Jornalismo audiovisual alternativo: um olhar semiótico sobre o minidocumentário Morri na Maré

July 26, 2017 | Autor: Kamila Fernandes | Categoria: Semiotica, Produção de Sentido, Jornalismo Alternativo, Documentário audiovisual
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JORNALISMO AUDIOVISUAL ALTERNATIVO: um olhar semiótico sobre o minidocumentário “Morri na Maré” ALTERNATIVE JOURNALISM IN AUDIOVISUAL: a semiotic look about the mini-documentary “Morri na Maré”1 Kamila Bossato Fernandes2 Resumo: Mudanças recentes nas práticas jornalísticas fizeram com que fossem inclusos, entre os produtores de informação, grupos independentes que atuam em clara posição contra-hegemônica em relação aos media tradicionais. Contudo, até que ponto o viés político assumido por essas produções joga luz sobre aspectos minimizados pelos meios tradicionais? Neste artigo, proponho uma reflexão sobre a atuação da Agência Pública, um meio de comunicação alternativo, a partir de uma análise sobre o minidocumentário Morri na Maré. Análise feita sob um olhar semiótico (LANDOWSKI, 1998, 2004, IASBECK, 2012). Percebe-se que a busca por se diferenciar do jornalismo tradicional não o exclui de tal produção. Por outro lado, ao dar voz e nome a pessoas que, nas reportagens tradicionais, aparecem normalmente como personagens secundários, o minidocumentário dá relevo ao sensível, numa busca por empatia e adesão. Palavras-Chave: Jornalismo alternativo. Documentário Audiovisual. Produção de sentido. Semiótica do sensível. Abstract: Recent changes in journalistic practices included, as information producers, independent groups operating in clear counter-hegemonic position against to the traditional media. However, whither does the political bias made by these productions focus on aspects minimized by traditional media? This paper offers a reflection on the performance of the Agência Pública, an alternative communication media, from an analysis of the mini-documentary “Morri Maré”. Analysis under a semiotic look (Landowski, 1998, 2004, IASBECK, 2012). It´s noticed that the search of the alternative media to differentiate its work from the traditional journalism does not exclude it of this production. On the other hand, by giving voice and name to people whom, in traditional stories, usually appears as minor characters, the mini-documentary gives relief to sensitive, in a search for empathy and adherence. Keywords: Alternative journalism. Audiovisual documentary. Meaning production. Sensitive semiotics.

Introdução A disseminação de dispositivos tecnológicos que propiciam a captação e a difusão de imagens de maneira quase instantânea fez com que a ideia de que todos podem ser não só consumidores de informação, mas também produtores, fosse difundida com grande

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Trabalho apresentado na Divisão Temática 3 - Comunicação e Cidadania, do XIV Congresso Internacional IBERCOM, na Universidade de São Paulo, São Paulo, de 29 de março a 02 de abril de 2015. 2 Mestre em Sociologia, professora assistente do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, tutora do Programa de Educação Tutorial da Comunicação Social. Email: [email protected].

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intensidade nos últimos anos. Concepção possível a partir da visibilidade propiciada pelas redes sociais – em especial Facebook e Twitter –, que permitem que usuários, a partir de sua atuação virtual, passem a se constituir como fontes legitimadas de informação ou de opinião por “seguidores” que decidem acompanhar e até mesmo compartilhar o que eles produzem. Assim, a partir do uso de equipamentos móveis, como telefones celulares e tablets, com câmeras de vídeo e acesso à internet banda larga, usuários passaram a se constituir como novas fontes de notícias – as chamadas “mídias alternativas” –, com direito até mesmo a transmissões em tempo real (ao vivo). No Brasil, as mídias alternativas ganharam visibilidade durante as manifestações de junho de 2013 no país, durante a realização dos jogos da Copa das Confederações da Fifa. Ao mostrar esses protestos do ponto de vista de quem estava se manifestando, essas novas mídias se contrapuseram diretamente aos meios tradicionais, que mostraram os acontecimentos do alto de helicópteros, parcialmente e classificando os participantes entre “pacíficos” e “ordeiros” contra os “vândalos” e “mascarados”. Enquanto câmeras trêmulas, entre os manifestantes, mostravam a desproporcional ação policial, com bombas de efeito moral e balas de borracha, contra jovens desarmados, os media tradicionais seguiam pelo discurso inverso, de que a polícia apenas reagia à violência dos protestos (PERUZZO, 2013, FERNANDES, 2014a). E essa contraposição de enquadramentos, claramente opostos, mesmo se tratando do mesmo acontecimento, fez com as próprias manifestações se voltassem contra os grandes veículos de comunicação – em todo o país, profissionais da imprensa foram hostilizados e até agredidos, sobretudo os vinculados à Rede Globo, maior conglomerado comunicacional do país. Tensão evidenciada até por veículos de outros países, como o site Deutsche Welle (www.dw.de), da Alemanha, que publicou matéria em 1º de agosto de 2013, em sua versão em língua portuguesa, com o título “Ascensão da Mídia Ninja põe em questão imprensa tradicional no Brasil”3. Contudo, até que ponto o viés político (ainda que não partidário) assumido pelas produções alternativas ou independentes joga luz sobre aspectos normalmente minimizados pelos meios tradicionais? Ou esse viés pode obscurecer certos enlaces do acontecimento? A partir desses questionamentos, proponho neste artigo uma reflexão inicial sobre a atuação da

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Disponível em http://dw.de/p/19HrQ.

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Agência Pública, um portal (www.apublica.org) que se autodenomina uma “agência de reportagens e jornalismo investigativo”. Tal reflexão se dá mais especificamente sobre o minidocumentário “Morri na Maré”, disponibilizado em 11 de março de 2014 no site da agência, que busca retratar o olhar de jovens sobre a violência policial no Complexo de Favelas da Maré, no Rio de Janeiro. A análise se dará sob um olhar semiótico (LANDOWSKI, 1992, 1998, 2004, IASBECK, 2012), de modo a evidenciar as tramas de sentido contidas no vídeo, a partir de uma descrição densa e transversal, que mire não apenas nas marcas discursivas aparentes, mas também no que não é evidenciado. Nesse percurso, proponho uma discussão sobre a construção do discurso midiático, a partir da proposta de Charaudeau (2006) e Fairclough (2001), de modo a problematizar a relação entre as estratégias discursivas e a busca por certos efeitos de sentido de cunho ideológico, como prática política. A perspectiva apresentada pela sociossemiótica (LANDOWSKI, 1992, 1998) também irá contribuir como base teórico-metodológica desta discussão.

Discurso midiático e produção de sentido Já não é de hoje que, tanto no meio acadêmico, como nas redações, admite-se que “não há grau zero da informação” (CHARAUDEAU, 2006), derrubando-se, pelo menos em parte, os mitos da objetividade e da imparcialidade jornalísticos. Conceitos como o de enquadramento e discurso tornaram bem mais complexo o olhar sobre a produção de notícias, seja em que ambiente midiático for. Isso porque informar é enunciar, ato comunicativo que depende “do campo de conhecimentos que o circunscreve, da situação de enunciação na qual se insere e do dispositivo no qual é posto em funcionamento” (CHARAUDEAU, 2006, p. 36). Mais do que isso, enunciar é um ato discursivo, composto pelo que está dito e pelo que não está dito, além das formas utilizadas para enunciar, que indicam determinadas intenções com fins a certos efeitos. Assim, como ressalta o autor, torna-se fundamental, em qualquer análise da produção de sentido, levar em conta as condições de produção do discurso, tanto pelo lado do produtor/enunciador como do receptor/coenunciador, já que a compreensão da fala só se dá a partir das interações – ainda que seja de cunho predominantemente assimétrico, toda produção midiática supõe um interlocutor “ideal”, e é a partir dele que a enunciação se constitui em ato.

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No caso do discurso midiático informativo, afirma Charaudeau (2006), há uma busca não por transpor o acontecimento tal qual ele se deu, mas sim por produzir um efeito de verdade, a partir das imagens captadas e do texto construído, de modo a conquistar credibilidade e fidelidade do público-alvo, o que é de grande interesse da empresa midiática, já que a notícia se constitui em um produto gerador de audiência e, consequentemente, de lucro. Esse efeito de verdade passa por um saber de crença muito mais do que por uma comprovação ou uma constatação científica. De acordo com o autor, o que se dá é mais o fazer crer, a partir da combinação de imagens e de um relato narrado a partir de determinados preceitos definidos em um contrato de comunicação entre o produto midiático e sua plateia. Princípios que valem tanto para o discurso jornalístico tradicional como para o alternativo, como demonstrado em análise comparativa de um mesmo evento noticioso por esses dois tipos de meios (FERNANDES, 2014b). Ambos partem de contratos de comunicação que delimitam parâmetros entre o que propõem fazer e o que seu público espera, com base sobretudo na verossimilhança, mas a partir de diferentes estratégias discursivas. No caso da produção jornalística independente, ficam pressupostos a defesa de grupos tidos como minoritários e a captação de informações que contraponham o que os media tradicionais mostram. O que, para Fairclough (2001), denota uma das características de qualquer discurso, o qual é composto por restrições e componentes delimitados pela própria estrutura social, a qual também é moldada pela difusão discursiva, numa relação dialética. “O discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em significado” (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91). Sob esse pressuposto, o autor propõe três funções da linguagem, as quais correspondem também a diferentes dimensões de sentido que norteiam todo discurso: a função identitária (que se refere às representações das identidades sociais dos participantes do discurso, que são estabelecidas e negociadas no ato de fala), a relacional (que se refere à maneira como as próprias relações sociais são representadas no discurso) e a ideacional (que trata do modo como o mundo e seus processos, entidades e relações são referenciados no texto). Prática social que se dá a partir de diferentes orientações, de acordo com os valores compartilhados tanto pelos produtores do discurso como pelos que se apropriam dele, o ressignificam e o difundem, especialmente sob o aspecto político e ideológico, como reforça Fairclough (2001). Tanto para manter estruturas de poder, como para transformá-las.

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Como se trata de um produto multimodal na sua essência, que explora linguagem verbal e imagética na composição de sua estratégia discursiva, o minidocumentário em questão será analisado a partir de um olhar semiótico, já que esta perspectiva teórico-metodológica tem, cada vez mais, se debruçado sobre as complexas e dinâmicas relações que compõem o discurso (IASBECK, 2013). Mais especificamente a partir dos parâmetros da sociossemiótica defendidos por Landowski (1992), a partir de uma semiótica das experiências sensíveis, a qual se preocupa com o sentido constituído a partir das relações sociais em si e com o próprio mundo enquanto “mundo significante”, como explica Fechine (2008, p. 15). Landowski propõe uma definição das construções discursivas a partir de dois esquemas: os narrativos (actanciais e modais), que organizam as relações de direito e de poder a partir de certas configurações pré-estabelecidas, e as estratégias de enunciação, em que tais esquemas narrativos são colocados em prática em um ato comunicativo propriamente dito. O que significa que tais discursos, assim como tantos outros, são pontuados a partir de determinadas formas, ou tipos, constituídos culturalmente, assumindo certas estratégias na busca por consolidar efeitos. Tudo isso a partir de intencionalidades – tanto do enunciador como do enunciatário. Com a força de verossimilhança perpetrada pela imagem, construções midiáticas em audiovisual passam a protagonizar, cada vez com maior intensidade, as representações das relações sociais, cumprindo um papel social e político “como meio de formação de um consenso difuso sobre a própria construção dos fatos e definição de valores” (LANDOWSKI, 2004, p. 32), o que aumenta a importância em se analisar discursos midiáticos seja de que natureza forem. Em sua obra, Landowski salienta a relevância de a semiótica se ater sobretudo à gramática (sintaxe) que acaba por envolver cada tipo de discurso, num plano estrutural, de modo a “dar conta dos discursos enquanto totalidades significantes” (1992, p. 205). Neste artigo, de modo algum terei a pretensão de esmiuçar uma gramática da produção jornalística alternativa em audiovisual de maneira ampla, o que demandaria um esforço bem maior, sobre um corpus mais significativo, para que fosse possível vislumbrar regularidades que traçassem um percurso semiótico relevante. A intenção é tão somente dar relevo a certas características desta produção singular, o minidocumentário “Morri na Maré”, com vistas ao sentido produzido como resultado final 5

de sua composição. Também não se pretende aqui dar uma interpretação definitiva sobre tal produção: como reforçam Rossini e Pinel (2009), citando Landowski, o sentido só se realiza “em ato”, o que significa que só se efetiva em interação, o que nos leva a concluir que não exista um sentido único e inquestionável.

Objeto A Agência Pública foi criada em 2011 e se autointitula uma “agência de reportagem e jornalismo investigativo”, que atua de forma independente – sem apoio de governos ou empresas –, num sistema que mistura financiamento por organizações não-governamentais e arrecadação de recursos via crowdfunding (doações virtuais feitas por seu público). Toda a produção é difundida pelo site da agência, www.apublica.org, mas também por parceiros (tanto outras agências de comunicação sem fins lucrativos4 como veículos de grande porte, nos mais diferentes suportes), que não precisam pagar para exibir a reportagem, apenas indicar sua origem. A agência tem uma equipe própria, mas também fomenta o trabalho de equipes independentes, ao promover editais de financiamento a reportagens por todo o país.

Como seu canal de difusão preferencial é a internet, as reportagens publicizadas geralmente possuem características multimídia, com texto longo e inserções de vídeo, áudio, documentos inclusos como anexo, fotografias e infográficos, animados ou não. Há as reportagens que enfatizam o texto escrito, enquanto outras são norteadas por vídeos entre 10 e 20 minutos, chamados de Minidocs, ou minidocumentários. Tais vídeos são complementados por texto, em que os produtores acrescentam informações ou dão detalhes da própria experiência de realizar o filme.

Os Minidocs são alojados tanto entre as reportagens como em uma aba específica nomeada “Vídeos”, podendo ser visualizados por ordem cronológica de publicação. As temáticas são as mais diversas: a relação entre empregadas domésticas e patroas; a remoção de famílias pobres pelo poder público para a construção de obras da Copa do Mundo; a mudança na vida de mulheres pobres depois da instituição do programa de renda mínima Bolsa Família. Em comum, todos partem de um enquadramento que visa expor um conflito que existe, ou 4

No site da Agência Pública, são listados 55 republicadores, entre eles Adital, Agência Nacional das Favelas e Ecodebate, meios também considerados independentes, e UOL, IG e EBC (Empresa Brasileira de Comunicação, canal institucional do Governo Federal brasileiro), meios de grande porte.

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existia, numa relação de poder assimétrica. Com isso, tais reportagens em audiovisual buscam denunciar abusos de poder, ao construir narrativas com informações que dão sobretudo visibilidade às pessoas ou grupos subjugados. Realiza, assim, um jornalismo politicamente engajado. E esses trabalhos têm conquistado legitimidade social, ao serem contemplados com prêmios de jornalismo, alguns deles de grande valor internacional, como o Premio Gabriel García Marques e o Latinoamericano de Periodismo de Investigación, da Fundación Instituto Prensa y Sociedad. Especificamente o filme “Morri na Maré”5 foi realizado por dois jornalistas franceses radicados no Rio de Janeiro, Marie Naudascher e Patrick Vanier, a partir de financiamento coletivo. O vídeo tem 16 minutos e 22 segundos e foi hospedado no portal de compartilhamento de vídeos Vimeo. De acordo com as estatísticas do portal, até o dia 16 de março de 2015, o filme teve 9.780 visualizações, com 53 “likes” e dois comentários.

Como ponto de partida, os dois jornalistas relatam, no texto inserido em anexo ao minidocumentário, que tinham a intenção de colocar em foco a violência sofrida por crianças na Comunidade da Maré, área onde não havia a ação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora, ação policial de combate ao crime organizado) e que era então dominada por três facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas, além de milícias (grupos paramilitares que atuam contra o tráfico, mas que também submetem a população à violência). O fato que desencadeou as gravações foi um confronto entre policiais e traficantes, que resultou na morte de 13 pessoas, no dia 25 de junho de 2013. Acontecimento com grande repercussão midiática, em que se discutiu, entre outras coisas, se houve violência contra os moradores não envolvidos com crimes.

Segundo o relato dos jornalistas, feito em primeira pessoa, como forma de trazer à tona aspectos dos bastidores da produção, a intenção do vídeo era mostrar como as próprias crianças percebiam a violência sofrida por elas naquele ambiente. E o foco não se restringia à violência policial:

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Disponível em http://apublica.org/2014/03/morri-na-mare-assista-ao-minidoc/

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São tantas violências: a violência urbana, do crime, cuja manifestação mais forte são os tiroteios; a violência doméstica, que acontece dentro de casa e é lembrada por crianças em situação de rua, que contam ter fugido de casa apesar de ter família na Maré; e a violência do preconceito, que é mas “invisível”, mas acaba marcando as crianças e adolescentes. (...) Essa violência pouco aparece na mídia brasileira. Mas é essa violência que faz com que a pessoa se auto-imponha limites geográficos e acabe não indo em alguns lugares da cidade para “não ter problemas”. (NAUDASCHER & VANIER, 2014)

Os jornalistas franceses afirmam ainda que decidiram fazer uma imersão em uma escola da comunidade para ganhar a confiança das crianças e que houve um momento em que a coordenadora do local pediu para que cessassem as conversas sobre violência, para não “dar problemas” (o que não foi explicado). No texto, ainda buscou-se demonstrar uma preocupação em preservar a identidade e a segurança das crianças, o que denotaria uma responsabilidade social e o respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)6. No vídeo, porém, não foi o que aconteceu, como veremos adiante.

O minidocumentário pode ser dividido em cinco momentos, distribuídos de maneira desigual. No primeiro, são exibidas cenas de protestos contra a violência, iniciando em uma praia, com o mar pintado de vermelho por um artista plástico, e depois em meio a moradores da Comunidade da Maré, que denunciavam a violência imposta durante a ocupação da favela, pela Polícia Militar, no dia anterior, 25 de março de 2013, em que 13 pessoas foram mortas, além de dezenas de feridos; na segunda parte, buscou-se ouvir personagens desse dia de violência: um pai de família atingido por um tiro durante essa ocupação, sua mulher e seus filhos, com relatos sobre o momento da ação e suas consequências; na terceiro ato, as cenas foram gravadas no Projeto Uerê, que atende crianças da comunidade para dar apoio escolar, com foco em entrevistas e na gravação de cenas livres; já na quarta parte, focou-se apenas em uma criança, mostrando suas brincadeiras e falas a respeito da violência; por fim, a quinta parte tratou de um protesto, realizado no Centro do Rio de Janeiro, por uma organização não-governamental que tinha como meta denunciar a violência sofrida por crianças de rua.

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Lei 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a proteção integral a crianças e adolescentes. Pode ser acessada em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm.

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Nesta análise, buscarei me deter à estrutura básica proposta por Landowski (1992), a partir 1º) dos esquemas narrativos e 2º) das estratégias de enunciação.

Análise Esquemas narrativos Ao falar de uma produção em audiovisual, é preciso evidenciar primeiro os interlocutores que o envolvem, o que inclui produtores, personagens/actantes do filme e destinatários/receptores. Interações que se dão, em alguns casos, virtualmente, sem que haja co-presença, mas que estabelece o próprio sentido do ato comunicativo.

No caso, os produtores do minidocumentário são apresentados como os jornalistas franceses Marie Naudascher e Patrick Vanier. Apenas a voz e a face de Marie aparecem no vídeo em dois momentos diferentes, mas a presença de ambos é sentida em todo o vídeo, já que eles modulam as falas captadas, direcionando toda a interlocução à questão central trabalhada pelo minidocumentário, que é a violência policial sofrida pelos moradores da Comunidade da Maré. A onipresença deles é reafirmada nos enquadramentos das entrevistas, em primeiro plano, em que os entrevistados ora olham para cima, ora miram em diagonal, na busca do olhar e da compreensão dos entrevistadores. Além de conduzirem as interlocuções em busca de um objetivo claro, os produtores se caracterizam pelo estranhamento sócio-histórico e cultural em relação àquela situação retratada. Uma postura vista com frequência no jornalismo tradicional – que assume como pauta contar a história “do outro” como meio de seu público, também estranho a tal acontecimento, ter a chance de conhecê-la e até compreendê-la melhor. O que reforça o perfil jornalístico do documentário.

Entre os personagens/actantes que compõem o filme, temos três níveis de sujeitos, a partir de

uma

hierarquização

modulada

no

próprio

documentário:

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enunciadores

autorizados/legitimados, por ocupar postos de comando em organizações ou instituições envolvidas com a luta pelos direitos humanos e em favor de crianças e adolescentes vítimas da violência; 2) sujeitos que vivenciaram diretamente a violência; e 3) crianças e

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adolescentes. Não foram ouvidas autoridades ligadas ao Estado – policiais ou gestores de governo, recorrentemente preferenciais nas reportagens dos meios tradicionais.

Os primeiros são tratados pelo nome e sobrenome estampados em uma legenda, e aparecem em falas como sujeitos portadores de autoridade para condenar a violência policial e demonstrar o que de fato acontece naquela comunidade. Servem, sobretudo, para legitimar a própria produção audiovisual que ali se constituía, ressaltando a omissão do poder público e dos media tradicionais diante de toda a violência vivida naquela região, sem que ninguém tome qualquer atitude. O papel social desses atores, em si, já denota uma preocupação diferenciada, reforçando os ethé7 de solidariedade e justiça social, que se opõem frontalmente à não-ação de órgãos oficiais, o que eleva sua atuação não apenas ao papel de cidadãos, mas à de heróis, que agem independentemente de interesses pessoais, mas pelo bem dos mais vulneráveis. Valores tais que se estendem ao próprio vídeo.

Já os segundos, sujeitos que vivenciaram situações de violência, são chamados como exemplos, reforçando a própria narrativa, pelo efeito de factualidade que representam. Foi escolhido um casal, que relatou o dia em que o homem foi atingido pelo tiro de um policial, as dificuldades relacionadas ao socorro e o medo sentido após o acontecimento. Marido e mulher são apresentados com nome e sobrenome (sem situar a profissão), o que já não acontece com o filho do casal e um amigo, adolescentes, apresentados apenas pelo primeiro nome e a idade, na legenda. Ambos são questionados especificamente sobre o sentimento que tiveram após o ato de violência, com espaço para expor opinião crítica sobre o preconceito que vivenciam por morarem em uma comunidade pobre.

Por fim, há o foco em crianças e adolescentes. Todos aparecem sem ter seus nomes identificados em legenda, mas a maioria tem seus rostos e falas focados em primeiro plano. Parte das crianças aparece vinculada a uma instituição – Projeto Uerê –, de onde elas falam e realizam atividades sob os olhos de adultos (professoras e produtores do vídeo). Nada espontaneamente: as crianças são levadas, pelos jornalistas, a falar sobre o medo que sentem

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Plural de ethos, conceito que se refere à construção de si no discurso.

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da violência, um após o outro, o que leva a repetições após frases curtas; depois, são orientadas a realizar uma atividade em que desenham cenas da Maré, mostrando o que há de bom e o que há de ruim na localidade. Contudo, todas as imagens mostradas no vídeo referem-se a cenas negativas, como venda de drogas, mortes, presença policial fortemente armada, conflitos.

Há também crianças que aparecem sem vínculos institucionais, como um menino, ainda na primeira infância (aparentemente com 4 ou 5 anos), cujo nome e idade não foram expostos, mas que protagonizou o filme por cerca de 4 minutos, sem ter seu rosto protegido – pelo contrário, quase o tempo todo o menino foi captado em primeiro plano (close) ou em superclose. Sem outros adultos por perto, o menino aparece brincando espontaneamente de bola, no quarto de uma casa, mas em seguida começa a ser guiado pelos jornalistas em uma conversa em que ele fala sobre uma possível namorada, e depois sobre violência – a jornalista pergunta se ele já havia matado um policial, e o menino respondeu que sim. O trecho segue com imagens do menino com uma arma de brinquedo, que ele lança com força sobre o chão, com golpes repetidos, até que ele fala “já matei”. A jornalista segue com essa “entrevista” perguntando ao menino “quantos” ele já havia matado, e a criança responde “três”. Em seguida, ela busca desfazer a fala do garoto, ao dizer que parecia mentira, mas o menino reafirma sua versão. Cabe reforçar que, em entrevistas, constitui-se uma interação com uma intencionalidade previamente concebida (pelo menos por parte do entrevistador), que buscava tratar da relação das crianças que vivem na Comunidade da Maré com a violência. Relação em grande parte assimétrica, já que o produtor conhece previamente as perguntas, enquanto o entrevistado, não (assimetria que, muitas vezes, é minimizada pela constituição do próprio sujeito que está sendo entrevistado, detentor de conhecimentos e de autoridade). Neste caso, constituiu-se uma situação em que o entrevistado não tinha sequer discernimento suficiente para tratar o assunto, e mesmo uma possível tentativa, por parte dos produtores, de mostrar como uma criança pequena espontaneamente se apropria da violência até em suas brincadeiras não foi bem-sucedida, já que toda a situação pareceu forjada, artificializada. Acima de tudo, houve a exposição indevida da criança, relacionando-a a uma situação de grave vulnerabilidade social, o que vai de encontro com o que rege o ECA, legislação máxima no Brasil que trata dos direitos relacionados a esse setor da sociedade.

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Os únicos que tiveram não só os nomes, mas a face protegida no documentário foram crianças de rua que aparecem no final da produção, durante manifestação contra a violência policial. Com falas curtas e entrecortadas pelos demais, meninos e meninos relatam como é difícil a vida na rua e mostram cicatrizes espalhadas pelo corpo causadas por essa violência. Quase nenhum deles é focalizado em separado: em grande parte, eles aparecem de modo coletivo, embaçado, de modo que não é possível diferenciar suas histórias de vida. Apenas no encerramento do documentário um desses meninos aparece sozinho, como se estivesse deitado no chão, de braços abertos, olhar mirando diretamente a câmera, mas de cabeça para baixo. Ele apareceu sob uma luz avermelhada, da iluminação pública, mas é possível ver bem seu rosto, já que não houve qualquer intervenção da edição para descaracterizá-lo – mais uma infração ao ECA.

Entre os actantes, ainda que de forma implícita, é possível situar ainda os media tradicionais, presentes tanto como entidade a ser criticada, por não mostrar o que de fato acontece em tais comunidades, como no papel de referência e meta da própria comunidade para se sentir representada. Esse aspecto é perceptível no momento em que uma professora do Projeto Uerê mostra uma foto feita na escola durante um tiroteio na Comunidade, em que as crianças se deitaram no chão para se proteger. A foto mostrada havia sido tirada por ela, mas a professora acabou por mostrar a versão publicada em um site de notícias vinculado à Rede Globo, como modo de reforçar o quão grave foi aquela situação – já que até um veículo jornalístico tradicional o publicizou. Figuram ainda, em um pano de fundo, autoridades policiais como os principais culpados por toda a violência vivida pelos mais pobres ali retratados – não se incrimina o próprio crime.

Já os destinatários/receptores inscritos discursivamente podem ser percebidos também em dois níveis: 1) pessoas e grupos ligados a direitos humanos e movimentos sociais; 2) pessoas e grupos ligados à prática comunicacional alternativa. Ambos setores bastante próximos, mas que se diferenciam pelas intencionalidades. Em relação aos primeiros, busca-se travar uma comunicação com foco na legitimidade dos relatos, de modo que a narrativa reforce uma opinião, não se restrinja a uma descrição relatorial; já aqueles vinculados à comunicação alternativa se interessam sobretudo pelos relatos de tom emocional, usados para “humanizar”

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as vivências ali retratadas e atrair a atenção do público, a partir de uma ética e de uma estética diferenciadas em relação aos media tradicionais – focados em dados e na fala oficial de enunciadores autorizados. A partir das marcas discursivas ali presentes, não é possível, no entanto, perceber entre os possíveis destinatários idealizados as próprias autoridades policiais ou mesmo o Ministério Público, já que a produção não apresentou um caráter investigativo ao ponto de inserir dados e provas que levassem, por exemplo, à abertura de uma investigação oficial contra os policiais envolvidos na operação que resultou em tanta violência. Em nenhum momento essa intenção ficou inscrita no discurso.

Estratégias de enunciação Quanto à forma, cabe ressaltar o caráter híbrido da produção, já que esta foi motivada por critérios de noticiabilidade jornalística – atualidade, quantidade, intensidade –, porém o tratamento dado foi o de um documentário cinematográfico, num formato mais próximo do que Nichols (2009) chama de modelo observativo, em que o fato é exposto tal qual acontece, sem interferência de uma narração em off, mas mesclado ao modelo participativo, já que os produtores deixam claro que guiam as entrevistas, chegando a manter sua voz em alguns trechos. Com isso, construiu-se uma história narrada pelas próprias vozes dos entrevistados, os quais seguem apresentando relatos e ações a partir da proposição dos produtores do vídeo. As únicas interferências às falas são textos dispostos como legendas, usados tanto para nomear os entrevistados, como para situar o local e a data dos fatos ali narrados.

Os produtores também se eximem de inserir sons externos ao ambiente (background ou BG), mantendo o som ambiente. Assim como evitou-se o uso de iluminação artificial – o que ficou evidenciado na cena em que as luzes do carro de polícia, vermelhas, alteravam todo o ambiente, o que contribuiu para dramatizar a situação narrada. Tais estratégias denotam uma busca por demonstrar um baixo nível de interferência dos produtores na realidade. Contudo, a produção se distancia de um cinema verdade ao optar pela edição de imagens e vozes, com cortes e sobreposição de falas sobre cenas captadas em momentos diferentes, com o intuito de reforçar o que estava sendo dito. Assim, ao inserir imagens de policiais fortemente armados caminhando pelas ruas cheias de lixo da Comunidade da Maré, ao longo da fala do jovem Cleiton, de 15 anos, que denunciava a violência sofrida pelo pai e por outros jovens 13

da comunidade, a produção enfatizou o papel exclusivamente negativo do poder público sobre aquela comunidade, produzindo, assim, um efeito condenatório sobre a atuação de qualquer agente público, generalizadamente.

Conclusões Como dito anteriormente, esta análise não pretende ser definitiva tampouco única e absoluta, já que a produção de sentido se faz em ato, e este depende de inúmeros fatores, tanto internos como externos ao discurso. De todo modo, segue relevante, por trazer à tona marcas e estratégias discursivas significativas, que precisam ser expostas e debatidas na busca por compreender a comunicação e as representações que têm sido produzidas sob a aura do “alternativo” ou “independente”. É importante também para propor um olhar mais crítico sobre a forma como tais produções contra-hegemônicas produzem de fato novas representações. Afinal, trata-se de um olhar diferenciado, que busca desconstruir estigmas e reconstruir identidades a partir de uma perspectiva favorável a grupos que não se sentem contemplados pelas representações midiáticas tradicionais.

Nesta análise inicial, percebe-se que a busca por se diferenciar do jornalismo tradicional não o exclui de tal produção, pelo contrário: estabelece-se, na busca por constituir efeitos de verdade por um ultrarrealismo presente nas imagens e nas entrevistas com baixo nível de intervenções (sem uma narração em off e sem a inclusão de dados colhidos por outros meios), um diálogo direto com o jornalismo broadcast, o que fragiliza o caráter informativo do vídeo. Afinal, para compreender exatamente o que estava sendo ali exposto, fazia-se necessário buscar o que tinha sido informado pelos meios tradicionais, o que ficou inscrito ora implicitamente, ora explicitamente – sobretudo pela ausência de certas informações, entre elas a versão da Polícia sobre a operação, assim como dados referentes aos mortos e feridos, que não foram explicitados. Por outro lado, ao dar voz e nome a pessoas que, nas reportagens tradicionais, aparecem normalmente como testemunhas ou personagens secundárias (quando muito), o minidocumentário dá relevo ao sensível, numa busca por empatia e adesão na troca comunicacional. Com isso, sobressaiu-se a busca por emocionar, não por informar, o que, por sua vez, demarca uma diferenciação relevante em relação às práticas jornalísticas comuns. 14

A escolha por realizar uma produção engajada politicamente em favor da causa de vítimas da violência policial, sem a preocupação de produzir uma comunicação massiva – que tem em vista falar a um público bem mais abrangente, tanto numericamente quanto qualitativamente –, não exime os produtores alternativos de preservar identidades e a situação de grupos e pessoas que vivenciam, no cotidiano, uma forte vulnerabilidade social, com riscos de virem a sofrer violência física e até a morte. Tais produções precisam ter em vista que a busca por desempenhar um papel social diferenciado precisa estar presente não só nas intenções, mas sobretudo ao se colocar em prática a partir dos dispositivos enunciativos e narrativos, enfim, no ato da enunciação.

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