Jogo e memória: essências – O Círculo Neutro como base para os processos de preparação e criação do ator

CEPECA – Uma Oficina de Pesquisatores 2. São Paulo: Giostri Editora, 2014. (pp.189 – 194). ISBN: 978-85-8108-596-8.

Jogo e memória: essências – O Círculo Neutro como base para os processos de preparação e criação do ator

José Eduardo De Paula

Sem haver até o presente momento bibliografia sobre esta importante ação artísticopedagógica, o procedimento Círculo Neutro” (François Kahn) será utilizado tanto para sua descrição e detalhamento quanto para relacionar jogo e memória como instâncias essenciais dos processos de preparação e criação do ator. Relacionado à Oficina da essência (SILVA, 2010), pesquisa de livre-docência na qual os processos de preparação e criação do ator norteiam-se pelos jogos com “anteparos” e no estabelecimento de “impressões digitais”, esta pesquisa tem como eixos tais noções – tanto para ampliá-las quanto para singularizar a própria trajetória. Utiliza, para isso, o procedimento do Círculo Neutro como elemento aglutinador de anteparos e instalador de impressões digitais nos distintos processos de preparação e de criação do ator, nos quais jogo e memória serão observados como essências para tais processos. Jogo será mapeado a partir dos estudos focados “no discurso do entorno da performance” (FÉRAL, 2009), que o colocam como instância fundamental dos processos de preparação e de criação. Memória, por um lado, será observada como “uma grande solução evolutiva” (VIEIRA, 2006, grifo nosso) e garantia de futuro melhor; por outro, via Grotowski, será considerada “corpo memória” (2007) e “corpo vida” (GROTOWSKI, apud MOTTA LIMA, 2012), ou seja, experiência gerada a partir da “percepção de si experienciada pelo atuante” (MOTA LIMA, 2009). Desse modo, acreditamos poder colaborar com o panorama da Pedagogia do Teatro, tanto em seus aspectos práticos quanto teóricos, contribuindo com a ampliação de bibliografia específica sobre os processos criativos do ator. Quando mencionamos “entorno da performance”, nos referimos especificamente às noções de imprevisto, risco e acidente observadas nos estudos da performance, consideradas células motoras da ação performativa. Também observarmos a potencialidade desta na intersecção com o campo pedagógico de formação do artista teatral, ao considerar tais elementos como produtivos para ação criativa e atitude cênica – o que nos leva a reiterar que as atitudes de abertura e de escuta atenta ao se

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colocar no jogo de cena devam ser consideradas essências para a arte de ator. O cruzamento do procedimento Círculo Neutro com esse campo de entorno da performance pode promover o exercício desses elementos sempre tão caros aos atores de todos os tempos.

O Círculo Neutro e alguns preceitos O Círculo Neutro é um procedimento de trabalho que possibilita ao ator ampliar a consciência sobre os diferentes processos envolvidos durante a ação criativa: perceber a si mesmo e as possibilidades de relação com o espaço, com o outro e com o universo ficcional. O trabalho consiste em várias etapas: inicialmente, em um nível mais técnico, o ator deve aprender como entrar e sair do círculo; depois, ele tem que permanecer no centro do círculo enfrentando os olhares, as provocações e os questionamentos de modo neutro, sem expressar qualquer reação. À medida que o processo avança, o trabalho pode abordar uma base ficcional e investigar os temas e as tramas envolvidos, bem como as particularidades de cada personagem. O Círculo Neutro é ainda considerado treinamento psicofísico base para o exercício de uma qualidade especial que julgamos essencial para o ator/performer: decisão/ação.

Relato de uma experiência: treinamento sensível A partir deste ponto, discorre-se sobre a experiência de aplicação prática do Círculo Neutro, tendo como referência o workshop1 ministrado para os alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa (ESTC-IPL) em maio de 2013. Partindo-se dos pressupostos de que o Círculo Neutro é um procedimento de trabalho que possibilita ao ator o trânsito entre a percepção e a manipulação dos diferentes processos envolvidos durante a ação criativa (a instância psicofísica, o espaço da ação, as relações interpessoais e as conexões com as camadas ficcionais e biográficas) e de que demanda um período de longa duração para verticalizar seus processos (e o tempo proposto para o desenvolvimento do workshop foi de apenas três horas), optamos por trabalhar a partir de um recorte preciso, concentrando as proposições na análise de movimentos a partir da relação do ator consigo mesmo, com a geometria do espaço e O oferecimento deste workshop foi viabilizado pelo projeto Inter-Câmbio: Dramaturgia do Ator – Brasil/Portugal, proposto pelo Cepeca no Edital de Difusão e Intercâmbio Cultural e Científico da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP (edição 2012–2013). 1

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com as regras iniciais colocadas em jogo. Assim, pudemos abordar noções importantes para os estudos atorais no que se refere aos impulsos corporais que se mobilizam no ato de agir, como as atitudes decisão/ação que deveriam ser mobilizadas simultaneamente, como uma única camada, possibilitando ao ator manipular o comportamento de maneira integral, com precisão e presença cênicas.

Figura 49

Figura 50

O Círculo Neutro pode ser observado como um tabuleiro de jogo, com geometria e regras específicas.2 Uma das primeiras indagações que se instalam no grupo diz respeito à própria acepção do termo “neutro”. Acreditamos não ser preciso recorrer a dicionário algum para chegarmos à conclusão de que a neutralidade, enquanto estado e comportamento corpóreo, é praticamente impossível. Mas, então, que neutralidade é essa à qual nos referimos? Embora corroborando com Lecoq sobre uma das acepções possíveis sobre neutralidade ao qualificar o “estado neutro [como] um estado de calma e de curiosidade” (2010, p. 41), retomaremos alguns apontamentos iniciais sobre os processos de preparação e criação, considerando o ator um indivíduo que desempenha ações direcionadas para outros que o espectam. Sendo assim, tais ações são passíveis de leituras, pois tanto o corpo quanto o comportamento podem ser vistos como “corpo simbólico” e “comportamento simbólico” – matérias expressivas que permitem leituras independente da intensão ou da vontade de expressão do seu emissor. Essas noções norteiam as fases iniciais do treinamento psicofísico via 2

O procedimento será amplamente descrito e detalhado na finalização da pesquisa de doutorado Jogo e memória: essências – O procedimento do Círculo Neutro como base para os processos de preparação e criação do ator (PPGAC/ECA-USP, 2012–2016; Cepeca; Teatro/Iarte-UFU).

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Círculo Neutro, permitindo ao ator ampliar percepções e forjar o comportamento cênico expressivo de modo não apriorístico, mas como matéria gestada, gerada e amadurecida de modo gradual e processual. Então, o “estado neutro” (LECOQ, 2010) enquanto qualidade a ser conquistada diz respeito à consciência e ao domínio dos movimentos, aos processos psicofísicos que se instauram no ator ao se colocar em jogo de cena, às micropercepções do minucioso e amplo processo reacional que o estar em cena de modo orgânico e presente possibilita. A análise do movimento é uma das ferramentas desse “treinamento sensível”, permitindo ao ator ampliar a percepção dos processos internos sutis e ajustá-los devidamente. Inicialmente, as regras do jogo possibilitam o embate do ator consigo mesmo, com a geometria do espaço e com o olhar do outro, na tentativa de conseguir manter-se no “mais puro estado de presença”, no “estado neutro” (LECOQ, 2010, p. 41). Além de envolver as entradas e saídas do Círculo Neutro a partir de regras simples e precisas, as diferentes fases do procedimento colocam em jogo (1) o olhar, (2) as provocações, (3) a elaboração de respostas coerentes com as matérias textuais colocadas em jogo e (4) a improvisação, entre outras abordagens que podem ser desdobradas, pois as regras são abertas e dão margem a inúmeras possibilidades de desenvolvimentos.

Percepções (in)conclusas Embora o tempo do workshop oferecido seja muito curto para a verticalização do procedimento do Círculo Neutro, verificamos que o agenciamento das noções referentes ao ofício de ator podem sim promover certa eficácia e lançar luz sobre ações futuras dos aprendizes da arte de ator. Constatamos que a principal noção abordada – colocar os elementos da dupla camada decisão/ação como simultâneos e operadores de certa eficácia – alterou as percepções do grupo envolvido. No final do workshop, na roda de conversa, uma das alunas falou a respeito da importância de se trabalhar “sobre a consciência dos processos interiores” 3 – o que, para ela, pode indicar maior valorização de certos processos de preparação de atores que privilegiam o treinamento físico em detrimento dos sensíveis, ambos tão responsáveis por ampliar a escuta, a prontidão e os ajustamentos cênicos sempre necessários ao jogo de cena.

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Olena Radakova, aluna do segundo semestre da ESTC-IPL.

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Outra reflexão bastante significativa trouxe à tona um dos fundamentos do fazer teatral que coloca a cena como lugar privilegiado da experiência criativa: “O que eu pensava em fazer, quando estava no círculo de preparação, não tinha nada a ver com o que realmente acontecia quando eu estava no centro do Círculo Neutro.”4 Ou seja, as ideias que se instalam antes da entrada do ator no jogo/cena são apenas suposições ou percepções prévias que antecedem a improvisação, mas que são colocadas em xeque pelos acontecimentos sempre imprevistos que o jogo de cena revela, obrigando o ator a se ajustar devidamente. Tais apontamentos revelam a potência pedagógica e operacional observada nos estudos da performance em relação à arte de ator. Quando consideramos os aspectos “risco, imprevisto e acidente” e nos colocamos de modo poroso, com escuta fina, mais abertos para absorver o que de fato (per)(trans)passa o ato vivo e presente que o aqui-agora do jogo de cena convoca, a performatividade do jogo do ator pode ser mais eficaz.

José Eduardo De Paula (Eduardo De Paula) é docente do curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e doutorando em Artes Cênicas (pedagogia do teatro/formação do artista teatral) pela ECA-USP com a tese Jogo e memória: essências – O procedimento Círculo Neutro como base para os processos de preparação e criação do ator. Integra o Cepeca desde 2008.

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David Galan da Silva de Almeida, aluno do segundo semestre da ESTC-IPL.

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Referências bibliográficas FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Tradução de Lígia Borges. Revista Sala Preta (ECA-USP), São Paulo, v. 1, n. 8, p. 197-210, 2008. GROTOWSKI, Jerzy. O teatro laboratório de Grotowski 1959/1969. São Paulo: Perspectiva: SESC; Pontedera, IT; Fondazione Pontedera Teatro, 2007. KAHN, François. Reflexões sobre a pratica da memória no ofício do ator de teatro. Revista Sala Preta (ECA-USP), São Paulo, n. 9, v. 1, p. 147-157, 2009. LECOQ, Jacques. O corpo poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Senac/Sesc, 2010. MOTTA LIMA, Tatiana. Palavras praticadas: o percurso de Jerzy Grotowski, 1959–1974. São Paulo: Perspectiva, 2012. OSHO. Meditação: a primeira e última liberdade. [S.l.]: Shanti, 1998. SILVA, Armando Sérgio da. et al. Interpretação: uma oficina da essência. São Paulo: Associação Amigos da Praça, 2010. VIEIRA, Jorge Albuquerque. Teoria do conhecimento e arte: formas de conhecimento – Arte e ciência, uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2006.

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