Joana Rêgo e a paisagem: “vais mas não voltas” - Galeria fuga pela escada – Guimarães

May 28, 2017 | Autor: M. Lambert | Categoria: Estética, Arte Contemporanea, Pintura, Paisagem, Filosofia da paisagem
Share Embed


Descrição do Produto

Galeria fuga pela escada – Guimarães Novembro 2003

Joana Rêgo e a paisagem: “vais mas não voltas”

“A paisagem em volta esvaziada de sentido, reflectindo-se nos meus 1 olhos, brotava dentro de mim…” “…porque uma paisagem brota do seu mesmo mito de paisagem.”



 

2

Quero marcar o meu território. (Não possuo qualquer carta topográfica do que me rodeia senão dentro de mim.) Organizei-o em quadrados e rectângulos de relva e noite: uns atrás dos outros e para a frente (ou para trás). Depois, como não me pareceu convincente, fui pontualizando as superfícies com os sinais que quem sabe, entende. A relva é a força bruta, a irrupção da terra não domada. Marquei a paisagem e recortei-a em tamanho de fotografia XL – ampliações próprias para gigantes de contos-de-fadas em versão séc. XXI. Os alvos (é terrível quando não existem), as secções anatómicas desenhadas (recordamnos a matriz), as casas esquematizadas (formas simples como parte integrante da linguagem universal que é o visual) ou as árvores imprimidas (efectivação dos múltiplos, não exclusividade da marca) são sinais que se combinam, de acordo com vontades e intenções não absolutamente esclarecidas. (Não foi por acaso que não mencionei os bumerangues; adiante eles vão ser nomeados e voltarão.)

A paisagem, por convenção de género, integra um complexo sistema de correlações entre diferentes elementos naturais ou arquitectónicos e entre tons, luz, cores e medidas; não se limita ou esgota na apresentação isolada de tais elementos. No presente caso os elementos naturais associam-se a ícones deliberados, daí resultando uma agregação polissémica enriquecida. 



Os sinais não são subjugados pela paisagem; tampouco a dominam; parece-me que convivem entre si e com a paisagem. Sabem quando ceder ou ocupá-lo; quanto espaço a ganhar para os outros, sendo-lhes sempre possível voltar. Carecem encontrar-se para si o valor atributivo, simbólico. Todos estes sinais visuais dependem da definição vivida do tempo - superando-o todavia - e permitindo-lhe sentido e persistência; garantem-lhe conservação, resistência e duração. “O impulso da duração é o que me tem faltado. Quem nunca sentiu a duração não viveu. A duração não aliena, leva-me ao caminho certo. (…) A duração não existe na pedra antiquíssima e eterna, mas sim no transitório, 3 no que é brando e sensível.(…)”

1

Yukio Mishima, O templo dourado, Lisboa, Assírio & Alvim, 1985, pp. 148-149 Herberto Hélder, “guião”, Photomaton & Vox, Lisboa, Assírio & Alvim, 1995, p.140 3 Peter Handke, Poema à duração, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, pp.77-79 2



   

No decurso dos caminhos e na duração sucessiva, a paisagem vai-se transformando. À medida que se caminha, vão-se agarrando diferentes momentos de espaços anteriormente desorganizados, em referência a quem ainda não os percorrera ou conhecia. A necessidade de intervir na paisagem está para além das gerações e das culturas. A sede de a consagrar encontra-se presente ao longo da história, apesar de se revigorar em distintas formulações estéticas. Em cada tempo, em cada história, em cada sítio, nada impede que a solidificação de seus elementos ou a potencialidade da aparência pictural, avolumem a ordenação racional da sua legibilidade visual, numa perspectiva aberta e geradora. A paisagem possui para além de uma referencialidade pictórica (veja-se reconhecimento do natural) uma função imaginária; não é tão-somente documentário; é uma evasão do mundo habitual, albergando nas suas aparências conteúdos íntimos. Na encruzilhada de estatismo e dinamismo, sempre foi bem-vinda a condição deambulatória ou direccionada que as caminhadas ou os passeios proporcionam na experiência da paisagem como continente do humano em trajecto: é intrínseca à tradição literária e filosófica europeia. Basta evocarmos Baudelaire e Walter Benjamin, assim como se convocam os mais recentes percursos de Hamish Fulton, Robert Smithson ou Richard Long. Salvaguardadas as diferencialidades estéticas e plásticas, a verdade que lhes é comum, coincide nessa compulsiva afectação de movimento que do exterior recicla a interioridade e conhecimento pessoais. “Each time he took a walk, he felt as though he were leaving himself behind, and by giving himself up to the movement of the streets, by reducing himself to a seeing eye, he was able to escape the obligation to think, and this, more than anything else, brought him a measure of 4 peace, a salutary emptiness within.”





O acto de caminhar, de andar, promove as reorganizações dos movimentos internos do indivíduo em constante perturbação. Quando assim se entende, estanca-se o passo e regista-se o envolvimento. Ganha-se propriedade sobre aquilo que nunca é nosso. Assume-se o artifício de uma posse virtual, quanto virtual é sempre qualquer intenção de possuir. No caso da pintura de Joana Rego verifica-se que a deambulação, os caminhos percorridos, são mais de teor interior e não necessariamente movimentações externalizadas. Mais, os seus trabalhos espelham uma capacidade de fixação, uma retenção de momentos de paisagem, sem lhes exigir uma deambulação sem termo ou fim. É uma espécie de apologia da concentração em excertos desejados e significativos, tomados na sua substância. “A planura é água que escorre entre a erva, um jantar de todas as coisas. Cada planta e cada pedra vivem imóveis. Escuto os alimentos e eles alimentam-me as veias

com todas as coisas que vivem nesta planura.” 5



4 5

A paisagem auxilia, portanto, a construção da identidade, quer em termos singulares, quer colectivos. O facto de ser um género privilegiado e recorrente na historiografia da pintura (e literatura) ocidental conferiu-lhe um valor acrescentado nos tempos mais recentes. Estes, servem para realçar, de forma convicta, as diferentes versões estilísticas que o género glosou e que lhe garantem, precisamente, essa mesma viabilidade de construção e restituição plurais. Ou seja, perante desconfianças, ambições ou

Paul Auster, “City of Glass”, The New Trilogy of New York, London, Faber & Faber, 1987 Cesare Pavese – Trabalhar cansa, Lisboa, Ed. Cotovia, 1997, pp.71-73







desencantos, as diligências representacionais a realizar, em prol de uma asserção plástica e poética da paisagem, são movimentos psico-afectivos profícuos e fiáveis. Mas para que se cumpra uma tal função, a paisagem deve ultrapassar questões de verismo ou ficcionismo, deve transcender querelas fundadas, quer na cega procura de uma genuidade representacional, quer na máxima adulteração do real. Não interessa se mente ou não, se ilude ou não, se esgota ou não a capacidade de ver. A paisagem ascendeu a uma analogia antropológica efectiva, adequada às deliberações de autor. Através dos contributos inovadores trazidos pelas múltiplas abordagens artísticas (e correspondentes linguagens) durante as últimas três décadas e meia do século XX, a paisagem em si viu-se necessariamente diferente, embora persista em crescer sobre o seu passado orgânico e civilizacional. Continua a supor um parcelamento compósito, consignado através de excertos de paisagem. Devidamente acertados com as preocupações de uma composição interna pictural, mais ou menos distantes da sua aparência imediata, os fragmentos escolhidos da paisagem procriam-se. As incursões na paisagem estética reflectem intencionalidades delimitadas ou decisões flexíveis, pretendendo aproximações de distinta matriz: por via da ironização; por via da reciclagem filosófica; por via da crítica histórica da pintura (incidindo sobre si mesma). Mas significam, também, um retomar, um retorno, através da asserção da propriedade autoral, à própria pintura como acto e concepção. Eis alguns exemplos diligenciadores que determinam a natureza e características do impulso da acção criativa concretizado:  Detalhe/aproximação  Visão global/afastamento  Rigor/apropriação aparencial “directa”  Transformação/deformação/transfiguração mesmo…

Cruzam-se as directivas sócio-ecológicas, antropológicas, históricas com as artísticas, fenomenológicas (da percepção) e esteticistas. Ganham-se as invenções da paisagem, parafraseando Anne Cauquelin. Assim, enuncio algumas reinvenções (mais do que invenções, talvez) susceptíveis de reencontro num processo realizado pela tríade “dentro-fora-dentro”: o o o o o o o

Paisagens categorizadas, transpostas sobre suas qualidades; Paisagens restabelecidas, a partir da sua obliteração; Paisagens edificadas, feitas em versão trompe-l’oeil; Paisagens esquecidas, sobrepostas às retenções privadas; Paisagens mistificadas, segundo modelos poéticos; Paisagens inacessíveis, quase intangíveis sobre as suas dobras sucessivas; Paisagens dissolvidas, por via alquímica levadas à auto-gnose.

Os trabalhos de Joana Rêgo explicitam – sob diferentes perspectivas de leitura - aspectos que procedem de alguns dos moldes acima enunciados, combinando-os de acordo com uma intencionalidade de fronteira.





Quando do aparecimento da paisagem na pintura ocidental, procurou-se-lhe a simulação da aparência do real em volta. O estabelecimento deliberado da paisagem na pintura implicou – no Renascimento, por excelência – uma dedicada exactidão do espaço em via de representação. Passado o tempo em que se recorria a complexos instrumentos de parentesco científico e técnico para uma mais rigorosa afectação visual, a paisagem presentifica-se ou sublima-se consoante os seus autores. Joana Rego aplica-se a ambas vertentes [presentificação e sublimação]: os seus relvados condensam detalhes picturalistas, encerrando propostas de revelações quase psicanalíticas. São objectos, são matérias, embora não desdenham a situação de superfície quase sem espessura. São uma espécie de pele que reveste propósitos a ganhar. Nutrem-se de si mesmos. “Mes yeux ouverts, à la façon d’une bouche affamée, dévorent la terre et le ciel. Oui, j’ai la sensation nette et profonde de manger le monde

avec mon regard, et de digérer les couleurs comme on digère les 6 viandes et les fruits. »







 

A sua presentificação personalizada transmite uma noção de segurança notável. A autora recupera-se a si mesma, em episódios vividos, situados em patamares de tempo. Não se trata de aliciar as questões epistemológicas de um tempo mítico, circular, mas antes aceitar a linearidade que ao humano está inerente. E de o registar em excertos de paisagem escolhida. o Após o tempo da paisagem como simulação, prevalece a concepção da paisagem como construção: interior ou exterior, mas construção. o Após o tempo da paisagem como cópia, prevalece a concepção da paisagem como invenção: o que implica a fragmentação do espaço envolvente, a fragmentação do horizonte visual – e respectiva selecção trabalhada no plano da imaginação e ideia. A irreversibilidade para a recuperação das vivências no tempo passado longínquo, ou mesmo do passado próximo versus efectivação do tempo do presente, são fonte geradora de produções positivas. Ultrapassa-se, assim, qualquer constrição afectiva, vendo exaltada a extensão ou retenção [da paisagem] em substantiva cumplicidade. A paisagem afirma a celebração e predominância de pulsões que direccionam a acção, a atitude e suas concretizações. Por isso, estes excertos de paisagens são definitivos, conclusivos e imperativos: “vais mas não voltas”. A paisagem visibiliza a história pessoal, vertida em imagens restritas, através de uma celebração imagética de superfície. Superfície em que a tridimensionalidade do sujeito autoral se supõe e adensa. Não existem protagonistas nestas paisagens. Apenas, se assim o entendermos, se verificam remissões antropológicas concentradas nessas anatomias de corte longitudinal que evocam a racionalidade quase dominante e traduzem a marca individual da autora como elemento da cadeia humana. Contudo, as paisagens são seres independentes que subsistem sem a indexação à autora, embora a sua identidade seja imprescindível para a sua génese. As paisagens são exorcismos, cruzando (confrontando) os domínios clarificadores da razão e os domínios de uma criptografia anímica voluntariosa. « Le paysage a sa partie morale et intellectuelle comme le portrait; il faut qu’il parle aussi, et qu’à travers l’exécution matérielle on éprouve 7 ou les rêveries ou les sentiments que font naître les différents sites. »





As paisagens podem prescindir do efeito bumerangue? Pelo que nunca vão, para nunca voltarem? Ficam lá, ali? Nunca se tem a certeza de onde eles vão cair: até certo ponto contrariam o sentido fixo, estagnado de uma paisagem estipulada. Provocam reverberações em cenários intensificados através de uma solidez cromática notória; através de uma definição gráfica; através do domínio de um vocabulário simbólico que é personalizado pelas especificidades de ricas associações de elementos previamente isolados. As paisagens, na sua clarividência, são nuas e cheias de uma crueza de sentimentos que desdenham qualquer melancolia saturniana. Não correspondem a um esforço de transcrição do real visto. São verdadeiras forças da natureza, agarradas de dentro de si, retidas pela pintora e despejadas, desapossadas para o nosso olhar. Maria de Fátima Lambert Porto, 27 de Outubro 2003

6

Guy de Maupassant, « La vie d’un paysagiste », Gil Blas, 28 Septembre 1886. Chateaubriand, « Lettre sur le paysage en peinture » (1795), Paris, Ladvocat, 1830 in Oeuvres Complètes, XXII. 7

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.