Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835)

July 1, 2017 | Autor: Jose Tufy Cairus | Categoria: African Diaspora Studies
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Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835)

José Antônio Teófilo Cairus

Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro como pré-requisito para a obtenção do grau de Mestre em História (Área de Concentração: História Moderna e Contemporânea; História Econômica e Social) Orientador: Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino

Rio de Janeiro 2002

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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Filosofia e Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em História Social

Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835) José Antônio Teófilo Cairus

Banca Examinadora . Professor Doutor . Professor Doutor . Professor Doutor . Professor Doutor . Professor Doutor Dissertação submetida ao Programa de PósGraduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História (Área de Concentração: História Moderna e Contemporânea; História Econômica e Social).

Rio de Janeiro 2002

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CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia, 1835./ José Antônio Teófilo Cairus. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002. 270 p ; il. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS, 2002. 1.Brasil – História 2. Escravidão – Revolta - África – Islã – Dissertação. Título. II Tese (Mestr. – UFRJ/ IFCS).

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Resumo CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e Redenção: escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia, 1835. Orientador: Manolo Garcia Florentino. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História Social) A Revolta Malê de 1835 possue características que a tornaram sui generis quando comparada com a rebeldia escrava nas Américas. Africanos muçulmanos, escravos e libertos, planejaram e executaram uma rebelião de curta duração nas ruas de Salvador. A partir do final do século XIX e inicio do século XX, a revolta tem sido objeto de variadas interpretações. As mais recentes combinando correntes divergentes e a análise da documentação produzida pela devassa judicial. Esses estudos discutem etnicidade, religião e elementos de classe na tentativa de enfatizar a subordinação da dinâmica rebelde às nuances econômicas locais durante as primeiras décadas do século XIX. A despeito desse aparato teórico, elementos fundamentais da origem dos indivíduos que efetivamente elaboraram e levaram a rebelião a termo foram negligenciados. Portanto, o presente trabalho enfatizou novas abordagens e fontes no intuito de compreender o papel do Islã na resistência escrava. Não há como se dissociar os acontecimentos da África Ocidental dos seus desdobramentos em terras americanas. Não existe nessa constatação ameaça aos cânones da História. Ao contrário, o fluxo e o refluxo dessa migração forçada exerceu influência marcante nas duas margens do Atlântico.

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Abstract

Jihad, Captivity and Redemption: Slavery, resistance and brotherhood, Central Sudan and Bahia, (1835). Orientador: Manolo Garcia Florentino. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2002. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História Social) The Bahian Muslim uprising of 1835 was different from the other revolts that shook slave societies in the Americas. The quick uprising involving African Muslims, slave and freed has been the object of numerous interpretations since the turn of the 20th century. The most recent interpretations combine the best of the materialist and the culturalist historiographical traditions. The classics studies used the documentation produced by the criminal trial that followed the uprising to discuss the ethnic, religious and class elements of the rebellion and explain how it related to the Brazilian slave system and Bahian conditions in the first half of the nineteenth century. However, the attempts made so far to look for the African background of those rebellious Muslims have not gone far enough. This work will discuss new sources that will further the understanding of the Muslim community in Brazil, and provide details of its religious practices, quite possibly allowing a fresh interpretation of the role played by Islam in that act of slave resistance. I contend that the Bahian Muslim Uprising of 1835 should be studied in relation to what happened in the Islamic world in Africa: the Central Sudanic background of those slaves and the turmoil in the Islamic shoulder of Africa. By adopting this "Africanist perspective" we can see important elements of the African diaspora that would previously remain undetected.

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Agradecimentos Minha trajetória acadêmica tem se fundamentado na generosidade alheia. Inicialmente quero agradecer de forma muito especial ao meu orientador Professor Manolo Florentino que me acolheu egresso de uma instituição sem tradição em pós-graduação, baseado no seu feeling e nada mais. Não apenas orientou minha dissertação, mas me abriu portas quase inimagináveis na busca de conhecimento. Meu agradecimento e minha bay’a eterna. Não posso esquecer de agradecer ao Professor Paul E. Lovejoy, as oportunidades proporcionadas a um simples mestrando para participar de conferências, seminários e pesquisas no Canadá, Estados Unidos e no Marrocos. Espero que no doutorado em Toronto possamos dar prosseguimento ao trabalho iniciado juntamente com o Professor Manolo no mestrado. Obrigado Zaki. Agradeço aos colegas do Nigerian Hinterland Project/UNESCO, York University: Yacine Daddi Addoun, Ibrahim Hamza, e Olatunji Ojo. Tive também a honra de conhecer e me tornar amigo de um dos mais competentes historiadores desse país: Professor João Reis. Apesar das discordâncias teóricas, meu trabalho não existiria sem o dele. Agradeço a finesse, paciência, solicitude e a condescendência. Sou igualmente agradecido ao Embaixador Alberto da Costa e Silva por compartilhar sua vasta erudição e por sua ajuda na minha viagem aos Estados Unidos e Canadá. No espaço do IFCS, agradeço aos amigos Edval Souza Barros, Alzira Durão, Durval de Souza, Lucila Avelar, Martha Hameister e a todos membros do LIPHIS. Todos têm participação, mas não responsabilidade no meu trabalho. No âmbito familiar, ao meu pai Omar Cairus, meu imam e detentor da baraka que tento, dentro das minhas limitações, dar continuidade. Obrigado pelas únicas coisas de valor que possuo: minha fé e meu nome. À minha mãe, pela vida, o hadith do Profeta resume o que sinto: o paraíso esta aos pés da nossa mãe. À minha irmã Sídina Cairus, graças a ela, pude retornar a vida acadêmica. Finalmente à minha esposa, Khadija, companheira incansável na busca do conhecimento e presente de Allah para que eu possa enfrentar os jihads desse mundo. E por último, e não menos importante, ao pequeno grande Yunus, com quem espero compartilhar meus parcos conhecimentos e orientá-lo na senda reta. Inshallah Agradeço a bolsa concedida pelo CNPq.

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“Halhoul, Margem Ocidental, (Palestina Ocupada)” Apesar da matança de palestinos perpetrada nos últimos 50 anos, a história de Tariq Hindawi, 22 anos, abandonado para sangrar até morrer, chocou mesmo os mais endurecidos dentre os corações palestinos. A trajetória desse jovem demonstrou que a barbárie humana decididamente desconhece limites. Tariq tinha apenas 1 ano quando os falangistas libaneses, treinados e armados pelos sionistas sob o comando do então ministro da defesa Ariel Sharon, invadiram os campos de refugiados de Sabra e Chatila em Beirute Ocidental, em setembro de 1982. No massacre que se seguiu, 4 mil palestinos totalmente inocentes perderam a vida e outras centenas foram consideradas mortas ou levadas pelas tropas sionistas para destinos desconhecidos e desapareceram. Dúzias de crianças foram massacradas na carnagem de 1982, mas a família Hinadawi foi uma das poucas que conseguiu fugir dos campos durante a matança com Tariq, que era então pequeno demais para compreender os acontecimentos. Não foi fácil escapar dos campos com as tropas sionistas bloqueando a passagem das famílias palestinas. Então, “após 20 anos, Sharon, sempre ele, reabre minhas feridas e assassina meu filho amado... não existe justiça nesse mundo” afirmou o pai de Tariq para os jornalistas. Tariq e sua família retornaram à Palestina após a assinatura dos tratados em Oslo com a esperança de ter deixado o passado assustador para trás. O jovem tornou-se um oficial da polícia da Autoridade Palestina e sua família ficou orgulhosa. No seu retorno, Tariq viveu na Faixa de Gaza, mas seu trabalho o fez mudar para a Margem Ocidental, especificamente para o vilarejo de Halhoul. Na semana passada a vila foi atacada pelas forças sionistas e o jovem Tariq morto.Testemunhas oculares relataram que Tariq foi baleado no peito e que os soldados o amarraram na frente do jipe que corria pelas ruas do lugarejo não obstante o palestino sangrar abundantemente. Ao final da “brincadeira” Tariq faleceu. As ambulâncias e os moradores de Halhoul foram mais uma vez bloqueados pelo mesmo exército de vinte anos atrás que se recusou a permitir qualquer tipo de assistência ao jovem já morto. Os habitantes locais acrescentaram que os soldados não permitiram que ninguém se aproximasse da vítima. O governo belga anunciou que não poderá julgar os acusados do genocídio palestino porque eles gozam de imunidade diplomática. Isso significa que Tariq não apenas não terá mais justiça como sobrevivente de um massacre no passado, mas também torna cada vez mais remota a chance dele ter justiça um dia, como vítima da mais recente barbárie. (Palestine Chronicle, 18/02/2002) Dedico o meu modesto trabalho ao jovem Tariq Hindawi e ao povo palestino. Nessa hora dramática para o povo palestino, a minha homenagem a Abu Jandal, shahid al Allah, herói do campo de refugiados de Jenin, que resistiu por 14 dias aos tanques, helicópteros e tropas da entidade sionista com apenas com um fuzil. Abu Jandal, de acordo com testemunhas oculares, depois de sua heróica resistência foi preso, algemado, vendado e executado. (Palestine Chronicle, 16/04/2002)

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Sumário Introdução ____________________________________________________________________________9 Noites do Poder... ____________________________________________________________________14 Capítulo 1 ____________________________________________________________________________18 “Africanos..., uzeiros e vizeiros no officio da malêzada...”: repercussão da Revolta Malê na imprensa do Império _________________________________________________________________________18 O primeiro impacto __________________________________________________________________23 Ecos em 1836... ____________________________________________________________________42 Ecos de 1837... ____________________________________________________________________44 Ecos de 1838... ____________________________________________________________________44 Conclusão __________________________________________________________________________46 Capítulo 2 ____________________________________________________________________________47 O cativeiro ideológico: discussão historiográfica __________________________________________47 Culturalistas______________________________________________________________________48 Materialistas______________________________________________________________________66 Híbridos _________________________________________________________________________71 Capítulo 3 ____________________________________________________________________________83 As trajetórias da islamização na África__________________________________________________83 A expansão do Islã no norte e oeste da África___________________________________________84 No Ocidente e no Oriente ver-se-á a face de Allah... _____________________________________91 Mais perto de Allah: As Irmandades (tariqas) ____________________________________________94 Irmandades sufis __________________________________________________________________96 Antecedentes dos jihads _____________________________________________________________107 Servos de Allah ou servos do homem? Escravidão sob a perspectiva islâmica na África _________115 As fontes e o surgimento de uma jurisprudência _______________________________________122 Conclusão _________________________________________________________________________136 Capítulo 4 ___________________________________________________________________________138 Instrumentum vocale, mallams e alufás: o paradoxo islâmico da erudição na diáspora atlântica __138 O Livrinho Malê ___________________________________________________________________152 Capítulo 5 ___________________________________________________________________________157 Sócios, parceiros e clubes: a irmandade e o misticismo islâmico na devassa da Rebelião Malê____157 A Devassa _______________________________________________________________________159 Sabedoria, poder e autoridade: a baraka e o carisma da liderança malê ______________________180 Sinais de irmandade ________________________________________________________________196 Conclusão ___________________________________________________________________________200 Anexo ______________________________________________________________________________204 Fontes ______________________________________________________________________________213

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Introdução

“História é uma disciplina que possui diversas abordagens. São muitas as suas utilidades e seu objetivo é nobre.” Ibn Khaldun (1332-1406) The Muqaddimah.

Em uma frase de T.S. Eliot, Geertz definiu o processo de criação de um texto: “maus poetas fazem empréstimos, bons poetas roubam”.1 De forma análoga, pretendemos seguir o exemplo de Geertz e Eliot, tirando, sem culpa nem vergonha, o que for necessário para o nosso trabalho. Esses “empréstimos” são em sua maioria genéricos e indefinidos, parte de um processo de criação, absorção e reinterpretação quase inconsciente que gera, após algum tempo, uma abordagem que não se sabe o quanto é sua ou dos outros. Uma certeza, ainda que incompleta, é sobre as principais correntes intelectuais que influenciaram o trabalho e não a incorporação de forma arbitrária e às vezes caluniosa de passagens e nomes específicos. Essa explicação se faz necessária quando se estuda um assunto submetido há mais de um século à investigação. Certamente muitos dos citados ou criticados, vivos naturalmente, não concordarão com as nossas observações críticas ou mesmo elogiosas. Mas a dívida permanece, pois foi a incorporação dessa "tradição historiográfica" e de seu cabedal de informações, que tornou possível esta produção.Este trabalho buscou uma alternativa para as interpretações sobre uma revolta escrava empreendida por africanos muçulmanos na Bahia. Essas interpretações historiográficas, no Brasil, foram fortemente influenciadas pelas correntes políticas ocasionais, o que nem sempre foi benéfico. A ideologia e até as convicções pessoais dos autores foram determinantes nas suas interpretações, em detrimento da pesquisa documental e da incorporação de bibliografia especializada. Uma das questões que desejamos enfatizar é a relevância desse estudo de caso, em particular, no escopo dos trabalhos sobre escravidão produzidos pela nossa historiografia.

1 GEERTZ, Clifford. Islam observed: religious development in Morocco and Indonesia. Chicago: The University of Chicago Press, 1971, p. 5.

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Dos anos de 1450 ao final do tráfico atlântico em meados do século XIX, mais de 11 milhões de africanos foram enviados para as Américas,2 desse número, 40% foram enviados ao Brasil.3 Pelos portos do Rio de Janeiro e Bahia (Salvador, presumivelmente) entraram respectivamente cerca de 800 mil e 700 mil escravos.4 No período compreendido entre a metade do século XVIII e a metade do século XIX, estima-se que de 100 a 150 mil eram originários do Sudão Central. Esses números não incluem os iorubás da região norte da Iorubalândia. Para o Brasil e para a Bahia especificamente foram enviados no período de 1800-1850 cerca de 75 a 124 mil africanos; esses últimos números incluem as etnias setentrionais do país iorubá.5 O jihad do reformador fulá Uthman dan Fodio em 1804, a Insurreição Islâmica de 1817 em Ilorin, a guerra de Owu nos anos 20, as guerras nupes em 1825-26 e a revolta islâmica abortada em Borgu no ano de 1835, são acontecimentos que tornaram proeminentes os indivíduos dessas áreas de conflito da África Ocidental proeminentes no tráfico atlântico na primeira metade do século XIX.6 O suprimento de escravos originários do golfo de Benin mudou dramaticamente a partir do século XVIII e através do XIX. Enquanto o império de Oió foi o principal fornecedor de escravos, as etnias nupe, borgu, hauçá e outras do grupo lingüístico ewe foram maciçamente enviadas à Costa dos Escravos. No século XIX, com a destruição de Oió, inicia-se o fluxo contínuo de povos falantes da língua iorubá para os entrepostos do golfo de Benin, e o surgimento do Califado de Sokoto, no Sudão Central, criou um trânsito secundário de escravos hauçás. Segundo Lovejoy, no início do século XIX, surgem pelo menos dois componentes demográficos distintos no tráfico do golfo de Benin. Um desses componentes buscou escravos na hinterlândia para a costa, outra fez uma rota do litoral, com escravos do sexo masculino, mulheres e crianças, no sentido contrário. Portanto, é um erro pensar que os escravos recebidos pela Bahia possuíam uniformidade étnica. A etnicidade dos indivíduos que aportaram em Salvador mudou drasticamente de acordo com as transformações ocorridas em uma região especifica da África Ocidental.7 2 LOVEJOY, Paul E. Transformations in Slavery: A History of Slavery. Cambridge (UK): Cambridge University Press, 2000, p. 19. 3 FLORENTINO, Manolo G. Em costas negras: uma história do tráfico entre a África e o Rio de Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p .23. 4 MORGAN, Philip D. “The cultural implications of the Atlantic slave trade: African regional origins, Americans destinations and New World developments”, in: Slavery and abolition, 18, 1, 1977, pp. 132-133. 5 LOVEJOY, Paul E. “Background to Rebellion: “The Origins of the Muslim Slaves in Bahia”, in: Slavery and Abolition, 15, 2, 1994, p. 2. 6 LOVEJOY, Transformations in Slavery, pp. 145-147. 7 MORGAN, op cit., p.129; LAW, Robin. The Oyo Empire c. 1600-c. 1836: A West Africa imperialism in the era of the Atlantic slave trade. Oxford: Oxford University Press, 1977, pp.206; 219-229; 274-282; 303-308. LOVEJOY, Paul E. “The Central Sudan and the Atlantic Slave Trade” in: HARMS, Robert W., MILLER, Joseph C., NEWBURY, David S., and WAGNER, Michele D. Paths Toward the Past: African Historical Essays in Honor of Jan Vansina. Atlanta: African Studies Association Press, 1994, pp. 345-370.

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Raramente, segundo Lovejoy, na história da escravidão nas Américas, foi possível correlacionar as trajetórias de origem dos escravos na África com as sociedades escravistas em que viveram. No caso do golfo de Benin e da Bahia, no século XIX, foi possível conectar origens, inserção no tráfico e o estabelecimento desses indivíduos do outro lado do hauçá. A cultura, ocupação e práticas religiosas são razoavelmente conhecidas e quando a origem desses grupos da população escrava baiana é analisada sob esses aspectos, as razões da revolta de 1835 e a capacidade de resistência organizada contra o sistema escravista, especificamente na Bahia, tornam-se mais claras e, ao contrário do que tem sido estabelecido, perfeitamente viáveis dentro de uma perspectiva africanista.8 Lovejoy afirma que a conjuntura da oferta e da procura criou uma situação explosiva. A demanda era por indivíduos do sexo masculino, destinados ao trabalho forçado sob condições extremamente duras. Esses indivíduos eram, em grande número, originários de unidades militares treinadas e com experiência em combate, o que os tornava um grupo potencialmente perigoso sob uma ideologia militante do Islã. Além disso, a concentração de adultos do sexo masculino, a possibilidade da superação de diferenças étnicas através da religião, as condições in extremis do cativeiro, as experiências comuns dos conflitos do Sudão Central e da terrível passagem desde da captura até o porto de desembarque, favoreceram a criação de laços de solidariedades entre etnias inimigas.9 Um fator que reputamos como fundamental nessa rede de solidariedades detectadas seria a reunião desses indivíduos em irmandades sufis, forma de organização islâmica amplamente estabelecida em toda África muçulmana, cuja história na África subsaariana está intimamente ligada com sufismo no Magrebe, tendo exercido um papel hegemônico a partir do século XIII. As irmandades sufis ao sul do Saara recebiam o conhecimento através de “linhagens de erudição” e, sendo assim, em um contexto social diverso. Esses grupos logravam superar barreiras étnicas e lingüísticas desde os zawaya da Mauritânia, dos tuaregs inesleman e os murabits da Líbia, mas, devido a uma série de fatores, perderam poder e influência em favor de tribos guerreiras e nobres. Uma forma de manter o status quo foi o desenvolvimento do papel espiritual que os colocaria em uma posição social vantajosa em relação aos guerreiros e nobres. Economicamente podiam desfrutar de privilégios nas relações comerciais, além de exercerem a função de mediadores entre tribos rivais, o que era transformado em capital político. Esses grupos eventualmente se tornaram portadores do conhecimento islâmico e da influência sufi, conectando o norte e o oeste da África. Logo nos primeiros contatos esta interface tomou forma “mágica”, com o uso de 8 LOVEJOY, Paul E. Background to Rebellion, p. 25.

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amuletos, gris-gris e outros métodos supernaturais de controle das forças da natureza. O poder que investiu essas pessoas especiais ficou conhecido como baraka e podia ser transmitido através de linhagem espiritual desde um ancestral histórico.10 Com o fortalecimento desse modelo de pensamento islâmico, o poder de dominar a natureza estava relacionado à proximidade com Deus. Baraka torna-se wilayia “amizade com Deus”, e da mesma forma esse conceito atribuía feitos miraculosos a um ancestral. O wilayia estava comprometido com atos de piedade e temor a Deus que estavam ligados ao seu aprendizado. Um wali (“amigo de Deus”) podia adquirir reputação pessoal, que se estenderia à sua família, não apenas por seus atos piedosos, mas também pela sua intensa atividade intelectual de ensinar e produzir documentos escritos. Outro modo de se adquirir reputação era ligar o wali à categoria dos homens-santos dentro e fora do Saara. Dessa maneira, o detentor da wilayia podia ver seu prestígio aumentar através de uma cadeia de santidade que se remetia às terras centrais do Islã. O sufismo espalha-se gradualmente através do Saara e não se pode falar das irmandades ao sul do Saara até o início do século XIX.11 Foi possível ir na contramão de conceitos tão competentemente estabelecidos graças à singularidade do objeto que, além disso, nos permitiu-nos uma analogia não apenas esclarecedora, mas fundamental com o sistema escravista do oeste africano, norte da África e Oriente Médio, em suma, com o mundo islâmico. Os padrões dessas sociedades de contato secular com a escravidão de forma marginal, ou central como no Novo Mundo, permite-nos entender sem sobressaltos as atitudes, as instituições e o modus vivendi dos indivíduos lançados na diáspora e estabelecidos deste lado do Atlântico. O objetivo do trabalho é, portanto, não apenas oferecer uma abordagem alternativa ao assunto, mas também destacar conceitos que permeiam questões fundamentais em um mundo simultaneamente globalizado, formado por blocos e fragmentado por embates culturais, conflitos étnicos e diásporas. No primeiro capítulo trabalhamos com a repercussão da revolta na imprensa da época. Procuramos reproduzir os artigos no intuito de fixar para o leitor passagens marcantes publicadas e relevantes para o entendimento da dimensão da rebelião no contexto nacional.

9 Idem, p. 26. 10 VIKOR, Knut. “Sufi Brotherhoods Africa” in: The History of Islam in Africa. LEVTZION, Nehemia & POUWELS, Randall L. Athens (OH): Ohio University Press, 2000, p. 442. Ver sobre o conceito de baraka: GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1997, pp. 204-208; 214-217. 11 VIKOR, op. cit., p. 443.

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Dentro do segundo capítulo discutimos pontos e visões divergentes com alguns dos principais estudiosos no assunto. Estabelecemos três correntes diversas de abordagem e, através da discussão, tentamos abranger as principais vertentes historiográficas. O terceiro capítulo incorporou três questões fundamentais para um entendimento macro dos eventos em 1835. Uma visão geral da islamização da África, uma apresentação do sufismo como vertente islâmica fundamental do Islã africano e noções da jurisprudência islâmica referentes à escravidão de forma genérica e dos juristas muçulmanos na África. No quarto capítulo enfocamos primordialmente a força da cultura escrita em sociedades iletradas através de corpus documental dos manuscritos produzidos pelos africanos em 1835. Concentramo-nos principalmente na documentação existente no IHGB/Rio de Janeiro devido ao ineditismo dessa fonte. No quinto e último capítulo abordamos a documentação produzida pela devassa processual da rebelião, sempre enfatizando a abordagem sugerida pelo trabalho.

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Noites do Poder...

Surat Alcadr Sabei que o revelamos (o Alcorão) na noite do decreto E o que te fará entender o que é a Noite do Decreto? A Noite do Decreto é melhor que mil meses Nela descem os anjos e o Espírito (Anjo Gabriel), com a anuência de se seu Senhor, para executar toda asSuas ordens. Ela é de paz até o romper da aurora! (Corão: 97:503)

Ao cair da noite de 24 de Ramadã de 1250 da Hégira, um grupo de homens, escravos e libertos africanos, reunia-se para o ifhtar12 em uma casa no centro de Salvador. A noite não era apenas uma das muitas do mês de Ramadã, mas uma das dez últimas noites deste mês sagrado do calendário islâmico, conhecida como Laylat al Qadr. De acordo com a tradição, a noite do Qadr pode ser qualquer uma das dez últimas, sendo que sua identificação é feita através de sinais previamente estabelecidos. Nesta noite repleta de simbolismos em que se celebra, segundo a tradição, o início da Revelação corânica, esses africanos estavam combinando os detalhes finais para uma rebelião ao romper da aurora. Uma rebelião escrava urbana que teve o maior impacto e repercussão nos quase quatro séculos de escravidão no Brasil. Esses escravos e libertos africanos ficaram conhecidos como malês, denominação dada aos escravos muçulmanos na Bahia do século XIX. O dia 24 de Janeiro de 1835 do calendário gregoriano era também véspera da festa de Nossa Senhora da Guia, parte de uma série de festividades religiosas do calendário católico na Bahia.13 As datas demonstram claramente a existência de dois mundos nem sempre antagônicos, é verdade, mas, sob condições tão potencialmente explosivas como essa noite específica em 1835 os dois mundos em questão estavam à beira da ruptura. Os escravos muçulmanos não constituem uma exceção em um mundo marcado pela dicotomia entre senhores e escravos. Essa não é uma história que pretenda hierarquizar 12 Refeição que marca a quebra do jejum após o por do sol durante o mês de Ramadã.

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indivíduos de determinada cultura. Antes, é mais uma história de diáspora, exílio e resistência entre muitas, porém, nos reservamos o direito de ir além do óbvio, chamando a atenção para a característica fundamental do trabalho: a singularidade. Voltemos à noite do Qadr ou de Nossa Senhora da Guia, como preferir. O promotor público descreveu a noite em questão: “P. que depois de estarem de acordo com outros Africanos de alguns lugares do Recôncavo, para onde mandaram Emissários, marcaram as duas horas da madrugada do 25 de Janeiro d’este anno para a execução de suas traças, em virtude do que as 7 horas da noite do dia 24 do mesmo mez destacarão para os diferentes lugares de reunião como chefes os d’entre os mais valorosos, tendo d’ante mão destribuido as armas, e munições que haviam adquirido. P. que a vigilância da Policia, ou antes, pela misericórdia Divina se descobrio a Insurreição poucas horas antes de sua aparição, o que fez impedir-se a reunião geral dos insurgentes na hora aprasada, e malograr os esforços dos que não obstante se arrojaram a commeter hostilidades na noite do dia 24 para 25 do mez de Janeiro”.14

A “Misericórdia Divina” tinha nomes: as africanas libertas Guilhermina Roza de Souza e Sabrina da Cruz, cuja denúncia revelou o plano malê. As razões da denúncia revelam as nuances do sistema escravista. A primeira alegou vínculos de lealdade com seu ex-senhor e “patrono”. A segunda, liberta, teria sido aparentemente movida por motivos passionais: “Depois pelas partes recebidas, soube que no acto da busca em huma casa junta de Guadalupe, á ladeira da Praça, por denúncia particular, quando quis entrar o Juiz de Paz, não lhe quis abrir a porta huma parda, dizendo que ali não havia pessoa alguma; e como se dispusesse o Juiz a arromba-la, abriu-a, ao passo que a outra se fechou. Mas, crescendo a desconfiança, e entrando o Commandante da Companhia dos Permanentes, o Tenente Lazaro Vieira do Amaral, repentinamente a hum signal dado, dizem, pela referida parda, abriu-se a porta sahindo de dentro hum tiro de bacamarte, e apoz delle hum grupo de 60 pretos, pouco mais ou menos, armados de differentes armas, principalmente de espadas, os quaes dispersarão a pequena força surpehendida, ferindo gravemente ao referido Tenente Lazaro, e a outros que forão encontrando em sua passagem”.15

13 REIS, João José. Rebellion in Brazil: The Muslim uprising of 1835. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995, p.73. 14 Devassa do Levante, vol. 38, pp. 14-15. 15 Devassa do Levante, vol. 38, p. 90.

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Ato contínuo, centenas de revoltosos atacam os prédios governamentais e instalações militares da capital da província. A luta dura algumas horas pelas ruas da cidade e os africanos sofrem cerca 70 baixas fatais. Durante toda aquela noite, a população e as forças militares e paramilitares da segunda maior cidade do império foram sitiadas pelos rebeldes. Na maioria dos combates a iniciativa foi tomada pelos insurgentes. Em 1838, um certo Dr. Rebouças, acusou as tropas comandadas pelo chefe de polícia Francisco Gonçalves Martins de covardia diante dos africanos, ressaltando que apenas a cavalaria do forte de Água de Meninos tomou iniciativa de combate.16 Em conseqüência da derrota, centenas de africanos são sentenciados a morte, à prisão, ao açoite e à deportação.17 A revolta tem conseqüências por todo o império e os políticos cobram medidas de segurança que possam evitar a repetição dos acontecimentos em Salvador. Os encarregados de exercer o controle sobre a população escrava passam a suspeitar do mais leve indício de insurreição. No parlamento e nos jornais são produzidos debates intermináveis sobre o fim efetivo do tráfico e da própria escravidão. O medo não tinha apenas cor e naturalidade, mas possuía uma especificidade, grosso modo, que passaria despercebida até pelo menos o final do século XIX.

16 RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. São Paulo: Nacional, 1977, p. 53. 17 REIS, op. cit., p. 13.

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Figura 1: Mapa de Salvador

Fonte: REIS, João José. Rebellion in Brazil: The Muslim uprising of 1835. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995.

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Capítulo 1

“Africanos..., uzeiros e vizeiros no officio da malêzada...”: repercussão da Revolta Malê na imprensa do Império

Nesse capítulo, o objetivo foi analisar o impacto da Revolta Malê na imprensa brasileira, no período de 1835-1838. Foram analisados os periódicos microfilmados no Setor de Obras Raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janaeiro e o trabalho segue esta mesma ordem cronológica, no intuito de avaliar seu impacto no decorrer do período em questão. Há os que se referem diretamente à revolta e outros que não a mencionam especificamente. Foram levados em consideração os artigos após 1835 que levantavam discussões relacionadas ao tráfico e à escravidão devido à revolta em si. Os artigos selecionados são provenientes de diversas partes do Brasil: da Corte e das principais capitais, assim como de localidades interioranas, algumas quase desconhecidas. Essa diversidade pode ser explicada a partir de algumas considerações dentro do contexto de época. A liberdade de imprensa no Brasil veio em 1821. A quantidade de periódicos existentes na primeira metade do século XIX é surpreendente. Os jornais eram então o mais eficiente veículo de comunicação. No trabalho de Walnice Nogueira Galvão, ela cita o levantamento de Gondim da Fonseca, quando foram arrolados, para o período de 18081896, dois mil títulos de periódicos no Rio de Janeiro. Na Bahia, para o período de 18111899, chega-se ao número de 700.18 Galvão cita lugarejos como Curralinho, no sertão baiano, que contavam com nove jornais no século XIX.19 Para uma leitura mais precisa, porém, é necessário que se leve em consideração a duração efêmera dessas folhas. Alguns editaram apenas um número, nesse caso quase sempre para marcar comemorações e homenagear personalidades de importância local. Mesmo sob essa perspectiva, a mídia do século XIX impressiona pela sua vitalidade. Galvão ressaltou que em termos relativos

18 GALVÃO, Walnice Nogueira. No calor da hora: a Guerra de Canudos nos jornais. São Paulo: Ática, 1994, p. 15 ; VIANNA, Hélio. Contribuição à História da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945; FONSECA, Gondim da. Biografia do jornalismo carioca (1808-1908). Rio de Janeiro: Quaresma, 1945 e CARVALHO, Alfredo de. “A imprensa baiana de 1811 a 1899”, in: Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 6 (Ano VI), pp. 21-22. 19 GALVÃO, op. cit., p. 15.

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poderiam existir mais jornais no século XIX do que nos dias atuais.20 Desde grupos políticos das variadas tendências ideológicas, passando por cartas anônimas ou acusações de caráter particular, os jornais constituíam-se no grande espaço público de sociabilidade e conflito. Uma característica dos periódicos era o argumento ad personam. Destarte tentarem passar a idéia de isenção e sofisticação nos debates, logo assumiam uma parcialidade passional; exceção feita ao “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro.

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Mesmo o

moderado Evaristo da Veiga, também jornalista crítico, admitia o uso dessas práticas. De acordo com José Murilo de Carvalho: “A explicação que sempre me ocorria para o fenômeno, e que é partilhada por outros analistas, era a da inexperiência de todos em matéria de debate político democrático. O despotismo político, de que a censura de idéias e dos escritos era parte essencial, não tinha permitido o aprendizado do debate de idéias. Não se tinham ainda estabelecido regras civilizadas para tal debate. Deste modo, transferiam-se para o debate político público as práticas do debate privado, que freqüentemente recorriam ao ataque pessoal”.22

As práticas dos debates privados e públicos confundiam-se. A questão não era a censura de idéias, mas antes, o despotismo político que impedia o desenvolvimento do debate democrático. Os principais jornalistas da época conheciam a retórica, tanto os de formação acadêmica quanto religiosa, ou mesmo os autodidatas. Quando Evaristo da Veiga admitia ser forçado a utilizar o argumento pessoal, queria dizer que se não o fizesse estaria em desvantagem. Os jornalistas políticos, segundo J. M. de Carvalho, escreviam para seus pares. Não havia uma opinião pública esclarecida para influenciar no debate e havia um duelo pessoal constante entre os redatores dos jornais. 23 Na primeira metade do XIX, a configuração geográfica de poder e riqueza podia variar consideravelmente se comparada com a situação atual. Será sintomática no decorrer do capítulo, a ausência de periódicos de São Paulo e do sul do Brasil, por exemplo. Por outro lado, encontrar-se-ão jornais de cidades como São João Del-Rey e até mesmo da bucólica Pouso Alegre, nos contrafortes da Mantiqueira. Os periódicos do Nordeste também aparecem com destaque, não apenas pela proximidade física da revolta, mas pela

20 Idem, p. 16. 21 CARVALHO, José Murilo. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999, p. 12. 22 Idem, p. 12. 23 Ibidem, p. 13.

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importância político-econômica ainda presente, ainda que decrescente, das províncias do norte. Hebe Castro, na introdução de seu trabalho, justifica a opção em trabalhar com jornais de época. “Devo defender-me de fundadas acusações de ingenuidade, ao lidar com a mídia interiorana. Os jornais de época, como os de hoje, refletem, na escolha e tratamento das notícias, posicionamentos específicos e múltiplos, constroem versões nem sempre unívocas e de difícil tratamento metodológico”. 24

Deve-se ressaltar, naturalmente, a penetração dessas folhas junto a uma elite alfabetizada. Os jornais divulgaram idéias liberais e um novo vocabulário político. Basile diz que os periódicos no Rio de Janeiro alcançavam também o público iletrado através da cultura oral.25A circulação de notícias podia chegar a esses extratos da sociedade através de conversas, discussões e boatos que corriam pela cidade. As autoridades policiais denominavam de "ajuntamento ilícito", jornais e panfletos colocados durante a noite para serem lidos e comentados no dia seguinte.26 Roderick Barman tomou como base o censo de 1821 no Rio de Janeiro, e cruzandoo com os signatários do abaixo-assinado do Fico, chegou ao índice de 56% de alfabetizados entre a população masculina adulta das freguesias urbanas. O mesmo cálculo aplicado às freguesias rurais chega ao percentual de 42% de alfabetizados entre o mesmo grupo de indivíduos. Apesar dos possíveis erros de avaliação, esses percentuais demonstram que o índice de alfabetização na Corte durante a década de 20 era consideravelmente superior ao índice de 16% de letrados para a população total do império de acordo com o censo de 1872.27 Francisco de Paula Ferreira Resende, no seu testemunho de época afirmou: “O fato tem, entretanto, quanto a mim, uma explicação plausível e muito natural; e é que nasci e me criei no tempo da regência; e que nesse tempo o Brasil vivi, por assim dizer, muito mais na praça pública do que mesmo no lar doméstico; ou em outros termos, vivia uma atmosfera tão essencialmente política que o menino, que em casa muito depressa aprendia a falar em liberdade e pátria, quando ia para

24 MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. 25 BASILE, Marcelo Otávio N. de C. “O Império Brasileiro: Panorama Político” in: LINHARES, Maria Yedda (org.) História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Campus, p. 206. 26 Idem, p. 206. 27 Ibidem, pp. 206-207.

21 escola, apenas sabia soletrar a doutrina cristã, começava logo a ler e aprender a constituição política do império”.28

O período regencial foi particularmente conturbado. Revoltas de gente livre e escravos não se constituíam exceções. Para efeito de análise da Revolta Malê de 1835 e do seu impacto na imprensa, não há como dissociá-la do momento que o império atravessava – a ameaça de balcanização e a pressão externa simultânea dos britânicos pelo fim do tráfico. Após a abdicação, as posições político-ideológicas se extremam. Três facções principais utilizavam-se dos vários espaços, inclusive da imprensa, para divulgar suas idéias. De acordo com Basile, os jornais se constituíram no campo de luta das facções antagônicas com orientação ideológica definida, de acordo com os interesses de cada grupo. Percebe-se mesmo, um boom de periódicos nessa época.29 As reformas liberais do período regencial visavam principalmente minar as estruturas do Primeiro Reinado.30 Dentro desse mesmo espírito, as autoridades brasileiras proíbem o tráfico de escravos a partir de 13 de março de 1830, confirmando o tratado de 23 de novembro de 1826. Segundo Verger, não apenas a obrigação de respeitar o tratado pesou nessa decisão. O sentimento antilusitano seria um ingrediente importante, pois os portugueses estabelecidos no Brasil eram os principais interessados nesse comércio. Além disso, muitos proprietários brasileiros estariam hipotecados junto aos traficantes portugueses. A série de revoltas escravas ocorridas na Bahia, mesmo antes da Revolta Malê, já preocupava as autoridades com a possibilidade de um novo Haiti.31 Verger citou como emblemático o artigo publicado pelo jornal “Aurora” em 10 de agosto de 1831. Nele, o autor condenava o Marquês de Baependy por ter armado seus escravos e concluía afirmando que os escravos eram "inimigos naturais de seus senhores". Ainda de acordo com Verger, este artigo foi enviado por William Pennel, cônsul inglês de Sua Majestade no Rio de Janeiro, para Lord Palmerston com o seguinte comentário: “Uma expressão que diz muito mais do que inúmeros volumes sobre a escravidão”.32

28 REZENDE, Francisco de Paula F. Minhas recordações. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1987, p. 67. 29 BASILE, op. cit., p. 225. 30 Idem, p. 225. 31.VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos: dos séculos XVII a XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, p. 322. 32 Idem, p. 322.

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O medo da africanização da população era uma preocupação de certos setores da elite brasileira não comprometidos com os lucros do tráfico de africanos. José Bonifácio na década de 20 do século XIX alertava: “É tempo pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em ‘amalgamar’ tantos metais diversos, para que saia um ‘todo’ homogêneo e compacto, que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política. Mas que ciência química, e que desteridade não são precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação ? Sejamos pois sábios e prudentes sempre”.33 .

O “Patriarca da Independência” nutria a esperança de tornar a população brasileira mais homogênea com o fim do tráfico. É interessante notar a analogia das desigualdades raciais e sociais da população com os processos químicos. Certamente o autor nessa análise, estava se remetendo aos seus estudos de mineralogia na França e na Alemanha. Bonifácio, naturalmente devido à sua longa vivência na Europa, apenas admitia o progresso dentro de uma sociedade civilmente uniforme. Segundo ele, "não só escravo aqui é inferior ao amo, mas o negro o é também ao branco".34

33 SILVA, José Bonifácio de Andrada e. Projetos para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras; Publifolha, 2000, pp 24-25. 34 Idem, p. 44.

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O primeiro impacto “Não nos levemos de consideração de que nossos Africanos são estúpidos; eles são homens, e por conseguinte tem amor à liberdade e aspirão ao predomínio...” (“Astro de Minas”, São João Del-Rey)

O “Jornal do Commercio” do Rio de Janeiro de 10 de fevereiro de 1835 publicou relato do chefe de polícia de Salvador, Francisco Gonçalves Martins a respeito da rebelião escrava ocorrida na noite de 24/25 de janeiro. O relato do diligente funcionário é endereçado ao Presidente da Província, Francisco de Souza Martins. O artigo pode ter sido publicado originalmente no Diário da Bahia em 31 de janeiro de 1835, ou seja, seis dias após o fato. O documento tem o impacto de ser a primeira notícia da revolta através de uma autoridade com participação direta no evento. O mesmo artigo aparece também no jornal pernambucano "Quotidiana Fidedigna" de 11 de fevereiro de 1835 e no maranhense “Echo do Norte” de 6 de março de 1835.Portanto, é possível notar-se a repercussão maior na Corte e no Nordeste. Circunstancialmente, poder-se-á se perceber através da imprensa a preocupação maior das regiões tradicionalmente escravistas. Na folha da Corte a notícia foi dada assim: Bahia Polícia “Illm. E Exm. Sr – Apesar de estar scientificado dos acontecimentos que tiverão nesta Cidade, da noite de 24 para 25 do corrente em diante, cumpre-me contudo fazer huma succinta exposição do que tem chegado a meu conhecimento, para que em hum só ponto de vista V. Ex. possa inteirar-se das providencias que cumpre adoptar a semelhante respeito para tranquilidade da Provincia. Com as denuncias, mil vezes felizes, que V. Ex. recebeu na noite de 24 do corrente, de que os Africanos, particularmente os Nagòs, devião insurgir-se ao toque de alvorada, lançando ao mesmo tempo fogo a diversos sitios da Cidade e atacando os corpos de guardas, os Juizes de Paz se puzerão na rua, convocarão logo os cidadãos para a policia da Cidade, e os corpos de guardas estiverão immediatamente debaixo de armas, destacando o corpo de Permanentes para diversos lugares forças capazes de rebater qualquer princípio de tentativa da parte dos ditos Africanos. Tendo recebido o Officio de V. Ex. pelas onze horas da noite, depos de haver visitado alguns pontos, e ter dado algumas ordens, dirigi-me à Ladeira da Praça, onde,

24 segundo as denuncias devião estar reunidos em alguns cazebres, grande parte dos insurgentes, e achei ahi os Juizes de Paz dos dous Districtos da Sé, com alguns cidadãos e Municipaes, a dar busca em alguns dos ditos lugares. Então em cumprimento das ordens de V. Ex. , e achando que nenhum perigo poderia haver no centro da Cidade, no meio dos quarteis, e corpos de guardas, e principalmente estando todos prevenidos e o alarme dado, depois de fazer algumas requisições que achei importantes, foi em direitura à Cavallaria que achei preparada, e dando ordem para que hum piquete me seguisse para o lugar do Bom fim, immediatamente corri para o dito lugar, em quanto montava o piquete, por temer que qualquer demora pudesse ser funesta a tantas familias desarmadas, e collocadas talvez na peior posição para hum semelhante ataque, pela proximidade dos engenhos e separação da grande força da povoação. Apenas tinha dado algumas ordens tendentes a acautelar o perigo, que veio a todo o galope huma patrulha de Cavallara annunciar-me que os Africanos havião atacado algumas partes da Cidade. Logo que recebi esta noticia, dei ordem a hum destacamento Municipal de 18 homens que estava no lugar do Bom fim, para que em caso de perigo, fizesse entrar as famílias para a Igreja e ahi se encerrasse, defendendo-se de qualquer ataque até que eu os pudesse socorrer. Voltando à Cavallaria pelas três horas da noite achei-a em alarme, huma força montada e outra a pé com algumas Guardas Nacionaes, e recolhendo-se logo estes no mesmo quartel para defender a porta, e fazer sobre os Africanos fogo pelas janelas; a Cavallaria esperou no largo para os atacar. Em poucos minutos apparecerão com effeito em n. de 50 a 60, armados de espadas, algumas lanças, e mesmo pistolas e outras armas. Recebidos a tiro de pistolas, e de fuzil das janellas do quartel, avançarão furiosos, o que deu causa a Cavallaria se debandar em seu seguimento, para que não se escapasse pelo caminho do Noviciado. A este tempo o Commandante da Cavallaria, o Capitão Carvalhal, que os esperou a pé foi ferido e se vio forçado a recolher-se. Voltando eh com alguns cavallos para a porta do quartel a carregar sobre os Africanos que ainda por ali estavão, estes se debandarão, seguindo-os essa porção de cavallaria, ao passo que a outra os continuava a perseguir. Entretanto apparecendo ainda alguns Africanos, e ausente o resto da cavallaria, entrei para o quartel, donde continuou o fogo por espaço de hum quarto de hora, até que de todo sucumbirão, devendo-se o principal esforço à Cavallaria montada, que os carregou com valor, forçando-os a se lançarem ao mar ou a se esconderem nos visinhos montes cubertos de capueiras; deixando alguns 17 mortos, outros feridos e presos, fora muitos que se afogarão ou feridos forão perder a vida entre as ondas; tendo-me constado que tem apparecido alguns em diversos sitios. Dissipado o perigo, e receitando eu algum ataque no lugar do Bom fim, depois de saber que o restante da Cidade estava livre dos ataques, fui com a Cavallaria á

25 Conceição da Praia, onde tomando huma força de 40 homens, marchei pelo quartel da Cavallaria, e ahi deixando alguns Guardas Nacionaes para reforçar a mesma, fui com a Cavallaria e a força dita, já então unia a 50 Nacionaes que V. Ex. me havia mandado, commandados pelo Ajudante Mundim ao lugar do Bom fim, onde estive até que soube de que nos engenhos visinhos não tinha havido movimento algum. Na volta que era já bastante dia, encontrei no quartel da Cavallaria 40 homens da Fragata que V. Ex. mandava pôr as minhas ordens, dos quaes mandei que 16 fossem embarcados para o sitio de Itapagipe, e ali permanecessem até restabelecer a tranquilidade. Depois pelas partes recebidas, soube que no acto da busca em huma casa junta de Guadalupe, á ladeira da Praça, por denúncia particular, quando quis entrar o Juiz de Paz, não lhe quis abrir a porta huma parda, dizendo que ali não havia pessoa alguma; e como se dispusesse o Juiz a arromba-la, abriu-a, ao passo que a outra se fechou. Mas, crescendo a desconfiança, e entrando o commandante da Companhia dos Permanentes, o Tenente Lazaro Vieira do Amaral, repentinamente a hum signal dado, dizem, pela referida parda, abriu-se a porta sahindo de dentro hum tiro de bacamarte, e apoz delle hum grupo de 60 pretos, pouco mais ou menos, armados de differentes armas, principalmente de espadas, os quaes dispersarão a pequena força surpehendida, ferindo gravemente ao referido Tenente Lazaro, e a outros que forão encontrando em sua passagem. Este grupo se dirigio por N. S. da Ajuda, ao largo do Theatro, onde foi recebido com huma descarga dada por oito Guardas Permanentes, commandados pelo Ajudante do mesmo do corpo, os quaes forão dispensados pelos Africanos, depois de ficarem feridos cinco: desse lugar corrêrão em altos gritos pela rua debaixo, matando e ferindo os que encontravão; constando me terem feito duas mortes em dous pardos, e forão direito ao quartel da Artilheria, talvez com o fim de fazerem alguma juncção da parte da Victoria, como depois se verificou. Próximos ao quartel matarão hum Sargento Nacional do 3º Batalhão chamado Tito, o qual indo em companhia do seu Juiz de Paz, quando este procurou o amparo da fortaleza, ficou hum pouco atraz para lhes dar hum tiro. Tornando atacar a Artilheria, voltarão pelo mesmo caminho, e brevemente fizerão a juncção com outro grupo vindo do lado da Victoria, e que atravessou a estrada nova do Forte, não obstante o fogo que lhe fizerão. Reunidos forão atacar o quartel dos Permanentes, onde apenas existião 12 soldados, por terem sido prestados os demais a diversas requisições. Ahi depois de algum fogo, fechado o portão do quartel e depois de terem perdido dous dos seus, tendo outros feridos, tomarão pelo lado da Barroquinha e vierão sahir Segunda vez no sitio da Ajuda, donde seguirão para o Collegio, e atacarão a guarda, a qual se recolheu, fazendo fogo sobre o grupo hum reforço Permanente que ali se achava. Nesse lugar matarão hum soldado da Artilheria que vinha buscar o santo, o qual antes de cahir ferido, defendeu-se corajosamente, e matou hum com hum tiro, ferindo a outros muitos. Na descida pela baixa de çapateiros, matarão hum pardo, e dizem-me que

26 ainda outro, seguindo depois para os Cequeiros, donde sahirão para atacar a Cavallaria, como já referi a V. Ex. Depois do destroço que receberão nesta ultima paragem, única que tomou a offensiva, nunca mais se reunirão. Esquecia-me dizer a V.Ex. que na noite da insurreição, se me apresentou igualmente o tenente Coronel Manoel Antonio da Silva, instructor geral dos Guardas Nacionaes, a quem encarreguei algumas Commissões, bem como devo communicar a V.Ex., que a parda da casa onde se achavão os pretos, e seu marido estão presos; havendo motivo para os suspeitar conniventes ou sabedores. Desde o quartel da Cavallaria, até o Forte de S. Pedro forão achados muitos Africanos mortos ou feridos, e poucos presos no acto do ataque. Calculo o n. dos mortos achados em todos os lugares, e mesmo entre as ondas a 50; havendo porém feridos, que de certo não escaparão, attenta a gravidade dos ferimentos, e o tempo decorrido, primeiro que fossem tratados; existindo estes no Hospital, para onde os mandei conduzir, e os outros na Fortaleza do Mar. Pela manhã forão achados alguns pelos matos vizinhos, baliados ou cultivados, dos quaes alguns procuravão escaparem-se com disfarces. Ás seis para sete da manhã, de casa de João Francisco Rates, sahirão repentinamente seis pretos seus, armados de espadas, pistolas e punhaes, vestidos em trajes de guerra, á maneira sua; e depois de lançarem fogo a casa do Senhor, correrão em busca d’Agua de Meninos sendo logo mortos no caminho. He de presumir, que estes estivessem no plano, porém ignorarião o resultado da madrugada, pois que forão forçados a romper antes de tempo os 60 da casa corrida á Guadalupe. Tem sido dadas por mim as providencias necessarias, para serem corridas todas as casas dos Africanos, sem distincção alguma, e o resultado será presente à V. Ex. em tempo competente; podendo desde já anseverar a V. Ex. que a insurreição estava tramada de muito tempo, com hum segredo inviolavel, e debaixo de hum plano superior ao que devíamos esperar de sua brutalidade e ignorancia. Em geral vão quasi todos sabendo ler e escrever em caracteres desconhecidos, que se assemelhão ao Arabe, usado entre os Ussás, que figurão terem hoje combinado com os Nagós. Aquella Nação em outro tempo foi a que se insurgio nesta Provincia por varias vezes, sendo depois substituida pelos Nagós. Existem mestres que dão lições, e travão de organisar a insurreição, na qual entravão muitos forros Africanos, e até rios. Tem sido encontrados muitos livros, alguns dos quaes, diz-se, serem preceitos religiosos, tirados de misturas de sectas, principalmente du Alcorão. O certo he que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes fazião persuadir aos miseraveis, que certos papeis os livrarião da morte, d’onde vem encontrar-se nos corpos mortos grande porção dos direitos, e nas vestimentas ricas e exquisitas, que figurão pertencer aos chefes, e que forão achados em algumas buscas. Também se notou que huma quantidade grande de insurgentes erão escravos dos Inglezes, e estavão melhor armados, devendo-se atribuir estas circunstancias á menor coacção

27 em que são tidos por estes Estrangeiros, habituados a viverem com homens livres. Além da morte do Sargento da Guarda Nacional, do soldado da Artilheria, de quatro pardos, e dos dous Permanentes, segundo se me informa, houverão muitos outros ferimentos, e alguns graves. Certamente, Excel. Sr., se as denuncias nos não tivessem prevenido, o resultado seria a final, sem duvida o mesmo, porém os estragos muito superiores; pelo que, a bem da segurança nossa, convinha premiar as Pretas denunciantes, dando-lhes a liberdade, se ellas a não tivessem, ou hum premio razoavel. As providencias continuão a ser dadas com calor, e por todos os Districtos se trata de hum Processo, por onde se possa descobrir os culpados ainda existentes, para em suas pessoas dar-se hum exemplo efficaz a esses Africanos; e para melhor o conseguir, tenho procurado encaminhar os processos de huma maneira uniforme e regular. Depois de taes sucessos, he bem notavel, que hajão abusos, e estes tem existido a hum ponto tal, que hoje já dão motivos sufficientes a queixas bem fundadas, pois que os soldados prendem, espancão e ferem, e mesmo matão os escravos, que por mandado de seus Srs. Vão á rua. Sobre este objecto tenho officiado a V.Ex., e tenho dado as providencias a meu alcance. Presentemente tudo mais está tanquilo, e teremos tempo de maneira, que não seja Segunda vez preciso luctar com tal gente, e muito menos com Africanos forros, que quasi todos, no gozo de liberdade, trazem o ferrete da escravidão, e não utilizão nada o Paiz com sua estada”.35

O relato de Gonçalves Martins foi a base para as primeiras conclusões sobre a insurreição escrava de 1835. Através dele foi possível se ter uma idéia dos acontecimentos na noite de 24/25 de janeiro em Salvador. Pode-se destacar do documento quatro observações fundamentais: a existência de um plano habilmente concebido, a delimitação e a aliança dos grupos étnicos envolvidos, a presença latente do elemento religioso e a hostilidade em relação aos forros africanos. Na mesma edição do relato do chefe de polícia, na página dois, já aparecia uma carta particular comentando a revolta: Carta particular “...O commercio está aniquilado por hum levantamento de negros, que de repente perturbou a tranquilidade publica Domingo passado. Esta revolta, preparada há muito tempo, apresentava hum caracter mui serio, mas a força armada conseguio suffoca-la em poucas horas, e não terá resultados sinistros senão para os culpados, pois que ha 3 ou 4 dias que a paz se acha estabelecida”.36

35 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10/02/1835. 36 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10/02/1835.

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É interessante o fato de uma carta anônima ter sido publicada juntamente com o relato policial. Indica o impacto inicial da revolta no cotidiano de Salvador. Segundo todos os relatos, os africanos não teriam atacado instalações civis, portanto, o comércio "aniquilado" seria um sinal de pânico e não de prejuízos materiais em si. Novamente aparece a preocupação com a premeditação, aliás, uma constante de todos os artigos que comentam diretamente a revolta. Na mesma data da publicação no “Jornal do Commercio”, o “Pão de D'Assucar”, também do Rio de Janeiro, noticiava uma outra carta de uma testemunha ocular dos acontecimentos. Carta Particular “No dia 25 do corrente apparaceo nesta huma insurreição de pretos, que felizmente falhou. Conheceo-se então os Nagôs trabalharão à muito tempo nella, pois se achou huma caza de reunnião, onde apprehendeo-se grande quantidade de livros, e outros papeis escriptos por elles com caracteres Arabicos, dos quaes por falta de traductor ignora-se o contheudo. Segundo o que se pôde colher, a insurreição deveria arrebentar pelas 4 horas da manhã, tempo em que aqui sahem os escravos para o serviço, a fim de podem todos reunniram se. Por-se-hia fogo à Cidade baixa, logo que o Povo, como he de costume, para lá concorresse, romperia o massacre sobre a gente inerme e, desappercebida. Para melhor assegurar o bom êxito da empreza, elles conservarão-no em segredo, de sorte que todos os pretos não socios só tiveram conhecimento d’ella na noite do rompimento, quando convidados para tomarem parte na noite do dia 24 soubesse por denuncia de algumas pretas, que se convidarão os pretos para insurgirem-se pela madrugada, e valeo isto para os Srs, que poderão ter noticia vigiar sobre seus escravos, e o Prezidente fazer dobrar os guardas, e aviza-las do que hia haver. Pelas duas horas houve denuncia de que se reunião os pretos em uma caza da Cidade alta, e para ella marchou o Comandante dos Permanentes com poucos homens. Chegados ao lugar perguntarão à uma parda que estava na janella, se havia gente dentro da caza, ao que respondeo, que ninguem, porém recusando abrir a porta, deu isto motivo á suspeita, e o Comandante ordenou que esta fosse arrombada; o que ouvido pelos pretos, bem que não estivessem preparados para aquella hora, todavia vendo que hião a ser descobertos, em número de 50 abrirão a porta, e atirão-se sobre a gente que estava, com um foror indisivel. Vinhão eles vestidos uniformemente de cabeças rapadas, alguns com insignias, certos papeis que se supõe ploclamações, patuás trazendo todos por diviza um argolão de prata no dedo polegar da mão esquerda, e tendo como armas espadas. Os Municipaes que achavão fora não sendo em numero sufficiente para resistir, depois de uma

29 descarga, retiram se milagrosamente, levando poucos feridos. Sahirão os pretos com grande alarido, batendo com as espadas pelas portas das cazas, como sinal para a chamada; porém as precauções que se tinha tomado fez que não se ajuntassem se não uns cento e tantos. Estes divididos em grupos marcharão a attacar todas as Guardas, e Quartéis da Cidade, de certo para se apoderarem do armamento, e nisto estava toda a nossa felicidade, porque os soldados prevenidos poderão resistir-lhes com pouca perda. Entretanto apezar do pequeno numero, e da desigualdade das armas, avançavam com tal intrepidez, e poderão sustentar-se tanto, que começando o attaque ás duas horas da noite houve fogo até dia claro. Doze pretos tiverão a audacia de attacar o Quartel de Cavallaria pelas 8 horas da manhã e morrerão brigando sem retirar hum só. Em resultado tivemos perto de pessoas entre mortos e feridos, e uns 100 pretos metade mortos, e a outra prezos, entre os quaes poucos feridos. Não he possivel descrever o encarniçamento que attacava a canalha; so quem como eu presenciou os factos póde fazer idéa do que teria havido, já não digo se elles conseguissem realizar o plano de insurreição, porém somente se tivessem armas iguaes, ou se em vez de attacar as Guardas, attacassem as cazas dos particulares. Avalia agora por aqui o risco que corremos com semelhante gente, e o que ainda poderemos soffrer um dia, se não tivermos sempre a mais rigorosa cautela. A Cidade tem-se conservado em alarma até agora, não que rasoavelmente se deva esperar alguma cousa por ora; porém o povo naturalmente espantadiço nestas crizes, assusta-se a cada momento de qualquer couza, e põe tudo em confusão. Ainda agora (8 horas da noite) escrevendo esta carta fui interrompido, pelo povo que amotinou-se a ponto de atirarem às vedetas, de que resultou o ferimento de hum soldado”.37

A carta anônima em comparação com o relato de Gonçalves Martins, revela detalhes dos acontecimentos. O autor além de testemunhar o fato, demonstrou conhecimento como se estivesse relacionado diretamente, de alguma forma, com a revolta. O plano e o segredo da insurreição são mais uma vez destacados. A possibilidade dos africanos se organizarem é sempre motivo de preocupação e irritação, e essa característica do grupo malê provavelmente acentuou a frustração e o desejo de puni-los exemplarmente. O relato anônimo revela discordância com o relato de Gonçalves Martins sobre o fato dos rebeldes não disporem de armas de fogo. Armas estas que poderiam fazer considerável diferença. Uma das vantagens decisivas das tropas que combateram os rebeldes foi o refúgio nos prédios dos quartéis juntamente com o poder de fogo. Francisco Gonçalves Martins parece querer superestimar o poder dos rebeldes deliberadamente, no intuito de tornar sua vitória menos inglória. Há indicações de que os africanos teriam

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algumas pistolas, porém estas não teriam sequer funcionado.38 Convém lembrar que o chefe de polícia de Salvador, provavelmente em reconhecimento, seria o futuro Visconde de São Lourenço.39 O anônimo descreveu com detalhes a indumentária dos rebeldes. A descrição demonstra de forma explícita a origem dos africanos envolvidos na revolta. Todos os simbolismos indicam que esses indivíduos estavam organizados em algum tipo de irmandade.40 O autor descreve a audácia dos rebeldes ao atacar a Cavalaria e o Forte de Água dos Meninos. Ataque, aliás, igualmente destacado no relato do chefe de polícia. Nesse momento ele admite ter presenciado os acontecimentos e seus sentimentos são claros quando se refere aos rebeldes como canalhas. Em um exercício de subjetividade, especula o que poderia acontecer se os africanos dispusessem de melhor armamento e táticas de combate menos éticas. Os rebeldes se fixaram nos prédios do governo e quartéis. O anônimo pondera que um ataque contra a população civil poderia ter tido efeitos mais devastadores. Não houve sequer ataques contra os senhores. Os revoltosos procuraram quase sempre engajar as tropas do governo em uma luta clássica.41 De forma análoga, na revolta de 10 de abril de 1830, em Salvador, os africanos assaltaram o comércio no intuito de roubar facões alemães, chamados "parnaíbas". Em seguida, investiram contra o armazém de africanos recém chegados e eliminaram aqueles que se recusavam a lutar, atacando o posto policial. Cercados pelas tropas e por civis, acabaram por serem derrotados. Na revolta de 1830 as baixas entre os africanos foram superiores à de 1835.42 O autor anônimo não demonstrou nenhuma preocupação com o tráfico ou com a escravidão em si. Aparentemente, para o autor, o tráfico e a escravidão não constituíam um problema. Era apenas uma questão de segurança. O “Astro de Minas”, jornal de São João Del-Rey publicava em 14 de março de 1835: Coluna Bahia. “Reflexões sobre a sublevação dos negros Africanos, que rompeo na noute de 24 para 25 do corrente” A quem não desconhece a natureza humana, e a das cousas, semelhante acontecimento não póde maravilhar; elle devia antes prever como consequencia necessária da imprudência e temeridade de accumular grande copio de escravos 37 Pão de D’Assucar, Rio de Janeiro, 10/02/1835. 38 REIS, op. cit., p. 90. 39 RODRIGUES, op. cit., p. 53 e REIS, op. cit. pp. 192-193. 40 DIOUF, op. cit., p. 159. 41 REIS, op. cit., p. 91. 42 RODRIGUES, op. cit., p. 50 e REIS, op. cit., pp.66-67.

31 Africanos e de se avaliar em pouco o perigo, que nos pode Povir de seo crescido numero. Do pouco ou nenhum apreço, que se tem feito desta circumstancia, tem nascido a seguridade em que nos temos sempre considerado, para não tomarmos à tempo as cautelas, que podem obviar sublevações de tal naturesa; antes termos por uma céga e funesta prevenção, preferido a emigração de barbaros Africanos à de brancos Europeus, reciando até sua introdução como rivaes que nos vem arruinar, e fazer nos infelizes; e assim temos pelo nosso comportamento impolitico não só expellido Europeos, mas ainda removido toda a idéa, que poderião Ter de emigrar para o nosso Paiz, quando aliás, se tivessemos seguido a liberal e luminosa política, dos Estados Unidos da America do Norte, teriamos aumentado muito a Branca, para melhor relatar as violencias dos Africanos. Então estes vendo crescer a população de côr opposta, desistirão de romper em taes excessos, e se centirião no limite da subordinação e obediência; e por tanto foi objecto de maior importancia, que aquelles Estados tiverão sempre em mira não permittir que os Africanos em tempo algum se pudessem lembrar de um dia poderiam predominar. E para conseguirem os Americanos este importante fim de sua segurança e prosperidade, despidos de todas as preocupações, e livres das paixões de ódios vinganças nacionaes offerecendo hum asilo seguro a todos os Emigrados de Europa, os admittião depois ao gremio de sua associação, e assim não se contatarão unicamente com esta salutar providencia de acolher os emmigrados Europeos, mas antecederão os Inglezes em prohibir o tráfico de infame da escravatura, como medida indispensavel quando huma colonia passa a ser independente. Mas quasi todas as nossas Auttoridades populares não o entendem assim, nem o nosso povo está disso convencido, antes favorecem o contrabando dos escravos novos, fechando os olhos à infração da Lei, não conhecendo, que cada Africano, que entra no nosso Paiz, he mais um inimigo, que recebemos para nos arrancar as vidas. E levando mais longe o são salvo para se desembaraçarem de hospedes tão perigosos, fundarão huma colonia na Africa, para mandar os Africanos, que fossem libertando. Nada tem escapado a esta sabia e providente Nação, para se conservar segura, independente, e progredir em oppulência; mas entre nós tudo acontece pelo avesso; não previmos o futuro, entregamo-nos no meio dos perigos mais imminentes à toda seguridade, dormindo socegadamente sobre um solo minado, que qualquer dia pode rebentar. Quaes tem sido as providencias de cautela que se tem tomado a cerca dos negros Africanos, depois de nossa Independencia? Pelo que vemos, nenhuma; porque se os tivessem havido, ter-se hia sabido com mais antecedencia que se formavão huma conjuração de Africanos; e então poderião prevenir as mortes barbaras, que perpetrarão, e os sustos que nos causarão! Supponhamos que não apparecia, poucas horas antes, quem denunciasse este conjuração, que seria desta Cidade? Esta supposição parece que nos basta, para que d’aqui em diante sejamos mais

32 vigilantes em prevenir accontecimentos tão desastrados, que nos podem, de hum instante para outro, reduzir à ultima desgraça. Não nos levemos de consideração de que nossos Africanos são estupidos; eles são homens, e por conseguinte tem amor á liberdade e aspirão ao predomínio; se lhes faltão os conhecimentos precisos para dirigir bem as suas forças, não são contudo tão privados de discurso que não se sujeitem àquelle que os póde encaminhar, e não deixar de haver algum, que sendo intelligente, os instrua. O plano que dizem haverem concebido para pôrem em effeito a sua conjuração contra a Cidade, mostra bem, que farão aconselhados por quem tem algum discernimento superior ao de hum barbaro. As sublevações de escravos, que ultimamente tem havido em varias colonias, e esta que acaba de apparecer, tudo nos deve advertir que a escravatura entre nós he hum dos objectos que nos merece toda attenção, para que o tratemos em tão pouca conta, como até agora temos feito. Quantas vezes temos advertido aos nossos Concidadãos, para que tomassem medidas de prevenção à esse respeito , mas sempre os nossas vozes farão desattendidas!”43

Na província mineira era tempo de rebeliões de livres e escravos.44 O artigo liga o perigo das revoltas às vicissitudes do tráfico africano. Setores da elite brasileira temiam a africanização da população brasileira. O autor, portanto, lamentava a imigração dos "bárbaros africanos" e a atitude "impolítica" dos que hostilizam os europeus. Na primeira metade do XIX, por trás das crises institucionais e estruturais, havia um forte sentimento nativista e antilusitano, com deportações e proibição da entrada de imigrantes portugueses.45 Quando o artigo se refere a europeus, certamente está falando dos portugueses. Segundo o autor, o Brasil deveria seguir o exemplo americano dessa maneira os africanos intimidar-se-iam diante de uma maioria branca. Urgia, portanto, incentivar a imigração européia para conter o perigo africano. O projeto civilizador de José Bonifácio pregava a transformação do heterogêneo em um conjunto homogêneo. Apenas uma alquimia racial, cultural, legal e cívica criaria uma identidade civil. Essa identidade seria a única solução que transformaria senhores brancos e escravos negros em compatriotas. Bonifácio era partidário do fim da escravidão. A criação de um Estado moderno regularia os conflitos senhor/escravo. As tensões seriam eliminadas através da preservação da ordem interna.46 De acordo com a lei de 7 de novembro de 1831 o tráfico torna-se ilegal, portanto, o artigo critica as autoridades e o povo pela conivência com o tráfico ilegal. Cada africano 43 Astro de Minas, São João del Rey, 14/03/1835. 44 Ver dissertação de mestrado: ANDRADE, Marcos Ferreira de. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na província de Minas Gerais (1831-1840). Belo Horizonte: FFCH/UFMG, 1996. 45 BASILE, op. cit., p. 224 46 SILVA, op. cit., pp.7-8.

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desembarcado é considerado mais um inimigo espreitando a melhor oportunidade de atacar a população livre. O autor sugere como o exemplo o projeto americano na Libéria, de fundar uma colônia na África para escravos africanos forros. No Brasil, segundo ele, tudo é feito ao avesso, dorme-se tranqüilamente sobre um solo minado que pode explodir a qualquer momento. Solo minado que não explode, exceto de forma esporádica. O autor protesta sobre as providências e as medidas de segurança negligenciadas a respeito dos africanos desde a independência. Reclama maior controle sobre os escravos no intuito de impedir futuras revoltas. A escravidão urbana, particularmente, permitia um grau de autonomia às vezes perigoso para a sociedade escravista. Não devia ser tarefa fácil para as autoridades manterem a escravaria disciplinada. Em 1835, no Rio de Janeiro, o ministro da Justiça escreveu ao chefe de polícia Eusébio de Queiroz: “...de maior vigilância, para que não se propaguem entre os escravos, e menos se levem a efeito, doutrinas perniciosas que podem comprometer o sossego público, que tem exemplo em algumas províncias, principalmente na Bahia”.47

O ano de 1835 deve ter sido particularmente longo. O tráfico de Salvador e do Rio de Janeiro convivia com uma grande massa de população escrava e particularmente africana. Em Salvador, numa população estimada de 65.500 habitantes, havia 27.500 escravos. Entre essa população escrava, os africanos somavam 17.325 indivíduos. Se fossem incluídos os forros africanos nesse número, a população escrava africana subiria para 21.940 indivíduos.48 A Bahia conheceu um crescimento considerável da população escrava no primeiro terço do século XIX. Na estimativa de Reis, uma média de 7 mil indivíduos por ano em um cálculo conservador.49 De forma análoga ao Rio de Janeiro, boa parte desses escravos não permanecia nesses centros urbanos. De qualquer maneira, os africanos continuavam a chegar incessantemente após a proibição do tráfico. No meio urbano a distinção entre cativos, forros e pretos livres nem sempre era possível. Essa dificuldade refletia-se também nas estratégias de domínio senhorial. Segundo Chalhoub, a cidade escondia, mas também construía uma sensação permanente de medo e desconfiança em relação aos negros em geral.50 47 CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 188. 48 REIS, op. cit., p. 6. 49 Idem, p. 6. 50 CHALHOUB, op. cit., p. 192.

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A escravidão não está em questão; ela faz parte de uma realidade perfeitamente natural. A grande preocupação é com a repressão; trata-se, portanto, de algo a ser resolvido pelos guardiões da ordem. O artigo chama os africanos de "nossos", o que ilustra bem o conceito. Os "nossos" não são estúpidos, atesta o autor, entre estupefato e preocupado, concluindo que os africanos eram seres humanos e conseqüentemente aspiravam ao "domínio". O autor do artigo, de forma emblemática, reconhece a força dos escravos, força esta representada por uma lógica numérica inquestionável. Argumenta sobre as suas capacidades se dirigidos por alguém com "discernimento superior a hum barbaro". Nesse momento, poderia estar se referindo à constatação do real perigo de uma organização dos africanos escravos. Desde o primeiro relato, essa é uma preocupação maior. Os mestres malês em questão podiam representar indivíduos com “discernimento superior a um bárbaro? Qualquer que seja o grau de verdade nessa assertiva, se esse grupo constituía uma ameaça, deveria, nesse caso, ser “eliminado”. O “Jornal do Commercio” publicou uma mensagem da Assembléia Provincial do Rio de Janeiro: “MENSAGEM QUE A ASSEMBLÉA PROVINCIAL DO RIO DE JANEIRO, POR ENTERMEDIO DO PRESIDENTE DA PROVINCIA, DIRIGIO AO GOVERNO CENTRAL Senhor. A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro não póde hum só momento demorar-se em levar ao trono de V. M. I. por esta sua respeitosa mensagem, os cuidados e os receios que subita a tomárão e occupão, de que a paz e a tranquilidade em que existia a Provincia, e em cujo remanso principiarão e proseguirão seus trabalhos legislativos, venha a ser interrompida e perturbada pelos ultimos acontecimentos da Bahia, onde huma insurreição de escravos parece ameaçar não só a total ruina dessa bella porção do Imperio, mas de todas as outras Provincias, entre as quaes não póde a do Rio de Janeiro deixar de ser a primeira em sentir o effeito de tão funesta causa, já pela proximidade do territorio, já pelo numero desproporcional de escravos que emprega em a sua extensa e opulenta lavoura, e já pela impolitica mistura de Africanos livres que entre nós se conservão. Estes receios, Senhor, não são infundados. A todos consta que as doutrinas Haitianas são aqui pregadas com impunidade; que os escravos são alliciados com o engodo da liberdade, e concitados por espiritos vertiginosos, nacionaes e estrangeiros, dentro e fóra da Provincia para romper nas mesmas commoções, de que estão os da Bahia dando funestissimo exemplo: que há na Corte sociedades secretas que trabalhão systematicamente nesse sentido; que têem cofres para os quaes contribue grande numero de socios de côr, livres e captivos; que desses cofres sahem os subsidios com que se entreteem e mantêem Emissários, encarregados de propagar doutrinas subversisvas pelos

35 escravos das fazenda de lavoura, onde se introduzem a titulo de mascates ou pomberios!! Os membros dessas sociedades, e seus fantores nacionaes e estrangeiros, são indigitados pela voz publica ... e todavia parece que a administração policial da Corte ou tudo ignora, ou estranhadamente descuidada dorme sobre a crátera do volcão!! E entretanto o incendio já lavra perto da porta! Hum Officio do juiz de Paz de hum dos Districtos da Villa de S. Salvador dos Campos, a mais opulenta da Província, acaba de communicar ao Presidente della Ter-se já alli pronunciado o espirito de insurreição em alguns escravos, que se fizerão notar pelo uso de hum tope no chapeo; que hum destes por fortuna do domínio do mesmo Juiz, sendo preso e interrogado sobre o facto depuzera via que havião da Bahia recebido ordens para romper n’huma insurreição Quarta feira de Cinza, devendo o primeiro golpe ferir seus proprios Senhores: o tope era o signal dos conspirados, e devia ser usado por todos no dia fatal. Estas deposições sem coação de todos os outros, que elle fizera prender, e que usavão da predita senha. A Assemblea Legilstiva da Provincia, a quem foi transmitido o dito officio, dedicou-se desde logo a tomar todas as medidas preventivas que cabião nas attribuições que lhe concedeu a Carta de Lei de 12 de Agosto d 1831, a fim de avaliar hum mal, cujo danno será irreparavel, se o deixarmos caminhar sem estorvo e sem apelo: mas ella está persuadida, á vista da proximidade do Municipio da Corte com todos os pontos povoados da Provincia, que os seus esforços então melindroso objecto serão infructuosos, e por ventura funestos, se o Governo Geral não despregar toda aquella energia que delle exige a segurança publica, a honra nacional, e o decoro do Trono, para que o espirito de insurreição e a certeza da impunidade, não tome o corpo que lhes promete a falta de procedimentos impoliticos que augmenta todos os dias os elementos da insurreição. He nesta pressuposta, Senhor, e na justa esperança de que esta respeitosa mensagem merecera perante o Trono aquelle grao de consideração, de que o faz digno hum objecto de tamanha transcendencia, que a Assemblea legislativa da Provincia tomou o accordo de dirigir-se a V. M. I. pelo intermedio do Presidente della, excitando vigilancia, o zelo, e a honra do Governo central, e lembrando-lhe como medidas opportunas e indispensaveis: 1º Que sem demora seja enviada para Campos a força policial pedida pelos Juizes de Paz daquella Villa; 2º Que se prohiba desde já o impolitico desembarque de escravos ladinos vindos da Bahia, e mais portos do Norte para serem aqui vendidos; 3º Que seja vedada a entrada de Africanos libertos, de qualquer parte que elles venhão; 4º Que sejão exportados para fora da Provincia todos os Africanos aprehendidos pelas embarcações de guera nacionaes ou estrangeiras, que forão julgados boa preza, cessando de huma vez a prejudicial e impolitica pratica de os arrematar, e distribuir pelos incautas moradores da mesma Provincia.

36 Senhor, o crime não dorme; e este he de tal natureza que cumpre mais que nunca que o Governo o esmague, e não se deixe prender por acanhadas considerações de despeza, ou de politica. O Brazil ameaçado reclama justiça e energia”. 51

O Ato Adicional à Constituição de 1824, de 12 de agosto de 1834, criou as assembléias legislativas provinciais, cujos membros seriam eleitos por um período de dois anos. A esse parlamento caberia legislar sobre uma vasta gama de atribuições municipais e provinciais, dentre elas, o policiamento e a segurança pública, e as resoluções estavam sujeitas à sanção do presidente de província. O Ato Adicional e outras reformas de cunho liberal visavam a descentralização do poder em favor das províncias, em detrimento dos municípios, num período que ficou conhecido como "experiência republicana".52 Os poderes locais foram sensivelmente fortalecidos, pois passaram a controlar boa parte das instituições mantenedoras da ordem.53 A mensagem da Assembléia permite ponderar sobre as armadilhas das fontes. Afinal, o que os parlamentares chamavam de tranqüilidade? Com rebeliões de escravos e livres assolando o império de norte a sul e com a própria transição conturbada da Regência, falar em "paz e tranqüilidade" em 1835 soa mais com um eufemismo do poder constituído. O idílio provincial estava ameaçado nesse momento pela insurreição de escravos na Bahia. O perigo não só ameaçava a "bela porção do Império" chamada Bahia, mas todas as províncias, inclusive o Rio de Janeiro. A preocupação em relação ao Rio de Janeiro era justificada pela proximidade geográfica e pelas similaridades sócio-econômicas. Os deputados já haviam escolhido os africanos livres como bodes expiatórios, tendência possivelmente acentuada devido às notícias vindas da Bahia.54 No documento encontra-se referência às "doutrinas Haitianas". Esta expressão assolou o imaginário das sociedades escravistas na primeira metade do século XIX. Única rebelião escrava vitoriosa em todo o hemisfério, ela seria sempre invocada em épocas de conflitos e tensão entre escravos e senhores. O artigo fala especificamente em "sociedades secretas" que possuem uma coleta organizada para financiar livres e cativos no aliciamento de escravos das lavouras. O tom se torna quase histérico quando acusa a polícia de incapacidade ou mesmo negligência em relação ao "vulcão" prestes a entrar em erupção.

51 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21/03/1835. 52 BASILE, op. cit., p. 228. 53 Idem, p. 229. 54 Relato do Chefe de Polícia Francisco Gonçalves Martins. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10/02/1835. "...e muito menos com Africanos forros, que quasi todos, no gozo de liberdade, trazem o ferrete da escravidão, e não utilisão nada o Paiz com sua estada".

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Escravos podiam se tornar suspeitos pelo uso de "hum tope no chapeo". Para o juiz de paz em Campos, poderia ser o sinal combinado para uma revolta. Nesta denúncia específica, surge a suspeita de uma ação combinada entre escravos africanos na Bahia e no Rio de Janeiro.55 Denúncias desse tipo chegavam à Assembléia Legislativa da Província. As providências eram tomadas no envio de uma força policial para a localidade, e na proibição do "impolítico desembarque" de escravos e libertos originários da Bahia e dos demais portos do Norte. Os africanos apresados em embarcações deveriam ser reexportados para fora da província e não mais arrematados localmente.A ameaça passa a ser mais considerada como nacional, por isso mesmo demandando "justiça e energia".56 O jornal "Recopilador Mineiro" da pacata Pouso Alegre nos contrafortes da Mantiqueira reproduz em 29 de abril de 1835 uma série de medidas tomadas originariamente pela Assembléia da Província da Bahia, e reeditadas pela Assembléia do Rio de Janeiro. Estas medidas, provavelmente, faziam parte do aumento de controle exercido pelas autoridades baianas após a rebelião escrava de 1830 em Salvador.57 O decreto consistia em cinco artigos que restringiam sobremaneira a circulação de escravos e livres. Decreto “Hei por bem Sanccionar, e Mandar que se execute o que Resolveo a Assembléa Geral Legislativa, sobre Resolução do Conselho Geral da Província da Bahia. Art. 1. Nenhum escravo, cujo Sr. for morador na Cidade, Villas, ou Povoações, e viva em companhia deste, e bem assim nenhum escravo, que residir em Fazenda, ou Predio rustico, de qualquer denominação que seja , poderá sahir aquelle da Cidade, Villas ou Povoações, e este da Fazenda , ou Predio rustico, em que habitar-se , sem com sigo levar uma cedula assinada por seo Sr., Administrador, Feitor, ou quem suas vezes fizer, em a qual se indiquem o nome e a naturalidade do escravo, seos mais salientes signaes; o lugar para onde se encaminha; e o tempo pelo qual deva valer a referida cedula. Art. 2. O escravo, que se achar fora dos lugares designados no precedente artigo, sem a sobredita cedula, será immediatamente preso, e remettido a seu respectivo Sr., para o castigar, guardada a moderação devida; no caso porém que escravo não declare a quem justamente pertence, ou o seo Sr. não seja conhecido pelo aprehensor, aprehensores ou outras pessoas, que possão informar a este respeito, será sem demora remettido ao Juiz territorial do lugar em que se verificar a aprehenção pelo Juiz de Paz do respectivo Districto, o qual por Edital (que 55 BRAZIL,.Etienne Ignace. “Os Malês”, in: Revista do IHGB, 72, 1909, pp. 70-91 e VERGER, op. cit., pp. 347-349 e 353. 56 Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 21/03/1835. 57 REIS, op. cit., pp. 67-69.

38 também mandará imprimir nas folhas, havendo para isso commodidade) afixado no lugar mais publico, e nos emediatos do que em que se effectuou a aprehenção, fará da mesma constar, designando todos os signaes do escravo aprehendido, porque, possa a vir a ser reconhecido; e assim também de sua remessa. Art. 3. Nenhum preto, ou preta , forros Africanos, poderá sahir da Cidade, Villas, Povoações ou Fazenda, ou Predio, em que for domiciliario, a titulo de negocio, ou por qualquer outro motivo, sem passaporte, que deverá obter do Juiz criminal, ou de Paz do lugar, a arbitrios das partes, os quaes somente lho concederão, precedendo exame da regularidade de sua conducta, por meio de tres testemunhas; que o abonem (caso não seja conhecida e abonada pelo mesmo Juiz.) e em taes passaportes não somente se indicará o nome do individuo, que o requereo, seos mais distinctos signaes, e o lugar para onde se encaminha (como he costume) mas também se designará o tempo, porque devão durar os ditos passaportes, por quanto há toda presumpção, e suspeita de que taes pretos são os insitadores, e provocadores de tumultos, e commoções a que se tem abalançado os que existem na escravidão. Art. 4. Os pretos, ou pretas, forros Africanos, que transgredirem o determinado no precedente artigo, serão immediatamente pressos, e remettidos às Autoridades territoriaes para lhes impor, pela primeira vez, a pena de 8 dias de prisão, os quaes se multiplicarão pelas reincidencias. Art. 5. A execução da proposta fica encarregada aos Juizes de Paz por si, e pelos Cabos, ou Officiaes de Patente, quer de Milicias, quer de Ordenanças, que comodativamente com os preditos Juizes ficão autorisados para inspecionar, e fiscalisar os mencionados passaportes, e cedulas, procedendo na forma recommendada nos antecedentes artigos : e para acautelar, e acudir a qualquer tumulto, que possa suscitar-se deverão aquartelar-se as tropas de 1a Linha, assim de Caçadores, como de Cavallaria, e Infantaria, nas immediações da Cidade, destacando para aquelles pontos, que o Presidente da Provincia julgar necessarios. Quando porem não houver tropas de primeira Linha em numero sufficiente, serão os destacamentos de fora da Cidade preenchidos pelas tropas Milicianas dentro de seos respectivos Districtos”.58

Os artigos 3 e 4 são bem claros quando especificam os "pretos, ou pretas, forros Africanos". Em outras palavras, o alvo principal era africanos de ambos os sexos, escravos ou libertos.59 Esses africanos, escravos ou não, eram os suspeitos incondicionais da subversão da ordem escravista. Tal padrão repetir-se-ia quando da repressão da Revolta Malê cinco anos depois. 58 Recopilador Mineiro, Pouso Alegre, 29/04/1835.

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O mesmo "Recopilador Mineiro" em 2 de maio de 1835 reproduzia na íntegra um artigo do "Astro da Bahia". O autor, de maneira análoga a outros defensores do fim do tráfico e da escravidão, aproveita-se do impacto da Revolta Malê para divulgar suas idéias. Afinal, segundo ele, "não se deve perder a occasião de fazer guerra a prejuiso tão tremendo, quanto dominante, e de chamar a atenção dos Brasileiros sobre uma questão, que importa a prosperidade e os futuros distintos do nosso Paiz”.60 Os traficantes de escravos são tratados de "horrendos inimigos da sociedade" e os escravos africanos "féras brutaes desejosos de beber nosso sangue". Citando os "Publicistas", conclui que a escravidão corrompe e deprava a sociedade. A ociosidade inerente à escravidão é incompatível com uma moral mais austera de um povo industrioso. O artigo embora apenas cite Dunuyer, Jefferson entre outros, faz eco ao pensamento de José Bonifácio e da vertente iluminista luso-brasileira. O aspecto da segurança interna era extremamente relevante em uma época politicamente delicada como a Regência. O tráfico e a escravidão impediam a formação da nação pela presença do escravo como inimigo interno, tal como demonstrou a Rebelião Malê. O próprio Bonifácio diria que a escravidão era "o cancro que rói as entranhas do Brasil".61 Segundo José Murilo de Carvalho, era o "veneno que inviabilizava a nacionalidade".62 O periódico mineiro continua na coluna post scriptum com a notícia que um certo capitão Sheafe, do brigue americano "Trafalgar" vindo de Pernambuco e Bahia, entregou uma carta de um comerciante baiano sobre a situação local. O "respeitável comerciante daquella praça" e o capitão informavam que nessas localidades o comércio estava paralisado e os "habitantes em contínuos sobre-saltos". Na coluna "Bahia 29 de Março", ainda do mesmo jornal, saía a notícia da suspensão das garantias na Bahia por trinta dias. Informa ainda que essa medida de exceção tomada pelo presidente da província causou "grande susto e alvoroço". A justificativa dessa medida eram as constantes denúncias de novas insurreições escravas e assim era permitido às autoridades vasculhar residências sem permissão judicial. De acordo com o jornal era perfeitamente conhecida a existência de planos para "derrubar a administração e dissolver a união do Império". O artigo termina com a previsão sombria de que "nestas circunstancias não sabemos como isto acabará". O "Echo do Norte", de 25 de julho de 1835, periódico do Maranhão publicou na coluna “Bahia” nove leis, das quais duas se relacionavam com a revolta. A primeira era 59 Karasch define a classificação de preto como quase sempre indicação de africano, ver KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 37. 60 O Recopilador Mineiro, Pouso Alegre, 02/05/1835. 61 SILVA, op. cit., p. 31. 62 CARVALHO, op. cit., p. 49.

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sobre a suspensão das garantias por causa da insurreição; a segunda, datada de 13 de maio, autorizava o governo a deportar da província africanos forros suspeitos de promoverem revoltas, assim como os estrangeiros brancos residentes que colaborassem com os africanos. Houve durante algum tempo suspeitas sobre os ingleses proprietários de escravos em Salvador. Na distrito da Vitória encontrava-se uma comunidade de comerciantes ingleses com escravos muçulmanos que participaram ativamente da rebelião.63 A edição do “Echo do Norte” de 8 de agosto de 1835 noticiou a execução dos cinco africanos condenados em 14 de maio de 1835 pela participação na revolta daquele mesmo ano. O artigo ressalta que os condenados não apelaram como os outros condenados. A execução, adverte o autor, poderia ocasionar desordens; contudo, as providências necessárias estavam sendo tomadas. O jornal maranhense publicou na mesma edição uma longa matéria sobre o projeto de estabelecimento de uma companhia de colonização na Bahia. Obviamente, na carona da comoção dos últimos acontecimentos, um dos objetivos principais de tal empreendimento seria: “ previnir, com efficacia e evidente utilidade, a funesta necessidade de Africanos, ou os effeitos ainda mais funestos da existencia de tantos barbaros neste abencoado Paiz. E se estes dous interesses, a saber (pois folgo de repeti-los) o da riqueza, e o da seguranca...”.64

A idéia de combater a xenofobia nos país e colonizá-lo com imigrantes europeus foi uma constante já na Independência com José Bonifácio. Em épocas de crise da ordem escravista essas idéias ganhavam mais corpo. No Rio de Janeiro, “O Fluminense” de 3 de novembro de 1835 noticiou uma possível rebelião escrava que ocorreria em 3 de outubro, em Salvador, mas que uma denúncia teria impedido que os nagôs reproduzissem os acontecimentos de 24/25 de janeiro. Mais uma vez surge o africano como uma ameaça e uma etnia específica que povoa os temores senhoriais. O medo atinge as províncias do norte. O artigo diz que no Pará o comandante das forças navais declara que a “guerra he feita à tudo que quanto tem cor branca”. Na Bahia, segundo o artigo, acontece o mesmo. O autor lança a pergunta: “...e

63 REIS, op. cit., p. 83. 64 Echo do Norte, Maranhão, 08/08/1835.

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quem nos pode assegurar que outro tanto senão pretende aqui, e nas outras Províncias do Brazil?”.65 Em Salvador, denuncia o artigo, os nagôs ocupavam quarteirões inteiros, morando em cada uma dessas casas. Muitos nagôs se reuniam freqüentemente para festas e batizados, sem nenhum tipo de controle por parte das autoridades. A crítica era endereçada aos juízes de paz e aos inspetores de quarteirão, que seriam particularmente relapsos no controle social desses africanos. Os juizes e os inspetores, aparentemente, estariam confiando na sujeição psicológica dos escravos à autoridade senhorial. O artigo, porém, adverte para o perigo dessa prática. Em Salvador, como de forma análoga no Rio de Janeiro, sempre houve a preocupação com o controle da imensa população escrava. De acordo com Chalhoub, os burocratas da Corte tinham conhecimento das mudanças necessárias para manter o domínio sobre a população escrava. Da mesma forma, os burocratas de Salvador eram obrigados a lidar com uma situação não apenas potencialmente explosiva como na Corte, mas definitivamente vivendo o pior dos pesadelos de uma sociedade escravista.66 Seria ingênuo imaginar que os funcionários encarregados de vigiar a população escrava de Salvador não tivessem a percepção exata da situação na cidade como insinua o artigo; afinal, a experiência baiana com revoltas e insurreições escravas remonta ao período colonial. Antes de 1835, mais especificamente em 1830, a cidade experimentou uma revolta escrava. Por outro lado, esses burocratas e agentes da lei se mostraram, algumas vezes, bastante eficientes na repressão de insurreições e revoltas. Pode-se argumentar que muitas dessas revoltas careceram de planejamento, foram delatadas ou mesmo falharam devido às tensões existentes no interior da comunidade escrava. De qualquer maneira, diante da imensa tarefa de lidar com grandes contingentes de população escrava, as elites senhoriais, tanto da Corte como de Salvador, foram eficazes. Os nagôs citados no artigo se organizavam em comunidades étnicas, religiosas e em cantos de trabalho. Grosso modo, essa é a estrutura clássica proposta pela historiografia. A superpopulação escrava assustava os “verdadeiros amigos da Liberdade da Pátria”.67 O artigo, seguindo o padrão dos outros jornais, condenava os traficantes de escravos e reclamava uma política de incentivo à introdução de colonos livres. O autor alerta: os “verdadeiros inimigos da Pátria devem muito desconfiar de quem se esforça para cazar o sistema detestável de escravidão, com o de generosa Liberdade, ainda que va 65 O Fluminense, Rio de Janeiro, 03/11/1835. 66 CHALHOUB, op. cit., p. 189. 67 O Fluminense, Rio de Janeiro, 03/11/1835.

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remecher as cinzas dos Gregos, Romanos e Theologos dos seculos mais proximos...”.68 A crítica aos que defendiam a escravidão com argumentos históricos e teológicos se endereça aos teóricos como o bispo português J. J. da Cunha Azeredo Coutinho. O bispo Coutinho era ferrenho opositor do Iluminismo, das idéias liberais e da teoria do direito natural. Sua obra é um manual habilmente escrito de apologia à escravidão.69 O artigo termina apelando para que a sociedade se precavenha contra os “homens de interesse elástico; são como água, que toma forma de vaso em que a recolhem.”70 No jornal “O Fluminense” de 9 de dezembro de 1835, o artigo levanta a suspeita da existência de uma organização internacional para insuflar os africanos no continente americano. Apesar de reconhecer a impossibilidade de que tal organização realmente possa existir, os últimos acontecimentos pareciam indicar um fundo de verdade nesses boatos. A organização estaria disfarçada em uma entidade filantrópica no melhor estilo da London Missionary Society.71 Ecos em 1836... O jornal “O Atlante” do Rio de Janeiro em 5 de agosto de 1836 publicava a continuação de uma série de artigos contra o tráfico de escravos e a favor da expulsão dos africanos, argumentando sobre a necessidade de se deportar para a África “esses libertos semibárbaros”. Poderia se depreender dessa afirmação uma pequena, mas significativa, acepção do barbarismo escravo para o semibarbarismo dos libertos. Ao comentar as negociações entre o governo brasileiro, a Inglaterra e os Estados Unidos, ele explica que o objetivo seria deportar esses hóspedes indesejáveis para Serra Leoa e Libéria, a fim de que se “deminua o temor de insurreições, e se promova a introdução de braços mais prestantes no Brasil”. O governo inglês ofereceu a Ilha de Trindade, no Golfo do México e o governo americano, através da Sociedade Filantrópica, a Libéria, além de conceder 50 pesos por liberto deportado. Para o autor, entretanto, nenhuma dessas alternativas seria adequada ao país e discorre sobre o decreto de expulsão dos libertos africanos suspeitos de envolvimento na rebelião de 1835, quando mais de cem foram deportados para a Costa da África, com ordens de serem desembarcados no porto mais conveniente. Segundo o artigo, a pedido dos africanos, o navio ancorou em um dos 68 O Fluminense, Rio de Janeiro, 03/11/1835. 69 COUTINHO, J. J. da Cunha Azeredo. Obras Economicas de J. J. da Cunha Azeredo Coutinho (17941804) São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966. 70 O Fluminense, Rio de Janeiro, 03/11/1835.

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portos da Alta Guiné, sendo recebido por um “sovah ou príncipe da terra” . Devido à existência de carpinteiros e pedreiros a bordo, logo foi construída uma comunidade de retornados. Esse primeiro contato bem sucedido motivou o retorno de outros africanos por conta própria, levando à emissão de mais de quatrocentos passaportes para os libertos retornarem à África. O artigo menciona que foram feitas duas ou três viagens para essa localidade na Costa da África “onde vivem desassombrados, e livres do perigo (que dantes corria o Africano que se repatriava) de serem perseguidos e roubados pela população brutal como hereges e iscados da religião dos brancos...”. O autor não concorda em “... mendigar um favor à Potencia alguma" para o estabelecimento dos libertos deportados do Brasil. Seu projeto era estabelecer uma colônia em terras africanas não apenas para receber os libertos, mas para ser explorada. O artigo fala em "núcleo de povoação, talvez novo estado, que particularmente de alguma civilização e, conhecendo a nossa língua, contribuirá um dia para a extensão do nosso comércio e de nossa industria nascente", e entende os investimentos da Inglaterra e dos Estados Unidos como desperdício de dinheiro. Naturalmente ele devia se referir às iniciativas filantrópicas. No caso inglês, todavia, essas ações resultariam em projetos coloniais como desejava o autor. O governo brasileiro pensou em criar uma colônia para os libertos em Angola. De fato, foi enviado um oficial brasileiro para Luanda como cônsul que, no entanto, foi impedido de desembarcar, malogrando de antemão os planos brasileiros. Segundo Verger, no período que sucedeu à Revolta Male, foram emitidos cerca de 700 passaportes para que africanos pudessem retornar à África.72 A “Gazeta da Bahia” de 9 de agosto de 1836 critica o “Jornal do Commercio” da Corte por noticiar uma rebelião de escravos em Nova Friburgo sem checar a veracidade dos fatos. A notícia foi desmentida pelas autoridades locais, mas tudo indica que em 1836 o medo continuava presente. Denúncias de revoltas espocavam por toda província fluminense, mas somente em 1838 se materializaria a ameaça com a revolta quilombola de Manuel Congo, em Vassouras.73

71 COSTA, Viotti da. Coroas de glória, lágrimas de sangue: a rebelião dos escravos de Demerara em 1823. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 72 VERGER, op. cit., pp. 361-362. 73 GOMES, Flavio dos Santos. Histórias dos quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro – ‘Seculo XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995, p. 255.

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Ecos de 1837... O jornal "O Censor" da Bahia em 6 de agosto de 1837 publicava a resolução da Assembléia Legislativa que estabelecia uma série de medidas para restringir o tráfico de africanos. O decreto visava ainda punir criminalmente os responsáveis. O "Seminário de Cincinato" do Rio de Janeiro em 8 de julho de 1837 publicou o primeiro de uma série de artigos comparando a escravidão com a importação de mão de obra européia. O título é sugestivo: "A escravatura convém ao Brasil ou é-lhe perigosa? A colonização europea é-nos perniciosa, ou útil?". Em certa altura o autor teorizou sobre a relação senhor-escravo: “ O escravo, fallando no geral, pode ser amante do senhor? Ora como poderá o escravo amar aquelle que o domina ? Certamente que elle guarda terrível odio contra o senhor: elle o encára como seo verdugo, á quem vê sujeita sua liberdade. Os exemplos aí estão para attestarem o que dizemos. Quantas e quantas vezes não temos desgraçadamente visto que os senhores são cruamente assassinados pelos próprios escravos! Quantas e quantas vezes não tem estes em diversas épocas, e lugares, perpretando actos bárbaros, tentado em vão recobrar a perdida liberdade! Sim que a liberdade é o mais precioso Dom, que o homem possue, e o homem escravo é um ente, degradando do próprio ser. Tão reconhecida supomos esta verdade, que ocioso nos parece gastar palavras em demonstra-la”.74

Ecos de 1838... O "Correio Mercantil" de Salvador em 7 de agosto de 1838 noticiava que uma tentativa de furto de armamento na Fortaleza da Giquitiaia foi denunciada por um escravo que residia nas proximidades. Seis pretos foram presos pela polícia no interior da fortaleza e numa lancha fundeada ali perto. O autor da notícia diz-se inclinado a crer em uma nova tentativa de rebelião e não apenas uma "nova rapozada". Os pretos visariam "objetos de valor" e não armas velhas sem utilidade. Dois dos pretos presos no armazém pertenciam a um certo Senhor Falcão e teriam tomado parte na Revolta Malê em 1835, juntamente com outros escravos do mesmo senhor. A suspeita é de que eles teriam como objetivo alguma ação violenta devido à natureza do furto. 74 Seminário de Cincinato, Rio de Janeiro, 08/07/1837.

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Os autores do crime foram identificados como africanos, pois segundo o jornal eram velhos conhecidos desde 1835. Foram encontrados na alvarenga – pequeno barco utilizado para carga e descarga de navios – dois morteiros velhos e cinco armas. O jornal também relaciona esse fato aos batuques no Engenho da Conceição, pois uma intervenção policial no local deteve alguns pretos que foram trazidos amarrados no intuito de se descobrir uma possível conspiração. O artigo critica a negligência de se deixar uma fortaleza com um depósito de armas sem vigilância, afirmando que não se pode "desprezar pequenas faíscas que podem excitar novos incêndios" e pede vigilância e atividade por parte das autoridades, arvorando-se no papel de gendarme da lei e da ordem. O episódio se passa em 1838, portanto, um pouco distante dos acontecimentos de 1835. Nesse meio tempo ocorre a Sabinada, que passa a ocupar o noticiário e as preocupações dos baianos. Os pretos mencionados e o seu respectivo senhor estavam provavelmente envolvidos nos acontecimentos de 1835. Quatro pretos foram presos em uma alvarenga possivelmente de propriedade de tal senhor. O artigo diz claramente que esses pretos tomaram parte na rebelião de 1835, pois eram "uzeiros e vizeiros no offício da malêzada", daí a conclusão de que eram africanos. O movimento em 1835 foi fortemente marcado pela sua africanidade latente. Na Devassa do Levante de 183575 aparecem como participantes do combate de Água de Meninos76 Thomé e Sebastião, escravos do Falcão das Alvarengas. Seus nomes foram lançados no rol dos culpados, mas por qualquer artifício legal escaparam à condenação. Não é possível através do artigo relacionar o episódio da tentativa de furto das armas com os batuques do Engenho da Conceição. Contudo, o aparecimento de dois personagens malês envolvidos no furto de armas, apenas três anos depois, permite um exercício de hipóteses. Uma delas, a de que mais uma vez o destino teria conspirado contra os malês. O mesmo "Correio Mercantil", na edição de 4 de setembro de 1838, noticia sobre os batuques do Engenho da Conceição. Temporariamente suspenso devido às batidas policiais, os batuques voltam "à horrorizar os pacíficos habitantes" nas noites de luar, domingos e dias santos. O jornal reclama providências das autoridades, pois o resultado dessas reuniões está presente na memória daqueles que conservam "alguma lembrança de 24 de Janeiro de 35".

75 Devassa do Levante, vol 50, pp. 11-12. 76 Principal combate entre os malês e a tropa do governo pois engajou o maior número de africanos e a cavalaria dos permanentes. REIS, op. cit., pp. 84 et passim.

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Conclusão A utilização de periódicos como fonte permite uma visão apenas fracionada dos acontecimentos e essas limitações foram expostas na introdução ao capítulo. Mesmo assim é possível avaliar o impacto dos eventos em uma determinada época, e o efeito de sua duração no cotidiano de uma sociedade. Uma revolta escrava devia ser algo extremamente desagradável, assim como os acontecimentos que enchem as páginas policiais em nossos dias. Além disso, a Revolta Malê de 1835 sofreu a concorrência “desleal” de uma série quase interminável de revoltas de livres, muito mais afinadas com os desejos e aflições da sociedade da época. Não cremos que a Revolta Malê tenha abalado a sociedade escravista como querem uns, ou tenha sido um fenômeno efêmero como desejam outros. No turbilhão dos anos 30 do século XIX, essa rebelião intensificou o debate nacional sobre o fim do tráfico e da escravidão como um todo. A revolta serviu de balão de ensaio para as reformas no sistema judiciário e para a aplicação da famosa horrenda exceptione, a Lei de 10 de junho de 1835.77 Por mais paradoxal que possa parecer, pensamos que a comunidade escrava que desencadeou a revolta pertencia a um mundo e a uma cultura totalmente alheia, e mesmo antípoda ao mundo em que vivia e que viria a influenciar. No que se refere ao capítulo, pode se constatar sua pertinência através do intenso debate proposto pela imprensa, das pressões e da incrível endurance do tráfico escravo da África para a América.

77 Ver dissertação de mestrado: RIBEIRO, João Luis de Araújo. A lei de 10 de junho de 1835: os escravos e a pena de morte no Império do Brasil (1822-1889). Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2000, p. 41.

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Capítulo 2

O cativeiro ideológico: discussão historiográfica Uma revolta escrava, por si só, constitui uma tentativa de ruptura com a ordem estabelecida. Uma revolta empreendida por escravos, libertos e estrangeiros com uma concepção religiosa militante e concorrente da ideologia vigente torna-se uma ameaça demasiado perigosa ao sistema. O caráter endêmico da rebeldia escrava baiana e sua dinâmica diferenciada motivaram um número considerável de abordagens e interpretações. Isso pode ser constatado pela análise da historiografia produzida a partir do final do século XIX. De acordo com Emília Viotti da Costa, “crises são momentos de verdade” por expor a face oculta de uma falsa harmonia, consenso e de retórica hegemônica.78 A revolta dos africanos muçulmanos malês, em 1835, foi um desses momentos de crise em que uma realidade oculta se expõe em uma intensa visibilidade. No entanto, apesar dessa visibilidade e da grande quantidade de material documental produzido, alguns aspectos que reputo como fundamentais permanecem ocultos. A “rebelião africana” ou “nagô” é bem mais complexa e específica. A Rebelião Malê começa a ser estudada quase que simultaneamente com os primeiros estudos sobre o negro no Brasil.79 A partir de então, como será demonstrado, foi constantemente reinterpretada sob diversas correntes ideológicas e até como pano de fundo para fins políticos. No intuito de analisar de forma mais clara as diferentes vertentes historiográficas, optei por dividi-las em três correntes: culturalistas, materialistas e híbridos. Reis, em um estudo anterior, organizou os autores em culturalistas e materialistas.80 Essa divisão, pensamos, não seria suficiente para abranger de forma satisfatória todas as vertentes em questão. No desenvolvimento da discussão será possível perceber, principalmente nos estudos mais recentes, a fusão dos estudos materialistas e culturalistas como uma tendência dominante. Dessa forma, portanto, justifica-se a inclusão de uma terceira categoria em uma discussão historiográfica atualizada. 78 COSTA, op.cit., pp. 13-14. 79 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça racionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp. 55-94; SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, pp. 19-30; REIS, João José (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense/CNPq, 1988, pp. 87-140.

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Culturalistas O padre jesuíta armênio Etienne Ignace Brazil, foi um dos pioneiros no estudo mais apurado da revolta de 1835. Contudo, ele era movido por um sentimento de “cruzada” que tornou impossível qualquer isenção na sua análise do movimento. Seu artigo foi publicado originalmente na Revista Anthropos, de Viena, e posteriormente na revista do IHGB da Bahia.81 No prefácio do seu estudo critica os “historiographos” que o precederam, sob a alegação de que estes não teriam percebido o “móvel religioso” da conspiração.82 Etienne Brazil, estranhamente, não percebeu que o “móvel religioso” foi detectado no primeiro relato do chefe de polícia da província Francisco Gonçalves Martins: “Tem sido encontrados muitos livros, alguns dos quaes, diz-se serem preceitos religiosos, tirados, de misturas de seitas, principalmente do Alcorão. O certo é que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes faziam persuadir aos miseráveis, que certos papéis os livrariam da morte, d’onde vem encontrar-se nos corpos mortos grande porção dos ditos, e nas vestimentas ricas e exquisitas, que figuram pertencer aos chefes e que foram achados em algumas buscas”.83

O relatório não deixou dúvidas da motivação religiosa sob uma liderança muçulmana. O autor jesuíta ainda fez algumas observações fantasiosas, ou pelo menos não comprovadas, de “ramificações e intelligências nas outras províncias”. Seguindo este raciocínio de uma conspiração islâmica internacional, comenta a “carnificina” dos armênios perpetrada pelos turcos. O religioso armênio em um exercício de imaginação, alertou para o perigo de uma “matança” semelhante que poderia ter ocorrido à população “branca” da Bahia. Segundo ele, “de todas as barbaridades são capazes os sequazes daquelle sinistro epiléptico de Mafoma”. O padre Etienne profetizou o fim do Islã, atestando aliviado de que “a civilização já rompeu as portas da Turquia e da Pérsia”. A “religião dos Malês do Brazil, cumpre nota-lo, é ella uma seita particular e ainda não descripta”.84 O clérigo armênio, ao assumir essa postura fanática, mistura seus sentimentos pessoais, notadamente marcados pelo rancor, com o seu estudo das revoltas escravas. Em 80 REIS, op. cit., pp. 105. 81 BRAZIL, op. cit., pp. 69-126. 82 Idem, p. 70. 83 Ibidem, p. 122. 84 Ibidem, p. 70.

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seu artigo, discorreu sobre o tráfico que trouxe as etnias da África Ocidental para a Bahia e as práticas religiosas islâmicas. Os malês praticavam um Islã fetichista, tradição historiográfica seguidamente reiterada por estudiosos do assunto. Esta é, sobretudo, uma questão fundamental no estudo dos malês. Suas observações sobre as crenças e as práticas foram de modo geral imprecisas e recheadas de preconceitos religiosos e raciais, mas demonstraram um certo grau de erudição.85 O jesuíta foi detalhista, descreveu práticas e tradições desconhecidas por muitos que apenas o rotularam de fanático - o que sem dúvida era -, mas sem examinar cuidadosamente seu trabalho.86 Na continuação do artigo fez uma breve introdução sobre o período regencial e as várias revoltas que então ocorriam em todo o Brasil. Esta visão seria também explorada por outros autores. As rachaduras no edifício da sociedade escravista teriam sido percebidas por cativos e libertos, motivando a rebeldia escrava, em geral, e a malê em particular. Ele, porém, iria além, quando detectou não apenas que o “caracter político-social não era um esforço para a conquista da liberdade; revestia, ao contrário, um caracter sobremaneira religioso era, em uma palavra, uma guerra santa (...)”.87 Estavam, desta forma, colocados os ingredientes comuns a praticamente todos os estudos sobra a rebelião malê: fetichismo, a conjuntura político-social e econômica, potencializada mais tarde pela sofisticação materialista e a “guerra santa” Nina Rodrigues foi, sem dúvida, o primeiro estudioso a analisar o assunto em profundidade, dando origem ao que pode ser chamado de escola antropológica baiana. Maranhense de origem, foi professor na faculdade de medicina da Bahia na última década do século XIX e viria a falecer precocemente em 1906. Era um intelectual típico do final do século, evolucionista e completamente convencido das teorias racistas importadas da Europa naquele momento. Apesar de contemporâneo de Etienne Brazil, ele era movido não por fanatismo religioso, mas antes por um fanatismo cientificista. Curiosamente, aliás, classifica o “problema do negro” como uma “esfíngie a ser decifrada”, como fez Brazil.88 Principal pensador racista de seu tempo, justificava esta posição baseado em estudos comprobatórios de que a “inferioridade do africano fora estabelecida sem qualquer dúvida científica”. No entanto, segundo ele, “seus sentimentos pessoais nada tinham a ver com a teoria científica, mesmo porque tinha viva simpatia pelo negro brasileiro”. Nina 85 Ibidem, pp. 77-88. 86 Ibidem, p. 77. Na nota de rodapé da página 5, Brazil identifica os “fetichistas” malês como sunitas. O que não deixa de ser uma contradição. 87 Ibidem, pp. 90-91. 88 RODRIGUES, op.cit., p.1.

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chegou inclusive a propor que os negros e índios fossem penalmente imputáveis, ou seja, apenas relativamente capazes, o que os concederia um status equivalente ao menor de idade89: “emprestar ao negro a organização psíquica dos povos brancos mais cultos. Todavia, domina o país a simpatia da campanha abolicionista e instintivamente todos se querem por de protetores da raça negra. No entanto os destinos de um povo não podem estar à mercê das simpatias ou dos ódios de uma geração. A ciência que não conhece estes conhecimentos, está no seu pleno direito exercendo livremente a crítica (...). Para a ciência não é mais do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade”.90

É necessário, no entanto, ressaltar essas características do trabalho e da personalidade de Nina, pois seria extremamente fácil e até óbvio criticá-lo No entanto, considero mais importante, mesmo porque perene, o valor do pesquisador e de seu trabalho. Os estudos posteriores sobre os malês foram, de uma forma ou de outra, baseados em sua pesquisa. Por outro lado, os seus críticos não se revelaram à altura do médico baiano. Como se constatará em outro momento, as chamadas análises marxistas não lograram estabelecer análises duradouras, mas somente triunfos efêmeros, enquanto Nina continuou a ser paradigmático através das vicissitudes do tempo. Sobre as insurreições de africanos na Bahia do primeiro terço do século XIX ele observou: “...é mister remontar às transformações étnicas e político-sociais que a esse tempo se operavam no interior da África. Outra coisa não faziam os levantes senão reproduzir delas pálido esboço, deste lado do hauçá, sob influxo dos sentimentos de que ainda possuídas as levas do tráfico, em que para aqui se transportavam verdadeiros fragmentos de nações negras. E estas bem sabiam manter-se fechadas no círculo inviolável da própria língua, de todos desconhecidas. Essas revoltas de que estudo pouco aprofundado dos historiadores pátrios não tem feito mais do que explosões acidentais do desespero de escravizados contra a opressão cruel e tirânica de senhores desumanos, têm assim alta significação da mais acabada sucessão histórica. Elas se filiam todas às transformações políticas operadas pelo islamismo no Hauçá e no Iorubá, sob a direção dos fulos ou fulás”.91

89.SKIDMORE, op. cit., pp.75-76. 90 RODRIGUES, op. cit., pp.3-5. 91 Idem, pp. 38-39.

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Desta forma, demonstrou a dimensão africana do movimento. Tratava-se pois, de levantes com forte conteúdo cultural e político de uma realidade além-mar. Os críticos, porém, utilizaram a afirmação infeliz de Nina de que os levantes eram “pálidos esboços” das transformações ocorridas na África. Esta afirmação caracterizaria uma heresia histórica, porque negaria a contextualização e a historicidade dos levantes em terras baianas. Tentando capturar o aspecto positivo dessa afirmativa, diríamos que Nina apenas enfatizou o aspecto “estrangeiro” das revoltas, com muita sensibilidade e competência. Os levantes significaram, segundo ele, mais do que a resistência óbvia ao cativeiro, recriando em terras americanas os conflitos da África Ocidental. Seria, no mínimo, pretensioso exigir de Nina uma percepção teórica baseada nas concepções atuais. Afinal, segundo Waldir Oliveira, “temos a obrigação de compreendê-lo inserido no seu tempo, e não através de uma perspectiva posterior e atual, quando novas descobertas e concepções terminaram por pôr terra no universo ideológico do mundo do qual participara”.92 Nina realizou um estudo específico das diversas etnias afro-ocidentais, detectando os elementos étnicos que viriam compor a comunidade afro-muçulmana na Bahia e que paralelamente explicaria o desdobramento da expansão islâmica com os jihads de 1804 e 1817. Retificando em parte sua colocação herética em relação à História, observou: “... sob a ignorância e brutalidade dos senhores brancos reataram-se os laços dos imigrados; sob o duro regime do cativeiro reconstruíram, como puderam, as práticas, os usos e as crenças da pátria longínqua. O comércio continuado com a Costa d’África ia-os instruindo dos sucessos guerreiros e religiosos que por lá se desenrolavam e assim se lhes ministravam pabulum e estímulo novo para a conversão e para a luta. O islamismo organizou-se em seita poderosa ; vieram os mestres que pregavam a conversão e ensinavam a ler no árabe os livros do Alcorão, que também de lá vinham importados”.93

Pode-se perceber nesta passagem que, segundo Nina, os africanos recriaram seu mundo sob as condições adversas do cativeiro, sendo capazes de manter seus valores culturais e, em um segundo momento, iniciar um forte proselitismo religioso. Além disso, os laços com a África Ocidental foram preservados e reiterados pelas ligações comerciais. A existência de uma liderança muçulmana mencionada por Nina foi fundamental para se entender a dinâmica específica do grupo de escravos africanos muçulmanos. Mais adiante, enfatizou o “ardor e zelo religioso” como fatores que teriam levado os negros a 92 OLIVEIRA, Waldir Freitas. “Desenvolvimento dos estudos africanistas no Brasil” in: Revista da Cultura, 6, 23, 1976.

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superarem a “aniquilação da vontade”, inerente às condições do cativeiro. Nesse momento definiu o que chamou de “chave das insurreições”, ou seja, a participação de “libertos e ricos” em 1835.94 Esta afirmação foi uma dentre as muitas que viriam a provocar intensos debates sobre seu estudo no futuro. Afinal, o que seria considerado “rico” àquela altura em Salvador? Por outro lado, o que moveria os libertos a lutarem ao lado de escravos? Sem dúvida não havia ricos no movimento por conta do modelo econômico existente naquela sociedade: um africano forro, quando muito, seria um privilegiado em comparação com os cativos.95 Quanto aos libertos, segundo Reis, devido à especificidade da escravidão urbana, a “afiliação étnica” teria sido mais forte que a “influência unificadora do islã”.96 Outra crítica feita por Reis foi a generalização atribuída a Nina do Islã como único fator das revoltas. Ele não teria percebido que as “dezenas de revoltas desse período, especialmente as ocorridas nos engenhos do Recôncavo, poderiam ser resultado diretamente de condições de vida e de trabalho inaceitáveis para os escravos”.97 Crítica, por sinal, que não explicou satisfatoriamente os trezentos anos de escravidão em um território tão vasto como o Brasil sem um período crônico de trinta anos de rebeldia escrava. Quanto à afiliação étnica não demonstrou ser uma estrutura suficientemente efetiva por si só e sim uma estrutura relevante dentre outras. O simples fato de o liberto ser um privilegiado no contexto escravista seria teoricamente suficiente para se refletir algo bem mais aglutinador do que uma aliança étnica. Nina descreveu separadamente as revoltas escravas de 1807 a 1835, destacando a participação dos hauçás até a revolta de 1826. Daí em diante, verificou-se o predomínio dos nagôs nos negócios envolvendo rebelião escrava na Bahia. Sobre a rebelião de 1835, fez o relato do conflito da noite de 24/25 de janeiro e capturou através dos relatos dos revoltosos, a coincidência de datas dos calendários gregoriano e muçulmano.98 A constatação de Nina a respeito da escolha da data da revolta para o mês muçulmano de Ramadã foi fundamental, pois enfatizou sobremaneira o aspecto religioso do movimento.99

93 RODRIGUES, op. cit., p. 41. 94 Idem, p. 42. 95 FRAGOSO João & FLORENTINO. Manolo G. Arcaísmo como Projeto: mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia (Rio de Janeiro, 1790-1840). Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998, pp. 6-7. 96 REIS, op. cit., p. 95. 97 Idem, p. 95 98 Ibidem, pp. 50-56. 99 O mês de Ramadã é o nono do calendário muçulmano instituído a partir do ano de 622 DC. Neste mês, segundo a tradição muçulmana, foi iniciada a revelação do Corão através do anjo Gabriel para o profeta Muhammad. O jejum no mês de Ramadã se constitui em um dos cinco pilares da fé islâmica. Todo ano durante esse mês especifico, todos os muçulmanos jejuam, desde a alvorada até o por-do-sol, abstendo-se de comida, bebida e de relações sexuais.

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O médico maranhense radicado na Bahia concluiu ter havido uma expansão do Islã na Bahia no período que antecedeu a rebelião de 1835. O proselitismo malê alcançou seu ápice nessa época.100 Descreveu as escolas corânicas e as pequenas mesquitas aonde os malês se reuniam para se instruir na escrita árabe e na fé islâmica. Nesses locais foram encontrados os papéis árabes nas batidas policiais posteriores. Através de depoimentos dos malês, torna-se possível entender aspectos importantes da hierarquia e as atitudes dos afromuçulmanos no cotidiano. Em uma das passagens, a escrava Marcelina da nação mandubi, inquilina de alguns malês afirmou: “que os papéis achados são de reza, escritos e feitos pelos mestres que andam ensinando. Estes mestres são da nação hauçá, porque os nagôs não sabem e são convocados para aprender por aqueles e também por alguns de nação Tapa. Eles a aborreciam, dizendo que ela ia à missa adorar pau que está no altar, porque as imagens não são santos”.101

É possível perceber nesse testemunho que os hauçás na Bahia, como na África Ocidental, haviam se convertido ao Islã antes dos nagôs e, conseqüentemente, detinham maior tradição no conhecimento de assuntos ligados à religião. Na outra passagem é patente a oposição dos afro-muçulmanos ao culto católico de imagens, podendo-se notar traços perfeitamente delineados de ortodoxia islâmica. Nina relatou uma prática até então desprezada pelos estudiosos no assunto: o zakat. Este é mais um dos pilares do Islã. Em seu relato, o liberto Belchior diz que Sanim, mestre tapa declarou: “o qual era mestre de ensinar a ele respondente e aos outros a reza dos malês e também quem ensinou ou lembrou que se fizesse uma junta em que cada negro desse uma meia pataca para se tirar dali vinte patacas para comprar roupa, sendo o excedente destinado a pagar semana a seus senhores, ou para se forrarem”.102

Nina mencionou esta mesma junta como uma “caixa militar que, em seguida ou entre as prédicas e rezas das sextas-feiras e domingos...”.103 As preces ou salats de sexta-

100 RODRIGUES, op. cit., pp. 53-54. 101 Idem, p. 54. 102 Ibidem, p. 54. 103 Ibidem, pp. 54-55.

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feira são as mais importantes para os muçulmanos, e a instituição de um fundo comunitário dentro da prática islâmica é o zakat.104 Nina enfatizou em diversas passagens a agenda religiosa como causa principal da Revolta Malê. Sobre a repressão que se seguiu à revolta, destacou a lógica do sistema em deportar os libertos e açoitar os escravos. Deste modo, segundo ele, “tal a fórmula repressiva cômoda e econômica que permitia sufocar os germes de futuros levantes sem prejuízo na propriedade humana”. Era necessário punir os escravos, sem dúvida, mas ninguém precisava ficar no prejuízo por isso. De modo semelhante a Brazil, diz que as autoridades não entenderam o “espírito da insurreição”. A revolta não havia sido “uma simples insubordinação de escravos”, mas “um empreendimento de homens de certo valor”.105 Tendo como referência a atitude dos arrolados no processo, nota-se que o autor imprimiu tons de superioridade aos malês. De fato, os autos apresentaram poucos casos de colaboração com as autoridades e registraram passagens de rebeldia explícita. Os africanos, fora de dúvida, praticaram uma omerta malê. Isto explicaria a quase invisibilidade da liderança muçulmana. O gran finale dos rebeldes teria sido, na visão de Nina, a execução de cinco revoltosos por fuzilamento em vez do planejado enforcamento. Os cinco fuzilados que, na verdade, foram quatro.106 Nina observou que as “raças inferiores” possuíam um "alcance muito reduzido", tendo acesso às “religiões superiores” apenas através do sincretismo.107 O Islã não somente havia sido trazido pelos africanos, mas havia se expandido entre estes através do proselitismo dos mestres malês. A incapacidade congênita dos crioulos e mestiços teria sido a razão do fracasso do Islã na Bahia. Na visão de Nina, “o islamismo, como o cristianismo, são credos impostos aos negros”.108 No que se refere à imposição da religião, Sylviane Diouf observou: “Quando eles atingiram a outra margem do hauçá após uma terrível viagem foram convertidos a uma segunda religião monoteísta (depois da chegada do catolicismo e antes do protestantismo) na América. O Islã foi a primeira religião revelada e

104 Um dos mais importantes princípios do Islã é que todas as coisas pertencem a Deus, e que a riqueza, portanto, está confiada aos seres humanos. A palavra zakat significa tanto “purificação” como “crescimento”. Nossas posses são purificadas com a separação de uma parte delas para os necessitados e, a exemplo da poda das plantas, o corte equilibra e estimula novos crescimentos. Cada muçulmano estipula o seu próprio zakat. Na maioria dos casos isso envolve o pagamento de dois e meio por cento do capital da pessoa. Para uma visão alternativa sobre o conceito de caridade, MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: EPU, 1974, pp. 177-178. 105 RODRIGUES, op. cit., p.57. 106 Idem, p. 57. Sobre a retificação com número exato de executados ver: REIS, op. cit., p. 217. 107 RODRIGUES, op. cit, p. 59. 108 Idem., pp. 60-61.

55 sem conversão forçada na África. Em oposição ao cristianismo imposto aos africanos transportados para o Novo Mundo”.109.

Os caminhos da islamização e da cristianização na África foram obviamente distintos e se houvera uma incapacidade congênita esta seria bem mais abrangente, pois as duas fé monoteístas sofreriam influências diversas nas diferentes culturas convertidas. O também médico Arthur Ramos tornar-se-ia em parte discípulo de Nina Rodrigues. No entanto, o seu “estudo científico” se distinguiu por entender os negros de forma diferente: “como um elemento fundamental na nacionalidade brasileira que mereceriam a mesma atenção escrupulosa e estudo rígido que as do índio. Até o presente momento, o Negro tem sofrido o desprezo ou pelo menos a indiferença daqueles que procuraram conciliar as diversas unidades que contribuem para formar o todo de uma determinada cultura”.110

Ramos, mais uma vez, hierarquizou os africanos, dividindo-os em três grupos principais, mas reiterando a tese da superioridade sudanesa.111 Em certo momento ele considera os sudaneses como “aristocratas” das senzalas.112 No que se refere às revoltas escravas, Ramos não acrescentou nada aos estudos anteriores, cometendo os mesmos erros factuais e interpretações equivocadas. Quanto ao aspecto da interpretação das revoltas, disparou contra a tese marxista de Aderbal Jurema, que se iria contrapor à linha culturalista de Nina Rodrigues. Ramos constatou a particularidade das rebeliões africanas, atribuindo o fato às diferenças culturais. “A sua agressividade foi uma herança social direta das lutas seculares de religião, que asseguraram na África o domínio do Islão”.113 Edison Carneiro fez parte do “segundo momento historiográfico baiano”.114 Simultaneamente às abordagens históricas, antropológicas e sociais, estes estudos tentavam devolver ao negro a dignidade perdida. Segundo o autor, “os elementos culturais trazidos pelos escravos africanos estavam definitivamente perdidos” e a “escravidão vencera a

109 DIOUF, op.cit., p. 1. 110 RAMOS, Arthur.O negro na civilização brasileira. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil, 1971, p. 17. 111 Idem, pp. 36-37. 112 Ibidem, p. 41. 113 Ibidem, p. 52. 114 ANDRADE, Maria José Souza de. A mão de obra escrava em Salvador, 1811/1860. São Paulo: Corrupio/CNPq, 1988, pp. 14-15.

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resistência esporádica do negro – e nivelara os povos alcançados pelo tráfico”.115 No caso específico dos afro-muçulmanos, afirma que “os negros hauçás muçulmanos, que só por pouco tempo foram trazidos ao Brasil, introduziram um tipo de culto especial, de orientação maometana (malê), já desaparecido, e deixaram uma maneira de preparar arroz, arroz d’hauçá, antes de atrair impiedosa reação policial com as insurreições que naquela cidade provocaram”.116 Na visão de Carneiro, foi extremamente relevante a contribuição dos afro-muçulmanos no que diz respeito ao “arroz d’hauçá” !? Além disso, nessa passagem, ele reiterou a velha tradição do sincretismo malê. Segundo ele, os africanos eram geralmente prisioneiros de guerra e em alguns casos “uma ou outra pessoa de relativo destaque porventura caída no desfavor dos régulos”. Conclui que esses casos são exceções e que entre elas, “os hauçás e alguns negros jêjes e nagôs, que sabiam ler e escrever e, como aderentes da lei de Mafoma, professavam uma religião de importância universal”.117 Ele endossou a origem dos prisioneiros de guerra dos jihads do Sudão Central e a existência de uma liderança muçulmana. Reiterou a afirmação de que os africanos “da região da Guiné eram portadores de uma civilização mais adiantada”.118 Os hauçás, povos do “Alto Sudão”, lideraram os seus vizinhos na África durante as revoltas baianas. Numericamente de pouca expressão, são “esses negros altos, sérios, de pescoço comprido, de pele baça, e, com a idade, de cabelos branco-amarelados. Concentraram-se na Bahia, mas tanto as restrições do tráfico, como as medidas tomadas em seguida aos levantes que provocaram na Cidade de Salvador, fizeram cessar sua vinda”.119 Como se poderá notar ao longo de toda análise historiográfica dos afro-muçulmanos, a diferenciação étnica-religiosa perfeitamente natural é seguida de uma hierarquização dos africanos. A atitude malê reflete uma superioridade cultural e uma postura mais próxima do ideal ocidental. Através dela, os afro-muçulmanos se distanciam da bestialização dos africanos em geral, e se aproximam de modelos antagônicos ao europeu, mas reconhecidos como “de valor”. Em outras palavras, inimigos pressupõem rivalidades entre contendores que se equivalem. Carneiro observou que devido à característica do tráfico atlântico, a maioria dos escravos se constitui de homens adultos e que “os azares do tráfico fizeram aportar à

115 CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964, p. 1. 116I Idem., p. 2. 117 Ibidem, p. 2. 118 Ibidem, p. 43. 119 Ibidem, pp. 44-45.

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capital do país (...) os intelectuais do Alto Sudão (...)”.120 Durante o período do conde de Arcos, (1810-1818) no governo da província baiana, foi adotada a estratégia de permitir “que várias nações realizassem livremente as suas festas tribais, que ajudavam a manter as diferenças nacionais e retardavam a união da massa escrava em torno de objetivos comuns”.121 Segundo Carneiro, essa “política maquiavélica do Conde de Arcos” não foi capaz de “refrear, entre os negros, o desejo comum de liberdade. Os negros muçulmanos, mais inteligentes, mais solidários entre si, organizavam-se, já sob o governo do conde de Arcos, para a guerra santa contra os infiéis”.122 Se por um lado a historiografia tratou as insurreições de maneira extremamente simplista como jihads, outra vertente insistiu em uma análise marxista na explicação da rebeldia afro-muçulmana. O modelo escravista obedece a uma lógica de mercado estabelecida nos dois lados do Atlântico. Ideologicamente, ele é fruto de uma sociedade altamente excludente, na qual a escravidão é sistematicamente praticada.123 Entre os muçulmanos e na África em geral, a escravidão fora igualmente parte integrante do cotidiano dessas sociedades, com práticas consideravelmente distintas. Florentino, por exemplo, critica a teoria exógena de Gorender. Segundo ele, “todo lugar e época que conheceram concentração de riqueza e de poder, como a África de antes do tráfico, e, sobretudo depois de sua implementação, também testemunharam a exploração do homem pelo homem”.124 De forma análoga Alencastro observou: “...na África quinhentista o fator que, em última instância, favorece o tráfico negreiro é o comércio continental de longo curso, difundido nas regiões subsaarianas pelo avanço do Islã e os intercâmbios com o Magrebe. Embora com menor intensidade que no Oeste e no Norte do continente, esse modo de permuta também rolava na África Central ocidental antes dos Descobrimentos”.125

No seu estudo sobre a escravidão no Califado de Sokoto, no século XIX, Lovejoy observou: “a escravidão foi uma instituição fundamental no Califado de Sokoto durante o século XIX. Os escravos eram virtualmente usados em todos os setores da economia e da

120 Ibidem, p. 64. Sobre a demografia do tráfico ver, entre outros: FLORENTINO, op. cit., p. 50 et passim. Especificamente sobre Bahia e África Ocidental, ver: LOVEJOY, Background to Rebellion e VERGER, op cit., 121 CARNEIRO, op. cit., p. 67. 122 Idem., p. 68. 123 FRAGOSO & FLORENTINO, op.cit., pp. 16-17 e ALENCASTRO, Luiz Felipe. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 124 FLORENTINO, op. cit., pp. 74-75. 125ALENCASTRO,op. cit, p. 44.

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sociedade do califado”.126 Portanto, a escravidão possuía raízes estruturais na AfroAmérica, independente dos ambientes culturais. A rebeldia malê não se caracterizou pela sua superioridade cultural, mas antes por fatores que se estudarão mais adiante, como o choque ideológico de duas culturas concorrentes, a origem dos revoltosos, além de tensões provocadas pela dinâmica interna própria do tráfico. Estas tensões eram caracterizadas pela alta taxa de masculinidade adulta, pela conseqüente fragilidade de vínculos de parentela através de famílias extensas ou nucleares, pelo modus vivendi específico da escravidão urbana, e por último, pelas considerações ditas locais, a partir do meio-ambiente baiano como propício à rebeldia escrava. 127 Roger Bastide dedicou um capítulo do seu livro ao “Islã Negro no Brasil”.128 Na verdade, o estudioso francês seguiu de perto as teorias de Nina Rodrigues, Etienne Brazil e Arthur Ramos: sincretismo, guerra santa, sectarismo e algum flerte com o materialismo histórico. Segundo ele, “salvo raras exceções”, eram “antigos negros animistas islamizados e não muçulmanos de origem”. De acordo com essa perspectiva só poderia ser muçulmano quem nascesse como tal. Foi “esse sincretismo muçulmano-fetichista que foi introduzido no Brasil e não o puro islamismo de Maomé”.129 Ao tentar analisar as causas do desaparecimento dos afro-muçulmanos, Bastide diz que estes eram “muçulmanos passivos, isto é, negros islamizados, convertidos e não semitas puros”. Nessa versão, apenas os ditos semitas seriam capazes de assimilar a religião islâmica pois aos negros faltava o “dom do proselitismo” e restava resistir “o maior tempo possível”.130 Na explicação de Bastide, o êxito do Islã na África contrastou-se com o fracasso na América. O Islamismo na África Ocidental “adapta-se à sensualidade do negro”. No Brasil, porém, isto se inverteu e o “catolicismo é a religião mais acolhedora”.131 O muçulmano só serviria para liderar revoltas e o branco representaria a possibilidade de liberdade através da alforria. Para Bastide o Islã era sinônimo de fanatismo. Segundo Reis, além do etnocentrismo latente de Bastide, o gallus africanus viu o Islã baiano com “olhos

126 LOVEJOY, Paul E. (org.). The ideology of slavery in Africa. Beverly Hills/London: Sage, 1981, pp. 201203. 127 FLORENTINO, Manolo G. & GÓES, Jose Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790- c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, pp. 27-37 e alternativamente, SLENES, Robert W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, pp. 16-17. 128 BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira/UNESP, 1971. 129 Idem, p. 204. Antes do Islã, na península arábica, a religião era também animista. De acordo com a tradição islâmica, apenas Muhammad e seu primo e genro Ali ibn Abu Talib não teriam professado nenhuma outra religião antes do Islã. 130 Ibidem, p. 217. 131 Ibidem, p. 218.

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nagôs”.132 Geertz enfatizou que apenas “os românticos ou os espiões” desejam se tornar nativos. Restaria saber aonde queria chegar Bastide.133 Abelardo Duarte escreve na década de 50 e, apesar do título, seu estudo também analisa as insurreições escravas baianas.134 Duarte discorreu sobre o Islã na África e sua chegada ao Brasil com os “sudaneses islamizados”, propondo uma análise historiográfica de vários autores, inclusive muitos desconhecidos ou ausentes das discussões sobre o tema.135 Esses autores realizaram estudos sobre os afro-muçulmanos fora do eixo baiano, principalmente em Pernambuco e Alagoas. É interessante notar a distinção feita entre os grupos muçulmanos das Alagoas e os do Rio de Janeiro e da Bahia. Na sua concepção, os primeiros seriam sincréticos e os outros ortodoxos. Seguindo esse raciocínio, os negros muçulmanos não usariam “suas insígnias religiosas para brincar”, pois eram “rígidos no seu ponto de vista religioso” e, segundo ele, completamente devotados à ortodoxia islâmica, apesar da “sua situação social”. Essa ortodoxia explicaria o fanatismo que resultaria especificamente na Revolta Malê. O fanatismo como algo inerente à fé islâmica exortaria ao jihad, sendo a conquista do paraíso a recompensa daqueles que morressem em combate. Duarte simplificou, confirmando a tradição historiográfica. Desse modo, apesar de afirmar que se dedicava, “com espírito científico” aos estudos das “sobrevivências negromuçulmanas”, ele propõe que as convicções religiosas - leia-se o fanatismo – foram a causa dos “levantes islâmicos em vários pontos do território brasileiro”.136 Existe uma dificuldade visceral em se entender a prática islâmica ortodoxa e ao mesmo tempo não fanática. No dizer de Reis, até Bastide ,“um autor penetrante” segundo ele, caiu na armadilha eurocêntrica-cristã de uma civilização islâmica indissociável do fanatismo. Ainda segundo Reis, Bastide teria interpretado o comportamento considerado austero e reservado com sectarismo e intolerância.137 Bastide, apesar do verniz acadêmico, era um orientalista com traços da arrogância colonialista européia. Gilberto Freyre não inovou necessariamente no que diz respeito às revoltas escravas na Bahia. Em seu clássico publicado no início da década de 30, as rebeliões escravas são

132 REIS, op. cit., pp. 114-115 e FRY, Peter. “Gallus Africanus Est, ou como Roger Bastide se tornou africano no Brasil” in: SIMSON, Olga von . Revisitando a Terra de Contrastes: a atualidade da obra de Roger Bastide. São Paulo: FFLCH-CERU/USP, 1986, pp. 31-45, citações p. 34 e pp. 37-38. 133 GEERTZ, op. cit., p. 23. 134 DUARTE, Abelardo. Negros muçulmanos nas Alagoas (Os malês). Maceió: Caetés, 1958. 135 Idem., p. 19. 136 Ibidem. pp. 20-21. 137 SILVA, Eduardo & REIS, João José. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, pp. 110-111.

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mencionadas de forma fortuita.138 Freyre baseou-se nos trabalhos de Etienne Brazil e principalmente de Nina Rodrigues. Ele chamou a atenção para a diversificação da origem dos cativos africanos e a diferença “notável” entre bantos e sudaneses.139 Na visão de Freyre esses afro-muçulmanos detinham uma “cultura superior não só aos indígenas como à grande maioria dos colonos brancos”. Dessa maneira, os letrados muçulmanos, em sua opinião, encontravam-se entre portugueses e filhos de portugueses ignorantes. Advertiu, no entanto, para a romantização do evento que, segundo ele, destacou-se das simples revoltas de escravos dos tempos coloniais e merece lugar entre as revoluções “libertárias” de sentido religioso, social ou cultural.140 Como já foi comentado anteriormente, as revoltas escravas baianas, em geral, e a malê em particular, possuem uma especificidade única. Portanto, incluí-las entre as “revoluções libertárias”, seja lá o que isso signifique, foi uma generalização equivocada de Freyre. O mestre de Apicucos estabeleceu uma discussão sobre a questão étnica africana. Há uma convergência de conceitos, entre ele e Nina, no que diz respeito à superioridade sudanesa sobre os bantos. Na versão freyriana, porém, o viés é cultural. Os negros oriundos da África Ocidental possuíam sangue hamítico, “estoques” bérberes, logo são os “negros de raça branca” descritos por Nina Rodrigues.141 Em um outro momento, ele discutiu com o célebre prosélito do arianismo brasileiro, Oliveira Vianna. Em meio a essa polissemia, Freyre conclui, de forma parcial, que a América Inglesa não recebeu “representantes da cultura maometana” na mesma proporção da América Portuguesa.142 No entanto, existem diversos trabalhos sobre a presença muçulmana nos Estados Unidos, inclusive sob a perspectiva de um estudo de caso inexistente no Brasil.143 A variável determinante da dinâmica brasileira foi sem dúvida o desenrolar dos acontecimentos no Sudão Central e os contingentes quantitativos e qualitativos enviados pelo tráfico atlântico. Freyre buscou explicação para a diversidade africana, afirmando que Pernambuco e Bahia, devido à superioridade econômica, puderam escolher a “melhor gente africana” e os “escravos mais caros”.144 Neste caso, o sociólogo e antropólogo não levou em consideração que os fluxos de cativos possuíam uma lógica própria.

138 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987, pp. 310-312. 139 Idem, p. 298. 140 Ibidem, p. 299. 141 Ibidem, p. 305. 142 Ibidem, p. 306. 143 Cf. DIOUF, op. cit., e AUSTIN, Allan D. African Muslims in antebellum America: Transatlantic stories and spirituals struggles. New York & London: Routledge, 1997. 144 FREYRE, op. cit., p. 306.

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O tráfico de escravos da África Ocidental e da África Central Atlântica para Salvador e Rio de Janeiro, respectivamente, não estava subordinado à “superioridade econômica” do nordeste brasileiro neste momento. Constata-se, desde a segunda metade do século XVIII, a mudança do eixo econômico da colônia na direção das minas do sul. Dessa maneira estabelecem-se dois fluxos distintos de cativos : um a partir do golfo de Benin para Salvador e o outro de Angola e Moçambique para o Rio de Janeiro. Estes dois vetores principais funcionavam fora do controle metropolitano e com regras de escambo particulares (tabaco x escravos na Bahia, e aguardente x escravos no Rio de Janeiro). Não se pode evidentemente ignorar o fator geográfico do tráfico. As distâncias, o regime de correntes, e os ventos favoreceram sobremaneira a formação dos tratos oceânicos. Segundo Florentino, no caso do eixo Angola-Rio de Janeiro, o “regime de ventos e das correntes eram altamente favoráveis ao contato entre o Brasil e Angola”.145 Alencastro lembra que se “zarpava com facilidade de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro até Luanda ou a Costa da Mina, e vice-versa, a navegação luso-brasileira será transatlântica negreira”.146 O padre Antônio Vieira, no seu sermão XXVII, via os “ventos do tráfico escravo africano” como uma presciência divina para a salvação dos pagãos africanos.147 Os preços dos escravos nas duas praças principais do Brasil aparentemente equivaliam-se, pelo menos no que diz respeito ao período estudado. Em uma rápida comparação entre as tabelas nos trabalhos de Florentino e Maria José de Souza Andrade não se encontram diferenças significativas de preços de cativos em períodos semelhantes.148 Freyre, nesse particular, levando-se em conta a qualidade e a extensão do seu trabalho, vai endossar, sob um viés cultural, o anátema sobre os africanos “bantus” ou mesmo os sudaneses não muçulmanos. Se, por um lado, a historiografia tratou as insurreições de maneira extremamente simplista como jihads, outra vertente insistiu em uma análise marxista que falhou no entendimento e na explicação da rebeldia afro-muçulmana. Em terras islâmicas na África, a escravidão

foi

parte

integrante

do

cotidiano

dessas

sociedades

sob

práticas

consideravelmente distintas de outras sociedades africanas e ocidentais. Os estados islâmicos interpretaram a antiga tradição escravista de acordo com uma nova concepção religiosa, mas com práticas similares às anteriores. A escravidão foi concebida como forma de incorporar pagãos à comunidade islâmica. Em contrapartida, nas sociedades não-muçulmanas, a escravidão estava baseada em uma estrutura de parentela e 145 FLORENTINO, op. cit., p. 115. 146 ALENCASTRO, op. cit., p. 63. 147 Idem, p. 63.

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etnicicidade. Mesmo na África, portanto, a escravidão sofreu transformações e possuía especificidades nas savanas setentrionais, na região centro-ocidental de Angola e no Zaire, assim como em outras regiões.149 Na América, muitas instituições do escravismo eram semelhantes a qualquer sociedade escravista em qualquer época e lugar, como, por exemplo, a percentagem da população escrava, a concentração de escravos em extensas unidades econômicas e o grau de coerção física e psicológica empregados para controlar a escravaria. No entanto, segundo Lovejoy, a escravidão na América revestiu-se de duas características singulares: a racialização do tema como justificativa de controle da população escrava e a extensão de um sistema econômico para a produção de commodities destinados ao mercado internacional. Assim, uma série de características presentes em outras sociedades escravas foi ausente ou irrelevante na América. Entre essas características nós citaríamos, ainda de acordo com Lovejoy, o uso de escravos no serviço público, a existência de eunucos e o sacrifício de escravos em funerais e outras ocasiões. As similaridades e diferenças são identificadas com objetivo de se contrapor à idéia de que a escravidão seria uma instituição americana.150 Se Bastide foi chamado Gallus Africanus, Verger poderia ser chamado de Gallus Baianus? Fotógrafo e etnólogo, doutorou-se em Sorbonne no ano de 1966, com a tese que deu origem à obra "Fluxo e refluxo". Tendo como ponto de partida a África Ocidental, montou um trabalho baseado em vasta documentação acumulada durante quarenta anos de pesquisa. Uma pesquisa abrangente e ao mesmo tempo precisa sobre o tráfico de africanos entre a costa do Benin e a Bahia. Verger radicou-se em definitivo na Bahia e construiu uma relação profunda com a cultura negra, em especial com o candomblé. Na sua obra clássica, consagrou um capítulo às revoltas africanas na Bahia.151 Na introdução, ele deixou antever a forte influência iorubá e sua especificidade em terras baianas. Devido, sem dúvida, a uma variável peculiar do tráfico atlântico, numerosos prisioneiros de guerra e clérigos originários de extratos mais elevados destas culturas foram enviados para este lado do mundo. A questão da exclusividade baiana no que concerne à rebeldia africana foi explicada por esta variável do tráfico. O tabaco baiano ligou a província ao ciclo do tráfico na Costa da Mina e, conseqüentemente, aos acontecimentos político-sociais que definiram a oferta de cativos na região do Sudão Central.152 Basicamente sobre as rebeliões Verger 148 ANDRADE, op. cit., p. 167 e FLORENTINO, op. cit., p. 160. 149 LOVEJOY, Transformations in Slavery, pp. 10-14. 150 Idem, p. 8. 151 VERGER, op. cit., pp. 329-353. 152 Idem, pp. 19-20.

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não acrescentou muito, mesmo porque se limitou a utilizar, sem mudanças consideráveis, o trabalho de Nina Rodrigues. Sua contribuição mais importante foi sobre a devassa que se seguiu à revolta, com a reprodução de trechos não publicados e a montagem de tabelas sistematizando o “rol dos culpados”, permitindo uma análise mais detalhada dos africanos acusados.153 Sylviane Diouf é autora do mais recente trabalho publicado sobre os escravos muçulmanos na América. No caso específico dos malês, trabalhou a partir dos estudos clássicos desde Nina Rodrigues até João Reis e Paul Lovejoy. Além disso, utilizou um impressionante acervo de relatos de viajantes principalmente na África Ocidental. Não há, portanto, nenhum acréscimo de documentação nova ao tema, mas sua abordagem acrescentou elementos novos. Diouf, juntamente com Lovejoy, representam novas direções ao que parecia ser definitivo no trabalho de Reis. Seu estudo demonstra de forma inequívoca um alto grau de conhecimento do Islã em geral, e suas particularidades no contexto da África Ocidental. Diferentemente de Lovejoy, a autora vislumbra de modo sensivelmente mais suave o impacto do Islã na instituição da escravidão na África: “A adoção da lei islâmica teve efeito decisivo sobre a escravidão na África Ocidental; sua adoção representou a redução das justificativas de escravização e simultaneamente o encorajamento da manumissão. O Islã não condenou nem proibiu a escravidão, mas estabeleceu que a escravidão apenas poderia ser praticada sob duas condições: indivíduos nascidos de ventre escravo e prisioneiros de guerra “pagãos”. Os cativos podiam ser legalmente escravizados na condição de kafir (pagão), que originalmente tenham se recusado a se converter e posteriormente tenham aceitado a proteção dos muçulmanos. Na teoria, um muçulmano nascido livre não poderia ser escravizado. Por outro lado devido à inexistência de prisões, podia ser condenado à morte através de um processo judicial se cometesse homicídio. Assim como os que cometiam pequenos crime, incluindo dívidas, podiam ter seus bens seqüestrados ou receber castigos corporais”.154

No entanto, segundo Lovejoy, entre a teoria da lei islâmica e a prática por seus governantes houve discrepâncias e interpretação e aplicação em diferentes épocas e situações.155

153 Ibidem, pp. 355-357. 154 DIOUF, op.cit., p. 10. 155 LOVEJOY, Transformations in Slavery, pp. 29-36.

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Sobre a Revolta Malê de 1835, Diouf enfatizou de forma específica o papel do Islã no movimento, mas, ao contrário de outros estudiosos concluiu que não houve condições para um jihad na ocasião. Segundo ela, para se caracterizar um jihad seria necessária a presença de quatro condições: os muçulmanos serem oprimidos até o ponto de não poderem praticar sua fé; os muçulmanos perfazerem pelo menos a metade da população local; os muçulmanos contarem com as mesmas armas dos seus adversários; o território islâmico ter sido invadido. Portanto, em sua opinião, apenas a primeira condição para um jihad teria ocorrido em 1835. Esse quadro apresentado pela autora nos parece demasiado esquemático. Segundo a mesma concepção islâmica invocada por Diouf, podem-se apresentar razões mais que suficientes para que um empreendimento islâmico desse tipo tivesse efetivamente ocorrido na ocasião. Não é de forma nenhuma relevante, nesse momento, discutir as sutilezas da doutrina islâmica a esse respeito. No entanto, Diouf, com essa afirmação, assumiu uma posição intermediária dentro das correntes interpretativas das rebeliões africanas na Bahia. Não é demais lembrar que, se o esquema acima fosse efetivamente seguido à risca, a expansão a partir do século VII não teria acontecido e o Islã provavelmente ficaria restrito, até hoje, aos desertos da península arábica. Ao mesmo tempo em que faz concessões no que se refere à tese da “guerra santa”, a autora enfatizou sobremaneira a participação muçulmana na revolta. Os malês utilizaram todo seu arsenal religioso na ocasião. Ela especifica as consultas feitas aos marabouts que então realizam a khalwa (o retiro durante o qual o líder jejua, reza e pratica o dhikr156) com o intuito de tentar pressentir o sucesso ou fracasso do empreendimento. Os imans dirigem preces especiais para pedir orientação divina, as chamadas salat al istikharah, que são feitas em situações limite, como, por exemplo, às vésperas de um empreendimento militar. Portanto, concluiu Diouf, os malês se utilizaram dos recursos materiais, espirituais e os do ocultismo para se assegurar do êxito da revolta. A astrologia, a numerologia, a recitação do Corão, o simbolismo de certas cores e a escolha de certas datas são práticas comuns do sufismo nessas ocasiões. Os revoltosos não teriam saído às ruas para defender a pureza, como o shehu Dan Fodio fez na África, e nem buscavam converter os infiéis. Os inimigos não foram definidos em termos de religião: a guerra era contra os brancos. É um erro, segundo ela, estereotipar qualquer ação militar ou revolta empreendida por muçulmanos como um jihad.157

156 Invocação, lembrança ou menção ao nome de Deus (dhikr Allah). 157 DIOUF, op. cit., p. 159.

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Diouf não leva muito em consideração os testemunhos de que havia um plano para matar os crioulos e escravizar os mulatos, ou seja, as distensões existentes dentro da escravaria não devem ser superestimadas. Segundo ela, se os rebeldes foram capazes de elaborar um plano de rebelião tão sofisticado, seria mais lógico que demonstrassem mais sagacidade, afinal todos os africanos reunidos representavam 34% da população de Salvador, em oposição aos 38% de crioulos e mulatos e os brancos com 28%. Partindo dessa premissa, a autora atesta que os africanos tinham consciência de sua inferioridade numérica. Mesmo no caso da população branca, lembra que os revoltosos não usaram de violência indiscriminadamente, de acordo com o relatório do presidente da província. Portanto, na sua interpretação, os africanos, conscientes da dificuldade de sua empreitada, teriam, ao contrário do que se afirma, tentado atrair o maior número possível de negros africanos ou crioulos. Corroborando o conceito de Reis, diz que a revolta foi uma conspiração muçulmana e um levante africano. Indo mais longe, porém, sugere que os africanos contaram com um pequeno número de crioulos em suas fileiras, sem os quais não teriam a menor chance de sucesso. Esse apoio não deve ter sido planejado inicialmente, mas com o desenrolar dos acontecimentos essa possibilidade teria se tornado inevitável.158 Ainda de acordo com Diouf, uma vez que ninguém confessou ou explicou as razões da revolta de forma objetiva, é possível se especular. A resistência à escravidão seria o óbvio, pois a participação em grande número de libertos indicaria que os revoltosos buscavam uma liberdade real e não nominal, já que a alforria não garantia a entrada em uma sociedade mais justa, à medida que os libertos continuavam a ter que prestar obediência aos ex-senhores. A liberdade não significaria apenas o direito de praticar sua fé; a destruição do poder branco representava o fim da opressão e da humilhação, e o restabelecimento de uma ordem social africana baseada em valores africanos. No caso dos afro-muçulmanos, isso significava viver de acordo com suas crenças, costumes e convenções. No cotidiano da escravidão, no entanto, era preciso a todo o momento se submeter a constantes violações desses valores. Esses afro-muçulmanos não eram aculturados, nem introjetaram o mundo branco, europeu e cristão. Antes, suportaram o insuportável e recriaram seu mundo islâmico de forma muito particular. Com a ajuda da revolta, os malês sonharam em transformar essa dicotomia cultural em um único mundo.159

158 Idem, p. 160. 159 Ibidem, p. 161.

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Materialistas Clovis Moura, na década de 50, foi o pioneiro na tentativa de explicar a rebeldia escrava baiana a partir de uma análise estrutural.160 Segundo Reis, ele teria sido o primeiro, depois de Brazil e de Nina Rodrugues, a estudar a documentação sobre as revoltas escravas.161 Moura buscou explicação para o fenômeno através da conturbada situação da província baiana nas primeiras décadas do século XIX. Nesse aspecto avançou no que diz respeito à constatação da existência de uma imensa população escrava, e de uma sociedade excludente e dependente das vicissitudes das flutuações da economia-mundo.162 Sobre a rebelião de 1835, particularmente, ele se mostra mais preocupado com o “período organizativo da revolta” de que com sua “fase heróica”. O período embrionário da “revolução” não poderia ser desprezado.163 Desse modo, através da simbologia, o autor conseguiu oferecer um panorama detalhado da existência de um planejamento e de uma liderança articulada entre os malês.164 Luiz Luna escreveu sobre o assunto em um momento extremamente delicado da história recente.165Isso talvez explique em parte seu tom panfletário em relação aos malês. As revoltas baianas, segundo ele, não eram movidas pelo mesmo sentimento “de libertação” dos quilombos. Eram manifestações de protesto, que, por seu fundo “religioso islamita”, pregavam guerra contra qualquer um “- brancos ou pretos – que não professassem sua crença”. As revoltas escravas visavam unicamente “matar brancos, tomar o Poder e banir a religião cristã, em nome de Alá”.166 Luna diz que a agressividade dos escravos era herança da violência do Islã na África, violência esta que, segundo ele, teria assegurado seu domínio na África. Ele quase lamenta o seu caráter "religioso, sectarista e fanático, impregnado de misticismo e superstições de toda ordem”. A ideologia revolucionária dos africanos foi impulsionada por “mandingas, talismãs, despachos e feitiçarias” o que “prejudicava o movimento revolucionário” e impediu as massa escravas “de se articularem contra o “regime”.167

160 MOURA, Clovis. Rebeliões da senzala (quilombos, insurreições,guerrilhas). São Paulo: Zumbi, 1959, pp. 145-185. 161 REIS, Escravidão e invenção da liberdade, p. 106. 162 MOURA, op. cit., pp. 129-141. 163 Idem. p. 171. 164 Ibidem, pp. 172-179. 165 LUNA, Luiz. O Negro na luta contra a escravidão. Rio de Janeiro: Leitura, 1968. 166 Idem. p. 131. 167 Ibidem, p.132.

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O autor especula que a falta de consciência revolucionária dos africanos teria impedido o golpe fatal no sistema. Afinal, eles deveriam ter levado em consideração a “situação nacional”.168 Luna, nessa passagem, culpa-os pela sua alienação religiosa e pela falta de visão, por não aproveitarem o período conturbado da Regência para criar uma “Sierra Maestra” no interior da Bahia. Sobre os malês, ele afirmou que não tinham “qualquer objetivo contrário ao regime de cativeiro” pois planejavam perpetuar a escravidão visando principalmente os mulatos. Estes seriam, segundo ele, o alvo preferencial tanto dos hauçás como dos nagôs.169 Décio de Freitas, em meados da década de 70, publicou um livro dedicado à Revolta Malê.170 Na sua segunda edição de 1985, resolveu mudar o título de “Insurreições Escravas” para “Revolução dos Malês”. Freitas foi o último autor puramente marxista a escrever sobre as revoltas escravas baianas. O seu trabalho, sem dúvida, inspirou os estudos que viriam nas décadas seguintes. Segundo autor, os escravos se organizaram em “formas superiores de luta e tentaram se libertar mediante a destruição do sistema escravista”.171 Dessa forma, engrossou o coro dos que gostariam de enxergar de forma utópica a revolta de 1835. Freitas tentou usar o fantasma dos malês como bandeira política à serviço de uma esquerda já combalida pelos chamados anos de chumbo. Criticou a versão marcadamente culturalista de Nina Rodrigues de sua “guerra santa”, apresentando um argumento tão ou mais fantasioso de que outras regiões do Novo Mundo, com maiores concentrações de afro-muçulmanos, não produziram insurreições escravas.172 Era de se esperar que o autor pudesse pelo menos citar uma dessas regiões de concentração maciça de afro-muçulmanos. O autor concentrou seus esforços em torno da hipótese de que as revoltas se explicariam “na dialética de uma pluralidade de causas e tinham por objetivo a destruição do sistema escravista”.173 Essa “pluralidade de causas” iria igualmente fazer escola. O mais interessante no estudo de Freitas foi sua análise da situação sócio-econômica da província baiana. No entanto, ele comete um equívoco ao tentar passar a imagem de Salvador como “maior centro urbano do Brasil e um dos maiores, se não o maior, de todo Novo Mundo”.174 A população de Salvador em 1835, segundo estimativa de Reis, andava pela 168 Ibidem, p.133. 169 Ibidem, p.138. 170 FREITAS, Décio. A Revolução dos Malês. Porto Alegre: Movimento, 1985. 171 Idem, p. 9. 172 Ibidem, p.10. 173 Ibidem, p. 10. 174 Ibidem, p. 15.

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casa dos 65.500 habitantes.175 Em 1821, o Rio já apresentava uma população total de 86.323 habitantes.176 Em 1838, por exemplo, exibia apenas em termos de população escrava o número de 55 mil indivíduos, que em 1849, já atingiam 78.855 escravos.177 Segundo Karasch, a cidade na década de 30, atingiu picos de 50% de população escrava.178 Em Salvador, a população escrava em 1835, constituía 42 % do total.179 Esses números demonstram que o Rio de Janeiro, por exemplo, era uma cidade igualmente negra, inclusive com estruturas sócio-econômicas similares. Freitas fez afirmações sem citar fontes quando tentou claramente passar a idéia de Salvador como detentora de "singularidades", como grande percentagem de escravos de ganho e com índices de alforria desproporcionalmente altos em relação ao resto do Brasil. Karasch demonstrou reiteradamente a utilização do trabalho de ganho no Rio de Janeiro, assim como índices de alforria bastante similares. Ainda segundo Karasch, é um mito, persistente aliás, que o Rio perdera suas tradições africanas. No século XIX, foram trazidos para o Rio quase 1 milhão de africanos. Mesmo levando-se em consideração que a maioria não tenha lá permanecido, o número é suficiente para se auferir o impacto cultural africano na cidade.180 De acordo com Freitas, dentro do sistema escravista, os libertos não tinham alternativa senão comprar escravos. “Alguns eram senhores de muitos escravos. Apesar disso, impossibilidade de ascensão econômica tornava-os solidários com os escravos. Tanto ou mais que estes estavam vitalmente interessados na supressão do sistema escravista o que explica o fato de que em todas as insurreições escravas de Salvador tivessem uma participação e exercessem, quase sempre, um papel de liderança”.181

Em toda documentação se encontra apenas um liberto malê, Gaspar da Silva Cunha, que possuía um escravo congo chamado José.182 Se esse era um padrão, não era o caso dos libertos malês.183 Sobre a questão da liderança, ao contrário da assertiva do autor, os libertos sem dúvida tiveram participação minoritária, mas não “quase sempre de

175 REIS, op. cit., p. 5. 176 CHALHOUB, op. cit., pp. 186-187. 177 KARASCH, op. cit., p. 107. 178 Idem, pp. 186-187. 179 REIS, op. cit., p.6. 180 KARASCH, op. cit., p. 27. 181 FREITAS, op. cit., p. 18. 182 REIS, op. cit., p. 122. 183 OLIVEIRA, op. cit., p. 41.

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liderança”. Dentro da hierarquia mapeada por Rodrigues e Reis, entre outros, a liderança foi predominantemente escrava.184 Na interpretação de Freitas, os libertos eram os únicos aliados dos escravos, ao contrário das outras classes, favoráveis à manutenção do regime. Dessa maneira incorreu em um erro de avaliação, pois os escravos e libertos em questão pertenciam a um grupo minoritário e específico da escravaria de Salvador. A narrativa do autor passou a idéia falsa que essas alianças eram um padrão geral. Nem sequer lhe ocorreu a possibilidade da existência de outros vínculos mais importantes entre esse grupo que os de classe. A origem comum tão flagrantemente visível desses indivíduos foi simplesmente descartada por Freitas. Em todo texto, o autor insistiu que a luta dos malês tinha como objetivo a destruição do sistema escravista. Sob essa perspectiva, houve uma tentativa de mistificar e de se utilizar, de forma equivocada, uma insurreição de africanos muito específica em favor de concepções pessoais. Afinal, pode o oprimido tornar-se opressor? Ou em uma análise antropológica mais equilibrada, não é essa uma questão pertinente? Os afromuçulmanos eram originários de sociedades com uma longa tradição escravocrata que diferia do modelo ocidental, sem dúvida, mas que não a excluía em absoluto. Teriam os malês se tornado subitamente abolicionistas ferrenhos em terras baianas? Desde os primeiros estudos sobre revolta, foi mencionado o plano malê de matar brancos, cabras, crioulos, assim como outros africanos que não tomassem parte na insurreição. Nesse hipotético plano, os mulatos seriam escravizados. Não foi encontrado documento que o confirmasse. No entanto, através de testemunhos, foram relatadas as intenções dos malês de simplesmente matar a todos em “terra de branco” ou poupar apenas os mulatos como escravos.185 Freitas adotou a divisão clássica das insurreições em hauçás e nagôs. Para explicar as primeiras, concluiu que nestas “a arregimentação se processou na base da solidariedade étnica, da influência lingüística e da comum origem nacional...”. Mais adiante acrescentou que os muçulmanos, e mais especialmente os sacerdotes, teriam desempenhado um papel dirigente, “dado o seu nível cultural superior aos dos animistas”. Finaliza afirmando que “a arregimentação se processou no nível político...”.186 Buscando explicação nos conflitos africanos, relatou apenas o primeiro jihad de Uthman dan Fodio, esquecendo a importância da Insurreição de Ilorin em 1817. No que se 184 Dos 7 principais líderes em 1835, 5 eram escravos; ver: RODRIGUES, op. cit., e REIS, op. cit., pp. 129134. 185 Devassa do Levante, vol 62, p. 130.

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refere ao primeiro, simplificou afirmando que os indivíduos lançados na diáspora eram animistas. Apesar de bem-sucedidos na sua maior parte, os jihads de 1804 e 1817 lançam milhares de homens, de ambos os lados, no tráfico atlântico. Portanto, mesmo fazendo parte dos exércitos vencedores, contingentes de muçulmanos são capturados e vendidos como escravos.187 Além dessas baixas de guerra, alguns líderes religiosos podem ter sido enviados em um exílio-escravo para a América.188 Estudos recentes demonstram que a dinâmica do tráfico na África Ocidental obedeceu a certos padrões bem demarcados. A possibilidade da vinda de hauçás do culto bori para o Brasil estaria na contra-mão do padrão do tráfico do Sudão Central.189 O culto bori é sabidamente feminino, em outras palavras, uma prerrogativa feminina dentro da comunidade hauçá.190 De acordo com os padrões do tráfico africano, mulheres eram enviadas para o norte, via Saara, um mercado tradicionalmente consumidor de mulheres e crianças. Os indivíduos do sexo masculino foram enviados para o trato atlântico. Esse padrão se não demonstra de forma conclusiva a impossibilidade do culto bori entre os hauçás, limita sobremaneira as tentativas de identificar qualquer manifestação religiosa hauçá como supostamente bori. Freitas, no entanto, ofereceu de longe a análise mais fundamentada e competente em comparação com outros autores materialistas. Seu trabalho foi comprometido por ser demasiadamente esquemático. A História, mais uma vez, virou ficção, vítima das vicissitudes do presente; o que realmente interessava era utilizar a revolta africana para uma causa específica. Certamente, os escravos e libertos malês perderiam muito do seu glamour aos olhos de Freitas, ao se atestar que a escravidão não estava alijada do mundo real dos africanos em 1835. Reis, em certo momento perguntou desafiadoramente: "Quer isso dizer que não houve rebeliões escravas e sim africanas ou islâmicas na Bahia ?191 A resposta poderia ser que a rebelião de 1835 foi africana no todo, ideologicamente islâmica e escrava por contingência.

186 FREITAS, op. cit., p. 28. 187 LOVEJOY, “The Central Sudan and the Atlantic Slave Trade”, pp. 15-20. 188 LOVEJOY, Paul E. “Identifying Enslaved Africans in the African Diaspora” in: LOVEJOY, Paul E. Identity in the shadow of slavery. London: Cassel Academic, 1999, p. 8. 189 MONTANA, Ismael Musah. The Hatk al-Sitr of al-Timbuktawi: An early Ninetheenth Century account of Bori practice in Tunis. Nigerian Hinterland Project, "Liberté, identité, intégration et servitud", Al Akhawayan University (Morocco), June 2000, pp. 1-17. 190 LOVEJOY, Paul E. “Concubinage in the Sokoto Caliphate (1804-1903)”, in: Slavery and Abolition XI, 1990, p. 173. 191 SILVA, & REIS op.cit., p. 107.

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Híbridos Genovese elaborou um modelo explicativo entre as diversas revoltas escravas na América e algumas condições específicas poderiam ser aplicadas inclusive às revoltas baianas.192 Porém, sua periodização não se sustenta ao dividir as rebeliões entre antes e depois das revoluções americana e francesa no final do século XVIII. Segundo ele, as insurreições escravas de antes do final do século XVIII apenas tentavam assegurar a liberdade. Após as revoluções burguesas é que houve uma mudança radical, ou seja, as revoltas escravas inspiradas na Revolução Francesa, por exemplo, visariam à eliminação da escravidão como sistema social.193 Ele destacou a revolta escrava no Haiti como exemplo dessa nova ordem de conscientização escrava. As insurreições anteriores seriam “atos mais ou menos espontâneos de desespero contra o extremo rigor, a fome, a retirada súbita de privilégios, ou contra outras condições locais ou imediatas”. Já no final do século XVIII e durante o XIX, as revoltas teriam um “objetivo magnífico desconhecido pelos escravos do mundo antigo e de garantir para os povos negros um lugar nas nações-estados”.194 Até mesmo Reis, claramente inspirado e afinado com a obra de Genovese, reconhece “que este argumento não se sustenta diante de um balanço das tendências dominantes nas rebeliões escravas baianas, que foram inspiradas em ideologias étnicas e/ou religiosas africanas”.195 Jack Goody, menos condescendente com Genovese, diz que sua periodização não levou em consideração “o papel de outra religião escrita, o Islã”. Continua Goody: “acima de tudo, as práticas africanas derivadas do Islã também forneciam uma ideologia que enfatizava a resistência à dominação dos cristãos brancos”.196 Deste modo, segundo ele, o Islã, por se tratar de uma religião escrita, desempenhou um papel similar ao da Revolução Francesa. Esta também teria se caracterizado por textos escritos, como, por exemplo, a “Declaração dos Direitos do Homem”. O Islã, com seu aparato escrito, estaria em vantagem em relação às religiões orais africanas. Goody detonou de certa maneira a teoria de Genovese, quando registrou em 1692, portanto quase um século antes da Revolução

192 GENOVESE, Eugene D. Da rebelião à revolução: as revoltas de escravos negros nas Américas. São Paulo: Global, 1983, p. 33. 193 Idem, p. 26. 194 Ibidem, p. 27. 195 REIS, Escravidão e invenção da liberdade, p. 129. 196GOODY, Jack. The power of written tradition. Washington (DC): Smithsonian Institution Press, 2000, p. 331.

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Francesa, o grito de "Morte aos brancos e viva a liberdade" como grito de guerra de um quilombo baiano.197 O trabalho clássico de Stuart Schwartz sobre escravidão baiana dedicou algum espaço à análise da rebeldia escrava. Na sua opinião, a Bahia possuiu o que ele chama de “longa história de resistência endêmica”.198 Ato contínuo, classifica as insurreições africanas como “revoltas étnicas organizadas em torno das afiliações ou religiões africanas, combinando a rejeição ao cativeiro e a sociedade branca com profundas e persistentes motivações relacionadas não à França ou ao Haiti, mas a sociedades politicamente organizadas e divisões religiosas tradicionais da África”.199 Um exame menos acurado poderia atribuir ao autor a tese de uma revolta étnica strictu sensu. Schwartz talvez não tenha sido preciso no conceito fugaz de etnicidade, o que foi suficiente para se simplificar sua tese. De acordo com Weber grupos étnicos são: “...esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou dos dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração, de modo que esta crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma comunidade de sangue exista ou não objetivamente”.200

O próprio Schwartz se encarrega de advertir quanto à fragilidade do modelo étnico aplicado aos malês. Ele chama a atenção para a “deficiente etnografia dos portugueses” e sugere que a “classificação portuguesa de nagô pode encobrir profundas divisões e políticas entre os escravos”. Não deixou, porém, de ressaltar as rivalidades étnicas como existentes e conclui que a questão é “complexa”. Usou o exemplo de um réu jeje, em 1835, que alegou sua afiliação étnica como álibi circunstancialmente conveniente para provar a impossibilidade de sua participação em uma revolta majoritariamente nagô. Existem evidências, segundo Schwartz, da cooperação entre etnias da África Ocidental, o que provavelmente não se estendeu às etnias bantos do Congo e Angola.201 Lovejoy, em seu estudo sobre o fator étnico na diáspora africana, particularmente no caso da África Ocidental, observou:

197 Idem, p. 331. 198 Ibidem, p. 380. 199 Ibidem, p. 381. 200 POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etnicidade. Seguidos de grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo:UNESP, 1998, p. 37. 201 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, pp. 382-383.

73 “Qualquer análise estática de etnicidade que não leve em consideração o processo e a mudança tanto na África como nas Américas é suspeito. Segundo Morgan, a aplicação de termos como nação e grupos étnicos de forma indiscriminada constitue uma classificação perigosa nos estudos da escravidão na África e na América”.202

A historiografia sobre os malês tem sido particularmente lacunar neste aspecto, talvez devido à radicalização e a generalização em torno de posições, ou mesmo à falta de especialistas no assunto. O fato é que se tem deixado de lado questões fundamentais como etnicidade ao sabor de conceitos por demais estáticos. Schwartz ressaltou ainda questões pertinentes à demografia do tráfico, do seu potencial explosivo e do seu impacto sobre a escravaria. A conseqüente africanização da comunidade cativa e a alta taxa de masculinidade são referidas como focos de tensão permanentes. O reflexo desta realidade é que essa população apresentava padrões de instabilidade social, principalmente baseada na quase ausência de estruturas familiares (pelo menos até agora não detectadas expressivamente) juntamente com pressões advindas das vicissitudes da economia de plantation. É necessário notar que essas variantes são comuns a toda dinâmica do tráfico atlântico. O autor enfatiza a importância de se entender perfeitamente a cronologia dos acontecimentos na África Ocidental, que estavam diretamente ligados ao fluxo contínuo de iorubás para a Bahia.203 Schwartz cometeu pelo menos dois erros factuais, e não apenas um como afirmou Reis.204 O primeiro seria afirmação que a revolta foi traída por um escravo; a revolta foi delatada, de fato, por três libertos nagôs, especificamente por um homem, e a delação fatal através de duas mulheres. O segundo, ao dizer que a revolta durou dois dias; ela na verdade durou algumas horas.205 No entender do autor, a rebelião malê, devido à sua extensão e aos aspectos islâmicos, produziu grande interesse. No que se refere, porém, ao seu estudo, ela foi “simplesmente a última de uma longa série de revoltas que marcaram a passagem da sociedade escravista baiana ao século XIX”.206 João Reis foi responsável por um volumoso e acurado trabalho sobre as revoltas escravas baianas. Nenhum outro estudioso depois de Nina Rodrigues trabalhou tão eficazmente com a documentação da revolta. Seu estudo, ao contrário dos seus antecessores, não foi parte de qualquer outro trabalho, mas exclusivamente dedicado às 202 LOVEJOY, “Identifying enslaved Africans”, p. 20. Ver também: THORNTON, John. Africa and Africans in the making of the Atlantic World, 1400-1680. Cambridge: Cambridge University Press, 1992. 203 SCHWARTZ, op. cit., p. 382. 204 REIS, Escravidão e invenção da liberdade, p. 127. 205 Idem, pp. 73-74.

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rebeliões escravas baianas dando ênfase à última, e mais importante, que foi a rebelião malê. O trabalho de Reis, portanto, constitue o paradigma atual para outros estudiosos interessados em rebelião escrava na Bahia. Ao contrário de Nina Rodrigues, Etienne e outros, Reis entendeu a rebelião, em parte, como resultado de um conjunto de fatores estruturais dentro do contexto de época. Reis pertence à chamada escola antropológica baiana inaugurada por Nina Rodrigues no século XIX. Essa linhagem continuaria através de Arthur Ramos, Roger Bastide e Pierre Verger na sua vertente cultural. Porém, Reis se posicionar-se-ia à esquerda dos últimos, colocando-se ao lado de uma terceira vertente capitaneada por Schwartz e Genovese. Seus estudos, dessa maneira, colocaram-se entre os sabidamente mais competentes dos culturalistas e a versão híbrida menos panfletária e mais comprometida com a análise objetiva dos fatos. Na última década, as pesquisas sobre o chamado “islã negro” têm demonstrado uma tendência à especialização do assunto. Naturalmente a falta de africanistas limita muito uma discussão realmente abrangente do objeto. Reis realizou de forma extremamente competente uma junção de tendências que se arrastavam por quase um século. Porém, seu trabalho pecou por não abordar com maior profundidade as estruturas pré-existentes e extremamente complexas no caso malê. Na sua busca por um equilíbrio que não passasse necessariamente pelo materialismo ortodoxo nem pelo culturalismo mecânico, ele criará um jacobinismo baiano que não traduzirá na sua plenitude peculiar os escravos africanos muçulmanos na Bahia. Nas

palavras

de

Geertz,

hermenêutica

é

o

“entendimento

do

entendimento”.207Como já foi mencionado durante o trabalho, não se trata de apenas constatar a presença de uma cultura africana e suas sobrevivências, mas sim as nuanças extremamente particulares dessa cultura. Os malês como elementos originários da cultura de um Islã impregnado de sufismo na sua versão sofisticada, ou provavelmente na sua versão popular, foram lançados na diáspora africana em direção à América. O aparato teórico visa explicar fenômenos sociais dissociando-os de uma metodologia tecida em redes gigantescas de causas e efeitos, tentando entendê-los também através de estruturas locais, trocando as dificuldades bem mapeadas por outras pouco conhecidas. Geertz enfatizou que ao estudarmos grupos específicos como poetas marroquinos, políticos elizabetanos, camponeses de Bali ou advogados americanos, sentimos-nos a cada passo mais distantes de estilos-padrão. Utilizamos atalhos, ruelas, e, 206 SCHWARTZ, op. cit., p. 392.

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citando Wittgenstein: “vemos uma estrada reta diante de nós, mas é claro,...não podemos usá-la, porque está permanentemente fechada”.208 Os malês ou precisamente sua liderança, de forma análoga ao exemplo de Geertz do Marrocos no século XVIII, vinham de uma sociedade teocrática, de guerreiros, especialistas no Corão, juristas, professores, escribas (ulemás) e marabouts. Estes últimos, considerados sagrados e com poderes milagrosos.209. De acordo com a concepção islâmica, o temporal e o espiritual são realidades indissociáveis. Já foi dito que os líderes malês eram homens de baraka, conceito difícil de ser traduzido ou entendido no Ocidente.210Em uma passagem do seu trabalho, Geertz tenta definir esse conceito: “...ele possuía o que os marroquinos chamam baraka, uma dessas palavras que é melhor falar do que definir; porém poderíamos defini-la inadequadamente como ‘poder sobrenatural’, cujos detentores podem ser classificados como santos e marabouts. Os elementos dessa transformação espiritual: coragem física extraordinária, lealdade pessoal absoluta, estatura moral e uma quase transmissão física da santidade de um para o outro. Estas qualidades mais que o quietismo estóico foi o significado da baraka na maior parte do Marrocos”.211

Esse conceito é apenas um no meio de um universo que exemplifica de forma inequívoca a necessidade de um estudo dentro de outra perspectiva. A especialização do historiador em torno do seu objeto irá permitir uma compreensão mais precisa da cultura em sua origem, assim como de sua reificação em terras brasileiras. Um exame sumário na documentação da Devassa, por exemplo, é suficiente para detectar imprecisões na classificação étnica e a completa identificação islâmica de alguns indivíduos. Essa fonte, naturalmente, é uma referência que retrata uma situação in extremis. Reis diz que Nina Rodrigues teria encontrado pistas importantes e não as teria seguido devido à sua preocupação em comprovar a tese de uma “guerra santa” Diríamos que seguindo esse raciocínio, Reis encontrou pistas igualmente reveladoras que não foram seguidas não apenas, mas também por falta de um tratamento adequado ao tema. É importante mais uma vez lembrar que esses conceitos são aplicados quase sempre à liderança malê e não a possíveis africanos atraídos ao movimento e, conseqüentemente, com níveis de comprometimento relativos. 207 GEERTZ, O saber local, p. 12. 208 Idem, p. 14 209 CORNELL, Vincent. Realm of the Saints: Power and authority in Moroccan Sufism. Austin: University of Texas Press, 1998 e GEERTZ, O saber local, p. 204. 210 REIS, op. cit., pp. 102, 131-134. 211 GEERTZ, O saber local, pp. 32-33.

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A análise de Reis quase sempre privilegiou a questão da aculturação, da reinvenção, como se estivéssemos tratando de objetos completamente diversos. Em um movimento como o de 1835, essas escalas de abordagem podem fazer a diferença. O meu estudo não visa as possíveis contextualizações da doutrina islâmica sob forma de “folguedos”, “brincadeiras” e “banzés”, que podem ter feito parte de estratégias tanto da liderança malê, como de indivíduos atraídos ao Islã na Bahia. A questão aqui estudada é que não se pode tratar impunemente de questões tão complexas e diferenciadas sob uma ponto de vista local sem o risco de uma simplificação ou de superficialidade demasiado perigosa. Reis argumentou que Nina e Arthur Ramos hereticamente negam a historicidade dos eventos na Bahia. Poder-se-ia igualmente argumentar que os muçulmanos originários de um conflito com forte conteúdo religioso de afirmação de ortodoxia ou mesmo acomodação, tornaram-se subitamente afro-baianos sincréticos. Neste caso, Reis estaria negando a historicidade ao inverso. No seu extenso trabalho sobre escravidão na Bahia, Kátia Mattoso dedica algumas páginas ao Islã na Bahia.212 Logo no início, Mattoso comete um erro factual ao inverter a cronologia dos acontecimentos na África Ocidental. Ela cita o levante escravo de Ilorin como fator inicial do envio de cativos muçulmanos para a Bahia. A seguir, em um segundo momento, que esses cativos foram enviados a partir do jihad de Uthman dan Fodio.213 A ordem dos acontecimentos na África foi exatamente ao contrário, com a expansão islâmica na atual Nigéria no sentido norte-sudoeste com Uthman dan Fodio e o Califado de Sokoto em 1804 e o posterior levante de Ilorin já em 1817. Mattoso afirmou que o islamismo sempre foi minoritário entre os africanos trazidos à Bahia, e os hauçás eram a única etnia completamente identificada com o Islam, embora reconhecesse que existiam muçulmanos entre os tapas, bornus e os nagôs. A autora começou a desenvolver sua teoria da superioridade de uma liderança malê baseada na erudição. Esta erudição lhes conferiu uma grande vantagem em relação aos outros “negros incultos”, escravos e alforriados. A vantagem também se aplicou à população livre da cidade. Portanto, segundo ela, os malês estariam mais próximos do modelo branco que os não-muçulmanos, o que facilitaria o proselitismo.214 Mattoso, com essa teoria, sem dúvida levanta uma hipótese aparentemente plausível que, no entanto, ela não explica satisfatoriamente. Primeiro por classificar de incultas as culturas sabidamente orais dos africanos não-muçulmanos. Quanto aos outros crioulos, 212 MATTOSO, Katia M. de Queirós. Bahia, século XIX: uma província do império. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, pp.424-428. 213 Idem, p. 424.

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livres ou não, não poderia se colocar a questão dentro dessa lógica, pois independentemente do grau de erudição, eles não faziam parte do universo afromuçulmano. O proselitismo muçulmano apenas teria funcionado, de acordo com o rol dos culpados de 1835, nas etnias ou culturas limítrofes na África Ocidental. Desse modo, haveria um limite pré-estabelecido para a expansão do Islã na Bahia, delimitado culturalmente pelas próprias vicissitudes da organização da sociedade escrava. A autora reconhece ser impossível constatar a extensão das conversões religiosas.215 Um pequeno núcleo articulado em meio a uma comunidade de origens mais ou menos comuns, poderia explicar o sucesso ainda que limitado do Islã. Nessa passagem em particular, poder-se-ia encontrar em Mattoso ecos de Gilberto Freyre. O uso de determinadas roupas, amuletos e anéis eram sinais exteriores importantes para vincular os africanos à sua cultura religiosa com ambiente urbano de Salvador, além de terem funcionado como poderosos auxiliares na propaganda malê. Mattoso mostrou-se realmente espantada com a prática da dawa (divulgação) islâmica feita em público, ou em casos específicos como do iman Licutan na prisão diante do carcereiro. No caso dos ingleses, ela atribuiu esta liberalidade ao fato dos muçulmanos ensinarem e praticarem o Islã em sua casa. A relação dos inglêses com seus escravos muçulmanos ainda não foi satisfatoriamente esclarecida. No decorrer deste trabalho serão levantadas algumas novas hipóteses para tal relacionamento. Convém lembrar que mesmo os liberais ingleses podiam ser senhores extremamente duros em relação aos escravos quando seus interesses estavam em jogo.216 Os hábitos muçulmanos eram desconhecidos, segundo a autora, que cita apenas as orações comunais da sexta-feira (salat al jumma), certas cerimônias (possivelmente os al idhs, Laylat al miraj, Laylat al Qadr entre outros) e os hábitos culinários (os muçulmanos somente podem ingerir carne halal, ou seja, de animais permitidos, abatidos de acordo com a lei islâmica (carne de porco e bebidas alcoólicas são proibidas). Para Mattoso, a possível adaptação dos muçulmanos em uma sociedade de maioria cristã não constituía novidade. Ele fez coro com Bastide em sua concepção etnográfica confusa. Os malês, com raras exceções, não eram hamitas ou “negros puros” e sim animistas islamizados, e somente aos primeiros seria possível a prática do “islamismo puro de Maomé”.217 É sem dúvida surpreendente que conceitos dessa natureza sobrevivam em um trabalho tão recente; afinal hamita é um conceito aplicado aos povos africanos que 214 Ibidem, p. 425. 215 Ibidem, p. 425. 216 COSTA, op cit., pp. 62-82.

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falam idiomas hamíticos, incluindo os hauçás e o animismo é uma prática religiosa. Portanto, não há oposição entre esses conceitos. A teoria de Bastide utilizada por Mattoso, parte do princípio que aos negros não salpicados com características hamitas (leia-se “brancas”) não era possível assimilar o Islã dito puro. Através do trabalho de Reis, a autora cita a celebração do Laylat al miraj (noite de ascensão do Profeta Muhammad aos céus) em novembro de 1834 como ponto alto do proselitismo malê. A comemoração islâmica aconteceu na mesquita-barracão construída no quintal da casa do inglês Abraham. O número de participantes chamou atenção do inspetor de quarteirão, que resolveu interditá-la. O inglês repreendido pelo juiz de paz ordenou a demolição da masjid (mesquita) rústica.218 Segundo Mattoso, o Islã exigia um grau de compromisso nunca exigido pela Igreja Católica. Irmanados no Islã, os convertidos se distinguiam dos outros africanos, passando a compartilhar o fanatismo e a intolerância dos mestres. Os muçulmanos recusavam-se a dar a mão aos kafirs e desprezavam os africanos católicos, acusados de ir à missa e de adorar a madeira de estatuetas supostamente santas. Ser muçulmano implica em uma vasta rede de obrigações e de reciprocidades e não apenas freqüentar cultos esporadicamente, ou o cumprimento de certos sacramentos de forma simbólica. O sentido de irmandade soa mais correto; irmandade universal que no caso malê foi restringida. A irmandade malê aparentemente foi inspirada no modelo sufi, o que lhe concedeu tons que iam de uma igualdade quase absoluta a um círculo mais exclusivo. A iniciação sufi acontece com um pacto (bay’a) entre o aspirante e o seu mestre espiritual (al murshid) que representa o Profeta Muhammad. Esse pacto implica a total submissão do discípulo ao mestre em tudo o que se refere à vida espiritual, e não pode ser anulado pela vontade unilateral do discípulo. Os diferentes ramos do sufismo correspondem de forma muito natural aos diversos “caminhos” (tariqa). Cada grande mestre, a partir do qual pode ser determinado o começo de uma cadeia particular, tem autoridade para adaptar o método às aptidões de uma determinada categoria de homens dotados à vida espiritual. Os diferentes “caminhos” correspondem, portanto, às diferentes “vocações” e estão orientados para o mesmo fim; não representando de modo algum cisões ou “seitas” no interior do sufismo, ainda que tenham acontecido desvios parciais que deram lugar a verdadeiras seitas. O sinal exterior da tendência sectária será sempre o caráter quantitativo e “dinâmico” da propagação. Os teóricos do sufismo chamado autêntico dizem

217 Idem, p. 426. 218 MATTOSO, op. cit., p. 426.

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que o fenômeno nunca chegará a ser um movimento, em função de recorrer ao que há de mais “estático” no homem, o intelecto contemplativo. O Islã logrou manter-se intacto, na essência, através dos séculos. Apesar da natureza tão volúvel do psiquismo humano e das divergências étnicas dos que abarca, ele não é caracterizado como forma coletiva, mas implica, desde a sua origem, a possibilidade de uma contemplação intelectual que transcende a corrente das afetividades humanas. É o caso de algumas tariqas, como Qadiria, predominantes na época do Shehu Uthman dan Fodio e que provavelmente chegaram ao Brasil com o fluxo de escravos originários dos jihads da África Ocidental. Essa irmandade sufi compreende círculos exteriores e, por isso, uma expansão popular não é comparável aos movimentos sectários. A expansão popular das tariqas de essência intelectual se explica, além disso, pelo fato de que o simbolismo esotérico é, de alguma forma, acessível ao povo, ainda que nem sempre o seja para os doutores da Lei.219 Os conversos buscam com muito mais afinco afirmar sua fé exteriormente, o que seria perfeitamente compreensível em qualquer cultura religiosa. Isso não quer dizer absolutamente “compartilhar com seus mestres o fanatismo e a intolerância”.220 Seria muito mais razoável que ações desse tipo tivesssem partido de conversos ansiosos de afirmar sua fé diante da ummah (comunidade). Nos processos há uma passagem que pode ilustrar o proselitismo agressivo de alguns conversos malês : “Perguntado sobre o Corpo de delicto que lhe foi lido, além da referência que fez a testemunha Manoel Baptista da Gama, disse sabe que há quatro annos pouco mais ou menos tem sido convidado pelo escravo Cornélio, pois que todos querem ser Padres, e não comem toicinho, ficou o dito Cornélio mal com elle testemunha de forma que athé agora se não falão”.221

Em outra passagem, o mesmo Cornélio foi citado novamente como envolvido em uma briga motivada por sua participação na revolta e por seu islamismo militante: “...ouvir dizer João de tal nação Nagô preto forro, escravo que foi da finada Dona Maria Ezaquiel que tendo sido convidado para a insurreição na noite de vinte quatro de Janeiro e elle não querendo andou o dito Cornelio as bordoadas com elle ignorando elle testemunha”.222

219 LINGS, Martin. Un santo sufi del siglo XX: el Sayj Ahmad al-Alawi, su herencia y su legado espirituales. Madrid: Taurus, 1982. 220 MATTOSO, op.cit., p. 426. 221 Devassa do Levante, vol. 50, pp. 48-49. 222 Devassa do Levante, vol. 50, p. 46.

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Pode-se perceber que o escravo Cornélio se envolveu em dois confrontos com africanos coincidentemente forros. Está claro que esse escravo era um fervoroso converso da onda de proselitismo malê nas décadas de 20/30. Os papéis árabes e os anéis encontrados indicavam que seus companheiros eram igualmente muçulmanos e possivelmente muito orgulhosos de fazer parte uma tariqa sufi. O escravo Cornélio aparece mais uma vez na documentação, dessa vez submetido a uma prova de fogo. O duríssimo combate enfrentado pelos muçulmanos, particularmente naquele momento, já durava três horas ininterruptas e ainda sob fogo cerrado dos Permanentes entrincheirados no Forte de São Pedro. De qualquer maneira, Cornélio dá meia volta e foge, sendo localizado na documentação da Devassa na sua volta para casa : “...e sabe por ouvir dizer a Bazilio de tal, e Francisco Salustiano moradores neste Destricto que o dito preto Cornelio saira as cinco horas da manham do dia vinte e cinco de Janeiro o dito digo de Janeiro com uma Eixó na mão de dentro do mato da estrada que vai para a Quinta, em busca da casa de seo Senhor, em cujo interior ambos procurarão a elle testemunha para o prender na qualidade de Inspector daquelle Quarteirão”.223

Cornélio, provavelmente exausto do combate que durou boa parte da madrugada, buscou refúgio na casa do seu senhor, provavelmente sem saber que fora visto e que seu destino fora traçado. Foi preso e durante o interrogatório negou peremptoriamente todas as acusações de participação na revolta: “...respondeo que vindo as sete horas da noite da cidade para Casa de seo Senhor isto he do dia vinte e quatro soubera no Forte São Pedro quererem os escravos fazerem desordem e logo se retirou para Casa de sei Senhor onde não sahio mais. Se conhece as pessoas que jurarão contra elle e desde que tempo ? respondeu que a muito que os conhece. Se tem algum motivo particular a que atribua a denuncia ? respondeo que não. Se tem factos a alegar ou provas que o justifiquem ou mostrem sua innocencia ? respondeo o Senhor do escravo que este e os outros dormirão feixados dentro dos seos quartos como he de costume. Foi mais perguntado de quem erão os tres aneis brancos respondeo o dito escravo serem seos e vendo os mais comprarem, tambem comprou para trazer no dedo. Foi mais perguntado quem a quem pertencião o Livro e papeis escriptos que se acharão ? respondeo que a sete annos vindo pela Praça da Piedade de noite encontrara hum embrulho de hum lenço, e apanhando achara os ditos papeis e livros que troucera

223 Devassa do Levante, vol. 50, p. 48.

81 para casa, e sendo lhes mostrado os ditos papeis naquelle tempo e que os não entendia, nem sabia escrever”.224

O escravo foi condenado diante dos testemunhos e evidências: “Conformando me com a decisão dos jurados condemno o Reo Cornelio na pena de 600 açoutes, q. lhe serão aplicados nos lugares, q. para este fim se tem deignados”.225

Ainda de acordo com Mattoso, uma revolta que tinha a pretensão de ser um jihad deveria ter muito mais adeptos, o que não aconteceu. Diante disso, ela reforça a idéia de uma aliança momentânea dos malês com os não-muçulmanos. O Islã, segundo ela, não desapareceu pela passividade dos convertidos como afirmou Bastide. Ao contrário, teria mostrado algum dinamismo, mesmo com o alcance de um proselitismo limitado, que seria explicado pela sofisticação e pela severidade da crença muçulmana. Em seguida corroborou a tese de Bastide, que o orgulho e a austeridade islâmica colocaram-nos em um mundo à parte, condenando-os ao isolamento dentro da comunidade africana.226 Paul Lovejoy é reconhecidamente hoje um dos maiores africanistas e especialistas em escravidão na África Ocidental. No que se refere aos africanos muçulmanos na Bahia, realizou um estudo demográfico sobre os indivíduos do Sudão Central enviados à Bahia como escravos, enfatizando a importância de se levar em consideração a origem específica dos escravos africanos a partir dos jihads que deram origem aos estados islâmicos de Sokoto (1807) e de Ilorin (1817). Lovejoy analisou, de forma análoga a outros estudiosos, o contexto econômicosocial da Bahia que resultou na importação maciça de escravos das zonas de conflito da África Ocidental. Seu estudo foi original, no entanto, quanto ao enfoque mais centrado nos acontecimentos ocorridos na África, que, no seu entender, terão desdobramentos negligenciados pelos estudiosos brasileiros. Segundo ele, a falta de especialização desses estudiosos, devido às dificuldades inerentes a um trabalho mais integrado entre Brasil e África, tornaria a questão dos afro-muçulmanos na Bahia lacunar.227 Dessa forma,

224 Devassa do Levante, vol. 50, pp.50-52. 225 Devassa do Levante, vol. 50, pp. 50-52. 226 MATTOSO, op.cit., p. 427. 227 LOVEJOY, op.cit., pp. 1-2.

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demonstrou que os rebeldes transcenderam o que se entende por resistência escrava. Eles estavam integrados em outro mundo: o Dar al Islam.228 O que alguns autores entendem por “sobrevivências” é, segundo ele, uma ativa transferência de cultura da África e sua evolução contínua no contexto dramático da escravidão em terras brasileiras. Reis entendeu que o elemento étnico foi um contraponto ao fator religioso. Lovejoy demonstra que os dois elementos estavam entrelaçados de forma incompleta e parcial na sociedade escrava baiana do primeiro terço do século XIX.229 Mesmo porque o conceito de etnicidade aplicado aos escravos africanos é muito fugaz se aplicado naquela altura. Os iorubás estavam subdivididos em grupos rivais que não poderiam forjar alianças baseadas apenas em etnicidade. Lovejoy assim não apenas contestou a teoria de Reis sobre aculturação, mas também colocou em xeque a generalização da classificação étnica dos padrões tradicionais: “A etimologia dos termos como “hauçá”, “bambará” e “iorubá” foram usados para estabelecer a legitimidade da escravização e os esforços para classificar os indivíduos com propósito de protegê-los e também oprimi-los. Os muçulmanos, apesar de familiarizados com o debate sobre etnicidade e escravidão, foram igualmente escravizados e deportados para a América e África do Norte. Isso ajudaria a explicar como o uso de certas categorias étnicas teriam sido incorporadas aos idiomas europeus. As mudanças no uso desses termos estão, portanto, sujeitos à pesquisa histórica, mas categorizações étnicas também são utilizadas para legitimar certos propósitos da análise histórica, como no uso do ‘francês’, ‘alemão’, ‘português’ e outros termos étnicos/nacionais,.que igualmente requerem ser decifrados”.230

228 Lovejoy mencionou Dar al Salam, que na concepção islâmica é sinônimo de Dar al Islam. Os dois termos significam “terra da paz” ou o mundo islâmico em oposição ao Dar al harb ou a “terra da guerra”. LOVEJOY, op. cit., pp. 3-4. 229 Idem, p. 8. 230 LOVEJOY, “Identifying enslaved Africans in the African Diaspora”, p. 19.

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Capítulo 3

As trajetórias da islamização na África O Islã penetrou no continente africano através de dois caminhos distintos, o primeiro pelo oriente e o segundo pelo norte. Nessas duas entradas, o Islã percorreu espaços vazios através das águas do Oceano Índico e das areias do Saara. Considerados como barreiras, ambos foram transpostos graças aos meios de transporte apropriados à tecnologia de navegação, e tais espaços revelaram-se excelentes transmissores da religião e da cultura. Por outro lado, as zonas mais densamente povoadas funcionaram como filtros, devido às múltiplas realidades culturais que diminuíram o ímpeto da influência religiosa e cultural do Islã. Do Egito, a maré islâmica fluiu em três direções: através do Mar Vermelho e da área costeira da África Oriental, subindo o Nilo em direção ao Sudão e através do deserto ocidental em direção ao Magrebe. No século XI, árabes nômades investem do Egito para o Sudão e para o ocidente pelo norte da África. Simultaneamente, navegadores muçulmanos do Egito e da Arábia estabelecem postos comerciais ao longo do Mar Vermelho e da costa oriental africana. No século XII, os últimos vestígios da população indígena cristã desapareceram do norte da África. Pelo século XV, os cristãos coptas do Egito foram reduzidos a 15 por cento da população. Os cristãos núbios que resistiram à expansão muçulmana por seis séculos, perderam progressivamente terreno entre os séculos XII e XIV.231 Apenas no Chifre da África, a disputa entre o Islã e a Cristandade permaneceu indefinida. A Etiópia permaneceu um Estado cristão, excluindo o número crescente de muçulmanos da posse da terra e de cargos governamentais de primeiro escalão.232 Na costa oriental africana o Islã enfrentou o desafio da Cristandade entre os séculos XVI e XVIII. A religião desempenhou um papel importante na luta dos árabes e dos suaílis muçulmanos. A disputa concluiu-se com a retirada portuguesa da costa norte de Moçambique após 1698. Entretanto, os muçulmanos perderam o controle comercial do Índico, que foi exercido por mais de sete séculos, e durante esse longo período enfrentaram a competição dos hindus e dos budistas. O comércio transaariano, em contrapartida, 231 SPAULDING, Jay. “Precolonial Islam in the Eastern Sudan”, in: LEVTZION, & POUWELS, op. cit., pp. 118-119.

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permaneceu de forma inconteste sob o domínio muçulmano. Os europeus interferiram apenas de forma indireta nessa rota depois do século XV, quando desviaram alguma quantidade de ouro para a costa. Devido ao movimento expansionista islâmico na África Ocidental ter-se originado a partir norte da África, os muçulmanos daquela região aderiram à escola legal islâmica malikita,233 predominante na África do Norte. Na África Oriental, de forma diversa, o Islã foi influenciado pela península arábica, onde prevalecia a escola legal shafiíta.234 Ambas as regiões, entretanto, sofreram a influência dos ibaditas.235 Estes iniciaram a rota comercial através do Saara e foram uns dos primeiros grupos muçulmanos a atingir a África Ocidental nos séculos VIII e IX. Estabeleceram-se na Arábia Oriental nos primeiros séculos do Islã e tornaram-se dominantes em Zanzibar após a conquista da ilha pelos omanitas no século XVIII. Os ibaditas de Zanzibar, no entanto, mantiveram sua identidade árabe e não se empenharam em trabalho missionário entre a população africana. A expansão do Islã no norte e oeste da África Logo após derrotarem as forças bizantinas na metade do século VII, os árabes passam a controlar a costa da África do Norte. No interior, porém, encontram resistência das tribos bérberes que forçaram uma retirada árabe temporária. Esta guerra entre árabes e bérberes foi chamada de ridda, termo usado no século VII na Península Arábica para designar a pacificação das tribos beduínas rebeladas após a morte do Profeta. Em ambos os casos, a submissão política e a conversão religiosa possuíam o mesmo significado. A consolidação do controle árabe sobre as tribos bérberes encontra-se nos textos ba’da ma hasuna islam al-barbar.236 A palavra Islã nessa passagem abrange seu sentido mais amplo – submissão e conversão. A resistência bérbere, entrementes, continuou através do próprio Islã, com a adesão aos ramos chamados heterodoxos como o ibadismo e o ismaelismo.237 Os almorávidas no 232 SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1996, pp. 213-248; 571-601. 233 Escola jurídica islâmica estabelecida por Malik ibn Anas (c. 715-795). 234 Escola jurídica islâmica estabelecida por al-Shafi’i (767-820). 235 Movimento dissidente sunita originário da disputa pelo califado entre o iman Ali ibn Abu Talib e Mu’awiya ibn Abu Sufyan no século VII. Os ibaditas são considerados um ramo intelectualizado do Islã.Teoricamente, sua liderança se baseava na habilidade militar e conhecimento religioso, mais do que em vínculos usuais tribais, étnicos e familiares. Estabeleceram-se em Omã, Zanzibar e Argélia Ocidental. 236 LEVTZION, & POUWELS, op.cit., p. 2. 237 Uma subdivisão do xiismo. Aparentemente originaram-se de um movimento secreto no Iraque, Irã e posteriormente na Síria. Apoiavam as pretensões ao imanato de Ismail, filho de Jafar al-Sadiq, reconhecido

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século XI finalmente estabeleceram a ortodoxia através do sunismo na sua versão malikita. Sob o jugo almôada que os sucedem, o Islã magrebino ortodoxo se misturou ao misticismo sufi, que se tornou o principal agente da islamizacão no Norte da África depois do século XII.238 Nômades bérberes atingiram o sul do Saara e o Sael em tempos pré-Islâmicos. Desse modo, encontravam-se posicionados para mediar as influencias islâmicas entre o Magrebe e o Sudão Ocidental, (conhecido pelos árabes como Bilad al-Sudan). As tribos bérberes ocuparam as duas franjas do Saara, no limite entre a “África branca” e a “África negra” segundo os termos coloniais franceses que se referiam na prática ao encontro do deserto com o Sael, ou a interface das tribos nômades bérberes com as tribos sedentárias sudanesas. Ao longo dessa linha divisória foi criado o terminal do comércio transaariano. Atualmente essa linha corta os países africanos do Sael: Senegal, Mali, Níger, Chad e o Sudão. Em todos esses Estados o poder político está nas mãos das populações negras do sul, enquanto no Sudão a linha divisória possui contornos étnicos e religiosos. No início do século XI comerciantes mandingas, ancestrais dos juula, viajavam entre o terminal saariano e as minas de ouro. Eles foram os criadores da “diáspora comercial” baseada em uma língua e religião comuns. Além disso, a shari’a (lei islâmica) forneceu um sistema legal nem sempre observado no sentido estrito, e que contribuiu para criar uma rede de confiança mútua necessária ao comércio de longa distância. A conversão ao Islã tornou-se condição sine qua non para os que desejavam participar dessas redes comerciais. Através das rotas abertas pelos comerciantes muçulmanos, sociedades isoladas foram expostas à influência externa, mas o trabalho missionário foi realizado por outra classe de indivíduos. A conversão ao Islã foi conduzida por religiosos que fizeram os primeiros contatos com os governantes locais. Esses governantes foram os primeiros receptores da influência islâmica, o que indica a importância dos Estados organizados no processo de islamizacão. Desse modo, os muçulmanos viveram sob a proteção e a benevolência de soberanos “infiéis”. Essa foi a situação tanto no século XI em Gana, como no século XIX em Asante. A expansão do Islã ganhou terreno com os clérigos muçulmanos socorrendo os governantes locais em seus apuros eventuais. Em Malal, por exemplo, no século XI, para superar uma seca ou para assegurar uma vitória militar em Kano, no século XIV, e em

como o sexto imã pelos xiitas. No entanto, com a morte de Ismail (760), seu irmão, Musa al-Kazim, torna-se imã. Os ismaelitas, porem, não aceitaram o último, acreditando na volta de Ismail como mahdi, que revelaria o significado oculto do Corão e governaria o mundo com justiça. 238 SILVERS, Peter von. “Egypt and North África”, in: LEVTZION, & POUWELS, op.cit., pp. 23-25.

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Gonja no século XVI.239 A adesão ao Islã do governante e do seu círculo mais próximo não significava a conversão da aristocracia em geral, que adotou uma posição ambígua de privilegiar os adivinhos muçulmanos e os sacerdotes locais. A relação simbiótica entre o Islã e a religião tradicional foi ilustrada no conto de Ahmadou Kourouma em que os personagens se proclamavam publicamente muçulmanos devotos, enquanto no âmbito privado temiam os chamados “feitiços”.240 Esse padrão africanista desmoraliza qualquer originalidade baiana da prática religiosa baseada na ambigüidade ou sincretismo. Os clérigos muçulmanos que prestavam serviços aos chefes locais integravam-se ao sistema social e político do Estado, exercendo um papel similar ao dos sacerdotes tradicionais. Esses clérigos eram politicamente neutros ou tentavam ser e, portanto, agiam como árbitros em questões que demandavam mediação. Mesquitas e santuários eram considerados refúgios seguros. FIGURA 2

FONTE: LEVTZION, Nehemia & POUWELS, Randall L. The History of Islam in Africa. Athens (OH): Ohio University Press, 2000. A bênção através da baraka era concedida aos mais próximos de Allah. Os clérigos e homens-santos transmitiam as bênçãos aos devotos e à comunidade. Após longos anos de treinamento esses indivíduos adquiriam conhecimento islâmico sofisticado e em ciências 239 LEVTZION, Nehemia. “Islam in the Bilad al-Sudan to 1800”, in: LEVTZION, & POUWELS, op.cit., pp. 64-65. 240 HARROW, Kenneth W. “Islamic Literature in África”, in: LEVTZION, & POUWELS, op.cit., p. 538.

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ocultas. A habilidade de conhecer capítulos e versículos do Corão e passagens da sunnah a serem aplicados em ocasiões específicas requeriam vasto conhecimento esotérico. O marabout241 wolof no conto de Birago Diop combinava o poder espiritual trazido de Meca com sua fonte de poder ancestral. O poder da palavra é inseparável do status de seus agentes que é, por sua vez, articulado por ambos, poetas e santos. Nos grandes reinos do Sael, ligados ao comércio internacional e ao mundo islâmico, os soberanos desenvolveram um vínculo mais forte com o Islã. Porém, mesmo soberanos como Mansa Musa do Mali e Askia Muhammad de Songhai não puderam manter seu reinado livre da herança pré-Islâmica. Ibn Battuta constatou esses costumes durante sua visita à corte de Mali na metade do século XIV. Um erudito muçulmano de Tombuctu testemunhou costumes pré-islâmicos na corte de Askia Dawud na metade do século XVI. Como em Tombuctu, os eruditos islâmicos viviam em comunidades autônomas sob a liderança de um qadi (magistrado muçulmano). Essas comunidades em Diaba eram conhecidas como “cidade dos sábios”, aonde o soberano de Mali não tinha acesso. Quem entrasse nessa cidade estava salvo da opressão real e de sua vingança, e por isso também eram denominadas “cidade de Allah”.242 Ciosos de sua autonomia, orgulhosos de sua erudição e totalmente devotados à lei islâmica, os sábios de Tombuctu não foram politicamente neutros como os sábios da corte que freqüentavam os príncipes. Conseqüentemente as relações entre os intelectuais e o estado eram freqüentemente tensas. Esses sábios, por exemplo, foram inimigos declarados de Sonni Ali na metade do século XV e lideraram a resistência contra a invasão marroquina um século e meio depois.243 241 Corruptela francófona do termo árabe murabit, originalmente habitante de um ribat, guerreiro da fé. Na África do Norte e Ocidental tornou-se um termo genérico para qualquer tipo de homem-santo. 242 CORNELL, op. cit., pp.98-99. Thomas Heffernan concluiu que a vida dos santos na Cristandade latina medieval refletia a dicotomia retórica entre a idealizada e perfeita “cidade de Deus” (civitas Dei) e a temporal e corrupta “cidade do homem” (civitas hominis). Essa dicotomia, cuja origem pode ser detectada nos escritos de Santo Agostinho e nas escolas filosóficas do Helenismo, foi mediada pelo paradigma mundano da “comunidade dos santos” (communio sanctorum) que exemplificava a “cidade de Deus” no Céu. De acordo com Vincent Cornell, a mesma retórica greco-romana influenciou o pensamento islâmico. Desse modo seria tentador conjeturar a comunidade sufi como a “cidade de Deus”. Essa impressão é reforçada pelo senso sufi de comunidade separada de crentes encontrada nos escritos de at-Tadili e seus contemporâneos Os rijal marroquinos, por exemplo, não constituíam uma comunidade residente em outro mundo. Antes, eles reafirmavam os valores originais da comunidade de Medina sob a liderança do Profeta Muhammad. Portanto, os communio sanctorum do Marrocos de forma diversa do seu equivalente cristão foi mais de que o ideal celestial. Ao contrário, ao invés de reafirmar a corrupção da sociedade humana acenava a possibilidade de redenção em uma comunidade ideal que reproduzisse este ideal teórico nesse mundo. A mesma motivação e não apenas o desejo de transmitir a tradição, levou os juristas da escola malikita a fundamentar sua metodologia legal baseada no “povo da Medina” (ahl al-Madina) e não nos centros imperiais da Síria e do Iraque. 243 Ver a saga de Jawdar Pasha, o espanhol que chefiou os exércitos do sultão marroquino Mawlay Ahmad al-Mansur em um fantástico raid através do Saara, entre 1591-1599, que conquistou Songhai (Tombuctu). As forças marroquinas eram compostas de uma amálgama de etnias (árabes, bérberes, renegados espanhóis, andaluzes, negros, europeus, eslavos, índios americanos, inclusive do Brasil). Em grande esses homens eram produtos dos estragos causados pelos corsários turcos ou aventureiros em busca de dinheiro rápido. Existe

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Mesmo nas relações dos qadis com soberanos reconhecidamente religiosos, como Askia Muhammad e Askia Dawud, podia haver discordâncias e tensões. Os soberanos costumavam enviar seus filhos para estudar com os clérigos muçulmanos como parte da educação aristocrática. Essa clientela nem sempre produziu muçulmanos devotos, mas alguns príncipes tornaram-se teólogos eruditos. O qadi de Jenne, na segunda metade do século XVI, era um dos filhos dos chefes de Kala. Ele renunciou ao poder político e tornou-se um religioso erudito. O filho de Biton Kulibali, Bakari, soberano do jovem estado de Bambará no século XVIII, tornou-se muçulmano. Bakari, no entanto, foi deposto e assassinado por não ter conseguido manter o equilíbrio entre o Islã e a tradição. No século XV em Kano, o filho do rei Omar converte-se ao Islã. Quando sucedeu seu pai, a contradição entre ser muçulmano e um chefe guerreiro tradicional culminou com sua renúncia ao poder político. Apesar de receberem clérigos muçulmanos na corte, fazerem as orações e exibirem publicamente sinais da influência islâmica, os chefes tribais não eram considerados muçulmanos porque, como guerreiros, consumiam bebidas alcoólicas e promoviam derramamento de sangue. Entre os wolof a tensão aumentava quando os governantes se recusavam a atender aos apelos dos religiosos de arrependimento e mudança de estilo de vida. Nas sociedades saarianas, de forma análoga, as tensões entre guerreiros e sacerdotes tornaram-se uma constante. No final do século XVII, Nasir al-Din um membro da comunidade clerical do sudoeste da Mauritânia se rebelou contra os guerreiros de banu hassam. Após algum tempo, os wolof e os fulá islamizados aliaram-se ao jihad de Nasir alDin e depuseram as dinastias reinantes nos estados de Cayor, Walo, Jolof e Futa Toro. O sucesso inicial dos religiosos, entretanto, foi efêmero, pois uma coalizão de guerreiros da aristocracia tradicional do Saara e do vale do Senegal, com alguma ajuda dos comerciantes franceses, derrotaram os clérigos e reconquistaram o poder. A vitória final dos guerreiros consolidou a sociedade saariana em dois estados: os guerreiros e os clãs religiosos. Os Banu Hassam exerceram o poder político e militar e os zawaya (marabouts) controlavam o ensino religioso, as questões legais e a maioria das atividades comerciais e agrícolas. Na região em torno do lago Chad, de Kanem para a África do Norte, o tráfico de escravos era a principal atividade. O Islã, dessa forma, não se expandiu ao sul do lago Chad que permaneceu território de apresamento de escravos, enquanto Kanem se expande uma possibilidade que prisioneiros da Batalha dos Trois Rois (Três Reis) em 1578, terem sido utilizados. Ver HAÏDARA, Ismael D. Jawdar Pasha et La Conquête Saâdienne du Songhay (1591-1599). Rabat: l’Institut des Etudes Africaines, 1996.

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politicamente rumo ao norte até Fezzan. Em Kanem, assim como no seu sucessor, o estado de Bornu, o Islã não se restringiu apenas à corte, mas atingiu toda a população. Nos séculos XVI e XVII, Birnin Gazargamo, capital de Bornu, foi um importante centro de estudos islâmicos. Manuscritos do Corão em Bornu datam do início do século XVII com traduções e glossários em vernáculo. Bornu atraiu muitos estudantes das regiões vizinhas e seus eruditos foram empregados como professores e imãs na Hauçalândia, Iorubalândia, Borgu e mesmo em regiões mais ocidentais. Ao final do século XVIII, o Islã estava firmemente estabelecido entre a população em Bornu. Todavia, ainda era possível perceber a sobrevivência de elementos pré-Islâmicos no seu cotidiano. Esses elementos foram explorados como pretexto, mais tarde, para justificar o jihad do Califado de Sokoto contra Bornu. FIGURA 3

LEVTZION, Nehemia & POUWELS, Randall L. The History of Islam in Africa. Athens (OH): Ohio University Press, 2000. A maré islâmica atinge os iorubás no século XIX e avançou em conseqüência da conquista dos territórios setentrionais pelo jihad fulá. Exceto no Emirado de Ilorin que era parte do Califado de Sokoto, o Islã se estabeleceu entre os iorubás como prática religiosa sem, no entanto, imiscuir-se nos negócios de Estado. O progresso do Islã entre a população não obliterou os padrões tradicionais de autoridade.

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A leste, no Nilo, os núbios cristãos detiveram o avanço islâmico por seis séculos. A partir do século XV, três grandes estados das planícies da Núbia meridional tornam-se formalmente muçulmanos. Todos os súditos eram considerados muçulmanos a despeito de não seguirem totalmente a ortodoxia das práticas islâmicas, enquanto que a desobediência ou rejeição desse status implicava em apostasia. Através das terras africanas, homens-santos foram capazes de converter o carisma espiritual ou “capital simbólico” em poder econômico.244 No vácuo deixado pelo poder político os homens-santos puderam construir seu poder econômico.

244 LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 5.

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No Ocidente e no Oriente ver-se-á a face de Allah... Os muçulmanos estabeleceram-se na costa etíope do Mar Vermelho no início do século VIII. No século IX já existiam comunidades islâmicas comerciando com o interior. A cidade de Harar se desenvolveu como importante centro de comércio e estudos islâmicos. Essas comunidades cresceram e puseram em xeque a hegemonia da Etiópia cristã. A conseqüência mais importante do jihad de Ahmad Gran na primeira metade do século XVI foi o enfraquecimento, tanto do reino cristão etíope como dos estados islâmicos. As férteis terras altas tornaram-se sujeitas à imigração maciça dos pastores Oromo e os chefes mais proeminentes dessas tribos converteram-se ao Islã no século XVIII. Os líderes religiosos muçulmanos ganharam terras e prestígio, mas continuaram a criticar os governantes e os devotos comuns. Os religiosos ameaçavam os relapsos em suas obrigações religiosas com a recusa de um funeral islâmico apropriado. Os sheyks sufis estabeleceram centros de estudos, treinamento espiritual e prática religiosa e, além disso, contribuíram com farta literatura para o incremento da erudição islâmica. Na metade do século XIX, o Islã se populariza entre os Omores. Eles passaram a observar o jejum, adotaram as leis islâmicas em detrimento da tradição, o pagamento do zakat, a circuncisão e empreenderam a peregrinação à Meca. Ainda no século XIX, os comerciantes muçulmanos abrem novas rotas no sudoeste da atual Etiópia à procura de escravos. Os novos reinos de Oromo emergiram, nessa época, como terminal das rotas comerciais vindas da costa. Os mestres sufi acompanhavam os comerciantes de escravos e convertiam os chefes locais. Não obstante o Islã estar presente na costa oriental desde do século VIII, a grande maioria da população suaíli apenas adotou a religião entre os séculos XIII e XVI. A partir dessa época os suaíli desenvolveram uma cultura islâmica distinta, essencialmente urbana e sofisticada. No oeste africano, o contato com as terras centrais do Islã era apenas feito através do hajj (peregrinação). A África Oriental, devido à proximidade geográfica, mantinha-se em constante intercâmbio com a península arábica. Até o século XIX, o Islã na África Oriental permaneceu confinado às regiões costeiras, em contraste com o ocidente africano, onde o Islã se expandiu pela hinterlândia. Mercadores e colonizadores no oriente africano faziam parte da diáspora comercial no Índico. Suas redes comerciais estavam mais conectadas com as terras banhadas pelo

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oceano do que com as terras do interior africano. Isto explica o fato dos produtos africanos serem transportados para a costa antes do século XIX exclusivamente por comerciantes do interior. A expansão do Islã para o interior aconteceu dentro de um contexto mais amplo de influência cultural e migração. Na África Ocidental o movimento migratório e o de produtos foram desenvolvidos a partir do eixo norte-sul. Na África levantina, por outro lado, o comércio e as migrações foram direcionados do interior para a costa, ou seja, na direção contrária a aquela tomada pelo Islã pelo eixo leste-oeste. No século XIX, uma nova classe de mercadores e proprietários de terra com riqueza adquirida do agro e do comércio promoveram um renascimento religioso na costa oriental da África. Esses novos-ricos foram responsáveis pelo aumento extraordinário de mesquitas, escolas islâmicas e pelo emprego considerável de eruditos religiosos. Os mais importantes ulemás eram enviados para aprimorar seus conhecimentos em Meca e Medina. Em conseqüência desse boom cultural, a erudição populariza-se devido também à crescente importância das irmandades sufi durante o século XIX. Os sultões omanitas encorajaram a imigração para a costa oriental africana. Esses émigrés, no entanto, não foram assimilados pela sociedade suaíli. Para eles, o termo suaíli implicava no rebaixamento do status original. Os recém-chegados identificavam-se como árabes, mantinham estreito contato com a terra natal e cultivavam o que poderia ser descrito como Islã normativo, aumentando desse modo o abismo entre as comunidades árabes e suaíli. O lento processo de islamização para além da estreita faixa costeira da África Oriental foi conseqüência do fluxo dos povos do interior aos mercados de Mombassa no século XIX. Esse processo foi acelerado no penúltimo quartel do século XIX, quando muçulmanos da costa estabeleceram-se em fazendas no interior, e os africanos convertidos retornaram das cidades costeiras para suas cidades-natal. O Islã, entretanto, apenas penetrou mais profundamente no interior do oriente africano quando os comerciantes muçulmanos da costa aventuraram-se na hinterlândia em busca de marfim e escravos. A aceitação do Islã, ao longo das rotas comerciais, dos assentamentos árabes e suaílis, não foi significativa. Os conversos eram na maioria membros do entourage de comerciantes árabes e suaílis. Nesse caso esposas, parentela, carregadores e empregados. A etnia yao foi a mais islamizada do interior de Moçambique e sul da Tanzânia. Esse grupo étnico comerciava com a costa desde o século XVII, mas a conversão em massa aconteceu apenas no século XIX com a chegada dos comerciantes muçulmanos e clérigos no interior. O modelo matrilinear das etnias yao e makua criou tensões com o modelo patrilinear islâmico. Um sheyk makua que sucedeu seu tio matrilinear como mwene

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(ancião-chefe) de sua linhagem foi obrigado a renunciar à sua posição na tariqa Qadiria (irmandade sufi), incompatível com essa prática tradicional. O sheyk, entretanto, continuou sendo um muçulmano devoto. Buganda foi o único Estado centralizado da África Oriental que seguiu padrões de islamização análogos aos reinos da África Ocidental. Sob a influência dos mercadores muçulmanos, Kabaka Mutesa construiu mesquitas e obrigou seus chefes locais a rezar. Os muçulmanos ocuparam importantes cargos provinciais e o comando da guarda real. O poder islâmico local apenas foi colocado em xeque com a chegada dos missionários protestantes e católicos após a conquista britânica. Os muçulmanos de Buganda, entrementes, migraram para região dos grandes lagos africanos e tornaram-se importantes agentes de conversão mesmo fora da terra natal. O Islã chegou à África do Sul a partir da imigração escrava e livre originária da Malaia e das ilhas do Índico. O processo de conversão durante as últimas décadas de escravidão (1798-1838) foi a idade de ouro do Islã sul-africano. Em 1838, por exemplo, as taxas de manumissão entre os escravos muçulmanos eram mais altas que entre os escravos cristãos, o que aparentemente transformou o Islã em uma importante ideologia de resistência e oposição ao poder senhorial na África do Sul. Por volta do século XVI, o envolvimento do Islã na vida religiosa, social e cultural dos africanos sem uma ruptura com o passado tornou-o, na sua versão africana, impregnado de elementos pré-islâmicos. Foi necessária uma reforma para provocar a ruptura que traria formas mais eruditas e ortodoxas de Islã às sociedades africanas. Soberanos e chefes africanos que participaram do hajj entram em contato com práticas islâmicas diversas e com alguns dos maiores eruditos muçulmanos da época. O movimento almorávida originou-se do encontro de um chefe sanhaja do sudoeste do Saara com Abu Imran al-Fasi em Qayrawan. Mansa Musa fortaleceu as instituições islâmicas no Mali após retornar da peregrinação a Meca e visitar o Cairo. Askyia Muhammad foi investido com o título de califa no Cairo e o seu intercâmbio com os eruditos islâmicos do Egito projetaram-no na vida intelectual de Tombuctu no século XVI. No início do século XVI, ocorreram tentativas de reforma em três estados contemporâneos. Em Songhai, sob a liderança de Askyia Muhammad, que procurou a assessoria dos ulemás. Em Kano, no tempo do Rei Rumfa, com a derrubada de uma árvore sagrada sob a qual tinha sido construída a mesquita original. Em Bornu, onde o rei reformador era Ali Ghaji. Ambos, Songhai e Kano, foram visitados pelo intelectual militante do norte da África, al-Maghili, que clamava pela purgação de todas as crendices

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no Islam. Al-Maghili anatematizou (takfir) aqueles que aceitaram a inclusão no Islã de costumes e crenças tradicionais. Seus ensinamentos radicais foram mitigados a conselho do moderado e pragmático intelectual egípcio Jalal al-Din, um dos grandes eruditos do seu tempo. Essas reformas, entretanto, foram levadas a termo pelos soberanos sendo, dessa maneira, consideravelmente menos radicais que as revoluções dos séculos XVIII e XIX, quando as dinastias e, conseqüentemente, o poder político no seu senso estrito foi varrido pelos clérigos muçulmanos que assumiram o poder. Mais perto de Allah: As Irmandades (tariqas) O Magrebe foi a terra do sufismo por excelência. Não havia inicialmente irmandades estruturadas em hierarquia, apenas zawiya independentes ou refúgios para os marabouts. Todos seguiam a tradição sufi Shadilia, que na época era desprovida de qualquer organização importante.245 Somente em meados do século XVII, as novas irmandades tornam-se mais abrangentes, geograficamente e socialmente e, portanto, com raio de ação superior às zawiya locais. No século XVI, os principais intelectuais de Tombuctu eram sufis, mas, assim como seus contemporâneos sufis egípcios e as comunidades (mallamati) em Bornu, não eram afiliados a irmandades específicas. No Sudão, as antigas irmandades Qadiria e Shadilia foram assimiladas pelos clãs locais. O relacionamento entre o sheyk e seus seguidores era direto e pessoal, sem qualquer outra organização ou procedimento mais elaborado. Existem evidências da presença da irmandade Qadiria em Harar no início do século XVI, mas as tradições hagiográficas não as associam aos homens-santos, no Chifre da África, com qualquer irmandade específica antes do século XVIII. Ainda assim os homenssantos são lembrados como ancestrais fundadores dos clãs somalis. Na Somália meridional e na África Oriental a afiliação das comunidades sufis com as irmandades não foi significativa. Apenas no século XIX, as tariqas sufis ganharam importância na Somália. No início do século XIX, assentamentos religiosos de diversos clãs viviam juntos como ikhwan (irmãos) engajados na agricultura, reprodução de rebanhos, estudos religiosos e devoção. Ao longo da costa oriental, a irmandade Alauíta provavelmente chegou a Pate246 no início do século XVI, devido à grande imigração de hadhramitas oriundos da cidade 245 Sobre a Shadilia ver: ZOUNAT, Zakia. Ibn Mashili: Maître d’al-Shadhili. Rabat: l’Institute dês Études Africaines, Université Mohammed V, 1998. 246 Ver SILVA, A enxada e a lança , p. 327.

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santa de Inat e arredores. De Pate e do arquipélago de Lamu, os sharifs247 alauítas juntamente com os sheiks e seguidores se expandem para o sul seguindo a costa e conquistando grande prestígio religioso e carismático. Durante o século XVIII, uma significativa mudança ocorreu nas irmandades sufis. Os antigos padrões de descentralização e afiliações difusas foram substituídos por formas de organização em larga escala e mais sofisticadas. No processo de reestruturação, o papel do sheyk expandiu-se e as irmandades tornaram-se mais centralizadas. As tariqas transformaram-se em organizações disciplinadas que incluíam uma rede de prepostos (khalifas). Dessa maneira, a característica organizacional das irmandades, mais que seu conteúdo intelectual, foi decisiva para seu peso potencial na política. A irmandade Qadiria foi a primeira a se instalar no Saara, provavelmente no final do século XV. Essa irmandade pioneira, todavia, não foi capaz de se organizar e foi ineficaz social e politicamente. Apenas na segunda metade do século XVIII, sob a liderança de Sidi al-Mukhtar al-Kunti, essa irmandade ressurgiu e habilidosamente usou o prestígio político de seu líder para adquirir riqueza e influencia política, tanto individualmente quanto nas comunidades que procuravam sua proteção. Ele reforçou os vínculos de dependência da sua clientela através da cadeia espiritual da irmandade. Seus emissários expandem sua influência por intermédio da Qadiria-Muktaia, um novo ramo da irmandade no Saara, no Sael e mesmo em Futa Toro. No Sudão, a abertura das ligações comerciais com o Mediterrâneo e com o Mar Vermelho no decorrer do século XVII encorajou o desenvolvimento de cidades e a formação de uma classe-média urbana indígena. Essa nova classe necessitava de um código que fornecesse estabilidade legal e recorreu à shari’a islâmica. O surgimento de uma erudição em árabe, de preces públicas e a adoção de um vestuário adequado, deu contornos inteiramente novos a essa sociedade urbana que passou a se identificar como árabe. O grau de observância dos preceitos islâmicos passa a ser a medida de todas as coisas. As duas correntes do Islã, a popular dos homens-santos e a mais conformista e conservadora dos centros urbanos, foram ambas produtos das irmandades reestruturadas no Sudão desde o último quartel do século XVIII. As novas irmandades como a Samaía, Khatmia e Rashidia incorporaram as famílias locais consideradas sagradas dentro de organizações mais complexas. No Sudão, sábios locais e santos foram integrados em novas e mais abrangentes redes interétnicas e interegionais. 247 Aqueles que clamam descender do Profeta Muhammad

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As irmandades de cunho popular apenas chegam à África Oriental muito mais tarde e somente no final do século XIX, a Qadiria e a Shadilia tornam-se ativas. A Qadiria, em particular, atraiu novos conversos, mas o grande impacto da irmandade foi aparentemente encorajar os africanos muçulmanos a professarem sua fé com mais entusiasmo e convicção. Irmandades sufis O termo sufi foi primariamente aplicado aos ascetas muçulmanos que se vestiam com uma peça rústica de lã (suf). Esta é a origem do termo tasawwuf como misticismo, ou aqueles que se vestem com batas de lã. De acordo com a obra clássica de Trimingham, sufi no sentido amplo é qualquer um que acha possível uma experiência com Deus e que está preparado para renunciar a qualquer obstáculo que o impeça de viver essa experiência. O próprio Trimingham adverte sobre possibilidade desse conceito ser contestado por muitos, mas segundo ele, seria o único meio possível de agrupar as diferentes tendências que envolvem as ordens ou irmandades.248 O sufismo é parte significativa e inalienável da história islâmica. A simples definição do sufismo “como expressão mística da fé islâmica”249 esconde as complexidades de seu papel e de sua natureza. A maioria das discussões sobre o sufismo identifica duas dimensões para entender sua natureza e história. A primeira busca a dimensão intelectual, tratando do conteúdo dos ensinamentos sufis. A segunda é a organizacional porque os ensinamentos se manifestam através de associações com grande importância dentro das sociedades islâmicas. Essas organizações são chamadas tariqa (via, caminho) e são freqüentemente vistas como “irmandades” ou “ordens”. O Islã que poderíamos definir, grosso modo, como ortodoxo, enfatiza a comunicação direta do homem com Deus. Como alternativa a essa visão do Islã, os sufis reclamam possuir o conhecimento do Real (al-Haqq, um termo sufi para designar Deus), que não pode ser atingido através das práticas tradicionais e codificadas do Islã. O misticismo é um método particular de abordagem da Realidade (Haqiqa) que faz uso do intuitivo e do emocional que são faculdades espirituais normalmente latentes e adormecidas, mas passíveis de desenvolvimento através de treinamento e orientação. Esse treinamento é realizado pela “busca do Caminho” (salak at-tarik) que visa descortinar os 248 TRIMINGHAM, J. Spencer. The Sufi orders in Islam. New York: Oxford University Press, 1998, p. 1. 249 RENARD, John. Seven Doors to Islam: Spirituality and the religious life of Muslims. Berkeley: University of California Press, 1996, p. 307.

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véus que afastam o indivíduo do Real e através do qual ele pode ser transformado ou absorvido na Unicidade absoluta. Esse não é um processo primariamente intelectual, embora a experiência mística leve à formulação de vários tipos de filosofia mística, mas antes é uma reação contra a racionalização do Islã como corpo jurídico e uma teologia sistemática.250 O misticismo tem como objetivo a liberdade espiritual. Através dela, o senso espiritual intuitivo e intrínseco ao homem pode ser liberado em toda sua plenitude. Os vários caminhos ou turuq (ou no singular tariqa) estão comprometidos com esse processo. O sufismo na origem foi a expressão individual relacionada com a expressão coletiva da religião. Nessa assertiva estava o direito individual de procurar uma vida de contemplação, buscando contato com a essência do ser e da realidade, além da religião institucionalizada baseada na autoridade, com sua ênfase na observância ritual e moralidade legal. O espírito corânico de piedade floresceu nas vidas, modos de expressão, como os dhikr (lembrança de Deus), por exemplo, entre os primeiros devotos (zuhhad) e ascetas (nussak). O sufismo foi o desenvolvimento natural dessas tendências manifestadas nos primórdios do Islã, enfatizadas continuamente como aspecto essencial do Caminho. Esses devotos, após a experiência de comunhão com Deus, asseguravam que o Islã não estava confinado a uma diretiva legal, mas antes procurava atingir uma percepção ética, redirecionada ou transformada para alcançar uma percepção mística. O sufismo, segundo Trimingham, foi um desdobramento natural dentro do Islã, escassamente influenciado por fontes não-islâmicas através da radiação ascética e mística do cristianismo levantino. O resultado foi que o misticismo islâmico se desenvolveu dentro de linhas distintas. Subseqüentemente, um vasto e elaborado sistema místico foi estabelecido e mesmo levando-se em consideração empréstimos eventuais do neoplatonismo, gnosticismo, misticismo cristão e outros sistemas, deve-se entender o sufismo de acordo com seu próprio conceito “como aspecto interior do Islã e mistério primordial do Corão.251 O sufismo tem recebido muita atenção dos intelectuais ocidentais. No Brasil, particularmente, os estudos sobre sufismo, suas práticas e desenvolvimento histórico são praticamente inexistentes. Sendo uma atividade basicamente contemplativa, mística e fundamentalmente emocional, sua prática foi difundida por todo mundo islâmico através da expansão das tariqas e das suas ordens religiosas disseminadas entre a população.

250 TRIMINGHAM, op.cit., p. 2. 251 Idem, p. 2.

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A premissa básica dessas ordens é o relacionamento entre o mestre e o discípulo, em árabe, murshid e murid, respectivamente. Era natural aceitar a autoridade e a orientação daquele que havia passado por todos os estágios (marifa) do caminho sufi. Os mestres dizem que todo homem possui no seu interior a capacidade atávica de se reunir com Deus, mas essa capacidade latente e adormecida não pode ser desenvolvida sem certas graças divinas e a orientação de um líder. Os primeiros mestres preocupavam-se mais com a experiência em si do que com a teorização teosófica, com orientação em detrimento do ensino. Deste modo, os aspirantes eram guiados através das técnicas de meditação para que estes adquirissem uma visão da verdadeira espiritualidade que os protegeria dos perigos das ilusões. Sufismo, na prática, consiste em sentimento e desprendimento, pois a gnose (marafa) apenas é atingida após várias etapas extáticas. Abu Hamid al-Ghazali, teórico do misticismo ético, observava: “...sufismo não pode ser ensinado, pode apenas ser atingido por experiência direta, êxtase e transformação interior. O homem embriagado não pode perceber as causas, definições e condições da embriaguez, embora isto não mude o fato de estar embriagado, enquanto o homem sóbrio apesar de ciente de todo processo, não está embriagado”.252

Segundo Trimingham, os antecedentes intelectuais de al-Ghazali e sua inaptidão de se submeter sem reservas à orientação constituíram-se em barreiras para que ele pudesse atingir o âmago da experiência sufi. O estado de fana (transmutação do ser) não pode ser atingido apenas por intermédio de teoria, mas necessita de orientação de mestres experimentados. Assim pode ser entendida a importância da orientação intrínseca de recitar adhkar (exercícios místicos) e empreender retiros através dos quais se estabelece o limite a ser imposto a cada indivíduo. A tariqa foi o método prático de orientar indivíduos traçando um caminho de reflexão e ação guiadas em meio a uma sucessão de estágios (maqamat, uma associação integral com experiências psicológicas conhecidos como “estados”, ahwal) para se experimentar a divina Realidade (Haqiqa). Inicialmente tariqa significava simplesmente um método contemplativo, gradual e de liberação da alma. Círculos de discípulos se formaram em volta de mestres, buscando a prática através da associação e do companheirismo, mas não por qualquer laço de iniciação ou juramento de fidelidade.253 252 TRIMINGHAM, op. cit., p.3 e AL-GHAZALI. The Incoherence of the Philosophers. Provo: Brigham Young University Press, 1997. 253 Li’s suhba wa’ r-riwaya ‘anhu

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Duas tendências contrastantes se estabeleceram nos séculos IX e X, uma por Abu Yazid Taifur al’Bistami e outra com Abu’l Qasim al-Junaid. Estas duas tendências foram responsáveis por incorporar as diferenças entre o caminho baseado no tawakul (confiança) e o da malama (culpa), entre o intoxicado e o sóbrio, seguro e suspeito, iluminado e conformista, a solidão e o companheirismo, o teísta e o monístico, a orientação de um mestre temporal ou de um sheik espiritual. Ali al-Hujwiri referiu-se aos ensinamentos de Bistani como caracterizado pela ghalaba (êxtase, arrebatamento) e sukr (intoxicação),254 ao passo que os ensinamentos de al-Junaid eram baseados na sobriedade. Esta ficou sendo a mais difundida e mais celebrada das doutrinas, adotada por todos os sheiks não obstante existirem diferenças entre seus ensinamentos e a ética sufi. Devido ao fato de ter ganho apoio da ortodoxia como relativamente confiável, al-Junaid ficou conhecido como o “sheik do Caminho”, ancestral comum da maioria das congregações místicas subseqüentes, mesmo as que seguiam ensinamentos heterodoxos. Sua inclusão nestas genealogias era a garantia da ortodoxia, uma vez que a aparência de um isnad255 poderia legitimar um multidinário de heresias. Esses grupos eram muito dispersos e móveis, os seus membros viajavam grandes distâncias procurando orientação com seus recursos ou se sustentando através de esmolas. Com o surgimento de locais específicos que serviram como centros para esses viajantes nas terras árabes, muitos se estabeleceram nessas hospedarias ou postos fronteiriços chamados ribat.256 No Kurasan, por exemplo, os ribats estavam associados a locais de repouso ou khanakah257, enquanto em outros lugares estavam associados com retiro espiritual.258 Todos esses termos podem ser traduzidos como um mosteiro sufi. Um dos primeiros ribat foi fundado na ilha de Abbadan no golfo Pérsico e cresceu em torno de um asceta chamado Abd al-Wahid ibn Zaid no século VIII. Este retiro sobreviveu à sua morte e tornou-se ponto de referência.259 Outros ribats foram fundados nos limites com Bizâncio e na África do Norte. Centros de devoção são mencionados em Damasco em 767 e em Ramalah,

254 HUJWIRI, Abu Hasan Ali al-Jullabi. Kashf al-Mahjub. London: G.M.S., 1936. 255 Atribuição de uma tradição profética ou mística, cadeia de transmissores que autenticam uma tradição. 256 Fortaleza, posto-fronteiriço, hospedaria religiosa, asilo, albergue, centro sufi. TRIMINGHAM, op. cit., pp. et passim. Sobre o conceito de fronteira tomando como exemplo a África do Norte, o historiador marroquino Mohamad Kabli afirma que foi um conceito psicológico construído mais do que uma realidade geográfica. As entidades políticas e mesmo geográficas eram efêmeras e, portanto, sujeitas a mudanças e abertas a disputa. KABLI, Mohamad. Société, pouvoir et religion au Maroc à la fin du Moyen-Age. Paris: Librarie Chapitre, 1986, pp.93-94. 257 Khane-gah, monastério, claustro. TRIMINGHAM, op. cit., et passim. 258 Khalwa ou zawyia, pequena mesquita, túmulo de santos, pequeno centro sufi. 259 TRIMINGHAM, op. cit., p.5

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capital da Palestina, este último fundado por um amir cristão antes do ano 800.260 Havia outros também no Kurasan na mesma época e em Alexandria sob forma de uma organização que se autodenominava as-Sufiyya em 822. No século XI, os mosteiros se organizam com características diferentes e se tornam numerosos apesar de manterem suas premissas básicas de busca de orientação via associação e com a ajuda de mestres experientes autonomeados guias espirituais. A população desses retiros era flutuante e eles adotaram um conjunto mínimo de regras institucionais no intuito de tornar possível a convivência temporária. Algumas regras de companheirismo sufi tornar-se-iam eventualmente obrigatórias.261 Al-Maqdisi, ao contrário da maioria dos geógrafos árabes, dedicou sua obra a uma gama mais vasta de interesses. Desse modo pôde fornecer algumas informações sobre os grupos sufis. Em Shiraz, por exemplo, os sufis eram numerosos e praticavam o dikhr (yukabbir) e as bênçãos ao Profeta em suas mesquitas após a prece da sexta-feira.262 Organizados em movimentos atuantes como a Karramiyya263 em seu tempo,

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seus

adeptos encontravam-se espalhados por toda a Ásia. A única referência aos khanaqah no relato de al-Maqdisi foi em Darbi (Dwin), capital da Armênia. Esses grupos eram gnósticos (arifs) e viviam na mais extrema pobreza.265 Apesar da duração relativamente efêmera da Karramiyya (dois séculos), o sufismo continuou sendo uma disciplina individualista para mudar toda perspectiva da devoção islâmica. Nas colinas de Golan, na Síria, al-Maqdisi relatou: “Eu encontrei Abu Ali Ishaq al-Balluti com quarenta homens, todos vestidos com roupas de lã; estes se reuniam em um lugar de adoração. Eu descobri que esse homem era um jurista erudito da escola de Sufyan ath-Thawri e sua alimentação apenas consistia em ‘bolotas’ (ballut), frutas do tamanho de tâmaras, amargas, que quando abertas e adocicadas sobre a terra eram misturadas com cevada silvestre”.266

260 JAMI, Abd ar-Rahman. Kitab Nafahat al-uns. Calcutta: M. Tawhidipur, 1859, p. 34 e outra edição em Teerã, 1919. De acordo com Trimingham, essa referência é muito tardia para ser usada com precisão. 261 O primeiro trabalho sobre as relações éticas entre os sufis foi SULAMI, Abu Abd ar-Rahman. Kitab adab as-suhba. Jerusalem: M.J. Kister, 1954 e HUJWIRI, Abu Hasan Ali al-Jullabi. Kashf al-mahjub. London: G.M.S., 1936, p. 338. 262 AL-MAQDISI. Shams al-din Abu Abdallah M. Ahsan at-taqasim (Descriptio imperrii moslemici). Leiden: M.J. de Goeje, 1906, p. 439. 263 Fundado por Muhammad ibn Karram (morto em 869). Al-Maqdisi os designa como homens do zuhd e ta’abbud, op. cit., p. 365. Foi uma escola ascética e restauradora e distinguiam-se pelo seu modo de vestir. 264 Al-Maqdisi escreveu circa 975. 265 AL-MAQDISI, op. cit., p. 379. 266 Idem, p. 188.

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Al-Maqdisi tinha sede de novas experiências assim como de descobertas geográficas e o relato de seu engajamento atesta a existência de congregações organizadas na época. O viajante viveu sua experiência sufi como único modo de adquirir conhecimento específico, assim como demonstrar a facilidade de se passar por um falso sufi em qualquer época: “Quando eu cheguei a Sus (no Kuzistão), procurei a mesquita principal e o sheik que poderia responder minhas dúvidas sobre questões acerca dos hadiths. Casualmente eu vestia uma jubba de lã cipriota e um futa de Basra, dirigi-me direto à congregação sufi. Assim que cheguei sem levar em consideração o fato de ser sufi ou não, eles receberam-me de braços abertos. Eles me acomodaram entre eles e começaram a me fazer perguntas. Em seguida me serviram comida e me senti mal por receber comida de pessoas que eu não tinha qualquer tipo de relação anterior. Eles ficaram surpresos com minha relutância e descaso com o cerimonial.267 Eu me senti atraído pela oportunidade de me associar à congregação, descobrir seus métodos e aprender sobre a verdadeira natureza do sufismo. Então eu disse a mim mesmo: ‘Essa é a sua oportunidade, aqui aonde sou desconhecido.’ A partir deste momento eu deixei de lado qualquer restrição ao grupo e me despi do véu de timidez que encobria meu rosto. Em certas ocasiões entoava cânticos e em outras recitava poemas com eles. Nós saíamos para visitar ribats e participar de recitais religiosos; dessa maneira, por Deus, eu ganhei lugar nos corações da irmandade e das pessoas do lugar. Eu conquistei grande reputação, sendo visitado, recebendo presentes em roupas e bolsas, que eu prontamente entregava intacto aos sufis, mesmo porque eu era próspero e dispunha de amplos recursos. Todos os dias eu passava absorto em devoções, e que devoções! O povo achava que minha dedicação era um ato de extrema piedade e começaram a tocar-me para obter baraka. Minha fama se espalhou e dizia-se que nunca tinham visto um faqir do meu porte. Essa situação permaneceu até eu penetrar nos segredos da irmandade e aprender tudo o que desejava, uma vez atingido meus objetivos, fugi na calada da noite e pela manhã tudo estava bem claro”.268

Enquanto alguns centros de retiro, especialmente os ribats e os khanaqas, sustentados por doações (awqaf), tornaram-se permanentes, aqueles que dependiam da reputação de seus mestres desapareciam após a morte destes. Os mestres, em sua maioria, eram migrantes, por conseguinte não havia perpetuação das ordens. Mas grupos de pessoas

267 Certamente não se tratava de uma oferta normal de hospitalidade, mas de uma refeição ritual. 268 AL-MAQDISI, op.cit., p. 415.

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que professavam aspirações espirituais similares tornavam-se discípulos de mestres através de vínculos de submissão puramente pessoais. O século XI marcou a virada da história islâmica. Entre vários acontecimentos significativos, ocorreu a supressão dos xiitas que haviam chegado ao poder através das dinastias dos Fatímidas no Egito e dos Buyidasdas na Pérsia. Na Pérsia, paulatinamente, a versão xiita do Islã iria confundir-se-ia com a identidade nacional. A derrocada política dos xiitas foi causada pela chegada dos novos soberanos seljúquidas, turcos nômades da Ásia central. Em 1055 eles assumem o controle de Bagdá e a tutela do califa Abássida. No Magrebe e no Egito, o poder dos fatímidas enfraqueceu até ser finalmente destruído pelo curdo Youssef Ayub, o Saladino, em 1171.269 Os turcos se investem no papel de sustentáculo da sunnah e, conseqüentemente, oponentes de qualquer tendência xiita. Essa contra-revolução na esfera islâmica caracterizou-se pela reorganização das madrasas, círculo de estudantes ao redor de um mestre. Estas escolas privadas foram transformadas em instituições oficiais onde os seljúquidas asseguraram o recrutamento de mestres simpáticos à causa do Islã oficial. Esta nova versão de madrasa rapidamente se espalhou do Iraque para Síria, Egito e eventualmente para o Magrebe.270 O espírito especulativo sufi era visto com suspeição pelos ulemás (doutores da lei) do sistema. Os líderes religiosos sufis foram colocados no ostracismo e até violentamente perseguidos.271 No final do século XII, graças ao trabalho de al-Ghazali, a posição oficial dos ortodoxos islâmicos em relação ao sufismo mudou. O sufismo, no entanto, iria sofrer transformações em relação aos laços que uniam seus adeptos. Inicialmente eles se integravam espiritualmente, mas a mudança veio com o desenvolvimento do que Trimingham chama de collegium pietatis para collegio initiati, cujos membros atribuíam a um iniciador como ancestral espiritual, e se preparavam para seguir seus ensinamentos, transmitindo-os para as futuras gerações.272 A metamorfose do tradicional companheirismo em escolas de iniciação começou através dos triunfos das dinastias sunitas sobre as dinastias xiitas, e a sedimentação deste processo ocorreu durante o período conturbado da conquista mongol. Os sufis promoveram um considerável êxodo

269 HOURANI, Albert H. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 57, 99-100. 270 As madrasas não se desenvolveram no Magrebe até século XIII e XIV com as dinastias Hafísidas, Marinidas e de Abd al-Wadids. TRIMINGHAM, op. cit., p. 8. 271 Shihab ad-din Yahia as-Suhrawardi, foi professor na corte de Qilil Arslan na Anatólia, escreveu trabalhos teosóficos notáveis antes de ser executado como mártir do fanatismo ortodoxo, em Alepo, a mando de Saladino, em 1191. TRIMINGHAM, op. cit., p. 9 e HOURANI, op. cit., p. 185. 272 TRIMINGHAM, op. cit., p. 13.

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urbano e espiritual. Uma característica importante desses grupos foi a adoção da prática xiita da bay’a no tempo de Saladino. A bay’a era a iniciação com juramento de lealdade ao sheik. Podia também ter a forma de transmissão das ordens de artesãos, futuwwa.273 Essa estratégia, poderia ser entendida como outra medida compensatória para a repressão ao xiismo. Segundo Trimingham, o misticismo islâmico seria a única esfera religiosa em que a mulher encontraria seu espaço.274 Havia muitas mulheres sufis, a mais conhecida Rabi’a alAdawiya no século IX.275 Durante este período há referências a conventos femininos. Em Alepo, existiram sete conventos, todos fundados entre os séculos XII e XIII assim como em Bagdá. No Cairo, o ribat foi construído pela filha de Malik az-Zahir Baibars em 1285 para a sheika Zainab ibnat Abi l-Barakat.276 Ibn Battuta descreveu os khanaqahs e suas regras durante sua visita ao Cairo em 1326: cada zawia277 no Cairo é designada a uma ta’ifa278de dervishes, a maioria deles são persas, homens de cultura e treinados segundo os preceitos do tasawwuf. A

narrativa

de

Ibn

Battuta

demonstra

também

a

importância

desses

estabelecimentos sufis na expansão do comercio islâmico e na sua ambientação em meios hostis e na sua difusão.279 É importante, contudo, estabelecer a distinção entre as ordens místicas, corporações comerciais nos moldes da guilda ocidental280 e as futuwwa dos artesãos e cavaleiros.281 A diferença entre essas entidades era o propósito e a intenção, mais do que o tipo de organização e relações. As tariqas eram de caráter puramente religioso; em contrapartida, as guildas constituíam associações de artesãos ou com fins comerciais.282 273 Termo usado para certas organizações de cavalaria e artesanato. No sufismo especificamente, ideal ético, mais do que místico, em que o bem-estar do próximo torna-se mais importante, ou mesmo um ideal altruísta. Para uma visão da organização das irmandades em algo similar a uma guilda, ver: GEERTZ, Clifforf. Meaning and order in Moroccan society: Three essays in cultural analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 1979. 274 TRIMINGHAM, op. cit., p. 18. 275 SMITH, Margaret. Rabi’a the Mystic and Her Fellow-Saints in Islam. Cambridge: Cambridge University Press, 1928. 276 MAQRISI, Taqi ad-Din Ahmad. Al-mawa’iz wa l-i’tibar bi dhikr al-khitat wa l-athar. 4 vols. Cairo, AH 1326 apud TRIMINGHAM, op. cit., p. 15. 277 Ibn Battuta geralmente usa o termo zawiya, termo que lhe mais familiar, mas no Cairo ele especifica esses retiros pelo termo local khawaniq. 278 Literalmente, parte, porção. Associação, organização; a palavra é usada para designar ordem sufi. 279 IBN BATTUTA. Travels in Asia and Africa. London: Routledgege & Keegan, 1984, pp.109-110. 280 Sinf e outros termos regionais como hanta no Marrocos. São mais citados porém, como ta’ifas. 281 Similarmente essas ordens devem ser diferenciadas dos movimentos ghazi na Anatólia baseados no principio da futuwwa em que as afiliações eram relacionadas com os darawish turcos. Os sufis usavam o termo futuwwa não no sentido de organização, mas em seu senso de doação ética e dádiva. Ahmad al-Rifa dizia: “Futuwwa quer dizer trabalhar para Deus, e não por qualquer recompensa terrena.” De acordo com Cornell, futuwwa envolve movimento na direção de Deus de coração e alma (al-hijra ila Allah), (seguindo o caminho de Lot) que deu as costas para sua cidade e foi ao encontro de Deus. 282 Geertz alerta para a tradução do termo guilda no caso dessas organizações no contexto marroquino. Em Sefrou, segundo ele, zawia deve ser associado com dois outros termos, herfa (profissão, vocação) e henta

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A ta’ifa religiosa podia não constituir simultaneamente uma ta’ifa comercial ou de ofício. Trimingham, no entanto, enfatiza as exceções e a organização inicial das ordens religiosas devem muito às guildas e ao fato das tariqas “santificarem” essas associações seculares. Toda forma de vida social é incorporada em associações e culturas religiosas necessárias para agir conjuntamente nos chamados “propósitos seculares”, quando a religião, por sua vez, imprime um caráter sagrado.283 Uma guilda específica e seus membros tendiam a estar ligados com uma tariqa especifica e com seu patrono. A organização das ordens, entretanto, espelhava-se muito nas guildas. Estas floresceram sob o poder fatímida e o de outros estados xiitas e, com o triunfo das dinastias sunitas, foi necessário à ortodoxia emergente legitimar essas organizações. As linhas de tradição mística dão origem à organização de khanakas,284 que podiam ser também associações seculares sob certos aspectos de suas relações com a comunidade. Essas instituições seculares organizam-se gradativamente nos moldes das guildas. De forma similar, as associações religiosas possuíam um grão mestre (arif, amin ou sheik al-hirfa) e uma hierarquia de aprendizes (mubdati), companheiros (sani) e um artesão-chefe (mu’allim). Dessa maneira as ordens religiosas adquiriram uma hierarquia de noviços, iniciados e mestres. O Islã sunita tolerou práticas herdadas dos xiitas, como o caráter secreto da iniciação e os juramentos das guildas com suas implicações de fidelidade ao sheik at-tariqa. Os médicos, por exemplo, mesmo não pertencendo necessariamente a nenhuma guilda, podiam ser iniciados na cadeia sufi como recurso espiritual para auxiliálos na profissão.285 Pode-se encontrar, desde então, manifestações de poder espiritual associadas às ordens. Não se distingue, portanto, a partir desse momento, nenhuma diferença entre as ordens e a veneração dos santos, mesmo porque os protégés de Deus (awliya li’llah) são inerentes às irmandades. O sufismo forneceu a filosofia hierárquica que foi diluída e adaptada às necessidades da sociedade. Não apenas o grande sheik, mas os seus sucessores que herdavam sua baraka286 eram intermediários do poder divino. Como em outras praticas sufis, existiam distinções claras entre o sufismo erudito e o popular. (sociedade de devotos, “grupos de ajuda mútua”) no intuito de delinear uma interatividade muito complexa de concepções subalternas a formas sociais igualmente complexas. Algumas dessas concepções eram religiosas, algumas econômicas e outras morais. Juntas elas definiram um padrão institucional peculiar cuja natureza os termos padrões ocidentais tem mais obscurecido do que esclarecido. GEERTZ, Meaning and order in Moroccan society, p. 155. 283 TRIMINGHAM, op.cit., p. 25. 284 Khanaka retiro, centro sufi. 285 TRIMINGHAM, op. cit., Appendix A. 286 De acordo com Cornell, no Marrocos o termo é abrangente, pode ser traduzido como “virtude abençoada”, “poder espiritual” e mesmo “sorte”. Os santos europeus são conhecidos como seres

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De acordo com Cornell e como havia sido observado anteriormente, a mais importante inovação no mundo islâmico nos séculos XII e XIII foi institucionalização das ordens sufis. Entre 1150 e 1250, as comunidades de místicos consistiam em grupos de discípulos desorganizados, seguindo mestres espirituais, transformadas paulatinamente em entidades hierárquicas. 287 No Magrebe, essa inovação surgiu a princípio organizada sob matizes étnicos (tawa’if) e importantes instituições rurais como o Ribat Tit-n-Fitr e o Ribat Asafi.288 Com a crescente complexidade e a influência dos ribat, o raio de ação dessas instituições ultrapassa seus limites originais. Esses desdobramentos, segundo Cornell, estão de acordo em geral com o modelo institucional de sufismo proposto por Trimingham. Para ele, a palavra árabe tariqa referese à tradição mística hagiográfica ou escola (madhhab) enquanto ta’ifa se refere à corporação institucional hierarquicamente organizada que se desenvolveu em um período posterior da história islâmica. De acordo com Geertz, o Islã magrebino é basicamente o Islã da veneração dos santos, da severidade moral, do poder mágico e de piedosa agressividade. Isto é, para todos os efeitos, verdadeiro nos becos de Fes e Marrakech, assim como nos espaços do Atlas ou do Saara.289 No período de 300 anos compreendido entre os séculos XVI e XIX, 60 a 80 por cento de todos os africanos muçulmanos pertenciam a alguma ordem sufi. O número de organizações sufis continuou a crescer em poder e influência. As irmandades sufis transcenderam vínculos de parentela, classe, profissão, que serviam para integrar esses grupos verticalmente. A manutenção dos vínculos dessas organizações místicas era concretizada através das experiências individuais em congregações. Nessas reuniões, os membros realizavam sessões de hadras290 e dhikrs,291 através dos quais atingiam um êxtase coletivo utilizando técnicas de controle respiratório e

carismáticos; o carisma também é central dentro da concepção marroquina de autoridade religiosa. Por essa razão, o santo marroquino pode ser genericamente definido como um indivíduo “carregado” de baraka. Outrossim, Geertz afirma que expandindo esse conceito pela especificidade e delimitação, pode-se incorporar conceitos como prosperidade material, bem-estar físico, realização, sorte, plenitude e o aspecto mais enfatizado pelos estudiosos ocidentais que seria o mana ou poder mágico. Grosso modo, não é uma força paranormal, espécie de eletricidade espiritual, visões estas que simplificam mais que explicam. A questão relevante e a concepção do modo pelo qual o divino atinge esse mundo. Implícito, incriticável e longe de ser sistemático é também uma “doutrina”. CORNELL, op.cit., XXV e GEERTZ, Clifford. Islam Observed: Religious development in Morocco and Indonesia. Chicago: The Chicago University Press, 1971, p. 44. 287 CORNELL, op. cit., pp. 144-145. 288 Ribat, fortaleza, posto fronteiriço, albergue religioso, centro sufi. Rabat, capital do Marrocos, tem origem em um ribat. 289 GEERTZ, Meaning and order in Moroccan society, p. 9. 290 Hadras, presença, reunião sufi para recitar os dhikrs. 291 Dhikrs, lembrança, invocação, exercício espiritual realizado para invocar a presença de Deus através de um ser. Os métodos empregados, invocação rítmica dos nomes ou atribuições de Deus, para obter concentração espiritual.

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movimentos corporais. O estado de inconsciência podia ser atingindo no limiar da hiperventilação através de ritos coletivos. Com a utilização dessas técnicas, o equilíbrio do gás carbônico e do dióxido de oxigênio no cérebro era alterado, criando condições extremamente favoráveis a visões e alucinações.292 Devido à intensidade dessas experiências emocionais através do círculo do dhikr, a irmandade estreitava seus laços de devoção e solidariedade, não apenas entre os ikhuwan, mas também com seus líderes (sheyks, murshids).293 A um círculo de dhikr, juntavam-se outros localmente e, no caso de ordens maiores, atravessavam fronteiras, criando dessa maneira um coesivo corpo de membros. As ordens, além de preocupações espirituais, abrangiam atividades sociais e mundanas e podiam influir na política local. De acordo com B.G. Martin, as tariqas mais populares tendiam a se imiscuir mais em assuntos políticos devido ao maior grau de dependência emocional entre os seus membros e os seus líderes. Entre as chamadas ordens “intelectualizadas” , como as otomanas e a egípcia Khalawtia, havia menos dependência e menos coesão dessa natureza.294 Lealdade, entusiasmo e compromisso com a irmandade são pressupostos para a atividade política. De forma análoga, o grau de controle exercido pelo sheik sobre uma irmandade era fundamental. Se esse controle fosse completo, então a convertibilidade da irmandade para ação política e mesmo militar seria sobremaneira facilitada. Porém, a atividade política não era inerente às irmandades, não havendo uma ação específica na defesa do Islã nem no que é chamada “resistência primária”.295 Sendo essencialmente organizações místicas, as ordens permaneciam primordialmente fiéis aos seus propósitos. Entretanto, essa posição era passível de mudança no caso das irmandades estarem sujeitas a pressões externas. O mundo Islâmico no final do século XVIII encontrava-se sob pressão da Europa. As ordens sufis, assim como toda comunidade muçulmana, partilhava do medo concretizado com a perda de terras muçulmanas para países europeus. A invasão napoleônica do Egito confirmou a tendência de um padrão que objetivava a defesa do Dar al-Islam. B.G. Martin definiu como sufis moderados os lideres dos jihads, que através destes, tornaram-se reformadores sociais, mestres místicos e teólogos. Nesse grupo estão incluídos os mestres Qadiris, Uthman dan Fodio, Amir Abd al-Qadir e o sheyk Uways al-Barawi. 292 MARTIN, B.G. Muslim Brotherhoods in the Nineteenth-Century África. Cambridge: Cambridge University Press, 1976, pp. 1-2. 293 Ikhuwam, membro de uma ordem. Murshid, guia, mestre sufi. 294 MARTIN, op.cit., p. 2. MARTIN, B.G. “A Short History of the Khalwati Order of Dervishes”, in: KEDDIE, Nikki R. Scholars, Saints, and Sufis: Muslims religious instituitions since 1500. Berkeley:Smith Peter publisher, 1972, pp. 276-305. 295 MARTIN, op. cit., p. 2. Frase cunhada por T.O. Ranger.

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Nenhuma ordem sufi especificamente possuía o monopólio sobre a moderação política ou uma forma de misticismo. Porém, as três personagens citadas estavam fortemente ligadas ao misticismo e menos comprometidas com a política.296 Dotado de grande sensibilidade, amabilidade e de devoção puramente religiosa, Uthman dan Fodio retirou-se da vida publica e do seu jihad para viver entre os seus estudantes e práticas místicas. Possuía, assim como alguns de seus contemporâneos, grande habilidade para atrair adeptos. Sua independência, moderação e liberalidade lhe permitiram promover mudanças na arena jurídica e social. Uthman dan Fodio procurou romper com a velha tradição pétrea do taqlid297 para promover a prática flexível do ijtihad.298 Antecedentes dos jihads O crescimento da militância islâmica nos séculos XVIII e XIX foi o ponto de partida de uma ruptura radical do relacionamento estabelecido inicialmente entre os clérigos e os intelectuais muçulmanos, colocados à margem da disputa do poder político por governantes nominalmente muçulmanos e que, portanto, não eram passíveis de serem tratados como infiéis. Esse processo, longe de ser monolítico, foi o resultado de uma de série de fatores. Todos os jihads foram deslanchados pelos povos pastores de língua fulá, sob a liderança dos intelectuais Torodbe e Toronkawa. O papel desses grupos deve ser visto dentro de um contexto mais amplo da expansão da cidade para o campo. É significativo que todos os líderes dos jihads da África Ocidental eram oriundos do campo e não das capitais e centros comerciais. O desafio à posição marginal do Islã nas sociedades africanas não poderia ter vindo daqueles que eram privilegiados pela ordem política existente. Os principais beneficiários da ordem estabelecida eram os comerciantes protegidos pelos governantes e os clérigos cortesãos. As novas lideranças islâmicas estavam articuladas com as demandas dos camponeses. Nas terras hauçás, Uthman dan Fodio criticava os abusos dos governantes, e seu filho e herdeiro, Muhammad Bello, evocava a ira de Allah sobre os emires que tiravam seu sustento às custas da miséria do povo.299

296 Idem, p. 9. 297 Copiar ou aceitar sem questionamento. Na lei islâmica e a aceitação absoluta das resoluções das escolas islâmicas medievais. Essa visão conservadora foi continuamente questionada pelos renovadores islâmicos. 298 Exercício disciplinado da razão, por um erudito qualificado, face a questões de interpretação ou aplicação de princípios estabelecidos pelas escolas jurídicas tradicionais. Estas decisões podem legitimar novas interpretações das leis islâmicas. 299 FUDI, Uthman ibn. Infaq al-Maysur. London: Ed. C.E.J. Whitting, 1951, p. 80.

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A expansão do Islã na hinterlândia africana ampliou as bases do ensino religioso e da prática missionária. A disseminação do conhecimento islâmico entre os pastores e camponeses iletrados podia apenas ser feita através dos vernáculos locais. Paralelamente à transformação do Islã em uma religião popular e em uma força política, as sociedades islâmicas desenvolvem uma literatura religiosa. O mais antigo texto escrito em fulá data da segunda metade do século XVIII. Estes poemas foram escritos pelos reformadores islâmicos que procuraram atingir pessoas de todas as tendências. Poemas são facilmente assimilados e, portanto, uma importante ferramenta pedagógica que se tornou um dos mais importantes veículos de instrução e pregação. Poemas em vernáculo foram disseminados em cópias manuscritas entre grupos de muçulmanos letrados e recitados em público.300 Abdallah dan Fodio descreveu o papel do verso em vernáculo: “Então, seguimos o sheik ajudando-o em sua missão pela religião. Ele viajou com este propósito do leste para o oeste, conclamando o povo para aderir à religião de Deus e pregando através de suas qasidas, (poemas) em ajami (vernáculo) e destruindo os costumes contrários à lei islâmica”.301

Quando o sheyk percebeu que sua comunidade estava pronta para o jihad, “ele começou a incitá-los a pegar em armas..., e o fez através dos versos de um poema Qadiri em ajami (qasida ajamiya qadiriya). Este verso místico possuía um efeito hipnótico sobre os devotos na véspera do jihad.302 Muhammad Tukur, morto em 1817 e companheiro de dan Fodio, compunha poemas em fulá e em hauçá. Um dos seus poemas, “Os arautos das Boas-Novas”, é conhecido pelo grande impacto a partir de 1789, ano em que provavelmente foi escrito. Logo após sua composição, “quarenta pessoas subitamente aderiram à sunnah do Profeta”.303 A literatura islâmica em vernáculo surgiu na mesma época na África Oriental, no subcontinente indiano e no sudeste asiático. Por toda a parte, os versos místicos foram formas pioneiras e mais largamente conhecidas de gênero literário. Isso poderia ser atribuído à renovação que ocorria em todo mundo islâmico no século XVIII. 300 SOW, A.I. La femme, la vache, la foi: Ecrivains et pouvoir du Fouta Djalon. Paris: Julliard, 1966, pp. 12-16; SEYDOU, C. “Panorama de la Literature Peule”, in: Bulletin de I’FAN, 35, pp. 176-212, 1973. HISKETT, M. “Material relating to the state of learning among the Fulani before their jihad”, in: BSAOAS, 19, pp. 550-578, 1957 e BRENNER, L. & LAST, M.. “The Role of Language in West African Islam”, in: Africa, 55, pp. 432-446. 301 FODIO, Abdallah dan. Tazyin al-waraqat. Ibadan: Ibadan University Press, 1963, p. 85. 302 Idem, p. 105. 303 HAAFKENS, J. Chants musulmans en peul: textes de l’héritage musulmane de la communauté musulmane de Maroua, Cameroun. Leiden: E.J. Brill, 1968, p. 412 e HISKETT, M. A history of Hausa Islamic verse. School of Oriental and African Studies, 1979, p. 66.

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Como já foi mencionado, existiam idéias e práticas sufis em Tombuctu e nos estados hauçás nos séculos XV e XVI, mas não existe referência a irmandades sufis organizadas na África Ocidental antes do século XVIII. A irmandade Qadiria foi a primeira a ser introduzida no Saara, provavelmente no final do século XV. Porém, a Qadiria neste momento estava desorganizada e era conseqüentemente pouco eficaz , pelo menos até seu ressurgimento na segunda metade do século XVIII, sob a liderança de Sidi Mukhtar al-Kunti. Ele usou habilmente seu prestígio religioso para adquirir riqueza e influência política. Tanto indivíduos como facções tribais procuravam sua proteção. Ele reforçava os seus vínculos de clientela através da cadeia espiritual da irmandade sufi. Seus emissários, no Saara, no Sael e em Futa Jallon, ampliaram sua influência através de um novo ramo da irmandade conhecido como Qadiria-Mukhtaria. Sidi al-Mukhtar, como já citado anteriormente, não era partidário do jihad militante. Mesmo assim, apoiou o jihad de Uthman dan Fodio: “Isso, segundo o que ouvimos foi o que levou as pessoas a seguir o chamado de Uthman dan Fodio.”304 Na trajetória política de Uthman dan Fodio, sua experiência mística foi fundamental. Em 1794, ele teve um encontro místico com Abd al-Qadir al-Jilani, que o alcunhou de “Espada da Verdade”, a ser empunhada contra os inimigos de Allah.305 Dez anos depois em outro encontro místico, Abd al-Qadir al-Jilani instruiu Uthman dan Fodio a realizar a peregrinação a Degel que foi seu último ato antes de se lançar no jihad que daria origem ao Califado de Sokoto.306 Em todo corpo documental das fontes árabes para a história da África Ocidental existe apenas uma referência aos Estados hauçás. A exceção é o relato do viajante árabe Ibn Battuta, que mencionou Gobir (Kubar) como um dos destinos do cobre de Takedda.307 Isso pode ser explicado devido à prática dos geógrafos árabes de apenas mencionarem as regiões do Bilad al-Sudan que mantinham relações comerciais com a África do Norte, o que significa que os hauçás não estavam diretamente ligados ao comércio saariano. De acordo com Levtzion, a “Crônica de Kano”, que se constitui na principal fonte sobre o Islã na Hauçalândia, confirma esta assertiva.308 De acordo com a crônica, somente em meados

304 FODIO, Abdallah dan, op. cit, p. 104. 305 MARTIN, op. cit., p. 20 e HISKETT, M. The sword of truth. New York: Oxford University Press, 1973, p. 66. 306 Idem, p. 20. 307 LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 82. 308 Idem, p. 82.

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do século XV, as caravanas de sal provenientes de Air (Asben) no norte e as caravanas de Kola vindas de Gonja no sudoeste integram-se na rede comercial saariana.309 O Islã foi introduzido um século antes do reinado de Yaji, rei de Kano (1349-1385), quando os comerciantes e clérigos wangara chegam de Mali. “Quando eles chegaram, ordenaram ao sarki observar os horários de oração e ele se submeteu... O sarki ordenou que todas as cidades de Kano observassem os horários das orações... A mesquita foi construída sob uma árvore sagrada na direção do Oriente e as cinco orações obrigatórias observadas nos horários estipulados”.310

O chefe religioso local se opôs à prática das orações islâmicas: “...e quando os muçulmanos depois da oração iam para suas casas, ele vinha com seus homens profanar toda a mesquita e cobri-la de sujeira. Os muçulmanos oraram e o chefe dos pagãos ficou cego juntamente com todos os pagãos que participaram da profanação”. 311

Os representantes da religião tradicional foram derrotados em seu território por um poder religioso superior. A eficácia da nova religião foi colocada à prova quando os muçulmanos levaram Yeiji, rei de Kano, à vitória sobre seu mais poderoso inimigo. Quando, porém, seu filho Kanajeji (1390-1410) mais tarde foi derrotado, ele promoveu a volta dos sacerdotes tradicionais que haviam prometido sua ajuda se o rei restaurasse os ritos abandonados pelo seu pai. Kanajeji submeteu-se e o sacerdote tradicional assegurou a vitória sobre seus inimigos; o Islã dessa maneira, temporariamente perdeu terreno. A segunda geração voltou à religião tradicional, mas a terceira aderiu completamente ao Islã. Em Kano, como em outros reinos africanos, os filhos dos soberanos recebiam instrução corânica elementar. Poucos, no entanto, lograram superar as expectativas dos príncipes e tornaram-se muçulmanos sinceros. Umaru, filho de Kanajeji (1410-1421), foi discípulo de um wangara que se encontrava em Kano na época de Yaji. Quando o primeiro foi coroado rei de Kano, seu amigo Abu Bakr deixou Kano e foi morar em Bornu por onze anos. Quando retornou de Bornu, encontrando Umaru ainda soberano de Kano, Abu Bakr lhe disse: “Ó Umaru, você ainda está flertando com a dama inconstante que o enganou”. Ele discorreu sobre outro mundo, o sofrimento, a punição, o mundo 309 LOVEJOY, Paul E. Caravans of kola: The Haussa kola trade. 1700-1900. Zaria/Ibadan: Ahmadu Bello Press Limited, 1980. 310 LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 82. 311 Idem, p. 82.

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vilipendiado com tudo que existe nele. Umaru disse: “Eu aceito a admoestação”. Ele convocou o povo de Kano e

comunicou: “esse alto posto é uma armadilha para a

perpetuação do erro: eu lavo as minhas mãos de tudo isto”. Renunciou e foi embora com seu amigo Abu Bakr. Passou o resto de sua vida em arrependimento pelos seus atos como rei. Desta tradição, mais uma vez, depreende-se a incompatibilidade entre ser um chefe guerreiro e um muçulmano devoto.312 A chegada do Islã a Kano coincidiu com a mudança da dinastia Saifawa de Kanem para Bornu, tornando-os vizinhos dos estados hauçás. Embora os primeiros clérigos muçulmanos tenham vindo de Mali, aparentemente a influencia islâmica de Bornu foi igualmente importante. O conhecimento islâmico no país hauçá foi modernizado com a chegada dos fulás em meados do século XV. Eles ficaram conhecidos como os fulás Torodbe ou Toronkawa sedentários. Viviam em enclaves rurais onde cultivavam o conhecimento islâmico. Diferentes dos seus correspondentes urbanos de Tombuctu, eles possuíam conhecimento da arte da guerra e da cavalaria. Eles não rendiam seus serviços religiosos aos governantes locais e, portanto, não participavam de cerimônias não-islâmicas. Mantinham contatos com os governantes, mas não estavam integrados no sistema político. As tensões geradas por esse abismo mental e físico tiveram como conseqüência tardia a confrontação através dos jihads. O Islã integrou-se religiosamente, socialmente e culturalmente no cotidiano dos hauçás sem uma ruptura com o passado. Aqueles que clamavam por reformas, de acordo com a “Crônica de Kano”, eram conhecidos como shurafa e eram liderados por AbdurRahman. Este é identificado, mais tarde, no texto da Crônica como Abdu-Karimi, sem dúvida Abd al-Karim al-Maghili, o intelectual militante magrebino que influenciou fortemente Kano e Songhai. Ele ordenou que Rumfa, o rei de Kano, cortasse a árvore sagrada sob a qual a mesquita foi construída para simbolizar a simbiose do Islã com a religião tradicional. Muhammad Rumfa, foi contemporâneo dos soberanos reformistas de Songhai, Askyia Muhammad e de Bornu, Ali Ghaji. Em Kano, como em Bornu, a devoção e erudição dos soberanos atingiram seu auge na segunda metade do século XVI. O filho de Abu Bakr Kado (1565-1573) dedicou-se exclusivamente aos serviços religiosos. Desdenhou de seus deveres de rei e fez seus príncipes passarem a maior parte do tempo rezando e estudando o Corão. A religião tradicional, porém, emerge mais uma vez, no reinado de Mohammad Zaki (1582-1618), 312 Ibidem, p. 83.

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com o surgimento de práticas sincréticas como a veneração do Dirki, um Corão coberto com camadas de pele de cabra. Para enfrentar os recorrentes ataques de Kworarafa e Katsina nos séculos XVII e XVIII, os reis de Kano procuraram refúgio em rituais e mágicas dos sacerdotes tradicionais e dos clérigos islâmicos locais. Os chefes de Kano vacilavam entre as duas práticas religiosas, optando por uma ou outra de acordo com os resultados obtidos. O culto bori, por exemplo, foi a sobrevivência religiosa mais comum entre os hauçás. Aos espíritos bori foram dados nomes islâmicos e simultaneamente, os jinns muçulmanos ou demônios identificaram-se com os espíritos bori. O fato dos espíritos bori tornarem-se islamizados dificultou sua erradicação.313 Até o século XIX, Katsina, ao norte de Kano, foi a mais importante cidade comercial dos domínios hauçás. De fato, os wangará em Katsina mantiveram sua identidade por mais de quatro séculos. Mesmo tardiamente, em meados do século XIX, Barth observou que a maioria dos comerciantes de Katsina eram wangarás.314 No final do século XV, os líderes da comunidade wangará de clérigos e comerciantes sentiram-se suficientemente fortes para tomar o poder. Muhammad Korau, um clérigo, torna-se rei de Katsina. Ibrahim Sura (1493-1498) foi o segundo governante muçulmano depois de Korau, e citado por al-Suyuti em seu tratado endereçado aos reis e sultões de Tacrur.315 Este tratado tendia a contextualizar o Islã como um elemento relativamente novo na estrutura política e social. Os governantes muçulmanos de Katsina, não foram totalmente bemsucedidos nos seus esforços de converter Katsina em um Estado islâmico. Em face de uma resistência obstinada, eles se viram forçados a chegar a um acordo com o durbi, o sacerdote-chefe. O resultado foi uma espécie de dual establishment, no qual o durbi escolhia o rei. Desta forma, o reinado em Katsina tomava forma de um reinado sagrado tradicional. Ibrahim Maje (1549-1566) foi o reformador islâmico em Katsina, ordenando a implementação da shari’a nos casamentos e ameaçando com prisão quem transgredisse as prescrições religiosas. O número de intelectuais muçulmanos no seu reinado aumentou consideravelmente. Intelectuais de Tombuctu que visitavam Kano e Katsina a caminho da peregrinação a Meca paravam por algum tempo nessas localidades, contribuindo desta maneira para a melhoria do conhecimento islâmico das comunidades hauçás. Ao longo do século XVII, o conhecimento islâmico esteve associado a Muhammad b. al-Sabbagh, 313 HUNWICK, John. “Black Slaves Religious Practices in the Mediterranean World: Introduction to a neglected aspect of the African dispora”, in: SAVAGE, Elizabeth. The human commodity: Perspectives on theTran-Saharan slave trade. London: Frank Cass, 1992. 314 BARTH, H. Travels and Discoveries in North and Central Africa. London: Frank Cass, 1968, p. 82.

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conhecido em terras hauçás como Dan Marina. Ele reuniu à sua volta uma comunidade intelectual versada em todos os ramos do conhecimento islâmico. Alguns membros desta intelligentsia foram empregados na corte, porém os principais postos na administração eram ocupados por escravos e eunucos. Um dos últimos reis de Katsina antes do jihad, Gozo (1795-1801) aproximou-se mais do Islã que seus predecessores. Ele construiu mesquitas, apoiou a aplicação da shari’a, mas não escapou do envolvimento com o culto de divindades tradicionais devido à legitimidade de sua dinastia estar ainda fortemente ligada à estrutura da religião tradicional. Suas ações demonstravam claramente o dilema de um governante entre duas tradições religiosas. Os escravos palacianos opunham-se às tentativas de Gozo de impor a shari’a e impuseram o sucessor de Gozo, Bawa dan Gima, que viria a ser um instrumento nas mãos desses escravos palacianos. Os eruditos islâmicos alienados do poder preferiam viver na periferia de Katsina, em vilas dentro de um raio de quinze quilômetros da capital. Nessas localidades, desfrutavam de grande autonomia e suas mesquitas atraíam mais devotos que as da cidade grande. Foi dessas vilas que saíram os partidários do jihad de Uthman dan Fodio. Os governantes ignoravam-nos devido ao seu pequeno número e de sua localização periférica distante dos principais centros populacionais e do poder político. A antiga cidade de Yandoto, fundada pelos clérigos e comerciantes wangara, prosperava com o crescimento do comércio de noz de kola da bacia do Volta na segunda metade do século XVIII. Esta próspera comunidade muçulmana preferiu manter seu status quo e se opôs ao jihad do shehu dan Fodio. Sidi al-Mukhtar não era partidário do jihad militante. Seu filho se opôs ao jihad do sheyk Ahmad de Massina e de seu neto, al-Hajj Umar. Porém, Sidi al-Mukhtar, um sufi pacifista, apoiou o jihad de Uthman dan Fodio na atual Nigéria setentrional. Os encontros místicos com Abd al-Qadir al-Jilani, fundador da Qadiria, ajudaram a legitimar o jihad na Hauçalândia. O momento dramático do desenvolvimento da militância islâmica ocorreu quando os reformadores radicais introduziram o conceito de tafkir, o que significava que indivíduos considerados previamente muçulmanos podiam ser considerados infiéis. AlKanemi na sua argumentação contra o conceito de jihad insistia que o consenso islâmico (ijma) era contrário a qualquer anatematização dos muçulmanos. O fato de um muçulmano ser pecador não o tornava um apóstata. Uthman dan Fodio, por sua vez, justificava o jihad 315 PALMER, H.R. “An early Fulani conception of Islam”, in: Jornal of African Society, 13, pp. 407-414,

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devido à acomodação do Islã com as religiões tradicionais entre os hauçás. Uma ideologia anti-jihad é atribuída a al-Hajj Salim Suwari, arquiteto dos costumes dos juula e jakhante que teria vivido no final do século XV. Ele ensinava que alguns povos podiam viver na ignorância mais tempo que outros e sua verdadeira conversão aconteceria quando Deus quisesse. O proselitismo seria uma interferência nesse processo determinado por Deus; portanto, o jihad era um método inaceitável de conversão. Os muçulmanos devem aceitar a autoridade de não-muçulmanos e mesmo apoiá-los através de serviços religiosos, até o momento em que os governantes pudessem praticar o Islã de forma adequada. Nos séculos XVII e XVIII, o Islã expande-se dos centros urbanos para o interior. Enquanto o comércio serviu como base econômica para a erudição islâmica nas cidades, o Islã rural dependia do trabalho escravo e do trabalho dos estudantes (talamidh). Dentre as linhagens clericais do Saara, mestres e estudantes deslocavam-se juntos em grupos nômades e seminômades. Em Bornu, intelectuais radicais retiraram-se dos centros de poder político e estabeleceram comunidades religiosas autônomas. Esses enclaves autônomos de erudição rural, conhecidos como mallamati, mantinham apenas o mínimo de intercâmbio com o mundo exterior. No Sudão nilótico, centros de estudos rurais combinavam o ensino legal com o sufismo desenvolvido após o século XVI. Em algumas das terras meridionais mais férteis da Somália, grupos de eruditos estabeleceram-se entre as mais poderosas tribos rivais da região. Pregadores muçulmanos itinerantes deslocavam-se entre as comunidades rurais islâmicas. Uthman dan Fodio, em pessoa, dirigia-se aos camponeses, arbitrava seus agravos, criticava seus governantes que os coagia fisicamente, violavam sua honra e extorquiam suas riquezas. Seu filho Muhammad Bello, evocava a ira de Allah sobre “os emires que tiravam seu sustento do povo e não se preocupavam em tratá-los com justiça”.316 É significativo que todos os líderes dos jihads na África Ocidental vieram do interior e não das capitais ou de centros comerciais. O desafio ao papel marginal do Islã nas sociedades africanas não veio dos ulemás, porta-vozes dos comerciantes, nem dos clérigos que freqüentavam os príncipes. O desafio veio, grosso modo, dos enclaves comunais rurais, pastorais e autônomos.

1914. 316 MARTIN, B.G. “A Muslim political tract from Northern Nigeria”, in: CALL, Daniel Mc & BENNET, Norman R. Aspects of African Islam. Boston: Boston University Papers on Africa, 1971, p. 80.

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Servos de Allah ou servos do homem? Escravidão sob a perspectiva islâmica na África O discurso islâmico sobre a escravidão baseia-se centralmente na religião e não na raça, ao contrário da perspectiva européia que legitimou a escravidão através da premissa de superioridade racial. No ocidente, a erradicação da escravidão veio por intermédio do Iluminismo europeu baseado nos “Direitos do Homem” inspirados pela Revolução Francesa e pelo movimento reformista cristão na Inglaterra. Esta visão parcial, no caso específico da África Ocidental, obstruiu a visão das políticas islâmicas desenvolvidas para legitimar a escravidão ou abolir tráfico. Lovejoy criticou a perspectiva que monopoliza abolição apenas como produto de idéias européias. Segundo ele, os muçulmanos possuíam também uma visão crítica do tráfico, por outra perspectiva, igualmente parcial, mas com objetivos e métodos próprios.317 Sob uma perspectiva islâmica não houve “racialização” da matéria. A aplicação destas práticas em diferentes contextos temporais, políticos, sociais e econômicos não deve ignorar tão vasto cânone, seja sagrado ou secular. Sobretudo quando estas realidades não podem ser dissociadas à luz da doutrina islâmica. O ideal abolicionista europeu concentrou-se no tráfico atlântico, enquanto o debate islâmico enfocou basicamente a emancipação e a proteção dos muçulmanos cativos. A missão do oficial britânico e diplomata Hugh Clapperton, entre 1822 e 1825, é uma oportunidade de se atestar como as idéias abolicionistas européias foram recebidas nas cortes de Borno e do Califado de Sokoto. No contexto islâmico, entretanto, debatiam-se teses sobre quem seria passível de ser escravizado “justamente”, e mesmo para quem esses cativos “legítimos” poderiam ser vendidos.318

317 LOVEJOY, Paul E. “The Bello-Clapperton exchange: The Sokoto jihad and the Trans-Atlantic slave trade”, in: WISE, Christopher. The desert shore: Literatures of the Sahel. Boulder (CO): Lynne Rienner Publishers, 1984, p. 201. 318 Escravos são mencionados pelo menos 21 vezes no texto corânico, na maioria das vezes no contexto dos versículos de Medina. Porém esse número não é exato, pois existem vários termos diferentes para designar escravo, assim como significados não específicos que tornam a tradução ou versão problemática. BROCKOPP, Jonathan E. Early Maliki Law: Ibn Abd al-Hakam and his major compedium of jurisprudence. Leiden; Boston; Köln: Brill, 2000, p. 128.

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Figura 4: escravo trazendo comida, provavelmente na Síria século XIII

Fonte: LEWIS, Bernard. Race and Slavery in the Middle East: An Historical Enquiry. Oxford: Oxford University Press, 1990.

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Figura 5: mercado escravo em Zabid Yemen, século XIII.

Fonte: LEWIS, Bernard. Race and Slavery in the Middle East: An Historical Enquiry. Oxford: Oxford University Press, 1990.

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De acordo com Lovejoy, nas primeiras décadas do século XIX, talvez um terço dos escravos deportados para a América fosse de muçulmanos do interior, incluindo os identificados como hauçás, nupe, borno e um número crescente de povos iorubás setentrionais. A presença maciça de muçulmanos na população lançada na diáspora atlântica foi conseqüência direta da situação política existente no Sudão Central, mais especificamente dos jihads que consolidaram o Califado de Sokoto após 1804.319

Figura 6: uma mulher do Sudão, século século XVII

Fonte: LEWIS, Bernard. Race and Slavery in the Middle East: An Historical Enquiry. Oxford: Oxford UniversityUniversity Press, 1990.

A liderança islâmica no início do século XIX produziu grande quantidade de literatura jurídica e de ações políticas concernentes à escravidão. Além disso, a

319 Idem, p. 202.

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escravização de muçulmanos foi uma questão decisiva no desdobramento político-militar do jihad de Sokoto.320 O debate intelectual e político islâmico sobre a escravidão é muito anterior ao Iluminismo europeu. A concepção islâmica concebe a escravidão como um meio de converter não-muçulmanos. Era dever do senhor, portanto, instruir seu escravo na religião. Teoricamente, muçulmanos não podiam ser escravizados, apesar desta premissa ter sido violada com freqüência. A jurisprudência islâmica apenas permitiu a escravidão em dois casos específicos: a criança nascida de ventre escravo e os cativos de guerra. Mesmo nesses dois casos, entretanto, foram previstas atenuantes. A criança nascida de mãe escrava com o senhor era automaticamente livre, a não ser no caso do pai ser escravo. A escravização de cativos em guerra excluía os muçulmanos, baseando-se na premissa da proibição de guerra entre muçulmanos. Portanto, a guerra e a escravização de infiéis foi simultaneamente uma recompensa para muçulmanos mortos em combate e uma forma de promover a conversão de não-muçulmanos.321 A conversão significava assimilação à sociedade senhorial, e de acordo com a jurisprudência religiosa, era o pré-requisito para a emancipação que normalmente garantia um melhor tratamento. Uma característica fundamental da escravidão nas sociedades muçulmanas foi que a manumissão e a conseqüente mudança de status estavam claramente definidas nos códigos legais islâmicos. Em comparação, por exemplo, a escravidão tradicional africana dependia de um longo processo de assimilação de gerações através de casamentos até que o indivíduo se integrasse inteiramente ao grupo. Nessas sociedades, o processo de emancipação era raro, enquanto que nas sociedades islâmicas era grosso modo um ritual de passagem habitual.322 A história das escolas de jurisprudência islâmica na África ainda é um vasto terreno, variado e escassamente catalogado nos mapas acadêmicos.323 A escolas legais islâmicas oferecem uma gama variada de tradições. As quatro escolas clássicas são definidas como hanafita, malikita, shafiíta e hanbalita. Existem ainda escolas minoritárias ligadas ao xiismo e aos ibaditas. Cada escola desenvolveu um corpo de textos que consistiu de métodos genéricos de raciocínio legal, assim como em questões especificas. Cada área 320 FISHER, Humphrey. “A Muslim Wilberforce? The Sokoto jihad as anti-slavery crusade: An enquire into historical causes”, in: DAGET, Serge. De la traite à la l’esclavage du V au XIX siècle. Nantes: Université de Nantes/SFHOM, 1988, vol 2, pp. 537-555. 321 SEGAL, Ronald. Slavery and Islam: the other Black Diaspora. New York: Farrar, Straus & Giroux, 2001, pp. 36-37. 322 LOVEJOY, Transformations in Slavery, p. 17. 323 CHRISTELOW, Allan. “Islamic law in Africa”, in: LEVTZION & POUWELLS, op. cit., p. 373.

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do mundo islâmico possui uma tradição dominante, mas em alguns casos podem coexistir mais de uma tradição em uma mesma região. O sistema legal islâmico era, de várias maneiras, diferente dos sistemas tradicionais africanos, porém, através de especialistas legais muçulmanos, foi possível mesclar as duas tradições. Os primeiros centros de estudo da lei islâmica no ocidente instalaram-se em Qayrawan, hoje Tunísia e Córdoba, então capital de al-Andalus. Nos dois centros, a escola malikita prevaleceu depois de um longo período de disputa. As razões para esse triunfo abrangem desde inclinações políticas dessas regiões até padrões geográficos e afinidades sociais. O estabelecimento das instituições legais islâmicas no Magrebe e em al-Andalus coincidiu com os dois primeiros séculos do califado Abássida (750-950). Os juristas do ocidente islâmico não possuíam laços particularmente fortes com os califas instalados na distante Bagdá, que adotavam o rito da escola hanafita. Quando os estudiosos ocidentais viajavam para o oriente em peregrinação ou para estudos, freqüentemente se dirigiam para o Egito e para Medina. Esta última foi o lar de Malik Ibn Anas e o centro de sua escola. Os ressentimentos políticos trabalhavam contra o rito hanafita, enquanto a localização geográfica favorecia a escola malikita.324 Espelhando-se na sunnah ou na tradição de Madina, Malik ibn Anas privilegiou os vínculos de parentela em detrimento do status social que então predominava na cosmopolita Kufa, no Iraque, terra de origem da escola hanafita. Essas diferenças revelaram-se consideráveis em questões técnicas como a qualificação de parceiros matrimoniais. Compreensivelmente, a preferência pela escola malikita no ocidente islâmico pode ser entendida em uma sociedade menos cosmopolita e mais centrada em vínculos consangüíneos que as terras centrais dos Abássidas. Essa preferência também explicaria o sucesso malikita no bilad al-Sudan e no alto Egito.325 O período entre os séculos XIV e XIX foi marcado pela estabilização e elaboração das tradições jurídicas islâmicas nos centros urbanos de populações de língua árabe e os vigorosos esforços de adaptação nas terras sudanesas. A islamizacão de estados tradicionais entre os séculos XVI e XVIII, na região do cinturão sudanês a Bornu, Dar Fur e Sinnar, produziu sínteses importantes entre as tradições islâmicas e sudanesas. Esses arranjos tendiam a serem flexíveis, para atender às mudanças econômicas e circunstâncias políticas.326 324 TURKI, A.M. “La vénération pour Malik et la physionomie du malikisme andalou”, in: Studia Islamica 33, 1971, pp. 41-65. 325 CHRISTELOW, op. cit., p. 376. 326 SPALDING, Jay. “The evolution of the Islamic judiciary”, in: International Jornal of African Historical Studies, 10, 1977, pp. 408-426.

FIGURA 7: Guiné, século XVII

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FONTE: Jan Jasson, 1647, Coleção da Biblioteca de Perry-Castañeda, University of Texas-Austin. A islamizacão de estados tradicionais entre os séculos XVI e XVIII, na região do cinturão sudanês a Bornu, Dar Fur e Sinnar, produziu sínteses importantes entre as tradições islâmicas e sudanesas. Esses arranjos tendiam a serem flexíveis, para atender às mudanças econômicas e circunstâncias políticas.327 A shari’a nesse contexto foi fundamental na discussão sobre a escolha dos governantes. Dessa forma foi possível estabelecer um sistema único ao longo de uma extensa região destacando muçulmanos e não-muçulmanos, distinção crucial para definir os limites da escravização e o pagamento de impostos. Nos séculos XVIII e XIX no Sudão Central, os jihadistas de Sokoto implantaram a lei islâmica mais pela força da cultura escrita e oral do que pela espada, discutindo em prosa e verso a shari’a aplicada em situações familiares à população local.

327 SPALDING, Jay. “The evolution of the Islamic judiciary”, in: International Jornal of African Historical Studies, 10, 1977, pp. 408-426.

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As fontes e o surgimento de uma jurisprudência A escassez de fontes secundárias para os dois primeiros séculos da era islâmica pode ser explicada pela falta de documentos que expliquem as mudanças substanciais na jurisprudência sobre a escravidão ocorridas entre o Corão e as primeiras fontes legais.328 Esse hiato abrange um período de 135 anos entre 632 e 767. Antes disso o Corão e as fontes históricas podem ser usados para avaliar as condições primitivas dos escravos no Islã. Para o período posterior a 767, pode ser utilizado o corpo jurídico malikita a partir das obras al-Muktasar al-kabir e Muwatta. Devido à falta de documentação independente para essa época, algumas questões importantes levantadas sobre a historicidade das fontes literárias precisam ser enfocadas. A reconstrução da jurisprudência islâmica sobre a escravidão e sua prática no período corânico baseia-se, segundo Brockopp, no terreno das delicadas fontes literárias tradicionais do Corão e nos hadiths com a biografia do Profeta. No seu estudo ele utilizou a versão padrão egípcia do Corão como fonte de informação sobre o tratamento de escravos antes de 632.329 O estudo das primeiras leis revela uma extraordinária disposição de debater as implicações legais dos versículos corânicos e a tendência de se interpretar os hadiths para preestabelecer pontos de vista legal. Outra questão é a admissão clara da escravidão encontrada no Corão (assim como em outros textos religiosos) e a inexistência de escravos nas sociedades islâmicas atuais. A escravidão, profundamente incorporada à sociedade islâmica no passado, não faz parte da agenda político-social nem dos mais conservadores dos estados islâmicos modernos. No final do século XIX, os ideais de justiça e igualdade entre os crentes prevaleceram sobre a opressiva instituição da escravidão.330 A decisão de se modificar um aspecto da lei islâmica nunca havia sido objeto de questionamento.

328 Segundo Brockopp, em contraste, os relatos de escravidão doméstica na Grécia antiga, Roma, Egito e Babilônia são mais completos. BROCKOPP, op. cit., p.117. Os relatos mais próximos da escravidão doméstica na sociedade islâmica tratam do mercado de escravos. Esses mercados revelam importantes aspectos da escravidão como um fenômeno mais abrangente e nos permite conhecer mais sobre o tráfico escravo do que vida dos escravos domésticos. Ver: RAGIB, Yusuf. “Les Marchés aux esclaves en terre d’Islam”, in: Mercati e Mercanti nell alto medioevo. Spoleto, 1993, pp. 721-763. Ragib também relata a pseudociência da fisiognomonia pela qual os escravos eram examinados. Esse assunto é objeto do estudo de MÜLLER, Hans. Die Kunst des Sklavenkauf, nasch arabischen, persischen und türkischen Ratgebern vom 10. bis zum 18. Jahrhundert. Freiburg: i.B., 1980 e LEWIS, Bernard. Islam from the Prophet to the Capture of Constantinople. New York: Harper Collins, 1974. 329 BROCKOPP, op. cit., p. 119. 330 Idem, p. 208.

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Mudanças de teorias morais tão profundamente arraigadas implicam em questões incômodas que resistem ao desmantelamento, como no caso de instituições opressivas. A história da escravidão sobre o tratamento dos escravos no texto corânico e no tempo do Profeta pode ser reconstruída de forma confiável devido às informações biográficas preservadas pelos muçulmanos de todo e qualquer individuo próximo ao Profeta. A escravidão doméstica nos séculos posteriores é menos conhecida. Entretanto, a vida de escravos palacianos, soldados e escravas treinadas como poetisas, tem sido objeto de estudos recentes.331 No tempo da elaboração da lei malikita, os juristas islâmicos já haviam desenvolvido uma estrutura sofisticada e um vocabulário próprio sobre a jurisprudência escrava. Todos os primeiros textos legais compartilhavam algumas categorizações básicas. Por exemplo, os deveres religiosos (ibadat) eram tratados, primeiramente, seguindo-se a herança, o casamento e o divórcio.332 Os juristas reservaram cerca de cinco capítulos particularmente para a emancipação de escravos (itq), a relação do liberto com o cliente de seu ex-senhor (wala), o escravo a quem era prometido a manumissão após a morte do senhor (mudabbar), o mukatab (escravo com contrato de emancipação) e umm walad (escrava que dava a luz à criança do seu senhor).333 O ponto significativo é a ênfase dada pelos juristas às questões concernentes à emancipação, em detrimento do tratamento devido aos escravos e os seus deveres. A despeito das limitações das fontes, o material conhecido é suficiente para uma análise ampla de questões específicas. Para a primeira categoria de emancipação, Malik ibn Anas, baseado na sunnah, proibiu manumissões que resultassem em liberdade parcial. Por exemplo, a situação em que apenas um detentor da parte do escravo concedesse a emancipação. Se esse sócio desejasse emancipar sua parte, teria que estar preparado para comprar a parte do seu sócio.334 No caso de herança, Malik adotou o princípio básico que o falecido poderia apenas legar um terço de sua propriedade. Os dois terços restantes deveriam ser divididos entre os herdeiros, de acordo com as leis corânicas sobre herança. Portanto, se um senhor fixasse em testamento a emancipação de escravos com valor correspondente acima do terço permitido, muito teria que ser discutido sobre quem realmente poderia ser emancipado. Nessa situação a emancipação parcial era

331 Ver: HRBEK, I. “Die Slawen im Dienst der Fatimiden”, in: Archive Orienalni , 21, 1953, pp. 543-581. 332 HEFFENING, W. “Zum Aufbau der islamischen Rechtswerke”, in W. Heffening and W. Kirfel (ed.) Studien zur Gestichte und Kultur des nahen und fernen Ostens. Leiden, 1935, pp. 101-118. 333 BROCKOPP, op. cit., p. 148. 334 Idem, p. 148. Abd Allah ibn Abd al-Hakam acrescenta que essa regra aplicava-se mesmo a escravos que pertencessem simultaneamente a muçulmanos e cristãos. Se o muçulmano emancipasse sua parte, deveria comprar a parte de seu sócio cristão.

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possível. Finalmente Maliki ibn Anas vetava expressamente a emancipação que estipulasse qualquer tipo de serviço do escravo liberto.335 A jurisprudência malikita tratou também de casos específicos de emancipação. No caso do senhor que ferisse seu escravo, ele poderia ser forçado a vendê-lo.336 Era proibido ao senhor emancipar escravos quando a emancipação resultasse em perigo para o emancipado.337 Quando o senhor fosse obrigado a libertar um escravo como punição de algum crime, o senhor era compelido a emancipar escravos que lhe causassem prejuízo real.338 Ainda sobre essa questão, o indivíduo que precisasse comprar um escravo para libertá-lo como punição não poderia mencionar o fato ao vendedor de escravos. Presumivelmente essa prática visava impedir que o dono anterior pudesse reduzir o preço original como ato de caridade e, portanto, beneficiar o punido. É preciso lembrar que as regulamentações em questão foram concebidas para os senhores, não obstante muitas delas terem contribuído para melhorar a situação dos escravos categorizados pela lei. As questões envolvendo vínculos de clientela na jurisprudência malikita derivam-se da posição do escravo como parte da estrutura familiar. É significativo que Maliki ibn Anas não tenha discutido os benefícios das relações de clientela, mas sim essas relações em diferentes situações de disputa.339 A sofisticação da lei malikita pode ser constatada pela sua especificidade, como por, exemplo, no caso da escrava grávida durante o processo de emancipação, e cujo marido continuava a ser escravo.340 Na mesma parte do código

335 O escravo emancipado tem o direito de propriedade sobre seus pertences, embora no caso dos filhos, estes continuarem a pertencer ao senhor. Idem, p. 151. 336 Ibidem, p. 152. Abd Allah ibn Abd al-Hakam a perda da propriedade não implicava na perda dos direitos de clientela. É importante notar que essa punição especifica foi além das injunções encontradas no Corão. Podem ser encontradas exceções ao bom tratamento de escravos no al-Muktasar al-kabir. Por exemplo, quando estrangeiros, sob a proteção de muçulmanos, castravam escravos em terras islâmicas. A emancipação nesse caso não era um direito. A explicação para esse caso particular de maus-tratos sugere a existência de “fábrica de eunucos” em território muçulmano. Além disso, escravas podiam conseguir a emancipação através de um contrato “em troca de produção” por crianças (que seriam escravas), mas nesses casos, havia a pré-condição que o procedimento não causasse danos psicológicos para a mãe. O que deixa subentendido que tal arranjo legal podia ser oneroso para a escrava. 337 No caso em que as dívidas ultrapassassem os bens do escravo ou o escravo masculino (gulam) que tivesse atingido a maturidade. Ibidem, p. 152. 338 Ibidem, p. 152. Ambas as fontes, cristãs e judaicas, incluem mukatab, mudabbar, o escravo maltratado, umm walad e o cego, como passíveis de serem libertados após alguns anos. Abd al-Hakam acrescentou os infantes em fase de amamentação, os portadores de enfermidades crônicas como também passíveis de manumissão, mas nesses casos específicos a decisão caberia inteiramente ao senhor. Em outra passagem, ele especifica os escravos que a propriedade não pode ser questionada legalmente: os eunucos, os mancos e os caolhos. 339 De acorco com Crone, os aspectos do clientelismo romano não podem ser confundidos com os mesmos aspectos da lei malikita. CRONE, Patricia. “Two legal problems bearing on the Early History of the Qur’an”, in: Jerusalem Studies in Arabic and Islam, 18, 1994, pp. 1-37. 340 Outros exemplos consideram a clientela das crianças nascidas de uma mulher livre com um escravo posteriormente emancipado; e o escravo que é libertado do seu senhor (sa’ibah), neste caso, os vínculos são transferidos a toda comunidade muçulmana. Ver CRONE, op. cit., p. 68, sobre uma interessante interpretação dessa prática.

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malikita, trata da questão de quando o status do escravo bloqueia a sucessão da herança. Em alguns casos pode ser bloqueado, por exemplo, no de uma criança nascida de um relacionamento de uma mulher livre e um escravo que falece posteriormente. Nestas condições, a herança da criança passa para a linha sucessória materna por linhagem agnata.341 No entanto, se o pai, mesmo na condição de escravo, possuir um avô livre, este passa a ter direito sobre sua herança. Finalmente nessas questões envolvendo os vínculos de clientela, o código malikita estabeleceu que essa relação não é um commodity e, portanto, não pode ser alienada do seu detentor sob qualquer alegação.342 De acordo com Brockopp, a contribuição corânica pode ser traduzida na sua ênfase em contextualizar o escravo na sociedade e na responsabilidade desta sociedade em relação aos escravos.343 Essa atitude pode ser percebida nas exortações ao bom tratamento dos escravos, à emancipação e à ajuda para que conseguissem adquirir a liberdade. A postura corânica em relação à escravidão refletiu o desejo de criar uma poderosa comunidade de crentes que sobrepujasse a estrutura árabe baseada em clãs. Foram sobremaneira significativos os aspectos particulares dos antecedentes culturais enfatizados pelo Corão. Embora houvesse paralelos cristãos, judeus e romanos, a visão corânica de escravidão não se enquadrou em nenhum padrão existente, mesmo porque nenhuma dessas culturas foi tão claramente favorável à manumissão. Por último, o cristianismo pode ter enfatizado a igualdade dos escravos em termos religiosos, o judaísmo reduzido as punições de adultério com escravos e os romanos a proibido a prostituição escrava, mas somente o Corão combinou esses três elementos e provavelmente estabeleceu a legislação escrava mais progressista no seu tempo. Os exemplos analisados demonstram padrões estabelecidos nos primórdios dos códigos legais islâmicos. Esses códigos devem ser entendidos dentro de uma perspectiva islâmica, especificamente no caso das leis referentes à escravidão. A escola malikita, como já foi observado anteriormente, estabeleceu-se no Magrebe e na África Ocidental. No século XVIII, Ahmad Baba de Tombuctu escreveu o Mi’raj al-su’ud, segundo Hunwick, um tratado único no século XIX, que discutiu extensivamente a etnografia religiosa na África Ocidental com questões fundamentais como quais seriam os indivíduos passíveis de

341 No caso de se permitir ao escravo libertar um escravo de sua propriedade, os vínculos de clientela acumulados passam para o senhor original. BROCKOPP, op. cit., p. 153. 342 Especificamente não pode ser comprada, vendida, ou objeto de desistência. Abd al-Hakam estendeu essas assertivas estabelecendo que esse vínculo não podia ser mudado pelas autoridades por danos físicos ao escravo. Idem, p. 153. 343 Ibidem, p. 138.

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escravização e suas justificativas legais.344 O tratado foi utilizado pelo reformador fulá sheik Uthman dan Fodio, que o citou no seu texto sobre escravidão Bayian wujub al-hijra, atualizando as questões sobre os muçulmanos e os não-muçulmanos nas terras hauçás.345 Segundo Hunwick, o manuscrito foi presumivelmente produzido em Tuwat, levando-se em consideração que era endereçado aos estudiosos da região e também do Marrocos, onde Ahmad Baba era conhecido e respeitado e afinal aonde vários manuscritos de sua obra foram encontrados.346 Na introdução de sua obra, Ahmad Baba reproduz uma fatwa de Makhluf AlBalbali sobre os escravos do Sudão: “Resposta sobre a questão dos escravos. A origem da escravidão é a descrença. Os infiéis do Sudão são como esses cristãos, exceto aqueles sudan347 considerados majus.348 Para lembrá-lo que entre eles os povos muçulmanos de Kano, alguns de Zakzak, de Katsina, de Gobir e todos de Songhai, todos são muçulmanos e, portanto, não podem ser legalmente adquiridos. Similarmente, com todos os fulás,349 apesar de lutarem entre eles, praticarem incursões, capturando e vendendo uns aos outros em ataques predatórios ilegais e agressivos como os árabes que atacam muçulmanos livres comercializando-os ilegalmente. Não é permitido adquirir nenhum deles. Qualquer um que seja originário dessas terras, conhecidas como terras do Islã que mencionamos, e aqueles povos já mencionados, devem ser deixados em paz e considerados livres. Isso foi determinado pelos juristas da Andaluzia, como Ibn Attab e outros,350 e somente Ibn Lubaba351 se opôs a eles. Uma decisão similar foi dada pelos juristas de Fes e essa também foi a decisão de Sidi Mahmud, qadi de Tombuctu.352 Ele aceitaria seus pedidos de liberdade, ele se encarregaria de estabelecer se eles viessem das terras citadas. Qualquer um que busque salvação para si, deve apenas resgatar essas pessoas, que devem dizer de 344 HUNWICK, John & HARRAK, Fátima. Miraj Al-Su’ud: Ahmad Baba’s replies on slavery. Rabat: Institute of African Studies, University Mohammed V Souissi, 2000, p. 7. 345 Idem, p. 7. Ele utilizou o titulo alternativo al-Kashf wa’l-bayan li-asnaf majlub al-sudan. 346 Ibidem, p. 7. 347 Sudan, plural de aswad, quer dizer “negro”. Foi utilizado aqui em oposição ao termo bidan (branco), referente aos povos árabes e bérberes do Saara. 348 Termo aplicado coletivamente originalmente aos zoroastristas, do antigo Persa magush usado para designar os sacerdotes (magus, pl. magi), mais tarde usado genericamente a povos que não fossem judeus ou cristãos, mas com os quais os muçulmanos desejavam manter boas relações. Ver o hadith no qual o Profeta disse: “Trate-os como tratam o Povo do Livro” (judeus e cristãos). Ver: ANAS, Malik b. Muwatta al-imam Malik, riwayat Yahya al-Laythi. Beirut: Ratib Amrush, 1971, p. 188. No Mediterrâneo ocidental, entretanto, foi aplicado de forma hostil aos vikings. 349 No texto al-Fullan. Os fulás, fulbes ou fulanis eram povos que no início do século XVII já estavam espalhados através de toda África Ocidental, do Senegal a Bornu. 350 Abd al-Rahman b. Muhammad b. Al-Attab (520-1126), jurista de Córdoba. 351 Ibn Lubaba, Muhammad Abu Abd Allah b. Umar al-Qurtubi, jurista malikita de Córdoba e mufti na sua época. (926 ou 928).

127 onde vieram, dessas terras citadas ou não, quer das terras do Islã ou das terras dos infiéis. Essa prática de escravizar muçulmanos é uma grande catástrofe, cujos infortúnios e seus efeitos têm se espalhado por essas terras nesses tempos. Deus sabe mais. Assim respondeu o humilde servo de Deus, Makhlub b. Salih, possa Deus ser misericordioso com ele”.353

De acordo com essa fatwa, a escravidão estava definitivamente ligada ao status religioso do indivíduo, salvo exceções. É importante, no entanto, ressaltar que a identidade muçulmana não estava totalmente clara. Esta questão foi debatida continuamente nos tratados jurídico-religiosos elaborados pelos doutores da lei islâmica. Portanto, na tentativa de ser o mais preciso possível, a categorização era religiosa e étnica. O próprio Ibn Khaldun, cujo trabalho foi largamente utilizado como referência pelos juristas islâmicos, citando a maldição mencionada na Torá ele afirmava que não havia menção à “negritude”. A maldição à escravidão se limitava aos descendentes de Cam. Atribuir, segundo ele, a “negritude” a Cam revela equívoco da influência do clima sobre os seres humanos. Portanto, a cor da pele estaria ligada às nuances geográficas da adaptabilidade dos seres humanos ao meio em que viviam. Quando Ibn Khaldun comparou certos povos negros a bestas, não anatematizou estes em particular, pois incluiu os alvíssimos eslavos nesta categoria. Os abissínios, os povos do Mali e de Tacrur, por exemplo, eram igualmente negros. Os primeiros eram cristãos e os últimos muçulmanos; portanto, esses povos negros foram categorizados de forma distinta. Em outras palavras, seria um equívoco racializar de forma estrita os conceitos de Ibn Khaldun.354 O historiador muçulmano em geral estava de acordo com os padrões islâmicos que enfatizavam o status religioso como preponderante. Ibn Khaldun foi muito além, elaborando uma interpretação refinada e complexa da visão do homem sobre o “outro”. É necessário relativizar, sem sobressaltos, a obra do erudito de Tunis do século XIV, e sem jogá-la na vala comum da politização circunstancial. Em outra passagem traduzida por Hunwick do manuscrito de Ahmad Baba, alJirari em documento aparentemente anterior ao Miraj al-Su’ud, endereçou algumas questões tratadas posteriormente por Ahmad Baba. São questões sobre os grupos ou os 352 Mahmud b. Umar b. Muhammad Aqit al-Sanhaji, qadi (juiz) de Tombuctu, 1498-1548. Ver: HUNWICK, John. Timbuktu and the Songhay Empire: al-Sa’di’s Ta’rikh al-Sudan down to 1613 and other Conteporary Documents. Leiden: Brill, 1999, pp. 53-55. 353 Idem, p. 11. O texto dessa fatwa faz parte do codex de al-Isis. Ver Appendix 1 do texto em árabe. O Sudão em questão é o bilad al-sudan, a “terras dos povos negros”. 354 KHALDUN, Ibn. The Muqaddimmah: An Introduction to History. Princeton: Princeton University Press, 1989, pp. 58-59.

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povos que poderiam ser escravizados legalmente. Vários grupos são listados e, além disso, al-Jirari levanta delicada questão em que os governantes de Songhai estariam escravizando grupos que pagavam tributos e, portanto, estariam a salvo das incursões dos preadores de escravos. Hunwick argumentou na sua análise dos documentos que, embora Ahmad Baba pudesse ter respondido às perguntas de al-Jirari no seu exílio no Marrocos entre 15931608, não seria surpresa se Ahmad Baba, devido à natureza polêmica das questões, nunca tivesse respondido a al-Jirari. Este em sua carta faz algumas considerações reveladoras e complexas sobre a escravidão no Islã de acordo com as fontes tradicionais. “No caso de não se saber ao certo seu status, origem e se sua conversão foi anterior à captura, seria legal comercializar o individuo sem uma completa investigação? Essa investigação é compulsória ou recomendada? Qual seria o procedimento se chegasse a uma decisão dúbia? O que manda a lei? A palavra do escravo deve ser aceita ou não? Se a questão resultar em dúvida sobre o impedimento da escravização, ela deve ser anulada? Como é a jurisprudência estabelecida nos casos de divórcio e manumissão? Ou como proceder na dúvida sobre o estado de impureza após saber da necessidade do estado de pureza ser obrigatório? Ou no caso de se renunciar à retaliação quando um pai que matou o filho com uma lança não for condenado à morte devido à dúvida de sua intencionalidade. Sob que condições a retaliação seria necessária, devido à grande afeição e compaixão do pai? Em uma das respostas do jurista Abu Ishaq b. Hilal355, ele estabeleceu sua discordância afirmando que esses crimes provêm de ações inescrupulosas e, portanto, pode ser problemático imputar a esses delitos a dúvida sobre as condições em que foram cometidos. Al-Qarafi endossou a validade desses princípios na Dhakhira na parte que trata do consenso.356 A única diferença de opinião foi quanto à aplicação do princípio. Entretanto, isso depende da definição de ‘dúvida’. Para al-Hilali, ‘a dúvida é o conflito de duas possibilidades’. Esta definição se baseou no dito do Profeta (a paz e as bênçãos sobre ele): ‘O que é permitido é claro, o que é proibido é claro. O que fica entre esses conceitos é duvidoso, e sobre o qual muitos podem discorrer’, etc. Qual é o significado do hadith mencionado por al-Suyuti no Azhar al-urush fi akhbar al-Hubush, quando disse: ‘Ibn Mas’ud contou que Noé se banhava e notou que seu filho o olhava e disse, ‘Você está me olhando enquanto me banho? Que Deus mude sua cor! E ele tornou-se negro e o ancestral dos sudan’ (negros). Ibn

355 Abu Ishak Ibrahim b. Hilal al-Sijilmasi, (morto circa 1497-1498), jurista norte-africano célebre por suas fatwas. 356 Shihab al-Din Ahmad b. Idris al-Qarafi al-Sanhaji (morto em 1285), jurista malikita de origem bérbere que viveu no Cairo e advogava o principio que as leis deviam mudar conforme as circunstâncias.

129 Jarir (al-Tabari)357 disse: ‘Noé rezou para que Sem e seus descendentes fossem profetas e mensageiros e lançou uma maldição sobre Cam, rezando para que seus descendentes fossem escravos de Sem e Jafé’. Qual é o significado dos descendentes de Cam se tornarem escravos dos descendentes de Sem e Jafé? Se o significado é que exista infiéis entre eles, então (ser escravos) não está restrito a eles, nem de forma análoga (possuir escravos) restrita aos seus dois irmãos Sem e Jafé, porque o infiel pode ser propriedade de um branco ou de um negro. Qual é o significado de restringir a escravidão através da conquista aos sudan (negros)? Quando os que não são negros compartilham com eles o status de infiéis é que é o cerne da questão.358 Explique-nos a sabedoria dessa questão, que você possa ser recompensado. De forma similar soa o hadith: ‘Os seus escravos são seus irmãos. Deus os colocou sob sua responsabilidade.’ Existem outros hadiths que afirmam que um escravo é um infiel. Outro dito observa: ‘Procure os sudan’, e ‘Deus os colocou sob sua responsabilidade’. Isso se refere apenas à sua descrença, ou isto não está especificado? ...De forma análoga ao estabelecido pelos juristas: ‘A escravidão é a marca da descrença.’ O que isso significa? Tenha a bondade de remover o véu dos vários aspectos do problema e satisfazer nosso desejo de conhecer detalhes através da sua resposta, porque nós não encontramos ninguém que esclarecesse totalmente nossas dúvidas, exceto as explicações que receberemos por seu intermédio. Cometer um erro nesse assunto é um grave perigo. Todas as terras e regiões são afligidas por esse flagelo. Possa Deus permitir que a luz sobre o assunto chegue através de suas mãos. Deus, o Altíssimo, e a quem pedimos que sua recompensa seja duplicada e seu tesouro torne-se abundante”. 359

A escravidão, como pode ser percebido, atormentava os juristas islâmicos. São levantadas questões jurídicas complexas sobre o dolo e a culpabilidade, interpretações legais divergentes e convergentes. Todavia, não há dúvida a respeito da discussão em torno da afiliação religiosa. Na fatwa “O acesso ao caminho da compreensão da Lei referente aos Negros capturados”, do próprio Ahmad Baba, ele estabelece o mesmo discurso centrado no binômio religião/etnia.360 No final século XVII no Marrocos, ocorreu uma amarga discussão entre dois eruditos islâmicos envolvendo a escravização de indivíduos para fins militares na região de Marrakesh. Sidi Muhammad ibn Abdal Qadir al-Fasi, defendendo uma investigação mais

357 Abu Ja’far Muhammad b. Jarir al-Tabari, (morto em 922), autor de vários tafsir e de um compêndio de história universal. 358 Ver KHALDUN, op. cit., pp. 58-64. 359 HUNWICK & HARRAK, op. cit., p. 9. 360 Idem, pp. 21-53.

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apurada antes da captura de indivíduos de status desconhecido, escreveu ao ulemá de Fez afirmando: “...a liberdade é a condição básica do homem, se o status-escravo do individuo não pode ser estabelecido com precisão, apenas se pode afirmar que o individuo é senhor de sua alma. Portanto, ninguém tem autoridade sobre esse individuo e ele não pode ser comprado ou vendido. Essa opinião é baseada no Kitab (livro, o Alcorão), na sunnah (tradição) e na Ijma (consenso dos eruditos)”.361

Por outro lado, M. Ismail, que estava encarregado de capturar e alistar escravos sob o regime alauíta no Marrocos, alegava ter recebido aprovação do ulemá do oriente e que realizava uma cuidadosa investigação com evidências concretas da origem escrava do indivíduo. Essa discussão sobre o status desses negros recrutados compulsoriamente se estendeu através de fatwas condenando veementemente a escravização de negros muçulmanos.362 Cerca de dois séculos mais tarde, em meio um novo turbilhão reformador islâmico, Uthman dan Fodio incluiu na sua agenda político-social suas preocupações com a escravidão, particularmente a escravização de muçulmanos e as restrições à conversão de escravos ao Islã.363 Segundo B.G. Martin, Uthman dan Fodio foi o homem talhado para promover a revolução da comunidade islâmica no Sudão Central. Ele era originário de um tradicional clã torodbe, cujos ancestrais imigraram paras as terras hauçás no século XV. Erudição e intelectualidade eram partes integrantes do seu mundo. Ele foi instruído através do Corão, da gramática árabe, da lei malikita e de todas as tradições islâmicas. De acordo com os costumes clânicos, estudou com seus tios letrados. Porém, esse conhecimento familiar foi suplantado pelos mestres tuaregs do sul do Saara. Entre esses estava Jibril bin Umar al Aqdasi, que havia realizado o hajj duas vezes e vivido no Egito por longo tempo. Jibril iniciou dan Fodio em três ordens sufis, a Qadiria, Khalawatia e Shadilia.364 O mestre de dan Fodio assumiu uma atitude intolerante em relação aos “pecados graves”, segundo ele, cometidos por muçulmanos. A doutrina de Jibril estava próxima das escolas teológicas 361 WILLIS, John R. Slaves and Slavery in Muslim África, vol.2: The Servile State. London: Frank Cass, 1985, p. 3. 362 Idem, pp. 1-9. 363 LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 203. 364 SMITH, Abdallahi. “The Islamic Revolutions of the 19th Century”, in: Journal of Historical Society of Nigeria, 2, 1961, p. 176, MARTIN, op. cit., p. 18. Em 1817, no ano da morte de Uthman dan Fodio, seu irmão Abdullahi escreveu um tratado sobre os princípios do sufismo, que enfatizava a iniciação dele e Uthman dan Fodio, através de Jibril b. Umar. BRENNER, Louis. “Muslim thought in the Eighteenth-Century West Africa”, in: LEVTZION, Nehemia & VOLL, John O. Eighteenth-Century Reneval and Reform in Islam. Syracuse (NY): Syracuse University Press, 1987, pp. 56-57.

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islâmicas medievais Khawaji e Mu’tazila. Uthman dan Fodio, no entanto, iria futuramente discordar das idéias do seu mestre e estabelecer uma ortodoxia menos radical.365 O contexto permite entender as possíveis motivações e influências que serviram de pano de fundo para a política dos líderes de Sokoto e para suas ações sobre os muçulmanos cativos.366 Os reformadores islâmicos procuravam estabelecer parâmetros para definir quem era muçulmano. Esta categorização, todavia, revelou-se delicada e a escravização se tornou alvo de intenso debate intelectual. Com o início das hostilidades que deram origem ao califado de Sokoto, essa questão se resolveu de forma pragmática passando a definir os padrões de escravização em termos práticos de apoiar ou não o jihad. De forma análoga ao que foi constatado no século XVII com Ahmad Baba, no século XVIII e XIX ocorreram sofisticados debates intelectuais sobre a definição de um padrão de comportamento e práticas islâmicas. Uthman dan Fodio na sua obra Tamiyz al-Muslim min al-kafirin evitou polêmicas teológicas “para ser entendido pelos leigos” e estabeleceu oito categorias de indivíduos existentes no Sudão Central: “O ulemás cuja fé é sólida; eles realizam ghus (ablução maior) depois da janaba (um estado de maior impureza ritual); eles realizam a ablução (com água) antes das orações e não utilizam o recurso do tayammum (ablução alternativa com areia) exceto em casos de necessidade; eles abandonaram qualquer vestígio de descrença, como veneração de pedras, árvores, sacrifício de animais.367 Os que não negavam nenhuma parte da shari’a. Esses são definitivamente muçulmanos. 1- Os talaba (os que fazem exatamente como os ulemás acima) são definitivamente muçulmanos. 2- Aqueles que ouvem e praticam os preceitos estabelecidos pelos ulemás e os talabas. 3- Os infiéis que nunca aceitaram o Islã,368 nesse caso são claramente infiéis. 4- Os que misturam práticas infiéis e islâmicas. Eles aceitaram o Islã, mas não

conseguiram

abandonar

as

antigas

práticas

pagãs.

São

369

definitivamente infiéis.

365 MARTIN, op. cit., p. 18. 366 Idem, p. 18. 367 Sabb al’-ajin ‘alayha, freqüentemente mencionado por Uthman dan Fodio como signo de politeísmo. De forma análoga, Ibn al-Qadi enfatizava que sacrifícios a espíritos, árvores e outras criações são formas de adoração. A única adoração possível é aquela dirigida exclusivamente a Deus. Seguindo os padrões estabelecidos por al Maghli, Ibn al-Qadi observou: “um muçulmano comete apostasia simplesmente por imitar um infiel” em práticas que somente um infiel realizaria. Pare ele, a shari’a trata apenas das manifestações exótericas (zahir) do comportamento humano, e não de manifestações esotéricas (batin) que não podem ser vistas. MANSOUR, Mohamed Al & HARRAK, Fatima. A Fulani jihadist in the Maghrib: Admonition of Ahmad Ibn al-Qadi at Timbukti to the Rulers of Tunísia and Morocco. Rabat: Institute of African Studies, 2000, p. 28.

132 5- A sexta categoria, como a quinta, mescla práticas pagãs com islâmicas. Desdenham da religião de Deus e negam (algumas) determinações da shari’a. São também infiéis. 6- A categoria dos inovadores. Aceitaram o Islã e sua fé é sólida, mas intencionalmente realizam o salat (prece) sem ablução. Não obstante, não pronunciam nenhuma palavra incrédula, como negar as determinações da shari’a ou a veneração de pedras e árvores. Os juristas emitiram parecer sobre essa categoria, porém existe um consenso que se trata de muçulmanos desobedientes. 7- As pessoas ignorantes que abraçaram o Islã sem possuir conhecimento suficiente. Afirmam sua Fé sem acreditar e não se interessam em aprimorar seus conhecimentos. São infiéis no que se refere à relação com Deus, mas são muçulmanos de acordo com nosso entendimento, exceto quando exibirem atos de incredulidade. No passado, quando o conhecimento religioso era difundido entre o povo, os religiosos classificariam esses indivíduos como infiéis; mas hoje, em virtude da escassez de erudição religiosa, eles devem ser tratados como muçulmanos, mesmo sendo infiéis perante Deus”.370

As primeiras três categorias eram constituídas de bons muçulmanos que aderiram consideravelmente à shari’a. A quarta, de muçulmanos completamente infiéis. Movendose para o centro da escala, a sétima era formada por muçulmanos desobedientes e a oitava de ignorantes. Na quinta e na sexta estavam os sincréticos, os primeiros mesclando práticas islâmicas com pagãs e os últimos desprezando o Islã e negando alguns princípios básicos. Note-se porém que o tom moderado usado no documento sugere que sua compilação tenha acontecido no período pós-jihad. Ou seja, essa datação é fundamental em uma análise de quem visa estabelecer padrões islâmicos nos dois lados do hauçá. Qualquer tentativa que não leve em consideração a historicidade dessas definições é imprecisa e incompleta. As definições historicamente não se concretizaram de forma monolítica, nem mesmo dentro de um curto espaço de tempo. Antes e durante o conflito, esses parâmetros variaram de acordo com as agruras do combate. É portanto compreensível que uma vez encerrado o conflito, o líder fulá tenha tido atitudes mais conciliadoras na tentativa de estabelecer uma pax islâmica no Sudão central, o que aliás não ocorreu. Seria interessante 368 O corolário para essa situação de acordo com a lei islâmica é que aquele que nasceu infiel (kafir bi l’asala) pode ser escravizado, enquanto os infiéis mencionados nas categorias 5 e 6 não devem ser escravizados se forem capturados como prisioneiros de guerra. 369 Pode-se incluir nessa categoria, a cobrança de taxas canonicamente ilegais, suborno, opressão e injustiça mencionados no Kitab al-farq, e as acusações de adoração de ídolos em Bornu.

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identificar, segundo El Masri, em que localidades do Sudão Central havia efetivamente uma maioria islâmica receptiva ao discurso reformador de dan Fodio e de sua entourage. Essa classificação, no entanto, não pode ser feita com as fontes disponíveis, e dessa maneira uma categorização mais pragmática foi feita em termos étnicos.371 O padrão de definição étnico-religioso não constitui novidade no mundo islâmico nem deixou de ser utilizado nos dias atuais. Como já foi citado anteriormente, existiu um objetivo claro na revelação corânica em criar uma comunidade coesa de crentes além dos limites de uma sociedade árabe tribal. A expansão islâmica foi incorporando paulatinamente diferentes povos e culturas. Mesmo levando-se em consideração o caráter universalista do Islã, a identidade étnica sempre forneceu a amálgama necessária quando a definição religiosa se revelou inconclusa. Frederick Barth enfatizou: “...que os sistemas que têm em comum o princípio de que a identidade étnica implica uma série de restrições quanto aos tipos de papel que um individuo pode assumir, e quantos parceiros ele pode escolher para cada tipo de transação.372 Em outras palavras, se consideramos uma identidade étnica como status, este será superior em relação à maioria dos outros status e definirá a constelação permissível de status, ou personalidades sociais, que um indivíduo com uma dada identidade étnica pode assumir. Neste sentido, a identidade étnica é semelhante ao sexo e à posição social, pois ocasiona restrições em todas as áreas de atividade e não apenas em determinadas situações sociais”.373

Na tentativa de desatar o nó antropológico, no caso islâmico é preciso destacar algumas particularidades. Toda a tradição profética dos hadiths enfatizou a igualdade entre os crentes. Não há justificativa nas fontes islâmicas para qualquer superioridade étnica ou tribal.374 Esta premissa, porém, não se traduziu inteiramente em termos práticos, ao contrário, serviu de complemento na categorização dos muçulmanos. Existe também um 370 Essa categoria foi motivo de grande controvérsia entre os muçulmanos na época de dan Fodio. Os defensores do ilm al-kalam (erudição teológica) entre os talaba não aceitavam aqueles que não podiam explicar o significado dos artigos da fé. Uthman dan Fodio admoestou os talabas sobre essa atitude. 371 MASRI, El F.H. (edited. and translated). Uthman ibn Fudi. Bayan wujub al-Hijra Ala ‘L-‘Ibad. Khartoum: Khartoum University Press, 1978, p. 8. 372 “A enfática negação ideológica do primado da identidade étnica (e posição social) que caracteriza as religiões universais surgidas no Oriente Médio pode ser compreendida nesta perspectiva, já que praticamente qualquer movimento de reforma social ou ética nas sociedades poliétnicas dessa região colidiriam com as convenções e normas de caráter étnico.” BARTH, Fredrik. O guru iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000, p. 36. 373 Idem, pp. 36-37. 374 São várias suratas e hadiths neste sentido. ZIDAN, Ahmad & ZIDAN, Dina (text & translation). Sahih Al-Bukhari. Cairo: Islamic INC, 1970, et passim. Em um hadith o Profeta enfatizou: “E árabe aquele que fala o árabe”. No contexto, não deixa de ser uma tentativa de estender o conhecimento do idioma a qualquer povo que viesse estudar a revelação, independentemente de vínculos étnicos.

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fator fundamental que foi a utilização do idioma árabe como vernáculo sagrado através da revelação, que obrigou os povos convertidos a possuírem, no mínimo, rudimentos lingüísticos do árabe e, conseqüentemente alguns dos seus hábitos culturais. A precedência de uma etnia sobre outra na aderência ao Islã passou a ser considerado um status superior, mas de forma nenhuma determinante em termos de limite do indivíduo. Na contramão da afirmação de Barth, a identidade étnica não pode ser comparada com o gênero. De forma análoga, a comparação com a posição social procede, pois ambos, status étnico e social possuem mobilidade e são passíveis de mudança. O gênero, ao contrário, tem limites claramente definidos tanto no que diz respeito a deveres, direitos e espaço social. O caso dos pathans do Afeganistão estudado por Barth é emblemático. Segundo ele, é condição sine qua non para um pathan ser um muçulmano ortodoxo. Neste caso, o termo ortodoxo tem a conotação de praticante e sunita. Os pathans possuem um ancestral putativo que foi a Medina, onde encontrou o Profeta e se converteu. Através dessa tradição, a etnia pathan reivindica uma adesão de “primeira hora” e evitando um histórico de conversão tardia como conseqüência de uma expansão manu militare.375 O código de vida e os costumes são fundamentais para se definir um individuo como pathan. A língua é apenas um dos elementos na construção dessa identidade, mas não a mais importante. Através do exemplo pathan, pode se entender outros grupos de povos islâmicos e concluir que identidades podem ser construídas além dos limites de grupos lingüísticos. Neste caso, os pathans se autodefinem como sendo pashto não aquele que apenas fala pashto; neste sentido, “agir como um pashto significa viver de acordo um código um bastante severo, em termos do qual alguns falantes de pashto claramente estão excluídos”.376 O sharifismo magrebino e subsaariano também podem ser vistos superficialmente como uma forma de estabelecer um status islâmico superior. A descendência do Profeta podia determinar uma aceitação de liderança inconteste e uma ascensão social indispensável para clérigos sob certas circunstâncias.377 Não obstante, em muitas ocasiões essas discussões se tornarem estéreis e alvo de controvérsias. Todavia, o sharifismo assumiu contornos endêmicos durante o século XIX nos variados movimentos que assolaram a África islâmica.378 375 BARTH, op. cit., p. 72. 376 Idem, p. 73. 377 MARTIN, op. cit., p. 126. 378 O trabalho de Martin enfocou vários movimentos islâmicos da África Ocidental, através do Magrebe, até África Oriental. O sharifismo e a acão das irmandades sufis foram elementos importantes na mobilização das

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Portanto, a categorização étnico-religiosa de Ahmad Baba no século XVII não era a mesma de Uthman dan Fodio no século XIX. Em dois séculos, novas populações foram incorporadas ao Islã e as definições experimentaram mudanças de acordo com as necessidades políticas. Havia três grupos étnicos majoritários na Hauçalândia: hauçás, tuaregs e fulás. As três etnias possuíam grupos islamizados e não-islamizados e, de acordo com El Masri, os fulás eram a etnia que exibia níveis de islamização e erudição mais sofisticados.379 Tanto dan Fodio como seu filho Muhammad Bello citavam as fatwas de Ahmad Baba que enfatizavam o papel preponderante dos fulás nos assuntos islâmicos. No entanto, os pastores e os fulás sullebawa eram pagãos ou apenas nominalmente muçulmanos. Não sendo possível perceber em nenhuma etnia subsaariana uma identificação absoluta com o Islã, foi necessário recorrer à etnicidade como parâmetro no intuito de classificar os indivíduos. De acordo com Jibril ibn Umar, professor de dan Fodio por volta de 1800, a “venda de homens livres” era proibida porque era sabido que muçulmanos estavam sendo escravizados e vendidos. Para Jibril, a escravização de muçulmanos, o adultério, o consumo de álcool e o assassinato eram crimes similares e gravíssimos. Uthman dan Fodio na sua obra Masa’il il muhimma, em 1812, estabeleceu que a escravização de qualquer fulá era ilegal. Esta premissa era baseada no fato de que havia um consenso de que os fulás eram identificados de longa data com o Islã. Era, portanto, segundo ele, a interdição destas práticas que distinguiam os muçulmanos.380 O poema fulá Tabbat hakika previa que “aquele que escravizar um homem livre deverá ser atormentado. O fogo do inferno o escravizará, fique certo disso!”.381 No documento considerado como o manifesto do jihad de Sokoto, dan Fodio proclamou que a escravização de indivíduos livres de nascimento entre os muçulmanos era ilegal, quer residissem em território islâmico ou em território inimigo.382 A preocupação óbvia dos líderes do jihad com a escravização considerada ilegal parece refletir uma prática intensa desta atividade. Muhammad Bello escreveu no Miftah al-Sadad que a escravização de fulás não era legal, a despeito de existir no Sudão Central fulás não-muçulmanos.383

populações islâmicas e na legitimação de suas lideranças. Ver MARTIN, op. cit., et passim. Ver também o sharifismo marroquino e o conceito de imitatio Muhammadi, em CORNELL, op. cit. pp. 129-229. 379 EL MASRI, op. cit., p .9. 380 LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 204. 381 HISKETT, The Sword of Truth, p. 77. 382 LOVEJOY, The Bello-Clapperton Exchange, p. 207. 383 Bello citou a fatwa de Ahmad Baba. Idem, p. 205.

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Conclusão Os movimentos reformadores islâmicos no Sudão Central foram consideravelmente mais complexos do que supunha nossa historiografia. Esses movimentos revelam o ápice do papel dos clérigos na difusão e reforma do Islã nas áreas em questão. Com os eruditos religiosos sempre ligados a irmandades e detentores de um conhecimento islâmico sofisticado, a reforma ganha contornos aparentemente conflitantes: o Islã militante e intelectualizado, a proteção e a redenção de muçulmanos e o combate ao tráfico de escravos muçulmanos. Simultaneamente, o tráfico aumentou consideravelmente com a oferta crescente de indivíduos originários de uma região de conflito e uma demanda igualmente crescente do tráfico atlântico. Pode-se atestar através do intenso debate intelectual-legal as tentativas de se delimitar os limites religiosos nos indivíduos. Em outras palavras, fixar padrões religiosos como referência para se escravizar ou não os indivíduos. Como foi observado muitas vezes, essas tentativas não obtiveram êxito. Foi igualmente necessário aplicar padrões étnicos aos conceitos religiosos historicamente dúbios. Segundo a teoria de Levtzion, quando os clérigos assumem o poder, o Islã torna-se militante, reformador e revolucionário. Sem dúvida, de acordo com esse paradigma, o modelo pode ser aplicado em termos gerais a todos os movimentos reformadores islâmicos na África do século XIX, e no século XX a movimentos contemporâneos no Sudão, no Irã e no caso especifico da ascensão da outrora excluída e agora majoritária e poderosa comunidade xiita que emergiu após a guerra civil libanesa.384 De volta aos jihads do Sudão Central, o conflito intenso, nas terras hauçás inicialmente e posteriormente em direção à Iorubalândia, no moribundo estado de Oió produziu prisioneiros de diversos extratos sociais e religiosos. Portanto, o tráfico não distinguiu aristocratas de camponeses, nem eruditos de indivíduos parcialmente islamizados ou de adeptos das religiões tradicionais africanas. A trajetória desses indivíduos em terras americanas faz parte de uma nova realidade que abrange um leque de atitudes, da acomodação à rebelião. Através de uma perspectiva africanista, as áreas diversas do continente americano em que esses indivíduos se instalaram possui uma relevância limitada. Ao inverter a perspectiva dominante, o enfoque africanista demonstra que esses africanos adultos e saudáveis priorizados pelo tráfico atlântico não se 384 LEVTZION, Nehemia. “Islam in African and Global Contexts: Comparative Studies of Islam”, paper apresentado na conferência The Institute Of Global Studies, Binghampton University, April 19-22, 2001.

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“criolizaram”, nem cultivaram sobrevivências, mas, ao contrário, buscaram intensamente estabelecer em seus mundos as suas práticas sob condições quase sempre adversas.385 Um aspecto decerto perturbador para alguns poderá ser percebido na comunidade escrava muçulmana de Salvador, quando em 1835 os clérigos eruditos assumem a direção dos negócios dessa comunidade. Dentro de um padrão historicamente coerente, o Islã tornar-se-á militante, organizado dentro dos padrões de solidariedade rebelde.

Sobre a ascensão da comunidade xiita no Libano, ver AJAMI, Fouad. The vanished Imam: Musa al-Sadr and the shia of Lebanon. Ithaca (NY): Cornell University Press, 1986. 385 LOVEJOY, Paul E. “The Relation between Jihad and slavery in the Americas”, Paper apresentado no IFCS/UFRJ, novembro de 2001.

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Capítulo 4 Instrumentum vocale, mallams e alufás: o paradoxo islâmico da erudição na diáspora atlântica

“Em geral vão quasi todos sabendo ler e escreverem caracteres desconhecidos, que se assemelhão ao Arabe, usado entre os Ussás, que figurão terem hoje combinado com os Nagós.” (Relatório do chefe de polícia em 1835)

Quando o profeta Muhammad conquistou a cidade de Meca, ordenou que Bilal, o muezzin africano liberto, fizesse o chamado (azzan) para a oração.386 O chamado melodioso e comovente de Bilal ecoou por séculos através de desertos, savanas e florestas até atingir as margens da costa africana do Atlântico.387 De acordo com Keneth Harrow, a literatura islâmica busca localizar identidades muçulmanas em indivíduos conscientes dessa condição, na condição arautos ou críticos, mas que refletem indubitavelmente em seus escritos, um discurso identificado com o Islã.388 A literatura islâmica surgiu da interseção entre cultura, discurso, texto e leitor. Isto se dá em relação a textos específicos, assim como leitores a específicos, e às maneiras pelas quais o idioma foi empregado para construir textos e idéias relacionados. A história da escrita islâmica na África pode ser concebida como desenvolvimento das suas relações com o Oriente Médio e o Magrebe. Por estar geograficamente distanciada da hinterlândia islâmica, a literatura africana ficou marcada pelo sincretismo e exposta a incursões da cultura local. As formas mais antigas podem ser entendidas como arabocêntricas, em que a tradição do Islã “puro” parece ser extraída do âmago da civilização árabe e em contraste com as formas “impuras” e impregnadas de tradições subsaarianas que fazem parte do processo de naturalização do Islã em terras africanas. Na África, como alhures, existia um estado de tensão permanente entre a pureza e a impureza 386 387

1.

ISHAQ, Ibn. The Life of Muhammad. London: Oxford University Press, 1955, p. 774. RYAN, Patrick J. Imale: Yoruba participation in the Muslim tradition. Missoula: Scholars Press, 1978, p.

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da literatura islâmica. Entretanto, sob uma perspectiva menos preconceituosa, o rebaixamento sincrético tão deplorado pelos puristas é uma característica do desenvolvimento do pensamento islâmico através do processo histórico do Islã subsaariano. Ao sul dos reinos de Mali e de Songai, floresceram centros urbanos aonde o Islã se estabeleceu gradualmente principalmente a partir do século XV. As cidades hauçás de Kano e Katsina tornaram-se centros de intensa atividade islâmica. A tradição oral da Hauçalândia foi preservada através da memória dos antigos movimentos reformistas, como pode ser visto no desenvolvimento dos labarai (narrativas orais). Em uma narrativa, em particular, relata-se o confronto promovido por um soberano entre um sacerdote bori e um mallam muçulmano. O soberano em questão colocou um cavalo dentro de uma casa sem que ninguém mais tivesse conhecimento do fato. Em seguida perguntou ao sacerdote bori o que havia na casa; o sacerdote respondeu que era um cavalo. Quando formulou ao mallam a mesma pergunta, este pediu a orientação de Allah e respondeu de forma totalmente diferente: dentro da casa havia um touro branco com chifres. O soberano na expectativa de encontrar o cavalo, ordena que se derrube as paredes da casa. Para espanto do soberano, um touro branco com chifres foi encontrado. O soberano esperou em vão por anos pela transformação do touro em cavalo e através desse milagre, Allah assegurou o triunfo da verdadeira fé em Katsina.389 O confronto entre o sacerdote bori e o mallam estabeleceu a estrutura padrão encontrada em muitas tradições orais africanas: a disputa entre poderes mágicos como elemento central. O primeiro significado dessa disputa dialética é o triunfo do poder através da vitória do mallam. A transformação mágica da besta sugere hermeneuticamente a intervenção divina vinculada a importantes questões de contenda, jihad e interpretação (ijtihad). A subordinação da identidade da besta à vontade de Allah e a demolição do muro da casa cercam a milagrosa transformação que, simultaneamente, sugere significados místicos compatíveis com a tradição literária da sabedoria islâmica. A inclusão dessa parábola no contexto específico da narrativa oral sobre a conversão dos hauçás de Katsina, demonstra aceitação do Islã por parte do soberano em um importante centro urbano onde ocorreram os grandes jihads do século XIX. Curiosamente, muitos sacerdotes bori de Kano que se confrontavam com os mallans de Katsina eram também muçulmanos. A narrativa enfatiza soluções absolutas 388

HARROW, Kenneth, op.cit., in: LEVTZION & POUWELS, op.cit., p. 519. STARRAT, Priscilla. “Islamic influences on oral traditions in Hausa literature” in: HARROW, Kenneth. The marabout and the muse. Portsmouth (NH): Heinemann, 1996, p. 9.

389

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quando proclama: “Somente o Islã. O Islã e nada mais”. O Islã surge como vitorioso e conquistador em um primeiro momento, mas o próprio texto deixa transparecer existência de um discurso religioso pré-existente.390 Essa narrativa oral pode ser interpretada sob dois aspectos principais: o primeiro e mais explícito da conquista e disseminação do Islã pelos mallans, e o segundo, de forma mais implícita, do triunfo de Katsina sobre Kano. De acordo com alguns autores, o Islã foi aceito com relativa facilidade na África devido a sua similaridade com a cosmologia das religiões indígenas.391 Owasa-Ansah, no entanto, não concorda com essa premissa aplicada de forma genérica, mas reconhece que, no caso especifico das preces e amuletos, a teoria da similaridade se encaixa perfeitamente.392 Os manuscritos produzidos pelos africanos muçulmanos na Bahia podem ser definidos, de modo geral, como a reprodução de textos corânicos e du’ás.393 Em alguns documentos encontram-se fórmulas e desenhos que indicam a utilização de conhecimento esotérico (ilm al-batin). Como os chamados “papéis árabes” poderiam esclarecer os pontos ainda obscuros da revolta? As traduções feitas pelo hauçá Albino, por Monteil e por Reichart praticamente dissecaram os manuscritos. O objetivo do trabalho não foi reexaminar os referidos manuscritos e deduzir alguma ordenação lógica ou significados através das suratas e du’as. Concentramo-nos em trabalhar com manuscritos pouco trabalhados e com interpretações incompletas. A exegese desse corpus documental faz inegavelmente parte da literatura produzida no Brasil no século XIX, buscando documentos e motivações similares produzidos na África e no Oriente Médio. A análise dos manuscritos constitui um manancial riquíssimo de informações; por isso ressaltamos que a pesquisa de Monteil/Reichert não esgotou as possibilidades de análise dos manuscritos do Arquivo da Bahia como fonte histórica. Todavia, por questões relacionadas à delimitação e extensão do presente trabalho, fizemos a opção por enfatizar um corpo documental em detrimento do outro. Existem dois corpos principais de documentos manuscritos em árabe no Brasil: o primeiro, já mencionado e traduzido que se encontra no Arquivo Publico de Estado da Bahia; e o segundo que se encontra no Instituto Histórico do

390

Idem, p. 164. Lewis, I.M. (ed.). Islam in tropical Africa. London: Oxford University Press, 1968 e DIOUF, op. cit., p. 4. 392 OWASA-ANSAH, David. “Prayer, Amulets, and Healing”, in: LEVTZION & POUWELS, op.cit., p. 480. 393 Súplicas. A primeira e única tradução conhecida dos manuscritos feita na época da insurreição (1835) foi realizada pelo hauçá Albino na presença de um juiz de paz. MONTEIL, Vincent. “Anályse de 25 documents árabes dês Malés de Bahia (1835)”, in: Bulletin de l’Institute Foundamentale d’Afrique Noire, ser.B, 29, números 1-2, 1967, pp.88-98 e REICHERT, Rolf. Os documentos árabes do Arquivo do Estado da Bahia. Centro de Estudos Afro-Orientais, Universidade Federal da Bahia, 1979. 391

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Rio de Janeiro no Rio de Janeiro, traduzido recentemente e que será objeto do nosso estudo.394 Segundo Diouf, um grande número de muçulmanos chegou ao Novo Mundo alfabetizado em árabe e nos idiomas africanos que utilizavam o alfabeto árabe. Em contrapartida, outros grupos de africanos se originaram de culturas orais e a alfabetização entre escravos na América era desencorajada. Desse modo, a capacidade de ler e escrever tornou-se uma distinção dos escravos muçulmanos.395 De acordo com Austin, a maioria dos senhores de escravos precisavam suprimir práticas que pudessem ser usadas para unir ou orientar os cativos. Se necessário, estabeleciam estratégias para cooptar determinados indivíduos, reconhecendo e recompensando suas habilidades supostamente excepcionais com um poder limitado sobre os outros escravos.396 Theodore Dwight, secretário da American Ethnological Society, mencionou que o escritor e etnólogo William Hodgson, que viveu na África do Norte, tentou realizar uma pesquisa sobre os escravos muçulmanos alfabetizados na América do Sul. Hodgson, no entanto, foi pressionado a abandonar a tarefa devido à hostilidade dos donos de escravos. Segundo Hodgson, a hostilidade dos proprietários de escravos brasileiros não se devia apenas ao já conhecido perigo potencial da literatura entre os africanos muçulmanos. Esta animosidade, aos olhos escravistas, advinha da ameaça ao domínio intelectual senhorial baseado na premissa da inferioridade inerente ao africano, e sua conseqüente incapacidade de produzir manifestações eruditas. Estas habilidades intelectuais constituiriam um reconhecimento tácito de humanidade e civilização originais e, portanto, sem nenhuma relação com o cristianismo e seu suposto projeto civilizador. O fato de esses indivíduos possuírem a capacidade de ler e escrever revelava uma imagem que não condizia com a do selvagem primitivo e conseqüentemente passível de ser escravizado. A partir da desmistificação dessa premissa, os fundamentos do sistema escravista podiam ser questionados.397 De acordo com Diouf, esse argumento se revelou tão poderoso que nos Estados Unidos adotou-se um subterfúgio no mínimo original. Os norte-americanos

394

A tradução foi realizada através do Nigerian Hinterland Project/UNESCO sediado na Universidade de York em Toronto, Canadá. Agradeço ao Prof. Dr. Paul E. Lovejoy e especialmente a Ibrahim Hamza pela versão do árabe para o inglês. Ver anexo. 395 DIOUF, op. cit., p. 107. 396 AUSTIN, op. cit., p. 5. 397 DWIGHT, Theodore. “Condition and character of negroes in Africa”, in: SCHIEFFELIN, Henry. The people of Africa: A series of papers on their character, condition, and future prospects. New York: A.D.F. Randolph, 1871, p. 49.

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passaram a negar a origem africana desses muçulmanos “excepcionais”, retratando-os como árabes ou mouros.398 Goody ressalta o poder da cultura escrita sobre a cultura oral, o poder que permite a primeira de dominar a última em vários aspectos. Este processo envolve algumas mudanças em nossas operações cognitivas, nesse caso através dos textos e por meios denominados “tecnologias do intelecto”. O poder da escrita pode se fundamentar sobre vários elementos dentro de uma sociedade em particular. Isso abrange não apenas o poder hegemônico que controla os meios de comunicação dos grupos dominantes, e freqüentemente os religiosos, mas também os dominados que podem se utilizar desses meios para se inserir no meio-ambiente social. Ele considerou paradigmático o exemplo dos escravos e libertos africanos na Bahia no inicio do século XIX.399 Ainda de acordo com Goody, as religiões de tradição oral não convertem o indivíduo, apenas o tornam membro de um sistema político (tribo) e limitam-no, em grau maior ou menor, às crenças do grupo. Conversões, portanto, implicam em um conceito diferente de religião que exige comprometimento com textos estabelecidos (crenças e rituais) e envolve a renúncia de um conjunto de práticas em favor de outras. Dessa forma, o Islã tornou-se um aparato supra-étnico.400 Como já foi mencionado no decorrer do trabalho, o tráfico escravo não fez distinção social entre os indivíduos trazidos para a América. A demanda americana possuía seus próprios padrões. Por outro lado, a oferta africana, no caso específico da África Ocidental, devido às contingências de um conflito intermitente e à dinâmica do seu tráfico interno, igualmente lançou indivíduos dos mais variados extratos sociais no tráfico atlântico. O resultado dessa disparidade social refletiu-se no nível de educação e conhecimento adquiridos em terras africanas e na produção dos textos manuscritos encontrados em épocas e situações diversas. As condições adversas da escravidão dificultaram sobremaneira o desenvolvimento de uma comunidade com liberdade de praticar a religião publicamente. Todavia, a produção intelectual dos africanos muçulmanos na América foi provavelmente muito maior do que a maioria das pessoas imagina ou mesmo mais significativa do que os especialistas possam aceitar.401 O estudo do conhecimento islâmico enfoca basicamente ensaios e comentários. Os estudiosos muçulmanos freqüentemente lêem e discutem os trechos clássicos, adquirindo 398

DIOUF, op. cit., p. 109. GOODY, op. cit., pp. 1-2. 400 Idem, p. 106. 399

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assim um conhecimento genérico da história islâmica, tratados jurídicos e assuntos relacionados com a devoção religiosa. Esta tradição literária estava profundamente arraigada na África Ocidental e sabidamente se espalhou no Novo Mundo.402 Os africanos muçulmanos enviados pelo tráfico podiam ser jovens ainda com conhecimentos rudimentares das primeiras letras corânicas, professores, ulama ou marabouts eruditos. Alguns escreviam quase perfeitamente em árabe, hauçá, wolof e mandingo.403 Os segmentos mais dinâmicos da população muçulmana eram constituídos por indivíduos eruditos, viajados, cosmopolitas e poliglotas. Em outras palavras, indivíduos com recursos, mesmo sob condições adversas e em terras estranhas. De acordo com Diouf não há duvida que muçulmanos iletrados foram enviados para a América, mas certas passagens sobre a vida desses muçulmanos atestados em documentos indicam a presença de um numero significativo de indivíduos oriundos de uma elite intelectual.404 A educação islâmica primordialmente enfatizou o acesso do crente ao Corão, a rituais específicos, normas éticas e padrões de comportamento todos derivados da mensagem divina e da tradição do Profeta. De forma análoga transmitiu também padrões mais abrangentes além da alfabetização elementar. Proveu o estudante igualmente de direito islâmico, da teologia, do misticismo, da gramática árabe, da poesia, da literatura, da história, da aritmética, da astronomia ligada à terapias médico-mágicas.405 Esse complexo intricado de aprendizado que envolvia crianças e idosos possuía uma história de mais de mil anos na África subsaariana e tornou-se um importante diferencial de mediação nas sociedades africanas.406 Nas diferentes regiões onde o Islã se estabeleceu, a educação islâmica não apenas separou as comunidades vizinhas, mas também instituiu padrões importantes de cultura comuns para muçulmanos e não-muçulmanos. Os traços desse longo idílio podem ser encontrados na língua, folclore, em lendas, vestimenta, nas datas celebradas em comum e

401

LOVEJOY, Paul E. “The Muslim factor in the Atlantic Slave Trade”, Forthcoming in: LOVEJOY, Paul E. (ed.). African Slaves in Dar es-Salaam: The Central Sudan, Slavery, and the Muslim Diaspora. Princeton: Markus Wiener, p. 7. 402 Idem, p. 7. 403 DIOUF, op.cit., p. 109. De acordo com Lovejoy existe pouca evidência de manuscritos em vernáculos africanos na América. No Sudão Central, o hauçá, o nupe, o kanuri e o iorubá começaram a ser usados para divulgar conhecimento. Todavia, na América, o desenvolvimento desses idiomas não parece ter afetado os africanos muçulmanos. LOVEJOY, “The Muslim factor in the Atlantic slave trade”, p. 12. 404 DIOUF, op. cit., p. 39. 405 REICHMUTH, Stefan. “Islamic Education and Schorlarship in Sub-Saharan Africa”, in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 419. 406 Idem, p. 419.

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num corpo abrangente de práticas terapêuticas e mágicas, em parte locais, em parte de acordo com padrões islâmicos.407 Na devassa da Revolta Malê de 1835 foi encontrada uma grande quantidade de documentos escritos em árabe. A tradução do escravo hauçá Albino durante o processo criminal após a rebelião resumiu o conteúdo de uma parte dos papéis árabes apreendidos pelas autoridades: “Que o papel numero primeiro dizia que a gente havia de vir da Victoria tomando a terra, e matando toda a gente da terra de branco, e passarião por Agoa de Meninos ate se ajuntarem todas no cabrito atraz de Itapagipe para o que as Espingardas não havião de faser mal algum; sendo o resto escripturas para livrar o Corpo Que o segundo consta delle já ter sido escripto a mais de anno e meio para o fim tao bem de guardar o corpo das offensas de qualquer arma, e contem orações, que depois de passadas as taboas são estas levadas para se beber agoa, que livra das armas. Que o terceiro he um escripto, ou bilhete de hum negro para outro, dizendo que devião sahir todos das duas ate as quatro oras invisíveis e que depois de fazerem o que podessem hirião se ajuntar no cabrito detraz de ltapagipe em hum boraco grande que ali ha, com a gente do outro Engenho que fica atraz e junto, porque esta gente ja tinha feito aviso, e quando esta não viesse elles hiriao juntar se no mesmo engenho tendo muito cuidado de fugir dos corpos das Guardas para surprehendelos até elles sahirem logo da Cidade. Que o papel numero quatro, he huma especie de A.B.C. por onde principia aprender a escripturaçao de Males. Que o quinto que foi achado em hum breve com terra imbrulhado são como caminhos riscados, e cerco feito, disendo que por todo o caminho que passarem, ou ainda sendo cercados, nao lhe há de accontecer couza alguma, e por isso tinha terra figurando o terreno do dito caminho. Que o sexto he huma especie de Proclamação para juntar gente com signais, ou assignaturas de varios, e assignanao por hum nome, Mala Mubakar, affirmando que não hade accontecer couza alguma no caminho, porque hão de passar livremente. O setimo he lição de quem aprende. Que o oitavo he hum escripto por hum negro de nome Allei, para hum de nome Adão, escravo de hum Inglez na Victoria, o qual diz que as quatro óras havia de lá estar e quê o outro não sahisse sem elle lá chegar. Que o none he huma especie de folhinha, em que os Malês sabem o tempo dos jejuns para matarem depois carneiros. Appresentando se lhe duas Taboas, huma escripta, e outra limpa, e sem letras, disce que a limpa já estava 'lavada das letras, como elle acima disce, cuja agoa se bebe por mandinga, mas depois que tem vinte vezes

407

Ibidem, p. 421. De acordo com Gbadamosi, a interface do Islã com a cultura iorubá através de indivíduos e idéias facilitou a introdução do primeiro na Iorubalândia. GBADAMOSI, T.G.O. The Growth of Islam among the Yoruba, 1841-1908. Atlantic Highlands (NJ): Humanities Press, 1978, p. 2.

145 escriptas, e que noutra escripta era a segunda lição de quem aprende a escrever”.408

A tradução de Albino foi um inventário dos “papéis árabes” encontrados pelas autoridades. Os exercícios de caligrafia e os amuletos foram em parte preservados.Todavia, o plano dos rebeldes no original não foi encontrado.409 A menção feita por Albino às tabuas é um exercício de memorização do Corão largamente utilizado na África Ocidental chamado wala uassa.410 Reis observou de acordo com o relato do diplomata inglês Hugh Clapperton: “Quando esteve em Socoto em 1826, a capital do califado fulá-hauçá, Clapperton observou algo semelhante numa escola corânica freqüentada por crianças das “classes média e baixa”. Os alunos recitavam em coro suas lições, escritas pelo mestre sobre as tábuas, que eram lavadas e a água bebida somente após terem eles decorado a lição. O gesto propiciatório estava então vinculado à memorização das orações ou de passagens do Alcorão, uma espécie de recompensa pela tarefa cumprida. Assim se entende melhor as “vinte vezes escrita” do depoimento de Albino. Este, porém, pareceu distinguir entre exercícios elementares, sem eficiência protetora, e orações mais complexas, estas sim bebidas para fechar o corpo. O uso tanto doméstico como militar dessa beberagem foi documentado em outro trecho do diário de Clapperton, escrito em Boussa, uma cidade do reino de Borgu, ao norte de Oió”.411

Assim, bebendo as palavras de Allah nas ile kewu,412 os africanos na Bahia também memorizavam e preservavam as passagens corânicas, além de obter proteção mística. Ainda segundo Reis, os muçulmanos chamavam essa pratica de du’á (invocações). Os guerreiros jejuavam durante o mês de Ramadã e bebiam as “palavras de Deus” na quebra do jejum (ifhtar) ao anoitecer.413 408

Devassa do Levante, vol. 38, p. 130. RODRIGUES, op. cit., p. 58 e REIS, op.cit., p. 89. 410 GOODY, op. cit., p .94. 411 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil:a história do levante dos malês. (Segunda Edição Revista e Ampliada), São Paulo: Companhia das Letras, 2002 (no prelo). 412 Segundo Ryan, na sua tese o termo se refere à escola corânica. De forma mais acurada, resume melhor a instituição conhecida como “casa da recitação” porque envolve o aprendizado. RYAN, op. cit., p. 194. 413 “A passagem exemplifica um caso de arrogância cultural do inglês que não devia estar muito distante da que enfrentaram os malês nas mãos dos baianos em 1835. "Minha hospedeira tinha treze peças de madeira, em cada uma das quais estava escrita pelo malam de Borno a palavra “Bismillah”, a única palavra que ele podia escrever. Essas pranchas ela lavava e bebia a água, e dava a sua família para beber. Ela ofereceu-me, mas eu disse que nunca bebia água suja; e eu achava que se ela e seus criados tivessem tomado um confortável copo de booza ou bum lhes faria melhor do que beber a lavagem de uma prancha escrita com tinta; pois o homem era um malandro que a fez pagar por essa coisa. “O que!”, disse ela, “você chama o nome de Deus de água suja? Fez-me bem bebê-la.” Esses malandros, que se chamam de malems, impõem sobre o povo pobre ignorante muita coisa; e os pagãos gostam desses amuletos tanto quanto os maometanos. 409

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Danmole enfatizou o uso de amuletos pelos mudjadeens do emirado de Ilorin na Iorubalândia setentrional.O recurso desses artefatos era comum na Nigéria pré-colonial e na África Ocidental em geral. Em Ilorin os mallans estavam profundamente envolvidos com os negócios da guerra.414 Os religiosos confeccionavam os artefatos chamados ondè yfunpá, assim como outros amuletos para os guerreiros.415 Todos os amuletos eram feitos com textos corânicos. Além desses amuletos, os soldados de Ilorin carregavam um calabash contendo remédios que assegurariam a vitória das tropas islâmicas (al-jamat islamiya). Outros amuletos eram enterrados por espiões em território inimigo com o objetivo de inutilizar suas armas. Uma substância líquida chamada hantu era também espalhada para enfraquecer os inimigos. As preces e outras atividades espirituais aparentemente contribuíram de forma decisiva na performance militar do exército de Ilorin e de outras regiões da Nigéria. Através das preces o moral das tropas atingia o ápice.

Essas poções sujas são cura para todos os males, presentes e por vir, e são chamadas pelo povo de dua. Alguns de seus guerreiros confinam-se em suas casas por trinta ou quarenta dias, jejuando durante o dia, e só bebendo e lavando-se com essa coisa suja. Se um homem é afortunado, ou faz algum ato acima do comum, isso é atribuído à du’á, ou remédio; nem sua perspicácia nem a graça de Deus ganham qualquer coisa para o homem." Aqui eu queria apenas dar uma amostra, mais uma, do enraizamento africano de uma prática dos malês que aflora na crise de 1835. Prática que, no entanto tinha sutilezas rituais que escaparam tanto a Clapperton como à polícia baiana. À polícia até menos, porque pôde contar com Albino para decodificar um pouco que fosse do universo malê. O nosso Sanim, por exemplo, certamente faz melhor figura na devassa da revolta do que o mallam de Borno na narrativa de Clapperton, embora ambos se dedicassem a escrever sobre walas, palavras que seriam bebidas pelos que buscavam proteção mística.” REIS, op. cit. 414 DANMOLE, H.O. “Crises, Warfare, and Diplomacy in the Nineteenth-Century Ilorin”, in: FALOLA, Toyin. Warfare and diplomacy in precolonial Nigeria. African Studies Program (University of WinsconsinMadison), 1992, p. 52 See J.F.A. AJAYI, J.F A. “The Aftermath of the Fall of Oyo”, in AJAYI, J.F.A. & CROWDER, M. History of West Africa II. London: Longman Publishing Group, 1987, pp. 129-166. 415 Ondè é um amuleto costurado em uma bolsa de couro colocada em volta da cintura. Yfunpà é um amuleto de couro usado no braço. A pele de qualquer felino podia ser usada na confecção desses amuletos por causa da habilidade desses animais de se moverem furtivamente. No depoimento do forro nagô-ibo Lobão em 1835, ele descreveu os amuletos encontrados pela policia em sua casa: “Foi perguntado para que fim tinha elle respondente tres anneis de metal branco, e trez voltas de cordão coberto de coiro, com varios patuaes em ponto pequeno coberto de couro tão bem = Respondeo que reconhecia ser tudo seo, pois tinha pendurado ao seo pescoço donde Ihe foi tirado na ocasião da sua prizâo = Foi perguntado qual hera o fim para o que elle trazia aquillo, cujos Patuaes, ou embrulhos de coiro forão abertos neste acto descozeado-se com hum canivete de aparar penas, onde se achou varios fragmentos de couzas insignificantes, como seja algudão, embrulhado em hum pouco de pó e outros até com bocadinhos de lixo e o saquinho com huns poucos de buzios dentro, envolto em hum dos embrulhos de couro hum pequeno papel escripturado com letras harabicas, ao que elle respondente, declarou, que trasia aquillo para o livrar do vento, e que os buzios servia-se delles para untar sabão na cabeça quando lavava.” Devassa do Levante, vol. 53, p. 112. Leão, o africano na Granada muçulmana do final do século XV, descreveu os amuletos como sendo pequenas bolsas de couro contendo escritos misteriosos para proteção contra a inveja e doenças. “Os puristas consideravam essas pratica contrárias à religião. No entanto, seus próprios filhos freqüentemente usavam amuletos porque os primeiros não logravam fazer suas esposas e mães escutarem a razão. Eu não posso negar a utilização de amuletos por mim mesmo. Fui presenteado no meu primeiro aniversario com um desses artefatos com desenhos cabalísticos que nunca pude decifrar. Eu não acreditava no seu poder mágico, mas o homem é tão vulnerável ao Destino que não pode resistir à atração de objetos envoltos em mistério. Poderá Deus, que me criou tão fraco, um dia reprovar-me pela minha fraqueza?” MAALOUF, Amin. Leo Africanus. Lanham (MD): New Amsterdam books, 1988, p. 30.

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Danmole observou: “As preces também preparava-os psicologicamente para os perigos do combate. A crença na eficácia dos amuletos e das preces contribuíam para que os guerreiros exibissem uma sensação de invencibilidade. Talvez a vantagem psicológica mais importante das preces e amuletos por parte dos exércitos do emirado tenha sido a crença que a perda da vida no campo de batalha seria recompensada abundantemente no Paraíso. Conseqüentemente, os combatentes de Ilorin marchavam para guerra no século XIX certos de que Deus estava com eles”.416

É importante ressaltar que a confecção de amuletos por mallans para guerreiros não estava restrita a Ilorin. Os guerreiros de outras partes da Iorubalândia também utilizavam os serviços místicos dos mallans.417 A similaridade das práticas islâmicas na África e na Bahia não deixa dúvidas da sua origem comum. Os mesmos procedimentos místicos foram utilizados pelas tropas de Ilorin e pelos malês em Salvador. Ou seja, foram “plantados” amuletos no trajeto dos rebeldes que anulariam a eficácia das armas de fogo das tropas baianas. Sabidamente esse artifício não funcionou em 1835. No Brasil e em Portugal, por exemplo, o amuleto conhecido como mandinga aparece no século XVIII. O termo foi freqüentemente utilizado nos processos da Inquisição contra os africanos e seus descendentes, do Brasil às ilhas do Mediterrâneo.418 O relato do Francisco Gonçalves Martins, chefe de polícia de Salvador, destacou a importância dos talismãs: “O certo he que a Religião tinha sua parte na sublevação, e os chefes fazião persuadir aos miseraveis, que certos papeis os livrarião da morte, d’onde vem encontrar-se nos corpos mortos grande porção dos direitos, e nas vestimentas ricas e exquisitas, que figurão pertencer aos chefes, e que forão achados em algumas buscas”.419

416

AJAYI, op. cit., in: AJAYI &CROWDER, op. cit., p. 46. Idem, pp. 129-166. 418 SOUZA, Laura de Mello. O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, pp. 213-226. 419 Relato do chefe de policia Francisco Gonçalves Martins. Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 10/02/1835. 417

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No Rio de Janeiro o chefe de polícia Eusébio de Queiroz relatou no fatídico ano de 1835: 1835 – POLICIA DA CORTE “Correspondência do Chefe de Polícia Eusébio de Queiroz com o Ministro Página 2/3/4 Fiz vir a minha presença hum preto Nagô para interrogar a respeito dos Nagôs da Bahia e daquelle ouvi ‘calligi’ que os Nagôs não sabem ler, nem escrever (?) mandar educar alguns rapazes em sua Nação vizinha de (?) e que uzão barbas compridas no queixo, informo os quais (?) de escripta por conseqüência os escriptos não são em lingoa Nagô (?) outro idioma que são os Nagôs (?) entendem. Incluzo vai a tradução que se pode obter, mas não poderá escapar a penetração de V Excia a pouca exactidão de sua (?) feita por hum preto de sua lingoa que lhe he estrangeira, para outra inda mais extranha, sendo certo que envião (?) bastante (?) evitam a entender o que elle dicia. Para entender as primeiras palavras da tradução he necessário saber que na versão original (?) hum poderozo talisman contra

os (?) da guerra e quando (?) para acompanhar

costumão (?) com agoa que bebida os faz invencíveis ou (?) sábado leva comsigo (?) e então expressam (?) que as espingardas em vez de fogo despejão sobre elles agoas. Na conclusão a respeito apparecem huns poucos de riscos que são as assignaturas. Notei que quando elle lia fallava em Alá que quer dizer Deos, (?) grande sacerdote Brama sacerdote, outras palavras que me parecem assemelhar-se as de que serão as Orientais. A vista do contexto da tradução parece-me que aquelle respeito contem as deliberações de algum club que elles formarão mas as (?) as palavras do principio e a explicação da pretensa o uso, que lhe costumão dar, dá a entender que não há mais do que hua oração misterioza na qual exppoem os Nagôs grandes virtudes. Se Vm tiver a bondade de me enviar mais outras escriptas talvez se consiga algum avanço maior. Deos guarde a Vm Illmo. Sr. Manoel Alves Branco Ministro e Secretário d’Estado dos Negócios da Justiça Eusébio de Queiros Coutinho Mattoso da Camara Página 5 Tudo que está debaixo do Céo não he capaz de fazer morrer. A espingarda não deita fogo deita ágoa El Salú próprio/ também faço a guerra – A mulher de Brama que se chama Sulle disse que está trabalhando para não fazer a guerra – Maussa dice tem paciência não faça a guerra, chamas comprão com dinheiro, não faça a guerra Sacahi, Capitão dice faço a guerra, Deos mandou fazer a guerra – Sulle tornou a dicer está trabalhando não faça a guerra – A mãe de Sulle chamada Saca dice que quer pão para não para hir para a guerra – Munume o matador dice mata tudo Suila, dice faz a roupa para a guerra – Mahama que quem dice captivo busca

149 a agoa – Suila dice que foi a espingarda para a gente da guerra são. – Outro Suila dice que cura a gente da guerra. Suila dice que faz a faca. – O filho de Munume dice que elle he mais matador que seo pai. Saca pedio pelo amor de Deos que não fizessem a guerra, pois toda a sua Nação tinha morrido na guerra – Sulle disse que elle e sua mulher fizeram a guerra – Mandimussa dice que dava çapatos para a guerra”.420

Nos meses que se seguiram à Revolta Malê, os primeiros sinais da presença muçulmana na Corte podem ser atestados com a apreensão do amuleto pela polícia. Em um primeiro momento pode notar-se que se trata de um amuleto africano perfeitamente de acordo com os padrões da África Ocidental. Na primeira parte do documento, o diligente chefe de policia da corte relata o depoimento do africano encarregado da tradução. Este confirma a assertiva de alguns depoimentos dos processos na Bahia. Os nagôs não possuíam erudição suficiente nos assuntos islâmicos e mandavam educar seus jovens em estados islâmicos vizinhos.421 Em 1835 no depoimento da escrava mandubi Marcelina, inquilina do liberto malê Belchior foi observado: “Que os papeis achados na casa e neste acto mostrados a ella são papeis de reza de Males escriptos e feitos pelos metres dos outros os quaes andão ensinando, e que estes mestres são de Nação Ussá porque os Nagôs não sabem e são convocados por aquelle para aprender e tão bem por alguns de Nação Tapa”.422

O interrogatório de Marcelina revela uma hierarquia peculiar no mundo escravo. A escrava ganhadeira, segundo seu depoimento, alugava uma casa para o liberto Belchior. Esta mesma escrava no seu interrogatório acusou os malês de perseguirem-na por sua devoção católica.423 Convém lembrar que Marcelina estava igualmente presa e era escrava

420

Ij6-170, jan-jul., 1835, Oficio do chefe de Policia ao Ministro da Justiça, Arquivo Nacional. O documento foi publicado anteriormente em SOARES, Carlos Eugenio Líbano. A capoeira escrava e outras a tradições rebeldes no Rio Janeiro (1808-1850). Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p. 356. A presente transcrição foi feita diretamente da fonte. Agradeço a Alzira Durão pela transcrição. 421 Na América, certos rótulos étnicos implicavam em afiliação religiosa. Iorubá, por exemplo, podia incluir muçulmanos, apesar de freqüentemente se referir a não-muçulmanos (nagô e lucumi). O termo “iorubá” é aparentemente de origem hauçá e songhai cunhado do trabalho de Ahmad Baba em 1615 em Tombuctu no seu tratado de jurisprudência da escravidão no Islã. Nessa época, em Tombuctu, o songhai era falado e não o hauçá. O termo também foi usado em dendi, um dialeto do songhai falado em Borgu pelos comerciantes. No hauçá o termo é yarabawa (plural) e bayarabe (singular). LOVEJOY, Paul E. The relationship between jihad and slavery in the Americas, p. 9. Ver também: LAW, Robin. “Ethnicity and the Slave Trade: “Lucumi” and Nago” as Ethnonyms in West Africa”, in: History in Africa 24, 1997, pp. 205-219. 422 Devassa do Levante, vol. 38, p. 69. 423 Devassa do Levante, vol. 38, p. 69. Que como ella não mora de noite como já disse só sabe do nome daquelle mestre sendo certo que de dia se fazião muitos ajuntamentos por que quaze todos são escravos que

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de uma freira. Utilizava a casa como depósito de suas mercadorias e, à noite, o imóvel era cedido a Belchior que o transformava em escola corânica do mallam Luis Sanim. Marcelina ainda relatou que no sábado, véspera da revolta, voltou à dita casa e encontrou Agostinha, companheira de Belchior, e que esta teria lhe contado em tom queixoso que todos os mestres haviam convocado seus discípulos para fazer guerra aos brancos. Agostinha lembrou na ocasião que seu companheiro Belchior havia chegado como escravo da África e fora alforriado por um branco. O depoimento das duas africanas deixa patente as divergências quanto aos vínculos de lealdade. Existia uma ligação espiritual (baya) dos discípulos com os mallans. A alforria concedida em “terra de branco” não deixou vínculos de clientela em Belchior, enquanto sua companheira Agostinha forra e a escrava Marcelina aparentemente aceitavam de forma pragmática o destino na nova terra. A companheira de Belchior em seu interrogatório alegou que a revolta não era “assunto de mulher”, por isso não podia dar mais informações, mas argumentou que ela e seu companheiro não tinham motivos para participar da revolta. Eles haviam chegado escravos e foram alforriados. Agostinha foi condenada a sessenta e quatro meses de prisão com trabalhos e a sentença de Marcelina não aparece na Devassa.424 Na interpretação de Líbano Soares, o amuleto revelou além das propriedades protetoras inerentes ao artefato, uma distensão interna dos africanos. Os estudiosos da diáspora muçulmana no hauçá tem desenvolvido a teoria da existência de duas correntes de

hião a noite para caza de seu Senhor. segundo ella ovia dizer e não por conhecelos, e mesmo porque elles a aborrecião dizendo que ella hia a Missa adorar pau que está no altar por as Imagens não são os Santo. 424 Que mora na casa em que foi preza a trez annos por que he camarada de Belchior da Silva Cunha, e que os papeis achados na sua caza e mostrados neste acto são do dito Belchior, e de Gaspar da Sílva. Cunha outro negro Nagô que com aquelle se acha prezo, e que a camizola e a farda são do dito Gaspar. Que os papeis são feitos pelo mestre de Gaspar e Belchior que hé escravo de hum homem que faz fumo no cais do Dourado, e mora junto a igreja de Guadalupe, e he de Nação Tapa cujo nome de sua terra he Sanim por que é como ella o trata, por não saber o nome que elle tem na terra de branco o qual negro quando está ao brinquedo fala tão bem lingua de Nagô e he velho com alguns cabellos brancos. Que o dito mestre hia a caza della fallar com Belchior muitas vezes e Belchior tao bem hia a caza do Senhor delle, sendo a ultima ves antes desta guerra dos negros sexta feira supra da mesma guerra, a noite pelas oito horas pouco mais ou menos, que elle ficou na porta fallou com Belchior por pouco tempo e foi embora. Que alem do dito mestre tão bem hia a casa conversar e rezar com o mesmo mestre o seguintes negros captivos cujos nomes da terra de branco ella nao sabe por que la so se fallava com os nomes de sua terra, que são hum de nome Ová cujo senhor mora na rua da Larangeira, e he carregador de cadeira; outro de nome Dadá que he ferreiro e escravo no terreiro que tem a Barrochinha; outro de nome Ojou, carregador de Cadeira cujo senhor he o vigario da rua do Passo; outro de nome Namonim, escravo do Padeiro que mora na Igreja do Hospício do Pillar o qual dantes vendia Pão e agora está em casa trabalhando; e outro de nome Aliará cujo senhor agora está no Bomfim e mora na casa grande do caminho novo mas este ja he forro ainda que está morando por hora com o mesmo senhor. Que quando se juntavão fallavão em fazer guerra aos Brancos mais que ella como mulher não se metia nisso, e antes dizia a Belchior que elle veio captivo de sua terra e aqui tinha ficado forro; que os Brancos não fazião mal por que se achavão sem vintem comião e bebião e por isso que o dito Belchior nunca teve tenção de hir á guerra, e nem sahio nesse dia. Disse mais, por lhe ser perguntado que o dinheiro achado em sua caza em cobre, e que foi contado neste acto por ella mesmo, e he a quantia de settenta e nove mil quatro centos e oitenta reis, pertencem ao dito Belchior seu camarada, prezo no Forte do mar e mais não disse nem lhe foi perguntado. Devassa do Levante, vol. 38, p. 71.

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resistência islâmica escrava na América. Essas distensões aparentemente foram suprimidas em face da opressão da escravidão.425 Os muçulmanos na diáspora não tiveram uma percepção uniforme da escravidão. Porém, na tentativa de entender essa condição, faz sentido que esses indivíduos tenham reagido através dos métodos de redenção e emancipação comuns na África Ocidental. Houve aparentemente por parte dos muçulmanos a utilização de estratégias de acordo com as oportunidades oferecidas pelo cativeiro.426 A primeira corrente era claramente comprometida com a prática militante do jihad. Estes, na África Ocidental, condenavam a escravização de muçulmanos livres, a venda de escravos para os cristãos e agressivamente buscavam a imposição da lei islâmica. O Islã na África Ocidental possuía também uma tradição de acomodação em Estados em que os governantes muçulmanos freqüentemente toleravam as práticas religiosas tradicionais dos camponeses. Esta atitude foi veementemente condenada pelos reformadores islâmicos. Wilks observou essa tradição “quietista” no Islã, que tolerava práticas tradicionais e em algumas ocasiões se opunha ao jihad.427 Segundo Willis, os “quietistas” representavam uma corrente incapaz de corresponder às expectativas reformadoras do Islã africano do século XIII da Hégira. Os mudjahidin, embebidos da austeridade revolucionária, recusaram-se a fazer concessões. O jihad era o único caminho capaz de romper o impasse entre o Islã e a descrença.428 Uthman dan Fodio também criticou severamente os mallams “quietistas”, que tentavam através da ambigüidade preservar posições nas cortes pagãs.429 Essas assertivas pressupõem a existência de um considerável grau de animosidade entre os muçulmanos dessas duas correntes conflitantes, resultando em guerras e conflitos no interior da comunidade islâmica. A tradição “quietista” estava aparentemente ligada aos mandingos, enquanto a tradição do jihad aparece claramente ligada aos fulás, hauçás e 425

LOVEJOY, “The Relationship between jihad and slavery in the Américas”, p. 11. DIOUF, op. cit., pp. 11-13, 38, 135-137, 165-170. 427 De acordo com Wilks, a tradição “quietista” a que ele se refere como a tradição suwariana envolvia “acomodação e coexistência”, baseadas nas políticas e práticas estabelecidas por al-hajj Salim Suwari, inicialmente em Ja (Dia) em Massina e mais tarde em Jahaba, Bambuhu no final do século XV. Reverenciado por juula and jahanke, e desse modo associado de forma abrangente com os mandingos, al-hajj Salim Suwari advogava ser possível muçulmanos viverem em comunidades não-muçulmanas. Assim teriam acesso à riqueza através do comercio e do artesanato nesse mundo, o que não significava a negação da salvação no “outro” mundo. Essa crença baseava-se na rejeição de um proselitismo ativo. A conversão real ocorreria apenas no reino de Deus. Portanto, o jihad era rejeitado como instrumento de mudança, exceto em situações extremas de sobrevivência da comunidade muçulmana. Todos os infiéis seriam em algum momento convertidos, mas em estágios pré-estabelecidos. Aos muçulmanos restava manterem-se puros de acordo com a tradição do Profeta para esperar adequadamente a conversão futura dos infiéis. WILKS, Ivor. “Consul Dupuis and Wangara: A window on Islam in the early Nineteenth-Century Asante”, in: Sudanic Africa, 6, 1995, p. 61. 428 WILLIS, John R. In the Path of Allah: The passion of al-hajj Umar: An essay into the nature of charisma in Islam. London: Frank Cass & Co., 1989, p. 49. 429 MARTIN, op. cit., p. 29. 426

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muçulmanos iorubás. Segundo Lovejoy, durante a guerra de 1812 entre Estados Unidos e Inglaterra, escravos muçulmanos lutaram para defender as propriedades dos senhores. Esses indivíduos do Sudão Ocidental não pertenciam à tradição dos jihads.430 Na devassa da revolta de 1835 na Bahia, são inúmeros os casos de indivíduos que recorrem ao artifício da etnicidade como argumento decisivo para escapar do estigma rebelde dos muçulmanos hauçás e iorubás e conseqüentemente obter a absolvição imediata. Esses exemplos foram usados de forma análoga por Austin nas biografias de escravos nos Estados Unidos. Os indivíduos estudados por Austin integraram-se à nova ordem utilizando a erudição como forma de ascender socialmente nos estreitos limites da sociedade escrava.431 Em 1823, na rebelião escrava de Demerara, um capataz muçulmano denunciou os revoltosos. O estereótipo de escravo muçulmano endemicamente revoltoso se desfaz nas divisões ideológicas da interpretação do Islã.432 O Livrinho Malê O documento conhecido como “Livrinho Malê” consiste de um amuleto manuscrito com passagens corânicas. Esse amuleto foi doado por um cidadão chamado J. de Sampaio Vianna e foi encontrado no pescoço de um revoltoso morto durante a revolta muçulmana de 1835.433 O estilo de escrita árabe magrebina é o mesmo dos manuscritos encontrados no arquivos baianos. A grafia limpa e com poucos erros indica um grau de erudição considerável. As surahs em alguns trechos demonstram claramente a relação com a situação dos escravos e libertos muçulmanos na Bahia. Os versículos abrangem a maior parte do Corão (114 versículos), porém, não escritos integralmente; aparentemente os versículos e seus trechos específicos escolhidos foram selecionados deliberadamente.434 O texto se inicia no versículo 2, al-Bácara (A Vaca) e termina no versículo 69, al-Hácara (A 430

LOVEJOY, “The relationship between jihad and slavery in the Americas”, p. 12. Ver tambem: LOVEJOY, Paul E. and ADDAOUN, Yacine D. The Arabic Manuscript of Muhammad Kaba Saghanughu of Jamaica, c.1823. University of West Indias, Mona, Jamaica, January 9-12, 2002, p. 10. O Kitab al-salat escrito por Muhammad Kaba na Jamaica, permitiu ligar os muçulmanos enviados para essa região como parte da tradição “quietista” da irmandade Qadiria no Sudão Ocidental. 431 Ver AUSTIN, op. cit., 432 COSTA, op.cit., p. 232. No caso de Demerara, a participação maciça de escravos protestantes sob a liderança de um pastor inglês pode ter influído decisivamente para o afastamento dos muçulmanos. Em contrapartida, um caso de colaboração inter-religiosa sob liderança africana foi a revolta de Denmark Vessey em Charleston, em 1822. ROBERTSON, David. Denmark Vessey. New York: Vintage Books, 2000. 433 Coleção Instituto Histórico. “Livrinho Encontrado Preso ao Pescoço de um Negro Morto Durante a Insurreição dos Malês na Bahia”. Doação de J. de Sampaio Vianna, originais : IHGB, 102 p., lata 987, pasta 5. 434 Ver anexo.

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Realidade). Como não se tem registro da existência de exemplares do Corão na Bahia para esse período, deduz-se, portanto, que o autor tivesse conhecimento de todo ou de grande parte do texto corânico.435 Algumas passagens corânicas reproduzem de forma incrivelmente fiel a situação da comunidade muçulmana na Bahia no período que antecedeu a revolta de 1835: “E o que vos impede de combater pela causa de Deus e dos indefesos (mustadh’af),436 homens, mulheres e crianças? Que dizem: ó Senhor nosso, tiranos desta cidade (Meca), cujos habitantes são opressores. Designa-nos, de Tua parte, um protetor e um socorredor!”437

Através desses trechos e no decorrer dos versículos, percebe-se claramente uma comunidade sob coerção além dos limites óbvios da escravidão. Tecnicamente falando, o autor demonstra não apenas o domínio do conteúdo corânico, mas uma sofisticada capacidade de analogia (qiya)438 do Corão com a realidade. Essa habilidade é um recurso circunscrito a eruditos islâmicos.

435

Na África Ocidental, por exemplo, as famílias enviavam os filhos para a escola corânica quando a criança pudesse “contar ate dez”. Os professores detinham total autoridade sobre os alunos, direito este outorgado pelo pai. Os estudantes começavam decorando a surah al-Fatiha (versículo de abertura do Corão) e as dez últimas suratas (conhecidas como “curtas”). O próximo estágio era estudar a gramática árabe, ler e recitar o texto corânico inteiro. Cada trecho (ahzab) decorado era celebrado. A cerimônia de formatura da instrução primária terminava com uma cerimônia em que o estudante ricamente vestido recitava a primeira parte do Corão diante dos professores, colegas e parentes. O professor era devidamente recompensado pelos pais com dinheiro e roupas novas. Esse aprendizado na escola corânica era também pré requisito básico para se iniciar a vida profissional. REICHMURT, op. cit., in: LEVTZION & POUWELS, op. cit., p. 424. Leão, o africano, no inicio do século XVI, relatou sua experiência pessoal: “Para entender o significado da “grande recitação” na vida do crente é preciso ter vivido em Fes, cidade aonde o aprendizado foi construído ao redor das escolas (madrasas). Apos vários anos de paciente memorização, chega-se ao ponto de se recitar todos os versículos do Corão. Quando isso acontece, o professor declara o estudante pronto para a “grande recitação” e imediatamente passa da infância ao mundo dos homens, do anonimato para a fama. É quando alguns começam a trabalhar e outros são admitidos nos estágios superiores de aprendizado, fontes de erudição e autoridade”. MAALOUF, op. cit., p.136. Sanim, um dos líderes da Revolta Malê, deixou escapar que apesar de todos os indícios apontarem-no como mestre, ele não exercia essa atividade em terras brasileiras: “Que he verdade ter o nome de Sanim na sua terra, mas que he falso o dizer se que elle ensina a lingoa, ou reza de Male por que quando veio para. terra de branco, não tractou mais disse e nem se lembra”. Devassa do Levante, vol. 38, p. 119. 436 Aquele reconhecidamente fraco, maltratado e oprimido. O mestre hauçá Dandará foi mais claro: “e que elle he Mestre em sua Terra, e que aqui elle tem ensinado os rapazes; porém que não he para mal. Devassa do Levante, vol. 54, p. 212. 437 Livrinho Malê, p. 3. Surata An Nissá (As Mulheres, versículo 4: 102). A numeração obedecerá a paginação da tradução inglesa disponível em anexo. A versão portuguesa usada no trabalho é a de Samir El Hayek. O Significado dos Versículos do Alcorão Sagrado, tradução Samir El Hayek. São Paulo: Marsam, 1994. 438 Ver conceitos de qiya em: PHILIPS, Abu Ameenah Bilaal. Evolution of the Madh-habs (Schools of Islamic Law). Ryadh: International Islamic Publishing House, 1988/1409 AH.

154 Figura 8: Livrinho Malê

FONTE: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Rio de Janeiro

A última parte do documento traz a transcrição da Surah Ya sin quase na íntegra.439 Seria pertinente esclarecer o significado desse versículo dentro da tradição islâmica clássica e da tradição das vertentes islâmicas na África Ocidental. Ya sin são duas letras do alfabeto árabe e a sua revelação remonta ao período final da revelação profética em Meca, antes da imigração para Medina. Os versículos foram revelados no sentido de advertir o clã 439

O documento apresenta transcrições dos seguintes versículos: Al-Bácara (a Vaca), Áal ‘Imran (A Família de Imran), Al-Nissá (As Mulheres), Al-Máida (A Mesa Servida), Al-A’raf (Os Cimos), Yunis (Jonas), Hud (Hud), Ibrahim (Abraão), An Nahl (As Abelhas), Al-Cahf (A Caverna), Taha (Taha), Al-Anbiyá (Os Profetas), Al-Muminun (Os Crentes), Al-Furcan (O Discernimento), Ach Chu’ará (Os Poetas), Al-Cassas (As Narrativas), As Sajda (A Prostração), Al-Ahzáb (Os Partidos), Sabá (Sabá), Fáter (O Criador), Sad (A Letra Sad), Caf (A Letra Caf), Az Záriat (Os Ventos Disseminadores), Al-Camar (A Lua), Al-Mumtahana (A Examinada), Al Hácca (A Realidade), Al Ma’arij (As Vias de Ascensão), Al-Tahrim (As Proibições).

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de Coraix das conseqüências de sua descrença, tirania e arrogância. De acordo com tradição profética, a Surah Ya sin é o coração do Corão, como, de forma análoga, a Surata al-Fatiha é a sua essência.440 A utilização da Surah Ya sin na Iorubalândia podia variar de acordo com os círculos ligadas ao sincretismo, a acomodação ou a reforma. Por exemplo, na sua utilização como forma de controle adivinhatório nos círculos sincréticos do Islã com a religião tradicional. Um caso específico era a utilização da sura em questão em casos de maldição, encantamentos e insanidade. A insanidade seria causada por jinns (gênios, espíritos) e tratada através da poderosa Surah Ya sin recitada pelo alufá no ouvido do doente “com o coração e o conhecimento em uníssono que Deus é Uno”.441 FIGURA 9

FONTE: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro/Rio de Janeiro

De acordo com a análise conjunta do corpus documental dos manuscritos preservados foi possível chegar a algumas conclusões.442 Não constitui tarefa fácil estabelecer o grau de erudição de um indivíduo através de um manuscrito árabe. Porém,

440

Ver a coletânea de hadiths, AL-ZUBAYDI, op. cit et passim. RYAN, op.cit., p. 187. 442 Agradeço a Yacine Daddi Addaoun, doutorando do Nigerian Hinterland Project/UNESCO, York University, os comentários sobre o documento. 441

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pode-se atestar que se tratava de alguém que conhecia as regras gramaticais e por isso cometeu poucos erros. A firmeza da pena, sem hesitação, sugere que o autor era um praticante contumaz da escrita e da leitura no idioma árabe. Essas características ficam patentes na Surah Ya sin e no du’á rabbana respectivamente. Deve ser ressaltado que a vocalização não foi empregada de maneira uniforme.443 A constatação poderia significar que o autor foi obrigado, por qualquer razão, a terminá-lo sem vocalizá-lo inteiramente. Existe ainda a hipótese do autor ter escrito o manuscrito para uso próprio; dessa forma não haveria necessidade de vocalizá-lo, especialmente em textos memorizados como o Corão.444 O autor identifica-se como Suleiman ibn Dawuud sem erros de grafia no seu nome em árabe.445 Parte do manuscrito parece ter sido montado para ser utilizado como amuleto em uma escrita que não é árabe nem hauçá. Não obstante, o autor estar envolvido em exercícios ligados à escrita e ao conhecimento das passagens corânicas. A análise dos manuscritos como foi enfatizado no início do capítulo revela um mundo de possibilidades. Esse é um estudo preliminar, mas aponta para abordagens específicas. Os manuscritos têm sido tratados pela historiografia apenas como uma fonte auxiliar do objeto. Essa assertiva foi construída pelo desconhecimento da força da escrita, da poesia e da recitação no Islã. A revelação de vertentes místicas associadas ao conhecimento esotérico islâmico nos oferece uma opção à tábula rasa do sincretismo.

443

A vocalização breve no idioma árabe é feito através de sinais diacríticos fatha, damma e kasra colocados sobre as consoantes. As vogais longas possuem letras especificas. SABBAGH, Alphonse N. Dicionário árabe-português-árabe. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico/Ed. UFRJ, 1988, p. 10. 444 O indivíduo que memoriza todo o texto corânico é chamado Huffaz. 445 Havia dois africanos chamados Suleiman ou Sule em 1835. Um era liberto nagô e foi o pivô da denúncia da rebelião através da denúncia de sua companheira. O outro era escravo nagô do inglês Stuart e apontado como um dos mestres dos escravos muçulmanos da Vitória. Ambos teriam perecido em combate. Essa hipótese é reforçada pelo fato do manuscrito ter sido encontrado no pescoço de um africano morto na revolta.

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Capítulo 5 Sócios, parceiros e clubes: a irmandade e o misticismo islâmico na devassa da Rebelião Malê

A documentação judicial é, sem dúvida, uma fonte histórica riquíssima e ao mesmo tempo perigosa, endossando as palavras de Góes.446 A objetividade histórica exigida nesses casos é constantemente colocada em cheque. O desafio é de interpretar, decifrar e entender muito além dos limites do óbvio. A satisfação de perceber passagens até então despercebidas e obliteradas é seguida num outro momento, pela decepção de uma possível teoria se desvanecer no turbilhão dos depoimentos. O trabalho é detetivesco, para o Sherlock que existe dentro de cada de um nós. De alguma forma e de acordo com a nossa visão de mundo, procuramos penetrar no inconsciente dos depoentes através de suas crenças, medos e possíveis estratégias de sobrevivência. Não esqueçamos que um erro poderia significar mais acoites, prisão perpétua com trabalhos forçados, deportação ou mesmo a morte. O tremor do mallam Licutan ao desafiar o juiz era medo ou fúria? Talvez ambos. Sua atitude desafiadora continha uma mensagem, mas qual, além da obviedade de suas palavras? Os termos utilizados pelo escrivão nos processos precisam ser traduzidos, filtrados e não apenas lidos. Indo além, é necessário um exercício extremamente árduo de interpretação dos depoimentos produzidos em português através de relatos de indivíduos africanos. Freqüentemente esses africanos não dominavam o idioma do escriba e viceversa. Várias passagens ficaram definitivamente comprometidas e outras foram esclarecidas à luz dessa garimpagem quase adivinhatória.447 Apesar das possíveis distorções, imprecisões, ou falhas inerentes a processos desse tipo, a revolta escrava de 1835 legou às gerações futuras de historiadores uma quantidade considerável de documentos, em contraste com as rebeliões anteriores na Bahia e posteriores em qualquer parte do território brasileiro. A documentação da devassa tem sido examinada desde o final do século XIX, e isso nos coloca diante de um dilema: qual a relevância do exame de um corpo documental exaustivamente estudado? Inicialmente, trata-se de uma tarefa consideravelmente mais árdua que a análise de um material inédito. Por último, e não menos relevante, a constatação de que o exame reiterado das fontes foi dificultado 446

GÓES, José R. O cativeiro imperfeito: um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX. Vitoria: Lineart, 1993, p. 29.

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sobremaneira pela complexidade inerente ao tema. Portanto, utilizando a analogia de Ginzburg entre médicos e historiadores, a documentação da devassa pode ser comparada com uma patologia crônica, que exige do estudioso conhecimento específico e mãos firmes para executar um cortes cirúrgicos de alta precisão.448 As circunstâncias locais que determinaram a montagem do aparato jurídico pelo Estado brasileiro para punir os revoltosos já foi minuciosamente explicado em outros trabalhos. As inovações liberais incluíam os novos Código Penal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832, porém suas nuances apenas serão comentadas como informação complementar se necessário. O objetivo do trabalho foi capturar, através dos depoimentos, a perspectiva africana, as práticas, os sinais de organização, a liderança e as redes de relações pré-existentes na África Ocidental entre os revoltosos. De acordo com P.F. de Moraes Farias, a formação de uma consciência pan-iorubá na África teve uma versão brasileira mais antiga na Bahia. O termo nagô tomou o sentido abrangente de etnias sob a influência de africanos da língua fon.449 Como mencionado anteriormente no presente trabalho, o Islã na África Ocidental e na Bahia estabeleceu padrões e atitudes similares. Portanto, a dinâmica da população islâmica iorubá na Bahia pode perfeitamente ter desenvolvido de forma análoga a comunidade iorubá na África Ocidental, estratégias senão pioneiras, ao menos simultâneas aos de padrões além-mar . Reichmurt enfatizou esses padrões no emirado de Ilorin na década de vinte do século XIX, então cabeça de ponte islâmica do Califado de Sokoto na Iorubalândia: “A diversidade étnica dos eruditos refletia-se igualmente nos senhores da guerra e guerreiros e, ao lado do exército, mesquitas e escolas tornaram-se o principal meio de integração social na cidade. Os fulás, hauçás, nupes, dendis e kanuris e mesmo árabes-bérberes eram encontrados entre os eruditos que vieram para Ilorin depois da fundação do emirado. Os iorubas, que formavam a maioria da população, foram gradualmente absorvidos pelo grupo de intelectuais e religiosos. Os adeptos desses imans demonstravam perfis étnicos análogos aos dos senhores da guerra e refletiam o equilíbrio étnico-político em Ilorin. O iman fulá se encontrava no topo da hierarquia, secundado pelo iman Imalê, que representava os bairros iorubás da cidade (conhecidos como Oke Imale)”.450 447

Ao contrário, por exemplo, dos julgamentos dos revoltosos americanos, Demark Vessey, em Charleston 1822 e Nat Turner em Southhampton County, em 1832. Nesses casos os principais acusados eram fluentes em inglês. 448 GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 157. “E como o do médico, o conhecimento histórico e indireto, indiciário, conjectural.” 449 FARIAS, P.F de Moraes. “Enquanto isso do outro lado do mar… Os Arokin e a identidade iorubá”, in: Afro-Ásia, 17, 1996, p. 141. 450 REICHMURT, Stefan. “A sacred community: Scholars, saints, and emirs in prayer text from Ilorin”, in: Sudanic Africa, 6, 1995, pp. 35-54.

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Processos análogos e divergentes foram desenvolvidos nos dois lados do Atlântico, graças à presença maciça de grandes pedaços de mundo africano criados pela diáspora nas Américas. Na África Ocidental havia um mundo em profunda transformação devido ao colapso de estruturas tradicionais, quer sob os golpes do Islã reformador e militante dos religiosos ou solapado pela tradição islâmica “quietista”.451 A Devassa Uma série de questões acerca da revolta africana de 1835 ainda confunde os estudiosos. Sem contar as tradicionais discussões sobre o jihad, inúmeros elementos de análise quase míticos, superficiais ou elaborados, assaltaram os estudos sobra a comunidade africana revoltada. A documentação produzida pela devassa é vasta, porém alterna momentos de precisão e confusão que deu margem a polissemia interpretativa existente. Uma dessas polêmicas é acerca do número de revoltosos que foram às ruas na noite entre 24 e 25 de janeiro de 1835 em Salvador. A questão numérica foi explorada para diminuir ou aumentar a importância da revolta, sem que o número de rebeldes tivesse tido qualquer relevância, a principio, para justificar seu estudo. O perfil único de “cidade negra” de Salvador tampouco se sustenta, pois refletiu uma realidade não apenas brasileira, mas de inúmeras regiões da América no século XIX.452 A proporção e o quantum provável de rebeldes, indivíduos arrolados na devassa e executados com a pena capital, igualmente não se justificaria per se.453 451

Sobre a questão da dinâmica africana nas duas margens ver: FARIAS, op. cit. pp.139-140. Sobre expansão islâmica na suas versões pacífica e militante na Iorubalândia ver: CLARK, Peter. West Africa and Islam: A study of religious development from the 8th to the 20th Century. London: Edward Arnold Publishers, 1982, pp. 111 a 166. 452 O número de escravos no Rio de Janeiro superava 50% da população. Em 1832, 73,3% eram africanos em 1849, 66,4% do total de escravos. KARASCH, op. cit pp. 41-42 e 107. Em Recife, terceira maior cidade do Império, na década de 30 do século XIX, a proporção era 44,6% de cativos para a população total. Em 1827, os africanos representavam 66% de todos os escravos do sexo masculino da Comarca do Recife. CARVALHO, Marcus J.M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1998, pp. 54, 89. Nas colônias de Essequibo e Demerara na Guiana Inglesa, entre 1817 e 1823, 55% dos escravos eram africanos e 46% da população total. “Os grupos mais numerosos eram os congos, coromantee, papa, igbos e mandingos.” COSTA, op.cit. pp. 70-71. O censo de 1820 em Charleston na Carolina do Sul demonstrou uma população de 74,70% de escravos e 25,29% de brancos com um crescimento de 21% da população negra em 10 anos. ROBERTSON, op. cit. pp. 64-65. Sobre o distrito de São Tomé das Letras no sul de Minas, local da insurreição escrava de Carrancas em 1833, o percentual de escravos na população era de 51%. ANDRADE, op. cit. p. 209. 453 Em Demerara, em 1823, foram de 10 a 12 mil escravos rebelados. Entre 1823 e 1824, 72 escravos foram julgados. Cinqüenta condenados à morte e 33 executados, dez decapitados e inúmeros mortos pelos fazendeiros sem julgamento. COSTA, op. cit., pp. 13, 284 et passim. Na revolta de Denmark Vessey, especula-se a participação de 600 escravos. Vinte e dois negros foram executados e, após duas semanas do

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A comparação demonstra que, independentemente da região, a concentração de população escrava foi determinante. Na maioria das rebeliões, o fator africano, quando presente, potencializou o perigo de revoltas, entretanto no Brasil e particularmente na Bahia, exagerou-se o estigma do mina rebelde. A população Salvador em 1835, obedecia a um padrão mais clássico que se supunha de acordo com a estimativa de Reis: Tabela 1: Distribuição da população da cidade de Salvador (Bahia) em 1835 Origem 1. Africanos Escravos Libertos

Número 21,940 17,325 4,615

Porcentagem 33,6 26,5 7,1

2. Brasileiros Brancos (brasileiros e europeus) Livres de cor e libertos Escravos

43,560 18,500 14,885 10,175

66,4 28,2 22,7 15,5

3. Total

65,500

100,0

Fonte: REIS, João José. Slave Rebellion in Brazil: The Muslim uprising of 1835. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1995, p. 6.

Inicialmente, a tabela 1 indica uma imensa maioria de pessoas de cor na população de Salvador e uma expressiva minoria de africanos. Essa leitura inicial, no entanto, apenas reflete a distinção óbvia entre crioulos e africanos. Resta saber se a população africana, agrupada nos números, pode, efetivamente exibir a mesma uniformidade na prática. De acordo com os depoimentos dos indivíduos arrolados nos processos, não há indícios de cooperação entre africanos; e mais, existem várias indicações de animosidades étnicas entre eles. Mesmo levando-se em consideração as possíveis estratégias de exacerbação de conflitos para escapar das generalizações inevitáveis das autoridades, as afirmações enforcamento de Vessey, três escravos foram condenados à morte por atirar na carruagem do correio no subúrbio de Parker’s Ferry (localidade onde Vessey e outros insurretos podem ter se encontrado com Omar ibn Said, escravo e mestre muçulmano). Prisões, julgamentos e sentenças de morte prosseguiram mesmo após quatro semanas do enforcamento de Vessey. ROBERTSON, op. cit., pp. 59, 104-105. Na rebelião escrava chamada Babtist War, na Jamaica em 1831-1832, aconteceram 300 cortes marciais sendo 427 indivíduos indiciados. Destes, 250 foram condenados à morte e 232 efetivamente executados. Dos executados, 28% foram fuzilados e 72% enforcados, 15 deportados, 160 açoitados e trabalhos forçados variando de um mês a prisão perpétua. CRATON, Michael. Testing the chains: Resistance to slavery in the British West Indies. Ithaca: Cornell University Press, 1982, p. 314. Na Insurreição de Carrancas no sul de Minas, 16 escravos foram executados. ANDRADE, op. cit., p. 207. Na revolta de Nat Turner na Virginia em 1831, morreram aproximadamente 60 brancos e mais de 200 negros. OATES, Stephen B. The fires of jubilee: Nat Turner’s fierce rebellion. New York: Harper Perennial, 1990, p. 126. Nas rebeliões ocorridas no Recôncavo Baiano em 1814, estimou-se em 250 os escravos rebelados e 4 foram executados. Em 1816, foram 4 dias de revolta e, em 1822, 52 escravos foram executados sumariamente por ordem do General Pedro Labatut, na mais

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reiteradas não podem ser ignoradas sob pena de invalidar os processos como fonte histórica. Quando interrogado, Carlos - escravo nagô ijebu - afirmou: “... porque os Nagôs que sabem ler e socios da insurreição nem davão a mão apertar, nem tractavao bem aos que não o eram chamando-os por desprezo Gaverá”.454 Nas palavras de Carlos, que fez questão de ressaltar sua identidade étnica strictu sensu, havia uma clara distinção na atitude de desprezo dos nagôs malês diante dos outros que eram denominados pejorativamente “gaverá” (corruptela do árabe kafirun, infiel). O testemunho de Carlos não parece incoerente; ao contrário, foi um relato bastante preciso de atitudes e termos utilizados por adeptos de um Islã militante para seus pares étnicos não-islamizados. Observemos a delação feita pela liberta Guilhermina: “...em que afirmavão terem chegado alguns negros de Santo Amaro para se unirem com o maioral Aaruna, ou Uahuna que já de mais dias tinha vindo, a fim de que no dia seguinte com outros negros desta Cidade tomassem conta da terra, matando os brancos cabras e crioulos. e tão bem aquelles negros de outra banda que quizessem unir a elle, ficando os mulatos para seus lacaios, e escravos”.455

Na passagem, além da importância evidente da menção ao “maioral” Ahuna e da animosidade já conhecida em relação a brancos, cabras, crioulos e mulatos, é importante destacar a menção aos “negros de outra banda”. A única interpretação plausível sob qualquer aspecto é que se trata de africanos não-muçulmanos. Em outra delação, a liberta Sabrina da Cruz confirmou a assertiva de sua comadre: “...que de madrugada, quando os Soldados tocassem havião de haver foguetes nas lojas da Praia e elles havião de sahìr ajuntando os demais negros para matarem os brancos, crioulos e cabras, e ficarem os mulatos para seus escravos, e lacaio”.456

Aqui, mais uma vez, confirma-se uma norma geral de ação malê: morte para brancos, crioulos e cabras e escravização dos mulatos.457 Se existiu um padrão reiteradamente lembrado na revolta de 1835, foi o desejo da perpetuação da escravidão através dos mulatos, os maiores desafetos dos africanos depois dos brancos. No decorrer do sangrenta repressão da história da rebeldia africana na Bahia. REIS, João José. “Recôncavo rebelde: revoltas escravas nos engenhos baianos”, in: Afro-Ásia, 15, 1992, pp. 103-111. 454 Devassa do Levante, vol. 40, p. 32. 455 Devassa do Levante, vol. 38, p. 62 456 Devassa do Levante, vol. 38, p. 63.

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trabalho foi possível observar, a partir da origem dos indivíduos na África Ocidental, as práticas de escravidão e manumissão próprias de suas sociedades. Portanto, sejam considerados ou não os testemunhos e depoimentos nos processos, a definição dos revoltosos de 1835 como abolicionistas é descaracterizar de forma absurda uma cultura e sua dinâmica. Já se disse que sociólogos devem exagerar. Historiadores, por sua vez, preferem singularizar. A Revolta Malê foi eminentemente africana e islâmica na sua concepção e realização, e desafia os que elaboraram modelos teóricos de rebelião escrava, pois ignorou solenemente os cânones ocidentais de liberdade. Marcelina, escrava ganhadeira mundubi de uma religiosa, no seu interrogatório declarou: “...mesmo porque elles a aborrecião dizendo que ella hia a missa adorar pau que está no altar por as imagens não são santos”.458 O depoimento de Marcelina mais uma vez atesta a hostilidade latente no seio dos africanos, e reafirma a concepção ortodoxa de Islã em terras baianas. Se analisarmos com mais profundidade o depoimento de Marcelina, podemos depreender informações valiosas. “...que mora na caza em que foi preza só de dia para vender e guardar suas fazendas secas de cujo negócio vive, isto desde que a tropa entrou do Recôncavo indo com tudo todas as noites dormir junto do convento em caza das Escravas do mesmo convento. Que o alugador da casa é Belchior da Silva Cunha., que se acha prezo no Forte do mar, preto liberto de Nação Nagô que foi escravo do Cunha. Que os papeis achados na casa e neste acto mostrados a ella são papeis de reza de Males escriptos e feitos pelos metres dos outros os quaes andão ensinando, e que estes mestres são de Nação Ussá porque os Nagôs não sabem e são convocados por aquelle para aprender e tão bem por alguns de Nação Tapa. Que o mestre que ensinava a Belchior e outros que ahi se juntavão era o Negro livre escravo do Homem que mora junto a Guadalupe e tem armazem de enrolar fumo ao Cais do Dourado e de nome falam Ricardo, o qual negro he de Nação Tapa, e sabe fallar a lingoa de Ussá. Que como ella não mora de noite como já disse só sabe do nome daquelle mestre sendo certo que de dia se fazião muitos ajuntamentos por que quaze todos são escravos que hião a noite para caza de seu Senhor”.459

Pode-se entender através deste depoimento como os africanos organizavam e quais eram suas estratégias de sobrevivência. A escrava utilizava a casa de dia como depósito de mercadorias e a dividia com o liberto Belchior da Silva Cunha. A casa era usada como 457

Na rebelião em Charleston na Carolina do Sul, os lugares-tenentes de Denmark Vessey eram escravos e havia um número pequeno de mulatos entre os revoltosos. ROBERTSON, op. cit. pp.55-56, 163. 458 Devassa do Levante, vol. 38, p. 69. 459 Devassa do Levante, vol. 38, p. 69.

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escola corânica do mallam Sanim, escravo tapa, que falava também o hauçá e possuía alunos nagôs.460 João Ezequiel, forro nagô de 26 anos, narrou seu relacionamento com o escravo Cornélio igualmente nagô: “ha quatro annos pouco mais ou menos tem sido convidado pelo escravo Cornélio para ser Malê e não querendo ouvir elle testemunha em simelhante convite, pois que todos querem ser padres, e não comem toicinho, ficou o dito Cornélio mal com elle testemunha de forma que até agora se não falão: e sendo lhe perguntado a serventia que tinhão os aneis brancos, disse que era o destentivo de que uzão os daquella sociedade para se conhecerem”.461

O modo de vida islâmico, demasiado austero no entender de João Ezequiel, estava próximo do sacerdócio. À parte o proselitismo agressivo de Cornélio, os simbolismos e as referências a associações, como o uso de anéis de prata indicados em inúmeras passagens, apontam para formas de organização bem mais efetivas que alianças étnicas e de classe. As passagens da devassa mencionadas parecem revelar que as populações africanas, livres ou escravas, estavam submetidas a vicissitudes consideravelmente mais complexas. No que concerne ao número de rebeldes, segundo o cálculo de Diouf, de 5% a 7% da população africana de Salvador envolveu-se na rebelião de 1835.462 Essa estimativa definitivamente superestimou o número de rebeldes. Poderia se imaginar que se os rebeldes tivessem logrado reunir tal força nas ruas de Salvador, a cidade teria sido conquistada apenas com as “parnaíbas” utilizadas pelos malês.463

460

“Que he verdade ter o nome de Sanim na sua terra, mas que he falso o dizer se que elle ensina a lingoa, ou reza de Malêi por que quando veio para terra de branco, não tractou mais disse e nem se lembra. Que tambem não he verdade que os papéis achados em caza de Belchior sejão delle ou feitos por elle, por que nunca entrou em caza de Belchior da Silva Cunha, nem na caza de outros algum negro, posto conheça aquelle, e o cortejasse na rua: e da mesma forma conhece o negro Gaspar, alfaiate a quem deu roupa para fazer, no mes de novembro passado. E lembrando-se a ele as respostas dadas pelos outros na, parte em que lhe he relativa, negou tudo absolutamente. Devassa do Levante, vol. 38, p. 53. 461 Devassa do Levante, vol. 50, p. 48. 462 DIOUF, op. cit., p. 161. 463 O primeiro a fazer menção às ditas “parnahybas” foi Etienne Brazil, que as comparou aos “iatagans” turcos. BRAZIL, op. cit., p. 94. Reis, posteriormente, concluiu que as “parnaíbas” em questão eram alemãs e usadas na costa africana e na Bahia. REIS, op. cit., p. 66. Segundo Oguntomisin, os guerreiros owu (iorubás) eram corajosos e adotavam a luta corpo-a-corpo com facões compridos (agedemgbe) como arma tradicional. OGUNTOMISIN, Dare. “Warfare and military alliances in Yorubaland in the Nineteenth Century”, in: FALOLA, op. cit., p. 31.

164 Tabela 2: Réus presentes na Devassa de 1835 Etnia Nagô Hauçá Jeje Mina Tapa Bornu Congo Pardos Cabinda Calabar Benguela Gruman Mundudi Etnia desconhec.

Escravos Homens Mulheres 93 2 7 1 4 2 1 1 2 1 5 1 1

Libertos Homens Mulheres 33 7 21 4 4 1 3 2 2 2 5 2 1 2 1

11

5

1 2

Total 135 29 8 8 6 7 5 5 3 2 2 1 1 18

Porcentagem 58,69 12,60 3,47 3,47 2,60 3,04 2,17 2,17 1,30 0,86 0,86 0,43 0,43 7,82

Fonte: Devassa Do Levante De Escravos Ocorrido Em Salvador Em 1835. Arquivo Público do Estado da Bahia

No decorrer dos inúmeros estudos sobre a rebelião de 1835 ocorreram divergências quanto ao número de indivíduos envolvidos na revolta. O exame desse quantitativo tem como objetivo dimensionar um grupo específico dentro de uma maioria. De acordo com os registros dos réus ou de indivíduos de alguma maneira arrolados nos processos, chegamos aos números da tabela 2. Convém ressaltar as dificuldades inerentes à fonte e, conseqüentemente, a existência de algumas imprecisões na análise das variáveis.464 O total de indiciados classificados tecnicamente como “ réus” de acordo com nossos cálculos é de 230 indivíduos, quantum notadamente inferior aos cálculos de outros estudiosos. No entanto, analisando os percentuais verificou-se dados similares.465 Em nossa listagem verificou-se 132 escravos (57,39%) e 98 libertos (42,61%). Na divisão por sexo encontramos 209 homens (90,86%) e 21 mulheres (9,13%).466 Verificou-se ainda 18 indivíduos com etnia desconhecida (7 forros e 11 escravos: 7,82%). Os nagôs, grupo sensivelmente majoritário na amostragem, correspondeu a 58,69% dos citados, seguido 464

Agradeço à colega Alzira Durão a montagem do database que tornou possível a análise mais acurada dos processos. 465 Verger calculou um total, entre escravos e libertos, de 364 indivíduos, sendo escravos: 55,94% e libertos: 44%. Levando-se em consideração apenas os dois principais grupos étnicos involvidos: nagos: 53,84 e hauçás: 6,86. VERGER, op. cit., p. 355. Etienne Brazil contabilizou de acordo com um cálculo bastante “exótico”, 1500 malês. No entanto de acordo com os processos calculou 234 indivíduos, sendo nagos: 70,5% e hauçás: 8,9%. BRAZIL, op. cit., pp. 93-119. Reis calculou 301 indivíduos, 61,7% escravos e 38,2 libertos, sendo 64,6% nagôs e 10,1% hauçás. 466 A divisao sexual coincidentemente reflete não apenas a desproporção entre homens e mulheres como aparentemente confirma a assertiva das altíssimas taxas de masculinidade entre os cativos do Sudão Central

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pelos hauçás com 12,60%, sendo que os dois grupos majoritários perfizeram 71,29% do total de réus. Entre o total de nagôs havia 70,37% de escravos e 29,63% de libertos enquanto que entre os hauçás eram 27,58% escravos e 72,42% libertos. A proporção escravo/liberto se inverte na comparação entre nagôs e hauçás. Ou seja os hauçás em menor numero absolutos, se destacavam visilmente na proporção de libertos. Em outras palavras, os tradicionalmente islamizados hauçás possuíam redes de solidariedades já consolidadas que permitiam maior acesso a manumissão. Nesse contexto foi possível identificar uma aliança interétnica iorubá-hauçá. No que se refere a animosidade entre hauçás e iorubás, Adamu observou o relativo isolamento político e diplomático entre os estados hauçá e iorubá ate o início do século XIX. Não há relatos de conflitos entre os antigos reinos hauçás e o reino de Oió, para esse período, possivelmente devido à existência do reino nupe (tapa) como Estado-tampão entre eles.467 Não obstante, o comércio e a propagação do Islã sempre foram as principais vias de ligação entre hauçás e iorubás dentro do âmbito privado. Devido à localização geográfica, os hauçás no extremo da rota transaariana, e os iorubás com o controle de alguns do portos mais importantes no Atlântico, o comércio de ambos se completavam.468 Sacerdotes e eruditos islâmicos itinerantes se deslocavam com incrível mobilidade desde o início do século XVII, como no relato de um comerciante europeu ao visitar um acampamento militar do rei de Daomé durante a invasão de Uidá em 1726: “Ele observou na tenda do ‘grande capitão’ dois cavalheiros negros com longas vestimentas, turbantes no estilo turco e sandálias. Nunca havia visto negros vestidos daquela maneira. Eu perguntei ao tradutor do rei quem eram aqueles homens. Ele respondeu que eram malayes cuja nação se localizava no loginquo interior vizinho aos mouros; e essas pessoas eram iguais ao brancos em um aspecto: o uso da escrita. Na ocasião havia quarenta deles no campo e eram levados muitas vezes para as guerras e que viajavam muitas vezes de uma pais para o outro. O rei tratava-os bem porque eles conheciam a arte de tingir peles de cabra e ovelhas em diversas cores e fabricar cartucheiras e bolsas de couro para os mais variados usos. Porém, não era permitido entrevistá-los”.469

exportados através do golfo de Benin (95%). LOVEJOY, “The Central Sudan and the Atlantic slave trade”, p. 2. 467 ADAMU, Mahdi. The Haussa factor in West African history. Zaria: Ahmadu Bello University Press, 1978, p. 123. 468 Idem, p. 123. 469 Ibidem, p. 114.

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Em outra ocasião em 1772, Robert Norris, um traficante de escravos, viu alguns malayes no palácio do rei em Abomé. Era uma cerimônia pública com a participação de doze representantes da comunidade malaye com camisas, calças folgadas e sandálias de couro no estilo marroquino. Eles falavam e escreviam em árabe e viajavam para os lugares mais remotos da África como Angola, aparentemente com objetivos comerciais. Segundo Norris, demonstravam ser prósperos e eram muçulmanos. Ao término do Ramadã, o rei costumava mandar matar um elefante para a celebração.470 De acordo com Moraes Farias no seu trabalho de campo realizado no Daomé em 1966, esses malayes eram imigrantes hauçás de Zanfará na Hauçalândia.471 Law destacou o relato do comerciante francês Landolphe na década de 80 do século XVIII, que visitou uma comunidade muçulmana em Oió. Esse relato pode ser considerado o primeiro sobre muçulmanos em Oió em particular, e na Iorubalândia em geral. A tradição confirma a existência de muçulmanos na região nessa época, formada por imigrantes setentrionais e convertidos indígenas.472Os relatos acima confirmam que o relacionamento pré-existente entre hauçás e nagôs-iorubás na África Ocidenta, (com a participação nupe) nao constiuíam um obstáculo ao estabelecimento dessas alianças inter-étnicas na Bahia. De acordo com levantamento de Souza Andrade para Salvador entre 1811-1860, concluímos que a etnia nagô cresceu 48,7% no período estudado. Simultaneamente no mesmo período, os hauçás sofreram um decréscimo de 34,2%.473 Esse números refletem-se na dseproporção étnica entre hauçás e nagôs exposta na tabela 2. No que tange a revolta especificamente, o tráfico oriundo do golfo de de Benin continuou em espiral ascendente, e apesar das vicissitudes político-econômicas enfatizadas pela autora, as rebeliões africanas aparentemente se perpetuaram, tanto em períodos de recessão quanto de prosperidade.474

470

NORRIS, Robert. Memoirs of the reign of Bossa Ahádee King of Dahomy an inland country of Guiney. London: Frank Cass, 1968, pp. 102-103. 471 ADAMU, op. cit., p. 114. 472 Imalê podia significar o muçulmano ioruba de Oió, o muçulmano da hinterlândia de Oió ou os mercadores hauçás que iam para Porto Novo. LAW, Robin (ed.). Contemporary source material for the history of the old Oyo Empire, 1627-1824. Toronto, York University/UNESCO, 2001, pp. 68, 85, 86. 473 ANDRADE, Maria J. Souza. de. A mão de obra escrava em Salvador, 1811/1860. Sao Paulo: Corrupio/CNPq, 1988, p. 104. Na análise de Curtin dos escravos da África Ocidental exportados para América, ele demonstra que apenas por volta de 1790 a quantidade de hauçás alcança um número expressivo. Essa tendência, no entanto, se reverte no decorrer do século XIX sob os efeitos do Abolition Act britânico de 1807. CURTIN, P. D. The Atlantic slave trade: A census. Madison: Winsconsin University Press, 1969, p. 118. 474 A autora destacou as rebeliões durante a década de 20, porém, ocorreram revoltas em 1807, 1809, 1814, 1816, 1822, período, segundo ele, de prosperidade econômica. ANDRADE, op. cit., pp. 43 et passim, REIS, op. cit., pp. 42, 53 e RODRIGUES, op. cit., 42-48. As constantes advertências de Muhammad Bello sobre a captura e venda de muçulmanos por traficantes iorubás para vendê-los posteriormente a cristãos indicam que esses indivíduos continuaram a serem enviados para a América. LAW, Contemporary source material, p. 88.

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Dentro desse universo africano, porém, o grupo identificado como malê na Bahia estabelecia claramente limites de alianças no cotidiano. Moraes Farias reconheceu tacitamente que havia fronteiras simbólicas entre os nagôs muçulmanos e os outros nagôs. As atitudes dos primeiros, reveladas nos processos de se recusar a apertar as mãos, criticar os que iam à missa adorar pau e chamá-los pejorativamente de kéferi, atestam esses limites.475 Porém, segundo ele, “a identidade malê e a identidade nagô na Bahia não coincidiam, mas se imbricavam – isto é, funcionavam como idiomas alternativos de unidade, parcialmente sobrepostos uma ao outro”.476 A explicação gira em torno do óbvio, pois qualquer comunidade islâmica inter-étnica possui identidades alternativas. A discussão pertinente é se esse grupo viveu e foi para as ruas de Salvador primordialmente como nagôs ou como muçulmanos nagôs. Os desdobramentos que envolveram a comunidade islâmica na Bahia e posteriormente no Rio de Janeiro podem traduzir in totum situações pré-existentes. Em 1835 houve uma ruptura e uma desarticulação que provavelmente se refletiu em seguida nos rumos desses indivíduos na Bahia, no Rio de Janeiro e nos portos atlânticos da África Ocidental em que se reestabeleceram. A estimativa sobre o número de insurretos em 1835 pode fornecer dados da dimensão aproximada dos africanos muçulmanos efetivamente envolvidos na revolta, e até possíveis distensões no seio da comunidade. Em uma passagem dos processos, provavelmente a única, existe uma menção ao total de revoltosos: “...dos autos ha de constar e tendo o suplicante assignado os devidos termos para lhe ser entregue, não se verificou, por ter sido individamente condemnado tambem na reparação do damno o que sem duvida nao podia ser, senao por mero engano dos Jurados, por que nao hé possive! que hua Insurreição cometida por mais de quinhentos individuos entre forros, e Escravos, só fosse o do suplicante condemnado a tal pena...”.477

O negociante francês Gey de Carter na sua petição alegou que seu escravo José de nação nagô havia cumprido a sentença de oitocentos açoites e dessa forma não concordava em pagar a indenização estabelecida, exigindo a soltura do dito escravo.478 O número de 475

FARIAS, op. cit., p. 142. Idem, p. 143. 477 Devassa do Levante, vol. 53, p. 107. 478 “Atendendo ao exposto e mesmo cazo houvesse lugar tal indemnizaçao porque. esta era responsável por seo escravo e nunca este por que em regra de Direito está estabelecido que as penas primarias revertem sobre seos respectivos senhores e por isso illegal he a prizão do referido escravo, por tanto o supplicante negociante desta praça quem for parte legitima por agenciar e pedir tal indemnização deve chamar a Juízo ao Supplicante 476

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revoltosos foi mencionado na petição do negociante francês. Todavia, a estimativa provavelmente baseou-se nas informações que circulavam na ocasião.479 É importante destacar que, segundo os relatos da maior escaramuça, entre rebeldes e soldados em Água dos Meninos, não envolveu nem 100 africanos.480 Portanto, mesmo levando-se em consideração a delação, a antecipação da revolta em algumas horas, e o fracasso do efeito surpresa, uma rebelião que contasse com tantos adeptos poderia ter equilibrado as ações assim que os outros insurretos percebessem o tumulto e saíssem às ruas.481 Dessa maneira, de acordo com os números mencionados nos processos, o número de rebeldes em relação à população africana de Salvador seria de 2,27% e de 0,76% em relação ao total de habitantes da cidade em 1835. Em termos atuais significaria uma revolta de mais de 11.000 habitantes nas ruas de Salvador.482 Reis afirmou que sozinhos os malês não lograriam tomar uma freguesia de Salvador.483 Inicialmente não há indicações que eles quisessem tomar uma freguesia e muito menos a província inteira. Não obstante, existem apenas indícios dos reais objetivos dos rebeldes. De qualquer modo, a fragilidade numérica não reflete a precariedade de uma aliança entre mulçumanos e nao-mulçumanos , mas sim a decisão de um grupo circunscrito de africanos.484 A participação maciça de nagôs poderia ser interpretada como resultado da islamização crescente entre os iorubás, processo, aliás, em progresso em ambas margens do que está prompto a mostrar sua eficácia.”A indenização a ser paga pelo proprietário era de 18$216. A quantia corresponderia em média a 3,4% do preço médio de um escravo africano moço (José tinha cerca de 24 anos) em Salvador para o período entre 1831-1860. ANDRADE, M op. cit., p.178. A sentença foi executada a razão de 50 açoites por dia (dias úteis) às 10 horas da manhã nos dias: abril, 10, 11, 13, 14/ maio, 8, 9, l1, 13, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 30/junho, 5. Devassa do Levante, vol. 53, pp. 83, 102 e vol. 38. p. 56. 479 Reis citou as estimativas do Conde Marcescheau que calculou em 400 ou 500 rebeldes e os números do presidente da província, que avaliou os africanos rebeldes em mais de 200 indivíduos. Reis estimou em 600 indivíduos o total de revoltosos. REIS, op. cit., p. 91. 480 “Alguns minutos depois, 60 a 100 africanos, armados de espadas, lanças e pistolas, defrontavam-se com a última barreira que se opunha ao bom êxito da revolta.” BRAZIL, op. cit., p. 103. Nina Rodrigues apenas mencionou um “grande troço de africanos” e que mais de 40 teriam morrido. RODRIGUES, op. cit., p. 53. Reis apenas confirmou o número entre 50 e 60 africanos. REIS, op. cit., p. 85. O chefe de polícia Francisco Gonçalves Martins que participou pessoalmente do combate em Água dos Meninos, relatou: “Em poucos minutos apparecerão com effeito em n. de 50 a 60, armados de espadas, algumas lanças, e mesmo pistolas e outras armas. Recebidos a tiro de pistolas, e de fuzil das janellas do quartel, avançarão furiosos, o que deu causa a Cavallaria se debandar em seu seguimento, para que não se escapasse pelo caminho do Noviciado.” Francisco Gonçalves Martins reportou cerca de 17 baixas fatais entre os revoltosos. 481 Na busca policial que sucedeu à delação, as autoridades foram surpreendidas por cerca de 60 rebeldes na residência do pardo Domingos Marinho de Sá. RODRIGUES, op, cit., p. 52. Brazil fala entre 60 e 80 africanos. BRAZIL, op. cit., p. 99. Reis menciona de 50 a 60 rebeldes. REIS, op. cit., p. 77. O relato do chefe de polícia de Salvador reportou: “hum grupo de 60 pretos, pouco mais ou menos, armados de diferentes armas, principalmente de espadas...”. 482 Esse número se aproximaria ao contingente total da Policia Militar de Salvador nos dias de hoje. Nove batalhões, 14 companhias e 2 esquadrões. Homepage da Policia Militar do Estado da Bahia. 483 REIS, op. cit., p.123. 484 Tomando como base os números de Reis concluimos que foi de 1,07% de escravos dentre o total de escravos africanos em Salvador em 1835 e 2,49% de libertos entre os africanos manumissos.

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Atlântico.485 Em outras palavras, o processo de “iorubazicaçao” em curso na Bahia é a uma questão relevante na análise da revolta, ainda que isso não implicasse em uma identidade nagô ipso facto. Em algumas ocasiões através dos depoimentos foi possível detectar alianças interétnicas: “...dice que sabe por ver que a menos de hum mez hindo elle testemunha a Casa do preto Africano Elesbão do Carmo vio, hum feixe de Parnaibas dessas de bahinha branca e ter este huma taboa na qual estava com outros muitos pretos a esçrever em Letras desconhecidas, e que preta Emerenciana Nação Aussá morava com o dito preto, tendo os dedos das mãos cheios de annéis, os quaes tirou no dia seguinte da insurreição, e dice mais que ouvio diser que o preto Elesbão do Carmo já foi hum dos negros dos Levantes do tempo do Conde dos Arcos, e que por ser esperto sempre escapou de ser preso, e que por isso elle sempre tinha em casa grande numero de pretos a conversar, e que todos os outros o respeitão, e chamão = Dandará = e que sabe por ver que a preta Maria do Bomfim tambem he do mesmo Casebre do preto Elesbão do Carmo, e dos negros Nagous, e Aussaz por que he uma da Súcia principal delles, e que sabe por ver que os negros Nagous e Aussaz forão que fiserão na noite do dia vinte quatro para vinte cinco a insurreição nesta Cidade, mas que não os pode conhecer, e mais não dise”.486

O testemunho do pardo Leonardo de Freitas confirma uma assertiva bem definida de uma aliança nagô-hauçá. Além disso, revela uma característica importante do movimento ao afirmar que o mallam tapa Dandará era um veterano de outras revoltas africanas envolvendo nagô-hauçás-tapas.487 O relato deixa claro que a casa de Dandará e de sua companheira hauçá, Emerenciana, não era uma residência comum. Armas, textos corânicos, anéis, fraternidade e uma liderança carismática caracterizavam mais do que uma tradicional escola corânica. O testemunho de Leonardo de Freitas que visitou o muçulmano Dandará, curiosamente, nunca deu origem à teoria de alianças entre tapas e mulatos, embora seja razoável que esses indivíduos interagissem no cotidiano sem que por isso articulassem estratégias comuns, haja vista o testemunho-delação. Por fim, a forra nagô Maria do Bomfim, acusada diretamente pelo pardo Leonardo de Freitas de ligação com os membros da “súcia” islâmica, foi absolvida. Há a hipótese de Maria do Bomfim ser

485

Cf. GBADAMOSI, op. cit., pp. 1-13; ADAMU, op. cit., pp. 123-134; CLARK, op. cit., pp. 166-172. RYAN, op. cit., LEVTZION, op. cit., Sobre a expansão do Islãismo na Bahia ver: RODRIGUES, op. cit., pp. 53-54. 486 Devassa do Levante, vol. 54, p. 237. 487 Conde dos Arcos, governador da Bahia (1810-1818). No seu governo ocorreram rebeliões em 1814 e 1816. VERGER, op. cit., pp. 334-337. RORIGUES, op. cit., pp. 46-48. Caso o testemunho seja verdadeiro, Dandará estaria envolvido nas rebeliões escravas na Bahia por duas décadas.

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também companheira de Dandará, pois seria perfeitamente plausível, nesse caso, a prática da bigamia. Em mais um depoimento contra Dandará no mesmo dia, outro mulato chamado Luis da França morador no mesmo sobrado do mallam tapa testemunhou: “Perguntado a respeito dos factos acontecidos na noite da insurreição dos pretos Nagous, e Aussaz, dice, que sabe por ver como morador do Sobrado primeiro andar, digo do sobrado do segundo andar, onde mora o preto Elesbão do Carmo que este tinha os dedos das mãos cheios de anneis, os quaes repartia com os outros, e hum livro escripto em letras desconhecidas, o que elle testemunha observava por huma greta do assoalho, e que muitas veses vio estar este com humas contas grandes a rezar esfregando-as nas mãos, e gritando para o Céo, e em outras occasiões vio a preta que com o dito preto mora também andava com os dedos cheios de aneis, e logo no dia seguinte da insurreição tirou todos os aneis dos dedos, e que sabe que nessa casa do preto Elesbão do Carmo havia todos os dias reunião de muitos pretos Africanos, cujos nomes elle ignora, e dice mais que sabe que a insurreição da noite do dia vinte e quatro para vinte e cinco foi feita pelos pretos Nagous e Aussaz, e mais não dice”.488

O alfaiate que morava no andar de cima costumava espionar os salats, dhikrs e aulas de textos corânicos. De acordo com o depoimento, os africanos costumavam praticar sistematicamente as preces diárias e reuniões na zawia de Dandará. O pardo Luis da França reiterou a tese de uma conspiração nagô-hauçá. De forma análoga a Leonardo de Freitas, o alfaiate Luis da França fazia parte do cotidiano de Dandará e Emerenciana sem que essa vizinhança e convívio os fizessem compartilhar visões de mundo ou ensejasse alguma aliança. Vejamos os depoimentos de Emerenciana, escrava ganhadeira hauçá e companheira de Dandará: “Respondeu, que fôra presa em Santa Barbara estando fazendo suas vendas de comidas para vender, e que tem licença de seo Senhor para pagar-lhe semana. Perguntou o Juis se ella conhece ao preto Dandará, e se tem entrada na loja deste se conhece as pessoas que ali se ajuntavão, quaes seus nomes, e naçoens; assim como se conhece o preto Simplicio, e o Crioulo Cosme Damião, se conhece Manoel Correia Leal de nação Cabindá, Angelo Congo? Respondeo que conhece ao Preto Dandará, que nessa Casa ella guarda suas vendas, que achave dessa Caza quem a tomou foi huã cabrinha de nome Luiza, que vende galinhas, que ella na caza de Dandará nunca vio ninguem, que lá não se faz nada, eque ella não

171 conhece mais pessoa alguma. Perguntou o Juis se ella na noite do Sabbado para Domingo esteve em Caza de Dandará, ou se em caza de seo senhor? Respondeu que no sabbado ella esteve em casa de Dandará, porem que á noite foi dormirem caza de seu senhor, e que no Domingo tornou a voltar para baixo para vir fazer seo negocio, que ella na caza de Dandará tem visto varios papeis escriptos, porem que ignora se he de branco, ou de Preto”.489

Emerenciana utilizava a loja de fumo de seu companheiro para guardar mercadorias e cita mais uma personagem feminina, a “cabrinha” Luiza. Quanto aos papéis, diz ignorar o conteúdo.490 Em um interrogatório posterior, a companheira de Dandará esclareceu mais seu relacionamento: “...que quando seu Senhor não estava na Cidade dormia na Cidade baixa em caza do preto Dandará e que ella ali dormia porque elle era o seu Freguez de comprar fumo que ella nunca vio papeis de lingoa de pretos na caza do dito não sabe quem hia a caza do mesmo que ella tirou os aneis que tinha porque ouvio dizer que se estava prendendo a quem os tinha que estava na mesma caza a dez dias mas que ahi não estava Dandará pois que elle não morava ahi e sim na sua caza cujo sitio ignora...”.491

Ela admitiu que dormia na casa do mallam, segundo ela por relações comerciais, e

em contradição com seu primeiro interrogatório, disse não ter visto nenhum papel “em língoa de pretos”. Emerenciana também confessou que Dandará teria uma outra casa que ela desconhecia o endereço. Ao contrário da forra nagô Maria do Bomfim absolvida e da “cabrinha” Luiza, que nunca foi ouvida , Emerenciana foi condenada a 400 açoites apesar dos esforços do seu senhor.492

488

Devassa do Levante, vol.54, p. 238. Devassa do Levante, vol. 54, p. 205. 490 De acordo com Christian Coulon, existe uma visão estabelecida do papel das mulheres muçulmanas na África negra, seja como mediadoras e agentes de culturas pré-islâmicas ou na “periferia da periferia” do mundo islâmico. As mulheres foram menos influenciadas pelo idioma árabe e pelo Islã. Segundo Trimingham, os homens eram muçulmanos e as mulheres pagãs. Todavia, existem estudos que demonstram que as mulheres podiam ser guardiões de baraka. Doutté observou que as irmandades eram particularmente populares entre as mulheres. O Islã das irmandades e dos marabouts tornou-se primariamente a religião das mulheres devido à sua similaridade maior com os valores tradicionais transmitidos pelas mulheres de que o Islã reformista e ortodoxo. O Islã místico produziu uma quantidade expressiva de mulheres “amigas de Deus” investidas com poderes especiais e objeto de cultos populares. A tradição sufi não enfatiza a separação sexual na expressão religiosa. O culto dos santos e marabouts não excluem a mulher. COULON, Christian. “Women, Islam and baraka”, in: O’BRIEN, Donal B. Cruise & COULON, Christian. Charisma and brotherhood in African Islam. Oxford: Oxford University Press, 1988, pp. 113-133. 491 Devassa do Levante, vol. 54, p. 205. 492 Jose Rodrigues de Figueiredo, o proprietário, constituiu advogado para a defesa de sua escrava, porém não há registro de comutação da pena. 489

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Dandará no seu depoimento confirmou morar em outra residência e alugar a loja para seu negócio e reuniões com seus “parentes”: “Respondeu que tem hum Cazebre aiiugado para botar fumo de seu negocio; que as pessoas, que vão em sua caza são aquelles pretos seus amigos, e parentes, bem como sejâo a Preta Feliciana, que ali foi presa; a qual he sua amasia, e outros que nessa occazião ahi não estavão; e que o motivo d'Alugar aquella Caza foi para estar com seus parentes; e que elle he Mestre em sua Terra, e que aqui elle tem ensinado os rapazes; porém que não he para mal...”.493

O mallam confesso, admitiu manter uma escola corânica e entretanto, ressaltou que a mantém apenas para fins absolutamente pacíficos. Higino, escravo nagô e remador de saveiro, revelou no seu depoimento detalhes fundamentais pare se entender a estrutura do movimento e o desenvolvimento dos acontecimentos na noite de 24 de janeiro. “Respondeu que sahio no dia sabbado á noite de caza de seu Senhor, e que estando com os outros por ja não poder aguentar mais a briga com os soldados, elle pôde fugir de madrugada para casa de seo Senhor, o qual por elle não ter dormido em caza lhe dera muita chicotada. Perguntou o Juis a que horas foi elle para a cavalaria, e a que horas se lançou ao mar, e de que lugar; se tambem esteve na praça, e si foi ao Quartel dos Permanentes. Respondeu perguntando onde he o Quartel da Cavalaria, e diz que elle de nada sabe, porque os Grandes, e mais pimpoens he que forão adiante, e que não confiavão delles pequenos por que havião correr, e descobrir aos brancos logo que fossem pegados; e que logo he que se há de saber quem são por que os que ja morrerão não fallão, e os outros estão em caza de seus Senhores. Perguntou o Juis se elle conhece as letras que lhes sãoapresentadas; assim como as roupas, e quem he que as veste. Respondeu que elle so sabe que quem as faz he Nagô, e aussá,e que essas roupas vem d'onde veiu panos da Costa; e que não se vendem pelas ruas, e que quem veste ellas he Gente grande quando vai na guerra; e mais não respondeu”.494

Pode-se perceber pelas localidades citadas que Higino efetivamente tomou parte na maioria das ações dos revoltosos naquela noite, e que no seu limite durante o entrevero com a cavalaria em Água dos Meninos ele desiste da luta. O escravo Higino foi provavelmente um dos conversos que participaram da revolta sem necessariamente possuir uma concepção plena dos acontecimentos e um dos que perceberam a rebelião como 493

Devassa do Levante, vol. 54, p. 212.

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“folguedo de matar branco”, “banzé” ou “bulha dos nagôs”. Quer o jovem Higino tenha sido atraído para movimento baseado em solidariedade étnica quer pelo carisma da liderança islâmica, isso não deve ser entendido como aliança. Se houve alianças em 1835, elas foram desiguais na forma e na execução. O jovem nagô deixou bem claro que a liderança guerreira malê era a vanguarda que fazia toda diferença. No momento que esse grupo mais combativo foi desarticulado, a revolta perdeu o ímpeto e fracassou. Sabidamente, os revoltosos enfrentaram armas de fogo e adversários entrincheirados quase o tempo todo. Não é preciso ser um especialista para perceber a enorme desvantagem estratégica pela delação e a desvantagem tática dos africanos devido à dinâmica do conflito de rua. O ímpeto quase suicida dos seus ataques foi reconhecido em inúmeros relatos. O que então explicaria o fracasso de suas ações naquela noite fatídica? Inicialmente, a fragilidade numérica, que talvez em nenhum momento tenha excedido o parco número de 60 combatentes. Some-se a isto a desvantagem tática, a falta de armas de fogo e as baixas entre as fileiras dos líderes. A posição hierárquica de Higino ficou patente quando alegou não entender os manuscritos árabes apreendidos. Segundo ele, a produção de tais papéis era um negócio nagô-hauçá. O que significaria isso vindo de um nagô confesso? Que espécie de solidariedade étnica poderia ter motivado Higino a declarar com todas letras sua alienação como nagô, da aliança da sua etnia com os hauçás? Sem sobressaltos, podemos interpretar o depoimento como uma confirmação da existência de uma liderança acima de considerações étnicas. As roupas malês freqüentemente citadas nos autos foram confeccionadas com panos importados da África Ocidental e utilizadas de acordo com uma de hierarquia de “gente grande” existente. Segundo Higino, elas “não se vendem pelas ruas”, o que significava não ser acessível a todos.495 Adamu descreve detalhadamente as roupas usadas na Hauçalândia e Iorubalândia no século XIX. A descrição dos trajes não deixa dúvida sobre a origem das roupas malês usadas na rebelião e encontradas posteriormente pelas autoridades. As roupas iorubás eram igualmente originárias das terras hauçás.496 494

Devassa do Levante, vol. 54, p. 211. De acordo com Verger, “as notícias dos acontecimentos na África chegavam regularmente à Bahia, com cada desembarque de escravos trazidos da baía de Benin. Elas eram comentadas e transmitidas aos negros dos cantos da rua do Corpo Santo, aos portadores de palanquins (em sua maioria ussá) e aos estivadores que carregavam as mercadorias do tráfico a bordo dos navios negreiros, pelos escravos africanos marujos a bordo, que tinham tido o tempo, durante as longas travessias, de saber o que ocorria em seu país natal”. VERGER, op. cit., p. 330. 496 O reverendo Towsend escreveu: “alguns costumes desse país são evidentemente de origem oriental, introduzido sem dúvida juntamente com o credo maometano”. ADAMU, op. cit., pp. 126. 495

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FIGURA 10: Chefe iorubá de Ilorin Balagun Anamanu.

FONTE: Foreign and Commonwealth Office Archives, London, Nigeria File 9,volume 2 "Tribal Studies," 1910. Fotografo desconhecido

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Uma observação feita por Higino sobre o modus operandi de alguns africanos após a derrota chama atenção. Afinal, havia esperança de salvação ao retornar às casas dos respectivos senhores no caso dos escravos. Questão intrigante que será discutida posteriormente. Alguns termos e expressões foram utilizados pela historiografia para corroborar teorias. Porém, antes de qualquer coisa, é necessário ater-se ao óbvio. Como foi comentado no início do capítulo, muitas vezes é necessário levar-se em consideração que os depoimentos na documentação passam por um longo processo que termina com uma versão final. Aqui não se discute mais as teorias sobre o aproveitamento de fontes processuais, mas algo menos sofisticado. Os africanos se expressavam muitas vezes em mais de um idioma. O exemplo de Mahoma Baquaqua a esse respeito é paradigmático.497 Portanto, esses indivíduos se expressavam em português com a dificuldade característica de um estrangeiro. Tanto nos depoimentos como durante a revolta, as palavras devem ser entendidas por essa perspectiva. Além disso, os escribas dos autos e as testemunhas apenas percebiam palavras, expressões e gestos dentro de um leque limitado de possibilidades. Os termos “parentes” “irmãos” foram citados freqüentemente nos processos. Inicialmente poderiam indicar laços consangüíneos ou étnicos de acordo com o padrão geralmente aceito. No entanto, esses termos são usados para indicar uma fraternidade não necessariamente étnica. André Gonso, liberto tapa, declarou: “que na noite de sábado dia do levante se achava em caza doente a cinco semanas, tanto que foi prezo no dia seguinte na cama quando se dispunha tomar um purgante. Que não soube desse levante nem conhece nenhum dos que entrarão nessa couza, por que só se dá com os seus Parentes do canto, os quaes não entrarão nisso, e que sendo corrida a sua caza não se achou se não palhas, e esteiras.”498

André, carregador de cadeiras, alegou em sua defesa apenas se relacionar com os seus parentes do canto. Presume-se que fossem tapas, mas o mallam Dandará também não seria seu parente? Os africanos perceberam rapidamente que a melhor defesa era não pertencer às etnias mais envolvidas na revolta. 497

Segundo Lovejoy, a habilidade de se expressar em vários idiomas era comum na África Ocidental. Fator que tem sido substimado nos conceitos de etnicidade entre os escravos africanos na América. Para muitos destes, incluindo Baquaqua, havia um leque de escolhas claramente disponível. LAW, Robin & LOVEJOY. Paul E (ed.). The biography of Mahomma Baquaqua : His passage from slavery to freedom in Africa and America. Princeton: Markus Wiener, 2001, p. 25.

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O caso de Joaquim um escravo nagô apontado por diferentes testemunhos como muçulmano, demonstra a fragilidade da etnicidade quando aplicada indiscriminadamente. Alguns trechos desses depoimentos têm sido utilizados de maneira fortuita e descontextualizada. Joaquim era parte de um grupo escravo pertencente ao mesmo proprietário, o Brigadeiro Manoel Gonçalves da Cunha. Os outros escravos eram José e Antônio, também nagôs. O outro personagem era o liberto João hauçá, que vivia “de favor” na loja do ex-senhor, o Brigadeiro. Aparentemente temos três nagôs que seriam “parentes” e um hauçá liberto que dentro do contexto seria o principal suspeito. No seu depoimento José, escravo nagô e “parceiro étnico” de Joaquim, declarou: “Que a camizolla e taboas achadas nas lojas. ou armazem d'a Caza de seo Senhor, só podem ser do seu parceiro Joaquim, que he o unico que dorme na loia, que .tem comunicação com o dito armazem, porque seo parceiro Antonio tem seo quarto na sobre loja. onde elle respondente tambem tem o seo. Que tambem dorme na loja o negro liberto João Ussá mas que este negro só se recolhe de noite para cosinhar sua caxaça. e todos os dias de manhã cedo saio. Que o negro Joaquim sèo parceiro não fazia couzas suspeitas em casa de seo Senhor, para que ele Respondente visse, porque o seo costume era matar Carneiros em Caza de Pai Ignácio e lá conversar trazendo apenas algumas vezes sua comida de lá feita e na dita caza...”499

José claramente isenta o liberto hauçá João, e coloca seu “parceiro” em uma situação difícil. João, por sua vez declarou: “Que no dia da insurreição, vinte quatro deJaneiro, elle esteve na dita caza, manso, e pacifico, e nem soube de tal Insurreição, e continuou a estar por muitos dias em quanto socegou a desordem. Que dormindo na loja, em cima do banco debaixo do qual estava a caixinha, onde nada se achou, não podia saber e nem sabe dos outros da caza podião fazer principalmente não entender a lingoa de Nagô e recolher-se de noite, e sahir de madrugada”.500

O liberto alegava sofrer de “doenças”, e por isso não trabalhava mais como carregador de cadeiras e apenas fazia esteiras. Esteve durante a insurreição “manso e pacifico” e apesar de conviver com os nagôs não entendia o idioma. Antônio, por sua vez, fez questão de enfatizar que ser nagô não significava necessariamente compartilhar laços étnicos e culturais: 498

Devassa do Levante, vol. 38, p. 41 Devassa do Levante, vol. 38, p. 6. 500 Devassa do Levante, vol. 38, p. 6. 499

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“Que a respeito da Camizolla e taboas achadas na loja da Caza de seo senhor elle desconfia que são do seo parceiro Joaquim que era quem fazia comidas de carneiro, e os matava em caza do pai Ignacio, onde se juntavão varios negros da terra do mesmo Joaquim porque ainda que todos são nagôs cada hum tem sua terra. Que elle não conhece esses negros porque a sua morada sendo na sobre loja nem a parou em baixo para vel-o ou tomar conhecimento delles, sendo serto que nunca vio ajuntamentos delles na loja do seo senhor”.501

Através do depoimento de Antônio percebe-se que Joaquim era evidentemente um muçulmano devoto, pois abatia carneiros de acordo com o ritual islâmico (halal) e, segundo José, levava essa comida para casa. Devia ser difícil para um muçulmano manter hábitos dessa natureza em condições tão adversas. Elenna, forra que foi escrava do nagô liberto citado como “Pai Inácio”, esclarece através do seu depoimento a complexidade das redes paralelas dos africanos: “Que ella não sabe de negros que se levantassem ou criminozos na insurreição, e nem que se juntassem em caza de seo Patrono; a excepção do negro Joaquim, escravo do vizinho Manoel Gonçalves da Cunha e de outros negros camaradas delle que os levava a caza; poe que elle tem hum quarto allugado na caza do Patrono della Respondente.Que o dito Joaquim he tão bem quem pode dizer de quem são os anéis achados na caixa que estava no quarto delle, por que elle mesmo he que tinha guardada a chave do quarto. Que he verdade ter o dito Joaquim de custume matar Carneiros e fazer funções no seo quarto com os seus camaradas de dia, porque sendo elles escravos, talvez estivessem em cazas de seos Senhores na noite. Que alem de negros da debaixo da Praia, que vinha ahi Comer, e fazer festa que ella não entende por não ser Nagô. Ajuntavão-se tambem o' negro Joaquim, escravo do Senhor Padre Deão que lhe foi mostrado agora no Aljube, por ella não saber o nome, e tambem são do mesmo ajuntamento o negro Licutan que está na Cadeia, escravo do Cirurgião Mesquita o qual pagava metade do aluguel do quarto, e mais conhece ella Respondente os negros Nagos, Joaquim e Roque, escravos de hum Padeiro na Piedade que vendem roscas, e que não conhece os outros, e nada mais sabe porque a rua morada é na salla da frente da rua e o quarto onde se fazião esses ajuntamentos he lá dentro ao pé do quintal e tambem porque ella todas dias vive na rua vendendo peixe e procurando os pescadores e somente recolhe-se tarde e sai cedo, por isso só vio o que disse em Domingo ou algum Dia Santo, quando não sahia a rua”.502

501

Devassa do Levante, vol. 38, p. 7.

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A liberta Ellena havia sido escrava do liberto nagô Ignácio José de Santana, proprietário do imóvel onde Joaquim abatia os carneiros e promovia reuniões com grupos diferentes de muçulmanos. Todavia, esses grupos, segundo ela, pertenciam à jamat de Licutan, líder carismático e peça fundamental da comunidade islâmica rebelada. O alufá encontrava-se na cadeia em virtude de uma dívida do seu proprietário e, aparentemente, Joaquim era o iman substituto. A etnia de Ellena não foi declarada. No entanto ela alegou “não ser nagô”. Essa afirmação é reforçada pelo fato de Ignácio, seu senhor ser nagô. Portanto, seria razoável que Ellena pertencesse a outra etnia. Porém, através dessa constatação, lança uma dúvida sobre o fato de ela de não entender o idioma nagô. Embora tivesse sido escrava e vivesse rodeada de nagôs, Ellena apesar de não ser malê, sabia muito mais do que deixou transparecer. No seu primeiro depoimento Joaquim negou peremptoriamente qualquer envolvimento com as práticas islâmicas e com a insurreição: “Que elle não sabe couza alguma da insurreição e nem tão bem quem deitou na loja ou armazem da caza de seo Senhor, á camizolla que se achou detrás das duas taboas e as taboas escriptas, que forão desenterradas no mesmo armazem. Que he verdade ser elle unicamente o que dorme na loja proxima ao dito armazem, porque os outros tem seos quartos na sobreloja. Que nunca foi a caza do Pai Ignacio e nem sabe que lá se passava”.503

No entanto, Joaquim confessou que o imóvel era alugado por ele e mais três escravos nagôs, inclusive Licutan: “Respondeo que o quarto allugado na caza do Pai Ignácio pertencia a elle, ao dito Roque, ao negro Pacifico, e ao negro Joaquim, parceiro do Roque, porque todos quatro pagarão o alluguel para se juntarem. Que as taboas escriptas e os papeis erão feitos pelo negro Pacifico, que era o Mestre, e elle e os outros não sabião ler. Que a camizolla achada na sua caza não pertence á algum dos três, porque foi dada a elle a guardar já á mais de quatro annos por hum negro de nome Raimundo que foi para Costa da Mina. Que elle não respondeo assim a primeira vez que foi perguntado porque não sabia como se tinha achado a dita camizolla; por isso que elle a tinha escondido, e porque também cuidava que havia de ser solto. E perguntado o negro Pacifico depois de querer negar, confessou que na verdade o

502 503

Devassa do Levante, vol. 38, p. 7. Devassa do Levante, vol. 38, p. 5

179 quarto allugado também lhe pertencia mas que elle não sabia ler, ou escrever e nem era Mestre que ensinasse”.504

Os testemunhos indicavam que o liberto nagô conhecido como “Pai Inácio” não tinha envolvimento direto nos assuntos islâmicos, de forma análoga, outros africanos que conviviam como os malês tinham conhecimento de detalhes do cotidiano dos últimos e se utilizaram dessas informações para se desvincular de qualquer envolvimento. Joaquim foi condenado a 400 açoites e Licutan, mesmo preso na época da insurreição, foi condenado a mil acoites. Roque e Antônio foram absolvidos. Esses exemplos demonstram que existiam hauçás que apesar de pertencer a uma etnia identificada prontamente com o Islã, não participaram do movimento. A alegação de João hauçá de não falar nagô é inverossímil, pois convivia cercado de nagôs. Sua fragilidade física aliada aos testemunhos dos próprios nagôs, dos quais ele fez questão de tentar parecer tão distante salvaram-no do castigo. Quanto aos nagôs, é difícil perceber alguma solidariedade étnica. Antônio foi mais longe ao alertar, quase em tom professoral, que era um equívoco utilizar o etnônimo nagô de forma generalizada. Ellena, liberta africana de nação desconhecida, mantinha, de acordo com os padrões de emancipação ocidental e islâmica, a lealdade ao seu “patrono” o liberto nagô Ignácio. Este não possuía maiores vínculos com seus “parceiros” nagôs do que aqueles necessários a uma convivência cotidiana: “Que quando foi prezo estava em sua caza donde não sahe a muitos mezes em razão da sua idade, e onde nada se achou. por que elle não he de ajuntamentos nem de conversas, e somente se occupa com mandar ensinar seus filhos, hum a carpina, outro na Escola e a crear o outro, que ainda he muito pequeno e por tanto não sabe do levante que os outros fizerão pois seu modo de viver he bem sabido de todos os brancos da sua rua”.505

Conforme o depoimento de “Pai Inácio”, denominação aliás muito apropriada, ele era o liberto africano ideal, cuidava da sua vida, educava seus filhos conforme o modelo senhorial, pois os brancos da sua rua o conheciam muito bem. O erro de Inácio foi se envolver, provavelmente de forma involuntária através de negócios, com seus “parentes” muçulmanos turbulentos, que possuíam planos bem menos “mansos e pacíficos”. Ignácio foi preso apenas por prevenção, pois não havia nenhuma acusação ou prova contra ele. 504 505

Devassa do Levante, vol. 38, p. 8. Devassa do Levante, vol. 38, p. 137.

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Assim, “Pai Inácio” continuou a vida de liberto-modelo e certamente passou a ter mais cuidado com seus “patrícios étnicos”. De acordo com Diouf, demonstrar que os muçulmanos mantiveram as práticas islâmicas na América não constitui mais um fato excepcional. É relevante constatar que sob condições extremamente adversas, esses indivíduos tornaram possível a preservação da religião em sua forma mais ortodoxa. Os testemunhos atestam que esses muçulmanos não se conformaram apenas em manter sua fé discretamente, como recomendado pela tradição islamica em ambientes hostis. Os africanos muçulmanos demonstraram, ao contrário do que às vezes é insinuado, que o Islã firmemente implantado na África Ocidental foi fundamental para sua preservação no Novo Mundo. Os cativos muçulmanos, nos dois lados do Atlântico, praticaram o Islã com devoção, sinceridade e foram agentes no desenvolvimento e formação de um mundo cultural e religioso baseado em valores islâmicos.506 Sabedoria, poder e autoridade: a baraka e o carisma da liderança malê Segundo O’Brien, no começo foi o milagre. Aos líderes muçulmanos na África foram creditadas proezas fantásticas nos momentos decisivos, e o milagre tem sido visto como uma credencial decisiva no jogo do poder islâmico. Assim, uma visão pode ter sido decisiva para Sidi al-Mukhtar al-Kunti, ou um milagre pode intervir in extremis na campanha militar de al-Hajj Umar Tal. O milagre pode estar ligado à fantasia popular no caso de Amadu Bamba (leões famintos, touros furiosos e demônios) e prodígios mais modestos e práticos como Muhammad Jumat Iman, iman iorubá que previu precisamente, já no século XX, a alta da cesta básica. 507 Na África islâmica, a concepção weberiana de poder carismático baseou-se nos fundamentos do milagre, reconhecimento da liderança por parte da clientela em meio à grave crise social, e a “santidade” acabou tornando-se uma forma tradicional de autoridade através de uma irmandade sufi. O’Brien admite que há problemas quando se aplica esse aparato conceitual construído longe do mundo do Islã africano, mas não tem dúvida da sua aplicabilidade, com reservas, principalmente no que diz respeito ao carisma.508 A formação de uma liderança carismática passa pelo aprendizado de um conhecimento sagrado. A erudição, ou o que é considerado conhecimento sob certas 506

DIOUF, op. cit., pp. 69-70. O’BRIEN, & COULON, op. cit., p. 1. 508 Idem, p. 3. 507

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circunstâncias, é suficiente para angariar a reputação de um conhecimento poderoso e misterioso, inacessível ao restante da população (ou de determinados grupos). O conhecimento relevante consistia primordialmente no domínio do conteúdo corânico, das tradições autorizadas e de disciplinas islâmicas correlatas. O conhecimento podia incluir o autoconhecimento, com o domínio da experiência mística através da numerologia e da adivinhação.509 A utilização do carisma como instrumento político foi claro no caso da região correspondente a atual Nigéria, na primeira metade do século XIX, com a competição das irmandades sufis rivais, Tijania e Qadiria. A última, uma associação mística que estava ligada à trajetória de Uthman dan Fodio que atingiu seu zênite na Hauçalândia a partir do final do século XIX. Todavia, a pioneira Qadiria, forjou-se como irmandade com fins políticos devido à feroz disputa espiritual com a rival Tijania. Pode-se detectar características populistas na tradição sufi através da piedade pessoal concentrada na devoção a um ser humano exemplar. No Magrebe, por exemplo, o sufismo tornou-se uma alternativa para as camadas menos favorecidas da sociedade, especialmente entre artesãos e vadios em oposição ao Islã “literalista” da elite. Na África Oriental, a demanda popular por uma liderança carismática levou os africanos, alijados do mundo islâmico pelos comerciantes árabes e suaílis, a construir através da Shadilia uma organização própria.510 Uthman dan Fodio, afiliado a diversas ordens religiosas, via a irmandade como privilégio dos ulama. As pessoas comuns receberiam apenas a instrução básica dos mestres, mas não seriam membros dessa elite erudita.511 Nos processos da de Revolta Malê, as expressões “sócio”, “club” e “súcia” entre outras, indicam claramente uma organização, conclusão que não constitui uma novidade. Em estudos anteriores foram propostas formas de organização e de solidariedade que podem ter existido. Todavia, essas estruturas não se opõem, mas completam formas mais densas de redes de solidariedade. A polissemia conceitual sobre as motivações da rebelião funde-se na percepção de formas digamos não-ortodoxas de religião, solidariedade e organização. Reis observou, com propriedade, a presença da baraka como recurso místico de controle e prestígio dos líderes malês.512 A presença tão intensa de uma liderança 509

Cf. BRENNER, Louis. “The esoteric sciences in West African Islam”, in: ABDALLAH, I.H. & TOIT, B.M. du. African healings strategies. Buffalo (NY): Trado-Medic Books, 1985. 510 NIMTZ, A.H. Islam and politics in East Africa: The sufi order in Tanzania.Minneapolis: University of Minnesota Press, 1980, p. 178. 511 O’BRIEN, & COULON, op. cit., p. 22. 512 REIS, op. cit. pp. 102, 131-134. Richard Bulliet observou que a história do Islã percebida “no limite” (como produto de indivíduos, comunidades locais e culturas) é a história dos eruditos religiosos, dos ulemás. Esses árbitros da tradição são importantes porque intermediam a interpretação da religião e asseguram a continuidade das instituições educacionais, legais e administrativas através das vicissitudes do tempo e da

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articulada na organização da revolta em 1835 torna necessário que a análise do movimento centralize-se nos indivíduos que exerciam o controle da comunidade. Os conceitos de baraka já foram suficientemente discutidos no decorrer do trabalho, todavia vale lembrar que esse conceito, sob certas circunstâncias, pode se caracterizar como poder carismático. A baraka pessoal pode ser reconhecida por uma variedade de atributos como devoção, espiritualidade, fibra moral e dons terapêuticos e o que Geertz denominou “distinção moral”.513 Entretanto, carisma e baraka são conceitos diferentes, já que o último é herdado ou transmitido. Weber, porém, mencionou a possibilidade do carisma ser herdado e, neste caso, o reconhecimento de qualidades excepcionais do indivíduo por parte dos seguidores e substituído pela legitimidade da posição adquirida por herança. Por razões óbvias não é possível fazer uma análise hagiográfica dos principais líderes muçulmanos envolvidos na rebelião de 1835. Nesse lado do Atlântico eles eram escravos, e, portanto, as informações sobre origens, cultura e religião apenas interessavam na medida certa de controlá-los e puni-los. Infelizmente, suas trajetórias individuais são desconhecidas, mas dentro dos limites das fontes iremos propor uma nova abordagem da liderança. Nos processos, inicialmente, inúmeros africanos foram apontados como “cabeças”, apesar de nem todos efetivamente terem tido qualquer papel de liderança. Nina Rodrigues foi o pioneiro na identificação dos líderes de acordo com os processos.514 Reis posteriormente estabeleceu uma hierarquia de sete “mestres” e outros tantos “estudantes” não muito diferente de Rodrigues.515 Na documentação alguns nomes aparecem repetidas vezes, outros desaparecem sem explicação e outros por estarem mortos, tornam-se incógnitas. Uma personagem central na análise da liderança malê foi o misterioso escravo nagô Ahuna, corruptela hauçá-fulá do árabe Haroun (Aarão).516 Sua aparição no processo foi fugaz, e as informações foram fornecidas por terceiros. No processo consta que no dia 12 de fevereiro de 1835 ele foi citado: “O negro Nago de estatura ordinária com quatro eiguaes de cada face em direitura aos cantos da boca, conhecido pelo nome em sua terra Ahuma ou Arruna, escravo cujo Senhor rezidindo agora em Santo Amaro, era morador e tem propriedade na política. Como corporação, eles se identificam com as instituições urbanas. Possuem percepção própria de uma biografia coletiva que reflete o ethos urbano. CORNELL, op. cit., p. 3. 513 CORNELL, op. cit., p. 4. O termo original cunhado por Geertz foi moral vividnes. 514 RODRIGUES, op. cit., pp. 53-62. 515 REIS, op. cit., pp. 129-136.

183 rua das Flores desta cidade onde o se vende ágoa de gastto. Acusado como cabeça da insurreição”.517

Essa foi a única passagem em que aparentemente o alufá nagô teria sido ouvido pelas autoridades e no depoimento não foi feita a tradicional recomendação ao carcereiro: “...que o qual assim entreguei ao carcereiro, para que não o soltasse sem ordem de Authoridade competente; visto ter sido pronunciado a prizáo, e livramento, como uns aos cabeças da insurreïçao de Africanos e para constar fiz este termo, em que assignou comigo o Carcereiro”.518

A recomendação aparece em todo o processo como procedimento comum, mas estranhamente não existe essa referência no caso de Ahuna. Em outros casos acontece o mesmo, coincidentemente em interrogatórios no mesmo dia. Dessa forma foram citados o escravo nagô Nomonim, a nagô Edum e o forro Sule, companheiro de Sabina, que foi morto segundo os relatos nos processos. Os indivíduos em questão eram peças-chave na revolta, à exceção de Sule, reconhecidamente morto em combate. Os outros envolvidos desapareceram ou nunca foram realmente ouvidos pelas autoridades. Curiosamente nunca se mencionou a possibilidade de Ahuna nunca ter sido interrogado ou preso. A presença do “maioral” no sobrado da Ladeira da Praça, onde se iniciou prematuramente a revolta, fica patente no depoimento de Sabina: “...ella perguntara se Sule estava ahi dentro, e porque lhe dissesse que sim pedia ella, que o fosse chamar, mas a dita preta lhe disce que fosse ella se era capaz, porque elle so havia de sahir quando fosse ora de tomar a terra pelo que entrando então a tirar lingoa com dita negra disce-lhe ella, que de madrugada, quando os Soldados tocassem havião de haver foguetes nas lojas da Praia e elles havião de sahìr ajuntando os mais negros para matarem os brancos, crioulos e cabras, e ficarem os mulatos para seus escravos, e lacaios; disendo-lhe mais que os inhames ella tinha comprado para comer o maioral que estava ali dentro bem armado, e hum preparado com bastante gente e por que elle respondente dissesse que o maioral e todos no outro dia havião de ser Senhor de surra e não da terra, a dita negra Edum lhe jurou dizendo que a resposta lhe daria no outro dia.”519

516

ZAWAWI, Sharifa. African Muslims names: Images and identities. Trenton (NJ) & Asmara (Eritreia): African World Press, 1998, p. 125. 517 Devassa do Levante, vol. 38, p. 23. 518 Devassa do Levante, vol. 38, p. 23. 519 Devassa do Levante, vol. 38, p. 63.

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Pelo bate-boca das africanas que deu origem à delação fatal, Edum confirmou a presença de Ahuna no ifhtar preparatório da rebelião na noite do Qadr. Se após delação as autoridades foram ao sobrado do pardo Domingos Marinho e iniciou-se a luta, o que teria acontecido com o “maioral”? Vejamos parte do depoimento do cirurgião-mor que testemunhou a “batida” que deflagrou a revolta: “...e intimou ao referido Domingos Marinho de Sá que abrisse a porta da rua afim de poderem entrar ao que elle se negou offerecendo entrada pela janella sendo necessario fazer se lhe tres ou quatro instancias para que entao fosse abrir a porta, em cujo acto se demorou a enrolar e a fazer bulha com a aldraba antes que a abrissem disse mais que aberta a porta a entrada as pessoas da deligencia da caza fora elle testemunha e seu dito irmao para o fundo da caza, afim de ver se os pretos fugiao pelo quintal e que nesta occaziao ouvira bater-se embaixo na porta e ao mesmo tempo roncarem os tiros eo s pretos gritarem mata soldado pelo que veio elle testemunha seo irmão a janella da salla e vira sahir nessa occaziao hum grande grupo de pretos que continuavao na gritaria mata soldado, investindo furiozamente com espadas sobre aTropa e mais Paizanos que estavao presentes”.520

De acordo com o testemunho do cirurgião Custodio Fernandes Ginipapeiro, houve um momento de hesitação entre a ordem de abrir a porta e a saída dos rebeldes. Em seguida, os africanos atacaram a tropa e começou a luta nas ruas. Portanto, apenas restaria a Ahuna sair com os rebeldes ou evadir-se. Os africanos mortos nos combates foram de uma forma ou de outra mencionados pelas autoridades ou pelos rebeldes. Não houve menção a Ahuna. Ele foi citado em depoimentos, mas somente até os momentos anteriores ao início da rebelião. Belchior, liberto nagô discípulo do mallam Sanim, relatou que Ahuna era esperado para o início da revolta: ”Que este Ahuna he de Nação Nagô, escravo de hum homem que a pouco foi morar em Engenho, na Villa de Santo Amaro, e que he dono da Roça, na rua das Flores, onde se vende agôa de cinco reis. Que elle Respondente não entendeu o que queria dizer isso e cuidou que como isso Ahuna que era muito querido de seus Parentes, tanto que foi acompanhado de muitos quando se foi embarcar algemado por crime, que fez em caza sendo remetido a seo Senhor em Santo Amaro, cuidou que era alegria de elle ter chegado. Que quando foi prezo, se admirou porque elle não fez nada e se admirou”.521

520 521

Devassa do Levante, vol. 40, p. 44. Devassa do Levante, vol. 38, p. 73.

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Diferentemente de outros líderes, Ahuna foi sempre citado como alguém onipresente, mas intocável. Uma passagem específica chama a atenção no depoimento de Belchior. Ele afirmou não saber o que queria dizer “água de cinco réis”. Ahuna, o Imam Imalê ou o àfáà ni bàbá oba dos muçulmanos poderia vender água? Reis chamou a atenção sobre a interdição islâmica para essa atividade.522 Obviamente trata-se de especulação, mas um indivíduo com o status islâmico de Ahuna poderia ter-se rebelado entre tantas coisas com esse comércio ilícito de acordo com a lei islâmica. Esse poderia ser o “crime doméstico”, mencionado nos processos, cometido por Ahuna.523 Portanto, Ahuna estava no sobrado da Ladeira da Praça e, estando protegido pela jamat male, poderia ter escapado. A luta feroz que se seguiu não teria sido apenas uma reação à chegada das autoridades, mas também a defesa do líder mais importante da comunidade islâmica que precisava ser preservado. Sob a perspectiva de uma liderança carismática e mística, o misterioso Ahuna não tem paralelo no movimento. Matheos ou Dadá, forro nagô, no seu depoimento elucida um pouco mais sobre o líder desaparecido: “Que elle hia a caza de Gaspar e Belchior da Silva Cunha, porque são seus Malungos, e porque o primeiro he Alfaiate, e cuzia sua roupa. Que quando elle lá hia não se fallava em couzas más e só se conversava, sendo verdade que tambem hia a mesma caza o negro Sanin cujo Senhor mora ao pé deGuadalupe, o qual negro he camarada do dito Belchior, não sabendo que elle era Mestre que ensinava alguma couza, e que tambem vio lá o negro Nomonin que vende pão e cujo Senhor mora na Cidade baixa, e que outros negros entravão para dizer a Deus, e sahião, os quaes elles não conhece. Que elle Respondente havião ja duas Semanas, que hão hia a caza, dos ditos Gaspar, e Belchior, quando os negros se levantarão. Que elle não conhece o negro Ahuna nem sabe onde mora, nem quem he seo Senhor, sendo comtudo verdade que elle a muitos mezes ouvira dizer a outros negros que a Ahuma tinha sido mandado por seo Senhor para o Engenho, o que elles fallavão por que he negro que os outros amão, menos elle Respondente, que nenhum conhecimento tem delle...”.524

522

REIS, op. cit., p. 129. Abu Huraira relatou que o Profeta estabeleceu: Existem três tipos de pessoas que Deus não falará e não olhará no Dia da Ressureição: “Aqueles que juram falsamente terem pagado mais do que realmente pagaram por seus produtos. Aqueles que após a prece da tarde fazem falsas promessas com o intuito de se apossar dos bens dos muçulmanos e aqueles não compartilham ou escondem seu suprimento de água. Deus irá dizer-lhes: “Hoje Eu não irei compartilhar Minha misericórdia com vocês da mesma forma que vocês não compartilharam aquilo que vocês não criaram”. Sahi al-Bukhari, op. cit., p. 539. 524 Devassa do Levante, vol. 38, p. 80. 523

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Dadá revelou alguns dados importantes no seu relato. Inicialmente, a existência de laços forjados ao longo da travessia do Atlântico. Isso seria um importante fator de solidariedade, levando-se em consideração que esses indivíduos puderam no cativeiro permanecer interagindo. Belchior alegou estar cativo por quinze anos, e isso significava que Gaspar e Matheos, seus malungos, também haviam chegado à Bahia um pouco antes da independência. Nesse sentido, é possível perceber sinais de solidariedade étnica. Belchior e Gaspar foram inclusive escravos do mesmo proprietário Manoel da Silva Cunha. Gaspar disse ter começado a freqüentar a escola corânica do mallam Sanim apenas cerca de dois meses antes da revolta e insinou que seu “malungo” Belchior já freqüentava as aulas de Sanim: “...por que elle ainda a dois mezes he que esta apprendendo e não sabe ler mais que estes papeis são de reza por que andavão lhe perseguindo para apprender, e deixar de ouvir Missa como elle costuma por assim seo Senhor lhe ter insinado. Que o mestre delle de Belchior, e dos mais que hião a sua caia he aquelle ja dito Sanim , Luiz escravo Tapa, velho com alguns cabellos brancos e mãos foveiras, que elle nunca ouvio aos ditos negros fallarem em fazer guerra aos brancos; e nem nunca lhe contarão nada disso, por que elle tinha o seo quarto em baixo, e quando se ajuntavão no sotão de Belchior, onde elle não intrava na reza por ser principiante”.525

Essa passagem nos leva a refletir mais uma vez sobre a questão étnica e o seu papel secundário na revolta. Os três africanos em questão, Gaspar, Belchior e Matheos eram nagôs e malungos, os dois primeiros foram inclusive escravos do mesmo senhor. Os sinais de etnicidade estavam presentes nessa relação. Estranhamente, porém, Gaspar afirmou não ser admitido “na reza por ser principiante”. Se Gaspar era de fato um principiante, isso seria mais um motivo para participar dos salats e nunca um empecilho. Portanto, aparentemente havia uma nova ordem acima da solidariedade étnica e dentro de uma organização islâmica mística sensivelmente mais coesa. Certos rituais e litanias sufis demandam práticas específicas, o que explicaria a interdição à participação do noviço Gaspar.526 A aliança étnica somente funcionou, como foi demonstrado na passagem anterior, na ausência de uma organização mais abrangente etnicamente e mais restrita socialmente. Nota-se que a etnicidade era mais latente nos círculos menos islamizados e foi absorvida 525

Devassa do Levante, vol. 38, p. 34. TRIMINGHAM, op. cit., pp. 166-215 e TRIAUD, Jean-Louis. “Khalwa and the Career of Sainthood: A interpretative essay”, in: O’BRIEN & COULON, op. cit., pp. 53-66. 526

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dentro de uma nova ordem. Uma outra característica entre a liderança foi que nenhum mallam ou alufá acusou ou mesmo fez referências aos outros líderes. Essa atitude não implicava necessariamente em conceitos morais individuais, mas antes na motivação e no comprometimento sensivelmente mais profundos dos mestres com a revolta. De acordo com Reis, Ahuna continua sendo um enigma.527 Poderíamos especular que ele se “ocultou”, por uma perspectiva islâmica mahdista. De qualquer maneira, apesar da derrota e do desmantelamento dessa comunidade islâmica em Salvador, a “ocultação” de Ahuna e mesmo a punição relativamente “branda” dos líderes, preservaram os africanos de uma derrota total. Pacífico, Licutan ou Bilal foi, sem dúvida, o líder mais importante a ser preso em 1835.528 Foi descrito assim pelas autoridades: “Alto, magro, nariz chato muito pouca barba, cabeça e orelhas pequenas com signaes perpendiculares, outros transversaes na cara, vestido com calca, de Ganga azul, e camiza de algodam branco, o qual assim entreguei ao carcereiro, para que não o soltasse sem ordem de Authoridade competente; visto ter sido pronunciado a prizáo, e livramento, como uns aos cabeças da insurreição de Africanos e para constar fiz este termo, em que assignou comigo o carcereiro”.529

Apesar de Licutan e Ahuna serem denominados nagôs, a descrição das marca faciais de ambos não combinam. Através dessas mini-biografias foi possível constatar que os nagôs rebeldes eram dos grupos oió e egba. Segundo Olantunji Ojo, as marcas iorubás podiam transitar em grupos étnicos diferentes. As marcas de Licutan eram características dos grupos owu e oió, enquanto as de Ahuna eram exclusivas da linhagem de Basorun (Primeiro-Ministros) em Oió.530 De acordo com Gbadamosi, quase todos os importantes centros de irradiação do Islã antes de 1840 localizavam-se no império de Oió. Conseqüentemente, muitos dos costumes dos primórdios do Islam iorubá eram oriundos dos costumes de Oió. Um dos costumes desses primeiros muçulmanos iorubás era adotar as marcas faciais pele e gombo. A prática pode ter sido adotada por famílias e grupos sub-étnicos islamizados como sinal

527

REIS, op. cit., p. 130. Não foi encontrado o nome Licutan exatamente, mas encontramos Luqmaan que em árabe significa “sábio”. Alguns nomes podiam significar ocupações ou títulos. 529 Devassa do Levante, vol. 38, p. 132. 530 Agradeço à comunicação pessoal de Olantuji Ojo, doutorando do Nigerian Hinterland Project da Universidade de York, Toronto, Canadá. Ver também: CASTELNEAU, Francis. Renseignements sur l’Afrique Centrale et sur une nation d’hommes à queue qui s’y trouverait, le rapport des negrés du Soudan, esclaves à Bahia. Paris: Bertrand, 1851, pranchas II-III-IV. 528

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de conversão e distinção. Esse costume, porém, não foi largamente observado por muito tempo após as revoltas islâmicas do século XVIII por estigmatizar os muçulmanos.531 No primeiro interrogatório Licutan declarou: “Que seo Senhor não tem outro escravo prezo na Cadeia se não elle, e que o nome delle na sua terra he Bilái. Instando-lhe o Juis, que dicesse a verdade porque sabia que o nome delle na sua terra he Licutan respondeu que era verdade chamarse Licutan mas que elle podia tomar o nome que quizesse. Que não sabe ler nem escrever os papeis que neste acto se lhe mostrão e nem nunca os vio na terra de branco, por que somente os via na sua terra onde nunca foi a Escolla para aprender. Que he verdade terem muitos seus Parentes hido visita-lo na cadeia, e para lhe tomarem a benção, mas que elle não conhece alguns pelos nomes, nem pelas moradas. Que os negros seus Parentes que hião salva-lo na porta de seo Senhor, somente se queixarão do mao captiveiro, e elle Respondente os aconselhava que sofressem por que elle tambem sofria mao captiveiro, e que nunca conversavão, nem fallavão em outra couza mais”.532

531

GBADAMOSI, op. cit., p. 6. Johnson, no entanto, designa apenas a marca pele aos muçulmanos e a gombo para os oiós. A observação confirma a assertiva da preponderância de Oió entre os primeiros muçulmanos. As descrições das marcas confirmam a origem dos chefes muçulmanos em 1835. A marca facial Gombo consistia em quatro ou cinco linhas horizontais e perpendiculares localizadas angularmente em cada lado do rosto; ocupavam todos os espaço entre a aurícula e a maçã e se completavam com três pequenas linhas perpendiculares nas maçãs. Uma variação pode ser identificada com uma linha suplementar chamada ibamu, que atravessa obliquamente a ponte do nariz até as linhas horizontais. Tem tambem como objetivo distinguir membros de uma família distinta. Quando as linhas são mais fortes denomina-se keke, quando são mais fracas e finas denomina-se gombo. Ambas são marcas comuns a todos os oiós e os do grupo egbado. A marca pele consistia em três pequenas linhas perpendiculares com cerca de uma polegada de comprimento cada uma localizadas nas maçãs. Essa marca não distinguia nenhum grupo familiar específico, mas era usada por muçulmanos que desaprovavam distinções tribais. Muitos, porém, permaneciam sem marcas. JOHNSON, Samuel. The History of Yorubas. Lagos: CSS, 1969 (1921), pp. 106-107. 532 Devassa do Levante, vol. 38, p. 84.

189 FIGURA 11: Bilal e outros Companheiros do Profeta, Istanbul, 15941595.

FONTE: LEWIS, Bernard. Race and Slavery in the Middle East: An Historical Enquiry. Oxford: Oxford University Press, 1990.

A resposta de Licutan de certa forma tornou-se célebre, pois ao declarar que seu nome era Bilal, ele reafirmou sua identidade islâmica e desafiou o desavisado magistrado.533 Para efeito de comparação com a Revolta de Demerara em 1823, os ingleses, assim como as autoridades baianas, aceitaram o testemunho de escravos, porém, de forma mais astuciosa permitiram o juramento islâmico.534 Talvez por conta da “vocação imperial britânica”, a justiça em Demarara percebeu a inutilidade de um juramento cristão para um muçulmano. Na Bahia, ao contrário, não houve essa percepção e a justiça perdeu a oportunidade de ao menos constranger os muçulmanos sobre juramento mesmo em um tribunal não-islâmico.535 Licutan negou tudo, a começar pelo seu nome e a sua erudição religiosa e limitouse ao óbvio aos olhares brancos, enfatizando a velha e conhecida solidariedade étnica. A 533

Bilal ibn Rabah (morreu em Meca circa 642), escravo abissínio comprado e alforriado por Abu Bakr em Meca. Ficou conhecido como o primeiro muezzim do Islã e foi torturado pelos coraixitas antes antes de ser finalmente liberto. BROCKOPP, op. cit., p. 140. 534 COSTA, op.cit., p. 275.

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situação era paradoxalmente favorável ao velho alufá que podia transitar razoavelmente entre os dois mundos. Ao se referir ao “mau cativeiro”, ele certamente não estava negando a existência da escravidão, mas, como bom muçulmano, estava consciente dos limites estabelecidos pela shari’a no tratamento aos cativos. No capítulo 3 em que foi analisado o corpus jurídico islâmico, ficou patente a condenação do que Licutan denominou “mau cativeiro”. Certamente essa assertiva não pressupõe a existência de um “bom cativeiro” ou do “cativeiro perfeito”, todavia o líder malê claramente demandava um cativeiro imperfeito, mas “justo” de acordo com uma concepção jurídica muito clara.536 Vejamos um pouco mais da situação do mestre Licutan na ocasião, segundo depoimento do escravo nagô Francisco: “Que o negro Licutan está prezo na Cidade parece que por divida de seo Senhor, e que quem lhe leva o comer a Cadeia he hum parceiro delle, de Nação Tapa. Que esse negro Licutan escrevia esses papeis que lhe foram mostrados neste acto, por que isto elle ouvia dizer aos outros”.537

Licutan encontrava-se preso, penhorado por dívida do cirurgião Antonio Mesquita Varela com os frades carmelitas.538 Segundo o depoimento do liberto mina Paulo Rates, os muçulmanos se cotizaram para pagar a alforria de Licutan, mas seu proprietário recusou a oferta. De acordo com a jures dicta islâmica toda a situação era inconcebível.539 Sem dúvida, esse era o “mau cativeiro” ao qual se referia Licutan e outros escravos muçulmanos queixosos. Em outro interrogatório, o mesmo liberto mina Paulo Rates relatou o acontecido nos dias que antecederam a rebelião e a tentativa de libertar Licutan: “...hum ajuntamento de negros Nagôs, que em certo dia discerão ao negro Pacifico, escravo do Cirurgião Mesquita, que tinhão ajuntado seo dinheiro para o Senhor forra-lo, mas que como este não queria elle escravo não se importasse com isso, acrescentando hum delles nessa occazião, que quando acabasse o jejum, elles havião de ir lá para elle sair forro de uma vez, o que foi dito em lingôa de branco, 535

Ibn Abbas relatou: o Profeta determinou que todo réu deve prestar juramento.”. Sahi al-Bukhari, op. cit., p. 562. 536 “Deus favoreceu com Sua mercê, uns mais do que os outros; porém, os favorecidos não repartem os seus bens com os seus servos, para que com isso sejam iguais. Desagradecerão, acaso, as mercês de Deus?” Corão, 16:71. Essa passagem assim como outras devem ser entendidas no contexto da Revelação. A surata aqui citada foi revelada em Meca quando o Profeta lutava contra a elite abastada da cidade. 537 Devassa do Levante, vol. 38, p. 83. 538 RODRIGUES, op. cit., p. 55.

191 talvez por que cuidavão que elle testemunha não ouvisse de dentro; e então acontecendo na noite antecedente do dito Domingo as pancadas, e empurroens no portão com grandes gritarias de negros elle testemunha creditou que era disso que se tinha fallado dias antes; muito mais porque o dito negro Pacifico nesse mesmo Domingo deitou a cabeça, e não levantou mais, muito apaixonado, e chorando quando entravão os outros negros de manhã prezos, dos quaes hum delles lhe deu hum livro, ou papel dobrado com letras dessas que tem aparecido, e o mesmo negro Pacifico se poz a ler, e a chorar”.540

Os discípulos de Licutan reiteraram a tentativa de alforriá-lo por vias legais sem sucesso, e que quando terminasse o jejum do mês de Ramadã viriam para libertá-lo de qualquer maneira.541 A tentativa de resgate na noite da rebelião comprova que a liberdade de Licutan era um dos objetivos principais do levante. A tristeza e o abatimento que tomaram conta do mestre malê pela derrota dos seus discípulos. O papel em árabe que lhe foi entregue por um dos rebeldes poderia ser um relatório do ocorrido, ou mesmo uma relação das baixas muçulmanas. O carcereiro Antonio Pereira de Almeida relatou a intensidade da liderança carismática de Licutan: “...que sendo ali recolhido o dito escravo em dias do mes de Novembro do anno passado, logo no dia seguinte teve o dito negro, muitos negros, e negros que lhe fossem visitar, e assim continuou todos os dias, e todas as oras por que elle estava entre portas como negros apenas depositados, e mais com a especialidade de que todos se ajoelhavão com muito respeito para lhe tomarem abenção: e constou a elle testemunha que os outros tinhão o dinheiro prompto para o forrar quando fosse a Praça. Disce mais que no dia emmediato a insurreição Domingo vinte cinco do mesmo Janeiro, foi elle testemunha avisado pelo negro Paulo Rates, fiel da dita prizão dentre as portas, que o dito negro Pacifico devia ser tirado dali porque elle tinha percebido que sabia, ou era comprehendido na insurreição dos outros...”.542

Licutan estava preso havia três meses, portanto, desde da celebração do Laylat alMiraj em novembro de 1834 no quintal do inglês Abraham na Vitória. Os escravos nagôs

539

BROCKOPP, op. cit., pp. 171-186. Sobre a natureza dos contratos de emancipação. Devassa do Levante, vol. 38, p. 90. 541 Relatado por Ibn Omar que o Mensageiro de Deus disse: “Os muçulmanos são irmãos, portanto não devem oprimir uns aos outros e não deixar um irmão a mercê de um opressor.” Sahi al-Bukhari, op. cit., p. 551. O Corão enfatizou e exortou os muçulmanos a não apenas emancipar os escravos, mas a fornecer os meios necessários para que pudessem adquirir a liberdade. BROCKOPP, op. cit., p. 138. 542 Devassa do Levante, vol. 38, p. 89. 540

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James e Diogo construíram uma masjid rústica para reuniões dos muçulmanos, especialmente dos escravos dos ingleses da localidade. O interrogatório do inspetor de quarteirão Antonio André Marques demonstrou que as atividades da comunidade islâmica de Vitória não passaram despercebidas das autoridades: “...disse mais que em Novembro do anno passado na occaziâo em que elle testemunha descobrira huma grande reuniâo de pretos na palhoça feita no fundo da roça do Inglez Abrahéo, naqual elle testemunha, neste mesmo sumario tem feito huma declaraçâo, vira os referidos escravos Joâo a Necio sahirem de dentro della, assim como vio, aos escravos Pedro a Miguel Carregadores de Cadeira do Inglez Luis, Thomâs Crispim, Pedro, escravo do lnglez Wulcher, morador a estrada da Victoria, Cornelio da Caza do Hamburguez Pretorio escravo de José Soares, Luiz escravo deBenne, Pedro, a Carlos escravo do Doutor Dundaz, Paulo a Tomaz escravos do Inglez Guilherme Gus morador atraz da lgreja da Victoria do que se lembra perfeitamente por haver naquelle tempo tomado huma nota, circunstanciada, a ali participado ao Juiz de Paz, a este ao Presidente da Província...”.543

O dia 29 de novembro de 1834 ou o 27 Rajab de 1250 no calendário islâmico foi um sábado e nesse dia foi celebrado a “ascensão noturna” do Profeta, que reuniu os muçulmanos da Vitória e que foi interrompida violentamente pelo inspetor de quarteirão.544 Segundo Trimingham, o Miraj é particularmente utilizado nos círculos sufis, e Ryan menciona sua pouca importância nas diferentes esferas do Islã iorubá.545 A celebração do Miraj em novembro de 1834 foi uma demonstração vigorosa dos muçulmanos africanos, particularmente dos muçulmanos nagôs da Vitória em grande maioria escravos dos ingleses. De acordo com Reis, a festa foi um símbolo do sucesso do proselitismo islâmico na Bahia, expansão que, segundo Nina Rodrigues iniciara-se ainda na década de 20.546

543

Devassa do Levante, vol. 50, p. 176. Essa passagem celebra a viagem milagrosa do Profeta a Jerusalém sobre um animal celestial chamado Buraq e sua ascenção através dos sete céus. Sobre a ascenção existem interpretações diferentes. Alguns exegetas afirmam tartar-se da ascensão do Profeta aos céus e de seu retorno à Terra. Outros, porém, afirmam tratar-se de uma visão. Corão, 17:315. Os sufis empregam o simbolismo do episódio para descrever a ascensão da alma como Ibn Arabi no Kitab a-Isra’ila l-maqam al-asra. ARABI, Ibn. Tratado de la unidad. Malaga: Editorial Sirio, 1987 e TRIMINGHAM, op. cit. p. 208. 545 RYAN, Patrick J. Imale: Yoruba participation in the Muslim tradition. Missoula: Scholars Press, 1978, pp. 274-275. 546 REIS, op.cit., pp. 109-110 e RODRIGUES, op. cit., p. 53. 544

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Uma passagem fugaz no depoimento de James, um dos construtores do barracão no quintal do inglês Abraham, revela que as celebrações do calendário islâmico podiam anteceder o Miraj: “Perguntou para que fim tinha elle feito mais os seos parceiros casa de palha no fundo da roça de seo senhor desde que tempo e o fim para que de reunira, quando fôra visto pelo Inspector André Antonio Marques, a por que correrâo quando o virâo. Respondeo que a caza fôra feita por seo parceiro Diôgo, a o fim de corn outros seos amigos e parceiros comerem, a beberem, a brincarem, a ali se juntavâo para conversarem, e a cinco mezes pouco mais ou menos fizerâo a mesma caza, a que estando hum dia todos reunidos corn os escravos de todos os Inglezes que morâo na Estrada da Victoria, Graça, a Barra, cujos nomes de seos Senhores eles nao podem saber aparecendo o mesmo Inspector André Antonio Marques que neste acto foi presente a por elle reconhecido disse que elles correrâo temendo que voltando lhe fizesse algum mal, a depois tendo o mesmo Inspector participado ao Juiz de Paz, este falando com seo senhor os fez desmanchar a mesma caza pelo que algum de seos Patricios que ali se reuniâo deixavâo de o salvar, respondeo ser arbitrio seo, a corn medo dos brancos de terem desmanchado”.547

James admitiu ter construído o barracão com seu parceiro Diogo “há cinco meses pouco ou menos”. Apesar de não haver detalhes da época da construção, através da conversão dos calendários e baseados na declaração de James chegamos a outra celebração islâmica. O Mawlid al-Nabi ou Odun Nabiyu iorubá, o aniversario do Profeta celebrado na Iorubalândia em 12 Rabi al-alwal que correspondeu a 19 de julho de 1834.548 Dessa maneira é provável que a mesquita rústica da Vitória tenha sido concebida não apenas para o Miraj, mas que essa comunidade já estaria articulada desde meados de 1834. O fato é que aparentemente apenas em novembro de 1834 as autoridades, ou um inspetor de quarteirão em particular, tomaram a iniciativa de reprimir abertamente a comunidade islâmica da Vitória. Esta, através dos seus membros mais militantes, puniu os construtores da mesquita pela subserviência aos brancos com o boicote do Assalamu Aleykum. Voltaremos a falar sobre essa comunidade quando tratarmos da liderança daVitória. Licutan foi sem dúvida um dos líderes mais importantes na hierarquia malê e o mais visível. De acordo com as correntes místicas do Islã, uma zawiya sufi não constituía um lugar especificamente; a instituição era o homem. Ao redor do sheik podiam ser organizados estabelecimentos modestos de acordo com o caráter itinerante da liderança. 547 548

Devassa do Levante, vol.50, p. 158. RYAN, op.c it., pp. 274-275.

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Licutan e Ahuna possuíam essas características carismáticas: eram escravos, portanto, despossuídos de qualquer bem e sujeitos às humilhações do sistema. Todavia, eram os líderes que aglutinavam os africanos escravos e libertos. A tese que preconiza a existência de uma versão “democrática” do Islã é equivocada. A própria aplicação do conceito é ingênua, pois como foi visto as origens aristocráticas desses indivíduos não podem ser descartadas. Além disso, a erudição sempre foi sabidamente um fator fundamental na hierarquia islâmica sob qualquer perspectiva.549 A simples existência de uma ordem não paralela, mas pré-existente, foi determinante no conflito. Licutan foi condenado a mil açoites, o máximo desse tipo de punição aplicada em 1835. Apenas o igualmente escravo Joaquim Calafate foi condenado ao mesmo número de açoites. Manoel Calafate, nagô forro, foi o único líder que reconhecidamente participou e morreu em combate. Uma outra característica desse alufá conhecida através da documentação foi um exemplo claro de bay’a: “Alem de tudo isto foi achado huma vara com hum lenço branco perfilado de roxo em forma de bandeira com seis saquinhos de couro e pano em que declarou o Preto Ignacio se dava em juramento de nao morrer na cama e sim com Pay Manoel Calafate. Nove taboas de se escrever de madeira preta a amarella que declarou o preto Ignacio declara pertencentes aos pretos Benedicto, Conrado, Belchior, Joaquim escravo do Tenente Coronel Soares Aprigio, Benedicto e duas pretas e huma pequenina amarella pertencer a Manoel Calafate, e nove chapeos de palha que tbo bem nao quizerao declarar a quem pertenciao e quatro livrinhos mais escriptos em Arabico e mais papeis escriptos da mesma forma. Dous Carneiros, e mil oitocentos e oitenta reis em dinheiro”.550

Já foi explicado no capítulo 3 o significado dessa prática, que consiste em um pacto espiritual entre o discípulo e o mestre. Portanto, indubitavelmente, “Pai” Manoel era um alufá importante o suficiente para justificar tal voto. Calafate estava no ifhtar com o estado-maior malê na noite da revolta e foi visto por várias testemunhas, lutando e sendo ferido: “...Alexandre Joze Fernandes lhe dissera que vira o preto Manoel Calafate subindo pela ladeira da Praça cutilar a hum soldado, e depois tornara a entrar ferido para a mesma casa dos ensurgentes”.551 549

Abu Huraira relatou essa hadith do Profeta: “Os seres humanos possuem naturezas diferentes, aqueles entre os melhores antes do Islã seriam também os melhores no Islã caso compreendessem a Religião. Dessa forma vocês verão os melhores entre os seres humanos desrespeitarem as leis até que eles façam os votos de aliança.” Sahi al-Bukhari, op. cit., pp. 749-750. 550 Devassa do Levante, vol. 40, p. 12. 551 Devassa do Levante, vol. 40, p. 41.

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De acordo com Last, no século XVIII o sufismo aristocrático na África Ocidental era uma combinação de sabedoria e poder associados à idade avançada. No século XIX, o poder “real” fundiu-se com as forças mística e física e, conseqüentemente, com a juventude.552 Morrer como mártir em combate, opção inexistente anteriormente para os eruditos desarmados, reverteu-se no tabu da invulnerabilidade mágica. Preces e militarismo substituíram a magia e o mistério dos veneráveis homens-santos e feiticeiros (boka).553 Aparentemente Calafate não foi o único líder a perecer em combate e juntamente com os muçulmanos da Vitória e Suleiman, ele fez parte da vertente armada da liderança.554 A comunidade muçulmana da Vitória, na maioria escravos dos comerciantes, envolveu-se maciçamente na revolta. Como já foi visto, o barracão foi construído no quintal do inglês Abraham e diversas passagens nos processos atestam a participação intensa desse grupo: “...como cabeças a Chefes de Clubes que se ajuntava na caza do Ingles Abraham a de que anteriormente tinha dado parte ao Excellentissimo Presidente da Provincia os seguintes Nagôs = Diogo. Daniel. Jaimes a João escravos de Abraham Cabeças do Clube sahirao a recolherào se pela manhà Carlos a Thomas cabeças do sahirào a recolherào se pela manhà ainda corn as calças com sangue examinei não tinha ferida alguma no corpo escravos de Frederico Robeldiald, Cornelio escravo de Pestotes alias Pretores Inglez apanhou se recolhendo se para a caza confessou ter hido corn os outros erào tào bem do Clube Luiz escravo de Benne entrou pela manhà sujo dé polvora com o anel no dedo o senhor o entregou a dice que elle tinha sahido e era do clube Thomas escravo de Vugner cabeça do clube mestre que ensinava a escrever consta recolher se pela manhà, Joze escravo de Joze Antonio de Araujo o senhor màndou o entregar por ter entrado na insurreiçào a recolheo se pela manhà com huma bala atravessada na perna, Pedro escravo do Doutor Dundas ficou no ataque com huma perna esbandalhada de bala era cabeça clube Joze escravo de Evano por denuncia que tive axa-se prezo para averiguação”.555

De acordo com o relatório havia uma profusão de “cabeças do clube” que não correspondia à realidade. Dos indivíduos citados na passagem acima, certamente nenhum exerceu efetivamente papel na liderança dos muçulmanos da Vitória. 552

LAST, Murray. “Charisma and medicine in Northern Nigeria”, in: O’BRIEN & COULON, op. cit., p. 194. Idem, p. 195. 554 Ibidem, p. 184. É significativo ressaltar que o “jihadista” Uthman dan Fodio não tomava parte nos combates e os eruditos não portavam armas. 555 Devassa do Levante, vol. 50, p. 73. 553

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Carlos, escravo nagô do inglês Robelliard, nomeou com mais propriedade os principais líderes dos muçulmanos escravos dos ingleses: “...sendo mais perguntado se sabia ler o papel que the foi apre tado escripto em seo idioma, e o que significava os anneis brancos, de todos os seos companheiros usavâ. Respondeo que nâo sabia ler, por se a ainda aprendendo com os Mestres Dassalû, a Nicobe, assim como, Gustard escravo do Inglez Diogo Stuart, nomes estes dos pretos do mesmo Inglez que I nomes de sua terra sâo conhecidos entre elles, o Dassalû, Mama, e o Nicobe Sule a Gustad, Buremo, declarando que se achavâo perzuadidos de nâo ofenderem incorrerem em crime porque por huma vez o senhor nâo os impedi por outra vez fasendo huma revista nas caixas dos seos mestres mandara juntar tudo, a queimar, reprehendendo e intimidando que elles por não terem que fazer se ocupavam em apprender a ensinarem a lingoa da sua terra”.556

Nenhum dos citados na passagem como mestres foi achado na documentação. Esses relatos, e o fato dos líderes provavelmente terem sido mortos, reforçam a tese de que uma vez desarticulada a liderança nas ruas de Salvador, a revolta se desvanece. Os mestres muçulmanos da Vitória se assemelham ao modelo de sacerdote-guerreiro já constatado na análise do perfil de Manoel Calafate. Aparentemente esse tipo de liderança militante foi forte o suficiente para reunir maciçamente os escravos da Vitória e inclusive estabelecer de forma mais explícita as celebrações do calendário islâmico. De acordo com Last, em determinados contextos, o conceito de carisma denota a força da personalidade em contraste com a força das armas. Reunidas, em forma de poder, elas assegurariam o sucesso.557 Sinais de irmandade De acordo com Fátima Mussá no seu estudo de caso contemporâneo da comunidade islâmica de Maputo, os muçulmanos superaram as suas diferenças ao perceberem sua fragilidade demográfica. A construção da identidade se alicerça no resultado da designação feita pelo “outro”. A identidade se forja nas demandas do cotidiano com outras culturas e crenças. Estabelecer uma identidade significa firmar uma oposição.558

556

Devassa do Levante, vol. 50, p. 160. LAST, op. cit., p. 186. 558 MUSSÁ, Fátima N. “Entre a modernidade e tradição: a comunidade islâmica de Maputo”, in: FRY, Peter. Moçambique: ensaios. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001, p. 126. 557

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É possível perceber a similaridade dos conflitos perenes no interior das comunidades islâmicas. Nesse caso, é importante definir quem é o verdadeiro representante da religião muçulmana. As nuances inerentes às questões envolvendo a identidade atinge de forma diversa os indivíduos de uma comunidade. Aos intelectuais cabe a reinterpretação, a definição do legítimo e a condução do grupo.559 Nunca é demais reafirmar que objetivo do trabalho não é estabelecer se efetivamente os africanos envolvidos na revolta eram “bons” ou “maus” muçulmanos. Questão esta que historicamente aflige comunidades islâmicas e que por si só já define os objetos da polissemia religiosa. À margem de tais embates, a dificuldade de extrair informações precisas nos meandros da documentação leva a nos fixar em detalhes aparentementes fortuitos. No decorrer do trabalho procuramos nos ater a buscar, nos sinais concretos exibidos pelos africanos, dados específicos, relegados quando muito a segundo plano, das origens e cultura dos indivíduos envolvidos na revolta. De forma análoga, a origem das vestimentas, alguns detalhes da indumentária repetidamente mencionados na documentação chamaram a atenção: “Perguntando sobre o Corpo de delicto que lhe foi lido, além da referência que fez a testemunha Manoel Baptista da Gama, disse.sabe que ha quatro annos pouco mais ou menos tem sido convidado pelo escravo Comelio. para ser Malei. e não querendo ouvir elle testemunha em simelharìte convite. pois que todos quetem ser Padres, e não comem toicinho, ficou o dito Comelio mal com elle testemunha de forma que athé agora se não falão: e sendo lhe perguntado a serventia que tinhão os aneis brancos, disse que era o distintivo de que uzão os daquella sociedade para se conhecerem”.560

Na passagem dos processos sobre a briga entre o forro João Ezaquiel e o escravo Cornélio fica patente que os anéis de prata ou de metal branco foram utilizados como símbolo de uma irmandade.561 De acordo com Johnson, no desenrolar da conquista da Nigéria setentrional pelos jihadistas fulás, aqueles que pertenciam à jama562 usavam, como forma exterior de distinção denominado kende. Este consistia de dois anéis grandes, um para ser usado no polegar e o outro no terceiro ou quarto dedo da mão esquerda. Dessa 559

Idem, p. 126. Devassa do Levante, vol. 50, p. 48. 561 Ibn Malik relatou: “o Mensageiro de Deus pegou um anel de prata gravado com a frase ‘Muhammad o Mensageiro de Deus’, dessa forma estabeleceu que ninguém poderia mais usar um anel de prata com a mesma frase.” Sahih al-Bukhari, op. cit., p. 1091. Aos muçulmanos do sexo masculino não é permitido o uso de adornos de ouro. 562 Termo hauçá empregado nesse contexto para designar um grupo específico na hierarquia das tropas jihadistas. 560

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forma, cumprimentavam-se batendo os anéis e produzindo um som ao que freqüentemente acrescentavam: "O re kende si mi okan na ni wa”, (‘ele me saudou com o kende, nós somos um’).563 Os sinais de uma irmandade supra-étnica estão fartamente expostos por toda a documentação, assim como sinais de etnicidade inseridos em uma hierarquia no contexto. Através de outro detalhe foi possível detectar a presença mais específica das irmandades místicas: “(...) para que, vissem e examinassem o livro e mais papeis escriptos com letras Arabicas, os anéis os treze breves, a taboa, a polvora, dous Rusarios com borlas, tudo achado hoje na Casa de Domingos Lopes Ribeiro, e pertencente ao preto Gaspar nago escravo do mesmo, e confessado perante todos serem os objectos referidos seos, e escriptos por seo proprio punho: para que declarassem os mesmos peritos se estes objectos pertencem ou não, e se separessem com os mais achados em poder dos pretos Insurgidos na madrugada de Vinte cinco de Janeiro”.564

No termo de corpo delito do escravo Hugubi aparece uma das muitas menções ao chamado na Bahia “rosário de pagão”, na realidade o tasbiha árabe, o tesunbaa iorubá ou tessubá malê na Bahia. Segundo Trimingham, a repetição dos dhikrs é realizada como o auxilio do tasbiha e o formato pode variar de acordo com a irmandade. A tariqa Qadiria adota o formato de 99 contas divididas em três seções de 33; a Tijania, o formato de 100 contas divididas em 12, 18, 20, 18 e 12. Existem outras combinações como da tariqa Khalwatis com 301 e até 1000 contas, utilizado em tarefas individuais e mesmo em preces coletivas após os funerais. O “rosário” islâmico adquiriu importância através do seu uso nos rituais de iniciação, institucionais e outros cultos litúrgicos. O tasbiha pode ser o símbolo da autoridade do fundador da irmandade, impregnado de baraka pelo seu uso em vida nas litanias de recitação dos atributos divinos e herdados por seus sucessores.565 Segundo o relato de Etienne Brazil, o tessubá malê correspondia ao formato da Qadiria, o que corrobora a influência dessa irmandade em terras brasileiras. De acordo com o estudo da cronologia das irmandades sufis na África Ocidental, a Qadiria seria a única irmandade estabelecida com possibilidade de se expandir sua através da África Ocidental e mesmo atingir as terras americanas no inicio do século XIX. 563

JOHNSON, op. cit., p. 194. Devassa do Levante, vol. 54, p. 168. 565 TRIMINGHAM, op. cit., p. 201. A forma mais simples na irmandade Qadiria consiste na repetição das fórmulas, subhan Allah, al-hamdu li’llah e Allahu akbar cada uma recitada 33 vezes. 564

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Existe um testemunho citado no capítulo da repercussão da revolta na imprensa da época bastante sugestivo: “Vinhão ele vestidos uniformemente de cabeças rapadas, alguns com insignias, certos papeis que se supõe Ploclamações, patuás trazendo todos por diviza um argolão de prata no dedo polegar da mão esquerda, e tendo como armas espadas”.566

Na documentação dos processos não aparece menção ao detalhe das cabeças raspadas, mas o relato da carta anônima foi extremamente minucioso, a ponto de fornecer informações despercebidas pelas testemunhas nos processos. Last mencionou a passagem em que Ibrahim Dabo (1819-1846), soberano de Kano, após a conquista de uma cidade raspava sua cabeça. Os guerreiros profissionais (jarumai) usavam cabelos compridos e os mestres religiosos cabeças raspadas. O cabelo comprido era associado com ferocidade e selvageria. Tradicionalmente Uthman dan Fodio carregava uma espada ou faca, mas Humphrey Fischer observou que devia ser na verdade uma navalha para raspar a cabeça dos conversos.567 O costume dessa forma envolvia muçulmanos, mestres ou conversos. A testemunha anônima revelou, através de um detalhe fortuito, práticas islâmicas envolvendo erudição, guerra e conversão.

566

Pão de D’Assucar, Rio de Janeiro, 10/02/1835. LAST, op. cit., p. 184. Ibn Umar disse: “O Mensageiro de Deus raspou a cabeça ao término da Peregrinação.” Sahih al-Bukhari, op. cit. p. 423. 567

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Conclusão “Existem muitos homens bons na América, mas todos muitos ignorantes sobre o Islã e a África”. Lamine Kebe, muçulmano africano, 1835, sul dos Estados Unidos.568

Afinal qual foi o real simbolismo do planejamento da revolta na noite do Laylat alQadr, além da relação com uma data especial do calendário islâmico e a coincidência de um feriado católico? Nas áreas consideradas conservadoras do Islã em Ilorin, são consideradas como prováveis noites do Qadr as últimas noites ímpares do mês de Ramadã. Na impossibilidade de se prever com precisão a noite em questão, por conveniência se estabelece uma data específica. Em Ilorin, por exemplo, estabeleceu-se 27 de Ramadã.569 No calendário islâmico, a mudança das datas se baseia nas noites ou no pôr do sol. Dessa forma, em algumas áreas da Iorubalândia, celebra-se o Qadr após o pôr do sol do dia 26. Entre os iorubás existem vertentes distintas que celebram o Ipari adura aawe (a prece final do jejum).570 A última sexta-feira do Ramadã é chamada de Juma’t al wada (“sexta-feira do adeus”), dia de pedir perdão por eventuais faltas e negligências na prática islâmica no ano que passou. Curiosamente essa prática é quase desconhecida nos setores menos conservadores do Islã iorubá e enfatizada nos círculos reformistas apesar da proibição de Uthman dan Fodio.571 A cerimônia do Qadr, segundo Ryan, assemelha-se a um exercício sufi de dhikr, enfatizando a misericórdia divina e a repetição da surat al-Qadr na noite em que os muçulmanos podem pedir a concretização de desejos normalmente inalcançáveis.572 A conversa ouvida por Paulo Rates entre Licutan e seus discípulos sobre sua libertação no final do jejum faz agora mais sentido. O jejum termina no Id al-fitr (festa da quebra do jejum), conhecido entre os iorubás por Id el-fitre ou Itunu aawe. Portanto, o plano original não coincide com o executado. Pode-se especular uma antecipação pelo 568

AUSTIN, op. cit., p. 3. Relatado por Udabah ibn al-Samit que o Profeta apareceu para informar às pessoas a data exata da noite do Qadr, mas nesse momento ocorreu uma altercação entre dois muçulmanos. O Profeta disse: Eu vim para informá-los a data exata da noite Qadr, porém, devido a essa confusão meu conhecimento se desvaneceu e talvez isso seja melhor para vocês. De agora em diante, observem as noites de 27, 29 e 25 do mês de Ramadã. Sahih al-Bukhari, op. cit., pp. 29-30 570 RYAN, op. cit., p. 277. 571 Idem, p. 277. 569

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vazamento de informações da revolta, o aproveitamento da coincidência das festas religiosas islâmica e católica, ou a prática iorubá do Ipari adura aawe como final do jejum convenientemente no mesmo dia do feriado católico. A noite do Qadr, dessa maneira, serviu de forma extremamente feliz sob qualquer perspectiva, religiosa ou mundana.573 Outra questão ligada à noite do Qadr, além da obviedade intrínseca do calendário islâmico, é perceber sua utilização prática como recurso psicológico em uma empreitada de ruptura armada. Danmole, já citado no decorrer do trabalho, observou que campanhas militares em Ilorin normalmente não se iniciavam no Ramadã, pois era um mês dedicado às atividades religiosas e à abstinência. Em 27 de Ramadã de 869 (1465) na noite do Qadr, em Fez, explode uma rebelião popular contra o sultão marinida e seus prepostos judeus coletores de impostos. AlWaryaghalı, porta-voz da vontade popular e líder da irmandade Qadiria, conhecido como o “trovão de sua época”, era um veterano dos jihads contra os portugueses em Tânger e Asila, e havia trabalhado como professor e jurista nos ribats e acampamentos. Ele declarou desfeitos os votos de obediência ao sultão fi Abd al-˘aqq e transferiu sua lealdade para o shurafa Muhammad al-filmranı. As fontes descrevem a turba como bandos de excluídos da sociedade, ainda que esses grupos desempenhassem um papel importante nos quarteirões populares e nas guildas. A esses indivíduos podia-se aplicar o termo “jovens da irmandade” que haviam aderido às comunidades sufis, o que implicava na participação direta da irmandade Qadiria no movimento. O fato da rebelião se iniciar na noite do Qadr sugere que um mestre sufi chamado al-Zaytuni incitou-a e invocou proteção através da recitação da Surat al-Qadr. Os membros da Qadiria articularam a iniciação mística e a idéia da total absorção da personalidade e qualidades do santo sobre o novo líder. Os eventos destruíram o equilíbrio de forças existentes em Fez por duzentos anos, desde o início do poder marinida. O sultão foi abandonado por suas tropas na entrada da cidade quando retornava de uma expedição. A turba recebeu-o aos gritos de “jihad, jihad” e executou-o em seguida.574 A revolta sufi na noite do Qadr, em Fez no século XV, foi bem sucedida, ao contrário da revolta dos africanos em Salvador na mesma data quatro séculos mais tarde. Certamente surgirão vozes contestando tal comparação. A pertinência das datas está ligada 572

Ibidem, p. 278. Relatado por Abu Huraira que o Profeta afirmou: “quem passar a noite do Qadr em oração com sinceridade e devoção a Deus, todos os pecados passados serão perdoados.” Sahih al-Bukhari, pp. 23-24. 574 KUGLE, Scott. In search of a center from Morocco. Swarthmore: Swarthmore College, 2001, pp.70-71. Agradeço a Scott Kugle a observação sobre a concidência das datas islâmicas nos dois casos feitas na conferência em Essaouira no Marrocos em junho de 2001, e nas conversas embaladas pelo trem no trecho entre Marrakesch e Fez. Agradeço também o envio do seu trabalho inédito. 573

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a uma vertente islâmica específica, e não pretendemos engrossar polêmicas desnecessárias em torno de conceitos de jihad, por exemplo. Tais considerações esquemáticas de qualquer vertente podem ser facilmente contestadas. Poder-se-ia argumentar a respeito da similitude do choque de um Islã tradicional com a cultura bérbere local. Afinal Ibn Khaldun citava Ibn Abi Yazid, que dizia que os bérberes “haviam negado o Islã doze vezes, antes de aceitá-lo definitivamente”.575 Poderia igualmente se argumentar a respeito do papel de organizações religiosas que aglutinavam em torno de si a “turba de excluídos” e do papel dessas irmandades na organização de trabalho. Conflitos étnicos nunca constituíram novidade na história islâmica. Ao contrário, o Islã surgiu no seio de conflitos tribais e posteriormente se impôs como ideologia supra-étnica, que no seu desenvolvimento, conheceu choques, acomodações, fusões, fluxos e refluxos. Na África Ocidental em geral se assistia às drásticas tentativas de purificar duzentos anos de Islã talismânico estatal. Os talismans eram envolvidos em couro de cabras e outros animais e o emir Muhammad al-wali (1786-1806), dirigente reformador em Kano, usou a metáfora: “removeremos essas práticas dessa cidade certamente como removeremos os textos corânicos desses invólucros”. O emir alcunhado “o santo” falhou.576 O Islã talismânico foi práticado pelos clérigos, os chamados “venais” mallams por Uthman dan Fodio, em sociedades iletradas não como meio de comunicação, mas como meio de controle e particularmente em forma de amuletos para guerreiros.577 As práticas islâmicas de devoção e controle foram oferecidas como substitutos as práticas tradicionais. A Revelação corânica através do Profeta inicialmente tomou uma forma que a comunidade árabe pudesse entender. A Caaba e o hajj foram elementos centrais das práticas pré-islâmicas, sendo posteriormente transformadas e reapresentadas pela nova perspectiva. Nota-se claramente que um modelo entronizado de Islã serviu de parâmetro para analisar a questão malê. Existem hadiths que atestam, por exemplo, a permissão para uso de amuletos e a existência de práticas contra o mau-olhado.578 Ser muçulmano significa participar do processo islâmico, e isso não constitui apenas uma observação histórica, sociológica ou antropológica, mas uma constatação 575

RYAN, op. cit., p. 303. LAST, op. cit., p. 184. 577 RYAN, op. cit., p. 305. 578 O profeta costumava invocar em situações de perigo a fórmula: “A'udhu bi kalimaatillah at-taammaat min ghadabihi wa sharri 'ibaadihi wa min hamazaat ash-shayaatin wa an yahdurun.”Esta invocação podia ser usada em forma de amuleto. pois Hadith relatado em: Imam Nawawi. Al-Majmu' sharh al-muhadhdhab. Madina: Salafiyya Publishing House, p. 71. No caso do “mau-olhado” Aisha relatou: “o Profeta me ensinou que no caso de ser atinjida por “mau-olhado”, eu deveria pedir a alguém que recitasse uma passagem corânica.” Sahih al-Bukhari, op.cit., p. 1084. 576

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teológica. Dessa forma, a pertinência não está no fato de ser muçulmano militante, nominal, herético ou sincrético. É principalmente fazer parte do complexo islâmico, histórico, cultural e social. É estar envolvido de maneira consciente com uma herança religiosa e no nível místico mais elevado da comunhão com Deus através de práticas específicas. Uma contribuição que consideramos fundamental nesse trabalho foi a possibilidade de se perceber a existência de correntes religiosas além do lugar-comum da fórmula Islã/cultos africanos/sincretismo. Acreditamos que foi possível detectar através do exposto a existência de correntes paralelas ou conflitantes de marabutismo popular e sufismo erudito entre os africanos. No caso do Islã, nem todos os muçulmanos foram rebeldes em 1835. Todos os rebeldes, porém, foram às ruas de Salvador em torno de uma poderosa simbologia mística islâmica. Alianças foram forjadas, não apenas uma, dentre as possíveis, mas sobretudo alianças espirituais. Paradoxalmente, a percepção de novas possibilidades, não confunde, mas antes ajuda a compreender melhor os desdobramentos desses pedaços de África islâmica instalados em terras brasileiras.

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Anexo "Our Lord! Accept (this service) from us: For Thou art the All-Hearing, All-Knowing. (Qur'an: Chapter 2 verse 127). "Our Lord! make of us Muslims, bowing to Thy (Will), And of our progeny a people Muslim, bowing to Thy (Will); And show us our places for The celebration of the (due) rites; And turn unto us (in Mercy); For Thou art the Oft-Returning, Most Merciful. (Qur'an: Chapter 2 verse 128). "Our Lord! send amongst them An Apostle of their own, Who shall rehearse Thy Signs To them and instruct them In scripture and Wisdom, And sanctify them: For Thou art the Exalted in Might, The Wise." (Qur’an: Chapter 2 verse 129). "Our Lord! Give us (Thy bounties) in this world!" But they will have No portion in the Hereafter. (Qur’an: Chapter 2 verse 200). Our Lord! Give us Good in this world And good in the Hereafter, And defend us From the torment Of the Fire!" (Qur’an: Chapter 2 verse 201). "Our Lord! Pour out constancy on us And make our steps firm: Help us against those That reject faith." (Qur’an: Chapter 2 verse 250) "We hear, and we obey: (We seek) Thy forgiveness, Our Lord, and to Thee Is the end of all journeys." (Qur’an: Chapter 2 verse 285). On no soul doth God Place a burden greater Than it can bear. It gets every good that it earns, And it suffers every ill that it earns. (Pray:) "Our Lord! Condemn us not If we forget or fall Into error; our Lord! Lay not on us burden Like that which Thou Dist lay on those before us; Our Lord! lay not on us A burden greater than we Have strength to bear. Blot out our sins, And grant us forgiveness, Have mercy on us. Thou art our Protector; Help us against those Who stand against Faith" (Qur’an: Chapter 2 verse 286). "Our Lord! (they say), "Let not our hearts deviate Now after Thou hast guided us, But grant us mercy From Thine own Presence; For Thou art the Grantor Of bounties without measure. (Qur’an: Chapter 3 verse 8) Our Lord! Thou art He That will gather mankind Together against a Day about which There is no doubt; for God Never fails in His promise." (Qur’an: Chapter 3 verse 9). "Our Lord! we have indeed Believed: forgive us, then, Our sins, and save us From the agony of the Fire." (Qur’an: Chapter 3 verse 16). Our Lord! we believe In what Thou hast revealed, And we follow the Apostle; then write us down Among those who bear witness." (Qur’an: Chapter 3 verse 53).

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"Our Lord! forgive us Our sins and anything We may have done That transgressed our duty: Establish our feet firmly, and help us against Those that resist Faith." (Qur’an: Chapter 3 verse 147). "Our Lord! not for naught Hast Thou created (all) this! Glory Thee! Give us Salvation from the Penalty Of the Fire. (Qur’an: Chapter 3 verse 191). "Our Lord! any whom Thou Dost admit to the Fire, Truly Thou coverest with shame, And never will wrong-doers Find any helpers! (Qur’an: Chapter 3 verse 192). "Our Lord! we have heard The call of one calling (Us) to Faith, 'Believe ye In the Lord,' and we Have believed. Our Lord! Forgive our sins, Blot out from us Our inequities, and take To Thyself our souls In the company of the righteous. (Qur’an: Chapter 3 verse 193). "Our Lord! Grant us What Thou dist promise Unto us through Thine Apostles, And save us from shame On the Day of Judgment: For Thou never breakest Thy promise." (Qur’an: Chapter 3 verse 194). "Our Lord! Rescue us from this town, Whose people are oppressors; And raise for us from Thee One who will protect; And raise for us from Thee One who will help! (Qur’an: Chapter 4 verse 75). "Our Lord! Why hast Thou ordered us To fight? Would Thou not Grant us respite To our (natural term), Near (enough)?" Say: "Short Is the enjoyment of this world: The Hereafter is the best For those who do right; Never will ye be Dealt unjustly In the very least! (Qur’an: Chapter 4 verse 77). Our Lord! We believe; write us Down among the witnesses. (Qur’an: Chapter 5 verse 86). Said Jesus the son of Mary: "O God our Lord! Send us from heaven A Table set (with viands), That there may be for us-For the first and the last of us- A solemn festival And a Sign from Thee; And provide for our sustenance, For Thou art the best Sustainer (of our needs)." (Qur’an: Chapter 5 verse 117). "Our Lord! we made profit from each other: but (alas! ) We reached our term-Which Thou dist appoint For us" He will say: "The Fire be your dwelling-place: You will dwell therein for ever, Except as God willeth. For Thy Lord is full Of wisdom and knowledge. . (Qur’an: Chapter 6 verse 128). "Our Lord! We have wronged our own souls: If Thou forgive us not And bestow not upon us Thy mercy, we shall Certainly be lost." (Qur’an: Chapter 7 verse 23). "Our Lord! send us not To the company Of the wrong-doers." (Qur’an: Chapter 7 verse 47).

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"Our Lord! It is these that misled us: So give them a double penalty in the Fire." (Qur’an: Chapter 7 verse 38). "Our Lord! Decide thou Between us and our people, In truth, for thou Art the best to decide." (Qur’an: Chapter 7 verse 89). "Our Lord! pour out on us Patience and constancy, and take Our souls unto Thee As Muslims (who bow To Thy Will). (Qur’an: Chapter 7 verse 126). ["Our Lord!] Thou hast indeed bestowed On Pharaoh and his Chiefs Splendour and wealth in the life Of the Present, and so, Our Lord, they mislead (men) From Thy Path. Deface. Our Lord, the features of their wealth, And send hardness to their hearts , So they will not believe Until they see the grievous Penalty." (Qur’an: Chapter 10 verse 88). "Our Lord! make us not A trial for those Who practice oppression. (Qur’an: Chapter 10 verse 85). "O my Lord! build For me, in nearness To Thee, a mansion In the Garden, And save me from Pharaoh And his doings, and save me from Those that do wrong." (Qur’an: Chapter 66 verse 11). "Our Lord! I have made Some of my offspring dwell In a valley without cultivation, By Thy Sacred House; In order, O our Lord, that they May establish regular Prayer: So fill the hearts of some Among men with love towards them, And feed them with Fruits: So that they may give thanks. (Qur’an: Chapter 14 verse 37). "Our Lord! truly Thou Dost know what we conceal And what we reveal: For nothing whatever is hidden From God, whether on earth Or in the heaven. (Qur’an: Chapter 14 verse 38). "Praise be to God, Who hath Granted unto me in old age Isma'il and Isaac: for truly My Lord is He, the Hearer Of Prayer! (Qur’an: Chapter 14 verse 39). "O my Lord! make me One who establishes regular Prayer, And also (raise such) Among my offspring O our Lord! And accept Thou my Prayer. (Qur’an: Chapter 14 verse 40). "O our Lord! cover (us) With Thy Forgiveness-me My parents, and (all) Believers On the Day that the Reckoning Will be established. (Qur’an: Chapter 14 verse 41). Our Lord! Respite us (if only) For a short Term: we will Answer Thy Call, and follow The Apostles"! "What we ye not wont To swear aforetime that ye Should suffer no decline? (Qur’an: Chapter 14 verse 44). They will say: "Our Lord! These are our 'partners,' those Whom we used to invoke Besides Thee." But they will Throw back their word at them (And say): "Indeed ye are liars!" (Qur’an: Chapter 16 verse 86).

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Behold, the youths betook themselves To the Cave: they said, "Our Lord bestow on us Mercy from Thyself, And dispose of our affair For us in the right way!" (Qur’an: Chapter 18 verse 10). "Our Lord! we fear lest He hasten with insolence Against us, or lest he Transgress all bounds." (Qur’an: Chapter 20 verse 45). "O my Lord! leave not Without offspring, though Thou Art the best of inheritors." (Qur’an: Chapter 21 verse 89). Our Lord! If only Thou Hadst sent us an apostle, we should certainly have followed Thy Signs before we were Humbled and put to shame." (Qur’an: Chapter 20 verse 134). "Our Lord! Our misfortune overwhelmed us, And we became a people Astray! (Qur’an: Chapter 23 verse 106). "Our Lord! Bring us out Of this: if ever we return (To evil), then shall we be Wrong-doers indeed!" (Qur’an: Chapter 23 verse 107). "Our Lord! we believe; Then do Thou forgive us, And have mercy upon us: For Thou art the Best Of those who show mercy!' (Qur’an: Chapter 23 verse 109). Our Lord? Indeed they

Have an arrogant conceit Of themselves, and mighty Is the

insolence of their impiety! (Qur’an: Chapter 25 verse 21). "Our Lord! Avert from us the Wrath of Hell, for its Wrath Is indeed an affliction grievous. (Qur’an: Chapter 25 verse 65). "Our Lord! Grant unto us Wives and offspring who will be the comfort of our eyes, And give us (the grace) To lead the righteous." (Qur’an: Chapter 26 verse 74). "Our Lord! why didst Thou not Send us an apostle? We Should then have followed Thy Signs and been amongst Those who believe!" (Qur’an: Chapter 28 verse 47). "Our Lord! These are the ones Whom we led astray: We led them astray, as we Were astray ourselves: we free Ourselves (from them) in Thy presence It was not us they worshipped." (Qur’an: Chapter 28 verse 63). "Our Lord! We have seen And we have heard: Now then send us back (To the world): we will Work righteousness: for we Do indeed (now) believe. (Qur’an: Chapter 32 verse 12). "Our Lord! We obeyed Our chiefs and our great ones, And they misled us to the (right) path. (Qur’an: Chapter 33 verse 67). "Our Lord! Give them Double Penalty And curse them With a very Great Curse!" (Qur’an: Chapter 33 verse 68). "Our Lord! Place longer distances Between our journey-stages": But they wronged themselves (therein). At length We made them As a tale (that is told), And We dispersed

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them All in scattered fragments, Verily in this are Signs For every (soul that is) Patiently constant and grateful. (Qur’an: Chapter 34 verse 19). "Our Lord! These are our 'partners,' those Whom we used to invoke Besides Thee." But they will Throw back their word at them (And say): "Indeed ye are liars!" (Qur’an: Chapter 16 verse 86). "Praise be to God, Whom has removed from us (All) sorrow: for our Lord Is indeed OftForgiving Ready to appreciate (service). (Qur’an: Chapter 35 verse 34). "Our Lord! Bring us out: We shall work righteousness, Not the (deeds) we used To do!:"Did We not Give you long enough life So that he that would Should receive admonition? And (moreover) the warner Came to you, So taste ye (The fruits of your deeds): For the Wrong-doers There is no helper." (Qur’an: Chapter 35 verse 37). "Our Lord! Hasten to us our sentence (Even) before the Day Of Account!" (Qur’an: Chapter 38 verse 16). "Our Lord! Whoever brought this upon us,- Add to him a double Penalty in the Fire!" (Qur’an: Chapter 38 verse 61). "Our Lord! Thy Reach Is over all things, In Mercy and Knowledge. Forgive, then, those who Turn in Repentance, and follow Thy Path; and preserve them From the Penalty Of the Blazing Fire! (Qur’an: Chapter 50 verse 7). "And grant, our Lord! That they enter The Gardens of Eternity, Which Thou hast promised To them, and to the righteousness Among their fathers, Their wives, and their posterity! For Thou art (He), The Exalted in Might, Full of Wisdom. (Qur’an: Chapter 50 verse 8). "Our Lord! Twice hast Thou made us Without life, and twice Hast Thou given us Life! Now have we recognised Our sins: is there Any way out (of this)?" (Qur’an: Chapter 50 verse 11). "Our Lord! Show us those, Among Jinns and men, Who misled us: we shall Crush them beneath our feet, So that they become The vilest (before all)." (Qur’an: Chapter 51 verse 29). "Our Lord! Is God", and, further, Stand straight and steadfast, The angels descend on them (From time to time): "Fear ye not!" (they suggest), "No grieve! But receive The Glad Tidings Of the Garden (of Bliss), The which ye were promised! (Qur’an: Chapter 51 verse 30). "Our Lord! remove The Penalty from us, For we do really believe!" (Qur’an: Chapter 54 verse 12).

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"Our Lord! I did not Make him transgress, But he was (himself) Far astray." (Qur’an: Chapter 60 verse 27). "Our Lord! Forgive us, and our brethren Who came before us Into the Faith, And leave not, In our hearts, Rancour (or sense of injury) Against those who have believed. Our Lord! Thou art Indeed Full of Kindness, Most Merciful." (Qur’an: Chapter 69 verse 10). "Our Lord! In Thee do we trust, And to Thee do we turn In repentance: to Thee Is (our) final Goal. (Qur’an: Chapter 70 verse 4). "Our Lord! Thy Reach Is over all things, In Mercy and Knowledge. Forgive, then, those who Turn in Repentance, and follow Thy Path; and preserve them From the Penalty Of the Blazing Fire! (Qur’an: Chapter 50 verse 7). "Our Lord! Make us not A (test and ) trial For the Unbelievers, But forgive us, our Lord! For Thou art the Exalted In Might, the Wise." (Qur’an: Chapter 50 verse 5). "Our Lord! Perfect our Light for us, And grant us Forgiveness: For Thou hast power Over all things." (Qur’an: Chapter 66 verse 8). In the name of Allah, Most Gracious, Most Merciful 1. Ya -Sin By the Qur'an, Full of wisdom, Thou art indeed One of the messengers On a Straight Way (It is a Revelation) Sent down by (Him), The Exalted in Might, Most Merciful, In order that thou mayest Warn people, Whose fathers were Not warned, and who Therefore remain heedless (Of Allah). The Word is proved true, Against the greater part of them: For they do not believe. We have put yokes Round their necks Right up to their chins, So that they cannot bow Their heads. And We put a bar in front of them And a bar behind them, And further, We have Covered them up; so that They cannot see. The same is to them Whether thou admonish Them: they will not believe. Thou canst but admonish Such a one as follows The Message and fears The Most Gracious such a one, therefore, Good tidings, of Forgiveness And a Reward most generous. Verily We shall give life To the dead, and We record That which they send before And that which they leave Behind, and of all things Have We taken account. In a clear Book (Of evidence).

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Set forth to them, By the way of parable, The (story of) the Companions of the City. Behold, There came messengers to it. When We (first) sent To them two messengers, They rejected them: But We strengthened them With a third: they said, "Truly, we have been sent On a mission to you." The (People) said: "Ye are Only men like ourselves; And the Most Gracious Sends no sort of revelation: Ye do nothing but lie." They said: "Our Lord doth Know that we have been sent On a mission to you: "And our duty is only To deliver the clear Message." The (people) said: "For us, We augur an evil omen From you: if ye desist not, We will certainly stone you, And a grievous punishment Indeed will be inflicted On you by us." They said: "Your evil omens Are with yourselves: (Deem ye this an evil omen). If ye are admonished? Nay, but ye are a people Transgressing all bounds!" Then there came running, From the farthest part Of the City, a man, Saying, "O my People! Obey the messengers: "Obey those who ask No reward of you (For themselves), and who are Themselves guided. "Why should not I Serve Him Who created me, And to Whom ye shall (All) be brought back. "Shall I take (other) gods Besides Him? If The Most Gracious should Intend some adversity for me, Of no use whatever Will be their intercession For me, nor can they Deliver me. "I would indeed, then Be in manifest Error. "For me, I have faith In the Lord of you (all): Listen, then, to me!" It was said: "Enter thou The Garden." He said: "Ah me! Would that My People knew (what I know)!"From That my Lord Has granted me Forgiveness And has enrolled me Among those held in honour!" And sent not down Against his People, after him, Any hosts from heaven, Nor was it needful For Us so to do. It was no more than A single mighty Blast, And behold! they were (like ashes) Quenched and silent. Ah! alas for the servants! There comes not a messenger To them but they mock him! See they not how many Generations before them We destroyed? Not to them Will they return: But each on eof them All-will be brought Before Us (for judgement)

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A sign for them Is the earth that is dead: We give it life, And produce grain therefrom, Of which ye do eat. And we produce therein Orchards with date-palms And vines, and We cause Springs to gush forth therein: That they may enjoy The fruits of this (artistry): It was not their hands That made this: Will they not then give thanks? Glory to Allah, Who created In pairs all things that The earth produces, as well as Their own (human) kind And (other) things of which They have no knowledge. And a Sign for them Is the Night: We withdraw Therefrom the Day, and behold They are plunged in darkness; And the Sun Runs unto resting place, For him: that is the decree of (Him), The Exalted in Might, The All-Knowing. And the Moon,-We have measured for her Stations (to traverse) Till she returns Like the old ( and withered) Lower part of a date-stalk. It is not permitted To the Sun to catch up The Moon, nor can The Night outstrip the Day: Each (just) swims along In (its own) orbit (According to Law). And a Sign for them Is that We bore Their race (through the Flood) In the loaded Ark; And We have created For them similar (vessels) On which they ride. If it were Our Will, We could drown them: Then would there be no helper ( to hear Their cry), nor could They be delivered, Except by way of Mercy From Us, and by way Of (worldly) convenience (To serve them) for a time. When they are told, "Fear ye that which is Before you that which Will be after you, in order That ye may receive Mercy," (They turn back). Not a Sign comes to them From among the Signs Of their Lord, but they Turn away therefrom. And when they are told, "Spend ye of (the bounties) With which Allah Has provided you," the Unbelievers Say to those who believe: "Shall we then feed those Whom if Allah had so willed, He would have fed, (Himself)? Ye are in nothing But manifest error." Further, they say, "When Will this promise (come to pass), If what ye say is true?" They will not (have To) wait for aught But a single Blast: It will seize them while They are disputing Among themselves! No (chance) will they then Have, by will, to dispose (Of their Affairs) nor To return to their own people!

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The trumpet shall be Sounded, when behold! From the sepulchres (men) Will rush forth To their Lord! They will say: "Ah! Woe unto us! Who Hath raised us up From our beds of repose?"… (A voice will say:) "This is what The Most Gracious had promised. And true was the word Of the messengers!" It will be no more Than a single Blast, When lo! they will all Be brought before Us! Then on that Day, Not a soul will be Wronged in the least, And ye shall but Be repaid the meeds Of your past Deeds. Verily the Companions of the Garden shall That Day have joy In all that they do; They and their associates Will be in pleasant Shade, reclining On raised couches; (Every) fruit Will be there for them; They shall have whatever They call for; "Peace!"-a Word (Of salutation) from a Lord Most Merciful! "And O ye in sin! Get ye apart this Day! "Did I not enjoin On you, O ye children of Adam, that ye Should not worship Satan; For that he was to you An enemy avowed?

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