João Cutileiro, ed. ampliada (com Cutileiro fotógrafo)

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Descrição do Produto

João Cutileiro 1991. «Jogos de guerra» - «Recordações de Guerra", Centro de Arte Moderna, Expresso/Cartaz, 20 Abril, título de capa: «As outras guerras de João Cutileiro»

1993. «Vinte anos depois» - D. Sebastião, 1973-1993 ― maquetas de esculturas para espaços públicos, Centro Cultural de Lagos. Expresso/Revista, 28 Agosto

1995. «Metro-arte» - Marquês de Pombal, Metropolitano de Lisboa, Expresso/ Revista, 25 Agosto

1997. «Um lugar na cidade» - João Cutileiro construiu uma fonte no cimo do Parque Eduardo VII. A evocação e homenagem ao 25 de Abril só podia ser um antimonumento - Expresso/Cartaz, 3 Maio

1999. « De Mapplethorpe a Cutileiro» - «Flores — Homenagem a Mapplethorpe», Museu de Évora - entrevista, Expresso/Cartaz, 18 Dezembro

2000. «Mundos paralelos» - «Macho—Fêmea», Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, Expresso/Cartaz, 29 Abril

2002. «A prisão e o voo» - «Pássaros», Museu do Traje, Expresso/Cartaz, 3 Agosto

2005. «Um centro periférico» - “Lagos, Anos 60-80” (Cutileiro, Bravo, Lapa e Palolo), Centro Cultural de Lagos, Expresso/Actual, 23 Julho e notas de várias 1993 a 2006, Expresso

2008 - «João Cutileiro fotógrafo» - prefácio do catálogo da galeria P4 Photography em 2008, revisto e um pouco ampliado - blog. 05/01/2013

2013 - Grupo de Évora - folha de sala - exposição na Pequena Galeria e itinerante (Lisboa, Évora e Sines)

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O D. Sebastião de Lagos D. Sebastião, 1973-1993 ― maquetas de esculturas para espaços públicos, Centro Cultural de Lagos. Expresso/Revista 28 Agosto 1993, pp. 26-27

Vinte anos depois Para comemorar os 20 anos do monumento a D. Sebastião, que derrubou as regras da estatuária do Estado Novo poucos meses antes do 25 de Abril, o Centro Cultural de Lagos reuniu em exposição as maquetas feitas por João Cutileiro para esculturas a instalar em espaços públicos. O escândalo já foi esquecido, mas a idade não lhe pesa LAGOS celebra o aniversário do D. Sebastião de João Cutileiro que se ergue na Praça Gil Eanes com uma exposição de «maquetas de esculturas para espaços públicos», em companhia de fotografias das obras executadas, quando o foram. Apresenta-se no Centro Cultural da cidade, que, por coincidência, acolhe também uma segunda mostra comemorativa de outros 20 anos, os do Expresso. Para Cutileiro, a simultaneidade das exposições faz algum sentido. «Não é por acaso que nelas se celebram os 20 anos do D. Sebastião e do Expresso - nós somos ambos precursores do 25 de Abril. Eu costumo dizer por graça que o MFA, em 73, veio ter comigo e pediume: 'fazes uma estátua controversa, pões na praça de Lagos e se ao fim de seis meses ainda lá estiver é porque isto já está podre e nós podemos entrar'. Embora seja uma graça, também é a realidade: tenho a impressão de que, cinco anos antes, aparecia uma grua e aquilo vinha abaixo.» Vinte anos depois, o D. Sebastião não é só uma estátua duplamente histórica, é também um exemplo de como a «Situação» e a «Oposição» se enfrentavam em todos os domínios da sociedade. E era sob o primado da política que se opunham, em torno desse preciso monumento, o modelo institucional da estatuária e a possibilidade da inovação na escultura portuguesa.
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Estava-se em 1973, em Setembro de 1973, e era a presença de Américo Thomaz que devia assinalar, entre a multidão saída à rua, o centenário de Lagos. Instalada por iniciativa da Câmara, graças à relativa autonomia de decisões que o marcelismo permitia, a obra de Cutileiro era «um dos melhores monumentos portugueses, por razões plásticas e intelectuais também» e uma «ruptura escandalosa» com as regras vigentes, como escrevia José-Augusto França, aparecido em sua defesa no «Diário de Lisboa» e na «Colóquio-Artes», antes de que se avolumassem as pressões apostadas no derrube da estátua irreverente. Tratava-se, de facto, de uma peça realizada à margem dos cânones com que a estatuária do Estado Novo trocara as pobres tradições naturalistas vindas de Oitocentos pela procura de uma pretensa austeridade neoclássica, bem representados por um Infante D. Henrique hieraticamente sentado em bronze logo a cerca de 500 metros, com a assinatura de Leopoldo de Almeida e data de 1960.
 A inovação (e não estilização decorativa de volumes, essa tolerada) era imediatamente visível na construção articulada com mármores de cores diferentes, em vez do talhe de um bloco único, no corte mecânico deixando à vista as marcas dos instrumentos, em lugar do «bom acabamento» obrigatório, e na ausência do pedestal que respeitosamente elevasse a figura acima dos comuns mortais. Mais grave ainda era a figura ambígua de menino com que o rei se retratava miticamente, imberbe e inseguro, entre o sonho e o susto, anti-herói desengonçado, com as mão perdidas nos guantes e o elmo desmesurado caído aos pés.
 Era a representação de um rei, mesmo se de um rei vencido, e a sua presença devia ser autoritária e institucional. Não é. E tocava-se então em coisas sérias ao revisitar o seu mito.
 «O D. Sebastião era o símbolo da derrota de África. Essa era uma das razões por que eu mais gostei da ideia de fazer o D. Sebastião. Se fosse outro rei qualquer, tinha de me informar historicamente, de fazer pesquisas... O D. Sebastião era já um mito, era um misto de derrota e de esperança.» JOÃO Cutileiro vivia então em Lagos, desde 1970 em permanência (e estivera desde 1959 «em 'navette'» entre Londres e Portugal, onde descobrira «um pequeno paraíso na terra»). Já vinha de longe a ideia de fazer uma escultura para aquele local, e três maquetas para um Pescador, de 1969, estão na exposição a prová-lo: «Pensei que seria uma bonita maneira de ocupar aquele espaço, que estava mesmo a pedir estátua, sem ser um Leopoldo de Almeida, ou um monumento ao Tenreiro, ou qualquer coisa do 4

género. Aquela praçazinha tinha-a debaixo de olho, e ofendia-me que fossem lá meter o trabalho de outro escultor.»
 Foi então que surgiu a oportunidade da comemoração dos 400 anos da cidade e o convite do presidente da Câmara, José Figueiredo Luís, marcelista e amigo pessoal, para fazer uma medalha. Desta se passou à estátua, por insistência de Cutileiro, que praticamente a ofereceu, pagandose apenas do material e horas de trabalho. Os anos que se seguiram não envolvem ainda o D. Sebastião na imobilidade de algo já visto, integrado pela aceitação reverente do peso da história. A surpresa pública mantém-se perante aquele corpo insólito em figura de boneca articulada, talvez «parecido», talvez impróprio de um rei ou de uma estátua, que ao mesmo tempo marca fisicamente um espaço e cumpre-desafia a antiga função segurizante e sacralizadora associada à ideia de monumento - no qual a grandeza da escala faz parte de um mesmo sistema simbólico, ligando a imagem e o discurso numa ostensiva relação conceptual com o sítio (Rosalind Krauss).
 Adivinha-se, por outro lado, que para a crítica do tempo, que assistia com uma distância incomodada à consagração pelos coleccionadores de uma carreira realizada à margem das «correntes», o enfrentamento político terá permitido ultrapassar os conflitos teóricos que se situavam no seu próprio terreno, a respeito da invenção em escultura ou na arte em geral. Embora J.-A. França tivesse admitido a possibilidade de «uma nova monumentalidade figurativa», a impressão que hoje se tem é de que, em geral, se despejava a criança com a água do banho. Ou seja, com aquele monumento único, tratar-se-ia apenas de pôr termo ao academismo da estatuária do Estado Novo, sem que se entendesse o renovar da tradição moderna da escultura ou a singularidade de toda uma obra. Cutileiro viria a declarar, por provocação, o seu abandono da criação artística, passando a identificar-se como «produtor de objectos decorativos para a burguesia intelectual».
 Pesava sobre o entendimento crítico de então, quando se não falava ainda de pós-modernismos, uma longa sequência de interditos que constituíam a suposta evolução modernista na escultura: a figuração, o corpo, a semelhança, a verticalidade, a marca do fabrico, a prática artesanal, a expressão, o objecto construído, ou simplesmente «o escultural», cujo apagamento pode passar por ser o destino decisivo da escultura, numa história de impossibilidades crescentes.

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«Eram interditos para uma crítica talvez muito intelectual a que eu nunca liguei. Nunca achei que fossem interditos, não os sentia na pele. Para mim, havia coisas interditas, por exemplo, em relação à estatuária do Estado Novo, pelo lado ideológico e formal, aquelas formas que se usavam na estatuária. Havia umas pessoas mais benévolas que diziam que o [Francisco] Franco era bom e os outros é que eram maus, e que faziam umas hierarquias dentro daquela porcaria toda; mas, para mim, eram todos muito maus, não havia nada de aproveitar. Nem o Martins Correia, nem o António Duarte... Quando jovens, certamente que uns eram mais talentosos do que outros, mas como tinham todos optado por fazer aquele frete...» Se a obra de Cutileiro retomava a tradição da estatuária, centrada na representação do corpo, a seu modo prolongando investigações de Brancusi e de Moore, mas já sem nostalgias de um qualquer passado arcaico de formas ideais ou aspirações a um classicismo intemporal de «serena espiritualidade» (Margit Rowell), uma observação mais ideológica que atenta aos objectos não permitiria reconhecer o que de inovador surgira com os meios mecânicos de corte da pedra. De facto, ao inventar um outro processo de talhe directo, com recurso às serras eléctricas, e de construção por montagem de fragmentos, Cutileiro reencontrava-se com toda a problemática da colagem e da «assemblage», transferindo-a para a pedra e para a figuração, ao mesmo tempo que inaugurava um modo de produzir escultura que substituía técnicas condenadas pelos seus excessivos custos (a passagem do gesso a bronze, o talhe do bloco único). Assim se viabilizava uma nova prática da escultura e, desde logo, a sua própria sobrevivência como escultor - facto inédito, na sua independência do ensino e da encomenda oficial. E também um escândalo perante certas fatalidades portuguesas. «A própria encomenda estava vedada aos artistas. A palavra encomenda já trazia uma conotação chata: era o emprego. As pessoas em Portugal não podem gostar do trabalho de que se ganha dinheiro, faz muito parte da cultura e da mentalidade portuguesa. Ganhar dinheiro era uma chatice, nós devíamos ser todos artistas e livres... Mas nunca me fez confusão ganhar dinheiro e gostar dos trabalhos que fazia.» ENTRETANTO, a celebração do aniversário, promovida por outro escultor, Xana, de novo com o apoio da Câmara, é também a oportunidade para observar que o D. Sebastião teve escassíssima descendência. Foram muito poucos os monumentos erguidos entretanto por João Cutileiro, como se, em 6

questões de gosto oficial e de encomenda de escultura pública, decorativa e/ou comemorativa, rapidamente se tivesse voltado à mesma vontade de celebrar o passado com a reverência do conservadorismo estético, se impusesse a mesma marcação autoritária de espaços (e o formalismo abstraccionista pode fazê-lo diligentemente), ou, pura e simplesmente, como se nada mudasse no que era mais simplesmente a incultura artística. Como se comprova em Lagos, mesmo que a exposição não seja exaustiva, as encomendas foram raras entre 73 e 93, embora Cutileiro multiplicasse as suas peças monumentais em espaços privados e públicos. «Ofereci aquela, mas não poderia oferecer muitas mais. Eu não me mexo para as encomendas, mas o certo é que as estátuas, os monumentos públicos, aparecem feitos. Se calhar, em todas as sociedades é assim; se lermos a autobiografia do Cellini, vemos que na Renascença aqueles meninos se envenenavam uns aos outros para sacar a encomenda. A mim, talvez por uma herança de passado antifascista, como se diz, repugna-me andar a esfregar os ombros com o poder para sacar as estátuas. Há pessoas responsáveis com quem tenho o maior dos prazeres em lidar, há outras que não, e eu transmito, um pouco como os cães, um cheiro que diz às pessoas que não gosto delas, e eles não me encomendam. De facto, as grandes coisas nunca vêm para mim.» Em Lagos, são em número de 19 as maquetas apresentadas, ou 14 se se descontarem as variantes de um mesmo projecto, mas em apenas oito casos se verifica a passagem à execução, documentada em fotografias. E isto apesar da cronologia da exposição começar muito antes do D. Sebastião, logo em 1962, apontando com as peças iniciais duas direcções constantes da obra de Cutileiro.
 A primeira maqueta, ainda em bronze, é de uma estátua equestre pensada para o alto do Parque Eduardo VII. Trata-se do exemplo inicial de uma longa série de cavaleiros, que, como se viu na retrospectiva de 1990, continuaram em cimento fundido e em «polyester», primeiro, em mármore, depois, a partir de 67, e mais insistentemente em 89-90, como foi a seguir mostrado em Almancil, sob o título «Homenagem a Paolo Uccello». Na presente antologia, o tema só regressa num Monumento a D. Afonso Henriques, já de 92, mas o certo é que a designação «maqueta para estátua equestre» foi insistentemente usada em pequenas obras com destinos privados, expressando assim a vontade de enfrentrar um dos desafios superiores da estatuária clássica.
 Com a segunda das obras expostas, uma mulher reclinada, em maqueta de 68 para o Hotel do Alvor, onde o modelo clássico é violentamente sujeito 7

às fragmentações da «assemblage», abre-se a via para uma outra longa série de esculturas desenvolvidas sem necessidade de projecto prévio. O mesmo, aliás, sucederá com os «Guerreiros», peças monumentais também insistentemente exercitadas, de que não se mostram maquetas em Lagos. DE FACTO, esta exposição confirma que a maqueta, imposta pela encomenda, não faz parte dos processos de trabalho preferidos pelo escultor. As suas peças, na generalidade dos casos, surgem directamente em dimensão monumental sem estudos feitos em miniatura.
 «A manufactura da maqueta é uma limitação horrenda. Quando um tipo tem a maqueta aprovada dá muito gozo, mas depois sinto-me um mero lacaio de mim próprio.» É possível sempre alterar o projecto em andamento, mas Cutileiro entende a solução como «uma quebra de compromisso»: «Se aqueles senhores exigiram uma maqueta, eu tenho a obrigação moral - não digo artística, mas moral - de apresentar uma coisa minimamente conforme a maqueta. Já me aconteceu, durante a execução, pensar que talvez outra solução seja melhor, e então páro a execução, faço uma nova maqueta e vou apresentá-la. Mas repete-se o problema. Uma vez aprovada, estou tão limitado como antes.» Outra constatação: a figura histórica só existe na obra de Cutileiro associada à encomenda, e por isso é rara. Descontando um ou outro retrato, contam-se apenas o D. Sebastião e um Camões de 1980, encomendado para Cascais no tempo de Vasco Pulido Valente, mais um Monumento a D. Sancho, já de 1990, em Torres Novas, e o Monumento a José Fontana, do mesmo ano, no jardim do mesmo nome, em Lisboa, onde um retrato gravado marca um feixe de colunas de sugestão vegetal. Em maqueta ficou o referido D. Afonso Henriques, de 92, e a exposição termina com uma Inês de Castro já de 93, que é outra magnífica interpretação de um mito nacional. E também um curiosíssimo exemplo da transformação que ocorre entre a maqueta e a obra terminada, quando nenhum compromisso prende o escultor: o volume inteiro do corpo ou manto real, onde, na falta de rosto, a coroa vem a assentar directamente na larga gola, acaba por dar lugar a uma «assemblage» de volumes articulados na peça construída.
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Pelo caminho estão os projectos para duas fontes monumentais, de 87 e 88, a segunda instalada na sede da Bonança, em Lisboa, obras decorativas e «abstractas», tal como o são três pórticos para Macau, de 89, não executados (título: Macau), e também o Monumento a Mértola, de 91, instalado. Peça original e única é um Dragão, de 90, previsto para o Jardim do Canal dos Patos, em Macau, uma divertida figura de animal construída em grosseiros blocos encaixados, sobre duas bases desiguais que surgem integradas no movimento da peça.
 Por mostrar, por agora, ficou uma obra pensada para a nova sede da CGD sob a forma de um friso decorativo, que viria a ser cancelada em fase de corte orçamental no edifício; em alternativa surgiu a hipótese de uma peça monumental para o exterior do edifício, mas o desenho prévio não foi aprovado. Cutileiro insistiu em executar o projecto, por sua conta e risco; com os seus 5,5 metros, ficou a ser a sua maior peça de sempre.
 «Um escultor gosta de fazer coisas grandes. Como eu ganho muito dinheiro e tenho boas condições de trabalho, posso-me permitir fazer coisas grandes sem ter de estar à espera da encomenda. Faço-as e depois vendo-as. Estão prontas, são grandes, são aptas para um lugar público, são monumentais, e quando me vêm encomendar uma peça eu digo: 'Encomendar para quê? Está aqui esta, que serve perfeitamente'.»
 Vinte anos depois, o novo regime não tornou Cutileiro um escultor institucional.

Jogos de guerra "Recordações de Guerra", Centro de Arte Moderna, Expresso/Cartaz, 20 Abril 1991, pág. 12 e capa (As outras guerras de João Cutileiro) «Os Guerreiros» são 11, um colocado no exterior do CAM e dez no respectivo átrio, desprendidamente expostos num cenário de acaso, em trânsito entre quem passa para o jardim ou o museu - mais que uma exposição é uma comitiva que veio acompanhar aquele que ficará nos jardins da Fundação. Na primeira linha, o rei e a rainha, e a seguir talvez um bispo e os peões, como se de peças de tabuleiro de xadrez se tratasse. Erectos, de armas em riste, têm também o ar façanhudo de valetes das 9

cartas de jogar e a sua construção em blocos sobrepostos e articulados aproxima-os, por outro lado ainda, dos jogos de armar infantis. São figuras medievais de lança e escudo, Foto António Pedro Ferreira

armadura, capacete e viseira, e são imagens de guerra e caricatura de guerreiros, desengonçados robots de pedra. Não se sabe se mais ameaçadores ou paródicos, são monumentos que representam todos os heróis e aventuras da História e também o seu reverso pícaro, são anónimas estátuas de guerreiros talvez troçando de outros ídolos com nome e rosto, tal como a estatuária oficial os celebrou. Na retrospectiva que a Fundação apresentou há um ano eram as últimas peças saídas do atelier de Cutileiro, à mistura com pequenos cavaleiros que prometiam estátuas equestres. Chamavam-se eles, então, Securitas e

retomavam, em pedra e com os processos industriais de a modelar (cortar e colar, aliás), um tema antigo que esboçara em poliester e pó de bronze nos anos 60 - e note-se que são de guerreiros quase todos os raros corpos masculinos saídos da oficina. Multiplicaram-se entretanto, a par com a actualidade de modernas guerras. Cresceram repetidos e sempre diversos, na sua forma longilínea que é homenagem a Giacometti, desdobrando uma pesquisa de «assemblages» inéditas em pedra, tótemes imponentes nos seus equilíbrios aparentemente instáveis mas sempre, afinal, monumentais. A pedra é apenas branca, ora exibindo a rugosidade das fracturas, ora expondo-se como polidas engrenagens de série; às formas maciças soma-se a ligeireza geométrica dos fragmentos imbricados, erguidos por 10

empilhamento e articulados como «kits» de armar. Numa constante variação de processos, a simetria que consolida algumas figuras dá lugar, noutras, a um insólito equilíbrio feito de diferenças entre cada metade lateral, e outras ainda transportam a lição das formas bífidas estabelecida em tantos corpos femininos. Observe-se a correcção com que assentam algumas nas suas bases e o modo como outras irrompem directas do chão. Juntos, os guerreiros voltam a lembrar que a escultura em Portugal tem hoje um nome; depois, há discípulos, há promessas. Tal como voltam a mostrar, aos catecismos vários, que a escultura, a estatuária até, sem capotes oficiais e sem rotinas de escola, é ainda possível (mas raríssima!), em objectos feitos com invenção e com gozo partilhável. Curioso seria, entretanto, avaliar a diversidade das criações recentes que directamente se vêm enfrentando criticamente com a representação da História e dos seus mitos portugueses, desde Os Reis de Costa Pinheiro, que com estes guerreiros têm visível parentesco, passando pelo Dom Sebastião também de Cutileiro, por certas imagens de José de Guimarães, por algumas pinturas de Júlio Pomar, e pouco mais.

«Memórias»,

Galeria Valentim de Carvalho (Mês da Fotografia, Lisboa, 1993), No catálogo geral do Mês publicaram-se dois notáveis retratos, um de Álvaro Lapa, outro de Maria Cabral e Vasco Pulido Valente. João Cutileiro tinha mostrado fotografias na sua 1ª exposição, em Novembro de 1961 (que foi a 2ª, contando uma em Monsaraz e Évora aos 15 anos, em 1951), na Sociedade Nacional de Belas Artes: "25 Esculturas / Fotografias / Desenhos de João Cutileiro". O folheto que a acompanhou não trazia reproduções (o autor informa que eram praticante todas retratos). Dos "modernos" ou novos desse tempo, tinham mostrado fotografias em exposições individuais de galeria só Fernando Lemos (em 1952-53) e a dupla Victor Palla/Costa Martins (1958). Um segundo passo público (publicado, neste caso) foi dado só dez anos depois (1971) com a impressão tardia de algumas imagens de Monsaraz (as mais antigas de 1959 e outras de 63, estas expressamente feitas) no livro do irmão José Cutileiro A Portuguese Rural Society (Oxford, Clarendon Press), onde se publicaram também outras fotografias do então desconhecido Gérard Castello-Lopes "Álvaro Lapa em casa de António Caldeira", 1958 (cat. Mês da Fotografia)

EXPRESSO/Cartaz, 29 Maio 1993. «Memórias», retratos (inéditos) de amigos e familiares, 1958-70. As fotos foram-se perdendo pelas gavetas e pelas paredes (serviram até de alvo para setas), amareleceram e comeu-as o bicho. Juntas agora, traçam uma galáxia de relações, amizades e amores 11

que veremos ao sabor das identificações disponíveis a cada um: Fernando Mascarenhas (em 65), Jorge Sampaio e Karin Dias, João Cid dos Santos, Francisco Keil do Amaral, Ana Viegas, Maria Cabral e Vasco Pulido Valente, Mário Cesariny (uma parede com seis fotos de 64), Menez (Londres, 63), Reg Butler, José Cardoso Pires (60), Ruy Cinatti, Gerard Castello Lopes, etc, e um auto-retrato legendado como «Paul Newman». Por vezes, as cabeças deixam adivinhar um olhar escultórico, a caminho de outros retratos (Helder Macedo, Azevedo Gomes, Keil do Amaral). Com os retratos de Lemos, tão diferentes, estas fotos privadas levantam um véu sobre um passado oculto, aqui apercebido como um tempo feliz. São pequenos grandes nadas. 5 Junho: 100 fotografias que traçam um percurso de cumplicidades pessoais, transportando a memória do seu uso (as paredes, os álbuns, ou até o alvo para setas) e um seguro valor de documento sobre os meios intelectuais do seu tempo. Mas é também a procura do sentido do retrato que nelas se encontra, na diversidade dos enquadramentos e das poses «colhidas do natural», ao mesmo tempo que o olhar do escultor se adivinha. Cutileiro mostrara fotografias numa exposição em 1961 e fez parte da geração dos «olhares inquietos» (A. Sena) — este é mais um passo na recuperação de uma indispensável memória fotográfica.

“Paisagens”, Galeria Valentim de Carvalho, 05 Junho 1993 Um escultor experimenta a paisagem como tema da escultura, o que é um desafio talvez inédito no quadro da arte não abstracta. É o Alentejo e são as pedras, material de que se acolhe e revela o seu directo fascínio: a pedra como paisagem. É ainda a pulsão de J.C. pela multiplicação dos objectos, que o leva a produzir múltiplos acessíveis para lá do círculo dos «coleccionadores» (falar em intuitos decorativos é aqui abrir a porta a reduções de pobre alcance).

«A Apresentação da Rainha», Capela do Gandarinha, Cascais, 16 Julho 1994 A estátua de Camões, realizada por J.C. em 1982, passou do interior da Câmara de Cascais para o átrio envidraçado da Capela da Gandarinha, ganhando uma permanente visibilidade a partir da via pública. Essa transferência de lugar é ocasião para a apresentação de mais um monumento (destinado ao hall do Hotel das Lágrimas, em Coimbra), a Inês 12

de Castro, que em 1993 se pudera conhecer em maquete, quando em Lagos se comemoraram os 20 anos da estátua de D. Sebastião ― é curioso que João Cutileiro só uma vez em cada década tenha podido desafiar os interditos que pesam sobre a ideia de monumento e sobre o retrato histórico (Rosalind Krauss situa em 1941, com o monumento a Apollinaire, de Picasso, a prova da impossibilidade moderna do monumento e do monumental, mas está manifestamente equivocada). «A Apresentação da Raínha» é o título da exposição, encenada com pompa e circunstância no interior da capela, parcialmente restaurada como local de actividades culturais da autarquia: sobre os degraus centrais do antigo altar está Inês de Castro, num retrato heráldico feito de blocos de pedra recortados e aparafusados, representada como rainha depois de morta, presença mítica em desfiguração já algo paródica, personagem de fábula, próxima e terrível. A precedê-la um cortejo de outras figuras de pedra, Guerreiros, Sentinelas e Cruzados, reis de jogo de xadrez e até um Professor à Saída do Palácio, estátuas dessacralizadas. 23 Julho (...) Aqui se volta a demonstrar a possibilidade da estatuária e da representação (no caso, de figuras históricas), em resposta aos interditos de algumas interpretações da modernidade. O uso do fragmento e da «assemblage», evidenciado o processo construtivo (numa desconstrução da antiga autoridade do monumental) e a presença de um olhar irónico sobre o mito, reinventando-o criticamente, permitem retomar uma tradição com as armas do presente. 30 Julho (...) É mais uma peça essencial numa galeria de figuras históricas que inclui D. Sebastião (Lagos), Camões (Cascais, agora no átrio exterior da Capela da Gandarinha), D. Sancho (Torres Novas) e D. Afonso Henriques (Versailles).

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Metro-arte Expresso/Revista, 25 Agosto 1995, pp. 66-71 AS inaugurações das novas estações da Rotunda e de Sete Rios tiveram o conveniente aparato político e deram conta do crescimento e modernização da rede do Metro. Convém, no entanto, situar também essas inaugurações entre os acontecimentos artísticos do Verão lisboeta, prevenindo que as referidas estações se devem visitar por si mesmas, independentemente dos acasos da circulação, para descobrir três notáveis criações de artistas plásticos — um escultor, João Cutileiro, e dois pintores, Menez e Júlio Resende. São exemplares intervenções decorativas em espaços colectivos, obras raras num tempo em que a «arte pública», sem os constrangimentos de outros tempos, tem descido a níveis de indigência insuspeitável. Trabalhos de artistas com longas carreiras, elas traduzem, de modos naturalmente diferenciados, situações de enorme investimento criativo, estabelecem eficazes relações com os lugares ocupados e impõem um muito directo poder comunicativo, condição necessária em lugares de intensa visibilidade. Nenhum deles se limitou à autocitação de um «estilo», à transferência e ampliação de motivos tomados em obras anteriores; pelo contrário, todos reagiram às condições da encomenda como um inédito desafio, fazendo das condições do lugar, da escala e dos materiais de trabalho a rampa de largada para obras de fôlego. (...) Como já sucedera em outras recentes estações do Metro, abandonou-se também a ideia redutora de que as obras instaladas se destinam apenas a utentes apressados, a quem perturbariam as intervenções artistísticas que não se reduzissem à função de «animar» lugares de passagem. Quando tal argumento se usou em relação às estações iniciais de Maria Keil, ele escondia prevenções censórias a respeito das possíveis figurações da artista; por outro lado, foram também as pesadas restrições financeiras de então que impuseram os revestimentos padronizados sobre efeitos gráficos e ópticos, que a artista trabalhou com excepcional talento. Novas liberdades e outros meios financeiros permitem hoje diferentes atitudes, aceitando os pintores a responsabilidade da decoração sem a entenderem como constrangimento à liberdade criativa. É de grande decoração que se trata. 14

JOÃO CUTILEIRO instalou na antiga estação da Rotunda três figuras escultóricas do Marquês do Pombal que são uma só imagem emblemática, repetida com ligeiras variações de acaso, divertidíssima trindade a descobrir sucessivamente no interior dos quatro vãos existentes entre as plataformas, diante de quem espera o metro ou nele circula. O Marquês é um vulto recortado, que se vê de ambos os lados da gare igualmente de costas, destacando-se da figura quase plana o volume da larga cabeleira feita de fiadas de cilindros de pedra. Com a aparência de um corpo articulado ou boneco de montar, que é acentuada por duas peças de encaixe nas costas da casaca, ergue-se sobre pernas-colunas e agarra com firmeza numa das mãos um rolo de papel. Nos subterrâneos da praça consagrada ao Marquês, é o exacto oposto do excesso retórico do monumento que a República lhe quis erguer, e que já seria inaugurado ao tempo de Salazar, quando outro gosto estatuário se começava a impor, mais modernizado e com outros programas ideológicos (o concurso para a obra data de 1914 e a conclusão tardou até 1934). Sem o leão da estátua de Francisco Santos, «símbolo do poderio e da força», o Marquês de Cutileiro não conserva a pose majestática nem outros atributos de poder da iconografia tradicional — basta-lhe a cabeleira imponente e o decreto na mão fechada. Descido do pedestal, numa imobilidade suspensa, mas enérgica, parece disposto a aceitar o novo transporte para visitar as obras da sua reconstrução de Lisboa. Peça de humor e inteligência que se entenderá na sequência de outras figurações históricas de Cutileiro, é um antimonumento contemporâneo, desconstrutor de mitos e de formulários escultóricos, que cumpre a evocação do passado com o conveniente distanciamento irónico perante as representações do poder, como o D. Sebastião de Lagos, o Camões de Cascais, o Afonso Henriques colocado em Versailles, o Sancho I de Torres Novas, a Inês de Castro do Hotel das Lágrimas em Coimbra, e outras figuras anónimas de guerreiros, cruzados ou sentinelas. Sem a ambição, ou o compromisso, do retrato histórico, que seriam absurdos naquele local, num contexto que é a da intervenção decorativa num espaço subterrâneo, o Marquês de Cutileiro parece ter-se apeado do comboio da história, fantasma despojado de literatura, indiferente às projecções contraditórias que a sua memória tem revestido. Numa das paredes da estação, redesenhada pelos arquitectos João e José Santa Rita, descobrir-se-á ainda a figura recortada, de relevo liso e construída por fragmentos, de mais um Marquês, aí de passo apressado, visto também de costas com a farta cabeleira, e esta repete-se mais seis vezes, como motivo isolado, a pontuar zonas de passagem e de saída da 15

estação. A intervenção do escultor prolonga-se ainda no revestimento das zonas de acesso, em paredes limitadas por duas faixas de pedra não aparelhada, sempre o lioz, a pedra de Estremoz usada na reconstrução de Lisboa após o terramoto. (...)

Florbela Espanca, Vários locais, Évora, 10 Dezembro 1995 O 1º centenário do nascimento é comemorado, por iniciativa do Grupo ProÉvora, numa exposição que reuniu obras de 19 artistas e se percorre por nove espaços da cidade, associando autores de percurso local a outros de mais larga notoriedade num conjunto por vezes muito desiqulibrado, mas sem que tal contrarie a oportunidade da homenagem. O retrato de Florbela por João Cutileiro (que também mostra relevos de parede e desenhos à pena) é a peça central do percurso, recolocando as questões da necessidade da figuração e da semelhança e afirmando a sua possibilidade actual: aqui o retrato procura instalar-se num difícil intervalo entre a referência física a 16

um modelo já ausente mas próximo e a representação simbólica das figuras históricas (que deram a J.C. alguns dos seus mais importantes trabalhos).

«O quarto de Fernando Pessoa»,

Casa Fernando Pessoa, 25 Maio

1996 Em mais uma instalação da série «o quarto de Fernando Pessoa», J.C. dispõe a mobília pobre e pinta-a de um branco virgem, com a pequena almofada de criança na solidão da cama larga. Sobre a cómoda, a garrafa passada a pedra e, ao lado, a esfera irregular da bola de berlim, usada para «ensopar» o bagaço — natureza morta emblemática de um prosaico dia a dia. É quanto basta para construir um cenário habitado pela releitura, sincopada e mecânica, de poemas.

Um lugar na cidade Expresso/Cartaz, 3 Maio 1997, pp. 18-19 João Cutileiro construiu uma fonte no cimo do Parque Eduardo VII. A evocação e homenagem ao 25 de Abril só podia ser um antimonumento

JOÃO CUTILEIRO prepara-se há perto de 40 anos para fazer uma estátua equestre. Uma pequena maquete em bronze, de 1962, pensada precisamente para aquele lugar, foi mostrada em Lagos, quando, a propósito dos 20 anos do D. Sebastião (1973-1993), se puderam rever os seus projectos de esculturas para espaços públicos. Agora, porém, optou por destruir o plinto que existia no cimo do Parque Eduardo VII, para onde se chegaram a prever, no regime anterior, as figuras de Nuno Álvares Pereira ou D. João I. O cavaleiro que alguém terá ainda de encomendar ao escultor irá para outro lado. Ali, no exacto enfiamento do Marquês de Pombal e do obelisco do Rossio, sobre o panorama da cidade e do Tejo, que é também um lugar fisicamente marcado pela monumentalidade do regime anterior (nas colunas de directa referência nazi e, através desta, de invocação de uma mitificada ordem clássica — recorde-se, por exemplo, o projecto de Albert Speer para as 17

portas de Salzburgo, de 1937, incluindo um plinto-altar vazio), Cutileiro instalou uma fonte que é, ao mesmo tempo, monumento evocativo e antimonumento. Não se tratava de substituir os emblemas de um regime pelos de outro, mudando apenas de sinal um acto de celebração do poder (questão ideológica e ético-artística essencial), mas de evocar o 25 de Abril no seu sentido mais decisivo de deposição de uma ditadura e de início de um projecto de democracia que será «o que nós quisermos», como diz o escultor. Para Cutileiro, «o 25 de Abril é anti-monumental por definição», no acto do derrubar um regime imóvel e autoritário (como um monumento) e de recolocar um destino colectivo nas mãos de um povo. E a sua intervenção de escultor também não quis ser um monumento no sentido tradicional de consagração formal de um momento congelado no tempo, de sacralização da distância entre os símbolos de um poder, divino ou heróico, e o espaço comum da cidade. A sua «Evocação do 25 de Abril», título presente na necessária lápide inaugural, é bem uma fonte, tipologia construtiva que põe em evidência quer o significado da permanente agitação da água em movimento quer a ideia de que «a fonte é a origem» (J.C.). A abordagem dos emblemas formais e dos seus sentidos seria inesgotável: a fonte e o cravo, o derrubar de uma forma prévia autoritária, a ideia de inacabamento de um processo em construção, a recusa de uma «mensagem» escrita (mas estão lá sinais de trabalho trazidos da pedreira), a instalibilidade da água, a forma fálica presente em qualquer obelisco ou coluna, e que aqui remete para a configuração dos megalitos alentejanos. E teria ainda de prolongar-se com absoluta coerência no equacionar da problemática da escala. A opção do escultor foi a de contrapor uma dimensão humana ao gigantismo autoritário das colunas pré-existentes, transformando um lugar votado à representação do poder (com maiúscula, tal como em algumas concepções da arte) num espaço de uso público, de lazer e de prazer. Os degraus que limitam um dos lados do lago são um convite directo a mergulhar os pés na frescura da água corrente; o arranjo do espaço envolvente é propício à permanência, inventando uma praça num lugar previlegiado da cidade mais ainda inóspito. Às memória romanas que as colunas transportam, com sentido imperial, contrapõe-se a lembrança das fontes de Roma, mas despidas das suas mitologias de Neptunos e sereias, que também não podereiam ter lugar na evocação do 25 de Abril. A intervenção de João Cutileiro, com o sentido político da sua reflexão sobre a data e sobre ideia de monumento, com a ironia própria de uma modernidade que já não quer ser construtora de mitos (ao contrário dos modernismos vanguardistas), exercida na inteligência das formas e também 18

dos seus sentidos, está, como sempre, à beira do escândalo. Tal como sucedeu com o seu D. Sebastião de Lagos, estátua de menino e equívoco herói nacional, a fonte-evocação do 25 de Abril é um monumento controverso. O que também significa, se for necessário dizê-lo, que o escultor não se limita a gerir a sua própria consagração e que a escultura continua a ser inventiva e problemática, desafiando convenções e expectativas. Vale a pena, como exemplo, considerar uma primeira expressão pública das resistências com que a obra de Cutileiro se enfrenta, contida numa crónica de Rúben de Carvalho («Capital», 29 de Abril) — mas sem de modo algum pôr em dúvida o seu «direito a dar opinião» por falta de uma qualquer alegada especialização. O que importa é ver como é decisiva a questão da escala na vontade expressa de uma monumentalidade formal que, sob a aparência de uma questão de dimensões, tem a ver com significados, concepções de poder e ideologias. Diz R.C.: «O problema do monumento ao 25 de Abril é que não tem o tamanho, a envergadura, a proporção, o significado do sítio onde está». Antes, porém, considerara que as duas colunas pré-existentes (talvez por efeito de uma contradição entre a encomenda fascista e a autoria democrática de Keil do Amaral — a qual seria essencialmente decisiva, embora sem tradução formal) «têm equilíbrio, proporção, dignidade, coerência, ao nosso lado acompanham na sua altura os quilómetros de vista...». Mas esses atributos traduzem ali a imposição de uma ordem que é a da autoridade, são as marcas de um poder que se afirma na arrogância da perfeição e da altura. Noutro passo, atribui ao D. Sebastião, apesar da sua pequena escala, «o fascínio e a grandeza de um monumento». São sinais da mesma recusa de entender a condição de anti-monumento com que Cutileiro soube expressar o sentido mais radical da sua última obra.

«Esterlícias»,

Galeria Restauração, Porto, Expresso/Cartaz 31 Dezembro

1998 A exposição já terá encerrado, mas há que não deixar em silêncio as «Esterlícias» de Cutileiro, até porque esta e outras séries de floresesculturas exigem uma apresentação mais vasta que lhes assegure ampla visibilidade. Mostram-se, ou mostraram-se, três flores em bronze e mármores (uma apenas em bronze), ao lado de três flores naturais e secas sobre iguais bases de pedra, das quais, num primeiro momento, não se distinguem. E também desenhos sobre papel e gravados em mármore, com 19

o mesmo tema. Levando ao extremo a ambiguidade entre artifício e natureza, construção e imitação (mas não cópia), J.C. põe em questão, sobre a vitalidade e a beleza das formas naturais, toda a problemática da escultura num exercício de soberana liberdade e de admirável tensão experimental.

«Flores — Homenagem a Mapplethorpe», Museu de Évora, 11 Dezembro 1999 As flores existem há muito na obra de J.C., mas em 1996 o escultor deixou-se impressionar por um pequeno livro de fotografias a cor de Mapplethorpe. O encontro esteve na origem de uma vasta série de obras que Cutileiro assumiu como homenagem ao fotógrafo e que está agora instalada na sala do Renascimento do Museu, junto ao cenotáfio de Afonso de Portugal e em relação ou confronto com as outras peças em exibição permanente. Feitas em mármore e bronze (os caules), sobre blocos torneados de pedra (vasos, jarras), são quase quatro dezenas de peças - por vezes também placas de parede, de mármores colados -, de pequeno formato e de extrema delicadeza, mesmo quando a pedra é rudemente talhada. A celebração da beleza, presente em geral na sua obra e afirmada com humor como uma competição com «o Criador», é aqui exponenciada ao tomar por objecto a condição frágil e discreta de pequenas flores. E não é indiferente que o escultor também as tenha fotografada para o catálogo.

Expresso/Cartaz de 18 Dezembro 1999

De Mapplethorpe a Cutileiro Diz Cutileiro que a fotografia é a mãe das artes visuais e são as fotografias de Mapplethorpe que estão na origem das suas novas esculturas de flores

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 SÃO 38 pequenas flores, apenas flores, refeitas em pedra e bronze pelo escultor. Frágeis, elegantes, discretas, por vezes, se vistas à distância ou fotografadas, quase indiscerníveis de flores reais. Como se se tratasse de recomeçar a escultura a partir de um limiar inicial, à distância da tradição comemorativa que moldou a escultura clássica e também a moderna e abstracta («Sim, não tem nada a ver com a escultura comemorativa», concorda João Cutileiro). Retorno à natureza, à experiência sensível da beleza, ao belo natural, sem metafísica, em objectos de mão humana que exibem no modo de fazer, usando o bronze e o mármore, o saber fazer e o gosto do artista-artífice.
 Para esse recomeço ou redescoberta foi essencial ao escultor o fascínio sentido pelas flores fotografadas a cores por Mapplethorpe – Cutileiro diz que a fotografia foi a mãe das artes visuais. E ele próprio voltou à fotografia, fechando o círculo. Mostradas na Sala do Renascimento do Museu de Évora, entre outras antigas flores de capitéis e brasões, as esculturas de Cutileiro colocam questões centrais com a discreta e perturbante energia que pode ter uma flor. Elas são belas. As flores estão presentes há muito tempo na sua obra, mas estas aparecem como um trabalho diferente, exterior a essa continuidade. — Eu senti-as como tal. Recebi o livrinho do Mapplethorpe no Natal de 95, mandado dos Estados Unidos por uns amigos, e logo que o folheei começou-me a apetecer fazer estas flores. Quase que consigo dizer quais foram, entre as flores desse período, as que foram por uma via Mapplethorpeana e as outras que tinham uma via bastante diferente, mais directamente da natureza. O que foi que o interessou nas fotografias de Mapplethorpe? — Já conhecia a sua obra, mas nunca tive a oportunidade de o conhecer ao vivo. Tinha ido alguns meses antes aos Estados Unidos e fiquei encantado com a quantidade de livros dele que encontrei. Estava em casa desses amigos e, quando chegava todos os dias com mais um livro, eles aperceberam-se do meu interesse pelo Mapplethorpe. Depois, se calhar quase por graça, mandaram-me este livrinho minúsculo, de 12 por 10 centímetros, que é fácil de mandar pelo correio. E fascinou-me. Não é o Mapplethorpe habitual. — Não é, não... e é. Se quisermos olhar com frieza, também é. A obra melhor conhecida é mais clássica, pela elegância formal, e também mais sensual, com uma carga erótica mais forte, que nestas flores não está 21

presente. — Não é tão presente..., embora certamente lá esteja. Senti que a cor era uma concessão (até posso estar errado, mas pareceu-me...) e não é por acaso que decidi ser eu a fotografar as esculturas para o catálogo, a preto e branco. Achei que seria assim que o Mapplethorpe faria, se lhe tivesse pedido para fotografar estas flores. É quase inconcebível que ele chegasse aqui e dissesse: ah não, a cor é que é! Mas as esculturas são a cores. — São. As esculturas são a cor, mas a maior parte dos grandes fotógrafos trabalham a preto e branco, e a cor é uma concessão. Os grandes autores disseram que o trabalho que fizeram a cores foi uma gracinha, uma experiência ou uma concessão ao gosto do mercado. O que é que o fascina na obra do Mapplethorpe? — A imagem. A imagem da luz. São imagens fabulosas, em que me interessa relativamente pouco saber o que são, se um braço hercúleo de um negro, um falo, um nu... São as formas que são lindas, a definição e a maneira como ele olhou através da objectiva. Fascinaram-me, quase todas. Os artistas actuais confrontam-se com interditos e rejeições: parece haver coisas que já não se fazem ou não se devem fazer. O encontro com as flores fotografadas pelo Mapplethorpe autorizou-o a afirmar mais arrogantemente as suas flores? — Não, não. Isso não me passou pela cabeça. Eu já as fazia há décadas. Não me veio dizer: afinal, pode-se fazer flores. São as que ele fez daquela maneira que me impressionaram e, além disso, acho que a fotografia é a mãe das artes visuais, embora tivesse sido inventada só há 150 anos. A intenção da criação artística visual é sempre uma forma de fotografia: gravar uma imagem que recebe luz e com ela ficarmos na posse de uma prova. Essa é a origem de todas as artes visuais. Depois, a maneira técnica de o fazer só foi descoberta em meados do século passado. Esta exposição é também uma homenagem à fotografia. — Sim, de certa maneira, mas neste caso muito específico é uma homenagem ao Mapplethorpe.
 
 Quem procurar nestas flores a imagem habitual do Mapplethorpe, a sua afirmação mais sensual, terá uma surpresa. — Sim, e a surpresa deve ser dupla. As pessoas que vêm a Évora ver uma exposição minha que se chama «Flores - Homenagem a Mapplethorpe», vêm certamente disparados à espera de encontrar o carnal dele e o carnal meu... e encontram salada.

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Porquê a extrema elegância ou leveza destas flores, com uma sensualidade tão discreta? — Talvez as primeiras que eu tenha feito fossem mais carnais e sexuais, mas depois, com os anos, uma pessoa deixa de ter essa necessidade de ser tão óbvio. A maior parte das flores, sejam elas mais exóticas (as que não são de cá) ou as que se encontram na Primavera em qualquer canteiro, não deixam de ser imagens fascinantes. Uma jarra com flores pode ser uma coisa que nos vem enriquecer; quando se entra numa sala, às vezes elas não se notam, mas estão lá e emprestam-nos várias sensações. Tornou-se difícil, ao escrever sobre arte, falar de beleza, e estas flores confrontam-nos com essa dificuldade, que em geral é recalcada. — Acho que se recalca de uma maneira estúpida. O crítico ou o escritor sobre arte que recalca a palavra beleza está, afinal, a realçá-la num outro gosto. Há quem diga que salmão fumado sabe a peixe cru, que presunto é carne de porco a saber a fumo... se a gente não gostar. Se gostar, é a mesma coisa, mas encontram-se palavras mais agradáveis para o dizer. Tenho a impressão que o belo ficou de tal maneira associado à lata de bolachas que é preciso repensá-lo, mas reutilizar a palavra. Negá-la é que não pode ser, porque se não passamos a dizer que eu gosto é do feio, e portanto o feio é belo... e não saímos daí. Estas flores, pela sua escala, pela fragilidade aparente do mármore e do bronze, levam a um ponto limite uma situação de quase indistinção entre as esculturas e as flores reais. E as desfocagens das suas fotografias mantêm essa indeterminação sobre se é flor ou escultura. — Faz parte de meu gozo. É o gozo do artista. Toda a história do «trompe l'oeil» é o gozo do artista, o gozo de nos podermos dar ao luxo de fazer as coisas assim. Se calhar não vai ser muito importante, no futuro, mas foi-o na altura em que as fiz. Como dizia o Pessoa, «era então feliz, não sei, fui-o outrora agora». Foi importante para mim fazer as coisas suficientemente dúbias para que a certa distância não se tenha a certeza se o que eu estou a desenhar ou a ver é uma flor ou uma escultura. Aliás, na exposição com as estrelícias que fiz no Porto, há um ano, tinha um vaso com duas flores secas que tinham exactamente a mesma cor das estrelícias em bronze e a alguma distância não se sabia exactamente qual era qual. É uma forma de recolocar de uma forma muito crua e forte as questões da imitação e da cópia da natureza, de algum modo tornando claro que a cópia não é uma reprodução do que já existe. — Os ingleses têm uma palavra (e nunca encontrei nada que a pudesse substituir), que também faz 23

parte de uma das teorias da história da arte do Hellmut Wohl [autor de um dos textos do catálogo]: todos os grandes artistas começaram por ser conhecidos pela sua maneira de «to render nature» – «to render», transmitir... dar, mas não é copiar a natureza, nem é criar uma nova coisa, é interpretá-la. Se for jantar a casa duns amigos e lhes levar uma flor em pedra e bronze ela está a cumprir exactamente o mesmo efeito que uma rosa mesmo, com a vantagem de durar, e isso para mim é importante, as flores acabam por secar ou apodrecem e as de pedra não. Têm essa vantagem. São mais perfeitas? — São mais duradouras. Têm a perfeição da durabilidade. — O que não é necessariamente uma grande perfeição. No caso destas flores partia de uma natureza já reinterpretada. — Quando comecei, tirei algumas fotocópias do livro do Mapplethorpe para ter no atelier para copiar, para partir daquelas flores, mas depois começou a suceder outra coisa: a Margarida ia pondo numa jarra aqui na sala, frente ao meu sítio de desenho, as flores do nosso jardim e algumas compradas, que vieram enriquecer enormemente o património da exposição. Confesso que muitas vezes não sei dizer agora qual é a origem, se é o nosso jardim ou o livro do Mapplethorpe. Há também flores imaginárias, que podem recolocar de outro modo o problema da cópia ou interpretação. —Talvez. Há algumas imaginárias, mas são menos do que parece. E já me aconteceu «n» vezes eu fazer uma flor que não é real e depois encontrá-la, igualzinha, já feita, num qualquer canteiro de jardim. De forma que é melhor sairmos desse campo. O facto de em geral não terem nome também é um pouco secundário. Houve uma certa pressa e eu não podia garantir que não havia erros; o «sem título» é a solução que os artistas de hoje adoptam e eu estou-lhes muito grato. Ainda continuava a fotografar, ou sentiu agora a necessidade de voltar à fotografia? — Senti, pela primeira vez desde há muitos anos. Eu fotografo as minhas coisas para arquivo e não tenho qualquer outra preocupação senão a de, daqui a uns anos, olhar para o slide e identificar a escultura. Há uns tempos para cá recomecei a fotografar o mesmo que sempre gostei de fotografar, que são as pessoas, voltei a fazer retratos, e quando se aproximou esta exposição das flores em homenagem ao Mapplethorpe, apeteceu-me muito ser eu a fazer as fotografias. É a pescadinha toda, com o rabo todo na boca. 24

Sei que encarou esta exposição de um modo diferente, que a quis fazer num museu e não está à venda. — O facto de querer conservar estas obras – que cabem todas em cima de uma grande mesa de jantar que tenho em casa, de forma que é muito fácil ficar com elas – levou-me a escolher uma instituição, que não precisa de vender para justificar o acto de expor. Não me apetece vendê-las, ...por enquanto, pelo menos. Apetece-me ter um canto da casa onde elas estejam juntas. Esta é a exposição mais completa que eu fiz, completa desde a coerência das peças, à iluminação, ao catálogo, às fotografias, tudo isso é uma unidade, é uma bola, e daí talvez uma das razões porque não me apeteça vender. E, no entanto, se alguém de fortes poderes económicos, que não um galerista, me viesse propor a compra da totalidade, para a manter como tal, era já. Não é tanto a questão de ficar a viver com elas, é mais a garantia de que elas não se separam.
 
 Partir da obra de outro artista é uma coisa que muitas vezes não se confessa. — Com a educação museológica que tive, lembro-me do Picasso as fazer as Meninas, do Bacon a fazer o Velásquez. Quando se chega a um determinado estatuto, deixa-se de se ter inibições de ir roubar aos outros descaradamente, e um tipo faz o que o outro fez à nossa maneira. E dá muito gosto assim.

Mundos paralelos «Macho—Fêmea», Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, Expresso/ Cartaz 29 Abril 2000, pág. 18 O corpo na escultura de João Cutileiro. “Macho — Fêmea”

NA SEGUNDA exposição de um ciclo denominado «Arte do Século», inaugurado com Júlio Resende, a Câmara de Aveiro apresenta a escultura de João Cutileiro sob uma inédita abordagem temática. Mostram-se os seus «Guerreiros» mais recentes, uma série homogénea de 27 peças de 1998/99, outros tantos corpos femininos, muito diversificados nos formatos e no tratamento formal, distribuídos por vários anos de trabalho (1993 a 1997, com uma ou duas excepções pontuais), e ainda, isolada, uma escultura de 25

maior vulto, Leda e o Cisne, 1996, de placas de mármore recortadas, como sucede noutras obras monumentais dos últimos anos (o Lago das Tágides, 26

por exemplo). Sob o título «Macho — Fêmea», a exposição não é exactamente um sumário antológico que sistematize a relação da escultura de Cutileiro com a forma humana, até porque se trata apenas da exibição de obras recentes. No entanto, a configuração temática do projecto, montado em dois espaços autónomos e comparativos, é indicativa de algumas das linhas que atravessam a sua obra e, desde logo, de uma diferenciação radical na abordagem dos dois sexos. É rara a presença do corpo masculino na escultura de Cutileiro, para além dos retratos simbólicos, como D. Sebastião e Camões, da sua metamorfose na figura compósita do cavaleiro, de alguns torsos escassos e de genitália avulsa, embora o corpo do homem também tenha comparecido como parceiro em algumas situações mais directamente sexualizadas, figurações de cenas de amor. Explicitamente associada a criação escultórica à energia sexual e esta ao prazer, resta constatar a preferência do alvo feminino. Por outro lado, o homem surge desde muito cedo na sua escultura subordinado ao tema do guerreiro, logo em 1963, em blocos únicos de cimento fundido ou poliester, e também muito mais tarde em peças de grande porte, construídas por empilhamento e «assemblage» de blocos de pedra. Não são nunca figuras complementares ou simétricas dos corpos femininos, nem são mesmo reconhecíveis como formas orgânicas, que são sempre imediatamente sensuais na sua escultura. Emblemas do poder e da autoridade nas suas poses hieráticas, também nunca são figuras heróicas e talvez se devam entender apenas como fantoches, espantalhos, bonecos articulados mais patéticos que ameaçadores, efígies absurdas de uma ordem absurda do mundo. Na sua configuração mecanizada de «robots», artificializando-se o corpo e a sua energia no invólucro da armadura, esses Guerreiros é de desumanização e violência que falam. Ao contrário das peças monumentais mostradas no CAM, em 91 («Recordações de Guerra»), e em Cascais, em 94, na «Apresentação da Rainha» (D. Leonor, entre Sentinelas, Cruzados e Guerreiros), a nova série é sempre de um aparente pequeno formato, embora essa ilusória aparência resulte da construção quase filiforme e das pequenas dimensões dos fragmentos associados, uma vez que em diversos casos as esculturas se elevem até perto dos dois metros. São agora guerreiros domésticos, uma infantaria arcaizante e patética de um tempo em que guerras maiores se

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travam com bombardeamentos aéreos seguidos pela televisão e outros jogos de guerra se consomem como diversão em ecrãs virtuais.

Torso branco, 1993

Estas figuras guerreiras parecem saídas de «kits» de montar, com os seus módulos aparentemente idênticos (talvez encontrados, talvez feitos em série), com os parafusos que lhes articulam o tronco e os membros e os adereços bélicos. Os mesmos pequenos cubos de pedra sobrepostos constroem as pernas desmesuradas ou o torso breve, que noutros casos se sustenta em réguas também de pedra ou em tubos de latão. Pequenos blocos perfurados (as cabeças ocas e cegas), discos e volumes cilíndricos, fragmentos irregulares, possíveis desperdícios recortados que terão sobrado de peças ornamentais, articulam-se em formas infinitamente variáveis, num jogo de colagem ou «assemblage» que é aparentemente ocasional mas, de facto, rigorosamente controlado, como se comprovará sujeitando cada peça a uma observação que a circunde e que atente às suas sombras projectadas. Aliás, esse mesmo jogo de sombras, que amplia a escala dos fragmentos, propiciará um diferente olhar sobre as peças articuladas, isolando volumes e destacando neles a sua qualidade formal «abstracta». Construções lúdicas e experimentais quanto aos processos construtivos, objectos únicos e múltiplos, na aparente variação de um vocabulário predefinido, estes novos Guerreiros são fabricados com uma pedra cinzenta, porosa nas superfícies cortadas ou brilhante e quase negra nas faces polidas, que tem por nome próprio Diorito anfibulógico de Sever do Vouga. Figuras esquemáticas de frágil verticalidade, de virilidade retórica, desumanizados e vulneráveis na sua arrogância patética, eles não são personagens de qualquer guerra de sexos. São vestígios risíveis de uma desordem absurda do mundo e dos homens. Se destes machos e fêmeas reunidos em Aveiro só as mulheres têm corpo, deve ver-se que têm também rosto, quase sempre, e por vezes nome próprio (Filipa, Isabel), desarmadilhando a vigilância sobre qualquer incorrecta coisificação voyeurista como meros (?) objectos do desejo. Não são corpos abstractos nem idealizados, e multiplicam-se individualizando diferenças, identidades e situações, mesmo quando assumem sentidos alegóricos, como a fonte, ou retomam configurações já experimentadas por Cutileiro, como as figuras bífidas. Sem serem retratos, povoam um mundo humano, 28

inteiramente terreno e próximo, onde a ambição da arte não é a procura das essências ou dos paradigmas. À homogeneidade dos Guerreiros sucede a diversidade de um vocabulário construtivo que intencionalmente se distancia de uma síntese conclusiva, como que para manter vivo um leque largo de possibilidades ou direcções: meninas e mulheres, figuras articuladas ou esculpidas de um bloco único, deitadas ou erguidas, torsos e, em muitos casos, íntimas situações quotidianas, surpreendidas com a agilidade de desenho. Em vez da procura de uma solução ideal e finalista, eventualmente através da redução de meios ou de formas, ou perseguindo qualquer arquétipo da feminilidade, trata-se sempre de adicionar processos de representação, de multiplicar a criação, e de procurar a frescura de um primeiro achado em cada objecto fabricado, reinventado. A produção quase serial, retomando modelos já experimentados e introduzindo variações circunstanciais, a dimensão artesanal viabilizada pela adopção de meios tecnológicos avançados e pela invenção de processos construtivos mais rápidos e económicos, assumem no trabalho de Cutileiro uma dimensão maior de resistência à extinção de um campo que, abandonada a vocação comemorativa e consumida a especulação formalista até ao nada, se interroga sobre as suas condições de continuidade. Mostrada no novo Centro Cultural e de Congressos instalado na antiga fábrica de cerâmica que ainda ostenta o nome de Jeronymo Pereira Campos e Filhos (1896/1916), a exposição foi comissariada por Fernando Pernes e é acompanhada por um álbum (talvez excessivamente luxuoso e, numa primeira tiragem, com deficientes reproduções), que inclui textos de Fernando Pernes, João L. Pinharanda e José-Augusto França.

A prisão e o voo  «Pássaros», Museu do Traje, Expresso/Cartaz, 3 Agosto 2002 Uma escultura instalada no parque e «Pássaros» no museu   O acontecimento é duplo e independente, com inauguração simultânea e um discreto traço de ligação, talvez ocasional. No Parque do MonteiroMor, a grade de ferro da Janela de Soror Mariana, monumento instalado 29

em permanência, doado pelo autor para o projectado jardim de esculturas. No museu, o voo dos pássaros, metáfora da liberdade que o amor da freira de Beja não podia ter. Réplica exacta da janela gradeada que no Convento de Nossa Senhora da Conceição se aponta como a da cela de Mariana (embora a ala original já não exista), recriada com a moldura de pedra, esta prisão não se vê de fora ou de dentro, não exclui. Aprisiona o observador que livremente a circunda, olhando através das grades, porque a liberdade que se limita nos torna a todos menos livres. A evocação da figura histórica torna-se partilhada experiência física e prolonga-se num sentido actual. No museu, centenas de aves brancas povoam uma parede de placas de mármore rectangulares ou quadradas, de diferentes dimensões e irregularmente dispostas, numa instalação inicialmente concebida para o hall de entrada da empresa Navegação Aérea de Portugal. Sobre o suporte liso brilhante do mármore (preto, cinzento, terra, verde, raiado de branco), em relevos colados em cada uma das 82 placas, voam os pássaros, solitários, em pequenos grupos ou em bandos. Construídos com fragmentos toscos de pedra ou minuciosamente recortados, de dimensões muito variáveis, por vezes apenas dois ou três centímetros, deixam adivinhar o gozo de uma paciente laboração manual, quase bordada, numa escala íntima e alternativa à dimensão monumental, que se reencontra, paradoxalmente, no efeito de conjunto da parede. De asas abertas, com a elegância alongada dos corpos em voo, elevam-se nos céus de pedra de cada uma das placas, todos diferentes. O destino decorativo, claramente assumido como uma das razões necessárias da escultura (e mais ainda quando o propósito da evocação ou da homenagem é judiciosamente ponderado pelo artista), não limita aqui a invenção de uma solução escultórica inédita nem a intensidade poética das formas, na figura do pássaro e na imagem do voo, em que sempre residem sugestões de liberdade, de evasão, de paz, de elegância e de graça. É com necessidades vitais que lida o trabalho do escultor e também com a afirmação da humildade sábia do seu labor artesanal, alcançada pela maturidade da criação. E ainda com o humor, se lembrarmos que este voo de pássaros deveria dialogar, na sua projectada instalação, com as máquinas da navegação aérea.

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Na mesma sala do andar térreo do museu, outros pássaros, certamente mais pombas, esperam o visitante, só aparentemente imobilizados no seu esvoaçar de pedra, o corpo torneado que se eleva em voo, as asas já abertas, sobre blocos brutos e irregulares, também ascendentes, ou que neles pousa, vigilante, suspendendo por um instante o movimento. Outros pássaros de Cutileiro já tinham assim pousado sobre folhas de piteira, fontes e flores; outros corpos alados, por vezes de pássaros, já tinham explorado a tensão entre a forma recortada e polida e o bloco tosco de que parece sair e a sustenta; outros ainda, de mulheres miniaturais, monumentalizavam-se sobre pedras rudemente talhadas e erguidas. Mas são sempre novos cada um destes oito pássaros, reunidos num conjunto único, construídos por «assemblage» de blocos de mármore (branco, rosa ou preto), com os seus corpos esbeltos e as longas caudas, erguendo-se sobre as pedras empilhadas, multiplicados por um escultor que povoa o mundo com as suas criaturas.

Um centro periférico “Lagos, Anos 60-80”,

Centro Cultural de Lagos, Expresso/Actual 23

Julho 2005, pág. 40 Memórias de Cutileiro, Bravo, Lapa e Palolo em Lagos Se os anos 60 foram por toda a parte um tempo de transformações e rupturas artísticas, cortando com algumas tradições modernas e com memórias das guerras da primeira metade do século, Lagos foi um dos seus pólos portugueses. Parte decisiva da arte nacional fazia-se na emigração e outra, em paralelo, com os efeitos duma circulação exterior muito mais intensa, em grande parte permitida pelas bolsas da Gulbenkian. Entretanto, alguns artistas fixavam-se no isolamento do Algarve, sem deixarem de disputar a presença pública nas exposições de Lisboa e sem interromperem uma intensa busca de informação internacional.

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A estada de João Cutileiro, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa e Palolo em Lagos é o tema duma exposição que João Pinharanda organizou para o respectivo Centro Cultural, evocando um período que, segundo o comissário, «podemos considerar ‘heróico’ na vida cultural-artística» da cidade. Mais do que uma celebração, oportunamente integrada no programa descentralizado da Capital Cultural de Faro, trata-se de um projecto que visa «enquadrar crítica e historicamente um período de intensa e significativa produção na obra de cada um», avaliando também o sentido colectivo dessa presença em Lagos. Ao propor-se «pensar a cidade como centro receptor e difusor de ideias», no período específico das décadas de 60 e 70, João Pinharanda não deixa de ter presente que outros artistas foram atraídos a Lagos ao longo dos anos 80, em grande medida pela personalidade expansiva de Bravo, e que algumas linhas de continuidade se observam através das bienais aí organizadas nessa mesma década e depois na actividade expositiva do próprio Centro Cultural, que foi inaugurado em 1993 e é agora novamente orientado por Xana, fixado em Lagos desde 1984. Não é exactamente de um grupo que se trata, embora entre os traços comuns avulte a origem de todos em Évora. Ou então poderá dizer-se que o grupo é bicéfalo, considerando-se o itinerário específico de Cutileiro e a evidente associação entre Bravo, Lapa e Palolo. O escultor alugou casa em Lagos em 1959, ano em que termina o curso na Slade School de Londres, começando a viver em «navette» entre os dois lugares, por períodos de seis meses - em antigas entrevistas, falava do «pequeno paraíso na terra» que aí tinha descoberto, mas dizia precisar do meio ano londrino para «carregar baterias». Em 1970 instalou-se em permanência, e mudou-se para Évora em 1985, mais próximo das pedreiras onde procurava os mármores, já quando o crescimento turístico degradara o «paraíso».   Joaquim Bravo fixou-se em Lagos em 1966, dividindo a ambição artística com outros trabalhos, e foi professor de Inglês no liceu, até à morte em 1990. Com uma primeira exposição em 1964, fizera entretanto uma frustrada emigração alemã como intérprete numa base norte-americana. Foi ele que atraiu a Lagos Álvaro Lapa, que aí viveu entre 1966 e 71 e, entre viagens, em 72-73, e também Palolo, que fez longas permanências de 32

Verão, entre 1966 e 74, em casa de Bravo. É importante que todos eles tivessem percursos autodidactas (os dois primeiros com aprendizagens com António Charrua, em Évora), o que, para além de caracterizar as suas obras, desde logo os afastava do acesso às bolsas da Gulbenkian, e todos foram igualmente expostos pela Galeria 111 em início da sua actividade, por iniciativa do escultor Fernando Conduto. Só o mais novo, Palolo, teve imediato êxito comercial e crítico, identificado com as referências neofigurativas e pop então afirmadas. Num contexto de intensas circulações e actualizações europeias, que então alargam a Londres e à energia dos «sixtie’s» a mais tradicional formação parisiense, o grupo dos pintores de Lagos diferencia-se por fazer, do interior, uma viragem para a informação norte-americana, num caminho já entretanto aberto por Charrua e António Areal. É um acesso quase sempre indirecto e muito acelerado, que concentra o efeito súbito de Pollock, a prolongar automatismos psíquicos vindos do surrealismo, com imaginários «beatniks» e a admiração por Motherwell, e por via dele com um universo intelectual que inclui John Cage e o budismo Zen, a que se seguiam já as rupturas de Jasper Johns e Rauschenberg, obviamente visíveis nas obras expostas de Palolo. Ao associar os trabalhos dos quatro artistas, ao mesmo tempo que se demarcam núcleos próprios de cada um, a exposição opta no caso de Cutileiro por focar em especial a sua produção mais antiga, antes da viragem para o trabalho do mármore, com a descoberta decisiva das máquinas eléctricas de corte e polimento que tornaram a escultura em pedra profissionalmente viável e permitiram inventar novos caminhos de criação. A primeira dessas peças foi A Menina da Máquina, de 1966, e o D. Sebastião de Lagos é de 1973. Antes, o escultor trabalha com o ferro soldado e materiais moldados, cimento fundido e poliéster com pó de bronze, numa figuração que conserva uma dramaticidade de sentidos (corpos sujeitos à erosão e à ruína) até à explosão de vida e erotismo dos mármores. Quanto a Bravo e Lapa, a escolha das obras dirigiu-se para o apontar de algumas relações figurativas com o real envolvente, em raras peças mais 33

íntimas do primeiro (barcos presentes em colagens) ou na tensão entre a forma identificável e a abstracção construtiva, apresentando depois um todo coerente de trabalhos de pesquisa formal geometrizante, enquanto do segundo se propõe expressamente a identificação do lugar e da representação (a praia, a falésia, a casa, o mar, os pássaros) como elementos determinantes no desencadear e na interpretação das obras, embora sem que em qualquer caso esta oportuna linha de observação apareça a sobrepor-se ao universo das questões literárias e formais presentes nos seus trabalhos.

«Pedras na Praça. Arte Pública de João Cutileiro», Castelo de São Jorge, Sala das Colunas, Expresso/Actual 18 Novembro 2006 MAQUETAS (estudos em pedra de pequeno formato para obras construídas; singulares ou diversos, por exemplo, cinco para o Guerreiro, de 2002, para Almourol, e três para o Afonso Henriques, 2001, de Guimarães; um desenho para o São João, 2000, da Ribeira do Porto) e, ao lado, fotografias das peças instaladas, de Nuno Fevereiro. Mais um catálogo com um estudo atento e informativo de Joaquim Oliveira Caetano. A mostra, que inclui o D. Sebastião de Lagos, o D. Sancho I de Torres Novas, a Inês de Castro da Quinta das Lágrimas, Coimbra, o São Sebastião que está também em Torres Novas, o Monumento ao 25 de Abril, no Parque Eduardo VII, a Batalha Naval de Macau, etc. (1972-2004), estreou-se no Museu de Silves em 2005 e tem andado em itinerância. É um desmentido eficaz das doutrinas que por aí se ensinam sobre a «história do falhanço» que seria a relação da escultura moderna com o monumento e o monumental, e, também segundo Rosalind Krauss, sobre a inevitável história da «dissolução do escultural». São as estátuas de Cutileiro que vão ficar, como magníficas raridades, não o academismo que impera nos salões de hoje e afecta as escolas.   # JOÃO CUTILEIRO (1937 - ) – Nasceu em Lisboa e iniciou-se muito cedo como escultor. Das Belas-Artes da capital passou à Slade de Londres, só regressando definitivamente em 1970, para se instalar em Lagos (em 85 mudou-se para Évora). Depois de experimentar materiais diversos, do ferro à fibra de vidro, 34

revolucionou a escultura em pedra com o emprego de máquinas eléctricas de corte e polimento. O corpo feminino (torsos e figuras bífidas) e a afirmação do erotismo têm um lugar central no seu trabalho, mas os guerreiros, as maquetes de estátuas equestres, as árvores e flores constituem outros capítulos de uma vasta obra consagrada desde os anos 60. O D. Sebastião, de 73, acabou com a estatuária tradicional e o Monumento ao 25 de Abril, de 97, voltou a gerar polémica. (de um dicionário - Expresso. data desconhecida)

2008-2013 João Cutileiro fotógrafo Prefácio do catálogo da P4 Photography em 2008, revisto e um pouco ampliado - No blog a 05/01/2013

João Cutileiro expôs fotografias na sua primeira exposição, em 1961 (que foi a 2ª, contando uma em Monsaraz e Évora aos 15 anos, em 1951). Continuou sempre a fazê-las e, de longe a longe, a mostrá-las. Além de escultor é fotógrafo, ou faz óptimas fotografias, em especial retratos fotografias de gente, como lhes chamou em 1961. É mesmo um dos nomes certos da revolução fotográfica do final dos anos 50, ou é mesmo o primeiro fotógrafo dos anos 60 (1), e um dos poucos, um dos primeiros, que nesse tempo mostrou publicamente as suas fotografias. Aliás, João Cutileiro até foi (quase?) fotógrafo profissional, além de efémero bolseiro, em Londres, já que encarou durante uns anos a fotografia como uma actividade que podia e devia ser remunerada, no caso de se tratar de prestação de serviços e resposta a encomendas, para além de fotografar por gosto amigos e amigas. Construiu assim uma galeria de retratos que fixou uma geração, ou duas, e deixou registados os tempos de liberdade em Londres (1955-1970). Também foi e continuou a ser um fotógrafo de esculturas, as suas. Em Novembro de 1961, na Sociedade Nacional de Belas Artes, o folheto que acompanhou a mostra não trazia reproduções (o autor informa que eram praticamente todas retratos). Mas teve título: "25 Esculturas / Fotografias / 35

Desenhos de João Cutileiro". Dos modernos ou novos desse tempo, tinham mostrado fotografias em exposições individuais de galeria só o Fernando Lemos (em 1952-53) e a dupla Victor Palla/Costa Martins (1958). Foi um pioneiro, portanto. Um segundo passo público (publicado, neste caso) foi dado só dez anos depois (1971) com a impressão tardia de algumas imagens de Monsaraz (as mais antigas de 1959 e outras de 63, expressamente feitas) no livro do irmão José Cutileiro A Portuguese Rural Society (Oxford, Clarendon Press), onde se publicaram também outras fotografias do então desconhecido Gérard Castello Lopes (era conhecido como crítico de cinema em "O Tempo e o Modo", anunciava no Gambrinus o projecto de um filme sobre forcados e tinha cedido 30 fotografias para o pavilhão português da Exposição de Osaka, no ano anterior). Aquelas fotografias documentais de João Cutileiro eram então antropológicas ou "neo-realistas" em sentido lato - mas os retratos de 1961 e os nus que agora se conhecem escapavam a todas as classificações. São fotografias do quotidiano pessoal, gestos de amizade e de amor, descobertas de corpos (explorações físicas antes de serem estudos de formas), momentos de vida antes de serem ou não arte. Algumas daquelas imagens de Monsaraz e outras mais foram republicadas e expostas em 2005 e 2006 por iniciativa da Fundação PLMJ (Em Foco. Fotógrafos portugueses do pós-guerra, Obras da Colecção da Fundação PLMJ, ed. Assírio & Alvim, e mostra no Museu da Cidade, Lisboa, com catálogo próprio, em reimpressões digitais modernas). Muitos mais anos depois voltou a expor por ocasião do Mês da Fotografia que aconteceu em Lisboa em 1993, e ficou sem continuidade. Foi na Galeria Valentim de Carvalho: "Memória (Fotografias inéditas - Colecção do autor)”. No catálogo geral publicaram-se dois notáveis retratos, um de Álvaro Lapa, 1958, outro de Maria Cabral e Vasco Pulido Valente. Eram 100 fotografias "vintage", de 1958 a 1970, que à data não foram acompanhadas por qualquer outra edição. O que sempre se lamentou, até porque além da importância dos retratos também os retratados tinham notoriedade própria.

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“Memórias, retratos (inéditos) de amigos e familiares, 1958-70. As fotos foramse perdendo pelas gavetas e pelas paredes (serviram até de alvo para setas), amareleceram e comeu-as o bicho. Juntas agora, traçam uma galáxia de relações, amizades e amores que vemos ao sabor das identificações disponíveis a cada um: Fernando Mascarenhas (em 65), Jorge Sampaio e Karin Dias, João Cid dos Santos, Francisco Keil do Amaral, Ana Viegas, Maria Cabral e Vasco Pulido Valente, Mário Cesariny (uma parede com seis fotos de 64), Menez (Londres, 63), Reg Butler, José Cardoso Pires (60), Ruy Cinatti, Gérard Castello-Lopes, etc, e um auto-retrato legendado «Paul Newman». Por vezes, as cabeças deixam adivinhar um olhar escultórico, a caminho de outros retratos (Helder Macedo, Azevedo Gomes, Keil do Amaral). Com os retratos de Lemos, tão diferentes, estas fotos privadas levantam um véu sobre um passado oculto, aqui apercebido como um tempo feliz. São pequenos grandes nadas.” (Expresso, 1993) “100 fotografias que traçam um percurso de cumplicidades pessoais, mostradas em provas de época que transportam as memórias do seu uso (as paredes, os álbuns, o tempo) e um seguro valor de documento sobre os meios intelectuais do seu tempo. Mas é também a procura do sentido do retrato que nelas se encontra, na diversidade dos enquadramentos e das poses «colhidas do natural», ao mesmo tempo que o olhar do escultor se adivinha. Cutileiro mostrara fotografias numa exposição em 1961 e fez parte da geração dos «olhares inquietos (António Sena) — foi mais um passo na recuperação de uma indispensável memória fotográfica.” (idem) Um ano depois, a revista "Colóquio - Letras", que Joana Morais Varela coordenava e dava então atenção à fotografia, publicou oito retratos dessa exposição num desdobrável em extra-texto. Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Cinatti *, Helder Macedo (64), José Cutileiro, João Cutileiro (em versão Paul Newman, com a Pentax), Mário Cesariny de Vasconcelos, José Cardoso Pires e Vasco Pulido Valente com Maria Cabral, não identificada, constituem essa galeria, marcada pela versatilidade e pela espontaneidade de quem usava a câmara em permanência. De Fernando Lemos a revista publicava 10 retratos de c. 1952 (também Sophia e também um auto-retrato). Ruy Cinatti, fotografado diante de uma janela aberta para o Tejo, era também fotógrafo, que encontramos em 1948 no 2º Salão do Grémio Português de Fotografia ("Nativa do Bali", não reproduzido no catálogo) e em catálogos do Museu de Etnologia. 37

Também uma dezena desses ou outros retratos foram publicados já em 2004 num livro de memórias de Londres de Luís Amorim de Sousa, Londres e Companhia, ed. Assírio & Alvim, aí se acrescentando um belíssimo encontro com Doris Lessing. Alguns também estiveram expostos no Centro Culturais de Cascais ("Memorabilia", com desdobrável, Nov.-Dez. 2005) Entretanto, no Museu de Évora, em 1999, apresentou-se "Flores - Esculturas de João Cutileiro - Homenagem a Mapplethorpe". No catálogo publicaram-se 13 fotos suas de esculturas a preto e branco e de página inteira, sendo as do catálogo final de João Cutileiro Junior. Das fotografias de flores de Mapplethorpe às flores construídas em mármores e bronze, a cores, somando-se imagens vistas às flores tiradas do natural, e depois refotografadas a preto e branco pelo escultor. Escultura de câmara - a pequena escala e a máquina de ver. Por fim (até agora, e se não faltou mais nada pelo caminho), regista-se em Agosto de 2004, na Casa das Artes de Tavira, a exposição "Homenagem a Gustave Courbet", fazendo o título e as fotografias púbicas explícita referência ao precioso quadrinho intitulado A Origem do Mundo, desde 1995 exposto no Museu d'Orsay. Eram cerca de quatro dezenas de fotografias organizadas em conjuntos de imagens que colocavam a par flores, plantas e corpos de mulher, segundo disse Ana Ruivo no Expresso ("Herbário feminino"). A quarta exposição em perto de cinco décadas de fotografias fez-se na galeria e leiloeira P4, de Luís Trindade, entre 9 e 23 de Abril, com leilão nesse dia, a favor da Abraço: "Vintage nudes from the 60s and the 70s - Photographs by João Cutileiro. Para se recuperar o tempo perdido. Os negativos desapareceram, as provas são em geral únicas e marcadas pelo tempo. Estão vivas. (Editou-se um catálogo onde oeste texto agora pouco revisto se publicou). NOTA 1: Um dia alguém explicará porque é que a história oficial do António Sena (Porto Editora, 1998) só dá uma linha e meia ao João Cutileiro, embora abra com ele, justamente, o capítulo VIII - "1960-1979 - Olhares inquietos e passageiros". Começa assim a pág. 299 e o capítulo: "Em Novembro de 1961, João Cutileiro expõe algumas fotografias na sua exposição de desenhos e 38

esculturas na SNBA." É pouco e não está bem, desde logo porque essa exposição era de esculturas, fotografias e desenhos... Nota 2: JC deixou de imprimir fotografias quando o pó resultante da utilização de meios mecânicos de trabalhar a pedra ameaçava invadir a câmara escura. Mais tarde passou a usar a impressão digital para fazer as suas provas de autor.

Exposições individuais (fotografias): 1961. "25 Esculturas / Fotografias / Desenhos de João Cutileiro", SNBA, Lisboa. 1993. "Memória", Galeria Valentim de Carvalho - Mês da Fotografia, Lisboa. 2004. "Homenagem a Gustave Courbet", Casa das Artes,Tavira. 2008. "Photographs by João Cutileiro - Vintage nudes from the 60s and 70s", P4 Art Gallery, Lisboa.

Publicações 1961. Peter Fryer and Patricia McGowan Pinheiro, Oldest Ally. A portrait of Salazar's Portugal, Dennis Dobson, London. ("A southern Village", foto assinada J. de Souza; tb publicada em José Cutileiro, 1971) 1971. José Cutileiro, A Portuguese Rural Society, Clarendon Press, Oxford também com fotografias de Gérard Castello Lopes. 1994. Colóquio - Letras, ed. Fundação Gulbenkian (dir. David Mourão Ferreira e Joana Morais Varela), nº 132/133, Abril-Setembro (8 retratos), p. 4-5 extratexto. No mesmo nº, tb 8 retratos de Fernando Lemos. 1999. Flores - Esculturas de João Cutileiro - Homenagem a Mapplethorpe, catálogo, Museu de Évora. 2004. Luís Amorim de Sousa, Londres e Companhia , Assírio & Alvim. 2005. Em Foco. Fotógrafos portugueses do pós-guerra. Obras da Colecção da Fundação PLMJ (dir. Miguel Amado), Assírio & Alvim, e catálogo de exp. colectiva, Fundação PLMJ - Museu da Cidade, Lisboa, 2006. 2008. Photographs by João Cutileiro - Vintage nudes from the 60s and 70s, P4 Live Auctions, Lisboa. 2012. Uma Degustação. Escultura, Desenho,Relevos, Fotografia. João Cutileiro na Galeria Municipal de Arte de Barcelos, Set.-Nov. 39

2013, Correio da Manhã (supl. de domingo), 31 Março: fotografias de Cabul em 1951

2013

GRUPO DE ÉVORA “ÉVORA GROUP” / “GRUPO DE ÉVORA” - a Pequena Galeria, Lisboa (de 26 de Abril a 11 de Maio, 2013) “4 EM ÉVORA” / “4 IN ÉVORA” - Palácio D. Manuel, Évora (de 17 de Maio a 8 de Junho) “GRUPO DE ÉVORA” / “ÉVORA GROUP” - Centro Cultural Emmerico Nunes (2013) Fotografias de / Photographs by António Carrapato, João Cutileiro, Pedro Lobo e José M. Rodrigues no blog 05/22/2013

A exposição junta quatro fotógrafos que residem e trabalham em Évora, um deles mais conhecido como escultor, mas que há muito pratica a fotografia. Foram reunidos em Lisboa numa exposição d'a Pequena Galeria sob a designação “Grupo de Évora”, como uma proposta de reconhecimento simultâneo de quatro obras de grande importância e diferente visibilidade que partilham a luz da mesma cidade. Não existem entre todos eles cumplicidades de trabalho nem estabelecem uma rede de relações comuns, e alguns dos quatro não se conheciam pessoalmente antes de serem desafiados a reunirem os seus trabalhos. Mas numa cidade que tem sido fértil quanto ao surgimento de artistas e às iniciativas colectivas, acontece que também na fotografia se observa agora uma concentração excepcional, ou mesmo única no país, de talentos e de carreiras confirmadas. Conhecido como fotojornalista, colaborador no Alentejo para diversas publicações, ANTÓNIO CARRAPATO (Reguengos de Monsaraz, 1966) tem aparecido em várias exposições mais ou menos notadas (a última, o "Riso" da Fundação EDP) com um olhar finamente observador marcado pelo humor, pela 40

atenção ao acaso significativo, pelo gosto do “trompe l’oeil” e do acidente visual, pela aproximação irónica e fraterna ao quotidiano, que também é crítica sem ser exterior à realidade escrutinada - "Nós" foi o título de uma exposição do Museu de Évora, em 2009. Para esta mostra escolheram-se várias das suas imagens já “clássicas”, a preto e branco e a cores, de um roteiro alentejano que também já tem seguido outros itinerários "Europeus". O escultor JOÃO CUTILEIRO (Lisboa, 1937 - em Évora desde 1985) tem uma obra fotográfica paralela que surgiu a público pela primeira vez em 1961, foi discretamente editada em 1971 (fotografias de Monsaraz no livro de José Cutileiro A Portuguese Rural Society, Oxford, Clarendon Press, com outras de Gérard Castello-Lopes), e que se tem prolongado e renovado até hoje. Os retratos dos amigos, que agora volta a expor com alguns inéditos, numa selecção feita entre os já desaparecidos, constituem uma muito extensa colecção iniciada nos anos 1950 e alargada durante a permanência em Londres nos anos 60. É uma vasta galeria de artistas e intelectuais de referência, qee está à espera de ser editada em livro, como documento, autobiografia e criação fotográfica maior, num género, o retrato, que raramente é praticado de forma sistemática e tão próxima do quotidiano. Entre a escultura de corpos e rostos e a respectiva fotografia existem trânsitos eloquentes. Os nus e as fotografias das suas esculturas são outros domínios paralelos frequentados pelo fotógrafo-escultor. Do Brasil veio PEDRO LOBO (Rio de Janeiro 1954) para se instalar em Évora há cerca de três anos, trazendo uma obra já longa e reconhecida. Uma série recente dedicada ao imaginário religioso, em Portugal e no Brasil, associada ao seu interesse pelas questões do património, a que chamou “In Nomine Fidei”, é apresentada através de uma escolha de registos colhidos em velhos templos das Lezírias e do Alentejo, onde a imagem do sagrado se torna mais íntima e tocante graças à presença forte das marcas do tempo e da ruína material. Fotografar a morte das imagens pode ser um modo de pensar o caos do mundo e o fim das ambições de transcendência, ou ainda a sua necessidade. Usando formatos menores que os habituais e mostrando as fotografias em velhas molduras encontradas, Pedro Lobo tornou-as objectos fotográficos sempre diferentes, quase únicos, mais próximos e intensos. JOSÉ M. RODRIGUES (Lisboa, 1951) - Prémio Pessoa em 1999 - é o mais consagrado dos fotógrafos de Évora, para onde veio depois da carreira na Holanda (1969-1993). Apresenta uma sequência de seis fotografias recentes e inéditas num conjunto que é emblemático da sua obra e do modo como ela 41

ultrapassa a dimensão documental para ser uma criação artística radicalmente pessoal, onde a realidade e a memória, a natureza e o sentido da vida se interrogam. Não falta um auto-retrato, a presença da água (o Alqueva), um erotismo subtil, a estranheza das coisas e dos lugares surpreendida na realidade quotidiana e a criação de composições objectuais de intenção simbólica. Apresentou-as em caixas prateadas com recurso a um dispositivo que parcialmente as oculta, com que acentua o carácter enigmático da imagens e exige a cumplicidade do espectador, transformando as imagens em objectos. # The exhibition gathers four photographers who reside and work in Évora, one of whom is better known as a sculptor, although he has long been involved in photography. They were brought together in Lisbon, for an exhibition at the “Pequena Galeria”, under the name “Grupo de Évora” (Évora Group); an opportunity for the simultaneous recognition of four bodies of work of great importance and varying visibility, that share the light of the same city. There are not, amongst all of them, complicities of work , nor do they share a common network of relations; some of them didn’t know each other personally before they were presented the challenge of congregating their work. But, in a city that has been fertile when it comes to the emergence of artists and collective initiatives, an exceptional - even unique, in the whole of the country concentration of talents and established careers in photography also arose. Known as a photojournalist and correspondent in Alentejo for various publications, ANTÓNIO CARRAPATO (Reguengos de Monsaraz, 1966) has appeared in a number of exhibitions, of varying notability (the latest being “O Riso”, at the EDP foundation); An ultimately observant regard, marked by humour, attention to the significant random moment, and an iconic and fraternal approach to the quotidian (and also a critical one, although not exterior to the reality addressed - “Nós” (“We”) was the title of an exhibition at the Museum of Évora, in 2009). For this display, a number of his already “classic” images, both in colour and black and white, were chosen, taken from an itinerary in Alentejo that has also travelled through other “European” paths. Sculptor JOÃO CUTILEIRO (Lisbon, 1937 - residing in Évora since 1985) has a parallel body of work in photography that was made public for the first time in 42

1961, discretely published in 1971 (photographs of Monsaraz in José Cutileiro’s book A Portuguese Rural Society, Oxford, Clarendon Press; along other photographs by Gérard Castello-Lopes), and that has been extended and renovated to this day. Portraits of friends, that are now re-exhibited alongside some new works, selected amongst those who have departed, constitute a very extensive collection that started in the 1950s and was extended during his stay in London in the 1960s. It is a vast gallery of artists and intellectuals of reference, that awaits publication, as a major document, autobiography and photographic creation in a genre - portrait - that is rarely performed as systematically and as close to the quotidian. There are eloquent transits between the sculpture of bodies and faces, and their respective photography. Nudes and the photography of their sculptures are other parallel domains visited by the photographersculptor. PEDRO LOBO came from Brazil (Rio de Janeiro, 1954) to establish himself in Évora about three years ago, bringing along an already extensive and recognized body of work. A recent series, devoted to the religious imaginary in Portugal and in Brazil combined with his interest in issues relating to cultural heritage, that he named “In Nomine Fidei”, is presented through a selection of records taken from old churches in the Lezírias and Alentejo, where the image of the sacred becomes more intimate and moving, from the strong presence of the marks of time and material ruin. Photographing the death of images can be a form of conceiving the chaos of the world, and the end of transcendental ambitions - or the need for such ambitions. By using smaller-than-standard formats, and by displaying the photographs in old frames that were found, Pedro Lobo made them into always different - nearly unique - closer and more intense photographic objects. JOSÉ M. RODRIGUES (Lisbon, 1951) - recipient of the Pessoa Prize in 1999 is the most acclaimed of the Évora photographers. He came to the city after his career in the Netherlands (1969 - 1993). He presents a sequence of six recent and unpublished photographs; a set that is emblematic of his work, and of the way it transcends the documental dimension of photography, becoming a radically personal artistic creation where reality and memory, nature and the meaning of life are questioned. In the set, a self-portrait, the presence of water (Alqueva), a subtle eroticism, the strangeness of things and places caught in quotidian reality, and the creation of object compositions of symbolic intent. He displayed them in silver boxes, resorting to a device the partially hides them, 43

enhancing the enigmatic nature of the images and demanding the complicity of the viewer, turning the images into objects. (trad. João André Abreu - www.joaoandreabreu.com )

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