John Stuart Mill vs. John Rawls: uma comparação

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Descrição do Produto

ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia Diretoria 2015-2016 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N. Brito (UNISINOS) Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros (USP) Antônio Carlos dos Santos (UFS) André da Silva Porto (UFG) Ernani Pinheiro Chaves (UFPA) Maria Isabel de Magalhães Papaterra Limongi (UPFR) Marcelo Pimenta Marques (UFMG) Edgar da Rocha Marques (UERJ) Lia Levy (UFRGS) Diretoria 2013-2014 Marcelo Carvalho (UNIFESP) Adriano N. Brito (UNISINOS) Ethel Rocha (UFRJ) Gabriel Pancera (UFMG) Hélder Carvalho (UFPI) Lia Levy (UFRGS) Érico Andrade (UFPE) Delamar V. Dutra (UFSC) Equipe de Produção Daniela Gonçalves Fernando Lopes de Aquino Diagramação e produção gráfica Maria Zélia Firmino de Sá Capa Cristiano Freitas



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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Justiça e direito / Organizadores Marcelo Carvalho, Milton Meira Nascimento, Thadeu Weber. São Paulo : ANPOF, 2015. 515 p. – (Coleção XVI Encontro ANPOF) Bibliografia ISBN 978-85-88072-36-7 1. Justiça - Filosofia 2. Direito - Filosofia I. Carvalho, Marcelo II. Nascimento, Milton Meira III. Weber, Thadeu IV. Série CDD 100

John Stuart vs. John Rawls: uma comparação.

Gustavo Hessmann Dalaqua UFPR.

1. Introdução. Publicado em 1971, um dos principais objetivos de Uma teoria da justiça era “elaborar uma teoria da justiça que” representasse “uma alternativa ao pensamento utilitarista” (RAWLS, 2008, pp. 26-7). No afã de tornar sua teoria mais atrativa, Rawls decidiu atacar o utilitarismo e elegeu John Stuart Mill como um de seus alvos. Contudo, a maneira como Rawls retratou o pensamento de Mill sobre a justiça é incompleta e dá margem para interpretações errôneas. O propósito desse texto é, mediante uma leitura cuidadosa do Utilitarismo, desfazer dois equívocos que o retrato parcial de Rawls ajudou a propagar sobre a justiça milliana. Para tanto, reconstruiremos primeiro a crítica de Rawls.1 Em seguida, escrutinizaremos o capítulo final do Utilitarismo, analisando a ideia de justiça ali contida vis-à-vis a justiça rawlsiana. Feito isto, argumentaremos, por fim, que a justiça milliana é mais democrática que a rawlsiana.



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Nossa crítica dirige-se apenas a Uma teoria da justiça e não se aplica a trabalhos posteriores de Rawls. Com efeito, o caráter antidemocrático da justiça rawlsiana que destacaremos na conclusão diminui-se significativamente em RAWLS, 1993.

Carvalho, M.; Nascimento, M. M.; Weber, T. Justiça e Direito. Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 78-87, 2015.

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2. A crítica de Rawls. No primeiro capítulo de Uma teoria da justiça Rawls critica o Utilitarismo e afirma que, em circunstâncias excepcionais, Mill se afasta de alguns preceitos de justiça a fim de maximizar a soma das vantagens: A característica marcante da teoria utilitarista da justiça é que não importa [...] o modo como essa soma de satisfações se distribui entre os indivíduos [...]. A distribuição correta [...] é a que produz a satisfação máxima. A sociedade deve distribuir seus meios de satisfação, quaisquer que sejam, direitos e deveres, oportunidades e privilégios, e as diversas formas de riqueza, de modo a alcançar esse máximo, se for possível. Mas, por si só, nenhuma distribuição de satisfação é melhor do que outra [...]. É verdade que certos preceitos comuns de justiça [...] parecem contradizer essa argumentação. Mas, de uma perspectiva utilitarista, a interpretação desses preceitos [de justiça] e de seu caráter aparentemente peremptório é a de que esses são os preceitos que a experiência mostra que devem ser estritamente respeitados e que só se deve afastar deles em circunstâncias excepcionais, quando se quer elevar ao máximo a soma das vantagens. (RAWLS, 2008, pp. 31-2).

Para justificar a interpretação acima, Rawls cita os dois últimos parágrafos do Utilitarismo. Seu alvitre é, pois, que nos dois últimos parágrafos do Utilitarismo, Mill afirma que por vezes temos de nos afastar (dos preceitos) da justiça a fim de maximizar a soma das vantagens. Dito de outro modo, Mill sacrificaria os preceitos da justiça em prol da maximização da utilidade.2 Grosso modo, essa é a crítica que Rawls dirige contra Mill. A censura que Rawls lança a Mill faz eco a críticas anteriores ao utilitarismo. Desde de seus primórdios, o utilitarismo tem sido associado com o lema “a maior felicidade para o maior número” (BENTHAM, 1988, p. 134). Semelhante pensamento, argumentavam os críticos, tende a nos afastar da justiça. Uma vez que fixemos a maior felicidade para o maior número como principal objetivo, nada nos impediria de sacrificar, por exemplo, os direitos individuais de um grupo minoritário cuja existência torna a maioria infeliz. Em circunstâncias excepcio2



Seguindo Rawls, empregarei os termos “vantagens” e “utilidade” como sinônimos.

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nais, diziam os críticos, o utilitarismo pode nos afastar (dos preceitos) da justiça para aumentar a felicidade – ou para usar os termos de Rawls, para aumentar a soma das vantagens. Antes de avaliar se a crítica de Rawls é de fato válida, convém lembrar que Mill nunca usou a fórmula benthamiana “a maior felicidade para o maior número”. Posto que fossem ambos utilitaristas, é bem sabido que, como herdeiro oficial da tradição utilitarista, Mill introduziu mudanças significativas no sistema de pensamento iniciado por Bentham. Como Bentham, Mill também costumava identificar a felicidade com a utilidade. No entanto o que denominava de felicidade pouco se assemelha com o que Bentham compreendia pelo mesmo nome. Enquanto que a felicidade benthamiana é puramente hedonista, a felicidade milliana é eudaimonistíca (vide NUSSBAUM, 2005). Não obstante suas diferenças, chamamos Bentham e Mill de utilitaristas porque ambos os autores afirmavam que a sociedade deveria promover a utilidade, isto é, a felicidade. Mas disso se segue que o utilitarismo milliano pode nos afastar (dos preceitos) da justiça? Tudo depende de como se define a palavra “justiça”. Se a justiça é vista como algo exterior à utilidade, nesse caso a resposta será positiva. Pois se justiça e utilidade são valores dissociados entre si, é possível que eles colidam. E quando isso acontecer, seremos obrigados a decidir qual valor promover e qual valor destruir. Em suma, justiça e utilidade podem se contradizer apenas se forem valores dissociados entre si. Assim, quando Rawls repreende Mill por se afastar (dos preceitos) da justiça, seu pressuposto é que justiça e utilidade estão dissociadas no Utilitarismo. Mas elas o estão de fato?

3. Justiça e utilidade no Utilitarismo. No penúltimo parágrafo do Utilitarismo, Mill escreve: [J]ustiça é um nome para certas exigências morais que, consideradas coletivamente, ocupam um lugar mais elevado na escala da utilidade social (e, por isso, têm uma obrigatoriedade mais forte) do que quaisquer outras, ainda que possam ocorrer casos particulares em que outro dever social é tão importante a ponto de reformar [overrule] as máximas gerais da justiça. Assim, para

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salvar uma vida pode não só ser admissível, mas constituir mesmo um dever, roubar ou tirar à força a comida ou os medicamentos necessários, ou raptar e forçar a trabalhar o único médico qualificado. Nesses casos, como não chamamos justiça àquilo que não é uma virtude, dizemos geralmente, não que a justiça tem de dar lugar a outro princípio moral, mas que aquilo que é justo nos casos comuns não é, devido a esse outro princípio, justo no caso particular. Através desta útil acomodação da linguagem, mantém-se o caráter de irrevogabilidade atribuído à justiça, e assim não precisamos afirmar que podem existir injustiças louváveis (MILL, 1863, p. 200).

A partir desse parágrafo, Rawls aduz que, em circunstâncias excepcionais, Mill acreditava que os preceitos de justiça deveriam ser dispensados “quando se quer elevar ao máximo a soma das vantagens” (RAWLS, 2008, p. 32). Contudo, não é isso o que Mill diz acima. Antes, o que ele afirma é que podem haver casos particulares em que aquilo que comumente se reputa como sendo um preceito de justiça deixa de ser justo. Roubar, por exemplo, é geralmente injusto. Entretanto, como Mill explica, é possível que o preceito “não roubarás” deixe de ser justo em determinadas situações. Para Mill, quando roubamos pão para salvar uma vida, não nos afastamos da justiça. Mill deixa claro que, em tal situação, seria incorreto entender que justiça teve de dar lugar a outro princípio moral (como o princípio de utilidade). Roubar pão não ocasionou um afastamento da justiça porque, nessa situação-limite, não roubar cessou de ser um princípio de justiça. Rawls foi incapaz de perceber que no Utiilitarismo os princípios ou preceitos de justiça não são imutáveis.3 Tais princípios não devem ser cristalizados para Mill; de fato acabamos de ler que o que configura um princípio de justiça em uma situação pode não sê-lo em um caso diverso. Esse fato jamais é sublinhado por Rawls quando ele critica o Utilitarismo, e embora Mill seja citado diversas vezes em Uma teoria da justiça, não fica claro se Rawls captou uma das principais características da justiça milliana: sua mutabilidade. O que é certo em Uma teoria da justiça é que os princípios de justiça não devem ser mutáveis. Quando apresenta a ideia central da sua teoria, Rawls enfatiza que “um grupo de pessoas deve decidir, de uma vez por

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Seguindo Mill, não distinguirei as expressões “princípio(s) de justiça” e “preceito(s) de justiça”.

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todas, o que entre elas será considerado justo ou injusto” (RAWLS, 2008, p. 14, grifo nosso). Para ele, a escolha dos princípios de justiça é irrevogável. Uma vez que eles sejam escolhidos, quem quer que os desrespeite estará pro tanto sacrificando a justiça; os princípios de justiça rawlsianos permanecem os mesmos ad infinitum. Nesse sentido, seu trabalho deve ser lido como parte de um esforço maior, que anseia “por um tipo de geometria moral, com todo o rigor que essa expressão conota” (RAWLS, 2008, p. 147). Tal qual a geometria, a justiça não deve ser contingente, e seus princípios não podem variar conforme as circunstâncias. Segundo a perspectiva de Rawls, os princípios de justiça são sempre os mesmos. Desobedecê-los em vista de outro princípio implica, portanto, o sacrifício da própria justiça. Mill teria supostamente feito isso nos parágrafos finais do Utilitarismo ao sustentar que, por vezes, temos de desafiar o que ordinariamente se chama de justiça para maximizar a utilidade social. Todavia, seria incorreto inferir da passagem supracitada que o utilitarismo milliano se afasta (dos preceitos) da justiça, pois maximizar a utilidade social é proteger a justiça. “A justiça,” Mill conclui na última frase do Utilitarismo, “permanece o nome apropriado para certas utilidades sociais que, enquanto classe, são muito mais importantes e, por isso, mais absolutas e imperiosas do que quaisquer outras” (MILL, 1863, p. 201). Em suma, a justiça é a utilidade social. A utilidade social é o fulcro de uma sociedade feliz e próspera [flourishing].4 Obviamente, uma sociedade próspera é impossível sem justiça. Uma sociedade próspera requer “justiça distributiva e social, em vista das quais devem convergir no maior grau possível todas as instituições e os esforços de todos os cidadãos virtuosos” (MILL, 1863, p. 198). Ou seja, uma sociedade justa demanda utilidade social, pois a justiça não é senão a utilidade social. Mill destaca que “esse grande dever moral [de realizar a justiça distributiva e social]” é “uma emanação direta do primeiro princípio da moral [...]. Ele está

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Uma sociedade feliz ou próspera [flourishing] é aquela onde todos os seres humanos têm a chance de florescer, isto é, nela todos os seres humanos dispõem dos meios necessários para desenvolver o seu eu. Embora ambos os termos sejam parecidos, doravante empregaremos “próspero [floursihing]” ao invés de “feliz”, visto que este termo pode evocar uma leitura puramente hedonista de Mill, o que seria inapropriado. Com efeito, “próspero” descreve melhor a filosofia milliana na medida em que comunica a ligação existente entre o utilitarismo e o desenvolvimento de si [self-development] (vide NUSSBAUM, 2005).

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implicado no próprio significado da Utilidade ou do Princípio da Maior Felicidade” (idem). Ora, se é assim, retratar a utilidade e a justiça como atributos antitéticos equivaleria a distorcer o pensamento de Mill, visto que ele deixa claro que uma está implicada na outra. Apesar de não dizer isso com todas as letras, o modo como Rawls descreve o suposto afastamento milliano (dos princípios) da justiça fortalece leituras que se alimentam desses equívocos. Com efeito, a crítica de Rawls tem contribuído para perpetuar dois equívocos com relação a Mill: (i) a utilidade e a justiça às vezes afastam-se uma da outra; (ii) quando elas de fato se afastam, o utilitarismo milliano sacrificaria esta a fim de maximizar aquela. Ambos os equívocos, como sugeri alhures, relacionam-se intimamente; justiça e utilidade só podem se contradizer uma vez que as interpretemos como atributos dissociados. Para Mill, as máximas de justiça “de modo algum devem ser aplicadas ou consideradas aplicáveis universalmente” (MILL, 1863, p. 200). Segundo ele, “a utilidade, como os preceitos de toda arte prática, é passível de indeterminado aperfeiçoamento, e, em um estado progressivo do espírito humano, seu aperfeiçoamento realiza-se perpetuamente” (MILL, 1863, p. 156). De acordo com Mill, para descobrir se uma ação é justa, isto é, para saber se ela é condizente com a utilidade, “requer-se discussão” (MILL, 1859, p. 42). Para o autor, o princípio da utilidade e a justiça são estabelecidos dialogicamente e devem estar sempre “abertos à discussão” (idem). Na visão de Mill, a grande marca do ser humano é a sua falibilidade. Somos seres falíveis, e o que é útil e justo para a geração presente não necessariamente o será para a geração futura. Seria injusto decidir pelas gerações vindouras os princípios de justiça aos quais eles deveriam aquiescer. Uma aquiescência rígida aos princípios de justiça é capaz de provocar injustiças em casos particulares. Vemos aqui o quão distante da “geometria moral” rawlsiana a justiça de Mill está (RAWLS, 2008, p. 147). Se se respeita os princípios de justiça, o resultado final será necessariamente justo – assim como a soma dos ângulos internos de um triângulo dá necessariamente cento e oitenta graus. Decerto não é esse o caso para Mill. Para ele, zelar pela justiça requer coragem suficiente para, em circunstâncias excepcionais, quebrar os preceitos

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que comumente reputam-se como justos. A obediência cega a máximas intransigíveis não condiz com a justiça. A virtude da justiça exige uma sensibilidade crítica que saiba reconhecer os momentos em que, por exemplo, o preceito “não roubarás” deixa de ser justo. O exame crítico dos princípios de justiça é uma incitação constante da justiça milliana. Com efeito, não só no que tange à justiça, mas na filosofia de Mill como um todo, o pensamento crítico desempenha um papel crucial. Visto que exercer uma crítica sem engajar no debate público é assaz difícil, a habilidade de se pensar criticamente está inevitavelmente imbricada com o debate.5 No capítulo final do Utilitarismo, algumas querelas envolvendo o direito e a justiça são mencionadas. A tributação deve ser aplicada proporcionalmente à renda, ou cada cidadão deveria ser obrigado a contribuir com o mesmo tanto? É lícito permitir que os mais qualificados ganhem mais, ou a sociedade deve criar mecanismos de compensação para os menos favorecidos, a fim de garantir que sua renda não diste em demasia dos trabalhadores qualificados? Estes são exemplos de questões controversas, marcadas por posições antagônicas, cada qual invocando a justiça a seu favor. Mill se nega a respondê-las e não fixa uma lista de princípios imutáveis de justiça. Ele sabia que seria prepotente da parte de um autor querer ditar os princípios de justiça de uma vez por todas para a sociedade. Ao invés de nos impor um conjunto de princípios absolutos que jamais devemos contestar, Mill quer que deliberemos uns com os outros e estabeleçamos, por conta própria, quais princípios nos conduzem melhor à utilidade. Em uma sociedade como a nossa, carregada com uma história particular, dividida por certos problemas, quais princípios melhor realizam a justiça? É esta a questão que o Utilitarismo nos convida a debater. Portanto, seria inadequado querer estabelecer os princípios de justiça unilateralmente (pace RAWLS, op. cit.). A melhor maneira de resolver a questão da justiça é na primeira pessoa do plural; apenas ao engajar na deliberação pública é que podemos descobrir quais princípios são capazes de realizar a justiça no determinado tempo e lugar 5



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Vide sobretudo o segundo capítulo de On liberty (1859), onde Mill explica que a liberdade de pensamento é impossível sem a liberdade de debater com os demais; para que o indivíduo possa pensar criticamente, a existência de uma esfera de deliberação pública lhe é indispensável.

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que nos rodeiam. Para Mill, a justiça se estabelece em um diálogo no qual todo ser humano tem direito à voz.

4. Conclusão. Esse artigo argumentou que a maneira como Mill é retratado em Uma teoria da justiça dá vazão a dois equívocos com relação ao seu utilitarismo: (i) justiça e utilidade social podem se dissociar em alguns casos; (ii) quando elas se dissociam, Mill se afastaria da primeira para maximizar a segunda. Ambas as ideias não procedem porque, como se mostrou, a justiça é a utilidade social para Mill. De acordo com ele, a utilidade social pertence a uma sociedade próspera, e esta é impossível de ser realizada sem justiça, sobretudo sem justiça distributiva. Por isso mesmo, “todas as instituições” devem ser elaboradas com vistas a promover “a justiça distributiva”, o que por sua vez proporciona aos cidadãos os meios necessários para que eles se desenvolvam (MILL, 1863, p. 198). A relação entre as instituições políticas e a justiça também é abordada na obra de Rawls. No seu prefácio, Rawls anuncia que um dos maiores objetivos de Uma teoria da justiça é entender como “as instituições da democracia constitucional” podem realizar a justiça distributiva (RAWLS, 2008, p. xxxvi). Além disso, Rawls quer elaborar uma teoria da justiça que seja conforme suas intuições democráticas, algo que ele alega não ter sido feito pelo utilitarismo. Para tanto, ele fixa uma lista de dois princípios que as sociedades democráticas hão de aceitar “de uma vez por todas” (RAWLS, 2008, p. 14). Podemos nos indagar, contudo, quão democrática semelhante estratégia é. Uma vez que a comparemos com sua contraparte milliana, a justiça rawlsiana revela-se não tão democrática quanto se pretendia ser. Como vimos, a justiça para Mill é uma questão que deve estar inteiramente submetida ao debate público. O melhor governo, diz ele, é aquele que mantém “a mais ampla participação nos detalhes da função administrativa e judiciária” (MILL, 1861, p. 286). Exemplos de práticas que dariam vazão à participação popular ampla nos negócios jurídicos e administrativos seriam o júri popular, a admissão a cargos municipais e, sobretudo, a maior publicidade e liberdade de discussão possíveis, que per-

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mitem que não apenas poucos indivíduos, mas o público como um todo, tornem-se participantes do governo e beneficiários da instrução e do exercício mental que isto acarreta (idem).

Participar de discussões sobre questões de justiça é importante porque desenvolve as capacidades humanas. Diferente de Rawls, Mill pensa que os princípios de justiça devem ser aplicados dialogicamente, mediante processos democráticos de deliberação. Sem dúvida alguma, Mill repudiaria veementemente qualquer tentativa de confinar em um único autor a autoridade de estabelecer princípios de justiça irrevogáveis. Definir o justo de maneira perene seria contraproducente para Mill porque obstruiria o aperfeiçoamento da utilidade social, que “realiza-se perpetuamente” (MILL, 1863, p. 156). Segundo ele, somos todos falíveis, e é por isso que quanto mais pessoas contribuírem para o seu estabelecimento, tanto mais acertada será a definição da justiça. Porque todo juízo e interpretação são falíveis, nenhum princípio de justiça pode ser decidido de uma vez por todas; cada decisão é provisória e contestável, e o exame crítico dos princípios de justiça há de ser constante. O debate sobre a justiça deve estar sempre aberto à discussão, de sorte que enrijecer seus princípios e limites de uma vez por todas seria antidemocrático. Ironicamente, foi isso o que Rawls fez com seus dois princípios de justiça. Pace Rawls, Mill não acredita que os princípios de justiça devam ser imutáveis. Sua ideia de justiça é radicalmente democrática e não busca construir uma geometria moral. Ao contrário de princípios geométricos, os princípios da justiça milliana emergem do debate democrático. Porque não são cristalizados de uma vez por todas, eles conseguem acomodar novas demandas sociais. Longe de exigir submissão total, eles permitem às pessoas contestar e transformar os princípios de justiça que regulamentam sua sociedade. A justiça milliana é, para concluir, mais democrática que a rawlsiana.

Referências BENTHAM, J. A fragment on government. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.

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DALAQUA, G. H. O debate público como fonte constitutiva da individualidade milliana. Humanidades em diálogo, vol. V, São Paulo, USP, 2013. MILL, J. S. (1859) On liberty. In: On liberty and other essays. Oxford: Oxford World’s Classics, 2008. _____. (1861) Considerations on representative government. In: On Liberty and other essays. Oxford: Oxford World’s Classics, 2008. _____. (1863) Utilitarianism. In: On liberty and other essays. Oxford: Oxford World’s Classics, 2008. NUSSBAUM, M. Mill between Bentham and Aristotle. In: BRUNI, L. e PORTA, P. Economics and happiness. Oxford: Oxford University Press, 2005. RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Tradução de J. Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008. _____. Political liberalism. Nova Iorque: Columbia University Press, 1993.

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