Jonas Mekas: o olhar ficcional da realidade familiar

June 6, 2017 | Autor: Teresa Vieira | Categoria: Avant-Garde Cinema, Cinema, Lithuania, Home Movies and Amateur Film
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Jonas Mekas O olhar ficcional da realidade familiar Teresa Vieira

Introdução

1 - Jonas Mekas (http://bit.ly/1PexPJX)

Jonas Mekas é um diarista, um capturador de realidades da sua vida, da vida que o rodeia. Entender o processo de realização dos seus filmes implica separar duas partes do processo: a filmagem e a edição. A primeira relaciona-se com a vertente realista e natural dos seus filmes, enquanto que a segunda explora vertentes mais experimentais e avantgarde, culminando, no final, em filmes documentais que nos mostram a realidade de acordo com a perspectiva do realizador. O presente trabalho procura entender os processos que induzem a criação da estética específica dos filmes diários avant-garde de Mekas, procurando entender de que forma é que a realidade pessoal do realizador é moldada pelo processo de montagem ligado à associação livre, e de que forma é que a quebra da estrutura narrativa clássica influencia o espectador, tal como outras estratégias de filmagem e edição utilizadas pelo realizador. 1

As filmagens de Mekas Jonas Mekas, desde que iniciou a sua vida nos EUA, grava grande parte dos momentos da sua vida, vivendo, muitas vezes, através da câmara: ela é a sua forma de integração, ela é a sua forma de olhar, observar e apreciar o mundo que o rodeia. As suas filmagens podem ser consideradas enquanto algo relacionável com o estilo de filmagem familiar e amador. Com uma câmara amadora, Mekas, exilado nos Estados Unidos, captura momentos biográficos da sua vida, e interroga o seu presente de sujeito sem casa/deslocado. Uma tentativa de tornar a morte obsoleta, com histórias do quotidiano, dos costumes, das multidões, dos sujeitos particulares. Enquanto imagens domésticas, expressam tanto a realidade que rodeia o realizador, que a captura dentro da sua subjetividade individual, mas, ao mesmo tempo, a realidade e história colectiva. De acordo com Eric de Kuyper, é possível tomar-se consciência de uma " "força original" das imagens amadoras, como se na sua autenticidade e no seu despojamento elas guardassem uma dimensão perdida do cinema" (Lins & Blank, 2012, p. 58). Para Kracauer, um filme pode ser considerado realista “because it correctly reproduces that part of the real world to which it refers” (Edwards, 2013, p.1), sendo o cinema "the dynamism of life, of nature and its manifestations, of the crowd and its eddies." (Edwards, 2013, p.1). "(...) the process mounts the camera on the everyday body" (Deleuze, 1989, p. 191): esta é uma das características marcantes do cinema experimental, sendo este um tipo de cinema que experimenta, em vez de descobrir, como os outros tipos de cinema, de acordo com Deleuze. As filmagens de Mekas inserem-se num plano experimental, e providenciam-nos o tempo presente da acção, sendo que a câmara captura o instante das pessoas na performance das rotinas diárias. O seu estilo de filmagem familiar/documentário amador aproxima-se do cinema realista na medida em que procura não interferir com a realidade, não produzir ficção. Para Odin, o cineasta amador precisa de se retirar da família para produzir imagens dela, precisa de se excluir (Lins & Blank, p.60). Será necessário, então, "dirigir os integrantes, ajeitar a luz, encontrar o enquadramento adequado, deixar de ser um 2

membro da família" (Lins & Blank, 2012, p. 60) e tornar-se o realizador. Na cinematografia de Mekas, é possível observar que o carácter familiar e o estilo amador não implicam, obrigatoriamente, um tratamento desprovido de técnica e cuidado estético. Na perspectiva de Mekas, ele "had to liberate the camera from the tripod, and to embrace all the subjective film-making techniques and procedures,” to manage therefore “to merge myself with the reality I was filming, to put myself into it indirectly, by means of pacing, lighting, exposures and movement” "(Cuevas, 2006, p.56). O afastamento da realidade para a captura tecnicamente e esteticamente profissional da filmagem não ocorre. No entanto, ainda que os movimentos de câmara e alguns planos surjam de uma forma intuitiva e instantânea, e que o tratamento profissional não seja o procurado, é possível observar certos cuidados estéticos que é possível inserir num plano de realizador profissional. Para além de não ocorrer afastamento da realidade familiar por parte do realizador, é possível reconhecer o aparato com que é tratado o realizador através das personagens filmadas: o realizador é reconhecido, a sua câmara é reconhecida e as personagens interagem não só entre si, como também com o realizador/câmara (encarando a lente de frente, por exemplo), existindo um diálogo constante entre todos os elementos (Lins & Blank, 2012, p.62). O realizador faz parte da comunidade que retrata, e "a relação entre personagens e cinegrafista muda de acordo com a intimidade entre eles existente." (Leal, 2013, p. 9). Não só a interacção personagens+câmara se intensifica, como as próprias personagens - reais - são filmadas num clima "de maior informalidade" (Leal, 2013, p.9). Os espectadores, observando o diálogo gestual/a ligação emocional entre o realizador e as personagens, criam um elo de ligação com o realizador – que está atrás da câmara, e com quem é partilhada a comunicação da intimidade -, identificando-se com o mesmo (Lins & Blank, 2012, p. 64). O realizador observa e regista a realidade através da câmara, e os espectadores têm acesso à visão dele sobre essa mesma realidade: "a memória familiar" (Leal, 2013, p.12). Os filmes amadores familiares acabam por ser utilizados, diversas vezes, enquanto um objecto privado, de recordação de momentos familiares marcantes. Mas os elementos da família não são as únicas personagens ou objectos retratados, nem somente os momentos que fogem à rotina diária: "Assim como se filmam as viagens pensando no que futuramente terá sido bonito, filma-se o espaço da casa, os corpos – que crescerão e envelhecerão – e, mais subjetivamente, as relações familiares, possivelmente pensando na visualização/projeção futura daquele filme. E a escolha dos temas e momentos pode 3

se dar por um critério como: “Nesse momento terei sido feliz”." (Leal, 2013, p.17). Mekas quebra com a utilização particular dos filmes, partilhando os seus momentos com o público geral. E, a partir da observação de filmes como "Lost, Lost, Lost" (1976), é possível verificar que a rotina do out of place é uma das grandes temáticas, tal como a observação dos novos espaços, das novas pessoas, das novas realidades, em relação com as pessoas de sempre, com as rotinas de sempre - por exemplo, com o retrato documental/ficcional da comunidade lituana nos EUA. O realismo e tratamento amador - ainda que com um cuidado estético profissional da filmagem são evidentes, mas são quebrados na edição e montagem dos filmes.
 Os diários visuais de Jonas Mekas têm um carácter autobiográfico, onde a ficção e a não-ficção entram em relação de equilíbrio (Cuevas, 2006, p.57). O estilo de filmagem, de carácter realista, e com foco em actividades pessoais, providencia a vertente nãoficcional que é captada pelo espectador, que as lê enquanto a realidade. No entanto, a edição providencia a vertente ficcional, visto que a montagem não pretende reproduzir uma realidade documental, mas sim criar uma realidade subjectiva e pessoal. Quais são as estratégias e características de edição e montagem

através das

quais Mekas cria a vertente ficcional, fortalecendo, ao mesmo tempo, o carácter subjectivo? Ordenação não-cronológica das filmagens; Criação de Capítulos e conteúdo da voz-off; Alteração da velocidade e aplicação de sons/ruídos não presentes nas filmagens.

Edição e Montagem: as operações no tempo 
 A narrativa pode ser considerada um meio através do qual os indivíduos têm a possibilidade de armazenar, ordenar e projectar unidades de informação. As narrativas "are like temporal filters whose function is to transform the emotive charge linked to the 4

event into sequences of units of information capable of giving rise to something like meaning." (Lyotard, 1991, p.63). Para Eakin, a narrativa “is not merely a literary form but a mode of phenomenological and cognitive self-experience.” (Cuevas, 2006, p. 55) . O cinema dá continuidade à noção de narrativa, ordenando eventos, momentos, imagens e pensamentos de uma forma contínua. Entre momentos, entre séries de imagens, são efectuados cortes racionais, que estruturam o filme e que definem o estilo de ritmo e a harmonia do filme. A questão temporal é colocada em foco, sendo objecto de uma representação indirecta, através da ordenação e sequenciação das imagens em movimento. O cinema é, de acordo com Badiou, "like time that can be seen" (Badiou, 2013, p. 209), criando uma sensação de tempo diferente da experiência vivida de tempo pelo indíviduo/espectador. O cinema transforma a experiência vivida de tempo em representação, mostrando tempo (Badiou, 2013, p. 209).

"O cinema obedece as leis da mente, não as do mundo exterior" (p.11) O mundo exterior filtrado pela tela do cinema liberta-se das coordenadas de espaço, tempo e causalidade e adquire, ajusta-se às formas da nossa consciência. É uma espécie de "vitória da mente sobre a matéria" (Froemming, 2002, p.19)

O tempo é a forma através da qual se sintetiza a experiência e, no cinema, há operações no tempo, com diferentes formas de o demonstrar, sendo o cinema uma "(...) "art of montage" (Badiou, 2013, p.134), tendo o cinema, como tal, a capacidade de tornar o tempo visível. O cinema demonstra-nos, por exemplo, que certas relações que, a priori, não poderiam ocorrer, na realidade, podem: como a descontinuidade poder ser pensada dentro da continuidade. Não existe uma teoria específica relativa à continuidade e à descontinuidade no cinema, mas existe, no entanto, "a creation of new relationships between continuity and discontinuity" (Badiou, 2013, p. 219). Aquilo que acontece, no cinema, é tanto contínuo e descontínuo e a promessa que nos é dada, pelo cinema, é "a promise that may have no equivalent: we can live within discontinuity" (Badiou, 2013, p. 219). A montagem aparece, então, como um dos elementos básicos do cinema, permitindo a ordenação dos diferentes momentos e das diferentes imagens. Eisenstein, 5

no "Dialectic approach to film form", define a montagem como "emotional combinations, not only with the visible elements of the shots, but chiefly with chains of psychological associations." (Eisenstein, 1949, p.13). Surge, aqui, a noção de montagem associativa. Uma montagem não necessariamente com seguimento lógico visual, mas ligada às emoções e aos pensamentos sobre os quais o realizador pode ou não racionalizar. A partir desta noção, é possível combinar dois eventos ou dois momentos ou duas imagens que, aparentemente, não têm uma ligação lógica – parecendo desconexos -, o que induz a uma "liberation of the whole action from the definition of time and space" (Eisenstein, 1949, p.14). A montagem associativa é baseada no corte irracional, que utiliza fragmentos de espaço e de tempo desconexos, com uma aparente falha de combinação. Os surrealistas, por exemplo, recorriam à colagem para "explorar o encontro causal de realidades distintas, de elementos disjuntos, produzindo surpresa no espectador, produzindo efeitos de ruptura com o convencional e permitindo a repentina aparição de aberturas, de multiplicação de sentidos. Em seus trabalhos eles buscavam o insólito, o inesperado, tematizavam e propunham jogos literários, indo em direções em que o homem comum supunha não encontrar nada, isto é, seguiam uma direção avessa àquela que governa a busca do sentido." (Froemming, 2002, p.24).
 
 A montagem associativa e a descontinuidade, por vezes, subjacente, podem ser relacionadas com a noção de associação livre, de Freud. "A associação livre está ancorada na transferência e na interpretação. Estes são, prioritariamente, seus escolhos. A experiência desta fala não está separada da situação em que ela se insere. Lacan (1936/1998) lembra que: "A linguagem, antes de significar alguma coisa, significa para alguém"". (Froemming, 2002, p. 46) A associação livre é "a way of linking one sentece with another without regard for the logical, ethical or aesthetic value of the link" (Lyotard, 1991, p.30-31). Neste tipo de associação, procura-se desligar a conexão imediata do cérebro a regras instituídas pela sociedade, sendo o único fio condutor o sentimento. "A fragment of a sentence, a scrap of information, a word, come along. They are immediately linked with another 'unit'. No reasoning, no argument, no meditation." (Lyotard, 1991, p.31)

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O espectador deve ser capaz de não julgar e dar atenção a tudo o que acontece, quando acontece. O realizador - tal como o paciente - deve permitir que o discurso decorra na sua desordem, dando liberdade a todas as ideias, que surgem sem selecção ou repressão. "A rule of this sort obliges the mind to be 'patient' " (Lyotard, 1991, p.30): a passividade de receptor e de emissor desaparece, e novas possibilidades surgem. O discurso do realizador é trabalhado, livre nos seus meios, mas conduzido por um objectivo: uma abordagem à verdade ou ao real. (Lyotard, 1991, p.30-31). O cinema não tem, então, de seguir um regime rígido de lógica visual, que se baseia numa noção de continuidade [falsa (Deleuze, 1989, p. 11)] , mas pode-se reger por outros príncipios. O não seguimento da lógica visual do filme narrativo clássico não implica, no entanto, uma absoluta ausência de narrativa. Para Barthes e Duisit, "in order for a film to be truly non-narrative, it would need to be nonrepresentational. This is to say that one would not recognize anything in the image and that temporal, sequential, or cause- and-effect relations could not be perceived between the shots or the elements of the image” (Leal, 2014, p. 158). Caso existisse a possibilidade de criação de um filme absolutamente não-narrativo, “nonetheless,(...) the spectator, being accustomed to the presence of fiction, would still have a tendency to re-inject narrative where it does not exist; any line or any color may serve to engage fictionality." (Lear, 2014, p.158) Fernand Léger procurou definir algumas das possibilidades radicais do cinema. Para Léger, o potencial do cinema não se baseava na imitação dos movimentos da Natureza, mas era, sim, "a matter of making images seen" (Gunning, 1986, p. 63).

Lumière e Mélié concebiam o cinema não enquanto uma mera forma de contar histórias, através de uma narrativa estruturada e lógica, mas sim como uma "way of presenting a series of views to an audience" (Gunning, 1986, p. 64). Eles pertenciam ao género de cinema of attractions, um tipo de cinema que se baseava na premissa de que o cinema é feito "to show something" (Gunning, 1986, p.64), contrastando-se com o cinema narrativo e a sua vertente voyeurística, "(...) this is an exhibitionist cinema" (Gunning, 1986, p.64). Neste tipo de filme, por exemplo, os actores direccionam, por vezes, o seu olhar para a câmara, estabelecendo um tipo de relação diferente com o espectador.

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O cinema of attractions não desapareceu com o domínio do cinema narrativo, mas acabou por se tornar underground, e tornou-se uma referências para certas práticas avant-garde, por exemplo. O avant-garde não está preocupado com o que é que acontece com o sujeito, mas se algo acontece. O avant-garde procura fugir das normas estabelecidas, experimentando novas alternativas. Nesse sentido, pertence à estética do sublime (Lyotard, 1991, p.90).
 " 'After' a sentence, 'after' a colour, comes another sentence, another colour. One doesn't know which, but one thinks if one relies on the rules that permit one sentence to link up with another, one colour with another, rules preserved in precisely those institutions of the past and the past" (Lyotard, 1991, p.91). Estas regras inerentes ao sistema determinam, como tal, as regras de relação entre diferentes frases, por exemplo: relações de obrigação, proibição, permissão, etc. O sublime reside na fuga ao programa - o sublime não se rege pelas regras do sistema. No sublime, "major obstacles get in the way of a regular exposition of rhetorical or poetic principles (Lyotard, 1991 p.94). Quando é sublime, o discurso incorpora defeitos, imperfeições. A perfeição que é, em geral, exigida no campo da techne "isn't necessarily a desirable attribute when it comes to the sublime feeling" (Lyotard, 1991, p. 95). Para Boileau, "the sublime (...) cannot be taught" (Lyotard, 1991, p.95), pois não está ligado a regras que possam ser determinadas. "(...)the sublime only requires that the reader or listener have conceptual range, taste and the ability 'to sense what everyone senses first' " (Lyotard, p.95) O destino dos trabalhos é questionado, o sistema de regras é interrompido, e novas experiências surgem. A predominância da ideia da techne funciona dentro de uma regulação múltipla, dos modelos ensinados pelas Escolas e pelas Academias e a ideia de sublime quebra com essa harmonia. (Lyotard, 1991, p. 96). O sublime, para Boileau, não é simplesmente falar de qualquer coisa que é provado ou demonstrado, "but a marvel, which seizes one, strikes one, and makes one feel.' " (Lyotard, 1991, p.97) Este choque é influenciado, por sua vez, pelo recurso à

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imperfeição, que não se enquandra no gosto formatado pelo sistema. Mas a arte não imita a Natureza: a arte cria um mundo à parte (Lyotard, 1991, p.97). Os avant-gardistas desafiam a noção de tempo dos indivíduos, procurando desfazer a presunção da mente em relação ao tempo, sendo esta uma das suas principais tarefas. O sentimento sublime consiste, precisamente, nesse desafio, e sublime é o nome desta privação (Lyotard, 1991, p.107).

Jonas Mekas: o diarista avant-garde “I live without a plan. My greatest discovery was when I understood that I don't have to do anything: all I have to do is to permit things to happen, not to be in their way.” (Mekas, 2000)

O estilo de Mekas inscreve-se num tipo específico de trabalhos autobiográficos, descrito por Jim Lane como entradas de diário: um tipo de documentário autobiográfico que envolve a filmagem de momentos do dia-a-dia por um longo período de tempo e a subsequente edição dos mesmos numa narrativa cronológica autobiográfica (Cuevas, 2006, p.55). Mas Mekas não utiliza uma sequenciação cronológica das suas obras, fugindo, como tal, dessa última vertente da definição de entrada de diário anteriormente referida. O alcance do filme-diário é estendido num modo de maior discursividade, capaz de se estender em termos sociais, e enquanto forma de lidar com o passado. Mas Mekas não lida somente com o seu passado: os seus filmes reflectem uma batalha constante entre o passado e o presente, o aqui e o ali, típicos de um comportamento de exilado. Mekas filma para lidar com a sua sensação de out of place/deslocado, para pertencer ao seu novo aqui e agora. " (...) as an exile, as a displaced person, I felt that I had lost so much, my country, my family, even my early written diaries, ten years of it, that I developed a need to try to retain everything I was passing through, by means of my Bolex camera. It became an obsession, a passion, a sickness. So now I have these images to cling to..." (Mekas, 2000) O realizador estrutura o filme no presente, com a selecção de cenas, e, posteriormente, com a edição subsequente, realiza a montagem das diferentes cenas. Na 9

montagem, Mekas elimina e corta as partes que não funcionam, que não encaixam. A estrutura do filme faz com que este se liberte da dimensão temporal literal, visto que não existe uma relação causal fechada entre os diversos eventos apresentados/imagens apresentadas. "And what are those moments, what makes me choose those moments? I dont' know. It's my whole past memory that makes me choose the moments that I film." (Mekas, 2000) Em "As I was Moving Ahead, Occasionally I saw Brief Glimpses of Beauty" (2000), Mekas descreve o acto de selecção de filmagens e a montagem das mesmas: "I have never been able - really - to figure it all out: where my life begins and where it ends. I have never, never been able to figure it all out. What's all about. What it all means. For when I began now, to put all these roles of film together, the first idea was to keep them chronological. But, then, I gave up, and I just began splicing them together by chance, the way I found them on the shelf. Because I don't really know where any piece of my life really belongs. So let it be. Let it go. Just by pure chance. Disorder. There is some (...) kind of order in it, order of its own, which I don't really understand. Same as I never understood life around me. The real life, as they say. Or the real people. I never understood them. I still do not understand them. And I don't really want to understand them." (Mekas, 2000) A partir desta descrição, é possível observar que o critério de selecção e de montagem de filmagens se baseia na associação livre, sendo que o realizador apresenta a sua visão sobre a sua realidade - que, para si, é algo desconexo narrativamente, sem inícios, nem fins -, deixando fluir as imagens que pretende partilhar, da forma como se encaixam na sua realidade. No entanto, ainda que fuja à estrutura narrativa clássica - o que é característico do género avant-garde, em que se insere -, a narrativa existe: as escolhas de fragmentos, e a comunhão dos mesmos reflectem uma narrativa, ainda que desconexa, baseada na perspectiva do realizador e no seu sentimento em relação às imagens.

2 - Walden: Diaries, Notes and Sketches (1969): http://bit.ly/1V5LLEt

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Na edição final, Mekas adiciona camadas de sons e texto, o que aumenta a subjectividade e criatividade do seu trabalho. Introduz títulos descritivos, simbólicos ou poéticos, para pontuar a estrutura do filme: em "Walden: Diaries, Notes and Sketches" (1969), podemos encontrar títulos como "I thought of home", "One day like any other", "But the wind was full of Spring", "Coming back to New York from Buffalo", "Autumn came with wind and gold", entre outros. Estas notas intensificam o tom diarista do filme, que apresenta, tal como os restantes filmes de Mekas, momentos do seu dia-a-dia familiar, social e cultural. Mekas adiciona, igualmente, sons/ruídos. Os seus comentários gravados - que o espectador percepciona enquanto amadores, novamente, por ser possível identificar os momentos em que o realizador liga/desliga o gravador, por exemplo - permitem ao espectador receber a dupla temporalidade dos diários: a visão presente, das imagens, com um passado de memória. A voz carrega o tom do passado, com um carácter teatral e poético, que permite ao espectador obter uma visão ainda mais marcada da perspectiva subjectiva e poetisada da vida de Mekas. "(...) os filmes-diários de Jonas Mekas nos parecem apontar para uma outra possibilidade da memória, para as características da “memória por excelência” bergsoniana, composta de fragmentos irrepetíveis e singulares, cuja função essencial é nos fazer sonhar e, enquanto sonhamos, somos livres, vivemos." (Ikeda, 2012, p. 229) No entanto, para Mekas - e de acordo com "A Happy Man: Jonas Mekas" (2012) -, aquilo que ele nos apresenta não são memórias: as memórias, essas, esvaiem-se no tempo, e perdem-se com o decorrer dos anos. A realidade é aquilo que ele apresenta ao espectador: uma realidade que foi captada, guardada, e que nunca se poderá perder. Mesmo fazendo parte do passado, a película registou a realidade, e a montagem baseiase nela e apresenta-a enquanto ela mesma - enquanto a realidade. No entanto, ainda que o espectador consiga reter a noção de realidade, que deriva das temáticas e do estilo de filmagem, tal noção entra em conflito com a vertente ficcional/experimental criada pela edição e montagem dos pequenos fragmentos de filme.

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É possível observar, igualmente, que o carácter subjectivo do realizador é intensificado pela alteração da velocidade das gravações. De forma a exemplificar o tipo de imagem e o tipo de sensações que surgem desta alteração, recorrer-se-á à primeira nota de "Notes on a Circus", presente em "Walden: Diaries, Notes and Sketches" (1969).

3 & 4 - "Walden: Diaries, Notes and Sketches" (1969): http://bit.ly/1n82uMf & http://bit.ly/1T1OCzC

Nestas notas sobre o circo, Mekas apresenta-nos uma ida ao circo, filmando malabaristas, palhaços, animais, etc. As filmagens são instáveis - com quebras de movimento e focos e desfoques variáveis -, como é comum em Mekas, mas o principal efeito deriva da combinação dos movimentos descoordenados da câmara com a alteração da velocidade do filme: a imagem torna-se extremamente frenética, e é praticamente impossível existir uma observação do movimento real do momento. Recorre, igualmente, a sobreposições de filmagens, o que salienta algo que já de si surgia da alteração da velocidade: o realçar das cores, das sombras, e do rasto do movimento. Mekas foge à observação da forma literal, e transforma-a através de alterações técnicas. Como tal, o objecto ao qual o espectador tem acesso transparece realismo, devido ao estilo de filmagem, sendo que, por ser alterado desta forma, na edição, acaba por se tornar como um sonho baseado na realidade. Conciliando esta sensação com a estrutura narrativa transgressiva, que rompe com o delineamento clássico, Mekas providencia-nos fragmentos da sua vida real que se elevam a obras de arte avant-garde. A estratégia avant-garde de Mekas é evidente, com a sua experimentação visual, e liga-se à estética do sublime pela imperfeição técnica já assinalada, pela quebra da harmonia narrativa clássica, pelo efeito de choque que deriva dessa quebra, e pela criação de um mundo à parte - que, ainda que demonstre a realidade experienciada, foge da representação literal. 12

"Nos filmes de Jonas Mekas há (...) uma história (ou melhor, um conjunto de fragmentos de instantes) contada por um autor que se filma. Ao invés de um observador neutro invisível, que conta essa narrativa “imparcialmente”, nos diários de Mekas, o autor é ativo, o observador se revela sujeito e objeto da sua própria observação, ou ainda mais radicalmente, ele só existe enquanto fala de si, enquanto festeja a existência da arte enquanto possibilidade da representação de si mesmo (“filmo porque existo, existo porque filmo”)." (Ikeda, 2012, p.226) Qual poderá ser o impacto deste tipo de estratégias avant-garde no público? A quebra da norma no mundo das artes foi característico dos ano 60, e define, em grande parte, a estratégia avant-garde. Tal noção permite uma associação com arte transgressiva, no sentido em que o público poderá não ter a capacidade imediata de apreciação fácil daquilo que lhe é apresentado. Em Mekas, o confronto entre realidade e ficção é constante, e as alterações técnicas de edição permitem a criação de uma realidade alternativa, como uma observação do processo cerebral de relação com os diversos fragmentos da sua vida. A narrativa desconexa exige uma observação diferente da parte do espectador, pois aquilo que observa são fragmentos de uma vida, ligados por associações relacionadas com sentimentos, impressões. A imperfeição e o estado da obra enquanto algo quase sem forma fixa permite uma observação de pedaços de uma vida que nos surge enquanto algo sublime, enquanto uma elevação da memória da realidade que outrora existiu. E, assim, filmando, editando e montando, Jonas Mekas existe, igualmente.

5 - Jonas Mekas, em "Lost, Lost, Lost" (1976): http://bit.ly/1PolVXY

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Conclusão Mekas diz que é de sua natureza gravar, pois perdeu demasiado e esses pequenos pedaços de realidade são aquilo que o permite ultrapassar (Mekas, 2000). Apresenta-nos, como tal, pequenos excertos da sua vida, que são filmados com técnicas que se assemelham às dos filmes familiares, com uma imperfeição de gravação de imagem e de voz que permitem que se aproxime, igualmente, à sensação de sublime característico dos filmes avant-garde. A experimentação inicia-se com a edição e montagem das gravações: alteração da velocidade, criação de capítulos dentro de uma estrutura narrativa não linear, narração de carácter poético, ligação de fragmentos através de associação livre. Com a edição e estilo de montagem, Mekas afasta-se do típico diário familiar, apresentando filmes de carácter avant-garde. A separação destes dois momentos da elaboração dos filmes permite detectar as diferentes estratégias do realizador, que confluem num género que consegue associar tanto uma vertente documental como uma vertente ficcional/experimental.

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Bibliografia Lins, C. & Blank, T. (2012) Filmes de família, cinema amador e a memória do mundo. Significação, 37 [52]. Leal, M. (2013) Filmes de Família: Lembrança e Documento. Tese de Bacharelato, Universidade Federal Fluminense. Edwards, T. (2013) Realism, Really?: A closer look at theories of realism in cinema. Kino: The Western Undergraduate Journal of Film Studies, 4 [1]. Eisenstein, S. (1949) Film Form, New York. Badiou, A. (2013) Cinema , New York, Polity Press. Deleuze, G. (1989) Cinema 2 – The Time-Image , The Athlone Press. Jean François Lyotard (1991) The inhuman – Reflections on Time, Polity Press. Nichols, B. (2001) Documentary Film and the Modernist Avant-Garde. Critical Inquiry, 27 [4], pp580-610. Froemming, L. (2002) A Montagem no Cinema e a Associação-Livre na Psicanálise. Tese de Doutoramento, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. The interpretation of Dreams (Sigmund Freud 1900) Gunning, T. (1986) The Cinema of Attraction: Early Film, Its Spectator and the Avant-Garde. Wide angle, 8 (3,4) Outono, p. 63-70. Cuevas, E. (2006) “The Immigrant Experience in Jonas Mekas's diary films: a chronotopic analysis of Lost, Lost, Lost”. Biography, 29.1. Ikeda, M. (2012) Os filmes-diários de Jonas Mekas: as memórias de um homem que se filma. Rumores, 11 (1) Janeiro-Junho, p. 220-232. Leal, J. (2014). “A Impossibilidade do Cinema 'Não Narrativo'”. In Atas do III Encontro Anual da AIM, editado por Paulo Cunha e Sérgio Dias Branco, 153-161. Coimbra: AIM. ISBN 978-98998215-1-4. Consultado online: Jonas Mekas, "Just Like a Shadow" (2000): http://jonasmekas.com/books/index.php? book=just_like_a_shadow [Consultado a 09/12/2015] "Walden: Diaries, Notes and Sketches" (1969) [Consultado a 20/11/2015] "A Happy Man: Jonas Mekas" (2012) [Consultado a 15/01/2016] "Lost, lost, lost" (1976) [Consultado a 01/12/2015] "As I was Moving Ahead, Occasionally I saw Brief Glimpses of Beauty" (2000) [Consultado a 15/01/2016]

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