Jornadas de junho e história do anarquismo no Brasil de 1917 à 2013.
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Entrevista concedia em setembro de 2013 para repórter Isabel Harari.
Publicado em encarte especial nesse link:
http://www.carosamigos.com.br/index.php/163-outras-noticias/revoltas/4912revoltas-populares-greve-geral-de-1917-e-jornadas-de-junho-de-2013
1- Caros Amigos: No contexto do capitalismo, principalmente nas sociedades
de consumo, massificadas e manipuladas por uma rede de propaganda e informação dirigida, qual o papel do movimento anarquista? Como atua e qual a sua expressão no cenário de lutas atual? Acácio Augusto:
Como prática de liberdade a anarquia não se faz refém de análises conjunturais. Suas práticas consideram as circunstâncias históricas sem balizar meios e fins.
Nesse sentido, não estabelecem um papel a se cumprir dentro de um contexto
ou de uma conjuntura específicos, de um “cenário”. Também por isso os
anarquistas surpreendem ao mostrarem-se presentes em lutas sociais diversas de maneira singular. Como ocorre desde o movimento antiglobalização, no qual se
capturou palavras como horizontalidade, autogestão e ação direta, etc., fazendo crer alguns analistas que há uma guinada anarquista nos novos movimentos de
protestos espetaculares. Um anarquista está sempre em combate com a autoridade, inclusive as autoridades do movimento. Não busca papel ou protagonismo em um espetáculo, pois a ação direta é sobretudo uma atitude
antirepresentativa, antipolítica, que expõe em luta a montagem do cenário. A atitude libertária politiza questões que não dão Ibope, tomadas como
irrelevantes pelos promotores de espetáculos. No Brasil de hoje, por exemplo,
os libertários se preocupam com a prisão para jovens, lutam em favor de sua abolição. Quem coloca isso para além das reformas e continuidade do negócios?
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2- Caros Amigos: Entre 1917- 1920, a repressão desencadeada tornava quase que impossível a sobrevivência do anarquismo como movimento amplo e aberto, principalmente das organizações anarco-sindicalistas, essa situação
agravou-se na década de 20 e culminou no esvaziamento do movimento. Como você enxerga esse processo? Acácio Augusto:
Isso não é verdade. Não houve esvaziamento das lutas anarquistas, mas
mudança de espaço de ação. Há um excelente trabalho da historiadora Raquel Azevedo mostrando a continuidade das práticas anarquistas nas décadas de
1920-30 (A resistência anarquista. Uma questão de identidade (1927-937). Imprensa Oficial de São Paulo, 2002). Ocorre que com a fundação dos sindicatos oficiais e
do Partido Comunista Brasileiro (1922), o movimento operário tornou-se um
local de disputa diretiva e os anarquistas passaram a se dedicar mais intensamente aos ateneus, escolas racionalistas, centros de cultura, imprensa e editoras, etc. Há uma carta-artigo de Florentino de Carvalho (pseudônimo de
Primitivo Soares), em A Plebe, explicando isso. Ele já havia assinalado essa questão em outros dois textos publicados em Germinal, outro jornal anarquista, em 1913, ao discutir a forma de luta dos anarquistas na imprensa operária.
Esses textos estão publicados no volume 15 da revista verve. Em um deles, intitulado “É preciso escandalizar”, deixa claro que “as transformações sociais, políticas, econômicas, morais e filosóficas, as revoluções, as ascensões dos
plebeus, dos escravos, produzem-se pelo escândalo” (verve, vol. 15, 2009: 224).
A partir do momento em que se tornou impossível produzir o escândalo pela luta nos sindicatos, os trabalhadores anarquistas passaram a agir de maneira diversa. Claro que as perseguições, a repressão brutal, as leis de extradição,
como a Adolpho Gordo (Lei 1.641/1907), os campos de concentração, como a
Clevelândia do Norte, de 1922, minaram muitas das ações anarquistas. Era a 2
reação da sociedade e do Estado ao escândalo que eles produziram expondo a situação dos trabalhadores, mulheres e crianças, e o pauperismo decorrente da carestia de vida. Não estava em jogo a sobrevivência do movimento operário, muito menos disputas hegemônicas, mas a formação de existências em luta. Por
isso, passaram a agir em outros espaços, produzir escândalos de outra maneira. Demorou para a historiografia acadêmica perceber isso.
3- Caros Amigos: Atualmente vemos uma explosão da violência (vide o
genocídio da população jovem, negra e periférica) e um recrudescimento da repressão (física e burocrática). De que maneira o movimento anarquista se insere nesse contexto? Acácio Augusto:
Não existe Estado (seja qual forma histórica ele se apresente) sem produção de
miséria e violência. Como, na mesma medida, sua continuidade depende do monopólio da educação. Nesse sentido, há uma explosão constante de violência. Há variações de intensidade das práticas regulares de uma sociedade fundada na sociabilidade autoritária. Quem pratica o “genocídio da população
jovem, negra e periférica”, são, em sua maioria, jovens negros e periféricos, que
obedientemente e convictos servem às corporações policiais (civil e militar) ou às empresas do tráfico no regime dos ilegalismos. Como se diz na gíria: “quem
tem apetite, aperta o gatilho”. Ou seja, atende à convocação. Um outro periódico anarquista do começo do século XX, A Vida, resume assim essa
questão: “A escola é a sistematização da violência”. Ponto. O resto é reforma, paliativo, tribunal popular, enfim, uma variedade de alternativas que se alimenta precisamente da violência. Ontem mesmo (terça-feira, 24.9.2013), li no
jornal um articulista discutindo uma questão em torno do julgamento no qual ele defendia, sem o menor pudor, que pessoas fossem enforcadas nas tripas 3
umas das outras. Isso pode parecer pueril de minha parte, ou incapacidade de compreender a metáfora, mas expõe como os usos da violência são tão
naturalizados em nossa sociedade, em nossa cultura. Ao mesmo tempo, os mesmos defensores de uma dita violência revolucionária são incapazes de lidar
com situações imediatas que envolvem uma tragédia fatal sem recorrer a uma
lógica punitiva. Nesse sentido, a invenção de um abolicionismo penal libertária,
que colocou, nos anos 1990, a questão sociabilidade autoritária e a urgência em se abolir a prisão para jovens no Brasil, me parece decisiva (Cf. Edson Passetti, Salete Oliveira, et. ali. “Violentados: crianças, adolescentes e justiça”). Não
como a forma do “movimento anarquista” se posicionar, mas uma nota de como as lutas no interior da cultura libertária de fazem em movimento.
Recolocando a pertinência da crítica ao direito realizada por Willian Godwin,
Pierre-Joseph Proudhon e Max Stirner, ao mesmo tempo em que propõe uma resposta urgente ao intolerável, de maneira escandalosa, como situou Florentino de Carvalho. Pois mesmo com tanta violência disseminada, dizer
que não se deve internar jovens, seja por qual motivo for, configura-se como
escândalo. Ao invés de denunciar o genocídio e reafirmar a mesma lógica punitiva que produz os assassinatos, falemos em favor (nunca em nome de) de cada jovem que segue vivo. A abolição da prisão para jovens é uma maneira de
estancar essa violência sem a quimera de banir a tragédia ou a agressividade
que sempre acomete nossas vidas. O problema é que essa é uma luta que não rende espetáculo, tampouco verbas de financiamentos, estatais e privadas. Mas
é uma luta dos libertários de hoje que não têm vocação para ser tietes da imprensa ou animadores de auditório.
4- Caros Amigos: Qual a relação da Greve de 17 (principalmente a de julho,
em São Paulo), com as manifestações desse ano? Você acredita que hoje há um movimento operário fortalecido? (Nesse sentido como um movimento 4
assentado numa época na qual prevalecia uma lógica fordista pode influenciar uma realidade ligada a uma economia pós-fordista) Acácio Augusto:
Não sei. Deve haver relações possíveis de se estabelecer, mas costumo olhar para as lutas partir de sua singularidade, não de suas repetições e/ou
regularidades. A Greve de 1917 foi importante e apontou transformações
decisivas para as lutas e para a sociedade. E essa, para mim, é sua grandeza,
inclusive educativa. Quais as transformações que as jornadas de junho trouxeram para as lutas e para sociedade hoje? Essa me perece uma questão mais decisiva
do que exercitar analogias. Senão, nos perdemos brincando de diretores do
mundo buscando alocar atores e protagonistas no grande teatro da história. E nessa brincadeira, cada um elege e nomeia seus personagens com nomes novos e antigos. Não sei fazer isso. O que vale é a luta que se trava e nela, a história
efetiva interessa como combustível para fazer arder as lutas de hoje, produzir a revolta. O teatro, como sabemos, é uma representação.
5- Caros Amigos: Você enxerga influencias do movimento grevista de 17 no contexto político atual? Acácio Augusto:
Influências há. Sabemos que muitos dos jovens envolvidos nas lutas de rua e nas manifestações são conhecedores da história e, em especial, da história dos
anarquistas. Alguns são provenientes ou mesmo integrantes do movimento
anarcopunk e há uma composição majoritária de universitários que, em alguns casos, já foram formados fora das interpretações tendenciosas que marcaram grande parte da historiografia do movimento operário no Brasil. E nessa
fermentação, registre-se o papel fundamental de Jaime Cubero do Centro de Cultura Social de São Paulo, que soube lidar tão generosamente e sem
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preconceitos ou benevolências, com anarcopunks e anarquistas trabalhadores da
universidade no Brasil, nos anos 1980-90. Em escala planetária, como já me
referi, há muitos professores universitários, envolvidos diretamente com as lutas atuais, que se declaram anarquistas e vêem um caráter eminentemente
anarquista nessas lutas. Mas pensemos de outro modo: o que se passou em julho de 1917 na cidade de São Paulo? Porque, ainda hoje, há interesse, mesmo
que marginal, nesse acontecimento? Parece-me que mais decisivo do que apontá-lo como a primeira grande greve no Brasil, é notar que se tratou de uma
revolta. Essa é a singularidade histórica de 1917. Houve saques ao Moinho Santista como forma explicita de ação direta contra a carestia de vida. O anarquista Edgar Leuenroth foi preso como “mentor intelectual” desse “crime”
e, na prisão, recusou o cargo de candidato mesmo gozando de prestígio entre os trabalhadores e sabendo que isso facilitaria sua soltura como um preso político (ver
verve,
vol.
2,
2002:
11-19).
Enquanto
anarquista,
ele
expôs,
simultaneamente, como a revolta anarquista é antipartidária e como todo preso é um preso político. Diante das leis de perseguição, os anarquistas afirmaram
sua revolta. Não à toa o livro da historiadora Christina R. Loupreato sobre 1917 chama-se “O espírito da revolta” (Anablume, 2000). Embora não houvesse nada
de espiritual em 1917, e talvez a intenção dela fosse jogar com ideia de espírito
das leis (ver verve, vol. 3, 2003: 75-90), o decisivo é notar a atitude de revolta diante do intolerável como caráter singular e distintivo desse acontecimento.
Então poderíamos nos perguntar: essa revolta está presente no “contexto político atual”? A resposta a essa questão é decisiva para saber se as influências
se fazem em favor de uma maior liberdade ou se, ao contrário, há uma apropriação retórica das palavras que caracterizaram as lutas de anarquistas. A
revolta, certamente, foi o traço marcante da Greve de 1917, ou melhor, da revolta de 1917. E hoje? Uma ponta desta revolta apareceu com a tática black
bloc, ou melhor, reapareceu o que havia sido praticado pelos anarcopunks nas 6
primeiras manifestações do movimento antiglobalização, o que fora inevitável no Moinho Santista em 1917. Os efeitos ainda estão por vir.
6- Caros Amigos: Vivemos uma época de profundas mudanças em relação à
tecnologia e relações sociais. Qual a relação entre midiativismo e
anarquismo? Essa nova forma de comunicação possui características/ influencias anarquistas? Se sim, quais? Acácio Augusto:
Aí está o principal meio pelo qual se captura a revolta e as palavras revoltadas da cultura libertária. O ambiente da internet é todo mediado por protocolos e faz isso por meio de compartilhamentos impessoais. Desta maneira, favorece muito
mais as atuais formas de denúncia no governo das condutas que expandem monitoramentos eletrônicos e comportamentais. A atitude libertária nestes
meios ainda é aquém do escândalo. Como forma de comunicação em fluxo
mediada, intercepta a ação direta. Isso significa que os anarquistas ignoram a
web? De forma alguma. Digite a palavra anarquismo ou anarquista em um buscador, há uma infinidade de referências. Isso não é bom nem ruim. No
entanto, as práticas de liberdade que envolvem autogestão e ação direta não
encontram no ambiente da web um espaço propício, como demonstra uma
recente pesquisa de mestrado defendida por Luíza Uehara: não existe vida libertária na internet. Não estou com isso pontificando que as pessoas que
atuam ou divulgam suas produções e formas de luta na internet não sejam anarquistas. Não quero e não me coloco investido dessa autoridade. Mas uma
análise um pouco mais demorada dessa tecnologia, menos como tecnologia eletrônica e mais como tecnologia de poder, mostrará que ela se faz como uma
forma a mais do governo das condutas hoje. O midiativismo não pode ser alocado entre as práticas da cultura libertária. Seria mais adequado caracterizá-lo
como forma atual de ação política dos cidadãos-polícia, que têm em mãos mais 7
do que o bairro ou o condomínio para policiar a vida dos outros. Alguém já se
colocou a questão que o grande arauto da liberdade e da transparência
democrática na internet, o celebrado Edward Snowden, é um militar que recebeu abrigo de um governo que mantém as anarquistas da banda punk
Pussy Riot encarceradas por vandalismo em uma prisão na qual são submetidas a trabalhos forçados, como costurar as fardas do exército russo? Acho que essa é
uma notícia que esclarece sobre os campos de lutas. Esta nova forma de comunicação,
supostamente
horizontal,
é
governada
por
provedores
centralizados que incentivam a participação democrática, as conformações de
redes, os relacionamentos efêmeros, as imagens instantâneas, as esperadas inovações empresariais e dos empreendedores, fortalecendo o controle dos
outros e ao mesmo tempo realizando a moralidade do controle de si pela conduta moderada. Como se diz: tudo muito propositivo, de modo policial,
punitivo, comunitário, regulador e regulamentador recobertos de uma imensidão de direitos e tribunais instantâneos encenando as teatralidades dramáticas, mas muito distante do que nos escandalizam as tragédias.
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