Seminary Press, 1995, p. 103.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 137

Desde a infância, Basílio fora religiosamente orientado na fé cristã, além de ter sido educado diretamente por sua avó Macrina. Todavia, quem realmente influenciou Basílio foi sua irmã, cujo nome era o mesmo da avó. Não somente Basílio, mas também seu irmão Gregório de Nissa foram for-temente influenciados pelos conselhos e exortações da irmã, que adota-ra desde muito jovem uma vida religiosamente monástica.248 “Formou-se nas escolas de retórica de sua cidade natal, de Constantinopla e, por fim, de Atenas, onde nutriu com seu 249

conterrâneo, Gregório de Nazianzo, uma amizade que duraria a vida inteira.”

A informação que existe é de que Basílio tenha por um tempo ensi-nado retórica em sua terra natal. Mas depois decidiu tornar-se um reli-gioso de fato.

Foi batizado e ordenado em 357 e, pouco depois, começou a visitar os monges e freiras eremitas nas cavernas e pequenos mosteiros do ermo da Capadócia. Influenciado pela irmã [...] fundou o pró-prio mosteiro. [...] Em 370, o grande bispo Eusébio de Cesaréia (na Capadócia) morreu e Basílio foi nomeado seu sucessor.

250

A intenção não é o aprofundamento na biografia de Basílio ou em suas características e produções teológicas. O que pretendemos aqui é apenas identificar a maneira como Basílio tratou da discussão cristológica que se desenrolava naquele período. Basílio não dedicou tempo algum à pesquisa teológica pelo mero prazer desse trabalho. Ele não escreveu nenhuma obra na qual tentasse expor a totalidade da doutrina cristã de uma maneira sis248

Vd. GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão - do início até o Concílio de Calcedônia.

v. 1, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 295 e 296. Foi ela (Macri-na) quem conclamou Basílio a deixar de lado sua preocupação com a própria sabedoria e prestígio e a tomar o rumo na vida que ele veio a seguir. Além disso, Gregório de Nissa fala dela como “a Mestra” e parece ter por certo que seus leitores saberiam de quem ele falava. Infelizmente, pouco foi deixado para nos permitir reconstruir seus ensinos. Mas ela deve ser mencionada aqui como um lembrete de que entre os pais da Igreja havia também as mães. 249

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 293.

250

OLSON, op. cit., 2001, p. 180.

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temática. Pelo contrário, todas as suas obras dogmáticas tiveram o claro propósito de refutar os erros de sua época, especialmente os dos arianos e os dos pneumatomacianos. Foi com esse propó-sito em mente que ele escreveu suas duas mais importantes obras: 251

Contra Eunômio e Sobre o Espírito Santo.

Basílio teria escrito Contra Eunômio, uma obra crítica dividida em cinco volumes para combater diretamente o arianismo. Isso porque, Eu-nômio sustentava sua defesa entre a característica absoluta de Deus e a suposta relatividade do Filho. “Ele baseia seu argumento sobre a na-tureza divina como sendo não-gerada (αγέννετος) e incapaz de gerar al-guém que participe dessa qualidade (de ser não-gerado).”252 Em outras palavras, para Eunômio, o Filho é apenas gerado (γέννημα), portanto, não deve ser Deus propriamente dito, pois Deus não lhe teria comu-nicado a essência divina no “momento” da geração. De acordo com a informação de González:

Basílio responde que a essência de Deus não pode ser definida simplesmente pela qualidade de Deus não ter sido gerado. Tal qualidade (αγεννησία) é uma mera negação semelhante à invi-sibilidade ou imortalidade. Por outro lado, a essência (ουσία) não é uma negação, mas antes o próprio ser de Deus, e só uma pessoa completamente louca poderia contá-la entre os atribu-tos negativos.

253

Para Eunômio, se Deus é um ser não-gerado e o Filho é um ser gerado, logo, o Filho não pode ser Deus. Ele ainda destaca que o argumento ariano é verdadeiro quando diz que se o Filho foi gerado, houve momentos em que não existia, e que se fosse eterno, não necessitaria ser gerado. Para rejeitar tal posicionamento, Basílio destaca que seres viventes e sujeitos à morte, são gerados por meio da ação dos sentidos, exceto Deus. Em se tratando de natureza divina, a geração é singular e espe251

GONZALEZ, op. cit., 2004, p. 297.

252

Ibid., p. 297.

253

Ibid., p. 297.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 139

cífica, separada de todo e qualquer conceito de espaço, temporalida-de e divisão. Portanto, na resposta de Basílio, eternidade não pode ser um atributo confundido com a característica de não-gerado, pois por ser eterno, ultrapassa as limitações de tempo e de espaço e ser não-gerado é uma causa em si, na pessoa de Deus. Nesse sentido, não há equívoco em afirmar que o Filho foi eternamente gerado. Não há qualquer confusão entre ser gerado e ser eterno, de tal modo que não há qualquer sinonímia entre os termos gerado e criado. Mesmo dando tantas explicações a fim de defender a divindade do Filho, Basílio não deixou de reconhecer que a doutrina da geração de fato é uma reflexão teológica que se encontra além da compreensão ra-cional humana:

Não me pergunte: O que é essa geração, e de que tipo, e como ela pode ocorrer? O modo desta geração é indescritível e incom-preensível, mas ainda devemos construir nossa fé sobre o funda-mento do Pai e do Filho. Pois, se fôssemos julgar todas as coisas segundo nosso intelecto, e decidir que aquilo que nossa mente pode compreender é impossível, perdida é a fé, perdida é a re-compensa da esperança.

254

O argumento de Basílio tem como base a filosofia grega, em que se diz que a limitação da razão impede o homem de conhecer a divindade, a qual conhece a si mesma sem qualquer nível de dificuldade. Olson destaca: Alegar conhecer a essência de Deus como não-gerado é a epíto-me da soberba pecaminosa, assim argumentou Basílio. Podemos conhecer o ser de Deus e suas propriedades, segundo a reve-lação que ele fez, mas sua essência infinita e eterna está além da nossa compreensão finita. Esse conceito da essência incom-preensível de Deus encontra-se também nos dois Gregórios e tornou-se um axioma teológico importante para o pensamento cristão oriental.

255

254

Contra Eunômio, 2.24 (Patrologiae cursus completus... series Graeca - org. Migne, 29:625-628).

255

OLSON, op. cit., 2001, p. 185.

140 JESUS É DEUS?

Compreender dessa maneira a impossibilidade racional do ser huma-no ante o enigma da trindade, não fazia de Basílio um homem à margem da reflexão. Grosso modo, ele possuía sua objetividade lógica. Contudo, o interesse de Basílio não chegava ao patamar de erudição de Gregório de Nissa, seu irmão. Usando uma exposição bastante simples, Basílio de ma-neira convicta, defende aquela que seria a fórmula definitiva da doutrina trinitária: uma substância e três pessoas (μία ουσία, τρεις υποστάσεις). Assim como gerado e criado são dois termos distintos e que não podem ser carac-terizados como sinônimos, os termos substância e pessoa sofrem a mesma aplicação. O próprio Basílio afirmou:

A distinção que há entre ουσία e υποστάσεις é a que se observa en-tre o geral e o particular; que há, por exemplo, entre o animal e o homem em particular. Por conseguinte, no caso da divindade, con-fessamos uma essência ou substância não para dar uma definição diferente da existência, mas confessamos uma hipóstase particular, a fim de que nossa concepção do Pai, do Filho e do Espírito Santo possa ser sem confusão e clara. [...] Devemos, portanto, confessar a fé adicionando o particular ao comum. A divindade é comum; a paternidade particular. Devemos, portanto, combinar os dois e dizer, “Eu creio em Deus o Pai”. Caminho igual deve ser seguido na confissão do Filho; devemos combinar o particular com o comum e dizer “Eu creio em Deus o Filho”.

256

Para Basílio, a revelação de Deus à sua criação está diretamente rela-cionada à necessidade de que o Filho seja essencialmente Deus. “Se Jesus Cristo não é Deus, então Deus ainda não se auto-revelou. Se Jesus Cristo é meramente uma criatura, por mais exaltado que seja, a humanidade ainda não presenciou a verdadeira revelação da face de Deus.”257

Gregório de Nazianzo O segundo importante nome que deve ser estudado dentre os pais capadócios é o de Gregório de Nazianzo. Nascido na ambiência rural de 256

EP. 236.6 (The Nicene and Post-Nicene Fathers, 2ª série, 8:278).

257

OLSON, op. cit., 2001, p. 186.

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Arianzo, próximo a Nazianzo, na região da Capadócia, era filho do bis-po Gregório, o Velho. Este exercera seu episcopado por mais de quarenta anos, tendo falecido em 374, logo após ter completado 100 anos de vida. De acordo com a informação de Hubertus R. Drobner, “Gregório silen-cia conscientemente a respeito de sua infância, de modo que se faz neces-sário recorrer a deduções para descobrirmos a data de seu nascimento”.258 No que se refere à formação acadêmica, Altaner e Stuber detalham que Gregório de Nazianzo: De início, estudou na escola retórica de Cesaréia, na Capadócia; logo freqüentou, por breve tempo, as escolas cristãs de Cesaréia, na Palestina, e em Alexandria, e, finalmente, se entregou ao es-tudo das altas ciências pagãs em Atenas, onde permaneceu até mais ou menos 356-57, e travou com Basílio uma amizade que durou toda a vida.

259

Após dedicar-se à vida monástica, Gregório veio a ser obrigatoria-mente ordenado presbítero por seu pai. Isso teria ocorrido no início de 362, a fim de que Gregório se tornasse um sacerdote auxiliar nos traba-lhos eclesiásticos da diocese de Nazianzo. Há historiadores, como Justin Mossay, que transferem a data de ordenação de Gregório para 365. To-davia, existe certa concordância entre a maioria dos pesquisadores em precisar o fato no ano 362. Não aceitando a atitude do pai, Gregório re-cusa-se assumir o sacerdócio e foge para um local não informado, onde escreveu sua obra Apologia da fuga. Gregório voltaria para Nazianzo so-mente na comemoração da Páscoa do mesmo ano, porém, aparentemen-te arrependido, o que ficou evidente em seu discurso durante a pregação proferida assim que retornou. O arrependimento de Gregório ficou ainda mais explícito, quando ele resolveu cooperar tanto nas funções eclesiásticas como administrativas da diocese de Nazianzo. Após o falecimento de seu pai, Gregório deixa de ser um mero assistente para assumir a posição de responsável da diocese, mas 258

DROBNER, op. cit., 2001, p. 294.

259

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 301.

142 JESUS É DEUS?

por pouco tempo, pois preferira entregar-se à vida monástica e contempla-tiva em Selêucia de Isáuria. Gregório de Nazianzo ainda experimentaria a condição de bispo de Constantinopla, após convite do imperador romano Teodósio. A confir-mação de seu episcopado se deu no Concílio de Constantinopla, em 381. Mas após alguns conflitos e discórdias no seio da igreja onde atuava, Gregório resolveu demitir-se e voltar para Arianzo. Lá, vivera os últimos dias de sua vida, solitário e ao mesmo tempo dedicado aos trabalhos lite-rários, até falecer em 390. Como afirma González, “se Basílio era o organizador e o diplomata dos três capadócios, Gregório de Nazianzo era o orador e o poeta. Ele ti-nha uma natureza calma e pacífica, com grande sensibilidade estética.”260 Embora a paixão de Gregório fosse mesmo a vida monástica e a dedicação ao que Drobner chama de ócio erudito, “suas preferências estavam volta-das para o estudo e a retórica, não havendo nisso quem se lhe comparas-se entre os pais da Igreja do séc. IV”.

261

“Os

sermões de Gregório mostram sua habilidade retórica, ainda que ultrapassem em muito a beleza estética e lidem com as mais complexas questões teológicas e os mais intrincados problemas morais.”262 A produção literária de Gregório foi intensa somente após seu exercí-cio como bispo de Constantinopla, a partir de 379. Foi nesse período que ele produziu pelo menos a metade de seus 44 discursos, além de diversas poesias e cartas. Tanto nas cartas quanto nas poesias, Gregório inseria sua perspectiva teológica, de tal modo, que muitas de suas epístolas ti-nham um conteúdo cristológico tão esclarecedor, que foram adotados oficialmente pelos Concílios de Éfeso e Calcedônia, ocorridos respectiva-mente em 431 e 451. Não somente na cristologia de Gregório de Nazianzo, mas em toda a sua convicção trinitária, a palavra-chave seria relacionamento. A grande contribuição de Gregório à construção dogmática da doutrina da Santís260

GONZALEZ, op. cit., 2004, p. 302.

261

DROBNER, op. cit., p. 296.

262

GONZALEZ, op. cit., 2004, p. 303.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 143

sima Trindade foi a exegese do vocábulo υποστάσεις, que freqüentemente é interpretado por “pessoas”, mas que na tarefa teológica desse padre ca-padócio ganhou uma nova conotação: relacionamento. Portanto, em Gre-gório de Nazianzo, υποστάσεις significa “relacionamento” muito mais do que “pessoas”. “Dentro da própria trindade, explicou Gregório, não existem ‘três seres’ mas ‘três relacionamentos’ e os relacionamentos não são nem substâncias (seres) nem meramente ações (modos de atividade).”263 Com muita propriedade, Olson ainda salienta que Gregório: ... procurou fornecer uma saída tentando explicar que a υποστάσεις (substância, pessoa) não é necessariamente uma substância, nem meramente uma atividade. Em Deus, designa um relacionamento. Dessa maneira,

Gregório

lacionamentos.

atribuiu

uma

condição

ontológica

aos

re-

264

Tal opinião tornou-se absolutamente comum uma vez aceita pela igre-ja Oriental, quando esta tratava das questões trinitárias. As três pessoas da trindade não podem ser interpretadas como seres distintos particular e individualmente, mas como afirma Olson: “verdadeiros relacionamen-tos interdependentes dentro de uma única comunidade de existência e substância”.265 Portanto, “de acordo com Gregório, as únicas distinções que podem ser estabelecidas entre as três pessoas da trindade são aquelas que se referem à origem de cada uma delas”.266 Drobner comenta: Ao lado da brilhante defesa da doutrina nicena tradicional so-bre Deus, ele encontra a avançada formulação da “processão” (εκπόρευσις) do Espírito do Pai, distinta da “geração” (γέννησις) do Filho, e pela primeira vez insiste em aplicar o conceito da con-substancialidade (ομοούσιος) ao Espírito Santo. Com isto, por uma terminologia mais precisa, ele vai além de Basílio, não somente aprimorando a compreensão do Espírito Santo na trindade, mas 263

OLSON, op. cit., 2001, p. 191.

264

Ibid., p. 191.

265

Ibid., p. 192.

266

GONZALEZ, op. cit., 2004, p. 306.

144 JESUS É DEUS?

também preparando os aditamentos pneumatológicos feitos ao símbolo niceno pelo Concílio de Constantinopla, que se realizaria pouco tempo 267

depois (381).

De maneira sintética, Gregório teria afirmado que o Pai é o Ser não-gerado, o Filho é o Ser gerado e o Espírito é o ser procedente. “Com tais termos, Gregório deu novo significado à fórmula característica dos três ca-padócios: uma ουσία e três υποστάσεις.”

268

Como defensor de pensamento e uma espécie de formador de opi-nião em sua época, Gregório também destaca-se como aquele que se opôs aos ensinos cristológicos de Apolinário. Este, bispo em Laodicéia, foi influenciado pela teologia de Atanásio, rejeitando toda linha subordi-nacionista, em particular do Filho em relação ao Pai. Grosso modo, Apo-linário tencionara expor como Jesus poderia ser, tendo ao mesmo tempo duas naturezas. Assim como Atanásio, Apolinário defendia a perspectiva da consubstancialidade entre o Filho e o Pai. Conforme Olson detalha e avalia, o apolinarismo

... provavelmente tenha surgido de fato na cristologia de Orígenes. A idéia básica é que os seres humanos são compostos de três aspectos distintos e separáveis: o corpo, a alma e a alma racional, ou espírito. Essa composição tripartite da humanidade é basicamente uma idéia emprestada da filosofia platônica e não das Escrituras, embora o NT realmente faça referência aos três aspectos. Segundo Apolinário, Jesus Cristo era divino neste sentido: o Logos eterno – o Filho de Deus – assumiu o lugar da alma racio-nal de Jesus. Seu corpo e sua alma animadora (força vital) eram humanos, mas seu espírito (mente, consciência) não o era. Ob-viamente, a impressão que se tem dessa cristologia é de “Deus em um corpo”, um ser onisciente que habita um corpo de cria-tura, usando-o como um veículo, sem realmente se tornar hu-mano e nem experimentar as limitações e sofrimentos humanos.

267

DROBNER, op. cit., p. 300.

268

GONZALEZ, op. cit., 2004, p. 307.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 145

Realmente, essa era uma das motivações de Apolinário: mostrar que Jesus Cristo podia ser Deus (imutável, impassível, oniscien-te) e humano (limitado, finito, passível de sofrimento, mortal) ao mesmo tempo. Ele não imaginava, no entanto, que estava criando uma idéia nova. Simplesmente pensou estar agrupando as cristologias de Orígenes e de Atanásio de uma forma melhor. Talvez tivesse razão.

269

Outra exposição do pensamento cristológico de Apolinário de Laodi-céia é feita com bastante clareza e propriedade por Kessler: Apolinário de Laodicéia sistematizou essa cristologia do Lo-gosarx e a desenvolveu até seus últimos princípios. Já que quer evitar uma separação em Cristo e pensar uma encarnação real de Deus (portanto, não mera inspiração de um ser humano), ele se vê forçado a amputar o ser humano completo e entender Cristo como “composto nos moldes humanos”, isto é, em analogia à unidade entre corpo e alma no ser humano. O verdadeiro motivo é soteriológico: para que Cristo nos redima, ele precisa ser sem pecado, e isso só é concebível para Apolinário de tal modo que ele não tenha um nous (alma racio-nal) mutável, capaz de cair na tentação e no pecado, portanto, que o Logos, como único princípio mental, substitua em Cristo a alma lógica ou racional (não a alma animal, carnal). Só assim ele garante, através de sua influência divina direta sobre a carne de Cristo, a não-pecaminosidade deste, que é fundamental para nossa redenção.

270

Mesmo assim, Gregório de Nazianzo não identificou qualquer relação entre o pensamento de Apolinário com a teologia de Atanásio. A título de informação, a cristologia de Apolinário, conquanto ganhasse cada vez mais adeptos, acabou condenada pelo Concílio de Constantinopla, após longa investida de Gregório, que teria promovido uma verdadeira campanha de 269

OLSON, op. cit., 2001, p. 192 e 193. A opinião de Apolinário a respeito da encarnação do Filho de Deus

em Jesus Cristo é chamada apolinarismo, mas também poderia ser chamada atanasianismo. 270

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 310.

146 JESUS É DEUS?

protesto ao chamado apolinarismo por meio de cartas e sermões proferi-dos contra o próprio Apolinário e sua cristologia. Depois de ter negado a cristologia de Apolinário, Gregório pensava ser necessário afirmar que o centro da personalidade do salvador está em sua divindade, de modo que sua humanidade é, por assim dizer, absorvida pela natureza divina. As naturezas divina e huma-na são como o sol e as estrelas: embora as estrelas tenham sua própria luz, quando o sol aparece, a luz das estrelas é absorvida pela luz solar, de forma que todas as luzes se tornam uma só.

271

A respeito da divindade do Filho absolutamente coeterna e mesma do Pai, o próprio Gregório de Nazianzo teria feito a seguinte considera-ção: “ele é chamado Filho porque é idêntico com o Pai em essência”.

272

Gregório ainda teria

ponderado que os três seres da Santíssima Trinda-de “são divididos sem divisão, se posso assim dizer; e eles são unidos na divisão. Pois a divindade é uma em três, e os três são um, em quem a divindade está, ou para falar mais apropriadamente, os quais são a divindade.”273 De qualquer maneira, mesmo discordando das posições de Apolinário, Gregório também defendia com convicção a perspecti-va de que Jesus Cristo é Deus, o que não é uma opinião distinta dos pensamentos de Basílio de Cesaréia ou mesmo de Gregório de Nissa, o próximo a ser estudado.

Gregório de Nissa Para concluir o estudo panorâmico dos pensamentos dos pais capa-dócios sobre a divindade do Λόγος, resta conhecer a contribuição de Gre-gório de Nissa. “Duas pessoas influenciaram de maneira decisiva a vida de Gregório de Nissa: sua irmã mais velha Macrina, que despertou nele e em seus irmãos o entusiasmo pela vida ascética, e o irmão mais velho, Basílio, 271

GONZALEZ, op. cit., 2004, p. 339.

272

MACLEOD, Donald. The person of Christ, Illinois: InterVarsity Press, 1998, p. 129.

273

Or. 39.11.12 (The Nicene and Post-Nicene Fathers, 2ª série, 7:355).

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 147

a quem muitas vezes em suas obras ele chama de seu ‘pai e mestre’.”274 Nascido entre 335 e 340, Gregório chegou se casar e “contra sua vontade, Basílio o nomeou bispo de Nissa, cidade insignificante na Capadócia”.275 Para Gregório foi muito difícil conduzir a vida eclesiástica, principal-mente nos sete primeiros anos de seu episcopado. Sua inexperiência o levou a enfrentar diversas situações, de tal modo que Basílio chegara a reclamar da inocência de Gregório em questões tanto políticas quanto eclesiásticas. A inexperiência, portanto, foi o motivo que impediu Basílio de enviar seu irmão a Roma para compor uma delegação, no ano 375. Após longo período de amadurecimento, chegando a enfrentar até um exílio que findaria somente no reinado de Valente, a 9 de agosto de 378, Gregório de Nissa ressurge como grande e influente líder eclesiásti-co, além de reconhecido e capaz teólogo dogmático, exegeta e pregador. “De natureza introspectiva [...] foi superior aos outros capadócios e gran-jeou copiosos méritos na penetração filosófica das verdades da fé. Por causa de sua eloqüência, foi visivelmente estimado na corte imperial.”276 Drobner faz uma exposição a respeito das últimas atuações eclesiásticas de Gregório de Nissa:

No ano de 379, entretanto, o quadro se inverte num abrir e fe-char de olhos. De repente, Gregório aparece como um político eclesiástico muito procurado e influente, como importante teó-logo dos problemas dogmáticos atuais, como respeitado orador, pregador e exegeta, que até o fim de sua vida manteve estreitas relações com a capital Constantinopla e com a casa imperial. Nos sínodos de Antioquia em 379, bem como de Constantinopla em 381, 382, 383 e 394, ele foi um dos mais destacados partici-pantes. [...] No segundo concílio ecumênico (mais tarde assim considerado) em Constantinopla ele fez o discurso dogmatica-mente importante De deitate adversus Evagrium, e na morte do Presidente do concílio, Melécio, recebeu a honrosa tarefa de fa-zer sua oração fúnebre. [...] Com a inscrição na lista dos partici-

274

DROBNER, op. cit., p. 288.

275

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 306.

276

Ibid., p. 306.

148 JESUS É DEUS?

pantes do sínodo de Constantinopla em 394 cessam as notícias sobre a vida de Gregório; daí podemos concluir que ele deve ter falecido não muito tempo depois.

277

A fim de que se faça uma exposição aceitável do pensamento de Gre-gório de Nissa acerca do dogma da Santíssima Trindade, devem ser veri-ficados seus documentos mais notáveis sobre o assunto: Sobre a Santa Trindade, Sobre Não Três Deuses e Contra Eunômio, sendo este um breve prosseguimento da obra de seu irmão mais velho, Basílio de Cesaréia. Quanto ao pensamento de Gregório de Nissa a respeito da cristolo-gia, é importante considerar que não chega a ser tão aprofundado como as reflexões de Gregório de Nazianzo, mas a sua defesa à integridade da natureza humana do Filho é perceptível, sobretudo, após sua forte refu-tação ao pensamento de Apolinário. Gregório de Nissa salienta que há uma peculiar união comunicativa entre as duas naturezas – humana e divina – ao que ele chama de communicatio idiomatum. Em conseqüência dessa ênfase, ele mesmo concluirá que Maria não teria sido apenas a mãe do Jesus homem, mas sobretudo a “mãe de Deus”. Sobre o que Altaner e Stuiber destacam:

Gregório ensina inequivocamente a permuta recíproca dos atri-butos de ambas as naturezas em Cristo, que subsistem, sem se misturarem [...]. O próprio Logos plasmou para si mesmo da car-ne da Virgem “um vaso divino não feito por homem”. Por isso, a Virgem é theotókos, e não, como ousam dizer os inovadores, anthropotókos.

278

Também parece ser uma convicção de Gregório de Nissa que a encar-nação representa um fator fundamentalmente salvífico. Nesse sentido, tal-vez por observar a tamanha influência que Orígenes exerceu em seu pensa-mento, Gregório de Nissa é avaliado por Mário Serenthà como alguém que “pensa como um ‘platônico’, e como tal, objetiviza não só os indivíduos humanos, mas a humanidade inteira; os indivíduos não são compreendi277

DROBNER, op. cit., p. 289 e 291.

278

ALTANER; STUIBER, op. cit., p. 310.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 149

dos quando se prescinde da idéia universal de homem, porque dela partici-pam sem multiplicá-la nem adaptá-la”.279 A regra de Gregório tem sido adotada pela maioria dos teólo-gos ortodoxos da igreja antiga e medieval e recebeu a tradução em latim de opera trinitatis as extra indivisa sunt (as operações externas da trindade são divisíveis). Gregório reconheceu que os modos exatos da operação podem diferir. Assim, somente o Filho de Deus, a segunda pessoa da trindade, verdadeiramente assumiu corpo e natureza humanos na encarnação, mas nessa operação não era, de modo algum, independente ou separado do Pai e do Espírito Santo. Os três sempre agem juntos e nunca de modo independente.

280

Em semelhança à conclusão de Gregório de Nazianzo, Gregório de Nissa também destaca que quando se fala em Deus, refere-se a um rela-cionamento, que conquanto não existam três divindades, existe de maneira pragmática um relacionamento concordante e interativo entre as três pes-soas, em que “o Pai é a causa, o fundamento e a origem eterna do Filho e do Espírito Santo. O Filho é aquele que é eternamente gerado pelo Pai e o Espírito procede eternamente do Pai”.281 Ainda deve ser esclarecido que para Gregório de Nissa, o proces-so de distinção entre as três pessoas da Santíssima Trindade não está vinculado às relações externas mas às internas. Ele não admite que o Pai faça alguma coisa por si só, não contando com o trabalho do Filho; do mesmo modo ele não defende que o Filho tenha alguma operação especial distinta da ação do Espírito Santo. O que, porém, diferencia na trindade uma pessoa da outra, são as suas próprias peculiaridades, e não no que se refere à ação. Nesse caso, não se deve dizer que o Pai age, ou que Jesus age, ou que o Espírito Santo age, produzindo assim

279

SERENTHÀ, Mário. Jesus Cristo ontem, hoje e sempre: ensaio de cristologia. São Paulo: Ed. Salesiana Dom Bosco, 1986. p. 242. 280

OLSON, op. cit., 2001, p. 197.

281

Ibid., p. 197.

150 JESUS É DEUS?

uma linha de pensamento capaz de separar as três pessoas em termos de operação. O correto é afirmar que Deus age: o Pai, o Filho e o Espírito Santo agem conjuntamente. A única separação – se é que assim pode ser dito – entre as três pessoas da Santíssima Trindade tem a ver com as relações internas, por exemplo, a afirmação de que somente o Filho pode ser chamado de Uni-gênito. Nesse caso, existe uma explícita distinção entre as três pessoas, o que, porém, não interpela o relacionamento entre elas nos processos de atuações externas.

PARTE 2 Capítulo

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 151

10

POR QUE CRER NA DIVINDADE DO LOGOS?

Feitas todas as explanações, é necessário que uma proposta seja apresentada. O que desenvolvemos nas próximas linhas, nada mais é que uma tentativa de apresentar a importância prática - e não apenas teo-lógica ou teórica - da profissão de fé na divindade do Filho de Deus por parte de pessoas leigas. A leitura e a compreensão de passagens bíblicas, a importância teológica e pragmática do dogma em análise, e, finalmente, a identificação dos aspectos relacionados à divindade do Filho formam a conclusão desta obra. O que apresentamos até aqui foi uma tentativa de reflexão históricodogmática sobre a divindade de Cristo nos primeiros séculos da história do cristianismo. Agora apresentaremos respostas às indagações centrais da presente investigação. Algumas até mesmo de caráter existencial da alma de quem afirma: “Eu creio que Jesus Cristo é Deus!”. Esperamos que após a leitura deste último capítulo, as perguntas tenham alcançado respostas, e mais do que isso, que fique compreendido sobre qual é o significado es-sencial e particular de se crer na divindade de Jesus Cristo.

Evidências ou demonstrações bíblicas A primeira abordagem desta última consideração está relacionada às evidências ou demonstrações bíblicas que de alguma maneira tratam do as-sunto. Considerando a importância e a singularidade das Escrituras, é certo que não há outra fonte de informações mais confiável e relevante para se uti-lizar como recurso de defesa à convicção em torno da divindade do Filho. Tanto no Antigo como no Novo Testamento há demonstrações diretas a esse respeito. Se for considerado que Jesus Cristo é o messias prometi-do nas profecias presentes no Antigo Testamento, perceberemos que ele também é reconhecido diversas vezes como Deus ou com algum título que freqüentemente era utilizado somente para se referir ao Deus dos hebreus.

152 JESUS É DEUS?

Os escritores vetero-testamentários conceberam o conceito de um messias que deveria ser obrigatoriamente divino. Pretendendo uma rápida compreensão, é válido comentar alguns des-ses textos a fim de que a argumentação alcance sentido teológico. Não se-rão desenvolvidos comentários exegéticos, mas apenas uma leitura obser-vadora, pois dessa maneira será suficientemente possível perceber que nas Escrituras realmente há várias citações diretas sobre a divindade do Λόγος. O primeiro texto está em Salmos 110.1: “Disse o Senhor ao meu Se-nhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debai-xo dos teus pés”. Tanto o termo hebraico adonai quanto o termo grego kyrios (κύριος) - ambos traduzidos freqüentemente como senhor - são aplicados às auto-ridades humanas. No contexto bíblico, esses termos também são utilizados para mencionar a autoridade e soberania de Deus. No versículo citado aci-ma, o seu autor original possivelmente estava referindo-se a um diálogo de Deus com Deus. Trata-se de um diálogo entre o Deus Pai e o Deus Filho. Essa interpretação não pode ser considerada exagerada, pois ambos são chamados de Senhor em vários momentos pelos autores bíblicos. Campos comenta que “o Κύριος Filho está assentado à direita do Κύριος Pai, indicando a co-igualdade em poder e majestade. Portanto, quando Davi chama o messias de adonai, ele está apontando para a sua divindade”.282 Melhor do que qualquer outro, o título ‘Senhor’, expressa o fato de Cristo ter sido elevado à direita de Deus e de interceder atualmen-te pelos homens, em sua condição de glorificado. [...] O Senhor glorificado continua intervindo nos acontecimentos terrestres, ra-zão pela qual a igreja é considerada como o corpo de Cristo. Os primeiros cristãos expressaram esta profunda convicção em sua profissão de fé: Kyrios Iêsous: ‘Jesus é o Senhor’.

283

No Novo Testamento, quando κύριος refere-se a Jesus é freqüentemente usado em situação que diz respeito à sua condição já ressurreta e exaltada.

282

CAMPOS. op. cit., p. 170.

283

CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo: Editora Custom, 2001, p. 257.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 153

Baseando-se nessa observação, é possível que ao ser chamado de Senhor, Je-sus também seja reconhecido como Deus. A reprovação dada ao uso do termo κύριος para se referir a Jesus é semelhante a que os judeus exercem ao repu-diarem a prática cristã de considerá-lo divino. Isso significa que para o Juda-ísmo, chamar Jesus de Senhor é tão errado quanto chamá-lo Deus. Somente Deus poderia ser chamado de Senhor, ou seja, quando Jesus é reconhecido dessa maneira, significa que ele está sendo reconhecido como Deus. Segundo Oscar Cullman, “o cristianismo primitivo não teme aplicar a Jesus, ao dar-lhe o título de Κύριος, tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus”.284 Outra passagem do Antigo Testamento diretamente sobre o messias é Isaías 9.6: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz”. Embora a palavra Θεος, “Deus”, seja regularmente reservada no [Novo Testamento] para Deus Pai, há no entanto diversas passa-gens em que ela é usada também para referir-se a Jesus Cristo. Em todas essas passagens a palavra “Deus” é usada em um sentido forte para referir-se àquele que é criador do céu e da terra, o go-vernante sobre todas as coisas.

285

Embora o autor bíblico refira-se à humanidade do Messias em vários momentos de sua profecia, nesse caso o aspecto divino está bem explícito. Tratase de um messias simultaneamente homem e Deus. “É possível que Isaías não soubesse com toda a clareza como isso iria acontecer, mas não há dúvidas em sua mente de que o messias teria uma natureza divina.”286 Chamando-o de Deus Forte, Isaías expressa tal convicção. Na leitura cuidadosa do Novo Testamento é possível perceber a di-vindade do Λόγος como uma certeza presente na consciência dos evan-gelistas. Há passagens dos evangelhos que sustentam essa posição. O primeiro caso identificado está no texto do evangelho segundo Mateus,

284

Ibid., p. 401.

285

GRUDEM, Wayne A. Manual de doutrinas cristãs: teologia sistemática ao alcance de todos. São Paulo: Editora Vida, 2005. p. 257. 286

CAMPOS. op. cit., p. 171.

154 JESUS É DEUS?

capítulo 14, verso 33: “E os que estavam no barco o adoraram, dizendo: Verdadeiramente és Filho de Deus!”. Duas observações podem ser feitas na leitura do verso. A primeira é a atitude dos discípulos ao adorarem a pessoa de Jesus. Por serem judeus, eles certamente jamais o adorariam sem o reconhecerem como Deus. E a segunda observação tem a ver com a maneira com que o próprio Cristo não se incomoda em ser adorado, não negando assim a realidade de uma natureza essencialmente divina em sua própria existência terrena. Não mais em um reconhecimento coletivo acerca da divindade do Fi-lho, mas de maneira individual, o autor do evangelho segundo Mateus tor-na clara a sua convicção logo no início de seus escritos. Mateus 1.23 afir-ma: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (que quer dizer: Deus conosco)”. Nesse caso, “com sua cristologia sapiencial (sem recorrer ainda à idéia de uma Sabedoria preexistente) Mateus afirma de maneira autônoma que em Jesus 287

de Nazaré o próprio Deus se encontra com os seres humanos...”. A manifestação de Deus em Cristo é um ato de eleição do Filho determinada pelo Pai, capaz de gerar a partir da encarnação a possibilidade de um relacionamento do homem com Deus. É certo que tal relação depende da autorevelação de Deus ao homem que se encontra em estado de ca-lamidade existencial em função da queda, todavia, sem a encarnação não haveria possibilidade nem mesmo de que esta auto-revelação divina acon-tecesse. Mais que uma explicação do termo Εμμανουήλ, o escritor do evan-gelho segundo Mateus deixa exposta sua certeza de que o ser anunciado a Maria era realmente divino. Outro discípulo e escritor neotestamentário de grande relevância foi João. Mais que Marcos, Mateus e Lucas, o Quarto Evangelho apresenta em diversos momentos sua firme posição quanto à divindade do Λόγος. Cer-tamente a mais clássica de todas as passagens joaninas a respeito da na-tureza divina de Jesus Cristo é o contexto inicial do Quarto Evangelho, no capítulo 1, versos 1 ao 18: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus [...] Ninguém jamais viu a Deus; o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou”.

287

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 279.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 155

O uso que o Quarto Evangelho faz do termo Λόγος não está precisa-mente relacionado ao conceito grego do termo. É antes, mais amplo, pois trata-se de Deus na dimensão de Deus. Sua soberania e autonomia como Criador estão implícitas. E sua impossibilidade de se reduzir ao tempo e ao espaço, que são peculiaridades da criação, não é convertida em possibili-dade no ato da encarnação. “Jesus não é meramente um revestimento pas-sageiro ou uma manifestação passageira de (um) Deus, mas o Logos-Filho encarnado do Deus único, ele é a própria palavra de Deus eterna e agora definitivamente acessível em Jesus...”288 Trabalhando com outra passagem de João, agora em uma de suas car-tas, é novamente possível observar uma direta consideração que ele faz so-bre a divindade do Filho. Em 1 João 5.20, o autor afirma: “Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhe-cermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna”. Após salientar acerca da historicidade de Jesus, de referir-se ao Pai como verdadeiro e de também chamar a Jesus de verdadeiro, João conclui: Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna. Isso significa que a consubstancialidade entre o Filho e o Pai é o aspecto central da relação entre eles. Observando a questão da encarnação, Norman Geisler e Peter Bocchino comentam: A encarnação deve ser corretamente entendida da seguinte forma: “Jesus, o Deus Filho, existindo como a segunda pessoa do Deus trino e uno, uniu sua natureza divina a uma natureza huma-na e por meio dela veio ao mundo”. Quer dizer, ele não parou de ser Deus quando adicionou humanidade a si... Como Atanásio nos ensinou, na encarnação não houve ne-nhuma 289

subtração de deidade, mas adição de humanidade.

Para o teólogo holandês Rochus Zuurmond, “a mais importante profis-são de fé no Novo Testamento é sem dúvida a que chama Jesus de ‘Deus’. [...] O Jesus das Escrituras não é necessariamente a-histórico, mas a questão

288 289

Ibid., p. 293 e 294.

GEISLER, Norman e BOCCHINO, Peter. Fundamentos Inabaláveis. São Paulo: Editora Vida, 2003. p. 318 e 319.

156 JESUS É DEUS? 290

de sua historicidade torna-se secundária”. Isso ele escreve sustentando que apenas o Jesus apresentado nas Escrituras serve como inicialização de um pensamento sobre Deus. Contudo, Zuurmond reconhece que não existe qualquer possibilidade de se chegar a uma sustentação histórica favorável à divindade de Jesus. Trata-se, portanto, de uma posição complexa que em alguns pontos se diferencia do que se pretende defender. Para o apóstolo Tomé, Jesus apareceu provocando uma declaração di-reta sobre sua divindade. Quando o cético Tomé obedeceu a ordem de Je-sus para que o tocasse e visse que suas mãos estavam realmente furadas e seu corpo ferido, imediatamente confessando ele o adorou, conforme relata João 20.28: “Respondeu-lhe Tomé: Senhor meu e Deus meu!”. As palavras proferidas por Tomé após perceber sua própria increduli-dade, “não são usadas para ninguém mais. Somente quem possui a natu-reza divina, como Jesus Cristo, poderia receber expressões tão cheias de reconhecimento e, ao mesmo tempo, uma espécie de pedido de perdão por ter duvidado...”.291 Também é presente nos escritos do apóstolo Pedro a declaração direta sobre a divindade do Λόγος. Em 2 Pedro 1.1 ele diz: “Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco obtiveram fé igualmente precio-sa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”. Há quem possa afirmar que nesse caso o autor esteja se referindo ao Pai e a Jesus, o que é improvável, pois ao chamar Deus e Salvador, Pedro se direciona apenas à pessoa de Jesus Cristo. Em outros momentos, Pe-dro reconhece Jesus como Senhor, o que também seria uma maneira de aceitar sua divindade. Na teologia de Paulo, o mais evidente escritor do Novo Testamento, há diversas considerações sobre a divindade do Λόγος. Em certos mo-mentos como em Atos 20.28 (livro escrito por Lucas) Paulo confessou a divindade do Filho: “... para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele com-prou com o seu próprio sangue.” Sabendo que é Jesus reconhecido como aquele que providenciou a salvação para os pecadores por meio de um preço pago com seu sangue, Paulo não estaria referindo-se a outro. Do 290

ZUURMOND, Rochus. Procurais o Jesus histórico? São Paulo: Edições Loyola, 1998. (Bí-blica Loyola, v. 24) p. 122. 291

CAMPOS. op. cit., p. 178.

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mesmo modo ao aplicar o termo Deus, ele não se refere ao Pai, pois este não foi a pessoa terrena que comprou com o próprio sangue a salvação dos pecadores. A essa questão também está vinculada a perspectiva da encarnação. Deus Pai sendo espírito, não poderia ser aquele que derramou sangue. Só o faria se tivesse corpo. Sendo espírito, não possui corpo nem forma. Na teolo-gia paulina, a aplicação do termo μορφή (forma) é bastante complexa. “As ex-pressões ‘ser na forma de Deus’, ‘ser semelhante a Deus’, são quase sinôni-mas e se referem ao estado de Cristo anterior ou superior à encarnação.”292 O texto paulino que utiliza μορφή é Filipenses 2.6: “Pois ele [Jesus], subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus”. “O Redentor possuía todas as características da divindade antes de vir a ser homem. A sua preexistência indica sua divindade. Ele existia como Deus antes de existir também como homem.”293 Para Lucien Cerfaux, “o substantivo μορφή que reaparece duas vezes [...] é intraduzível. Exprime a maneira pela qual uma coisa, sendo o que é em si mesma, apresenta-se aos olhos dos outros. Ao se tratar de Deus, sua μορφή será seu ser profundo, inacessível e invisível...”.294 Baseados nesse contexto de Filipenses, alguns estudiosos tentam de-fender a perspectiva inesperada da encarnação conhecida como kenosis. A ênfase é dada ao trecho: “a si mesmo se esvaziou”, do verso 7. Os estudio-sos salientam que ele [Jesus] não teria feito uso de seus poderes divinos enquanto viveu como homem, embora não deixasse de ser Deus. Chegam a sustentar a hipótese de que até mesmo a onisciência, onipotência e oni-presença foram atributos jamais usados por Jesus em sua vida terrena, a fim de que, se auto-limitando voluntariamente, realizasse como homem apenas a obra vicária que realizou.

... podemos ver que Filipenses 2.7 não diz que Cristo “esvaziou-se de alguns poderes” ou que “esvaziou-se de atributos divinos”, ou coisa parecida. Antes o texto descreve o que Jesus fez nesse “esva-

292

CERFAUX, Lucien. Cristo na Teologia de Paulo, 2. ed. São Paulo: Editora Teológica, 2003. p. 397.

293

CAMPOS. op. cit., p. 181 e 182.

294

CERFAUX. op. cit., p. 300 e 301.

158 JESUS É DEUS?

ziamento”. Ele não se esvaziou por abrir mão de qualquer de seus atributos, mas por vir “a ser servo”, isto é, por passar a viver como homem e, por ser “encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” [verso 8] Assim, o contexto interpreta o “esvaziamento” como equivalente a “humilhou-se a si mesmo”, assumindo uma posição ou condição mais baixa. O esvaziamento inclui o papel e a posição, não os atri-butos essenciais ou a natureza. Isso significa que ele assumiu uma condição humilde.

295

Para alguns teólogos mais conservadores, a chamada “teoria da kenosis” não pode ser, portanto, a maneira correta de observar o texto de Filipenses 2. É o mesmo que afirmar contra a plenitude da divindade de Jesus. Grudem conclui que “a teoria da kenosis definitivamente nega a plena divindade de Jesus Cristo e o faz 296

algo menos que plenamente Deus”.

Para Campos:

A expressão “em forma de Deus” indica que antes de o redentor ter assumido a natureza humana, com todas as suas propriedades, ele já possuía todas as características próprias da divindade, exata-mente como seu Pai. Essa essência divina que o redentor possuía nunca foi perdida, mesmo com a encarnação.

297

Outra observação a ser feita é que no texto de Filipenses 2.5-8, “não diz que Deus se tornou homem, isso é, que o infinito se tornou finito. Seria uma contradição lógica dizer que o infinito e o finito existem na mesma natureza...”.298 A maneira ideal de compreender esse aparente paradoxo seria afir-mando que “Jesus Cristo, o eterno Filho de Deus, retendo todos os seus atributos divinos, assumiu para si o padrão de conduta volitivo humano quando assumiu para si mesmo todos os atributos essenciais da natu-reza humana”.299

295

GRUDEM. op. cit., p. 261.

296

Ibid., p. 262.

297

CAMPOS. op. cit., p. 182.

298

GEISLER; BOCCHINO. op. cit., p. 318.

299

BUSWELL JR, James Oliver. A systematic theology of the Christian religion, vol. 2, p. 54.

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Na Carta aos Romanos 9.5, o apóstolo Paulo salienta: “Deles são os patriarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre. Amém”. No início da referida passagem, Paulo afirma que sua consciência testemunhava com ele no Espírito Santo, ou seja, que o Espírito estava no con-trole daquilo que ele, como apóstolo, proclamava. Isso quer dizer que ao falar sobre a divindade do Filho, ele estava diretamente inspirado pelo Es-pírito Santo. Portanto, “a natureza divina está claramente afirmada na frase que diz que ele é ‘Deus bendito para todo sempre’. Essa é talvez a asserção mais clara que Paulo tem a respeito da divindade de Jesus Cristo”.300 Em mais dois casos Paulo apresenta sua convicção. O primeiro está em Colossenses 2.9: “... porquanto, nele, habita, corporalmente, toda a ple-nitude da divindade”. Aqui Paulo refere-se à união hipostática das duas naturezas. É o mesmo que afirmar que Deus passou a habitar no homem histórico Jesus de Nazaré. A partir daí, na pessoa do Filho passa a existir a eterna união das duas naturezas: humana e divina. Todas as características peculiares da natureza divina estão presentes em Jesus Cristo. Ele é Deus plenamente e não apenas em semelhança. Tudo o que pode haver na essência divina do Pai há também na essência divina do Filho. O segundo caso está em Tito 2.13: “Aguardando a bendita esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo”. Conquanto alguns possam afirmar que Paulo esteja falando do Pai e do Filho, aqui a interpretação segue a idéia de que a pessoa referida por Paulo é so-mente o Filho. Quem se manifestará em glória é Jesus quando da sua volta. Quanto à declaração que Jesus fez sobre sua divindade, existem algu-mas referências diretas nos escritos neotestamentários. Todavia, para Cull-mann, “Jesus não se chamou a si mesmo κύριος nem tampouco se designou θεός, e os evangelistas tampouco parecem querer fazê-lo”.301 Para alguns estudiosos mais conservadores que Cullmann – não que ele seja um teólogo de linha liberal – Jesus se declarou como Deus em de-terminados momentos de sua vida terrena. Ao chamar-se de EU SOU – for-ma como apenas Deus havia se identificado no Antigo Testamento quando

300

CAMPOS. op. cit., p. 181.

301

CULLMANN. op. cit., p. 401.

160 JESUS É DEUS? 302

conversou diretamente com Moisés – Jesus teria na percepção de alguns se declarado Deus. Ele disse conforme a narrativa de João 8.58: “... Em ver-dade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, EU SOU”. Além dessa, há outras referências neotestamentárias que apresentam declarações de Jesus falando ou experimentando situações que servem para demonstrar sua auto-identificação divina. Como é o Quarto Evangelho que se diferencia dos demais exatamente por dedicar boa parte de seu conteúdo à proclamação da divindade de Jesus Cristo, nele estão algumas passagens relevantes: João 5.18 diz: “Por isso, pois, os judeus ainda mais procuravam matá-lo, porque não somente violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus”. João 10.30-33 diz: “Eu e o Pai somos um. Novamente, pegaram os judeus em pedras para lhe atirar [...] Não é por obra boa que te apedrejamos, e sim por causa da blasfêmia, pois, sendo tu ho-mem, te fazes Deus a ti mesmo”. João 17.3 diz: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste”. Cullmann conquanto negue que Jesus tenha declarado-se Deus, não dei-xa de reconhecê-lo como tal, e o faz após perceber a maneira como a sua di-vindade é trabalhada em outros textos, principalmente em João e Hebreus: Os testemunhos mais claros, e menos equívocos, da aplica-ção a Jesus do nome θεός se acham no evangelho de João e na Epístola aos Hebreus... Daí concluímos com R. Bultmann que o Logos, Jesus Cristo, não pode ser um segundo Deus ao lado de Deus, nem uma emana-ção de Deus; mas o próprio Deus, enquanto aquele que se revela.

303

Para melhor compreensão sobre o modo como o autor da carta aos Hebreus trabalha com a questão da divindade do Λόγος, vale verificar as ponderações de Campos: Para o autor de Hebreus, o Filho era o agente divino da providência, pois ele sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder, sendo a expressão exata do ser de Deus (Hebreus 1.3). O autor de Hebreus 302

Cf. Êxodo 3.14: “Disse Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós outros. (Revista e Atualizada do Brasil). 303

Ibid., p. 401 e 402.

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possuía consciência clara da filiação divina de Jesus Cristo (Hebreus 1.5). A palavra “filho” é proeminente na Carta aos Hebreus. Esse au-tor sacro cria na preexistência do Filho, quando disse do Pai: “Ao introduzir o Primogênito no mundo” (Hebreus 1.6a). Não somente cria na preexistência do Filho, mas afirmou a ordem divina para que “todos os anjos de Deus o adorem” (Hebreus 1.6b). Tanto a preexis-tência como a adoração são atributos da divindade. Ninguém existiu antes da criação, exceto Deus. Ninguém pode ser objeto de adoração, exceto Deus. Portanto, esses atributos são próprios da divindade.

304

Para completar a reflexão sobre as evidências bíblicas em torno da divindade do Λόγος, podemos observar as referências indiretas a esse respeito. Todas as passagens que demonstram alguma forma de reconhecimento de atributos divinos na pessoa de Jesus de Nazaré são consideradas argumenta-ções em favor do dogma. As evidências que apontam para sua divindade nor-malmente são: sua filiação divina; a autoridade de suas palavras; suas obras como criador, providente, salvador, perdoador, libertador e juiz; sua preexis-tência; suas 305

prerrogativas divinas; seus milagres e sua co-essencialidade.

As (i)relevâncias do dogma Quais as relevâncias e irrelevâncias da crença e da defesa teológica ao dogma da divindade do Filho? A convicção de que Jesus Cristo é Deus além de apresentar o cristianismo como um seguimento religioso distinto de qualquer outro existente, serve também para tornar evidente a particulari-dade de seus ensinamentos e exemplos práticos. Teologicamente não seria um equívoco tratar como implicação da divin-dade do Filho a observância de sua vida terrena, como exemplo universal para todos os seres humanos. Para que o homem compreenda o nível de amor que Deus tem para com sua criação, basta olhar a obra sacrificial de Jesus Cristo. O significado da encarnação passa a ser mais amplo quando compre-endido a que ponto Jesus Cristo se rebaixou para providenciar a eternidade

304 305

CAMPOS. op. cit., p. 185.

Para melhor aproveitamento nesse assunto, consultar obra citada de Heber Carlos de Campos, cap. 7, p. 219 a 276.

162 JESUS É DEUS?

aos eleitos de Deus. Estes por si só jamais conseguiriam alcançar a realidade divina. Foi necessário que um ser naturalmente impossibilitado de pecar se encarnasse e apresentasse Deus aos homens. E essa apresentação não esteve limitada ao imaginário, mas tornou-se visível com a encarnação do Λόγος. Deus pôde ser visto em Cristo, e permanece sendo, quando suas obras registradas no Novo Testamento são contempladas por aqueles que viveram ainda que em época muito posterior. De um modo coerente, o professor Carl E. Braaten dissertou a respeito da relevância pragmática que envolve a questão da divindade de Jesus Cristo como artigo de fé dos cristãos: O que aconteceu em Jesus Cristo, através de sua experiência humana de amor sofredor e morte sacrificial, foi nada menos que a vinda e a história de Deus. A verdade da encarnação é que Deus se identificou com esse homem, comunicando a palavra divina através da particularidade desse homem e o mais profundo amor no acon-tecimento da cruz. Deus, que não precisa mudar para ser plenamen-te divino, tornou-se alguém completamente humano, fazendo-o a partir da plenitude do amor e da liberdade, não a partir de qualquer carência no ser de Deus ou de necessidade fatal. Nascimento, mor-te, mudança, história e negação não mais ocorrem apenas no lado humano do abismo ontológico existente entre Deus e o mundo. A encarnação do amor na história de Jesus Cristo é, assim, um evento ontológico. Pois o amor que Deus comunicou na his-tória de Jesus Cristo é o amor que é a própria natureza do ser de Deus mesmo. Deus é amor. O sentido ontológico dessa afirmação foi explicado na doutrina da trindade. As relações internas entre os membros do Deus triúno caracterizam-se pela dinâmica eterna do amor. A boa nova da encarnação é que esse amor veio a ser na pessoa de Jesus, reconciliando o mundo e a humanidade com sua fonte eterna em Deus. A vinda de Deus em Cristo assumiu a história humana e o devir do mundo na vida divina. Deus entrou no mundo de tempo e espaço, restabelecendo a criação toda como âmbito do domínio de Deus. A encarnação é o autoesvaziamento de Deus de tudo que separava o Criador da criação, para abraçar o cosmo todo como uma parte aceitável do reino de Deus.

306

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BRAATEN, Carl. E; JENSON, Robert W. Dogmática Cristã vol. 1, 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2002. p. 526 e 527.

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Outra relevância da divindade do Filho seria no processo apologético em relação a movimentos que negam tal princípio da teologia cristã. As co-nhecidas Testemunhas de Jeová, por exemplo, são o seguimento religioso mais próximo do antigo arianismo. Negam a co-substancialidade entre o Filho e o Pai e ainda usam as mesmas passagens bíblicas que Ário usara para sustentar sua vencida, superada e ultrapassada proposta cristológica. Para análise da questão dos versos bíblicos utilizados como objeto de sustentação por parte de arianos e atualmente pelas Testemunhas de Jeová, preferimos trabalhar brevemente com dois casos: Provérbios 8.22 e João 14.28. Sobre o primeiro caso, o escritor brasileiro Aldo Menezes desenvolve boa argumentação para esclarecer como a passagem de Provérbios tem sido mal interpretada, tanto do ponto de vista teológico quanto lingüístico. O texto bíblico de Provérbios diz: “O Senhor me possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas”. Como se sabe essa passagem é uma referência do Antigo Testamento a respeito da sabedoria e sua eternidade. Segundo Menezes, a sabedoria referida em Provérbios não tem qual-quer relação com a fala de Paulo em 1 Coríntios 1.24: “mas para os que foram chamados, tanto judeus como gregos, pregamos a Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus”. ... é preciso dizer que não se pode afirmar categoricamente que o texto de Provérbios 8.22 faça referência a Jesus Cristo. O texto sim-plesmente apresenta a sabedoria de Deus em estilo poético, e, em poesia, tudo pode acontecer: a sabedoria grita, ama, trabalha etc.

307

Trabalhando com a utilização do termo ‫( הנק‬criar, adquirir, possuir), Menezes percebe a distância que há de se chegar a uma conclusão que pos-sa ser considerada relevante no que tange à afirmação de que Jesus tenha sido criado por Deus Pai. Na Septuaginta (LXX), o termo utilizado na passa-gem é έκτισέν (criar). Isso mostra que baseada na LXX, a afirmação ariana não é equivocada. Todavia, quando Jerônimo fizera sua tradução latina da Bíblia, a Vulgata, ele traduziu a palavra ‫ הנק‬para possuir. Assim ficou posseit. Porém, em outros casos como Gênesis 14.19, Jerônimo traduziu para o la307

MENEZES, Aldo. Por que abandonei as Testemunhas de Jeová. São Paulo: Editora Vida, 2001. p. 145.

164 JESUS É DEUS?

tim creavit (criar). No intuito de sustentar sua proposta de que Jesus Cristo não era Deus, Ário teria considerado correta apenas a tradução grega da LXX. Do mesmo modo, na tentativa de demonstrar certo conhecimento nas línguas originais da Bíblia, movimentos como as Testemunhas de Jeová, por exemplo, se enveredam pelo mesmo caminho, reproduzindo com isso aquilo que Ário propôs e que foi reconhecido como um equívoco cristoló-gico presente no seio da igreja primitiva. Derek Kidner comenta que das 84 vezes em que o termo ‫ הנק‬foi menciona-do “no Antigo Testamento, apenas seis ou sete delas permitiram o sentido de ‘criar’ (Gn 14.19,22; Êx 15.16; Dt 32.6; Sl 74.2; 139.13; 8.22).”308 Conforme João 14.28, Jesus teria dito: “Ouvistes que eu vos disse: vou e volto para junto de vós. Se me amásseis, alegrar-vos-íeis de que eu vá para o Pai, pois o Pai é maior do que eu”. Nesse caso, a atitude de submissão de Jesus Cristo em relação ao Pai não é suficiente para se sustentar a idéia de que ele fosse inferior. Na con-dição de servo, Jesus por várias vezes apresentou-se em posição de obedi-ência a Deus. Essa postura deve mostrar o exemplo que Jesus deixou aos pecadores, os quais deveriam imitá-lo diante de Deus, submetendo-se e obedecendo sempre à sua soberania. Outras passagens do Novo Testamento como Marcos 13.32: “Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai” e 1 Coríntios 11.3 “Quero, entretanto, que saibais ser Cristo o cabeça de todo homem, e o homem, o cabeça da mulher, e Deus, o cabeça de Cristo,” são textos que trazem aparentemente a mesma perspectiva, a saber, que Jesus é inferior ao Pai. Mas todas são passagens em que ele se apresenta como servo submisso a Deus, o que não torna relativa ou imprópria sua natureza divina. Para esses textos, pretendemos no futuro desenvolver uma leitura exegética, no sentido de abordar nova-mente acerca da divindade de Jesus Cristo, mas sem entrar em discussões e comentários dogmáticos. Será na verdade, uma tentativa de deixar o texto falar por si só.

308

KIDNER, Derek. Provérbios: introdução e comentário, 1. ed. São Paulo: Edições Vida Nova. 1980. p. 76.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 165

Divindade do Logos, soteriologia e libertação Jesus Cristo é Deus e sua divindade está intimamente relacionada ao plano de salvação eterna ao ser humano pecador escolhido por Deus. Da mesma forma, a divindade do Filho – e não apenas a humanidade – está relacionada à sua atuação social que o faz ter compaixão pelos menos favo-recidos socialmente, ao ponto de afirmar sobre a necessidade de uma vida material simples, no intuito de servir aqueles que nada possuem. Quando o Λόγος encarna, juntamente com ele encarna o amor de Deus por sua cria-ção. E a manifestação desse amor não se restringe somente à histórica obra de salvação efetuada na cruz, mas também aos atos de amor e compaixão para com os necessitados. Nas reflexões teológicas feitas atualmente em torno de questões cristológicas, diversos autores têm estabelecido uma metodologia que tende a afirmar que na teologia existem dois modos de observar a análise a respeito de Cristo: uma a partir de cima e outra a partir de baixo. A primeira enfatiza a propriedade das duas naturezas do Filho de Deus, sua encarnação e pe-culiarmente sua eternidade. A segunda destaca a figura histórica de Jesus. Na atualidade não podemos mais partir da divindade de Jesus Cristo, pressuposta com certa naturalidade; precisamos, antes [...] tomar a humanidade histórica de Jesus como ponto de partida. Isso, porém, não significa reduzir Jesus Cristo a um mero ser humano (exem-plar), que não pudesse nos trazer mais do que algo humano...

309

A verificação histórica da pessoa de Cristo é fundamental para co-nhecer sua humanidade como reflexo de sua divindade. Jesus na condição de homem é Deus entre os homens. Mas isso só fará sentido no aspecto pragmático, quando sua atuação humana for tomada como modelo de vida solidária e capaz de encarnar o amor de Deus pelo outro. “A base histórica da cristologia, contudo, não deve se reduzir unicamente ao Je-sus terreno. O próprio Jesus terreno não existe isoladamente, sem uma relação vivida com ele.”310

309

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 347.

310

Ibid., p. 348.

166 JESUS É DEUS?

A atuação de Cristo em forma humana é também elemento de susten-tação para sua credibilidade como homem. Ainda que os judeus o tenham rejeitado até a morte, para os que o reconheceram como Deus não pode haver qualquer desconsideração para com sua atuação histórica. Foi na história e em forma humana que Deus se mostrou visivelmente ao homem e não escon-deu do que seria capaz, a saber, de amar incondicionalmente sua criação. Portanto, “a cristologia não deve perder de vista os acontecimentos concretos 311

da história humana de Jesus.” É como afirmar ser necessária a atuação terrena do Filho para que qualquer tentativa de estudo em torno de sua personalidade seja pelo menos válida. Jesus Cristo é Deus e homem, mas ele só foi homem como foi porque possuía – e eternamente possui – uma natureza divina. Quanto à relação entre cristologia e soteriologia, faremos uma refle-xão breve mas com certo esclarecimento. No pensamento de Oscar Cull-mann há uma quase perfeita abordagem em torno da relação entre Cristo e o tempo, e sua centralização na história da salvação. Segundo a clareza do Novo Testamento, é possível concluir que a morte na cruz é o ato central da história, da vida de Jesus Cristo e da salvação concedida aos que crêem. Desde a criação até Cristo, a história completa do passado, tal como é relatada no Antigo Testamento, já faz parte da história da salvação. Porém, antes da aparição de Cristo, sua orientação retilínea tendia para um evento histórico não aparente. Para os primeiros cristãos, a narrativa da criação, relatada em Gênesis, mantém seu valor como revelação de Deus. Não se aumenta nem se diminui nada dos fatos ali relatados. A esse respeito, Cristo não fornece uma nova revela-ção. A única novidade é que é dito que se deve interpretar toda a história da criação partindo-se do centro, que é Cristo.

312

Para relacionar cristologia com soteriologia não há necessidade de muitos esforços, apesar das complexidades contidas em ambas. A encarna-ção do Verbo, ou seja, a manifestação histórica de Deus entre os homens, dá-se porque não haveria outra maneira de o homem ser salvo. A soterio311

Ibid., p. 350.

312

CULLMANN, Oscar. Cristo e o tempo. São Paulo. Editora Custom, 2003. p. 173.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 167

logia habita na cristologia. Sem encarnação não há salvação. Olson salien-ta que “a fim de salvar a humanidade, portanto, Jesus Cristo tinha de ser verdadeiramente humano e possuir todos os aspectos essenciais de um ser humano [...] e também de ser verdadeiramente divino e possuir uma natu-reza divina semelhante à própria existência do Deus Pai”.313 A pergunta que mais é levantada após essa definição tem a ver com a salvação daqueles que viveram antes da vida histórica de Jesus, já que essa teria sido necessária para que os eleitos de qualquer época fossem salvos. Uma resposta a essa pergunta pode ser a seguinte: a obra vicária, embora aconteça no tempo e na história, em se tratando de uma obra essencialmente divina, tem a possibilidade de ser válida para qualquer momento, ainda que anterior a si mesma. O sacrifício salvador do Filho de Deus é por assim dizer retroativo, capaz de atingir aqueles que viveram e morreram na esperança de um cumprimento das promessas a respeito do messias. O Antigo Testamento como reunião de diferentes fatores his-tóricos e ao mesmo tempo como Escritura Sagrada, traz em seu conteúdo profético todas as promessas capazes de produzir esperança e certeza na mente dos que haveriam de ser salvos.

No Antigo Testamento toda a história da salvação tende para a encarnação; e o que acontece agora se torna possível compreender em Cristo. O testemunho que conduz a Cristo é aí plenamente cumprido pelo Antigo Testamento, e não a concepção de uma “contemporaneidade” do Antigo e do Novo Testamento. O Antigo Testamento apresenta uma parte da história da salvação diferente daquela oferecida pelo Novo. [...] Encontrar no Antigo Testamento um testemunho conduzindo a Cristo não é aí descobrir a encarnação de Jesus, mas, antes, esclarecidos por nosso conhecimento do Cristo encarnado e crucificado, aprender a ver, nos eventos passados da história da salvação, a preparação da encarnação e da cruz.314

313

OLSON, op. cit., 2001, p. 194.

314

Ibid., p. 177.

168 JESUS É DEUS?

Para análises como a de Kessler, é “na peculiaridade da pessoa de Jesus e em sua história que se fundamenta e está dado seu significado soteriológico. O significado soteriológico é intrínseco à própria pessoa e história de Jesus”.

315

Sendo Deus o portador da salvação dos seres humanos, somente mes-mo através de uma teofania seria possível ao homem ser salvo. A encarna-ção do Λόγος é a auto-revelação de Deus e sua comunicação de vida eterna e divina aos homens. Significa que essas importâncias de ordem mística e espiritual não seriam possíveis sem o evento da encarnação. Essa afirmação é negada por pensadores clássicos da igreja, dentre os quais Tomás de Aquino. Em sua Suma Teológica, Tomás de Aquino teria afirmado:

... se o Verbo de Deus encarnado restaurou a natureza humana, po-deria tê-la restaurado sem se encarnar. Além disso, para restaurar a natureza humana, decaída pelo pecado, não era necessário senão que o homem desse uma satisfação pelo pecado. Pois Deus não deve pedir ao homem mais do que ele pode fazer; e como é mais inclinado à misericórdia do que à punição, assim como responsabi-liza o homem pelo ato do pecado, assim para apagar o pecado basta que lhe impute o ato contrário. Portanto, a encarnação do Verbo de Deus não era necessária para a restauração do gênero humano. Ademais, o principal para a salvação do homem é que reverencie a Deus; por isso, diz o profeta Malaquias: “Se sou o Senhor, onde está o respeito que me é devido? Se sou o Pai, onde está a honra que me é devida? [...] Logo, não convinha à salvação dos 316

homens que Deus se tornasse semelhante a nós assumindo um corpo.

Para Tomás de Aquino, no aspecto operacional da salvação, Deus tem poder suficiente para salvar o homem sem ter que encarnar-se, todavia, no sentido de aceitabilidade humana em relação a Deus, somente por meio da manifestação histórica do Λόγος é que o homem perceberia a necessidade de ser restaurado. Com isso, na perspectiva do escolástico, a encarnação 315 316

SCHNEIDER; KESSLER, op. cit., p. 350.

AQUINO,

60 e 61.

Tomás de. Suma Teológica v. 8: o mistério da encarnação. São Paulo: Edições Loyola, 2002. p.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 169

foi e ao mesmo tempo não foi necessária. Isso, porém, será mais explorado no próximo volume da nossa pesquisa. Seguindo a convicção da impossibilidade de o homem até mesmo se autoperceber como ser necessitado de Deus, vale frisar que sem a encar-nação do Filho, o homem não poderia ser salvo por seu Criador, ou mesmo ser convencido em si próprio de sua perdição natural. Tanto a salvação quanto a percepção humana dos próprios pecados são operadas por Deus no homem. Segundo Cullmann, “Cristo é Sotér porque nos salvou do peca-do. [...] Jesus é Sotér porque 317

reconciliou Deus e o mundo por sua cruz”. “A história de Jesus é vista como meio e forma de realização do Filho eterno de Deus nela atuante. Jesus é a epifania e o sinal eficaz (sacramento pessoal) do amor de Deus que perdoa os pecados e presenteia a vida.”318 Certo de que o Filho é Deus em todos os sentidos, Kessler ainda afirma que “Deus vem àqueles que, por si, jamais podem realmente ir a Deus; ele vem, sem condições prévias, até ao encontro dos pecadores e os aceita”.319 Fica claro que não é o homem quem aceita Deus, e sim Deus que decide se aceitará ou não o homem. Ele é soberano o suficiente para não ter que abrir mão dessa prerrogativa e de revelar a sua graça e amor salvador a quem ele pretender. Há algumas considerações na abordagem que Kessler fez diretamente acerca da divindade de Jesus Cristo, razão pela qual foram selecionadas algumas, para compor e até mesmo sustentar teologicamente a reflexão de defesa da convicção cristã a respeito da divindade do Filho: Na vida, morte e ressurreição de Jesus o próprio Deus veio a nós (de maneira humana e histórica), fixou-se definitivamente do lado dos seres humanos e transpôs por iniciativa própria o abismo que separa os seres humanos de Deus. Por isso é verdade que em Cristo ninguém 320

menos do que ‘Deus é por nós’ (Rm 8.31). Jesus é a iniciativa de Deus, a descida e vinda de Deus a nós, seres humanos. [...] No ser humano Jesus, o próprio Deus veio a nós, e esse fato só pode ser compreendido como provindo de

317

CULLMANN, op. cit., 2001, p. 317.

318

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 353.

319

Ibid., p. 356.

320

Ibid., p. 391.

170 JESUS É DEUS?

Jesus a partir de Deus [...] o próprio Deus eterno se dispõe para tornar-se presente a nós, de maneira inédita, em sua expressão substancial (LogosFilho) – que, tornando-se ser humano como nós, entrou em nossas condições de existência e desgraça – e para nos possibilitar uma 321

comunhão curativa consigo. O Filho eterno de Deus assumiu uma existência criatural-hu-mana para que finalmente se realizassem também aí o ser-Filho ou a condição de imagem de Deus. [...] Por isso a história humana de Jesus é transparente para a presença, nela abscôndita, do Filho encarnado de Deus. Justamente assim Jesus Cristo torna-se concebível como verdadeiro ser humano e verdadeiro Deus ao mesmo tempo.

322

A única maneira de se negar ou contestar que Jesus considerou sua própria divindade e que sua morte foi por ele definida como “o momento mais decisivo no plano divino da salvação”323, seria utilizando um méto-do justificado cientificamente. De outra maneira não há possibilidade de desconsiderar a posição de Jesus Cristo como fator central da história da salvação, por se tratar de uma personalidade única na história: humana e divina ao mesmo tempo. A encarnação do Λόγος e a salvação dos eleitos estão diretamente relacionadas, mas só serão relevantes para a vida do ser humano, se conside-radas como fatores históricos. Na perspectiva da libertação e da materiali-zação do que representou a encarnação, alguns detalhes ainda devem ser desenvolvidos antes que cheguemos ao desfecho desta obra. A leitura da divindade de Jesus Cristo do ponto de vista social gera a percepção de uma necessária aplicação de tudo o que possa ser refletido em torno do dogma. Se este não for aplicado, se não produzir diferenciais na sociedade onde a comunidade cristã se insere, certamente não servirá para muitas coisas. Reflexões teológicas para essa linha de pensamento não fal-tam. Aqui serão citadas apenas algumas para que a conclusão não se mostre carente de bases, as quais são também o resultado da produção de alguns teólogos que já têm dedicado toda a vida na defesa dessa convicção de fé.

321

Ibid., p. 392.

322

Ibid., p. 393.

323

CULLMANN, op. cit., 2003, p. 192.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 171

José Comblin trabalha com esse tema de maneira simples e clara. A afirmação seguida de uma pergunta inicial que Comblin lança é: “... aquilo que Jesus é e faz por nós se baseia naquilo que ele é em si mesmo. Quem é Jesus para 324

ser a nossa libertação?”. Aparentemente fica a idéia de que Jesus só é o que é, se seus ensinamen-tos forem aplicados por seus seguidores. Mas essa seria uma conclusão preci-pitada. Jesus não deixa de ser o que é simplesmente porque seus adeptos não praticam seus ensinamentos, ainda que creiam e o confessem como Deus. O resultado prático da missão da igreja seria mais positivo se ela cumprisse fiel-mente o que Jesus ensinou e fez em termos de solidariedade e de amor prático pelo aflito, e não se apenas cresse e confessasse que ele é o Filho de Deus. Observando a maneira como o ensino de teologia sistemática de um modo geral se reduz às ênfases teóricas em torno dos dogmas, gera-se uma preocupação por parte daquele cristão que leva a vida a sério. Essa ênfase dog-mática – necessária inclusive, em alguns momentos – parece demonstrar que a igreja preocupa-se, mesmo após dois mil anos de cristianismo, em somente formular argumentos que defendam seus princípios teológicos, mas ao mes-mo tempo se esquecendo de sua missão em relação à sociedade à sua volta. A resposta à pergunta de Comblin é dada por ele mesmo: Tanto os evangelhos como todo o Novo Testamento e toda a tradi-ção cristã insistem em uma dupla afirmação: Jesus é realmente e completamente homem. Não uma aparência de homem, mas um homem semelhante a nós, nascido de mulher, mortal como nós, semelhante em tudo exceto no pecado. Ao mesmo tempo, Jesus é Filho de Deus, semelhante em tudo ao Pai, da mesma natureza do Pai. Jesus é verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. Não é nenhum ente intermediário entre Deus e o homem. Jesus vive totalmente na esfera da divindade e da humanidade. Não é nada fora da humanidade e da divindade.

325

A divindade de Jesus Cristo implica muitas coisas. Dentre elas: ser reconhecido e adorado como Deus e ser imitado como Deus que se coloca na 324

COMBLIN, J. Jesus Cristo e sua missão. 2. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1983. p. 222. (Breve curso de Teologia, tomo 1). 325

Ibid., p. 222.

172 JESUS É DEUS?

condição de servo não deixando de ser Deus. O amor divino representado historicamente na pessoa de Jesus de Nazaré deve levar o cristão a enten-der seus ensinamentos a respeito do amor como algo prático, e não teóri-co, e restrito à palavras e sentimentos. O amor de Deus no ser humano só poderá ser chamado de amor quando colocado em prática. Amar ao próxi-mo como Deus ama sua criação não significa sacrificar-se ou entregar-se incondicionalmente em lugar de outrem, o que apenas Deus poderia fazer. A depravação total da natureza humana impede qualquer ser humano de chegar à tal condição elevada de entrega pelo próximo. Entretanto, mesmo com essa limitação, ainda há um considerável espaço dentro da condição humana capaz de amar aquele que se encontra em condições debilitadas; do contrário, não faria sentido o apelo – mais que ensinamento – de Jesus à prática de amor ao próximo. O dogma cristão mais inabalável e teologicamente irrefutável se torna desonrado, quando aquele que o defende, não age solidariamente com o menos favorecido da sociedade. A divindade do Filho como dogma precisa ser vivida, além de proclamada. Ser solidário, em qualquer intensidade, deve ser um ato presente na vida de quem defende a divindade daquele que foi o maior exem-plo de solidariedade da história. Kessler segue essa perspectiva após apresen-tar sua proposta dogmática a respeito da relevância histórica de Jesus: Como presente ele permanece atuante de modo curativo quando sua história passada é narrada e ouvida: ele nos olha e nos dirige a pala-vra, e de repente nós mesmos também aparecemos nas histórias dos Evangelhos como pobres a serem curados ou então como pessoas que se voltam para os pobres. Os motivos soteriológicos dominantes aqui são: proximidade de Deus, relação, perdão, cura, livramento (li-bertação) e futura entrada na vida plena do senhorio de Deus.

326

O significado da frase atribuída por alguns a Atanásio: “Deus se tornou homem para que nós nos tornássemos deuses”, pode ser aplicado a essa temática. Não significa que o homem se torna essencialmente Deus, mas em dois momentos ele passa a desfrutar da condição prática semelhante a Deus. Quando ele vive uma vida de imitação do Cristo-Deus no aspecto 326

SCHNEIDER;KESSLER. op. cit., p. 352.

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 173

da solidariedade e quando ele passa a viver eternamente em condição de perfeição junto a Deus, na eternidade. Para a criação só é possível ser se-melhante a Deus nessas duas situações. Mas a comunidade cristã de ma-neira egoísta tem se preocupado apenas com a segunda opção. Ser como Deus somente após a morte humana, não dando qualquer importância à possibilidade de ser igual ao Filho de Deus nesta vida, é o mesmo que se demonstrar desconhecedor da proposta cristã de fraternidade. Biblicamente, ser imitador de Cristo não justificará o homem de sua natureza corrupta, tampouco de seus pecados. O ser humano quando salvo é salvo pela graça absoluta de Deus em Cristo e tão somente por meio da fé. Mas a sua condição de pecador justificado generosa e imerecidamente por Deus deveria despertá-lo ao sentimento de solidariedade para com o an-gustiado. As boas obras e os frutos que testificam o arrependimento devem ser interpretados como gestos de gratidão a Deus pelo presente humana-mente impagável da vida eterna. Mas não chega ser uma retribuição, o que é impossível ao homem. Tentar retribuir a Deus é insultá-lo. Como afirmou Kessler, “toda cristologia é resultado de uma reflexão, mas a plenitude de Cristo só pode representar-se na totalidade da prática de vida (martyria-leiturgia-diakonia-koinonia) do corpo de Cristo na multiplicidade de seus membros”.327 É a prática da missão cristã que se apresenta como diferen-cial em quem além de crer e defender os dogmas se interessa em refleti-los por meio da ação solidária. Boff conceituou “missão” com o seguinte comentário: Por missão, trinitariamente, entendemos a autocomunicação de Deus à criatura. É distinto esse conceito de missão daquele comum, também usado pelas Escrituras: as missões que receberam os profe-tas, os sábios, os reis para atuarem em nome de Deus. Deus estava com eles, mas não se entregava pessoalmente, numa comunicação pessoal (hipostática) a ponto de Deus mesmo estar aí absolutamen-te presente de uma forma que não padece mais nenhuma distância. No caso do Filho, a missão significa então encarnação. O homem Jesus de Nazaré vem assumido pelo Filho de Tal forma que a huma-nidade dele passa a ser a humanidade do Filho.

327

Ibid., p. 353.

328

BOFF. op. cit., p. 227.

328

174 JESUS É DEUS?

Para muitos parece irrelevante relacionar a divindade do Filho com as necessidades sociais de libertação. A prática da solidariedade quando au-sente da vida de um cristão, faz com que sua vida religiosa se torne vazia e inútil. Não se está afirmando que tais práticas justificam o homem ou que o dogma depende da práxis para ser dogma. Também não é coerente desprezar o dogma e se voltar apenas à ação social, esquecendo-se dos princípios que fazem do cristianismo um seguimento que possui uma fé sólida teologicamente. O ideal, conforme a proposta aqui lançada, seria desenvolver uma ten-tativa de correlação entre o fundamental e o necessário, ou seja, a ortodo-xia e a ortopraxia. Quando isso for uma realidade presente na vida das igre-jas, certamente sua imagem perante a sociedade será mais positiva. Esse equilíbrio fará das igrejas um referencial para outras instituições sociais e nãogovernamentais. Não pode ser negado – a menos que haja um perverso interesse – que a realidade das igrejas contemporâneas tem sido consideravelmente distante da idéia aqui apresentada. Ou a instituição tem se evidenciado na sociedade em função de seus escândalos financeiros, sustentando-se por meio de doutri-nas teologicamente frágeis, aumentando patrimônios, aliando-se a sistemas partidários historicamente corruptos e realizando uma prática social muito simplória diante do que, de fato, poderia se fazer, tendo em vista seus recur-sos acumulados, ou ela tem se destacado pela preocupação extremada com a preservação de sua ortodoxia – o que deve ser feito, pois nisso consiste a defesa da fé – tapando, porém, seus olhos para a realidade de miséria, fome, violência, doenças, desemprego e corrupção que transformam em vítima fatal a sociedade na qual as igrejas estão inseridas, mas não atuantes. No que se refere à relação entre a divindade do Filho e a missão de evangelização, que também é parte da ortopraxia da igreja, Comblin desen-volve o seguinte pensamento: Deus quis mostrar o que ele era e o que era o seu amor ao solidarizar-se com os pobres até à morte na cruz. Assim é Deus. Não há outro Deus além do que se mostrou em Jesus. Desde o século XIX, há uma negação da divindade de Jesus entre os intelectuais ocidentais. Eles o apresentam como se fosse um sábio, um herói humano, um filósofo, um profeta etc. Mas, se Jesus fosse

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 175

um simples homem, suas opções só teriam o valor de opções huma-nas, não teriam valor de obrigação. No entanto, Jesus é o Filho de Deus e o nosso único conhecimento de Deus verdadeiro. Assim, tudo o que Jesus faz constitui vocação e obrigação para todos nós.

329

Essa última observação de Comblin é uma espécie de apelo para que a igreja se torne um agente libertador onde ela se instala. A defesa dos dog-mas é importante, mas a solidariedade evangelizadora é uma necessidade urgente que só será possível se as organizações e comunidades cristãs pra-ticarem os ensinamentos de Jesus sobre fraternidade, assistência social e amor ao próximo.

Ao libertar o ser humano do pecado para o estar-acolhido em Deus e para a comunhão com Deus, de poderes encantadores e do medo em relação a si mesmo para poder ser sujeito, Jesus Cristo o liberta ao mesmo tempo para a relação solidária com as outras pessoas e criaturas e para a comunhão com elas.

330

“A teologia não pode estar separada da vida da igreja ou se desenvol-ver como um sistema teórico, e é genuína e tem poder na medida de sua coragem para 331

tomar partido.” “Uma verdadeira teologia deve ser vital e relevante às necessidades e problemas do nosso povo e das nossas congre-gações. [...] Outra grande responsabilidade é relacionar a Palavra à vida do homem presente.”332 Segundo Kessler, “ter comunhão com Deus significa também partici-par do movimento do amor de Deus”.333 Esse certamente é o amor capaz de compartilhar o que se tem com aquele que nada possui. José Miguez Bonino é outro teólogo que reconhece a relevância his-tórica da divindade do Filho e que ao mesmo tempo se preocupa em esta-belecer uma relação entre essa convicção teológica com a necessidade de 329

COMBLIN. op. cit., p. 241.

330

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 369.

331

FARIA, Eduardo Galasso. Fé e Compromisso. São Paulo: ASTE, 2002. p. 39.

332

HROMADKA, Josef L. Aos estudantes de teologia do Brasil, extraído do suplemento teo-lógico d’O Caos, Seminário Presbiteriano de Campinas, 1960. 333

Ibid., p. 369.

176 JESUS É DEUS?

prática social por parte daqueles que professam esse dogma. A convocação que Bonino faz aos cristãos compreende na seguinte reflexão: Se entendermos nossa cristologia em termos trinitários, temos de le-var seriamente em conta uma atuação da Palavra e do Espírito do tri-no Deus que atua no mundo como convite e, ao mesmo tempo, como juízo na busca de shalom e justiça antes que nós cheguemos e à par-te de toda ação dos crentes e das igrejas. Esse mesmo Jesus Cristo, que nos convoca a participar de sua obra na sociedade e na história, define os conteúdos de paz e justiça em seu ensino e em sua ação histórica e, no poder do Espírito Santo, nos capacita para discernir os modos e as características de nossa participação como crentes e como igrejas no presente histórico em que nos cabe atuar.

334

O pensamento de Bonino é muito comum no discurso de teólogos da libertação, sendo ele inclusive um deles. Salientar sobre as problemáticas sociais e conseqüentemente acerca da urgência de participação da Igreja e das igrejas locais no processo de libertação da sociedade é conteúdo cen-tral de sua teologia. Há um conflito entre os que defendem a ortodoxia tradicional da igreja e os chamados teólogos da libertação. Estes, por muitas vezes não darem tanta ênfase a conceitos dogmáticos do cristianismo, são taxados errone-amente de liberais. Ao mesmo tempo, teólogos da libertação de maneira pejorativa chamam de fundamentalistas aqueles que defendem a fé e seus princípios dogmáticos. Essa discussão parece adiar o momento em que as igrej\as se despertarão para sua verdadeira missão. Conservar seus princípios bíblicos e dogmáticos, participando ao mes-mo tempo de maneira ativa e intensa da tarefa de melhora das condições de vida dos menos favorecidos que muitas vezes vivem nas imediações das igrejas, seria a proposta mais relevante à cristandade contemporânea, so-bretudo, a àquela localizada na América Latina e em qualquer parte do mundo onde a miséria social é preponderante. Dessa forma, elas se eviden-ciariam como modelo institucional para qualquer outro movimento organi-zacional que exista.

334

BONINO, José Miguez. Rostos do Protestantismo Latino-Americano. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 2002. p. 111.

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A reflexão de Boff em torno da participação social da igreja concomitan-te à sua convicção cristológica a respeito da divindade do Λόγος, destaca: A missão do Filho é verbificar o universo, transformá-lo em glória do Pai donde veio. A forma concreta que historicamente assumiu a encarnação, não na modalidade da glória, mas da humilhação, não de Senhor mas de servo, se deve ao pecado humano. O Filho quis assumir este caminho escuro para se solidarizar com a paixão do mundo.

335

A atitude solidária de Deus em Cristo no processo da redenção, serve de exemplo ao homem contemporâneo no intuito de que este perceba sensivel-mente o quanto sua atuação solidária para com o aflito é imprescindível. Da mesma forma com que o Λόγος encarnou-se solidarizando-se com a alma do pecador por meio de sua própria divindade, o cristão deve ser soli-dário com o aflito dando-lhe o que foge às suas capacidades, mas que certa-mente o cristão possui para compartilhar. Trata-se apenas de uma breve ana-logia visando observar a atuação do Filho de Deus como exemplo perfeito. ... a redenção e a humanização do ser humano aparecem como objetivo da encarnação de Deus e de sua humilhação até a morte de cruz. Por sua encarnação, o Filho eterno de Deus está unido na mais estreita solidariedade ao restante da humanidade. Em toda a sua existência terrena como ser humano ele realiza a nova humanida-de, visto que também como ser humano ele é inteiramente Filho de Deus: entregandose em liberdade inteiramente ao Pai e, por isso, servindo aos seres humanos em solidariedade sem reservas.

336

Para que haja uma compreensão panorâmica a respeito das definições cristológicas aceitas e rejeitadas pelos movimentos de libertação, pode-se considerar os comentários de Rosino Gibellini: A recuperação do Jesus histórico como história de Jesus não ali-nha, porém, a cristologia da libertação com a teologia liberal, que 335

BOFF. op. cit., p. 229.

336

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 381.

178 JESUS É DEUS?

estava à procura da verdadeira “vida de Jesus”: a cristologia da libertação tem consciência de que as narrativas do Novo Testamen-to são narrativas de fé, que não permitem a reconstrução de uma biografia de Jesus no sentido técnico da historiografia moderna; além disso, por sua contextualização eclesial, é-lhe completamen-te estranha a contraposição liberal entre o Jesus da história e o Cristo do dogma eclesiástico. A cristologia da libertação não está em busca da verdadeira “vida de Jesus” para criticar o dogma da Igreja; o que ela pretende é recuperar a “história de Jesus” em toda a sua densidade histórica para recuperar o dogma cristológi-co como fórmula doxológica que deve ser realizada na práxis.

337

Na proposta de libertação social, uma teologia séria não negaria a di-vindade do Λόγος. Assim como as naturezas humana e divina do Filho são inseparáveis e indivisas, a salvação e a libertação devem estar relacionadas de maneira semelhante. A ênfase no amor prático é uma tônica da perspectiva de libertação. O homem que após se perceber como alvo do amor de Deus, deve compar-tilhar esse amor amando seus semelhantes. E esse amor consiste em uma ação libertadora. Para Kessler, no processo de auto-interpretação de Deus Jesus só é o Verbo encarnado do ‘Pai’ divino [...] na medida em que é inteiramente expressão do Pai e de seu amor. [...] A encarnação do Filho de Deus é o início da humanização do ser humano: Deus se faz o ser humano que nos torna mais humanos.

338

Mas Comblin, fazendo uma observação que pode ser considerada semelhante à proposta conclusiva desta obra, salienta que há uma perceptível deficiência nesse sentido no seio da cristandade atual, e que deve ser reparada: Mesmo entre os cristãos há falta de vivência comunitária. Muitas vezes, os cristãos acreditam que a religião é um simples diálogo: Eu e Deus, ambos sozinhos. Mas Deus é composto de três Pes-soas, que vivem em intercâmbio e dom, que se definem por seu 337

GIBELLINI, Rosino. A Teologia do século XX. São Paulo: Edições Loyola, 1998. p. 366.

338

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 395.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 179

dom mútuo. Assim, o cristão é chamado a imitar a Deus vivendo em comunidades de pessoas que compartilham, comunicam, in-tercambiam e nada guardam para si próprias.

339

Seguindo na prática essa proposta, poderá ser afirmado que a igre-ja não somente crê e proclama a respeito da divindade de Jesus Cristo estando em conformidade com o que foi definido dogmaticamente em Nicéia, mas também vive essa divindade no processo de compartilha-mento de recursos urgentes para com o próximo necessitado, seguindo assim o paradigma do Deus-Homem, que atuando como exemplo, fez o mesmo ao tornar explícito seu amor.

O peso do amor puxou Deus para a terra. A paixão do amor (disposto a sofrer) de Deus é estar junto aos seres humanos e dar-lhes a vida plena. Ora, se Deus se preocupa com o ser humano ao ponto de ele próprio tornar-se ser humano e o permanecer em eternidade, então é vedado ao ser humano menosprezar a si e a seus semelhantes.

340

Permanecendo com o conceito de que ao menos a mensagem da Escri-tura é inspirada por Deus, vale sustentar essas considerações feitas sobre a relação existente entre a divindade do Filho e a necessidade de uma atua-ção social por parte da igreja, destacando algumas passagens bíblicas que evidenciam a veracidade dessa proposta: Então, dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me. Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospeda339

COMBLIN. op. cit., p. 255 e 256.

340

SCHNEIDER; KESSLER. op. cit., p. 396.

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mos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a 341

mim o fizestes.

Então, as multidões o interrogavam, dizendo: Que ha-vemos, pois, de fazer? Respondeu-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem; e quem tiver comida, faça o mesmo.342

Disse também ao que o havia convidado: Quando deres um jantar ou uma ceia, não convides os teus amigos, nem teus irmãos, nem teus parentes, nem vizinhos ricos; para não suce-der que eles, por sua vez, te convidem e sejas recompensado. Antes, ao dares um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás bem-aventurado, pelo fato de não terem eles com que recompensar-te; a tua recompensa, porém, tu a receberás na ressurreição dos justos.343 E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comu-nhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermé-dio dos apóstolos. Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, par-tiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração.344 341

Mateus 25.34 a 40.

342

Lucas 3.10 e 11.

343

Lucas 14.12 a 14.

344

Atos 2.42 a 46.

PARTE 2

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ABORDAGEM DOGMÁTICA 181

Da multidão dos que creram era um o coração e a alma. Ninguém considerava exclusivamente sua nem uma das coi-sas que possuía; tudo, porém, lhes era comum. Com grande poder, os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e em todos eles havia abundante graça. Pois nenhum necessitado havia entre eles, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendendo-as, traziam os valores correspondentes e depositavam aos pés dos apósto-los; então, se distribuía a qualquer um à medida que alguém tinha necessidade.345 Essas passagens neotestamentárias legitimam ainda mais a proposta de participação social contida na mensagem de Jesus Cristo e de seus se-guidores. Quem, portanto, confessa a divindade do Filho e afirma segui-lo, deve inegociavelmente abraçar a causa essencial do evangelho: o amor. Amor que só se evidencia, quando encarnado, manifestado e demons-trado por meio de atitudes de solidariedade aos pobres, miseráveis, oprimi-dos e vitimados pelo caos social, estabelecido em grande parte do mundo. Até aqui fizemos uma leitura histórica e teológica do dogma da divin-dade de Jesus Cristo até o quarto século. A seguir, no desfecho, nós nos detivemos em trabalhar com a relevância e irrelevância dessa convicção. Neste capítulo trabalhamos com considerações de teólogos do século XX, sobretudo, os chamados teólogos da libertação. Contudo, não se pode dizer que houve um aprofundamento na cristo-logia desses pensadores, o que pretendemos fazer em uma oportunidade futura, quando trabalharemos a divindade do Filho nas teologias moderna e contemporânea, concentrando a abordagem do tema nas reflexões desde Agostinho até o início da chamada Idade Moderna, ou, como preferem de-nominar alguns, Idade Média tardia.

345

Atos 4.32 a 35.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS 183

Considerações finais

Uma obra como a presente em geral segue uma estrutura padrão em que questões são levantadas, investigações são feitas e respostas são alcançadas. Ainda que seguindo uma disposição histórico-dogmática – como o próprio livro se divide – as perguntas feitas foram distribuídas separadamente. Do ponto de vista histórico, pode-se concluir que a divindade do Λόγος realmente não foi uma peculiaridade originada em Nicéia. Ainda que na-quele contexto tenha surgido a controvérsia ariana culminando no próprio Concílio, a convicção cristã em torno da divindade de Jesus Cristo já existia nas mentes e nos ritualismos dos primeiros cristãos, além de uma conside-rável sustentação teológica a este respeito, presente nas obras de impor-tantes pais da Igreja prénicenos. As argumentações favoráveis ao dogma da divindade do Λόγος são historicamente relevantes. A construção teológica a este respeito, elaborada na patrística, teve sua importância no processo de defesa provando que apesar da controvérsia ariana, a divindade do Filho já estava presente como convicção prática e teológica na vida dos cristãos que viveram até o quarto século. As formulações cristológicas do Credo de Nicéia, quando observadas, mostraram-se suficientemente sólidas, paralelamente à obra de Atanásio, principal adversário da concepção ariana. Sua composição teológica per-manece tão atualizada quanto os textos dos séculos XIX e XX, tornando-a um válido recurso literário para pesquisas históricas, teológicas e apolo-géticas. O mesmo pode ser afirmado sobre o pensamento de Hilário de Poitiers e dos pais pré-nicenos, que igualmente serviram de fonte na abor-dagem dogmática da pesquisa.

184 JESUS É DEUS?

Da mesma forma, foi possível perceber a contribuição dos pais capa-dócios, que também deixaram seus legados. Eles defenderam não apenas a divindade do Filho, mas todo o dogma trinitário, razão pela qual às vezes trabalhamos apenas a divindade de Cristo, às vezes, de maneira mais am-pla, citamos as primeiras reflexões sobre a Santíssima Trindade. Apesar de algumas diferenças, os capadócios concordavam em afirmar que o Filho é da mesma substância divina que o Pai. Não tivemos em nenhum momento a pretensão de fazer apologia ao imperador Constantino ou mesmo à união Igreja-Estado existente a partir do quarto século, fato claro nas informações históricas mencionadas. Em-bora o objetivo central tenha sido apresentar a relevância da divindade de Jesus Cristo, e como essa convicção de fé se tornou dogma após o Concílio de Nicéia, não é absurdo reconhecer que a corrupção política e conseqüen-temente uma série de características pagãs disfarçadas de cristãs fizeram-se presentes no seio da igreja após aquele período. Se por um lado a igreja era beneficiada, e não mais perseguida, por outro lado ela estabelecia pouco a pouco diversos atos de barganha com o Estado, sempre corrompido. Portanto, é necessário salientar que o fato de traçarmos na presente obra uma defesa da importância histórica do Concílio de Nicéia - no intuito não de sistematizar a convicção em torno da divindade do Λόγος, mas de simplesmente defendê-la como princípio de fé -, não significa que to-dos os acordos, conchavos e trocas de interesses que passaram a existir entre a igreja e o Estado sejam posicionamentos aprovados. Teologicamente, utilizando evidências ou demonstrações bíblicas e dogmáticas, a divindade do Λόγος pode ser compreendida sem muitos esforços. A convicção em torno da natureza divina do “fundador” do cristianismo é muito mais ampla do que podemos imaginar em uma reflexão imediata. E o propó-sito central é duplo: trata-se de reconhecer teológica e pragmaticamente que Jesus Cristo é Deus. Se sua divindade não se refletir em uma perspectiva social, não servirá integralmente para muitas coisas. Não estamos dizendo que a despreocupação de alguém que proclama teológica e religiosamente a divindade do Filho e que ao mesmo tempo não aplica essa verdade à sociedade a sua volta, fará com que Jesus Cristo deixe de ser Deus. Ao contrário, conforme já argumentamos, a hipótese ou mesmo a verdade de que Jesus Cristo é Deus independe de ele ser reconhecido ou não como tal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 185

Propomos aqui, entretanto, uma tarefa a ser praticada pelas igrejas: a que se tornem modelo para as organizações existentes na sociedade. Esta, que por ser vítima de uma realidade caótica e aparentemente sem solução, deve ser o alvo central daqueles que afirmam seguir os ensinamentos de Jesus Cristo. Quando as igrejas institucionais não se apresentam como os principais agentes libertadores da sociedade, suas existências se tornam questionáveis. Apática aos problemas sociais, as instituições eclesiásticas se reduzem a organizações interessadas em acumular recursos e edificar patrimônios, assemelhando-se a qualquer outra agremiação em que pessoas se reúnem para exercer comporta-mentos socialmente improdutivos e egocêntricos. Como resultado dessa temática que visualizou a relação da cristologia com a soteriologia, e a necessidade de uma solidariedade urgente, faze-mos um apelo à reflexão em torno dos apontamentos aqui registrados. Se compreendidos e praticados, certamente a igreja contemporânea será o melhor modelo de participação social, beneficiando os menos favorecidos e transformando um mundo que clama desesperadamente por paz, serie-dade política, fraternidade e igualdade social.

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