JOÃO DO RIO, \" CRONISTA DA POBREZA E DA BANALIDADE COTIDIANA \"

July 5, 2017 | Autor: M. De Castro Soares | Categoria: Baudelaire, Flâneur, João do Rio
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JOÃO DO RIO, “CRONISTA DA POBREZA E DA BANALIDADE COTIDIANA” Maria Isolina de Castro Soares Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, campus Colatina [email protected] m

Quem não se imagina u ma vez em Paris, de casaca? João do Rio

O século XX começa. E para o Rio de Janeiro dos primeiros anos do novo século isso significa, em números, um salto que, em pouco mais de trinta anos, mudara a face da cidade. Em 1872, a cidade possuía 280 mil habitantes; em 1904, 720 mil. Configura-se, assim, um novo espaço onde se aglomeram multidões em cubículos, principalmente no centro da cidade. Muitas dessas pessoas passam o dia na rua e a noite em dormitórios coletivos, insalubres, promíscuos, verdadeiras cabeças de porco, como são conhecidas essas habitações. Nesse momento, a principal metrópole da América do Sul e maior cidade do país é atingida por epidemias de varíola e de febre amarela, doenças que, junto com a malária, a peste bubônica e a tuberculose já tinham feito, nos idos de 1891, 13 mil mortes. O governo busca solução para seus problemas É a época de Rodrigues Alves, com Oswaldo Cruz na Saúde Pública e Pereira Passos na Prefeitura do Rio. Processa-se, então, o famoso “bota-abaixo”, com o despejo sumário de 20 mil pessoas e a derrubada de quase dois mil imóveis, para a abertura de avenidas com o objetivo de urbanização para controle das epidemias. Somada a esse esforço, a ação de Oswaldo Cruz na Saúde Pública conduz a reforma sanitária na cidade. É nesse Rio de Janeiro que se quer Paris (as reformas foram inspiradas nas feitas por Haussmans em Paris cinquenta anos antes) que João do Rio desponta e é sobre essa cidade, espaço habitado pelas multidões, que o escritor lança seu olhar. Em seu ensaio O Pintor da Vida Moderna, Charles Baudelaire aborda vários aspectos que estão relacionados a sua concepção de modernidade. Para construir essa concepção, é importante a observação do presente, a observação da cena que se desenrola a nossos olhos. Baudelaire afirma: “O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não

apenas à beleza de que ele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente.”1 É o presente, então, que passa a interessar ao observador que sai de sua escrivaninha para captar a alma encantadora das ruas. Como captar aquilo que a rua tem, não só de essencial, no sentido do que deve ser captado, mas do que é qualidade essencial de presente? João do Rio dá a resposta, logo no início de A alma encantadora das ruas : Para co mpreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o liris mo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com u m perpétuo desejo incompreensíve l, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes – a arte de flanar.[...] Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça...2

Nítida, a utilização dos princípios baudelaireanos reforça-se com o uso de termos como flâneur e basbaque, presentes em O pintor da vida moderna. Esses e outros conceitos são articulados por João do Rio em seu passeio pela cidade, espaço por excelência da modernidade, por onde circula e onde faz aquilo que Baudelaire já constatara na arte de Constantin Guy, o seu pintor da vida moderna: “Às vezes ele é um poeta; mais frequentemente aproxima-se do romancista ou do moralista; é o pintor do circunstancial e de tudo o que este sugere de eterno.” 3 É o cronista “da pobreza e da banalidade cotidiana”. 4 A vida da cidade está em cartaz. Beatriz Sarlo, em ensaio sobre modernidade e mescla cultural, aborda a questão da heterogeneidade, das misturas possíveis na grande cidade moderna: Escenario donde perseguimos los fantasmas de la modernidad, la ciudad es la más poderosa máquina simbólica del mundo moderno. La heterogeneidad del espacio urbano vuelve lo diferente extremamente visible; allí se construyen e reconstruyen de modo incesante los límites entre lo privado e lo público; allí el cruce social pone las condiciones de la mezcla y produce la ilusión o la posibilidad real de ascensos y descensos vertiginosos. Y si el camino rápido hacia la fortuna hace de la ciudad el lugar de una utopía de ascenso, la posibilidad del anonimato la convierten, co mo le señaló Ben jamín, en el preferido, el único 1

BAUDELA IRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. Tradução de Suely Cassal. In: Charles Baudelaire Poesia e Prosa. Vo l. Ún ico. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 851 2 RIO, João do. A al ma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cu ltural, Divisão de Editoração, 1995. p. 5. 3 BAUDELA IRE. Op.cit . p. 854. 4 Ib. p. 854.

posible, del flâneur, del conspirador (que vive su soledad entre los hombres)[...] El espacio público pierde sacralidad: todos lo invaden, todos consideran a la calle como el lugar común, donde la oferta se multiplica y, al mis mo tiempo, se diferencia, pero siempre se muestra ante el deseo que ya no reconoce los límites de las jerarquías. 5

Nosso flâneur invade esse espaço – já tão cheio de invasores diversos – para captar o circunstancial, o relativo, o efêmero, aquilo que faz com que o presente adquira feição de presente; busca, também, no entanto, “esse algo ao qual se permitirá chamar de modernidade [...].Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório” 6 . Atravessando a cidade, percorrendo suas ruas, o poeta faz o registro de seu te mpo. Para tanto, posiciona-se como cronista, pois a crônica é o gênero que tão bem serve aos seus propósitos e que expressa, em sua etimologia, o compromisso com o tempo. Buscando o universo das ruas, da multidão, João do Rio traz à tona alguns aspectos caracterizadores da modernidade. Vejamos esses aspectos e alguns exemplos retirados da crônica As Mariposas do Luxo 7 : 1. A cena urbana – O cronista percorre a rua do Ouvidor, no centro da cidade do Rio de Janeiro: “É a hora indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril da rua do Ouvidor relaxa-se...” (p.101) “... trecho de rua civilizada...” (p.105) 2. O eu do cronista se posiciona como um observador, um “cronista da pobreza e da banalidade cotidiana”: “Os operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa ao dedo mínimo. Alguns vêm de tamancos. Como são feios os operários ao lado dos mocinhos bonitos de ainda há pouco!”(p. 101-102) “São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca.” (p. 102) 3. Os signos da modernidade que compõem a paisagem: a. Espaço essencial da modernidade: a rua 5

SARLO, Beatriz. Modernidad y mezcla cultural. El caso de Buenos Aires. In: BELUZZO, Ana Maria de M. Moderni dade: vanguarda artística na América Latina. São Paulo: Memorial: UNESP, 1990. p. 37. 6 BAUDELA IRE. Op. Cit. p. 859. 7 RIO, João do. A al ma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cu ltural, Divisão de Editoração, 1995. p. 101 a 105.

“Rua do Ouvidor” (p. 101) b. A eletricidade “Ainda não acenderam os combustores, ainda não ardem a sua luz galvânica os focos elétricos.” (p.101) c. O progresso “... levados pelos ‘autos’, pelas parelhas fidalgas, pelos bondes burgueses...” (p. 101) d. A moda “... já voltaram da sua hora de costureiro ou de joalheiro...” (p.101) “... em frente às enormes vitrinas de uma grande casa de modas.” (p.103) e. As vitrinas “ - montras de rendas, montras de perfumes, montras de toilettes, montras de flores... montras de ourives.” (p. 104) 4. A perspectiva do olhar - o olhar das mocinhas pobres - olhar dos pobres - que corresponde ao olhar do trapeiro - aquele que é marginalizado, excluído, mas que também usufrui da cidade: “Apanham as migalhas da feira.” (p.102) “Os olhos cravam-se, ansiosos, numa atenção comovida, que guarda e quer conservar as minúcias mais insignificantes.” (p. 104) 5. A sedução da mercadoria “- Oh! aquelas pedras negras! - Três contos!” (p.104) “E cada montra é a hipnose e cada rayon de modas é o foco em torno do qual reviravolteiam e anseiam as pobres mariposas.” (p. 102) “Toda a montra é um tesouro no brilho cegador e alucinante das pedrarias. Elas olham sérias, o peito a arfar. Olham muito tempo e, ali, naquele trecho de rua civilizada, as pedras preciosas operam, na seda dos escrínios, os sortilégios cruéis dos antigos ocultistas.”(p.105) 6. A rua como o espaço da mescla

“Passam apenas trabalhadores de volta da faina e operárias que mourejaram todo o dia.” (p.101) “... haveis de vê- las passar, algumas loiras, outras morenas, quase todas mestiças.” (p.102) 7. A mescla cultural “Mas essa miséria é limpa, escovada... Há nos lóbulos de algumas orelhas brincos simples, fechando as blusas lavadinhas, broches ‘montana’, donde escorre o fio de uma chatelaine.” (p.102) “... irlandas, guipures, pongées, rendas.” (p.103) “... vendo as grandes corbeilles...” (p.103) 8. A rua como espaço da heterogeneidade, “onde diferentes grupos sociais organizam suas batalhas de ocupação simbólica” 8 . “Há outros pares gárrulos, alegres, doidivanas, que riem, apontam, esticam o dedo, comentam alto, divertem-se...” (p. 103) “E estão tristes...” (p.103) “Já passaram as professional beauties, cujos nomes os jornais citam, já voltaram da sua hora de costureiro ou de joalheiro as damas do alto tom; e os nomes condecorados da Finança e os condes do Vaticano e os rapazes elegantes...” (p.101) A cidade, com suas ruas multifacetadas, é o livro no qual estão escritos os sinais que o artista decifra, num trabalho minucioso em que estão emaranhados não só os seres humanos, mas estes e seu espaço. E traduz esses signos pelo viés baudelairea no. Em uma reportagem sobre aspectos da obra de João do Rio e a má conservação dos inéditos do cronista, o Jornal do Brasil ouve a professora Angela Pastura: Na ‘fúria imitativa’carioca da belle époque do início do século, nenhum brasileiro foi mais francês do que João do Rio. Era pelo prisma de Paris que João do Rio frequentemente via a Cidade Maravilhosa. Uma mistura de colunista social e repórter policial, João do Rio seria uma espécie de colunista social contemporâneo com a virtude de também gostar de mergulhar no bas fond e registrar suas impressões. Oscilava entre o amb iente dos ‘encantadores’ e o da ‘canalha’, co mo gostava de dizer. No caminho da reforma, a pobreza precisa ser saneada. ‘Co m as reformas, em Paris, milhares de pessoas de classe operária foram expulsas de seus bairros tradicionais e obrigadas a arranjar-se sozinhas nos desolados arredores da cidade, da mesma forma que acontecerá, mais tarde, no Rio de Pereira Passos’, exp lica Angela Pastura.

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SARLO, Beatriz. Op. Cit . P. 38.

[...] João do Rio, como Baudelaire, retrata os impactos da nascente modernização, lançada com o advento da industrialização, no estar-no-mundo do homem comu m. Reação de repulsa e fascínio pelo novo estado de coisas, a modernidade dá voz, na literatura, às angústias e esperanças desse novo homem urbano. 9

E esse novo homem urbano tem a rua como objeto de desejo, e a percorre com seus inúmeros sentidos, tateando, experimentando, saboreando, levando consigo o leitor-flâneur a quem diz, sem pudor: Eu amo a rua!

REFERÊNCIAS: BAUDELAIRE, Charles. O Pintor da Vida Moderna. Tradução de Suely Cassal. In: Charles Baudelaire - Poesia e Prosa. Vol. único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. CORDOVIL, Cláudio. Um Rio que se desmancha: o cronista dos encantadores e da canalha. Jornal do Brasil de 22/05/1997. Caderno B. RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995. SARLO, Beatriz. Modernidad y mezcla cultural. El caso de Buenos Aires. In: BELUZZO, Ana Maria de M. Modernidade: vanguarda artística na Amé rica Latina. São Paulo: Memorial: UNESP, 1990.

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Jornal do Brasil de 22/ 05/ 1997. Caderno B. Trecho da reportagem Um Rio que se desmancha – O cronista dos encantadores e da canalha, assinada por Cláudio Cordovil.

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