JORGE CUSTÓDIO – “Renascença” artística e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1ª República, 2 vols., Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2011. ISBN 978-989-658-132-9 (vol. 1) e 978-989-658-191-6 (vol. 2)

Share Embed


Descrição do Produto

JORGE CUSTÓDIO, “Renascença” artística e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1ª República, vol. I (Fundamentos e Antecedentes) e vol. II (Património da Nação), Caleidoscópio, Casal de Cambra, 2011

Esta obra magna de Jorge Custódio, tão devotada como aguardada, analisa o modo como o Estado e a sociedade portuguesa se posicionaram em relação à salvaguarda, à conservação e ao restauro do património artístico, monumental e arquitectónico, durante o primeiro período republicano (1910-1926), objectivando a sua ressignificação. Tal encargo dificultoso implicou anos de esforçadas peregrinações pelas bibliotecas e arquivos nacionais, complementadas com uma paciente análise e investigação documental e uma perseverante e longa tarefa de cela, para reflexão e escrita. Daí que o "nosso" narrativo do texto e do contexto operativo de “Renascença” artística e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1ª República corresponda a um saber e a uma experiência feitos e insuspeitos, adquiridos sem distanciamentos, e esteja plenamente justificado. Parece ser um bom princípio, sempre que há algo de "novo" numa investigação! Como resultado desse exaustivo labor beneditino – característica e virtude amplamente reconhecidas ao nosso Autor –, dispomos, agora, de um estudo sério e esclarecido acerca do assunto em apresentação e durante o período histórico em análise. O trabalho está sistematizado em duas grandes partes ou temas, compostos por vários capítulos e engrandecidos com o cadastro dos imóveis intervencionados, apêndices documentais, quadros, desenhos e imagens: o primeiro volume é reservado aos Fundamentos e Antecedentes e o segundo volume ao Património da Nação. Perante a impossibilidade de comentar aqui a estrutura e o conteúdo da publicação de Jorge Custódio, anotam-se, simplificadamente, algumas das matérias pesquisadas e consideradas de maior importância ou pertinência e que permitem aferir a justeza e a exemplaridade deste valioso escrito, que merece ser lido e apetecerá reler, com gosto e na íntegra. Ao longo de 1994 páginas de redacção exigente e objectiva, apoiada na utilização de uma bibliografia abundante, em muitas referências documentadas e numa diversificada iconografia de acompanhamento, o arguto investigador fala-nos do pensamento político e da acção patrimonial da Primeira República, essenciais para o entendimento da história do património em Portugal, desde os seus fundamentos modernos (1834-1910) até à nossa época. Dentre outras realidades significativas e com grávida afeição pelos temas abordados, ele dá-nos conta: – do sistema patrimonial da Primeira República e do seu significado. Durante os primeiros anos do regime republicano, prestou-se uma atenção especial às questões da salvaguarda e conservação do património artístico do País, acautelando a sua integridade e valorização social. Para o efeito, foram publicados decretos com legislação específica que instituíam o processo de organização, de protecção e de salvaguarda dos nossos bens culturais históricos, a fim de evitar o “desleixo”, “a

incúria” e a “indiferença oficial” dos antigos dirigentes monárquicos, perante a perda do património da Nação. – das fontes da política patrimonial republicana. Admite-se que as bases teóricas e legislativas da reforma dos serviços da Primeira República assentam na filosofia e nas teorias da arte de Hyppolite de Taine (1828-1893). O apelo ao positivismo taineano permitiu clarificar os conceitos de arte da época e absorver muitos dos aspectos patentes nas concepções artísticas portuguesas coevas. O modelo organizacional e doutrinal dos serviços artísticos e arquitectónicos, bem como as regras do processo de separação do Estado da Igreja e o sistema de inventariação dos bens eclesiásticos secularizados, devem também muito do seu ideário reformador à influente actividade governativa francesa da Terceira República, sobretudo das duas últimas décadas do século XIX. – dos dispositivos legais. O essencial do corpus legislativo português dos inícios republicanos, sobretudo as regras jurídicas destinadas aos monumentos nacionais (por exemplo, expropriações para utilidade pública, servidão administrativa e escavações arqueológicas), beneficiou, claramente, do estudo da legislação estrangeira congénere. A título de exemplo, citem-se os normativos italianos e espanhóis, quanto aos modos de protecção dos bens artísticos e à exportação de obras da arte, e a primeira lei americana referente ao seu património cultural. As intervenções de conservação e restauro dos monumentos classificados foram também objecto de um conjunto de leis próprias, destinadas a viabilizar a execução técnica das respectivas obras. Para o efeito, foi criada a Administração Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1920, antecessora da recentemente extinta Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, fundada em 1929, a quem competia definir as estratégias, os preceitos, as metodologias e as orientações adequados à boa prossecução dos seus fins orgânicos. – da protecção à conservação. A mudança que a expressão cultural do País sentiu justificou a ascendência do conceito de “património” sobre o de “monumento”, tão característico do século XIX. Aquele conceito, pela sua maior abrangência conceptual, é integrativo e serve mais a transcendência da mudança. Não se tratava de proteger tão-somente os objectos da arte, as ruínas e os artefactos arqueológicos, os monumentos de história e da arte, mas sim garantir que esses vestígios, enquanto bens e valores da história e da tradição e daquilo que representavam social, política e culturalmente, sobrevivessem e se inscrevessem como herança e legado do País. Deste modo, impedia-se o “assalto” invectivo dos comerciantes e dos amadores de obras da arte, que promoviam o descaminho dos bens culturais, na ausência de inventários e de iniciativas estruturadas de conservação e de visibilidade da obra pública. A conservação implica meios técnicos e soluções institucionais de carácter organizativo e prático que ultrapassam a mera protecção legal. Apesar da sua onerosidade, da falta de experiência técnica de estaleiro e da incipiente cultura de restauro dos arquitectos, com frequentes conflitos de critérios de intervenção, assistiu-se a um arranque significativo de obras de restauro, enquanto expressão da teoria da conservação (citem-se a Igreja de Santiago, em Coimbra; as catedrais de Lisboa e de Coimbra; os Mosteiros de Alcobaça e dos Jerónimos; os castelos de Vila da Feira e de Leiria; o Convento de Cristo; a Basílica de Mafra; etc.)

2

– da questão da cultura do restauro. É um truísmo afirmar, mas nunca é de mais advertir, que a qualidade dos projectos de conservação, de restauro ou de valorização do património histórico edificado radica na qualidade cultural dos seus arquitectos. Nos alvores do século passado, assistiu-se ao aparecimento de uma entusiasta geração de arquitectos com conhecimentos da cultura de restauro europeia, através da sua participação em congressos internacionais da especialidade. Dadas as actividades exercidas por estes técnicos restauradores nas Comissões e Conselhos dos Monumentos, gerou-se um clima de discussão acerca da diferença entre restauro empírico e restauro moderno (assente em princípios de “escola”) e critérios de intervenção arquitectónica. Eles próprios (os arquitectos) escrevem sobre o assunto (como Adães Bermudes), orientam intervenções de restauro (exemplo de Rosendo Carvalheira), ensaiam soluções de carácter experimental (cite-se António do Couto) ou defendem princípios doutrinários (como Ventura Terra). Mercê destes contributos, verificou-se uma consciência mais alargada e aberta às novas correntes ou “escolas” internacionais, como as do restauro filológico e histórico, do restauro científico ou do restauro não interventivo. A base essencial da filosofia de intervenção mais generalizada, durante aquele período republicano, foi a teoria e a prática da conservação activa. Assentava na classificação dos monumentos, entre “vivos” (isto é, com capacidade real ou latente para serem usados e valorizados pela sociedade contemporânea) e “mortos” (ruínas arqueológicas). Esta divisão abriu as portas aos diferentes tipos de conservação, nomeadamente à consolidação, à recuperação, à beneficiação, etc., que assumem primado sobre o restauro e permitem a introdução de materiais e sistemas construtivos modernos (casos do Castelo de Leiria e do Convento de Cristo, entre outros). Com o final da Primeira República, a noção de património afirmou-se como um legado colectivo e dinâmico, cabendo às novas organizações políticas conferir-lhe continuidade e mudança, adaptadas à evolução e às exigências da sociedade, no qual ela deveria rever-se e sentir-se representada. Como deixa perceber, “Renascença” artística e práticas de conservação e restauro arquitectónico em Portugal, durante a 1ª República é uma obra erudita, solidamente alicerçada e de interesse múltiplo, cuja observação sensível e discurso humanista do Autor juntam e unem leituras analíticas e saberes específicos da sua dupla formação em áreas de fronteira (História e Arqueologia). Este encontro de ideias e de saberes transversais aduz uma riqueza de informação susceptível de libertar o texto de uma análise meramente histórica, para reflectir e acentuar também outros assuntos ou conceitos, frequentemente omitidos nalgumas investigações académicas. Só é possível atingir este patamar, de substrato heurístico, hermenêutico e epistemológico, quando se possuem materiais e recursos competentes para validar e valorizar os resultados do ofício e das práticas histórico-arqueológicas e se sabe explorá-los e integrá-los nos horizontes de um conhecimento interdisciplinar, mais extenso e aprofundado, através de um exame metódico e reflexivo das fontes originais. É por esses motivos que eu entendo o livro de Jorge Custódio – obra pesada e de bastante peso! –, substancialmente, como uma impressiva lição de arqueologia do saber; de um saber inspirador e deliberativo, tributário da capacidade e do talento

3

intelectuais deste reconhecido Autor, para multiplicar novos olhares sobre o passado cultural do nosso património. Ao leitor estudioso e atento caberá identificar ou clarificar outros méritos do trabalho aqui abreviadamente apreciado, capazes de lhe conferir duração, importância e legitimidade matriciais acrescidas, rasgando novas hipóteses de pesquisa e favorecendo a assimilação e a salvaguarda da nossa herança histórica – sem encenações – no vasto contexto civilizacional do País. Virgolino Ferreira Jorge

4

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.