Jornadas interiores: Três narrativas - K. Tsuburaya | Bas Jan Ader | Colin Smith

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Jornadas interiores: Três narrativas Guy Amado Colégio das Artes – Universidade de Coimbra

Abstract The article proposes to discuss three socalled "experiences of failure" and/or unaccomplishment based on actual facts, interconnected by the universes of sports, cinema and visual arts. There is an ethical and aesthetical tone increased by the melancholic dimension that permeates these stories. Thus we have the tragic saga of Kokichi Tsuburaya, japanese marathon runner in the 1964 Tokyo Olympics connected to that of Colin Smith, a typical "angry young man" in the british movie The loneliness of the long distance runner and also a racer. The very act of running is here presented as a metaphorical element to deliver a libertarian message. Finally we have the wondrous case of Dutch artist Bas Jan Ader, who disappears during a solo transatlantic crossing attempt which happened to be also his last artistic project: a tragic and beautiful event that would convert his persona into an iconic one and his romantic journey into a parable around failure and human fragility. Such trajectories lead to a reflection on the idea of failure and beyond: the potential interlinks between the notions of incompleteness, disappearance and the very act of failing are also expandable to the instability and precariousness which shape human existence.

Keywords: Aesthetic experience, journeys, narratives, art and failure, melancholy

Introdução O texto propõe comentar três experiências de fracasso e/ou incompletude a partir de narrativas articuladas pelo cinema e artes visuais, impelidas por uma forte imagem de jornadas – de ordem física e psicológica. O tônus ético e estético é acentuado pelo que

se adivinha como uma dimensão melancólica a permear a trajectória dos protagonistas destas narrativas. Os três casos descrevem situações em que o factor humano da falibidade apresenta-se como activador de experiências dotadas de forte carga melancólica. As narrativas, ainda que alimentadas por pulsões distintas, convergem ainda para uma ideia de deslocamento, solidão, sacrifício, realização e incompletude.

O caso Tsuburaya A saga melancólica de Kokichi Tsuburaya, corredor de maratona nipónico que competiu por seu país nas Olimpíadas de 1964, em Tóquio, segue razoavelmente relegada ao esquecimento, sobretudo aos olhos ocidentais. Também militar – era primeiro-tenente do exército japonês –, Tsuburaya é uma jovem promessa que não chega a constar da lista de favoritos daquela competição. Ao aproximar-se do fim da prova, contudo, acaba por despontar em segundo lugar já no trecho final do percurso de 42 quilômetros e passa a atrair todas as atenções. É então que se dá o desfecho inusual que interessa a este texto. O filme oficial dos Jogos de 1964, o documentário Tokyo Olympiad [1965], realizado por Kon Ichikawa, é uma obra de referência no meio, marcado que é por uma sensibilidade atípica em produções do género e um enfoque que busca ressaltar o fator humano em jogo, em detrimento de meramente destacar as conquistas. Ali se vislumbram diversos momentos desta prova, com as câmaras permitindo-se perscrutar com delicadeza o aspecto humano ali em jogo; pode-se observar em

pormenor o desgaste traduzido na miríade de expressões faciais e corporais que apresentam os competidores daquela que é a mais dura e nobre de todas as modalidades do atletismo, bem como as reações da entusiasmada audiência que acompanha a corrida às margens do trajecto. Assiste-se assim à tranquila vitória do impressionante etíope Abebe Bikila, reconhecidamente um mito deste desporto, que confirma seu favoritismo com louvor, ao vencer superando o recorde mundial [dele próprio] e com ampla margem de tempo e fôlego sobre os demais. A seguir à vitória, mesmo após uma jornada extenuante, ele ainda irá proceder a uma série de exercícios físicos, enquanto aguarda a chegada dos restantes 1 corredores . É um indivíduo absolutamente diferenciado, o que só faz valorizar ainda mais aquele que complete a prova em segundo; seria uma honra para poucos, a de só ter sido superado por um atleta como aquele, claramente em um nível muito acima de seus concorrentes. Referência fulcral na história do filme documental, Tokyo Olympiad é também essencial para o episódio que aqui se busca comentar, sendo a fonte definitiva das imagens a acompanhar os momentos que eternizaram a desventura do referido Tsuburaya, que ganha destaque ao emergir na segunda colocação quando o percurso aproxima-se do estádio onde se realiza o desfecho da maratona. Assim que se percebe que o nipónico emerge entre os líderes, todas as atenções se voltam para ele. Um atleta local a conquistar uma medalha de prata, dentre competidores daquele nível, era mais que um adepto otimista poderia esperar. Tsuburaya surge no écrã num plano frontal, a galgar um leve aclive à frente de mais alguns corredores, com expressão grave, visivelmente desgastado mas igualmente concentrado, parecendo alheio ao frenesi que toma o público local que o acompanha. Os planos fechados nos semblantes dos corredores valorizam a dimensão individual que esta modalidade parece reivindicar acima de qualquer outra: a resistência física levada ao extremo e o decorrente equilíbrio fisiológico e psicológico-emocional exigido requerem alto grau de centramento pessoal. O ápice se dá quando o japonês adentra o majestoso Estádio Nacional, seguido de perto pelo britânico Basil Heatley; a torcida local levanta-se para o ovacionar, extasiada. Seria o segundo colocado na

prova mais nobre do atletismo, de resto vencida pelo lendário Abebe Bikila. Os corredores apresentam ritmo inusualmente acelerado para um final de maratona. Ao atingir a curva final do circuito, contudo, a uma centena de metros da chegada, o atleta local perderia a medalha de prata ao ser surpreendentemente ultrapassado pelo britânico, que de alguma forma arranja fôlego para uma derradeira e espetacular arrancada. A câmara acompanha com precisão a expressão fisionómica dos competidores ao cruzar a linha de chegada; o japonês tem o rosto já constrito, e não é pelo cansaço: devastado pela oportunidade que se lhe escapou, afunda a cabeça em uma toalha que o acolhe (Fig.1).

Figura 1 – Still de Tokyo Olympiad (1965). Kokichi Tsuburaya no momento de sua chegada, exaurido e abatido.

A Tsuburaya só resta o gosto tornado amargo – pelas circunstâncias – do bronze pela terceira colocação. Ainda assim, era um feito e tanto: a terceira posição em uma maratona olímpica seria um resultado memorável para qualquer atleta. Mas recordemos aqui que a cultura nipónica pode ser particularmente severa no que se refere às instâncias do triunfo e da derrota; se por um lado mostra o conhecido equilíbrio e contenção no que se refere ao ethos que gere seu estilo de vida, o falhanço é não raro encarado pelos japoneses como motivo de vergonha, impregnado de culpa. Um rigoroso sentido de honra que poderá ainda ter sido intensificado pela formação militar do jovem, que tende a agregar outros códigos próprios. Não se pode desconsiderar que em outras circunstâncias o feito de Tsuburaya seria saudado como tal; o ponto-chave está no modo como se definiu sua colocação final na prova: ele foi ultrapassado pelo corredor britânico na última curva, nos metros finais de uma prova de 42 quilômetros. E diante de um público que era a sua gente, afinal. Esta conjunção de fatores foi decisiva para a crise emocional que tomou o maratonista após o evento; tal fato acabará por se

revelar intransponível. Assim, menos de quatro anos após o acontecido em Tóquio, a 9 de janeiro de 1968, enquanto treinava para os Jogos do México, o atleta cometeu suicídio cortando os pulsos em seu quartodormitório. Em uma breve nota de despedida, Tsuburaya lamentava não ter sido capaz de manter sua promessa, agradece a seus pais e familiares e treinadores, insta seus colegas a darem seu melhor e encerra afirmando: "Estou cansado demais para seguir correndo. Por favor, perdoem-me. Lamento causar a meus pais tanta preocupação, mas isto é 2 para melhor" (Otomo, 2007, 124) . Tinha vinte e sete anos de idade e quando seu corpo foi encontrado trazia consigo sua medalha de bronze olímpica.

A solidão do corredor de longa distância No preto-e-branco gráfico e cuidadoso da película, vemos um jovem a correr solitariamente. Desloca-se – rapidamente, mas sem pressa – por entre bosques cinzentos, resvalando na vegetação áspera, desviando-se dos galhos mais baixos, alterando seu rumo ao sabor dos instintos. Seus braços por vezes movimentam-se como que a querer apanhar o vento que investe contra seu corpo e revigora sua jornada; é nítido o prazer que o jovem desfruta deste ato. Ele parece estar a correr por aquilo ser o que melhor sabe fazer; corre por inteiro, podíamos talvez dizer. Corre com a intensidade de quem só assim parece sentir-se livre e vivo. No belo filme britânico The loneliness of the 3 long-distance runner (1962) , do realizador 4 britânico Tony Richarson , o protagonista Colin Smith é um jovem transgressor, oriundo de uma família proletária disfuncional, cujo grande talento é a aptidão para corridas de fundo. Interno em um reformatório após ser apanhado por um pequeno roubo, é iniciado a contragosto na prática de corridas de fundo e destaca-se dos demais por suas capacidades atléticas 5 naturais . Com o tempo, passará a encarnar as esperanças da instituição onde está retido em uma competição esportiva de âmbito nacional. Nesta obra, o ato de correr apresenta-se gradualmente como um elemento metafórico para veicular com potência a

mensagem libertária que perpassa toda a história. A vocação de Smith para a corrida é percebida como uma imagem do enfrentamento da adversidade e do confronto com a autoridade que perpassa sua conturbada existência. Mas afigura-se também como um meio pelo qual escapar a sua condição de confinamento, quando é conduzido a uma situação-limite que irá forçá-lo a um impasse: uma competição em que vencer poderá garantir-lhe a promessa de um novo estatuto social, enquanto perder seria uma forma de resguardar sua integridade e valores pessoais. Neste evento-chave da trama, em um gesto extremado e decidido, o jovem abre mão da vitória certa para salvaguardar sua dignidade. Ele não pode vencer a corrida, se quiser seguir correndo, metaforicamente, em sua jornada pessoal. Correr é seu derradeiro ato de liberdade.

Figura 2 – Still de The loneliness of the long distance runner. Imagem: © Woodfall Film Productions

Um dos maiores méritos de The Loneliness of the Long Distance Runner reside em sua forte capacidade de incitar à reflexão sem no entanto recorrer a grandes malabarismos formais para tal, atendo-se sobretudo à fluidez límpida da trama, intercalada por sequências – quase interlúdios – com as jornadas solitárias do protagonista a correr. Poucos filmes alcançam esta qualidade de simplicidade e eficaz comentário crítico em registo realista sem resvalar no sentimentalismo ou para o panfletarismo. Muito disto se deve ao guião de Alan Sillitoe, adaptado de conto de sua própria autoria, com diálogos ácidos e situações típicas do quotidiano da classe trabalhadora inglesa a dar o tom engagée. Trata-se de uma produção austera e de montagem enxuta, com enquadramentos simples e bem conseguidos, que atinge contudo grandes resultados, seja do ponto de vista formal como em sua dimensão reflexiva. Destilando conteúdo de comentário crítico social de modo a um só tempo áspero e delicado, trata-se de uma película referencial da vanguarda do

cinema britânico dos anos 1960, a chamada British New Wave. As características mais marcantes deste movimento estão presentes neste kitchen sink drama – um drama doméstico com enfoque nas relações familiares e nos conflitos de classe, tipificado pelas personagens dos angry young men características daquele contexto, com indivíduos divididos entre raivosa resignação e o anseio por cavar vias de escape para suas vidas ordinárias. Mas regressemos a Colin Smith. O jovem gosta de correr sozinho. Ele afirma que é na solidão de suas jornadas que ele pode pensar claramente; é correndo que ele vê as coisas com clareza, que elas adquirem sentido, e quando traça suas estratégias de vida. Diferentemente do atleta profissional, a pulsão que o impele não é a da conquista ou da superação de marcas: é a da própria vontade de viver. Em meio à corrida dos homens, faz sempre sua corrida pessoal, como a descrita ao inicio do filme. Em um momento crucial, já no desfecho, temos um primeiro plano da face de Smith, ofegante e confiante, parado próximo à linha de chegada da competição que decide não vencer, para desespero dos responsáveis pela instituição que representa na prova e que contavam tirar partido de sua conquista. Seu semblante algo ambíguo traz um meio sorriso, indicador da convicção de que sua vitória certa – naquele contexto – significaria tudo menos uma conquista pessoal. Para de facto vencer, de acordo com os valores pessoais que incute a partir da experiência de disciplina e submissão à autoridade a que é submetido a pretexto de "reeducação social", percebe que deverá sair do jogo. E assim se instala a constatação de que a solidão referida no título da obra é aquela dos que, como Smith, correm não para vencer, mas para encontrar seu próprio rumo; não se trata de percorrer o trajecto, mas a ele pertencer.

search of the miraculous – que em última análise pode ser lido retrospectivamente como uma experiência estética radical. Em outra medida, com lastro motivacional muito inferior, estavam também em jogo aspirações à quebra de recorde mundial de travessia transatlântica individual em uma embarcação diminuta – e o Ocean Wave de Ader media em extensão pouco mais que sua altura, com cerca de 4 metros. Imagens suas no barco, bem como outros raros registos de arquivo pessoal podem ser vistas no documentário Here is always somewhere else (2008), espécie de filmetributo que retraça com delicadeza a trajetória do artista. O holandês possuía considerável experiência de navegação, fosse a sós ou como tripulante; chegou inclusive a realizar um percurso cruzando o mesmo oceano como tripulante de um veleiro, em 1963. Foi a viagem que o trouxe aos EUA, iniciada no Marrocos e desembarcando em San Diego, Califórnia, onde permaneceria por mais de uma década e despontaria como artista. Entretanto, esta última missão nunca foi completada. Após três semanas perdeu-se o contacto por rádio com o barco; cerca de dez meses mais tarde os restos de seu barco são avistados, à deriva, na costa da Irlanda, por pescadores galegos. Seu corpo nunca chegou a ser encontrado; nunca se saberá se foi levado pelas águas durante uma tormenta, se tomado pelas moléstias que causam desorientação atroz e frequentemente atacam náufragos e viajantes solitários, ou mesmo se haveria uma secreta intenção suicida por trás da concepção do projecto (hipótese menos relevante, e em geral descartada pelos que eram próximos ao artista).

Ao horizonte e além: a jornada final de Bas Jan Ader A 9 de julho de 1975, o artista holandês Bas Jan Ader despediu-se da esposa e de alguns amigos e partiu de Cape Cod, na costa oeste dos EUA, rumo a Falmouth, Inglaterra, num minúsculo veleiro. Sua viagem solitária cruzando o Atlântico foi concebida como etapa de um projeto artístico que vinha desenvolvendo, In

Figura 3 - Bas Jan Ader em seu barco Ocean wave. © Mary Sue Ader-Andersen

Uma vez na América, Bas Jan Ader passou a integrar aquela que seria apontada como

a primeira geração de artistas conceptuais da East Coast, que se contrapunham às tendências pop – bem como as do minimalismo – que vicejavam sobretudo em New York. Cabe todavia observar que seu trabalho nunca deixou de manifestar uma dimensão poética algo áspera à vertente puramente conceptual, o que o aproximava de uma tradição romântica e dificultava uma classificação mais ortodoxa para sua arte. Sua produção mais difundida são registos de ações (captadas em vídeo) aparentemente banais mas marcadas por um inusitado componente patético associado ao falhanço, evidenciado pela ideia da queda que afigura-se como um elemento central. Quedas que se dão sem explicação aparente, que insuflam uma dimensão trágico-cómica aos trabalhos e paradoxalmente conferem uma componente melancólica a suas peças, o que é amplificado por sua figura solitária e silenciosa a protagonizar tais actos. As peças mais conhecidas integram a série Fall e apresentam o artista em diferentes situações de queda: sentado a baloiçar uma cadeira em um telhado até que perde o equilíbrio e de lá cai (Falling I); dependurado em uma árvore, de cujo galho previsivelmente despenca após seus braços cansarem (Broken Fall - Organic); ou ainda a mergulhar semi-casualmente com sua bicicleta em um canal em Amsterdam (Falling II). Ader pode ser visto, à sua maneira (num registo que curiosamente o aproxima ao género da slapstick comedy consagrado por Buster Keaton), como um "mestre da gravidade", condição que exercia notoriamente nas séries de ações-performances que constituem o corpo principal de sua obra. Alegava que tudo se resumia ao simples facto de deixar-se estar à mercê da gravidade, como expressaria de modo sucinto e singelo em entrevista à Avalanche Magazine, em 1971: “I do not make body sculpture, body art or body works. When I fell off the roof of my house or into a canal, it was because gravity made itself master over me." (Godfrey, 1998, 215) Se tal declaração por um lado é uma forma de afirmar sua distância das correntes de body art que ganhavam espaço à época nos EUA, por outro dá indicativos de que seu modus operandi obedece a uma lógica muito própria, calcada em um entedimento de mundo que deve muito a suas afinidades pessoais com a filosofia e o 6 romantismo .

Poder-se-ia afirmar que trata-se de um artista cuja obra é marcada pelo signo do fracasso, um fator que emerge de modo evidente em diversas de suas peças; para quem tal noção parece mesmo constituir-se num leitmotiv a ser enunciado, perseguido e explorado em sua potência ao avesso.

Figura 4 - Bas Jan Ader, Fall 1. 1970. © Mary Sue AderAndersen

Na altura de seu desaparecimento, Ader trabalhava em um projecto artístico, o já citado In search of the miraculous, que no entanto fugia ao procedimento das quedas – e que, ressalte-se, também não envolvia 7 qualquer desaparição . A travessia marítima seria a segunda parte de uma trilogia, composta por ações já realizadas em Los Angeles, completadas por um coro a entoar cânticos marítimos na Claire Copley Gallery. Um terceiro momento estava programado para ocorrer em um museu em sua Holanda natal, também envolvendo um ritual musical. A etapa em questão consistia em cruzar o oceano em modo solitário como uma acção reflexiva associada à jornada que o trouxera inicialmente à Califórnia, anos antes. Havia navegado até lá e agora desejava navegar de volta: executar os actos da chegada e da partida por mar, completando um ciclo e evocando um senso de romantismo típico de sua persona singular. Inicialmente sua desaparição não gerou grande consternação, tendo sido de modo geral encarada com certo ceticismo. Conhecido por sua presença enigmática e pela personalidade descrita como parte divertida, parte melancólica, mesmo pessoas próximas ao artista tenderam a interpretar o ocorrido como algo fabricado, em sintonia com sua verve irónica e seu entendimento muito particular da equação "arte e vida". Somente alguns anos mais tarde foi finalmente aceite o facto de que o artista tinha mesmo perecido. De todo modo, o facto é que o desaparecimento cercado de enigmas do artista, e em circunstâncias tragicamente belas como

aquelas, acabou por converter sua figura em ícone, e sua jornada romântica numa parábola acerca da fragilidade humana e o ato de falhar. Seu legado artístico é amplamente percebido na produção intensa de exposições, artigos e publicações dedicados a sua obra e persona nas últimas duas décadas mundo afora, para não mencionar a influência que segue exercendo sobre novas gerações de artistas. O que não deixa de ser um facto notável para um artista desaparecido aos 33 anos e com uma trajectória que não ultrapassa um período de (apenas) cinco anos. Em seu tempo, Kant insistia que “a melancolia caracteriza aqueles dotados de um soberbo sentido do sublime”. Se assim é, isto faz com que tenhamos em Bas Jan Ader uma das mais convictas personificações do melancólico.

A propósito de sua morte inquietante, a também artista Tacita Dean enuncia uma bela questão: teria Bas Jan Ader sentido-se de algum modo "protegido" pelo facto de estar empreendendo um projecto artístico, uma obra de arte? (Dean, 2006, 30) Teria permitido-se, desta feita, deixar-se ficar voluntariamente à mercê do oceano, num acto final que poderia ser lido como uma alegoria de um desejo obsessivo pelo sublime? Talvez sim, talvez não. Em uma perspectiva mais terrena, na práxis absolutamente singular de Ader, desafiar o Atlântico solitariamente e em condições precárias poderia ser ainda uma forma de conciliar os aspectos romântico, trágico e burlesco que perpassam quase toda a sua produção; uma derradeira tentativa de levar ao limite o confronto com as ideias de risco, queda, fracasso ou desaparecimento que parecem dominar a sua obra.

Bas Jan Ader em seu Ocean Wave.

Conclusão Chega-se então ao ponto em que é preciso falar sobre a razão destas narrativas, em princípio oriundas de territórios distintos (desporto/arte, factos reais/ficção), terem sido arroladas conjuntamente neste (con)texto. Talvez a melhor via para tal esteja nos fatores que terão conduzido à escolha destes episódios específicos, os pontos em comum que apresentem e que possam justificar este interesse. Assumindo-se que o critério adoptado foi

amparado acima de tudo por fortes afinidades pessoais com os temas, apostou-se algo intuitivamente nas interrelações que poderiam emergir dos casos em foco, e que se tentará aqui clarificar. Poder-se-ia então começar pela constatação de que as três narrativas apresentadas tem um ponto em comum no facto de a elas termos acesso apenas pelas linguagens do vídeo ou do cinema – ao menos falando de uma perspectiva pessoal. Seja na película britânica como no documentário olímpico que retrata a saga trágica de Tsuburaya, são experiências

sobre as quais travamos conhecimento somente por estes meios. Da mesma forma ocorre com Bas Jan Ader, cuja notoriedade como artista é alcançada sobretudo por suas peças em vídeo, a partir das quais pode-se assimilar mais de seu percurso poético e o transbordamento de sua persona que nelas se efetiva, culminando na mítica que envolve sua jornada oceânica final. Evento do qual só se tem – e em modo fragmentário – o registo da partida, mas que é o suficiente para se fixar uma imagem definitiva, a do artista rumando ao horizonte e além. Há portanto que se ressaltar esse aspecto, o da visualidade mediada pelo écrã que permitiu que o interesse em alinhavar estas três estórias fosse despertado. São também narrativas permeadas pelo signo do fracasso ou da incompletude, temas caros à condição humana em quaisquer de suas áreas de actividade. Seus protagonistas – os reais e o fictício – pertencem a universos distintos mas de algum modo partilham deste código, cada um à sua maneira. Na prática artística como no esporte individual, o falhanço é uma instância determinante e onipresente, ainda que encarado de modos diversos, senão mesmo opostos nos dois campos. Enquanto o artista tende a fazer do erro, da falha, do acaso ou da incompletude seus aliados no processo criativo – o que é também abraçar o desconhecido –, o atleta tem como meta evitar tais factores, buscando acima de tudo a eficiência, o resultado positivo mensurável e a vitória. O falhanço é para o desportista profissional inerente à premissa de competitividade que condiciona sua actividade; e portanto indissociado da ideia de conquista. No entanto, nos casos aqui enfocados esta condição se apresenta de modos antitéticos: se para o maratonista nipónico a derrota que sofreu foi-lhe intransponível, a ponto de fazê-lo tirar a própria vida, para a personagem de Colin Smith é a vitória que deve ser recusada, a fim de salvaguardar sua dignidade. A opção deliberada pela derrota converte-se assim em triunfo pessoal e metáfora emancipatória em um mundo voltado para o imperativo do sucesso mediado pela normatividade. Com relação a Bas Jan Ader, como já mencionado anteriormente, é possível afirmar que o signo do fracasso baliza mesmo toda sua trajectória, tendo talvez nas circunstâncias de sua desaparição a cristalização

melancolicamente definitiva desta influência. Artistas não são estranhos ao fracasso, como se sabe; para muitos, este – em todas as suas facetas, que não se esgotam no erro ou na falha – apresenta-se como instância não apenas inevitável como mesmo necessária em seus processos criativos, um vetor de potência para sua práxis. E o falhanço tem lá seus rigores: fracassar bem pode exigir o compromisso de toda uma vida. A curta mas marcante trajectória de Ader parece ser exemplar desta dinâmica, com um desfecho que permite a instalação de uma instigante aporia: teria de facto sua travessia transatlântica incompleta, In search of the miraculous se constituído em um fracasso? O que determina, em uma proposição épica e de contornos que beiram o transcendental como a "busca pessoal pelo 8 sublime" que parecia estar ali em jogo, que tenha sido ou não bem-sucedida? Como lembra Jan Verwoert, um estudioso da obra do holandês, tudo que sabemos é que "seu desaparecimento prova que, para além da morte, jaz uma narrativa que fala do miraculoso" (Verwoert, 2006, 49). Uma narrativa que, em boa medida, só ganha a força que hoje a ela se atribui em função da incompletude da jornada que a gerou. Como já certamente percebido, trata-se também de experiências articuladas por uma forte imagem de jornadas, que despontam tanto em sua dimensão física e concreta, como figurada, nas instâncias de internalização da experiência que se entrevê de modo diverso na trajetória dos três protagonistas. As duas primeiras narrativas tem similaridades óbvias em seus actores: afinal, tratam de dois corredores de longa distância, ainda que imersos em contextos e eventos muito diversos. E ressalte-se que por "jornadas" aqui não se designa meramente a rotina de deslocamentos físicos a serem (previsivelmente) realizados, mas igualmente os processos internos – psíquicos e emocionais – que desencadeiam ou potencializam os eventos que levaram tais relatos a terem aqui lugar. Jornadas pessoais internalizadas, portanto, que ultrapassam a imagem do percurso ou do trajecto. No caso de Kokichi Tsuburaya, o turbilhão mental que o assola após aqueles fatídicos metros finais no Estádio Nacional, em Tóquio, 1964, será um facto decisivo para sua existência. O que vê como uma insuficiência (física) sua num momento crucial detona um processo

irreversível, culminando com seu suicídio. Já Colin Smith é uma personagem ficcional, ainda que moldado em um realismo quase palpável, em seu quotidiano áspero. Sua jornada pessoal se efectiva como um processo emancipatório que se dá em paralelo ao aprimoramento de seu aspecto físico, de sua aptidão para as corridas de fundo e do prazer que extrai deste acto – metáfora clara da condição de liberdade. Com o terceiro caso, Ader, passa-se quase o oposto: as circunstâncias tragicamente belas de sua desaparição induzem-nos a manter uma relação (até involuntária) de inesperada "ficcionalidade" com esta narrativa, que apesar de tudo é verdadeira. O que ocorre é que, pelas características quase alegóricas que encerra – o desafio da travessia oceânica; o embate solitário com forças da natureza; o carácter épico desta "busca pelo miraculoso"; a desaparição misteriosa do protagonista – o potencial especulativo e as diversas leituras a que convida geram um fascínio intenso, que revestem esta odisséia de um infindável interesse. Como a este propósito assinala Brad Spence (2000), o projecto In Search of the Miraculous, com sua derrocada, presta-se à perfeição para o modelo clássico de relato épico; as forças de perigo aleatório naturalmente associadas ao mar ressaltam a vulnerabilidade do corpo humano, situando-o em tensão precária com o desejo humano de se ver inserido em uma narrativa significativa, sobre a qual se espera exercer algum controle. A esta altura poderia-se quiçá indagar o que levaria um artista a eleger uma arriscada odisséia solitária como elemento agenciador de uma proposta artística. Ao que se poderia igualmente responder: "precisamente o facto de ser um artista". Ele se entrega a sua jornada porque – como Smith e Tsuburaya – é o que sabe fazer melhor; porque faz sentido para ele que assim o faça. Ele navega indefinidamente, deixa-se cair – da mesma forma que Smith e Tsuburaya correm – porque só assim sente-se aderindo por inteiro à textura do mundo terreno. "No horizonte do teu olhar és o ser desta paisagem", enuncia poeticamente o artista português Alberto Carneiro (Carneiro e Melo, 2003). Este "ser da paisagem" invocado por Carneiro permite-nos talvez alocar, com algum atrevimento, a prática de correr – como a de deixar-se cair voluntariamente, ou a de navegar para o horizonte, no caso de Ader – no registo

fenomenológico inerente ao ato de experienciar a condição de pertencimento (ou inadequação) àquele determinado meio, seja ele qual for, e assim realizar sua "jornada interior". Ao cinema cabe “suprir esse exagero silencioso ou precioso da palavra, sua fraqueza esticada em corda bamba sobre o sofrimento” (Julia Kristeva)

E por fim, paira ainda sobre estas narrativas a sombra de um componente melancólico que é igualmente de interesse. Talvez seja este aliás o elemento amalgamador a melhor articular estas trajectórias: um ethos de melancolia que de algum modo intui-se a permear as narrativas de Tsuburaya, Smith e Ader. Sabemos ser antigo o mote que enuncia a condição melancólica como um estado emocional visto como elemento impulsionador da prática artística desde a Antiguidade: é um tema que domina o debate medico-filosófico desde tempos medievais. Ainda assim, em suas diversas aparições e descrições na teoria e literatura, a melancolia, ainda que evocada, não é sempre conectada confortavelmente a considerações estéticas (com a provável exceção de sua associação à poesia). É sabido, no entanto, que pode muitas vezes desempenhar papel de peso na relação com a arte, seja no que tange ao processo criativo em si como às instâncias de recepção ou apreciação estética. E é esta relação que aqui nos interessa, pelo que se irá evitar um maior aprofundamento em seus aspectos fenomenológicos e de sintomatologia psiquiátricas, de resto um território sempre áspero. O que é específico e talvez único da melancolia é o papel que pode desempenhar na vida quotidiana, em contextos que não são propriamente "estéticos" no sentido mais ortodoxo: uma vez estabelecida, ela convida a que considerações estéticas despertem não apenas em contextos estéticos bem definidos, como igualmente em situações banais, quotidianas (Brady e Haapala, 2003). A experiência de solidão ou isolamento conforma uma condição clássica para o estabelecimento da melancolia. A solidão pode ser tanto sua causa como seu efeito; o que importa é que tende a deflagrar um estado de reflexão imaginativa, um estado mental intimamente vinculado à melancolia. E como vimos, esta é uma condição que perpassa as

trajectórias de Tsuburaya, Ader e Smith: solitários ou acompanhados, parecem estar sempre imersos em si mesmos. A quietude e o estado reflexivo envolvidos na melancolia aludem às condições contemplativas requeridas na experiência estética tradicional. É talvez por esta via que se possa aplicar esta qualidade melancólica às narrativas aqui em foco, permitindo identificar uma dimensão estética "outra" na saga de cada um dos protagonistas e articulando suas jornadas por meio deste tônus comum – que se infere mas não se mensura.

o ato de falhar são extensivas à instabilidade e à precariedade que conformam a própria existência humana. Mas há momentos em que estes fatores se conjugam de modos especialmente belos e marcantes, como nesta narrativa: e esta sensação de difícil definição pode se traduzir como a de uma experiência (estética) melancólica.

No mais, as conexões entre a noção de incompletude, derrota, desaparecimento e OTOMO, Rio. 2007. "Narratives, the Body and the 1964 Tokyo Olympics". in Asian Studies Review, vol. 31, 117-132

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Comitê

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dos

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Notas finais 1

Acrescente-se ainda a estes dados o impressionante facto de Bikila ter tido que se submeter às pressas a uma cirurgia de

apendicite apenas seis semanas antes destas Olimpíadas. 2 Traduzido do inglês pelo autor. 3 O filme de Tony Richardson é baseado na obra literária homônima (publicada em 1959) de seu compatriota inglês Alan Sillitoe, que assina

também o roteiro desta adaptação cinematográfica. 4 Richardson é uma das figuras centrais na cultura britânica do período 1950-1960, sendo egresso do teatro e a seguir um dos fundadores do Free Cinema, estilo de cinema independente e de tónica documental (iniciado em meados dos anos 1950). 5 Ainda no início do filme o protagonista afirma en passant que corre tão bem por conta da prática que desenvolveu após ter estado tantas vezes a fugir da polícia. 6 O interesse de Ader pela filosofia, especialmente pela obra de Hegel, Kant e Wittgenstein, intensificou-se após a chegada aos EUA, onde estudou e chegou a lecionar essa disciplina em instituições locais (em seu barco resgatado vazio foi encontrado um volume da Fenomenologia do espírito de Hegel). Já sua proximidade e afeição por referências do Romantismo – herdeiro que era de uma tradição europeia – é evidenciado desde seus temas recorrentes (como a tensão que estabelece entre homem, consciência e natureza) e no fascínio pela obra de Caspar David Friedrich, que chega a citar explicitamente em trabalhos como (1971), onde sua figura surge a observar contemplativo um pôr-de-sol. 7 A despeito da linguagem da performance artística sugerir uma afinidade possível com a ideia de desaparecimento (estratégico), esta possibilidade tem sido descartada por todos os que o conheciam. 8 Aqui é preciso frisar que o projecto In search of the miraculous está mais comprometido com uma ideia de busca em si do que propriamente de aspirar a um absoluto transcendental. Este "miraculoso" que Ader visava alcançar nunca fica totalmente claro, mas sugere-se, até por sua vocação romântica, que se confunda com o impossível ou com aquilo que está "sempre um pouco mais além".

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