João de Meira

June 14, 2017 | Autor: F. Araújo | Categoria: Cultural History, Literature, History of Science, Biography
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Descrição do Produto

Bibliografia Borralho, Maria Luísa Borralho.

“Por acazo hum viajante...” A vida e a obra de Catarina de Lencastre, 1ª Viscondessa de Balsemão (1749-1824). Imprensa Nacional - Casa da Moeda , Janeiro de 2008. Filipe, Raquel Teixeira Da Rocha.

O Legado Clássico de Bocage - A elegia erótica latina e os sonetos amorosos bocageanos. Aveiro: Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2010.

Francisco Miguel Araújo

João de Meira

Lopes, Óscar; Saraiva, António José.História da Literatura

Portuguesa. Lisboa: Porto Editora, 1996. Moreira, Zenóbia Collares. O Lirismo

Pré-Romântico da Viscondessa de Balsemão: D. Catharina Michaela de Sousa Cesar e Lencastre 1749-1824. Lisboa: Edições Colibri, Maio de 2000. Serrão, Joel. Temas e Cultura

Portuguesa - II/Içar as Velas e Soltar os Ventos. Lisboa: Livros Horizonte, 1989. Vieira, P. António. Obras

Escolhidas. Vol. IV. Lisboa: Sá da Costa Editora, 1989.

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

C ATA R I N A D E L E N C A S T R E

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João Monteiro de Meira

Pelas duas horas da tarde nesse mesmo local, a 31 de julho de 1881, nasceu o primeiro dos seus filhos: João Monteiro de Meyra, no respeito pela grafia da época e como sempre rubricou. O nome próprio fora herdado do avô paterno, que com a sua esposa apadrinharam o recém-nascido, tendo-se realizado,

S. Paio, Guimarães, 1881 Gominhães, Guimarães, 1913

passado uma semana, a cerimónia de batismo na igreja paroquial de São Paio pelo pároco Joaquim Ferreira de Freitas, que viria a conduzir grande parte das solenidades religiosas desta família.1 Ao primogénito juntaram-se outros 1 Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Livro Paroquial de Batismos de São Paio:

A

cinco filhos, em pequenos intervalos de tempo entre si, estendendo esta prole: 1880-1886 (P-979), fl. 25-25v.

Gonçalo (1882-1967), Maria Beatriz (1883-1974), Manuel (1885-1890), José efemeridade da vida humana determina uma certa cristali-

Joaquim (1887-1911) e Maria Adelaide (1892-1986).

zação da memória futura sobre uma qualquer personalida-



de, ainda que muitas vezes meras considerações factuais

corrido a infância de João de Meira entre as condicionantes típicas da etiqueta

possam não elucidar os reais motivos desse reconhecimento

burguesa: temporadas na casa de Gominhães e banhos na Póvoa de Varzim, os

social… Prestes a se celebrar o 1.º centenário do seu falecimento, a figura do

preceitos do catolicismo e a relevância da instrução como fator de promoção

vimaranense João de Meira há muito que se encontra envolta em laconismos

social, sendo estimulados os assuntos culturais como revelam as aptidões lite-

históricos, senão mesmo num certo esquecimento entre os seus conterrâneos,

rárias e artísticas dos cinco irmãos chegados à idade adulta. Em simultâneo, a

soçobrando as recordações pessoais e de um legado com contributos científicos

Guimarães de finais de Oitocentos conhecia um período de grande dinamismo

e culturais valiosos e inéditos. Sobretudo tendo em consideração que, na poli-

económico e cultural, despontando pela intervenção cívica de Joaquim José de

valência de saberes a que dedicara o seu intelecto em pouco mais do que três

Meira um crescente prestígio social deste ramo dos Meira.

décadas, mereceria um maior destaque no panorama da cultura portuguesa do



raiar do século XX.

era fundada a Sociedade Martins Sarmento, agremiação cultural de estudo e



Guimarães era o lar ancestral de várias gerações da família Meira, mais

divulgação histórica, arqueológica e etnográfica do termo de Guimarães, que

precisamente a freguesia de S. Pedro de fins de Gominhães, naturalidade de

dada a proximidade da sua morada se tornaria um espaço bastante frequen-

Joaquim José de Meira (1858-1931), nascido na Casa do Picouto de Baixo,

tado por todos os elementos da família, constando todos como sócios efeti-

filho dos proprietários rurais João José de Meira e D. Joana Teresa Mendes.

vos e o pai nomeado depois sócio honorário. Entretanto, este desenvolvia a

Diplomado pela Escola Médico-Cirúrgica do Porto, em julho de 1880, regressou

sua carreira profissional de médico-cirurgião nos hospitais da Misericórdia

para se instalar como clínico no centro urbano, prontamente contraindo ma-

e das Ordens Terceiras de S. Francisco e S. Domingos, granjeando uma re-

trimónio com D. Adelaide Sofia da Silva Monteiro (1863-1941). Também ela

putação que o levou à nomeação como procurador à Junta Geral do Distrito

uma vimaranense da freguesia de S. Sebastião, da união de Francisco da Silva

(1883-1885). Neste âmbito tomou parte na famosa Exposição Industrial de

Monteiro e D. Ana Emília da Mota, moradores nas lajes do Toural, fixando o

Guimarães em 1884, bem como na ainda mais célebre questão política con-

casal residência na rua de D. João I, n.º 95.

tra Braga, que outorgou a autonomia administrativa vimaranense em 1885,

Assim, num ambiente afetuoso e buliçoso de uma família jovem, terá de-

Logo em 1881, simbolicamente quatro meses após o seu nascimento,

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convertendo-se num fervoroso correligionário de João Franco, que como de-

rada e polivalente a crer no currículo formativo adotado, entre disciplinas

putado por esse círculo eleitoral advogou essa causa política junto das altas

da área das Letras (Português, História, Geografia, Francês, Inglês, Latim,

instâncias do poder central.

filosofia e Literatura) e de Ciências (Matemática e Física), combinadas com



outras artísticas e físicas (Desenho, Música, Ginástica, Esgrima e Educação

Nos anos que se seguiram a notoriedade conquistada cooperou em novas

nomeações para cargos de chefia pública: provedor da Misericórdia, professor

Religiosa, Moral e Cívica).

e diretor da Escola Industrial Francisco de Holanda ou de vice-presidente e



presidente da Câmara Municipal de Guimarães, inserindo-se entre as elites lo-

inteligência ao receber vários prémios colegiais: aluno distinto a Inglês (1893),

cais ao relacionar-se com as mais destacadas figuras, como Francisco Martins

diploma de mérito literário (1894) e novas distinções em Matemática e Física

Sarmento, os condes de Margaride, Alberto Sampaio, José Minotes ou o Abade

– 1.a parte (1895); e a escolha como representante do seu ano para orador nas

de Tagilde, entre outros. Acresça-se ainda a correspondência com os compa-

festas solenes com discursos sobre a importância da Matemática e o tributo ao

nheiros de mocidade, alguns mesmo personalidades de mérito da Ciência e

passado de Guimarães.3 Em finais do verão de 1896, plenamente aprovado nos

Cultura portuguesa do seu tempo: Júlio de Matos, Basílio Teles, Tito Augusto

exames liceais, mudava-se para a cidade do Porto, procedendo à matrícula na

Fontes, Júlio Franchini ou Adelino Leão da Costa.

Academia Politécnica do Porto no curso preparatório para a Escola Médico-Ci-



Esta influência cultural do progenitor culminada na direção da Sociedade

rúrgica, ainda que apenas em duas das cadeiras obrigatórias, bisando o modelo

Martins Sarmento (1889-1905) e da sua Revista de Guimarães (1900-1901 e

paterno de formação académica.4 Contudo, este real afastamento da vigilância

1905-1907) foi transmitida aos filhos quase como se um dever cívico se tratasse,

familiar significaria também a vivência por João de Meira, um jovem de 15 anos,

incentivando-os a colaborar na dinamização dos mais diversos eventos que pres-

de alguns dos episódios mais caricatos e irreverentes da juventude.

tigiassem Guimarães junto dos portugueses. Não foi, portanto, difícil a João de



Meira neste contexto de efervescência intelectual assimilar tais referências pes-

postos no chão, num ar meditativo que fazia contraste com a despreocupação

soais e a produção cultural que vinha sendo dada à estampa, espelhada em duas

fútil dos estudantes daquele tempo”5, aquele que ocupou um pequeno quarto

das características pelas quais mais seria recordado: uma sólida e multifacetada

numa república estudantil à rua dos Mártires da Liberdade, olhado sobrancei-

cultura científica e literária e uma atenção enlevada pelos temas vimaranenses.

ramente por alguns colegas nos seus gestos algo rudes e o desleixo no vestir e



A abertura do Colégio de S. Dâmaso, no extinto Convento da Costa na

cabelos desgrenhados. Vencidas as resistências na adaptação, encontrou um

serra da Penha, foi encarada pela família como meio privilegiado para a ins-

pequeno grupo de camaradas com os quais partilhava gostos similares: Joa-

trução do primogénito dos Meira, matriculando-o para conclusão do ensino

quim Alberto Pires de Lima, Paulo Osório, José Bruno, Castro Lopes, Rodrigo

primário, quando este contava cerca de 9 anos. O estabelecimento educativo

Solano e Joaquim Costa; passando tardes e serões entre os seus domicílios e os

ministrado por religiosos publicitava uma educação literária, religiosa e civil

cafés da cidade em animados convívios.

de excelência, o que não o tornaria acessível a famílias de parcos recursos



económicos, aí prosseguindo João de Meira os estudos liceais, em regime de

larachas de mocidade e esboços de versos e caricaturas, encontrou João de

internato até 1896, lembrado como um rapaz “inteligente e de riso aberto de

Meira o à-vontade para divagar nas recensões críticas aos volumes de prosa

franqueza e amizade”.2 Efetivamente terá tido acesso a uma educação esme-

e poesia, romances de cordel e ensaios de economia social lidos e nos relatos

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2 Eduardo de Almeida, “João de Meira”, A Alvorada: seminário republicano (3.º ano, n.º 150, 25 de Setembro de 1913).

Deste percurso académico datam as primeiras evidências do seu talento e 3 Colégio de São Dâmaso, Crença & Letras: revista religiosa, litteratura de educação e ensaio (Guimarães, C.S.D., 1891-1896).

4 Academia Politécnica do Porto, Annuario da Academia Polytecnica do Porto (Porto: Typographia Occidental, 1896-1899).

5 Manuel Alves de Oliveira, “No centenário do nascimento de João de Meira”, Boletim de Estudos Históricos (Vol. XXXII, 1981), 155.

Foi um “rapaz de aspecto sisudo, olhos muito azuis, aveludados, sempre

Entre acesas discussões das notícias dos dias e das matérias escolares,

das visitas aos alfarrabistas em busca de preciosidades bibliográficas que lhe

cadeiras de Química Orgânica e Analítica e a de Botânica na Escola Politécnica

atulhavam o quarto! A estes amigos não hesitou em confessar a sua admiração

de Lisboa. Durante essa estadia, correspondente ao ano letivo de 1899-1900,

pelos autores modernos portugueses, tanto os romancistas e poetas como os his-

definitivamente sensata perante o sucesso académico obtido, João de Meira

toriadores científicos Alexandre Herculano e Oliveira Martins, surpreendendo-

ressentiu-se da ausência da companhia da família e dos amigos portuenses,

-os com a sua cultura literária invulgar para a idade: “Lia e anotava um romance

despertando sentimentos de solidão e saudosismo que passou a versos. Aquan-

de Zola, numa noite. Imitava os versos de Antero, de Cesário Verde, de Gomes

do de uma visita destes últimos, a umas águas furtadas na Patriarcal que lhe

Leal, de Junqueira e António Nobre, e redigia trechos admiráveis, dum recorte

serviam de morada, recitou-lhes um desses desabafos íntimos:

6 Joaquim Costa, “João de Meira. Uma página de memórias”, Revista de

de forma incomparável, à semelhança de Camilo e Eça de Queiroz”.6





Evocando…

Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 155.

Tanto que esta verdadeira paixão pela Literatura nacional e estrangeira 7 Esta ligação poderá ter contribuído para a importância que a publicação

se refletiu no negligenciar dos estudos, a aprovação em Química Mineral não periódica foi concedendo a João de Meira em inúmeras notícias durante a sua

apagou o desaire em Física Geral na época de exames de 1897, não obstante

Desta cidade, aonde me lançou

a fama da sua inteligência e lucidez. No ano letivo seguinte inscreveu-se nova-

um destino cruel e traiçoeiro,

mente nessa última e na de Química Orgânica e Analítica, o cenário não diferiu

recordo aquele tempo que passou

do anterior com outra reprovação à nova cadeira, obrigando a uma terceira

em que fui vosso amigo e companheiro.

vida, fonte valiosa de consulta que elucidou muitos aspetos já olvidados na sua reconstituição biográfica, a par de outros jornais locais e da cidade do Porto: O Independente, Ecos de Guimarães, A Alvorada e O Comércio do Porto.

8 Joaquim A. Pires de Lima, “João de Meira. Notas bibliográficas”, Revista de

inscrição nas disciplinas em falta para terminar os preparatórios médico-ciGuimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 159.

rúrgicos, no ano letivo de 1898-1899.

Lembro as manhãs de inverno carregado,



o nevoeiro intensamente baço,

Nesta altura, João de Meira, aos 17 anos, dava a conhecer publicamente

os seus trabalhos literários no jornal do Comércio de Guimarães7 com alguns

e as raparigas de cabaz no braço,

sonetos e pequenas prosas, surgindo ainda nas páginas d’ O Campeão e do Jor-

que iam fazer as compras ao mercado.

nal de Santo Tirso. De seguida em Guimarães, com o amigo António Garcia, decide fundar o seu próprio jornal de arte e crítica A Parvónia, em agosto de

E de todo êste tempo, relembrado

1898, onde à vertente poética se juntaram artigos polémicos dos colaborado-

com amor, com saudade, com ternura,

res contra o burguês e o provincianismo de Guimarães. Um certo escândalo

esqueceram-me os dias de mau fado,

fez-se sentir entre a população da cidade, caso do seu artigo “Os Jesuítas” a

só me lembram as horas de ventura.

favor da expulsão da companhia religiosa de Portugal ou da eleição do pseudónimo Dyabo, pelo que sem querer ferir mais suscetibilidades cancelou a sua

Como quem vê surgir, em seu degredo,

publicação ao final de cinco números.

Um irmão, que o seguiu entre mil p’rigos



Toda a dispersão entre a sua curiosidade intelectual e estes projetos

E se perdeu, depois o abraça ledo…

culturais motivaram uma intervenção de Joaquim José de Meira, perante os

Assim eu vos abraço, meus amigos!

resultados do filho nos exames finais de 1899 somente aprovado na cadeira de

Homo (João de Meira)8

Zoologia, pelo que se resolve a enviá-lo para a capital, onde deveria cursar as

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A 15 de setembro de 1900 concretizava, finalmente, a desejada matrícula na

tros que atualmente serão já difíceis de identificar… Em tributo às suas leitu-

Escola Médico-Cirúrgica do Porto9, só que o começo do curso superior não foi

ras assinou três pequenas homenagens, em inícios de 1902, aos seus escritores

propriamente auspicioso com o professor de Anatomia a reprová-lo no 1.º ano,

prediletos: Antero de Quental o “maior poeta português abaixo de Camões”11,

num aparente desaforo motivado pelo comentário mordaz ao reparo feito à

Camilo Castelo Branco “o maior de todos os que escreveram e escrevem portu-

sua caligrafia. Embora também se pudesse ter ficado a dever ao seu regresso às

guês”12 e Martins Sarmento pelo “inegualável saber, de muito amor da pátria e

lides literárias n’ A Memória, revista literária da sua cidade natal, editada por

de muito amor do estudo”.13 Qualquer um deles venerados como mestres pelos

Domingos José da Silva ainda nesse mês e finda em abril do ano imediato. Uma

ensinamentos que deles adquiria ao folhear as páginas das suas obras, não va-

vez mais eram poemas e pequenas narrativas que enviava à redação, nas pa-

cilando em censuras a Teófilo Braga por notas desmerecidas quanto à análise

lavras do condiscípulo Pires de Lima com a qualidade de “um escritor da raça

do valor cultural e científico desses paradigmas.

de Camilo”10, mas continuando a recorrer a um criptônimo, agora o de Homo,



tendência que utilizaria frequentemente na hora de assinar este tipo de tra-

ponderia melhor aos seus interesses intelectuais, pois ao regime de ensino es-

balhos. Poderia ser isto um subterfúgio para evitar conflitos familiares acerca

sencialmente científico e prático dessas duas secções pedagógicas ao longo dos

da parca concentração nos estudos ou mero sentimento pessoal de modéstia e

cinco anos do curso, a instituição consolidara duas tradições particulares: as

mesmo de um humor mais refinado?!

correntes de criação literária e de investigação médico-histórica, consagradas



O ano de 1901 marcava a sua estreia no jornalismo político com o lan-

nos nomes de Júlio Dinis e Maximiano Lemos, respetivamente.14 Após a repe-

çamento do semanário O Independente em novembro, assumindo um papel

tição do 1.º ano em Medicina, o empenho do aluno João de Meira começou a

central nesse órgão afeto ao partido franquista de Guimarães, por vezes ocul-

harmonizar-se com o seu real intelecto, nas trezes cadeiras que compunham o

tado sob a capa de Homo. Novamente a exemplo do pai, membro do diretório

plano de estudos as classificações rondavam entre os 15 e os 16 valores, sendo

dessa ala regeneradora-liberal local e amigo pessoal de João Franco, João de

aluno premiado com distinções em Anatomia Descritiva Geral – 2.ª parte e

Meira declarava-se monárquico e partidário dessa fação política, enaltecendo

fisiologia no 2.º ano (1902-1903) e no 3.º ano a História Natural dos Medica-

o deputado que mais prestigiara Guimarães e ao qual a cidade devia parte do

mentos e Matéria Médica e a Patologia e Terapêutica Externa (1903-1904).15

seu progresso material. Depois da passagem de Joaquim José de Meira pela



presidência municipal, de 1902 a 1904, alguns artigos de fundo aludem a um

da escola Pontas de Fogo (1902) e A Pasta (1903), evidenciando-se como um

polemista acérrimo contra certas políticas municipais dos partidos adversá-

colega afável, generoso e irónico e um carácter íntegro e leal pronto a combater

rios, sempre que os interesses dos vimaranenses não eram respeitados no seu

as suas convicções pessoais, enquanto aprimorava e explorava outros cami-

desenvolvimento civilizacional, esquivando-se pelo seu apurado espírito críti-

nhos do saber científico. Então, promovendo os lentes Sousa Júnior e Alfredo

co e bom senso a campanhas de difamação pessoal.

de Magalhães novos estudos sobre a Pelagra com o apoio dos estudantes, para



De forma interrupta, perseverava a sua feição de homem das Letras com

a zona de Guimarães encarregou-se João de Meira de aplicar inquéritos clíni-

versos, contos e pequenas traduções literárias, nesse periódico e no seu folhe-

cos a pessoas afetadas por essa doença com a ajuda do pai, tecendo algumas

tim Íris ou n’ Comércio de Guimarães, alternando a assinatura como João de

conclusões que saíram em dois artigos da revista Medicina Contemporânea.

Meyra com diferentes pseudónimos de Nullo, Estelio e Nasatus, talvez até ou-

Nesse verão de 1904 era agora o aprendiz da Ciência e Medicina que assomava

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9 Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Livros de matrículas da Escola Médico Cirúrgica, lv. 15, n.º 14.

10 Joaquim A. Pires de Lima, “João de Meira. Notas bibliográficas”, Revista de Guimarães, 159.

11 João de Meira, “Antero de Quental”, Revista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 200.

12 João de Meira, “Homenagem a Camilo Castelo Branco”,

Por outro lado, o ambiente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto corresRevista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 188.

13 João de Meira, “Homenagem a Martins Sarmento”, Revista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 176.

14 Hernâni Monteiro, “Prof. João de Meira”, História do ensino médico no Porto: suplemento (Porto: Typ. Enciclopédia Portuguesa, 1925), 71. 15 Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Processo académico de João Monteiro de Meyra (1900-1907).

Nesse meio académico participou nos jornais humorísticos dos alunos

junto do público, imiscuído nos ditames do Positivismo dominante na insti-

heurística permitia-lhe refutar as fantasias em torno da antiga vila roma-

tuição educativa portuense, procurando na objetividade dessas observações

na de Araduca e da denominação Vimaranes, à falta de documentos sobre a

apurar e reunir os factos gerais na tentativa da formulação de leis científicas.

existência no local desse povoado ou da suposta inscrição viária “Via Mares”,



Mas também a de um estudante atento, que no ano letivo de 1904-1905,

ou as questões sobre a fundação do mosteiro e do castelo por Mumadona

elaborou a representação académica dos alunos do Porto sobre a questão dos

Dias e do desenvolvimento do burgo com a instalação da Colegiada de Nossa

preparatórios no acesso ao curso superior. Quiçá pelo seu percurso prévio, con-

Senhora da Oliveira.

siderava inútil a frequência das cadeiras físico-naturais nas Politécnicas pelos



futuros médicos, quando estas deveriam constar da estrutura pedagógica das

corroborava com a ambiguidade na teoria de se poder atribuir cabalmente um

próprias instituições médico-cirúrgicas e adaptadas aos seus programas edu-

local de nascimento a D. Afonso Henriques, ao contrário do defendido pela

cativos. Classificado com o 2.º accessit à cadeira de Higiene no final do 4.º ano,

tradição oral vimaranense! Numa linha transversal, estas temáticas da histó-

tendo já iniciado a formação prática como clínico externo no Hospital Geral de

ria local seriam recorrentes nas suas investigações posteriores, à medida que

Santo António, novos epítetos de uma erudição excecional eram acrescidos ao

descobria e analisava nova documentação histórica inédita entrosadas com as

jovem vimaranense de 23 anos.

leituras historiográficas, atuando quase como um revisor científico em busca



Inicialmente o de crítico literário com o trabalho Cartas de Camillo Cas-

da verdade irrefutável! A ele se deve ainda a transcrição dos pregões nicolinos

tello Branco a Francisco Martins Sarmento, na portuense A Revista, com um

desde a década de 181018, tradição secular dos estudantes da cidade, conser-

pequeno prefácio sobre a ligação pessoal entre ambos e a transcrição de treze

vados na Biblioteca da Sociedade Martins Sarmento cujo espólio conhecia pro-

cartas trocadas entre si, salientando as cooperações e influências nas conce-

fundamente das suas constantes visitas durante as temporadas em casa dos

ções de alguns dos seus volumes. Bastante crítico ao reconhecimento público

pais. Aliás, entre 1903 e 1905, foi ele o responsável pela elaboração dos pre-

sobrevalorizado de Eça face a um publicista prolífico como fora Camilo:

gões para as Nicolinas, transpondo em versos satíricos a voz de paródia social

16 João de Meyra, Cartas de Camillo Castello Branco a Francisco Martins Sarmento (Porto, Typ. Peninsular, 1905), 8.

17 O artigo foi dedicado a Rocha Peixoto e dividido em três partes para efeitos de publicação entre 1905-1906. João de Meira, “O Claustro da Colegiada de

Guimarães”, Revista de Guimarães (vol. 22, fascs. 1-2, 1905), 39-56; (vol. 23, fascs. 1, 1906), 10-16; (vol. 23, fascs. 3-4, 1906), 94-107.

Curiosamente, concordando com Herculano, João de Meira igualmente 18 João de Meira, “Os bandos escolásticos da festa de S. Nicolau”, Revista de

Guimarães (vol. 22, fascs. 3-4, 1905), 161-177; (vol. 23, fasc. 1, 1906), 29-36. 19 Sociedade Martins Sarmento, Was Murret Ihr? – Na Rua (manuscrito).

Infelizmente Camillo Castello Branco não dexou, como outros que lhe

do bando escolástico do Liceu Nacional de Guimarães.

foram inferiores, um grupo de amigos pessoaes capazes de, pela sua po-



sição social e pelo seu enthusiasmo, lhe promoverem as manifestações

num foro mais privado, no velho solar do Picouto de Baixo em Gominhães

de admiração e reconhecimento que lhe eram devidos.16

em conluio com o irmão José Joaquim Monteiro de Meira, ainda estudante

A alma de artista e um sentido de humor suis generis espelharam-se,



liceal que rumaria à Universidade de Coimbra para cursar a Faculdade de

Seguidamente a projeção como historiador na afamada Revista de Guima-

Medicina, de onde Gonçalo Monteiro de Meira regressava como bacharel em

rães, em abril de 1905, com o pai como diretor pela segunda ocasião, selecio-

Direito. Em meados de abril de 1905, o irmão mais novo resolve desenhar as

nando um tema caro ao seu orgulho vimaranense: “O Claustro da Colegiada

caricaturas de figuras típicas vimaranenses num pequeno álbum, dando-lhe

de Guimarães”.17 O respeito pela verdade histórica objetiva, fundamentada

o sugestivo título de Was Murret Ihr? Na Rua…, perfazendo um total de 64

em sólidas provas documentais e arqueológicas, levavam-no a contestar as

retratos dos mais característicos indivíduos desses tempos ao longo de quase

especulações clássicas e as mais recentes do P.e Torquato Peixoto de Aze-

dois anos.19 Ao lhe ser apresentando o volume, João de Meira aceitou trans-

vedo e do Abade de Tagilde sobre as origens de Guimarães. A sua reflexão

crever alguns poemas satíricos como possível legenda e outros de inspiração

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mais lírica, desde maio desse ano a finais de 1910, que suscitou muita curio-

João de Meira estaria, por estas palavras, a esboçar um projeto de tese similar

sidade local mas que os irmãos Meira foram resguardando a um círculo res-

ao que Ricardo Jorge tinha executado para a cidade do Porto nos campos da

trito de pessoas da sua confiança.

Demografia e Higiene, mas sobreposto para o caso de Guimarães, retornando



Prestes a cumprir o último ano do curso superior, no ano letivo de 1905-

a casa para um levantamento exaustivo de fontes primárias na posse de par-

1906, nas férias da Páscoa foi-lhe oferecida a oportunidade de viajar além-

ticulares e dos organismos públicos locais e da região. Deste processo moroso

-fronteiras, integrando a excursão académica de estudantes portugueses a

auxiliado pelo Abade de Tagilde, João Lopes de Faria ou Avelino Germano, que

Paris. O contacto com uma realidade totalmente distinta para os seus padrões

o ocupou até praticamente ao final de 1906, reverteu a monografia O Concelho

provoca-lhe exclamações contraditórias em dois artigos de imprensa “Carta de

de Guimarães: estudo de demographia e nosographia.

Paris”. Se por um lado descrevia entusiasticamente o cosmopolitismo francês



e a modernidade dos avanços científicos e tecnológicos nos diferentes tipos de

librada e valiosa de factos histórico e científicos, alguns totalmente inéditos,

instituições visitadas, era capaz de escarnecer de certos costumes e formali-

distribuídas por 184 páginas em sete capítulos principais: Geologia, Climatolo-

dades sociais ou das perceções antiquadas dos parisienses sobre Portugal e os

gia, Cultura, Antropologia, História, População e Nosografia, complementado

seus habitantes. A propósito das Festas Gualterianas desse ano publicou novo

com quadros e gravuras para um retrato contextualizado do município vima-

artigo polémico “História Pátria”, um reparo às três afirmações da história lo-

ranense. Das dedicatórias iniciais ao presidente de tese, o Dr. Carlos Alberto de

cal inseridas no Guia do Visitante, contrariando as velhas histórias remotas

Lima, e a todos aqueles que o tinham coadjuvado, a maior das reverências foi

sem sentido crítico e validação histórica.20

ao seu melhor mestre e seu maior amigo:

20 João de Meira, “História Pátria”, O Independente (5.º ano, n.º 245, 12 de Agosto de 1906).

21 João de Meira, “Bibliografia da Revista de Guimarães”, Revista de Guimarães (vol. 23, fascs. 3-4, 1906), 11.



22 João Monteiro de Meyra, O Concelho de Guimarães: estudo de demographia e nosografia (Porto: Typ. Guedes, 1907), VII.

Por muitos considerado o seu melhor trabalho, numa exposição equi-

Nos exames finais do 5.º ano mereceu nova distinção à cadeira de Medi-

Offereço-Iho na hora em que abandóno a forte mâo que me amparava,

cina Legal, regida por Maximiano Lemos, protelando a etapa final na conquista

para seguir sósinho o fadigoso trilho da vida; offereço-lho depondo nessa

do diploma de curso ao não requerer de imediato o ato grande, onde cada aluno

bondosa mão protectora um beijo de enternecido reconhecimento. Possa

teria de defender uma dissertação original sobre uma matéria cirúrgica e pro-

o meu livro, na tosca simplicidade da sua escripta e na aborrecida aridez

posições médico-cirúrgicas relativas a cada uma das treze cadeiras frequenta-

dos seus numeros, significar-lhe que a minha unica, mas tão desmesura-

das. A razão para tal foi apresentada, algo sub-repticiamente, numa recensão

da ambição, é que um dia, em ter este filho, sinta uma diminuta parcella

bibliográfica à tese análoga de um colega vimaranense da escola:

daquelle orgulho, mais do que nenhum legitimo, que eu sempre tive em

Em geral as dissertações da Escola do Porto são copilações feitas sobre

chamar-lhe pae.22

o joelho e infelizmente quasi sempre mal escriptas, sem um plano racio-



nal, sem um criterio orientador que as absolva de plagiato. Modernamen-

Na sua franqueza e modéstia admitia que o livro era uma obra escrita com

te até, o simples relatorio de um caso clinico desprovido de importancia,

alguma pressa pelos prazos estipulados, muito ficando por versar e que ou-

chega para construir um estudo d’estes, elaborado sem amôr como pe-

tros poderiam retomar a posteriori para aperfeiçoar, ao agendar-se a defesa da

nosa obrigação. O dr. Gilberto Pereira, que tinha tradições de estudante

dissertação inaugural à Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a 30 de janeiro de

modelo a honrar, não enveredou por este errado caminho.21

1907. O júri de lentes nomeado para presidir ao ato grande do candidato exaltou a brilhante prova académica, honra raramente concedida aos finalistas, ao

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JOÃO DE MEIRA

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atribuir-lhe a classificação máxima de Muito Bom – 20 valores. Do seu curso

sciencia muito duvidosa. Quando produzem uma epopeia, é a “Insulana”.

somente o Dr. Aarão Ferreira de Lacerda, doutor em filosofia pela Universida-

Quem a leu? Quando organizam a historia, são as “Memorias ressuscita-

de de Coimbra e professor na Academia Politécnica do Porto, tinha sido distin-

das”. Quem as acredita? Quando concebem um invento, é o” Engenhoso.

guido com essa nota e foi o diplomado melhor classificado por apenas um valor,

Quem o conhece? Na historia collectiva nada distingue os vimaranenses

visto o antigo discípulo João de Meira concluir o curso superior em segundo

dos demais portuguezes. Foram, tour-à-tour, valentes e cobardes, desin-

lugar com o resultado de Bom – 16 valores.23

teressados e gananciosos, orgulhosos e abatidos, acompanhando as fluc-



tuações da patria.25

Da tribuna escolar a tese foi rapidamente divulgada para o grande público 23 Escola Médico-Cirúrgica do Porto, Annuario da

recebendo apreciações, mais ou menos, elogiosas nas revistas da especialidade



A Medicina Contemporânea e A Medicina Moderna, bem como a congratulação

Como tal, firmava-se seguramente o historiador e investigador e a sua metodolo-

de grandes nomes da Cultura portuguesa com missivas de Ramalho Ortigão,

gia e principais linhas do pensamento científico que afloraria daí em diante, pre-

Ferreira de Castro, Gama Barros, Teófilo Braga ou José Caldas, aos quais o au-

ponderando a corrente positivista no ideal de objetividade absoluta. João de Mei-

tor ofertara a sua tese. Este último escrevendo-lhe: “há muito que não leio tra-

ra revelava bem essas características: a investigação documental como fonte de

balho português tão sòlidamente documentado, nem exposição mais lúcida e

partida para o conhecimento, a revisão da autenticidade dos documentos, uma

mais sóbria do que o seu livro ostenta… Tem V. grandes e primaciais qualidades

erudição cultural de monta no confronto da bibliografia ou a sua imparcialida-

como investigador e erudito”.24 Os dois capítulos de Nosografia e o de História

de como historiador perante os factos históricos. O resultado supremo desejado

foram alvo de maior realce, sendo que no de teor clínico procedera a uma aná-

era a apresentação de verdades positivamente incontestáveis, mesmo que neste

lise de múltiplos dados clínicos dos hospitais locais sobre o estado de saúde e

processo a História se reduzisse principalmente aos acontecimentos políticos…

doenças típicas da população vimaranense, rentabilizando os anteriores dados



recolhidos referentes à Pelagra.

que o recém-formado seguisse essa carreira profissional, mas foram fugazes os



E, especialmente, a síntese histórica de Guimarães e do seu termo, desen-

anúncios de publicidade como clínico particular no centro de Guimarães, limi-

volvida em 43 páginas, desde os tempos pré-históricos ao período da Regeneração,

tando-se a assistir a algumas operações cirúrgicas realizadas pelo progenitor nos

que se pode qualificar como um dos primeiros trabalhos genuinamente científicos

hospitais locais, que mais tarde manteve pontualmente nas suas estadias pela

dessa índole para a localidade. Muito graças a uma visão independente, segura,

cidade. Antes perdurava o periodista n’ O Independente e na Revista de Guima-

criteriosa e em certos apontamentos original, familiarizado com os cronistas an-

rães com novos artigos: “Subsídios para a história vimaranense”26 e “Irmandade

tigos e historiadores modernos e sem receio em rematar ou emendar algumas

de Nossa Senhora da Consolação”27, transcrevendo e comentando os códices e

passagens escritas por Martins Sarmento, Alberto Sampaio ou o amigo Abade de

manuscritos originais utilizados na escrita da monografia académica.

Tagilde. Apesar de se devotar ao serviço da grandeza patriótica, que nem sempre



engrandecia a história de Guimarães, ao de leve traçava uma conclusão final cen-

rios no Seminário-Liceu Nacional de Guimarães, procurou conciliar a Medici-

surável ao solo dos seus antepassados e a um certo comodismo das suas gentes:

na com o magistério secundário ao qual optaria por concorrer, depois de nome-

Escola Medico-Cirurgica do Porto – ano lectivo de 1906-1907 (Porto: Typ. Arthur José de Souza & Irmão), 113.

24 Sociedade Martins Sarmento (ed.), ““O Concelho de Guimarães“”, Revista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 204.

25 João Monteiro de Meyra, O Concelho de Guimarães: estudo de demographia e nosografia, 172.

26 Artigo publicado em três partes entre 1907-1908. João de Meira, “Subsídios

Na posse do diploma médico-cirúrgico, aos 25 anos de idade, esperava-se para a história vimaranense”, Revista de Guimarães (vol. 24, fascs. 1,

1907), 36-44; (vol. 24, fascs. 2, 1907), 67-78; (vol. 25, fascs. 1, 1908), 30-38. 27 João de Meira, “Irmandade de Nossa Senhora da Consolação”, Revista de Guimarães (vol. 24, fascs. 3-4, 1907), 179-188.

28 O diploma de nomeação como clínico efetivo do Hospital da Venerável Ordem Terceira de S. Domingos de Guimarães data de 28 de dezembro

de 1908, tendo pedido João de Meira a exoneração do mesmo logo a 25 de janeiro de 1909. Luís de Pina, “Vimaranes: materiais para a

história da medicina portuguesa: arqueologia, antropologia, história” (Porto:

Porém, face ao anúncio da abertura de vagas para professores provisóAraújo & Sobrinho, 1929), 289-290.

Em toda a historia vimaranense raros homens luzem como cerebrações

ado clínico interino no Hospital da Ordem de S. Domingo, a 12 de setembro de

superiormente organisadas. Os poetas são insulsos; os sábios, de uma

1907, decorrido um ano atingindo a efetividade.28 Promulgadas as nomeações

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para a secção do Liceu Nacional foi integrado no seu corpo docente interinamen-

título de O Parto Cesareo: sua historia, sua technica, seus accidentes e compli-

te, para o ano letivo de 1907-1908, responsável pela regência a três turmas das

cações, suas indicações e prognostico31, sobressaindo entre os seus capítulos o

disciplinas de Matemática à 2.ª classe e de Francês à 4.ª classe.29

da história da cesariana, notável resenha desde os mitos greco-romanos à evo-



Em início de junho, fora oficializado o pedido de casamento de João Mon-

lução das teorias e técnicas implementadas pelos principais cirurgiões da área,

teiro de Meira à vimaranense D. Madalena Baptista Sampaio (1879-1961),

amadurecido numa revisão crítica de bibliografia estrangeira ante os parcos

nascida na Casa da Carrapatoza da freguesia citadina de Oliveira, de 28 anos

trabalhos nacionais.

de idade. A noiva era filha de João Baptista Gonçalves Sampaio e de D. Virgínia



da Madre de Deus da Silva Ribeiro, neta paterna do ilustre comendador João

no ensino superior, a 17 de janeiro de 1908, tendo sido interrogado pelos len-

Baptista Sampaio e aparentada com a família dos condes de Margaride. Alguns

tes Sousa Júnior e Joaquim Pires de Lima, seu amigo íntimo de uma década.

dias depois do início das aulas, na tarde de 19 de outubro de 1907, era celebra-

Passado uma semana, discutiu o tema sorteado para ponto da lição de Anato-

da a união na capela de Nossa Senhora do Bom Despacho de Gominhães, sendo

mia Descritiva, com os professores Roberto Frias e Carlos de Lima, versando o

testemunhas do noivo os seus pais, Joaquim José de Meira e D. Adelaide Sofia

“Apparellho visual: morphologia e evolução ontogenica e phylogencia”.32 O con-

da Silva Monteiro.30

curso foi abruptamente interrompido pelo decreto de luto nacional na sequên-



Presumivelmente no edifício destes últimos, o novo casal fixou a sua re-

cia do regicídio de fevereiro de 1908, acontecimento que terá sido chocante

sidência na rua de D. João I, mas o novo chefe de família estaria já a ponderar

para a família Meira pelo seu significado patriótico, tanto quase como pelas

em nova mudança de vida. De facto, publicado o edital do concurso para luga-

implicações políticas associadas a João Franco que caía em desgraça, sem que

res de lentes substitutos e demonstrador na secção cirúrgica em finais desse

pai e filho renunciassem totalmente à sua amizade.

ano, os mestres da Escola Médico-Cirúrgica do Porto instigaram-no a se apre-



sentar às provas públicas para a docência na sua antiga escola. João de Meira

João de Meira a prestar a primeira prova prática de Medicina Operatória e a

submeteu o seu requerimento de candidato, a par de José de Oliveira Lima

segunda lição “Tumores: tumores do typo conjunctivo” sobre Anatomia Pato-

e Álvaro Teixeira Bastos, pois essa carreira não só lhe conferia prestígio so-

lógica, argumentada pelos mesmos elementos do júri inaugural. Por fim, a 5 de

cial e económico, como lhe permitiria dar continuidade às suas investigações

março de 1908, os três candidatos fizeram a segunda prova prática de Clínica Ci-

histórico-científicas.

rúrgica, redigindo o segundo dos relatórios práticos de observação dos doentes



As complexas formalidades do concurso ditavam a alegação de nova

atribuídos, entregues à consideração do júri académico por votação em sessão

dissertação original, agora obrigatoriamente de um assunto clínico, tendo

secreta. O resultado final do concurso atribuiu o primeiro lugar a João de Meira,

selecionado a operação cesariana, que o progenitor introduzira como prática

pelas exímias exposições e alegações pronunciadas, seguido de Oliveira Lima e

cirúrgica no Hospital da Misericórdia, sendo o pioneiro em Guimarães, a ou-

Teixeira Bastos, entrando os três candidatos como lentes da instituição.

tubro de 1903. Conquanto fosse uma técnica raramente praticada, reconhe-



cendo até que lhe faltava o conhecimento prático desse tipo de casos clínicos,

da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, por decreto de 7 de maio de 1908, per-

notava que tal se devia ao pouco conhecimento em Portugal das vantagens na

mitiu ainda no final dos seus 26 anos nova ascensão social a João de Meira. A

proteção das parturientes e dos recém-nascidos. A obra impressa recebeu o

tomada de posse oficial do lugar foi marcada para o dia 14 do mesmo, mas sem

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29 Seminário-Liceu Nacional de Guimarães, Annuario do Seminário-Lyceu Nacional de Guimarães: 1907-1908 (Guimarães: Typ. Minerva, 1908).

30 Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Livro Paroquial de Casamentos de São Paio:1897-1911 (P-1421), fl. 8v-9.

A defesa desta tese marcou o início das suas provas à carreira docente 31 João Monteiro de Meyra, O Parto Cesareo: sua historia, sua technica, seus accidentes e complicações, suas indicações e prognostico (Porto: Typ. Industrial Portuguesa, 1908).

32 Thiado d’Almeida [coord.], Annuario da Escola Medico-Cirurgica do Porto – ano lectivo de 1907-1908 (Porto: Typ. Industrial Portuguesa, 1908), 281-296.

Na segunda quinzena desse mês retomaram-se os atos formais, com

A nomeação para o primeiro dos lentes substitutos da secção cirúrgica

que exercesse de imediato essas funções pelos compromissos que o retinham

determinando o conselho escolar da Escola Médico-Cirúrgica do Porto que

em Guimarães. Por conveniência de serviço, até porque no estabelecimento

João de Meira assumisse a cadeira do lente proprietário Maximiano Lemos,

portuense as aulas terminavam para a época final de exames, manteve-se no

que se ausentava de licença oficial, por dois anos, para se dedicar às suas inves-

Liceu Nacional da sua cidade natal para concluir as atividades letivas e presidir

tigações históricas na escrita da monografia sobre Ribeiro Sanches.

aos júris de exames liceais na disciplina de Matemática de todas as classes.





Todavia, maior felicidade pessoal terá sido a estreia na paternidade com

mente o mestre na 11.ª cadeira de Medicina Legal e, por inerência de funções, a

o nascimento do seu primeiro filho na sua freguesia natural de São Paio, na

de diretor da Morgue do Porto. Função nem sempre fácil a um espírito como seria

manhã de 15 de agosto, um menino a quem deram o nome de Joaquim.33 Numa

o seu, claramente bem mais sensível e melancólico pelas suas especulações lite-

certa tradição familiar, a criança herdou o nome do avô paterno e seu padrinho

rárias, mas que desempenhou com todo o profissionalismo e cuidado em se man-

de batismo com a avó materna, abençoado pelo prior que batizara e casara o

ter atualizado em termos de matérias científicas e de bibliografia internacional.

pai. Deste modo na companhia da mulher e do filho, em meados do mês de

Talvez se compreenda daí o seu nome figurar entre os principais utilizadores da

outubro, fixou residência no Porto na rua do Vale Formoso, assumindo as suas

biblioteca escolar, sendo um dos professores com maior número de obras requi-

funções de lente substituto sem ter uma cadeira atribuída como era norma,

sitadas em consulta domiciliária de ano para ano! Distinguindo a sua probidade

ministrando as aulas práticas nas cadeiras da sua secção de ensino conforme

científica, Maximiano Lemos resolveu ainda convidar o seu substituto na cátedra

as necessidades da escola.

para partilhar a redação dos Arquivos da História da Medicina Portuguesa, que



decidira retomar numa segunda série após um hiato de quatro anos.

33 Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Livro Paroquial de Batismos de São Paio: 1907-1911 (P-1798), n.º 39 de 1908, fl. 16v-17.

34 Artigo decomposto em três partes publicadas entre 1908-1910.

João de Meira, “Subsídios para a história vimaranense no tempo do Prior do

Crato”, Revista de Guimarães (vol. 25, fascs. 3-4, 1908), 143-161; (vol. 26, fascs. 1-2, 1909), 41-60; (vol. 27, fascs. 2, 1910), 73-75.

35 João de Meyra, “Assistência Publica em Guimarães: Gafarias”, Gazeta dos Hospitais do Porto (2.º ano, n.º 21, 1908).

36 Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Livro Paroquial de Óbitos de São Paio:

Em paralelo, à publicação do artigo “Subsídios para a história vima1901-1911 (P-1624), n.º 11 de 1909, fl. 3v-4. 34

O lente substituto tomou a si a responsabilidade de substituir provisoria-

37 Maximiano Lemos; João de Meira (red.), Archivos da História da Medicina Portugueza (Porto: Lemos e Cª Succor, 1910).

ranense no tempo do Prior do Crato” para a Sociedade Martins Sarmento,



Esta prestigiada publicação científica sob o mote da evolução da Ciência

dando a conhecer novos manuscritos sobre a história local, foi convidado a co-

portuguesa, cujo primeiro volume saiu do prelo em 1910, era altamente citada

laborar na Gazeta dos Hospitais do Porto com o estudo histórico-médico: “As-

entre a comunidade de cientistas das mais diferentes áreas do conhecimen-

sistência Publica em Guimarães: Gafarias”35, pela mão de Maximiano Lemos.

to pelos nomes sonantes que a ela recorriam para divulgar os seus trabalhos,

A proximidade e convívio com o aclamado pai da História da Medicina portu-

chegando a ter alguma repercussão no meio internacional. João de Meira, que

guesa perfilhava a sua crescente predileção intelectual pela vertente histórica,

coordenou as edições dos três primeiros anos, subscreveu aí inúmeros estu-

embora continuasse a gravar o seu nome em diversas publicações de renome

dos de índole histórico-médica, mostrando uma valia e erudição tanto nesse

com artigos científicos, históricos, clínicos e literários: Porto Médico, Cosmos,

tipo de entradas como em recensões e bibliografias, todos eles resultantes de

Jornal de Paços de Ferreira, A Palavra, entre outros.

sólidas investigações documentais e juízos lógicos em análises coerentes. O



O ano de 1909 poderá ter desvendado um misto de alegrias e tristezas

primeiro artigo do ano inaugural “D. Pedro V morreu envenenado?”, silenciava

no percurso de vida de João de Meira. Quando regressaram à casa na rua de

as teorias de conspiração sobre a morte do rei português e dos irmãos infantes,

D. João I para as férias de verão, a morte arrebatou o seu primogénito de onze

ao realçar pelos boletins clínicos e notícias oficiais da Coroa que os sintomas

meses, na madrugada de 14 de julho, sendo a criança sepultada no jazigo dos

descritos correspondiam aos da febre tifoide.37

Meira, no adro da capela de Nossa Senhora do Bom Despacho.36 No posterior



regresso à cidade invicta o casal alugou uma casa na contígua rua da Rainha,

o casal recebia com gáudio uma filha: Virgínia Adelaide, combinando o nome

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

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JOÃO DE MEIRA

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Entretanto, a 30 de abril de 1910, na casa paterna ao Largo do Toural,

próprio de ambas as avós, batizada na mesma igreja de São Paio com os mes-

Ambos os jornais anunciaram com grande destaque os achados poéticos, fa-

mos padrinhos do falecido irmão, que veio a ser a única descendente de João de

zendo total fé na sua autenticidade diante os típicos estilos de escrita que

Meira.38 No final do ano letivo de 1909-1910, João de Meira assinou o relatório

manifestavam, que João de Meira não procurou desmistificar publicamente,

da disciplina que regia na escola portuense, uma descrição do programa de

senão junto de alguns amigos com um certo gozo perante a credulidade dos

estudos desenvolvido com os alunos do curso médico-cirúrgico e dos trabalhos

jornalistas. Até meados do século passado, o último poema integrou várias co-

práticos realizados, discorrendo criticamente sobre os inconvenientes na dis-

letâneas de poesia portuguesa como se de um original de Cesário Verde se tra-

tribuição da carga horária e as instalações pouco condignas da sala de autóp-

tasse, enfim só reposta a verdade por Joel Serrão em 1958!41

sias para a formação académica.





Outro ponto sensível prendia-se com o funcionamento da Morgue do

cações que poderia ter representado para uma família de monárquicos como

Porto, quer pelas contendas com as autoridades civis no trato dos serviços de

era a destes vimaranenses, significou um progresso na carreira da docência

autópsias e de outros exames de perícia médico-legal, quer pela desorganiza-

universitária de João de Meira, com a ampliação do ensino universitário às

ção administrativa da secretaria, tendo-se empenhado pessoalmente em com-

cidades de Lisboa e do Porto, sendo fundada a Universidade do Porto pelo Go-

pilar todos os dados estatísticos desde a sua fundação dez anos antes. Essa

verno Provisório, homologada pelo decreto de 22 de março de 1911. Conquan-

estatística, comentários e relatórios dos casos mais peculiares foram divulga-

to tal promoção nada mais se tratasse que uma mera transfiguração do ante-

dos nas edições seguintes da Gazeta dos Hospitais do Porto: “A propósito do

rior quadro de ensino superior, envolto em promessas de uma modernização

“Zacuto Lusitano“ (Carta ao Prof. Maximiano Lemos)” (1909), “Alguns dados

pedagógica e cultural, o corpo docente da Escola Médico-Cirúrgica do Porto

estatísticos da Morgue do Porto: o ano de 1909” (1910), “A cólera no Porto” e

foi reconduzido nas suas funções para a nova Faculdade de Medicina da Uni-

“Ferida no tórax: relatório médico-legal” (1911) ou “Um caso de assassinato

versidade do Porto. A contar os 30 anos, João de Meira ascendeu à categoria

e suicídio: relatório médico-legal” (1912). Como professor de Medicina tradu-

universitária máxima de professor ordinário, afeto à 3.ª classe: Farmacologia

ziu ainda o manual Maravilhas da Vida do naturalista alemão Ernst Haeckel,

e Ciências Naturais, regendo a primeira das matérias e o Dr. Aarão Ferreira de

grande apologista das filosofias positivista e evolucionista, numa encomenda

Lacerda a segunda parte na Faculdade de Ciências.42

da portuense Livraria Chardron, também denominada de Lello & Irmão.40





Ao mesmo tempo, extravasava com vigor o literato e poeta entorpecidos

ra, por conveniência do serviço letivo, foi mantido interinamente na de Medicina

nas exigências docentes, revivendo dos tempos de mocidade o hábito dos escri-

Legal e na direção da Morgue do Porto, logrando uma proposta do conselho esco-

tos apócrifos de nomes prezados como uma recreação satírica, graças às suas

lar da faculdade na nomeação para a nova cadeira de História e filosofia Médica

extraordinárias capacidades intelectuais e literárias. Nesse mês de setembro,

e Ética Profissional, em sessão de 22 de novembro desse ano.43 Sujeita a decisão

sob nomes falsos e histórias convincentes de supostas descobertas de manus-

à autorização ministerial que tardava e que nunca se concretizou em vida, João

critos inéditos, ousou enviar alguns sonetos da sua pena para dois periódicos:

de Meira aguardou certamente com alguma frustração pessoal essa permuta,

ao Diário da Tarde o soneto “Terror” de Antero de Quental, encontrado em Vila

agravando-se o transtorno pela morte precoce do irmão José Joaquim, vítima de

do Conde por Miguel da Costa Maya, ao Dia o poema “Loira” de Cesário Verde,

uma meningite tuberculosa, ocorrida semanas antes.

38 D. Virgínia Adelaide Sampaio de Meira faleceu em Guimarães, a 14 de 39

Outubro de 1988, e foi casada com o tenente-coronel Eduardo Nascimento

Carneiro Allen. Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Livro Paroquial de Batismos de São Paio: 1907-1911 (P-1798), n.º 31 de 1910, fl. 13v-14.

39 João de Meyra, “O ensino da Medicina Legal” in Annuario da

Escola Medico-Cirurgica do Porto – ano lectivo de 1909-1910 (Porto: Typ. Industrial Portuguesa, 1910).

40 Ernst Haeckel: João de Meyra (tradução), Maravilhas da Vida: estudos de

philosophia biologia, para servirem de complemento aos Enigmas do Universo (Porto: Livraria Chardron, 1910).

41 Joel Serrão, “O poema “Loira” não é de Cesário Verde”, Gazeta musical

O triunfo do movimento republicano de 5 de outubro, aparte as implie de todas as artes (n.º 91-92, 1958), 157-158.

42 Decreto com força de lei de 22 de fevereiro de 1911: reforma do ensino médico. 43 Luís de Pina, “Sherlock Holmes no Porto: contribuição portuguesa para a história do romance policial científico”, Revista de Guimarães (vol. 71, fasc. 1-2, 1961), 103.

Só que na realidade, o antigo lente substituto jamais ministrou essa cadei-

remetido por José do Nascimento Monteiro em Guimarães.

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

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JOÃO DE MEIRA

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Os seus conhecidos e alunos reconheceram uma mudança na postura do pro-

Parte desse conjunto de pastiches foram compilados depois no pequeno opús-

fessor, um homem mais taciturno e solitário, refugiando-se cada vez mais nos

culo Reincidencia, apenso a pretensas licenças públicas em nomes de cada um

seus tempos livres na família e nos livros, mas mantendo uma capacidade de

dos professores presentes no evento e idealizando uma carta ao editor por um

trabalho inesgotável, como atestam os Arquivos da História da Medicina Por-

Ricardo Jorge, um prefácio de Teófilo Braga e o antelóquio de Sampaio Bruno,

tuguesa. Do segundo ano publicado em 1911 imprime um rol extenso de ar-

este à laia de justificação do cerne deste tipo de escrita:

tigos próprios: “A morte de D. Estephania”, “A lepra do Marquez de Pombal”,

Feixe de imitações, pastiches, ou o quer que é, pretende seu autor que bre-

“Se Pedro Amarello foi medico do Conde D. Henrique e de D. Affonso Hen-

ve explicação eu aqui lhe exare. Vá de fazer-lhe a vontade. Mais não pode

riques”, “A peste de 1384, e as diversas palavras empregadas para designar

ser, conforme em seu recente volume da Formation du style o francês Al-

o bubão pestilencial”, “Breve nota acerca das edições da “Cirurgia” de Cruz”

balat pretende, esta ordem de trabalhos que, de ginástica literária, simples

e a “Da peste de 1415 e da palavra trama significando bubão pestilencial”.44

exercício. E quão fácil seja imitar um autor, pois que difícil se não torna



No entanto, foi um espirituoso João de Meira que compareceu na resi-

apanhar-lhe os defeitos e exagerá-los em traço caricatural, vai para um sé-

dência particular de Maximiano Lemos, na noite de 2 de dezembro de 1911,

culo que o Marquês de Roure o escreveu. Mas verdade manda que dito fique

para tomar parte no jantar que o insigne professor oferecia aos antigos colegas

ser o pastiche um estudo útil, que leva a analisar o estilo dos mestres e

de magistério superior, como tributo às honras prestadas pela Faculdade de

orienta para que um estilo próprio se obtenha, embora paradoxal pareça.46

46 Ibidem.

44 Maximiano Lemos; João de Meira (red.), Archivos

da História da Medicina Portugueza (Porto: Lemos e Cª Succor, 1911). 45 João Monteiro de Meyra, Reincidencia

(Porto: Typ. da Enciclopédia Portuguesa, 1911).

Medicina do Porto face ao seu pedido de exoneração. Numa homenagem pes-



soal ao amigo surpreendeu os convidados com um singular folheto “In Memo-

Em seguida, por ordem cronológica, desfilam composições poéticas d’ el-rei D.

riam”, declamando pequenos trechos de prosa e poesia de escritores de todas

Dinis, Cristóvão Falcão, Camões, Diogo Bernardes, Bocage, António Nobre e

as eras e nacionalidades, perfeitos no domínio de estilos de escritas e ideais

Faustino Xavier de Novaes; intercalados com prosas de Fernão Lopes, Rabe-

literários de cada nome apropriado. Não fossem as referências elogiosas ao

lais, Padre António Vieira, Camilo Castelo Branco, Émile Zola, Eça de Queirós,

carácter e reputação do laureado nessas linhas, as dúvidas momentâneas du-

fialho de Almeida e Conan Doyle. Mais do que mera distração e fonte de prazer

rante o recital eram elucidadas em meras imitações sublimes e originais, como

retirada na conceção destes e outros pastiches, o que se ressalva é uma inteli-

o modelo de uma crónica medieval de Fernão Lopes:

gência perspicaz, uma cognição literária incomum e uma metódica capacidade

Em aquesto tempo vivya em Gaya que ora chamom villa nova delRey un

de trabalho, que permitiam a João de Meira adaptar o seu pensamento ao tom

homē muy honrado e bom letrado, amiguo de poer por letra as vidas dos

e índole característicos dos autores originais. Uma ilustração deste alto e ad-

que antiguamente uzaram de çolorgia e physica, e lia physica no Estudo

mirável valor literário poderá ser este soneto, inteligentemente moldado à luz

do Porto O qual se chamava Mestre Maximiano e era muy aceyte delRey,

do famoso “Auto-Retrato” de Bocage:

que folgava muyto de o ouvir. E sendo de LI annos pouco mais e menos



se veio aa junta, que o reformassem, que era sordo e mais nom podia ler

O Seu Retrato

physica; e o reformaram e se foi ende a tornar pera seu: livros. Por cujo aazo prouge a seus amiguos de lhe offerecer de jantar que todos come-

Verruga no nariz, barba aguçada.

ram e grandemente lhes prestou.45

Curta a vista, o pescoço e o cabelo;

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

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JOÃO DE MEIRA

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Gordo, mas não de mais, um ar singelo,

nense que se deteta pela recuperação de autores contemplados nos seus pasti-

A mão pelo cigarro defumada.

ches: Conan Doyle e Camilo Castelo Branco.

Linda gravata, roupa bem talhada,



Chapéu em que Avelino pôs bom pêlo,

fictício Holmes e Watson, confere a um Donan Coyle duas partes de uma série

Colete que o Viegas cora ao vê-lo.

Sherlock Holmes no Porto, o primeiro conto “O cadáver que se evade” acompa-

Bota de couro inglês bem engraxada.

nhado por “O “truc” de Mr. Raymond”.49 Considerados pioneiros na introdução

Do anacronismo do escritor inglês, célebre pela dupla de detetives

do romance policial científico em Portugal são pequenas estórias de casos mis49 Donan Coyle (João de Meira), Sherlock Holmes no Porto (Guimarães:

Escritor que procura novidades

teriosos resolvidos pelos detetives ingleses pretensamente instalados na cidade

Nos entulhos do eterno esquecimento

do Porto, um o desaparecimento de um cadáver da Morgue do Porto e o crime

E assim faz reviver outras idades.

de assassinato que lhe estava associado, o outro a explicação de um truque de

Sociedade Martins Sarmento, 2009)

50 João de Meira, Eusébio Macário em Guimarães (Braga: Irmandade de Nossa Senhora do Bom Despacho, 1981).

magia num espetáculo de prestidigitação assistido na sala Águia d’Ouro. Eis Lemos, em quem luz grande talento.



Quanto ao conto Eusébio Macário em Guimarães: capítulos suplementa-

Um colega escreveu estas verdades

res á Corja de Camillo Castello Branco voltava a fazer passar por um manus-

Dizendo ser Bocage em tal momento.

crito póstumo do romancista português, achando dois capítulos com um título

Bocage [João de Meira]47

alternativo de O Gonçalinho de Carude, menção que surge na correspondência camiliana como um romance inacabado.50 O enredo baseava-se nas persona-

A boa recetividade a estas experiências literárias levaram-no a dedicar-lhes

gens das novelas homónimas Eusébio Macário e A Corja agora situando-as em

maior atenção e a delinear novas narrativas no decurso de 1912, isto sem me-

pleno centro de Guimarães, onde o casal Eusébio Macário e a nova esposa Eu-

nosprezar a atividade docente na Universidade do Porto e as investigações

fémia Troncha alugando um boticário local trocaram as terras de Basto para

histórico-médicas para a imprensa. Nos Arquivos da História da Medicina Por-

viver novas peripécias de vida e de amor.

tuguesa editaria “Os Gafos do Nobiliário” e “João Cardoso de Miranda e a sua



Relação cirúrgica e medica”48, neste em particular aplicando a exegese lite-

rismos dos estilos literários singulares, alternando entre a caracterização plena

rária para recuperar uma versão inédita da obra, ao I Congresso Nacional de

das figuras e descrições paisagísticas tipicamente minhotas de Camilo e a estru-

Deontologia Médica e Interesses Profissionais, em finais de fevereiro, proferia

tura lógico-dedutiva nas observações e discurso de Sherlock Holmes. Simples-

a conferência “Situação dos médicos-legistas”.

mente as delicadas alusões a certas situações e acontecimentos privados denun-

No Mundo IIlustrado: jornal de viagens e de aventuras de terra e mar,

ciam o engenho oculto de João de Meira nestes contos, como os rostos e costumes

publicada no Porto nessa Primavera, o professor Eduardo Pereira Pimenta

típicos vimaranenses ou a escolha da Morgue do Porto e das ruas portuenses que

convence o colega João de Meira a colaborar no lançamento com alguns con-

trilhava no dia a dia, incluindo a morada completa da anterior casa alugada em

tos, figurando entre Guerra Junqueiro, Raul Brandão, Júlio Dantas, Ana de

Vale Formoso. A sua ironia leva-o até a parafrasear a estupefação da dupla Hol-

Castro Osório ou Antero de figueiredo. Fragmentados por vários números e

mes e Watson perante as deploráveis condições do serviço que dirigia na vida real

sem a sua assinatura explícita, surgem três contos curiosos do ilustre vimara-

ou o fraco domínio da língua portuguesa pelos jornais diários nacionais!

47 Idem.

48 Maximiano Lemos; João de Meira (red.), Archivos da História da Medicina Portugueza (Porto: Lemos e Cª Succor, 1912).

Em qualquer um destes textos João de Meira consegue capturar os manei-

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JOÃO DE MEIRA

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A veneração por um Camilo Castelo Branco desprezado pela cultura nacional

favor dos progressos na ciência médica portuguesa. Aparte os novos desafios

poderia encobrir o motivo para o pequeno artigo n’ O Ave: gazeta de Santo

da Faculdade de Medicina entre as reformas educativas, com mudanças per-

Thyrso: Influências estrangeiras em Eça de Queiroz, firmado no seu vasto co-

niciosas nas orientações curriculares e metodologias pedagógicas, demorou-se

nhecimento da literatura portuguesa e europeia.51 Num procedimento moroso

na valorização da missão do professor e na necessidade de se articular devida-

e crítico confronta períodos queirosianos com outros semelhantes de escrito-

mente o conhecimento teórico com os preceitos práticos:

res franceses e italianos, não para os considerar plágio por parte do roman-

Em medicina, mais do que em outra ciência, se caminha à custa de hi-

cista português, antes uma ascendência de obras em que arquitetara a sua

póteses. As doutrinas médicas são as etapes da medicina. Guiaram-lhe a

personalidade literária e que o levavam a transpor em analogias, descrições,

marcha, asseguraram-lhe o progresso. Os destroços, acumulados de tantas

ideias e traduções afins. No fundo, comparando-o consigo próprio ao reconhe-

teorias abandonadas, são os alicerces em que a medicina solidamente se

cer que a reprodução de um estilo literário, resultante de uma erudição rica e

firma. As teorias passam, mas ficam as verdades úteis que nelas se conti-

diversificada de temas e autores, era uma possibilidade de crescimento e aper-

nham. Apesar do seu número, apesar do seu curto reinado, muitas das dou-

feiçoamento da escrita individual…

trinas, que através dos séculos se sucederam, fizeram progredir a ciência.



Num último encontro com o Abade de Tagilde, dois dias antes do seu fa-

É por isso que eu não vejo sem receio o desaparecimento das cadeiras te-

lecimento em abril de 1912, este confessava ao seu seguidor na historiografia

óricas e a extensão crescente do ensino prático, apregoada como a orien-

de Guimarães o desejo em lhe dar continuidade ao projeto dos Vimaranis

tação verdadeiramente científica no aprender de medicina.53

53 João Monteiro de Meira, “Oração da Sapientia de 1912-1913” in

51 João de Meyra, Influências estrangeiras em Eça de Queiroz

Anuário da Faculdade de Medicina do Porto – ano lectivo de 1913-1914

(Famalicão, Typ. Minerva, 1912).

(Porto: Typ. Enciclopédia Portuguesa, 1915), XXVII.

52 Teixeira Bastos [coord.], Anuário da Faculdade de Medicina do Porto – ano

54 A doença que vitimou João de Meira nunca foi referida explicitamente

lectivo de 1913-1914 (Porto: Typ. Enciclopédia Portuguesa, 1915), XVII-XXXIV.

entre os testemunhos e esboços biográficos que nos chegaram, ainda que

pelos sintomas e descrições veladas na imprensa parece levantar suspeitas de tuberculose, a mesma causa de morte do irmão mais novo.

55 Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (ed.), João de Meira (vol. 16, 1936-1960), 748.

Monumenta Historica, compilação dos documentos históricos vimaranenses



mais representativos, do qual estava ultimado o primeiro volume. O alvitre

Essa premonição encontrar-se-ia já comprometida pelo estado de saúde fra-

do amigo e a sua maturidade e equidade científica foram determinantes no

gilizado de João de Meira, no deambular do novo ano de 1913, aos indícios

convite da Sociedade Martins Sarmento para a direção da publicação a João de

de uma doença fatídica.54 Numa carta ao Dr. Jorge de Faria, com a data de

Meira, que não disporia de tempo para alicerçar aí o seu cunho e continuar a

2 de janeiro, menciona que estava a preparar um estudo crítico sobre três

sua organização. O mesmo aconteceu com a direção dos Anais Scientificos da

edições distintas d’ O Crime do Padre Amaro de Eça de Queirós, denotando a

Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, por deliberação da institui-

forte influência de Flaubert na sua composição, que deixaria por terminar ao

ção na companhia de Teixeira Bastos, onde se limitou a preparar a edição do

adoecer em inícios do mês seguinte.55 A gravidade dos sintomas motivaram

primeiro volume de 1913-1914, sem deixar qualquer entrada bibliográfica.

o pedido de licença das funções na Universidade do Porto e, na companhia



da mulher e da filha com quase três anos de idade, regressou à cidade natal

Honrosamente, na cerimónia oficial da Faculdade de Medicina do Por-

to, em outubro, coube ao professor de Medicina Legal pronunciar a Oração

numa vã tentativa de recuperação.

de Sapiência de abertura solene do ano letivo de 1912-1913.52 O seu discurso



incidiu sobre uma resenha histórica do ensino médico no Porto, através do

tos de convalescença, persistia a distrair-se entre as suas predileções literárias e

papel da Real Escola de Cirurgia (1825-1836) e da Escola Médico-Cirúrgica

históricas. O parecer favorável de Carolina Michaëlis de Vasconcelos sobre a exis-

(1836-1911) no panorama formativo e científico, enobrecendo-as e aos lentes

tência de um auto perdido do pai do Teatro português nas malhas da Inquisição,

falecidos por terem antecipado muitas das iniciativas oficiais promulgadas, a

o Jubileu de Amores de Gil Vicente, estimulou outra das suas recriações literárias

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

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JOÃO DE MEIRA

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Em Guimarães viveria os últimos meses de vida e, nos pontuais momen-

apócrifas sob o pseudónimo de Seara Alheia. Ainda que tivesse sido enviado no

rães datam do século XVII e não alegam autoridade mais antiga. Como

seu verdadeiro nome a um redator literário para atestar a sua veracidade, expli-

consequência: é incerta a naturalidade de D. Afonso Henriques.

cando ter-se deparado com o auto nas folhas de um obituário do Mosteiro de S.

V. O Arcebispo S. Geraldo já tinha falecido em 1109. Como consequência:

Jerónimo do Mato de Alenquer, afiançava que o comprara num alfarrabista em

não é provável que baptizasse o rei, nascido, ao que parecem em 1111.57

1878! Este folheto foi deixado propositadamente inacabado, com a palavra final



“lacuna” a querer induzir que o texto original completo não fora achado.56

Desde meados de março, o Comércio de Guimarães foi dando pequenas notí-



O último trabalho histórico de João de Meira, requisitado para a sessão

cias sobre a evolução da moléstia de João de Meira, indicando que se recolhera

solene de aniversário da Sociedade Martins Sarmento, a 9 de março de 1913,

ao leito e diversos médicos foram consultados na procura de tratamentos que

nunca chegaria a ser apresentado pela sua voz. Quezílias de política municipal

lhe permitissem algumas melhoras. Numa casa de clínicos reinava a perfeita

consumaram o cancelamento dessa cerimónia, meses mais tarde ofertando

consciência da sua perdição na ausência de uma cura eficaz, enquanto o pai in-

Joaquim José de Meira esse manuscrito à direção desse organismo cultural.

terrompia os compromissos profissionais para acompanhar a estado de saúde

“Guimarães: 950-1580. Conferência inédita”, não obstante retomar muitas

do seu primogénito, lamentando aos amigos só poder apreciar tão tardiamente

das ilações de estudos anteriores, resiste como uma pertinente resenha histó-

as suas muitas qualidades pessoais.

rica de Guimarães com conclusões a contestar verdades históricas seculares



que os vimaranenses insistiam em ignorar e desprezar, julgando ser mais bár-

minhães, a 13 de maio, primeiro para a quinta de uma tia defronte da capela

baro não as conhecerem do que sustentarem tais fraudes:

de Nossa Senhora do Bom Despacho, depois para a quinta paterna do Picouto

56 Seara Alheia (João de Meira), Gil Vicente: Jubileu de Amores – 1550 (Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 2002).

57 João de Meira, “Guimarães. 950-1580. Conferência inédita”, Revista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 151.

Com o intuito de “apanhar ares” a família mais próxima partiu para Go-

I. Guimarães nasceu em volta do convento fundado por Mumadona numa

de Baixo, que seria a sua última morada. Aí recebeu Maximiano Lemos que

quinta sua, no meado do século X. Anteriormente a esta data não existia

se deslocara para o ver e com quem passeou ao ar livre pela propriedade, pro-

no local onde nos encontramos qualquer agregado urbano. Como conse-

vavelmente naquela que deve ter sido uma das últimas visitas fora do círculo

quência: nem Guimarães pode ter sido a Araduca de Ptolomeu, nem S.

familiar, e com quem continuaria a trocar correspondência.

Dâmaso, que viveu no século IV, pode ter sido vimaranense.



II. A Igreja de Sant’Iago foi construida pelos franceses que acompanha-

1913, João de Meira aludia ao abatimento físico e moral em que vivia, sem

ram o Conde D. Henrique, e na sua descendência se manteve muitos

demais esperanças, permanecendo em repouso absoluto face à falta de forças

anos. Como consequência: esta igreja não pode ter sido templo de Ceres,

e do persistente cansaço. De mente ainda lúcida e burlesca, em retribuição

nem Sam Tiago a pode ter cristianizado.

da sua presença oferecia-lhe um soneto de António Nobre, que dizia ter des-

III. O castelo de Guimarães chamava-se de S. Mamede. Os documen-

coberto numa das paredes do velho solar: “À Senhora da Boa Nova de Leça da

tos coevos dizem que a batalha de S. Mamede se feriu junto do Castelo.

Palmeira”. Talvez este pastiche seja uma das suas últimas composições, dele

Como consequência: a batalha entre D. Afono I e sua mãe não se deu em

derivando um outro recolhido entre os seus rascunhos finais em tom mais co-

qualquer ponto do Vale de S. Torquato.

loquial e de epitáfio fúnebre à Senhora do Bom Despacho da localidade:

IV. Nenhum documento coevo diz que D. Afonso Henriques nascesse em



Guimarães. Os primeiros livros que referem o nascimento em Guima-



Em carta a esse amigo e referência pessoal, datada de 28 de maio de

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À Senhora

À Senhora

Após longo sofrimento em Gominhães, no dia 25 de setembro de 1913, cerca

da Boa Nova de Leça da Palmeira

do Bom Despacho de Gominhães

das dez e meia da manhã, falecia João Monteiro de Meira aos escassos 32 anos de idade. As demonstrações de pesar, conhecido o facto, chegaram de diver-

Na triste capelinha ao pé da qual,

Na doce capelinha ao pé da qual,

sos pontos de Guimarães, do Porto e de outras regiões nortenhas à família

Se Deus quizer, um dia hei de morar,

Se Deus quizer, um dia hei de morar,

enlutada, sucedem-se os elogios ao homem, ao professor e ao intelectual pelas

ficarei junto à porta principal,

Será junto da porta principal,

suas primorosas qualidades de carácter e de espírito, lamentando a perda de

Para o povo, na entrada me pisar.

Para o povo, à passagem, me pisar.

uma vida interrompida precocemente e que tanto prometia. Sóbrias condolências que pouco consolariam o desgosto dos Meira ao perder outro elemento

E dirá o bom povo, quando entrar,

E dirá o bom povo, quando entrar,

querido, mais sentido pelo pai e pela jovem viúva, que nunca alterou esse esta-

Vendo a pedra que esconde o

Vendo a pedra que cobre o meu coval:

do civil no quase meio século em que lhe sobreviveu.

meu coval:

- Já lá está, mais um do Arrabal…



- Anto lá está, liberto enfim do mal.

E à Senhora por mim há de rezar.

Nossa Senhora do Bom Despacho, perante grande afluência de pessoas que

As exéquias do defunto foram celebradas no dia seguinte, na ermida da

dele se quiseram despedir, envergando no féretro a toga preta de lente univer-

E à Senhora por mim há de rezar. Há de rezar por mim com devoção;

sitário. Dos derradeiros discursos de homenagem tomaram a palavra Domin-

Há de rezar por mim com devoção;

Virgem do Bom Despacho, ouvi-lhe

gos Leite de Castro pela Sociedade Martins Sarmento, o Dr. Pedro Guimarães

Virgem da Boa Nova, ouvi-lhe a prece

a prece

em nome dos médicos vimaranenses e o Dr. Augusto Brandão pela Faculdade

Que aos rudes lábios manda o

Que aos lábios rudes manda o

de Medicina da Universidade do Porto, antigo professor do pai e do filho duran-

coração.

coração.

te os seus cursos superiores, que tomou as chaves da urna a pedido da família.

Uma modesta laje cinzelada do tio-bisavô, o Padre Manuel José de Mei-

E pois não lembra quem desaparece,

E se não lembra quem desaparece,

ra, ligeiramente sobressaída do solo à entrada da porta principal dessa capela

Dizei ao povo não me esqueça, não;

Dizei ao povo não me esqueça, não

serviu-lhe como sepultura, cumprindo assim o destino traçado dos seus últi-

Que minh’alma também o não

Que minh’alma também o não

mos versos, onde repousavam também os restos mortais do irmão José Joa-

esquece.

esquece.

quim e do filho Joaquim. Por sufrágios à sua alma entregou a família avultadas quantias a instituições sociais de Guimarães, beneficiando a Sociedade de São

António Nobre [João de Meira]*

João de Meyra**

Vicente de Paula, o Asilo de Santa Estefânia e a creche de S. Francisco, sendo a missa do primeiro mês na igreja de S. Domingos, na mesma rua em que nascera e vivera um grande período de uma vida efémera.

Nas semanas seguintes, particularmente nos jornais vimaranenses, arti-

gos da sua autoria e outros de conhecidos expunham apontamentos biográficos * Hernâni Monteiro, “Prof. João de Meira”, História do ensino médico no Porto: suplemento, 79.

e literários de João de Meira, preservando parcialmente a sua memória que o

** João de Meira, Eusébio Macário em Guimarães, 10-11.

passar dos anos teimariam em votar ao esquecimento, muito pontualmente

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

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dando-lhe alguma notoriedade, como o número especial do Ecos de Guima-

históricos n’ A Revista de Guimarães e outras tantas pequenas colaborações na

rães, de 10 de março de 1918. A Faculdade de Medicina da Universidade do

imprensa local de Guimarães e do Porto. Período intenso de formação intelectu-

Porto encomendou o retrato a óleo do professor extinto, assinado por Acácio

al entre as imposições escolares e a propensão para a literatura ao devorar todo

Lino em 1913, compondo Maximiano Lemos uma biografia incluída no anuário

o género de livros, tanto os clássicos como os modernos portugueses e europeus,

escolar subsequente.58 Simbolicamente, a entrega da cadeira de História da

que lhe facultaram a escrita de poesia lírica e espirituosa, críticas literárias, co-

Medicina, que lhe estava destinada para formar escola científica, foi protelada

mentários políticos e as investigações históricas sempre com rigor documental.

até esse velho mentor a aceitar no seu regresso à escola, passados três anos.





Ditosamente, a Sociedade de Martins Sarmento dispensou sempre gran-

riador, que na realidade jamais esmoreceu em consonância com a regência da

des cuidados à perpetuação da recordação desse seu benemérito. Em 1916, foi

Medicina Legal e a direção da Morgue do Porto, revelado nas monografias aca-

descerrado um retrato a óleo de João Monteiro de Meira, tela do pintor vima-

démicas e nos trabalhos de teor mais científico-pedagógico nas revistas da es-

ranense Abel Cardoso, ainda hoje exposto na sala da direção da agremiação

pecialidade. Deste modo, apropriando-se de um estilo mais formal e metódico

cultural. No relançamento da Revista de Guimarães em 1921, que tinha sido

de argumentos e conclusões estruturadas, dedutivas, coerentes e imparciais,

suspensa no mesmo ano em que falecera, o terceiro fascículo foi-lhe quase in-

reflexos da influência do pensamento positivista e das linhas de investigação

teiramente dedicado com alguns dos seus primeiros artigos jornalísticos e a re-

de Maximiano Lemos. Ou não tivesse sido João de Meira a sua escolha óbvia

velação da sua última conferência histórica, acompanhada de exposições mais

para redator principal dos Arquivos da História da Medicina Portuguesa! E

pessoais dos seus conterrâneos: Eduardo de Almeida, Domingos Leite Castro,

sem esquecer a sua inclusão entre os grandes nomes dos historiadores de Gui-

Pedro Vitorino, Joaquim Costa, Fernando da Costa Freitas, Maximiano Lemos,

marães, sucedendo magistralmente a Francisco Martins Sarmento, Alberto de

Joaquim Pires de Lima e do seu progenitor.

Sampaio e ao Abade de Tagilde, prestando a sua ciência em estudos e con-



ferências à Sociedade Martins Sarmento para um conhecimento objetivo da

58 Maximiano de Lemos, “Prof. João de Meira” in Anuário da Faculdade de Medicina do Porto – ano lectivo de 1913-1914 (Porto:

Typ. Enciclopédia Portuguesa, 1915), IV-XVI. Igualmente publicado na Revista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921), 165-175.

59 Sociedade Martins Sarmento (ed.), Revista de Guimarães (vol. 31, fasc. 3, 1921).

60 Luís de Pina, “João de Meira nas Letras e na Medicina”, Revista de

Guimarães (vol. 73, fasc. 3-4, 1963), 414. Todavia, tratando-se de uma conferência suficientemente datada no tempo, apresenta-se

aqui uma nova revisão histórica, melhor enquadrada nos principais acontecimentos biográficos de João de Meira. 59

Naturalmente, estes depoimentos factuais não permitem compreender

Desde 1907 até cerca de 1910, um maior enfoque do académico e histo-

na plenitude João de Meira enquanto homem público, considerando as suas

história local, apartada das antigas lendas e tradições pouco verosímeis.

três principais faces nos domínios da Ciência, da História e da Literatura. Ali-



ás, a sua bibliografia publicada em vida comporta pouco mais do que trinta

terístico dos seus talentos, o de artista literário de uma sensibilidade de extre-

títulos, maioritariamente separatas de artigos escritos em revistas científicas

mos entre a exatidão da hermenêutica crítica e a delicadeza dos ensaios em

e literárias. Porém, como refere o Dr. Luís de Pina, distinguem-se claramente

pastiches de poemas, narrativas ou dos contos policiais. Quem sabe um meio

três fases ao longo do seu trajeto: o percurso académico do periodista juve-

de evasão da realidade quotidiana bem menos encantadora pelo contacto pró-

nil de impulsos literários, políticos e históricos, a asserção como investigador

ximo com a Morte, mas sobretudo o testemunho da sua invulgar inteligência

científico para a docência na Escola Médico-Cirúrgica do Porto e o breve reco-

e cultura na capacidade de imitar uma diversidade de escritores, bem longe de

nhecimento do talento literário como erudito e criador.60

se poder acusar de falsário como alguns eruditos o fizeram! Antes uma forma



A fase primordial de um jovem vimaranense de longos recursos como os

de se aventurar em nome próprio no campo das Letras, que com tempo o po-

seus primeiros poemas de 1898 n’ O Comércio de Guimarães, a irreverência

deria ter tornado num nome maior da cultura portuguesa da primeira metade

d’ A Parvónia, os artigos políticos n’ O Independente e os primeiros estudos

do século XX…

E a culminar no final da vida de João de Meira, o enlevo do mais carac-

BIOGRAFIAS VIMARANENSES

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JOÃO DE MEIRA

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E assim, a figura de João de Meira foi-se mitificando pela força dos seus escritos,

produção intelectual, em dezembro de 1959, inaugurou a “Sala João de Meira”

num aparente paradoxo de uma figura do seu calibre com predileções intelectu-

no Museu de História da Medicina Maximiano Lemos, dedicada à vida acadé-

ais tão multifacetadas. Um exemplo de uma das mais assombrosas versões sobre

mica da Escola Médico-Cirúrgica do Porto.

a sua pessoa descobre-se, num folhetim de 1925, com o coronel José Augusto



Faure da Rosa a identificá-lo como um médium excecional! Na perceção deste,

abundaram os eventos comemorativos em Guimarães, algumas referências

como se só uma ligação ao mundo espiritual o pudesse ter levado a um estado

em periódicos e um pequeno programa da Irmandade de Nossa Senhora do

de possessão extracorporal dos autores que imitava com tanto primor!61 A sua

Bom Despacho de Gominhães, com a reedição do conto Eusébio Macário em

cidade natal concedeu-lhe o nome de um arruamento em finais de 1943, embo-

Guimarães. Ocasião em que no arranjo urbanístico do adro dessa histórica

ra a Faculdade de Medicina tivesse enviado um ofício com essa pretensão há já

capela, o jazigo raso da família Meira foi modificado e os seus restos mortais

dezoito anos, acrescentando-lhe um título de doutor que nunca usara e que foi

trasladados para uma sepultura individual, na qual se inscreveu o seu soneto

emendado na sua escolha como patrono da então escola do ciclo preparatório,

“À Senhora do Bom Despacho de Gominhães”.

atualmente dos poucos vestígios físicos a relembrá-lo em Guimarães.





Ao Dr. Gonçalo Monteiro de Meira deve-se a monumental tarefa de reunir

uma questão impõem-se no final desta pequena nota biográfica que o procurou

os muitos manuscritos do irmão mais velho e os recortes de imprensa sobre a

resgatar: não será hora de com solenidade e inteira justiça se considerar uma ho-

figura deste, compilando dois densos volumes em 1948, na fortuita ideia de se

menagem a tal personalidade vimaranense que nunca olvidou as suas origens?...

preparar uma antologia literária que a família sempre acalentara.62 Confiados



à guarda da Sociedade Martins Sarmento pelos seus descendentes após a sua



61 Hernâni Monteiro, “Júlio Diniz e a tradição literária da Escola Médica do

Porto”, Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto (Porto: Marânus,1940). 62 Sociedade Martins Sarmento. Escritos Dispersos do Dr. João de Meira,

professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, neste volume reunidos 35 anos após a sua morte pelo seu irmão Dr. Gonçalo de Meira,

conservador do Registo Predial em Viana do Castelo (manuscrito, 1948). 63 Luís de Pina, “Vimaranes: materiais para a história da medicina portuguesa: arqueologia, antropologia, história”, 14.

Outras referências bibliográficas consultadas: Universidade de Coimbra (ed.), Anuário da Universidade de Coimbra (Coimbra: Imprensa da

Universidade, 1899-1911). Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

Na comemoração do 1.º centenário do seu nascimento em 1981 não

A poucos meses do centenário do falecimento de João Monteiro de Meira,

Francisco Miguel Araújo*

morte, incluindo outras publicações editoriais e o álbum de caricaturas dos (ed.), Representação que aos illustres membros do Congresso

Meira, tem esta batalhado por lançar editorialmente alguns desses pequenos da Republica Portugueza dirige o corpo docente da Faculdade de Medicina do

trabalhos nas últimas décadas: o Jubileu de Amores e Sherlock Holmes no PorPorto (Porto: Typ. Enciclopédia Portuguesa, 1912). Câmara

to que despertaram certo interesse do público.

Municipal de Guimarães, Actas da Vereação (sessão de 10 de Dezembro de

Mas foi o Dr. Luís de Pina quem mais terá contribuído para a compreen1943). Hernâni Monteiro, Uma época notável da História Médica

são e divulgação de João de Meira, não só porque laços familiares o prendiam Portuense: 1825-1959 (Porto: Imprensa Portuguesa, 1961). Luís de Pina, “Alfoz

a Guimarães, mas porque ao rever-se no seu exemplo acabou por ser o seu das Letras e da História Vimaranenses”, Revista de Guimarães

sucessor na Universidade do Porto na desejada cátedra de História da Medi(vol. 63, fasc. 3-4, 1953), 477-609. Memórias de Araduca

* O autor agradece a pronta disponibilidade no acesso às fontes infracitadas dos elementos no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, da Sociedade Martins Sarmento e do Museu de História da Medicina Maximiano Lemos da Faculdade de Medicina do Porto, destacando a laboriosa colaboração da diretora Prof.ª Dr.ª Amélia Ricon Ferraz.

cina. Esta simbiose de personalidades e erudições levou a que na sua tese de (disponível in http://araduca.blogspot.pt/).

doutoramento de 1929 retomasse uma mesma linha de investigação da dissertação inaugural O Concelho de Guimarães e da invocação nas suas páginas: “no entanto, julgo que, se não juntei lavradas e ricas pedras a esse edifício glorioso, também não estraguei o corpo dos alicerces caboucados pelo ilustre historiador”.63 Além de diversas conferências e estudos sobre a relevância da sua vida e

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JOÃO DE MEIRA

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