Jornalismo colaborativo, feminismo e raça nas mídias digitais

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SENAC

Mariana Lima Pereira

Jornalismo colaborativo, feminismo e raça nas mídias digitais

São Paulo 2015

Mariana Lima Pereira

Jornalismo colaborativo, feminismo e raça nas mídias digitais

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Senac Lapa Scipião

como

exigência

parcial

para

obtenção

da

especialização em Gestão da Comunicação em Mídias Digitais. Orientadora: Profª. Drª. Ana Laura Maria Gamboggi Taddei

São Paulo 2015

P436j Jornalismo colaborativo, raça e feminismo nas mídias digitais/Mariana Lima Pereira – São Paulo, 2015. 87 f. : il. color. : 23 cm Orientador: Profa. Dra. Ana Laura Maria Gamboggi Taddei Trabalho de Conclusão de Curso – Centro Universitário Senac – Unidade Lapa Scipião, São Paulo, 2015. 1. Blogs 2. Cibercultura 3. Feminismo 4. Jornalismo 5. Representação. Pereira, Mariana Lima II. Jornalismo colaborativo, raça e feminismo nas mídias digitais CDD 070.1

Mariana Lima Pereira

Jornalismo colaborativo, raça e feminismo nas mídias digitais

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Senac Lapa Scipião

como

exigência

parcial

para

obtenção

da

especialização em Gestão da Comunicação em Mídias Digitais. Orientadora Profª. Drª Ana Laura Maria Gamboggi Taddei

A banca examinadora dos Trabalhos de Conclusão de Curso, em sessão pública realizada em _____________/___/________, considerou a candidata:

1) Examinador (a)

2) Examinador (a)

3) Examinador (a)

Com todo amor: aos meus pais, Márcia Isabel de Almeida Lima Pereira e Mário Lúcio Pereira, ao meu avô, José de Almeida Lima (in memoriam), e ao Felipe de Queiroz.

AGRADECIMENTOS Agradeço especialmente aos meus pais, Márcia Isabel de Almeida Lima Pereira e Mário Lúcio Pereira, por todo amor, conforto familiar e investimento para que eu pudesse estudar algo com o qual tenho prazer em dedicar horas intensas de trabalho. Ao Felipe de Queiroz D‟Angelo Carlos, pelo amor e por nossas construções diárias. Meu porto seguro. Aos meus familiares, sobretudo ao meu tio, Moacir de Almeida Lima, que me fez querer estudar o jornalismo, uma paixão, apesar de todas as dificuldades inerentes a essa área. As minhas amigas Andressa Martins da Silva, Camila Nardoni de Oliveira, Fabiana Batista Espósito e Gabriella Maria Abrão Rocco, por todos os anos vividos e pelos que ainda serão. A minha orientadora, Profª. Drª. Ana Laura Maria Gamboggi Taddei, pelas inspirações teóricas e pelo entusiasmo contagiante. Agradeço ainda ao Senac Lapa Scipião, onde fiz bons amigos: Ana Paula Lucinski (in memoriam), Bruno Nunes, Carine Motta, Erika Sena e Kelly Borges Ramos. Agradeço a esses amigos também, pelas risadas e desesperos estudantis compartilhados. Faço menção ainda aos amigos da Faculdade Cásper Líbero, em especial Camila Gonçalves, Cláudio Molinari de Carvalho, Ivan Men Torraca, Paula Montefusco Scoton, Silvia Nougués Wargaftig, Thiago Bronzatto e Thiago Moreno sem os quais eu saberia bem menos sobre cultura, política e afins. E a Ana Carolina Rodrigues, Alessandra Cantero, Camila Feltre, Kryslei Cipriano a Elisabete Machado, Fabiano Anunciação e Gabriel Belleti, que de colegas tornaram-se amigos bastante queridos. Um agradecimento também para a Profª. Msª. Bianca Santana, pela disposição em contribuir com este trabalho. Sem a entrevista que me concedeu certamente não conseguiria a mesma vivacidade.

Se repetimos uma coisa várias vezes, ela se torna normal. Se vemos uma coisa com frequência, ela se torna normal. Se só os meninos são escolhidos como monitores da classe, então em algum momento nós todos vamos achar, mesmo inconscientemente, que só um menino pode ser o monitor da classe. Se só homens ocupam cargos de chefia nas empresas, começamos a achar “normal” que esses cargos de chefia só sejam ocupados por homens. (...) A questão do gênero é importante em qualquer canto do mundo. É importante que comecemos a planejar e sonhar um mundo diferente. Um mundo mais justo. Um mundo de homens e mulheres mais felizes, mais autênticos consigo mesmos. E é assim que devemos começar: precisamos criar nossas filhas de maneira diferente. Também precisamos criar nossos filhos de uma maneira diferente.

Chimamanda Ngozi Adichie

RESUMO

A ideia central desta pesquisa foi mostrar como o jornalismo contribui para que as mulheres, por meio do feminismo, usufruam das possibilidades de comunicação pelas mídias digitais para debater sobre temas como racismo e representação pelas mídias clássicas – jornais, rádio, revistas e televisão. Pesquisas teóricas sobre cibercultura, jornalismo colaborativo, feminismo e raça também foram cruciais para desenvolver a investigação, assim como a entrevista com a jornalista Bianca Santana. Palavras-chave: 5.Representação.

1.Blogs.

2.Cibercultura.

3.Feminismo.

4.Jornalismo.

ABSTRACT

The main ideia of this research is to show how journalism contributes to make women, by the means of feminism, use digital media to discuss themes like racism and representation by tradicional media – newspapers, radio, magazines and television. Teoric researchs about ciberculture, collaborative journalism, feminism and race were also crucial to develop this investigation, as much as the interview with Bianca Santana, a brazilian journalist. Keywords: 1.Blogs. 2.Ciberculture. 3.Feminism. 4.Journalism. 5.Representation.

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................p.11 2. JORNALISMO COLABORATIVO E O FEMINISMO NO BRASIL.......................p.13 2.1 Desenvolvimento do jornalismo colaborativo no Brasil....................................p.13 2.1.1 Jornalismo e representação.........................................................................p.23 2.2 Antes do feminismo bater à porta....................................................................p.25 2.2.2 Feminismo ciberjornalístico colaborativo.....................................................p.29 3. RAÇA E FEMINISMO NO CONTEXTO DAS MÍDIAS DIGITAIS........................p.38 3.1 As mulheres negras e o feminismo..................................................................p.38 3.2 Retrato da mídia à moda brasileira: questões de igualdade, gênero e raça....p.43 3.2.2 Acesso à internet pela população negra......................................................p.46 3.3 Negras no mercado jornalístico........................................................................p.50 4. FEMINISTAS INTERCONECTADAS?................................................................p.54 4.1Caracterização dos blogs..................................................................................p.54 4.1.1Nuances feministas.......................................................................................p.56 4.2 É jornalismo ou não o que blogs feministas produzem?..................................p.59 4.3 Representatividade importa.............................................................................p.66 5.CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................p.70 REFERÊNCIAS.......................................................................................................p.72 APÊNDICE..............................................................................................................p.77 ANEXO....................................................................................................................p.81

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1. Introdução Apresentar como o jornalismo colaborativo contribui para a disseminação do feminismo nas mídias digitais do Brasil, sobretudo com discussões acerca de gênero e raça dentro do movimento, promovendo a inserção da mulher na sociedade contemporânea é o objetivo central deste trabalho. No meio jornalístico clássico, aquele praticado por meio da imprensa, rádio e televisão, muitas vezes a abordagem de determinadas temáticas sociais não necessariamente corresponde à linha editorial dos veículos que formam a chamada grande imprensa. Por isso o interesse pela pesquisa de modelos alternativos ao jornalismo digital oferecido por essas corporações empresariais, mostrando o trabalho feito por ativistas e coletivos feministas que, em boa parte das vezes, privilegia o acesso a assuntos polêmicos, como o racismo. Para exemplificar, pesquisei conteúdos nos blogs Blogueiras Feministas1 e Blogueiras Negras2, canais com perfis colaborativos que identifiquei como influenciadores nas mídias digitais. Com o desenvolvimento da pesquisa, pretendo contribuir para a aproximação entre jornalismo colaborativo, feminismo e a questão racial no Brasil, tendo em vista ser esse um assunto recorrente nos canais mencionados, embora mais frequente naquele que se destina ao diálogo exclusivamente com mulheres negras: Blogueiras Negras. Acredito que este trabalho contribui para entender o novo modo de colaboração jornalística entre os blogs feministas destacados, contribuindo para que haja mais conteúdos publicados sobre a condição da mulher negra brasileira afora os espaços (bastante úteis) do Blogueiras Feministas e do Blogueiras Negras. Também acho que o trabalho de análise a ser realizado possui relevância social ao se dispor discutir justamente essa relação de “poder” entre veículos de comunicação da grande imprensa brasileira, mesmo em meio digital, e os que não possuem uma marca jornalística tão fortemente reconhecida no nosso mercado tradicional, mas fazem uso de suas próprias palavras e discursos para dar continuidade a debates gestados em postagens colaborativas, conseguindo, vez ou 1 2

http://blogueirasfeministas.com/ http://blogueirasnegras.org/

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outra, replicar discussões nos grandes veículos informativos, em alguns casos para além do formato digital. Pretendo compreender como esse modelo se desenvolveu e se mantém no Brasil, a partir do recorte específico para a produção feminista, dentro do âmbito do jornalismo colaborativo. A maior parte dos temas abordados nos blogs escolhidos para a análise, entre eles o racismo, são tabus sociais brasileiros e, por esse motivo, podem influenciar a sobrevivência econômica de tais versões alternativas, retardando o potencial colaborativo nas mídias digitais, uma vez que podem envolver aspectos de responsabilidade jurídica sobre conteúdos publicados. Outra hipótese é de que a captação de recursos não seja o motor principal desses veículos alternativos, interessados que estão em ter espaço somente para amplificar opiniões e educar pessoas segundo o ponto de vista feminista a partir de novas perspectivas sobre o papel social da mulher contemporânea no país. O objetivo geral da pesquisa é analisar e investigar como o jornalismo colaborativo no Brasil, baseado nos exemplos dos dois blogs anteriormente mencionados, pode contribuir para que as interações entre produtores e consumidores de conteúdo sejam aprimoradas nas mídias digitais brasileira. No âmbito dos objetivos específicos da minha análise, pretendo compreender quais são as principais aproximações e diferenças entre a colaboração jornalística aplicada ao modelo de feminismo proposto pelo Blogueiras Feministas e o que é feito pelo Blogueiras Negras.

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2. Jornalismo colaborativo e o feminismo no Brasil Partindo de um breve panorama a respeito do desenvolvimento do jornalismo colaborativo no Brasil, discutimos como essa prática pode beneficiar a difusão do feminismo nas mídias digitais, com ênfase nos blogs, identificados por nós como meio de comunicação preferencial das mulheres que se dedicam ao tema. Ainda neste capítulo, apresentamos um breve histórico do feminismo nacional, destacando exclusivamente a atuação feminista no meio digital. 2.1 Desenvolvimento do jornalismo colaborativo no Brasil A ideia de colaboração no jornalismo não é exatamente nova. O primeiro jornal publicado nos Estados Unidos, Pulick Occurences, Both Foreign and Domestick já previa a participação do público ao manter algumas páginas livres para serem complementadas por comentários e informações dos leitores. (SCHWINGEL, 2012. P. 23). Como reflexo dos avanços da sociedade ao logo dos séculos, sobretudo a partir do surgimento das novas tecnologias da comunicação e da internet, a presença maciça do público no jornalismo parece mais evidente. Fotografia 1 - Publick Occurences, Both Foreign and Domestick

Fonte: Steven J. Shaw. Colonial Newspaper Advertising: A Step toward Freedom of the Press. The Business History Review, Vol. 33, No. 3 (Autumn, 1959), pp. 409-420

3

Em “O jornalismo colaborativo”, na versão ebook (assim como nas demais notas relacionadas ao trabalho da autora).

14

Para falar sobre o jornalismo colaborativo no Brasil é preciso compreender o contexto em que essa prática se desenvolveu, antes mesmo da primeira experiência digital brasileira com o pernambucano Jornal do Commercio on-line que, em dezembro de 1994, tornou-se pioneiro na distribuição de conteúdo jornalístico nesta modalidade no país. (SCHWINGEL, 2012. P. 11 e P. 124). Esta análise trabalha o conceito de ciberjornalismo como sinônimo de jornalismo digital, conforme defendido por Carla Schwingel, por entender que ele ambienta a prática do jornalismo colaborativo na web. O ciberjornalismo é definido por Schwingel como “a modalidade jornalística no ciberespaço fundamentada pela utilização de sistemas automatizados de produção de conteúdos que possibilitam a composição de narrativas hipertextuais, multimídias e interativas.” (SCHWINGEL, 2012. P. 5 e P. 65). Partindo do pressuposto de ser o ciberjornalismo possível a partir das tecnologias que permeiam o ciberespaço, nossa análise compreende que, conforme explicado por Schwingel, citando o pesquisador espanhol Salaverría, esta é a modalidade que permite o desenvolvimento da colaboração no jornalismo ao estar situada no ciberespaço “para investigar, produzir e sobretudo, difundir conteúdos jornalísticos”. (SCHWINGEL, 2012. P. 286). Seguindo essa ideia, as características básicas do ciberjonalismo – multimidialidade, interatividade, hipertextualidade, customização dos conteúdos, memória, atualização contínua, flexibilização do tempo e do espaço para produção e o uso de ferramentas automatizadas para o processo produtivo - fundamentam o jornalismo colaborativo na medida em que oferece os princípios norteadores para este tipo de produção. (SCHWINGEL, 2012. P. 67). Tal qual ocorre nos outros meios em que o jornalismo se propaga, no âmbito digital podemos identificar algumas fases do desenvolvimento dessa atividade no ciberespaço. Num primeiro momento, as atividades eram apenas de reprodução de conteúdo advindo do impresso, conforme citado por Schwingel, sendo seguida pela fase de elaboração de serviços e informações específicas do meio e, finalmente, 4

Em “Historicidade, terminologia e conceito de ciberjornalismo”. Em “Definição de ciberjornalismo”. 6 Em “Historicidade, terminologia e conceito de ciberjornalismo”. 7 Em “Definição de ciberjornalismo”. 5

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pelo desenvolvimento de produtos e serviços voltados especificamente para a web. (SCHWINGEL, 2012. P. 98) No Brasil, o ciberjornalismo efetivamente conquistou espaço a partir de 1995, após as experiências iniciais promovidas pelo Jornal do Commércio, no fim de 1994, e pelo Jornal do Brasil, em meados de 1995, mas só foi tomar forma a partir dos anos 2000. A prática do ciberjornalismo no Brasil, conforme citado anteriormente, refletia o conteúdo publicado nas versões impressas de jornais e revistas (SCHWINGEL, 2012. P. 189). As primeiras experiências nacionais exclusivamente ciberjornalísticas têm início em 2002, utilizando bancos de dados das empresas de comunicação e incorporando usuários no processo de produção, dois dos mecanismos do jornalismo colaborativo. (SCHWINGEL, 2012. P. 13, 14 e 1510). Houve um período em que as empresas de comunicação não viam com entusiasmo a interferência do público na comunicação possível no ciberespaço. O declínio da necessidade de intermediários qualificando ou ponderando sobre diversos assuntos bagunçou a ordem no mercado da comunicação clássica e fez com que os principais conglomerados de comunicação no mundo, inclusive no Brasil, revissem suas políticas de participação dos usuários, investido em plataformas capazes de integrar os dois universos, uma vez que o ciberespaço é uma alternativa para as mídias de massa clássicas onde usuários podem trocar informações de forma recíproca e comunitária, em vez de depender de uma comunicação unidirecional. (LÉVY, 2010. P. 208 e 209). Ao contrário do que acontecia nos Estados Unidos, que já lidavam com evoluções editoriais e tecnológicas, como o uso do e-mail e da interatividade, em seus jornais digitais, inclusive fazendo uso da personalização de conteúdo de acordo com as preferências do usuário em veículos como Mercury Center, Wall Street Journal e Washington Post (SCHWINGEL, 2012. P. 211) no período, no Brasil alguns dos principais portais, comumente a porta de entrada dos usuários para notícias e reportagens, começavam a acrescentar recursos interativos que proporcionassem a participação dos usuários na produção jornalística, caso do G1 e seu VC no G1, conforme a disseminação de ferramentas como os blogs e as redes sociais no país 8

Em “Etapas evolutivas do ciberjornalismo – As gerações do jornalismo digital”. Idem. 10 Em “Etapas evolutivas do ciberjornalismo – As gerações do jornalismo digital.”. 11 Idem. 9

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se tornava culturalmente significativa. Tais experiências tinham como ideia colocar o jornalismo colaborativo na rotina dos cidadãos conectados à internet e tomavam como exemplos casos bem sucedidos na Coreia do Sul (OhMyNews) e nos Estados Unidos (Digg e Slashdot), principalmente. A predominância da inteligência coletiva reflete um ciberespaço variado e espalhado por diferentes lugares ao redor do mundo, sendo capaz de organizar mobilizações em torno de uma causa comum. Caso das pautas do movimento feminista, que motiva esta análise. Nas palavras de Pierre Lévy, a inteligência coletiva é “o único programa geral visando explicitamente o bem público e o desenvolvimento humano que esteja à altura das questões colocadas pela cibercultura nascente.” (LÉVY, 2010. P. 206) Deste modo, o papel que a inteligência coletiva cumpre no ciberespaço, tomando o pensamento de Pierre Lévy como fio condutor, é o de amplificar a quantidade de verdades acerca de determinados assuntos e recusar o controle que vem de cima para baixo na escala da comunicação clássica. “A World Wide Web é um gigantesco documento autorreferencial, onde se entrelaçam e dialogam uma multiplicidade de pontos de vista (inclusive as mais violentas críticas à Web.).” (LÉVY, 2010. P. 214) A partir da análise de Lévy podemos compreender que, ao contrário da tese de isolamento entre pessoas que a rede poderia causar, o que vemos é a integração cada vez maior entre grupos que pretendem defender seus direitos em ambiente digital para, quem sabe, vê-los respeitados também fora dele. É o caso do movimento feminista no Brasil que, mesmo dividido em nichos, procura e encontra espaço para divulgar suas ideias igualitárias em blogs, sites e redes sociais onde buscam a colaboração jornalística, entre outras atividades, para refletir sobre questões que permeiam a vida das mulheres na sociedade contemporânea. A rede é antes de tudo um instrumento de comunicação entre indivíduos, um lugar virtual no qual as comunidades ajudam seus membros a aprender o que querem saber. (LÉVY, 2010. P. 253) No Brasil, além do VC no G1, também temos o Limão (Estadão) e o Overmundo como exemplos de consolidação do jornalismo colaborativo. Blogs e redes sociais segmentados também ajudam a compreender o fenômeno. É o caso

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da vertente feminista abordada por este trabalho e que ocupa boa parcela da atenção na web, também contribuindo para a sistematização do jornalismo colaborativo no nosso ciberespaço. Tal sistematização, aliás, pertence a mesma esfera do chamado jornalismo de fonte aberta (open source). Optamos, no entanto, pela nomenclatura jornalismo colaborativo, conforme defendido por Carla Schwingel, compreendendo que:

Tendo em vista uma maior precisão conceitual, defende-se a utilização do termo e do conceito de jornalismo colaborativo para as práticas ciberjornalísticas de incorporação do usuário na produção de informações. Adota-se esta denominação, em detrimento do que se propunha anteriormente – de jornalismo open source ou de fonte aberta -, por compreender-se que as práticas colaborativas jornalísticas no ciberespaço têm suas origens na lógica do desenvolvimento da comunidade open source, na sistemática de produção dos grupos de desenvolvimento de softwares para internet, porém não se restringem a essa comunidade, ampliando a colaboração para outros níveis, sistemas e subsistemas próprios, com lógicas a serem aprimoradas. (SCHWINGEL, 2012. P. 13 e P. 12 14 ).

Compreendemos que a guinada do jornalismo para além da reprodução daquilo que era publicado no meio impresso atende à necessidade de reformulação das empresas jornalística diante de uma sociedade cada vez mais voltada para a informatização das relações e menos dependente da relação emissor-receptor. O jornalismo colaborativo faz parte de uma cultura que privilegia a figura do indivíduo, embora tenha a característica de agregar comunidades, por meio da inteligência colaborativa, e do instantâneo. Por isso pode haver dificuldade em entender como as atuais teorias de estudo do jornalismo compreendem a prática. Para Francisco Madureira:

O caminho da descentralização e valorização do indivíduo que o jornalismo colaborativo percorre no cenário da pós-modernidade parece acompanhar o fenômeno quando o enxergamos sob o prisma dos estudos da comunicação. Ao permitir que o (antigo) público passe a ter papel ativo na publicação de conteúdo, a colaboração online subverte a própria teoria clássica da comunicação, que estabelece uma diferenciação rígida de papéis entre emissor e receptor. (MADUREIRA, 2010. P. 16).

12

Em “O jornalismo colaborativo".

18

Não há, entretanto, uma definição teórica a respeitos de quais são as necessidades inerentes ao ciberjornalismo, que abrange a prática do jornalismo colaborativo, apenas a adequação de teorias já existentes diante da especificidade do ciberespaço, conforme aponta Schwingel:

O avanço da tecnologia, que permite a inserção do usuário no processo de produção, e as facilidades de publicação de conteúdos na internet, que possibilitam a qualquer um divulgar informações, ou seja, a fazer comunicação, são indicativos do grau de complexidade enfrentado pelas 13 teorias da informação e da comunicação. (SCHWINGEL, 2012. P. 12.).

Com base em experiências na grande mídia brasileira, ela defende a necessidade de uma teoria jornalística “(...) que possa incluir um processo de produção diferenciado, que poderia ser aberto, para além das organizações jornalísticas, com a responsabilidade social e cidadã de produzir informações e notícias.”. (SCHWINGEL, 2012. P. 13 e P. 1414). A adequação do fazer jornalístico às dinâmicas do ciberespaço faz com que sejam incorporadas diferentes funções específicas tais como as de editores, subeditores, designers e técnicos especializados em sistemas de busca de informações, por exemplo. Esses profissionais facilitam o dia a dia da área ao facilitarem a elaboração de conteúdos no ciberespaço para a apuração, produção e circulação destes. (SCHWINGEL, 2012. P. 24 e 2515). O que inclui o uso da comunicação direta entre jornalistas e demais profissionais envolvidos com a produção ciberjornalística e os usuários produtores de informação, por meio de emails, comunicadores instantâneos e redes sociais, indicando a potência da interatividade nesse campo. Surge, então, do ponto de vista empresarial, a necessidade de integrar a prática jornalística à produção de notícias por usuários “comuns”, com base na interatividade, na flexibilização dos limites de espaço e tempo e também na multimidialidade para a construção das narrativas.

13

Em “O processo de produção do ciberjornalismo”. Idem. 15 Ibidem. 14

19

Como os limites entre quem é receptor e quem é emissor não estão mais tão bem delimitados, tendo em vista o fenômeno das mídias sociais frente a comunicação de massa, “O desafio em um cenário de mídias sociais em que qualquer um tornou-se um emissor de informações pela rede é diferenciar o discurso jornalístico do discurso privado maquiado de jornalismo.” (MADUREIRA, 2010. P. 30) E quais são as etapas necessárias para o desenvolvimento da produção ciberjornalística de caráter colaborativo? Os mesmos passos necessários ao jornalismo praticado em meios como impresso, radiofônico e televisivo: apuração, edição e compartilhamento das informações coletadas. A diferença é a necessidade de tanto amadores quanto profissionais terem conhecimento acerca das ferramentas que possibilitam as atividades na web. Imersa na cibercultura, a sociedade mundial (e por consequência, a brasileira), vivencia a difusão de informações de maneira ágil e compartilhável. Apesar de o jornalismo ser uma área interessada em apresentar diferentes pontos de vista sobre um mesmo tema, por exemplo, muitas vezes os profissionais entram em situações onde interesses alheios as suas crenças pessoais interagem com a plena capacidade de formar a opinião do público. No entanto, Pierre Lévy demonstra que “a cibercultura dá forma a um novo tipo de universal: o universal sem totalidade.” (LÉVVY, 2010. P. 122) ao garantir espaço para que diferentes opiniões sejam publicadas na internet. “Assim, o ciberespaço não engendra uma cultura do universal porque de fato está em toda parte, e sim porque sua forma ou sua ideia implicam de direito o conjunto dos seres humanos.” (LÉVY, 2010. P. 122). Apesar da dificuldade em validar conteúdos produzidos por usuários, acreditamos que “A possibilidade de os membros das comunidades falarem uns com os outros, às claras e em público, é uma grande transformação, que tem valor mesmo com a impossibilidade de se filtrar a qualidade.” (SHIRKY, 2011. P. 4116). Isso porque embora consideremos imprescindíveis os valores de produção do jornalismo, mesmo quando adaptados para a internet, também consideramos essencial que se mantenha espaço para livre expressão de ideias, sem a 16

Em “Meios” na versão ebook (assim como nas demais notas relacionadas ao trabalho do autor).

20

necessidade de uma empresa jornalística específica suportar a credibilidade que pode, em muitos casos, ser refletida pela ideia de reputação. De acordo com Shirky:

Publicar era algo que precisava ser levado a sério quando seu custo e esforço faziam com que as pessoas o levassem a sério – se você cometesse erros demais, estaria fora do negócio. Mas, quando esses fatores desaparecem, o risco também desaparece. Uma atividade que antes parecia intrinsecamente valiosa revelou-se apenas casualmente valiosa, como demonstrado por uma mudança da economia. (SHIRKY, 2011. P. 17 43 ).

Ainda tentando encontrar um modelo para financiar o jornalismo colaborativo, podemos compreender, conforme explicado por Chris Anderson, que vivemos em um contexto onde a maior parte da produção de usuários no ciberespaço não será remunerada. “Esse é o mundo da „peer production‟ (produção colaborativa ou entre pares), fenômeno extraordinário, possibilitado pela internet, caracterizado pelo voluntarismo ou amadorismo de massa.” (ANDERSON, 2006. P. 70 e 71) Anderson, aliás, defende que a motivação criativa é diferente no começo e no final da Cauda Longa, conceito que baseia o ciberespaço como agregadora de nichos, compreendendo tanto a economia monetária tradicional quanto a não monetária. (ANDERSON, 2006. P. 71) Sobre esse aspecto, observamos que os blogs e sites feministas que serão analisados mais adiante se dividem entre diferentes contrapartidas e formas de sustentação financeira. Ora solicitam colaboração por meio de financiamento online, ora oferecem produtos por meio de sorteio para quem colabora com tais plataformas. Como complemento à ideia de Anderson, podemos citar também a maneira como Shirky encara a cultura da participação, do ponto de vista econômico: “Curiosamente, as pessoas mais afetadas por esse estado dos negócios não parecem estar tão terrivelmente indignadas com isso. Quem compartilha fotos, vídeos e textos não espera ser pago, mas compartilha mesmo assim.” (SHIRKY, 2011. P. 5918).

17 18

Idem. Em “Meios”.

21

É por causa da reputação no ciberespaço, medida de valor mais usual nesse meio, que a discussão sobre modelo de sustentabilidade econômica se faz pertinente nessa análise, mas não vamos nos estender sobre esse ponto. “Seja como for, trata-se de algo que estamos começando a reconsiderar, à medida que o poder da „economia da gratuidade ou economia da doação‟ (gift economy) se torna cada vez mais claro – em tudo, desde a blogosfera até a fonte aberta.” (ANDERSON, 2006. P. 73). Ainda citando Shirky, é importante compreender que os usuários produtores de conteúdo, em sua maioria, não o fazem de forma profissional, mas sim amadora, no sentido de serem aquelas pessoas que fazem algo por amor e pretendem compartilhar conhecimento pensando mais nos benefícios sociais do que financeiros. E quando usamos amador gostaríamos de nos referir ao fato de que:

Amadores não são apenas profissionais de tamanho reduzido; às vezes, as pessoas ficam felizes ao fazer coisas por razões incompatíveis com o fato de serem pagas. A mídia amadora é diferente da mídia profissional. Serviços que nos ajudam a compartilhar coisas prosperam exatamente porque tornam mais fácil, e muitas vezes mais barato, para nós, fazer coisas que já gostamos de fazer. Em outras palavras, uma das funções do mercado é fornecer plataformas para nos engajarmos nas coisas que gostamos de fazer fora dele, sejam tais plataformas bares ou websites. 19 (SHIRKY, 2011. P. 65 ).

Madureira também defende que a prática do jornalismo colaborativo pode ser analisada a partir dos Estudos Culturais, uma vez ele se desenvolve a partir de uma rede de pessoas, produzindo cultura, em ambiente digital – ciberespaço. (MADUREIRA, 2010. P. 18) Os Estudos Culturais formam um campo acadêmico que reflete sobre as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade, tendo sido organizado por meio do Center for Contemporary Cultural Studies (CCSS), fundado por Richard Hoggart em 1964, na Universidade de Birmingham, Inglaterra, quando da mudança dos valores tradicionais da classe operária inglesa do pós-guerra. (ESCOSTEGUY, 2001).

19

Em “Meios”.

22

Esse campo de estudo tem como interesse observar culturas populares e não tradicionais construindo, a partir dos anos 1960, “uma tendência importante da crítica cultural que questiona o estabelecimento de hierarquias entre formas e práticas culturais,

estabelecidas

a

partir

de

oposições

como

cultura

alta/baixa,

superior/inferior, entre outras binariedades.” (ESCOSTEGUY, 2001). No decorrer dos anos 1970, os Estudos Culturais se voltam para a análise de diferentes subculturas e a questão da representação nos meios de comunicação, com foco principal na cobertura jornalística. É neste período que as discussões em torno das diferenças de gênero, suscitadas pelo movimento feminista, passam a integrar a área, levando o tema também para o meio acadêmico com a divulgação de pesquisas produzidas pelo Women‟s Studies Group que tinham como preocupação original “(...) ver como a categoria "gênero" estrutura e é ela própria estruturada nas formações sociais”. (ESCOSTEGUY, 2001). A representação da mulher nos meios de comunicação passava, assim, a ser objeto de pesquisas específicas dentro do CCSS. (ESCOSTEGUY, 2001).

Sobre a imagem da feminista nos dias atuais, podemos também visualizar uma mudança. Aquela figura austera que antes a caracterizava, cujo ponto de vista era sempre denunciador de uma cultura sexista e opressora, não é mais uma realidade. (...)Ser feminista, no século XXI, não significa excluir o homem da relação, como se fosse o patriarcado culpado de todos os males que afligem a mulher. Também não significa que homens e mulheres precisam ser iguais, mas indica que na diferença não deve residir nenhum tipo de preconceito. (MESSA, 2006. P. 2).

Seguindo o acréscimo à análise da representação da mulher pelos meios de comunicação, nos anos 1990 o CCSS passa a observar mais atentamente a maneira como questões de identidade de raça e etnia e a incorporação das novas tecnologias são debatidas. (ESCOSTEGUY, 2001). Foi a popularização do acesso à internet que propiciou que a prática do jornalismo colaborativo pudesse acontecer e ampliar discussões sobre temas feministas, por exemplo. As melhorias nas condições técnicas de velocidade de conexão, sites primando por boa qualidade na arquitetura de informação e o pleno desenvolvimento de gadgets capazes de produzir e reproduzir fotos, sons, textos e vídeos tornaram a produção de conteúdo interessante para usuários que desejam participar dos processos de comunicação no ciberespaço.

23

Este trabalho opta pela reflexão que Pierre Lévy faz sobre a cibercultura e entende que a polifonia de pensamentos é mais positiva do que depreciativa no ciberespaço. Fazendo uso da ideia de inteligência coletiva, acreditamos que quanto maior a participação dos usuários, com suas singularidades e variadas perspectivas de informação, mais autenticidade haverá no jornalismo colaborativo, sobretudo naquele que tem como objetivo discutir a presença das mulheres na sociedade contemporânea. É por meio dos debates que o jornalismo colaborativo pode se desenvolver. No entanto, conforme aponta Francisco Madureira, “Para que haja jornalismo colaborativo, é preciso haver jornalismo e é preciso haver colaboração.” (MADUREIRA, 2010. P. 41). A ideia é evitar que as facilidades de publicação na internet contribuam para a veiculação de informações falsas ou que induzem os usuários a determinada forma de pensar.

(...)O blog significa que o testemunho individual, a percepção e a interpretação de um sujeito, ou seja, o saber “subjetivo”, são cada vez mais reconhecidos pelo grande público dos Internautas. “Reconhecidos” no sentido de ocupar um lugar mais “legítimo” que as informações dos suportes de papel, em todo caso legitimados pelo número de visitantes nos sites, um local de testemunho mais verdadeiro, mais autêntico, mais livre. (XIBERRAS, 2010. P. 257).

Quando um determinado grupo sente, age e faz algo em conjunto cria-se uma cultura comum e indispensável no ciberespaço que leva ao trabalho cooperativo: “Um fundo cultural comum permite a emergência da consciência coletiva que permite, por sua vez, a emergência da inteligência coletiva, que subentende a ação coletiva.” (XIBERRAS, 2010. P. 262). 2.1.1 Jornalismo e representação Apesar da crescente participação feminina em cargos de poder no Brasil, incluindo a presidência de Dilma Rousseff, ainda há uma exclusão histórica e sistemática das mulheres em cargos nas mais altas instâncias de decisão, embora no país vigore a lei de cotas que garante 30% das vagas para candidaturas femininas em partidos políticos, por exemplo. Ainda vivemos em um território permeado por sexismo, racismo e etnocentrismo. (BASTHI, 2011. P. 30).

24

Especificamente no caso das mulheres negras e indígenas, a associação entre redes sociais e empoderamento político têm beneficiado os debates em torno da participação e da visibilidade desses grupos na sociedade (BASTHI, 2011. P. 30 e P. 31), uma vez que as mídias clássicas – impresso, rádio e TV –, majoritariamente masculina e branca, dialogam esporadicamente com essas mulheres, quase sempre reproduzindo estereótipos.

Fazer uma leitura na perspectiva de gênero no Jornalismo é reconhecer as relações desiguais de poder entre homens e mulheres – incluindo o aspecto relacional entre homens e homens e mulheres e mulheres – e adotar como referencial analítico as experiências históricas dos grupos. É colocar em prática o potencial jornalístico na identificação e busca de soluções para as profundas desigualdades de gênero no Brasil, mas sem perder o foco na diversidade racial e étnica da sociedade brasileira. É colocar em xeque valores, atitudes, costumes, práticas e comportamentos que validam a suposta autoridade masculina e denunciar as profundas desigualdades de gênero nos espaços público e privado. (BASTHI, 2011. P. 33).

Uma pesquisa divulgada em 2013 sobre o perfil do profissional de jornalismo no Brasil revelou que a área é composta majoritariamente por mulheres brancas, solteiras, com até 30 anos (FENAJ, 2013). Já a percentual de jornalistas negros revelou-se inferior à metade da presença de pretos e pardos no país. A análise por área de atuação jornalística mostrou que 44,6% dos profissionais trabalham com internet. Embora a participação feminina seja maior, elas estão em segmentos considerados paralelos à prática do jornalismo, como assessoria de imprensa, representando 68,8% da categoria contra 31,2% dos homens. As assessorias de imprensa, aliás, são o principal meio de participação dos jornalistas negros (FENAJ, 2013). Em geral, a mídia veicula uma visão sexista em seus produtos jornalísticos e se não inviabiliza a presença de mulheres negras e indígenas nas publicações, acabam limitando a participação delas nos conteúdos – por meio de práticas racistas e etnocêntricas. (BASTHI, 2011. P. 34). A ideia de raça permanece forte na sociedade brasileira e está impregnada “(...)nas práticas sociais e nas relações de poder e dominação, além de persistirem no imaginário social e na representação coletiva de populações subalternizadas.”

25

(BASTHI, 2011. P. 35). Cessar padrões normativos e estereótipos é, de acordo com Basthi, um desafio que deve ser assumido pela própria mídia, mais especificamente na

área

do

jornalismo, por reunir profissionais “diferenciados para

lidar

cotidianamente com a realidade social e suas dinâmicas”, visando “contribuir para a desconstrução de crenças, costumes, valores e práticas que reforcem a estrutura social racista, sexista e etnocentrista.” (BASTHI, 2011. P. 36). 2.2 Antes do feminismo bater à porta... Ao longo da história, as mulheres apostaram na colaboração mútua como forma de construir mudanças sociais dentro de uma estrutura marcadamente patriarcal. Entre os séculos XVI e meados do XIX, nossa sociedade comportou condições diversificadas de convivência em família. “A mais curiosa delas é o fato de que as pessoas viviam em grupos estáveis – porém, em grupos nos quais se admitia, também, a chegada de um novo companheiro ou companheira. E, com eles, em muitos casos, de filhos de outras uniões.” (PRIORE, 2013. P. 520). O papel social da mulher era considerado fundamental, embora a participação feminina fosse restrita ao âmbito privado. “Cabia-lhe ensinar aos filhos a educação do espírito, rezar, pronunciar o santo nome de Deus, confessar-se com regularidade, participar de missas e festas religiosas.” (PRIORE, 2013. P. 321) Neste contexto, fruto da soma da tradição portuguesa com a colonização agrária e escravista, que o patriarcalismo brasileiro se consolidou. (PRIORE, 2013. P. 522). Além da educação, cabia à mulher – exceção feita às mestiças, mulatas e negras - passar seu tempo em meio a bordados e costuras ou no preparo de doces. (PRIORE, 2013. P. 823). A visibilidade social da mulher brasileira passou a aumentar em decorrência de eventos como a chegada da família real portuguesa ao Brasil, o processo de independência nacional, o crescimento da economia cafeeira e a ampliação das cidades. (PRIORE, 2013. P. 224). Del Priore afirma que: “As fronteiras entre público e

20

Em “Mulheres, casamentos e famílias”. Em “Laços e Nós”. 22 Idem. 23 Ibidem. 24 Em “Esboços dos papéis femininos”. 21

26

privado ficam mais nítidas, favorecendo que os papéis exercidos nesses espaços também ganhassem mais visibilidade.” (PRIORE, 2013. P. 325). Entretanto, essa novidade na vida da mulher brasileira veio marcada pela diferença de tratamento dado às casadas, geralmente brancas, e as trabalhadoras concubinadas ou solteiras. (PRIORE, 2013. P. 3). Bastante por causa da influência da Igreja Católica na estrutura social do país, que contribuía para a construção do imaginário em torno da mulher. “Esposas: mulheres corretas. Concubinas, imorais, que viviam „meretrizmente‟, cúmplices de „tratos ilícitos‟: as erradas.” (PRIORE, 2013. P. 826). Primeira forma de opressão na história da humanidade, a subordinação da mulher é um fenômeno milenar e universal que tem no feminismo uma forma de resistência fomentada a partir do século XVII e ampliada nas últimas décadas. (COSTA; SARDENBERG, 2008. P. 23). Introduzido no Brasil no século XIX, por Nísia Floresta Brasileira Augusta, responsável pela tradução de A vindication of Rights of Women (1832), de Mary Wollstonecraft, entre outras ações, o pensamento feminista chega para despertar a consciência

crítica

a

respeito

da

condição

feminina

no

país.

(COSTA;

SARDENBERG, 2008. P. 32).

Desde então, o feminismo no Brasil vem assumindo várias formas de luta, diversas bandeiras e diferentes facetas. Já foi sufragista, anarquista, socialista, comunista, burguês e reformista. Já lutou no parlamento, nas ruas e nas casas para conquistar e garantir o acesso da mulher à educação formal. E vem lutando pela igualdade de salários e condições dignas de trabalho, pela valorização do trabalho doméstico, pelo direito inalienável de todas ao controle sobre o próprio corpo e gozo de nossa sexualidade, enfim, pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde a mulher possa realizar-se plenamente enquanto ser humano e cidadã. Cumpre lembrar que, enquanto na Europa e, mais tarde nos Estados Unidos, procedia- se à revolução em todas as esferas da vida social, inclusive nas relações pessoais e na família, deslanchada pelo “novo” modo de produção que ali se estabelecia, no Brasil, como nos demais países da América Latina, ainda se vivia sob um regime colonial, escravocrata, patriarcal. (COSTA; SARDENBERG, 2008. P. 32).

25 26

Idem. Ibidem.

27

Nas primeiras décadas do século XX, a urbanização e a industrialização continuam a propiciar mudanças sociais. Em 1932, por exemplo, o voto feminino entrou na pauta das eleições. (PRIORE, 2013. P. 427). Continuava-se a exigir o matrimônio fosse essencial na vida feminina, no entanto. Um decreto assinado pelo presidente Getúlio Vargas em 1941 instituía que a mulher fosse educada para desejar um casamento, assim como a maternidade e a competência para criar os filhos. (PRIORE, 2013. P. 528). Em meio às tentativas de manutenção de seu papel social até então, inclusive com apoio da imprensa feminina, no decorrer dos anos 1970, que investia na figura da mãe e da dona de casa, embora descontente (PRIORE, 2013. P. 229), as diferentes gerações femininas passam a tentar um novo caminho:

Espremida entre uma educação antiquada e os ventos de um feminismo que ainda não entendera, a mulher casada brasileira rompeu um ciclo – fora educada pela mãe de modo muito semelhante ao que já ensinara a avó, no entanto dava à filha conselhos que construiriam gerações de mulheres diferentes. Era a última geração de donas de casa nas grandes cidades do país e, sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo. A velhas expressões „prendas do lar‟ e „doméstica‟ começavam a cair em desuso. Elas educavam as filhas para serem mulheres preferencialmente casadas, mas 30 independentes. (PRIORE, 2013. P. 5 ).

Nossa sociedade passa a viver sem a divisão fixa entre papéis femininos e masculinos e também sem a definição sobre quais esferas, privadas ou públicas, ambos poderiam circular. Vê-se a ascensão das mulheres no mercado de trabalho, assim como o progresso científico e de métodos de contracepção. (PRIORE, 2013. P. 731). Além disso, a participação feminina em grupos comunitários durante os anos 1970 permitiu a presença de mulheres em comissões jurídicas e femininas que buscavam melhorias nas condições de vida nas principais cidades brasileiras. É importante destacar também a contribuição das mulheres no processo de elaboração da Constituição de 1988, garantindo que os “vários direitos relativos à 27

Em “De um século a outro”. Idem. 29 Em “O anel que tu me deste era vidro e se quebrou”. 30 Em “Anos 1980: Primeiros resultados”. 31 Em “Anos 1980: Primeiros resultados”. 28

28

vida e ao trabalho feminino foram definidos e aprimorados.” (PRIORE, 2013. P. 2 e P. 332). Ao se darem conta das condições desprivilegiadas de trabalho com relação aos homens, as mulheres começam a tentar subverter a ordem vigente (COSTA; SARDENBERG, 2008. P. 25).

Essa é uma das características principais do movimento feminista contemporâneo e que o qualifica como verdadeiramente “revolucionário”. É um movimento social que não apenas renasce, mas também cria estratégias de luta – sua práxis política – a partir da troca de experiência e vivência das mulheres, e de sua reflexão coletiva. Desse processo, vem a constatação de que os problemas que as mulheres vivenciam enquanto indivíduos, no seu cotidiano, têm raízes sociais e requerem, portanto, soluções coletivas. Daí a afirmativa, “o pessoal é político”, como retórica fundamental do feminismo contemporâneo. (COSTA; SARDENBERG, 2008. P. 30).

A chegada das mulheres ao mercado de trabalho, aliás, coincidiu com o predomínio da negociação e da mediação como modos de resolução de conflitos, preferíveis ao autoritarismo que vigorava, conforme explica Del Priore: “A cooperação e a solidariedade, a assistência ao outro esvaziaram o espírito de competição e egoísmo.” (PRIORE, 2013. P. 5 e P. 633). A noção de colaboratividade pode ser compreendida, então, como uma característica das mulheres desenvolvida a partir de uma estrutura patriarcal que destinava a elas um papel social secundário, embora primordial. A mudança de paradigma, tanto no contexto internacional quanto no nacional fez com que, de acordo com Del Priore, as sociedades ocidentais experimentassem um processo de feminização tanto na organização do trabalho quanto no modo de vida que levamos, sobretudo com relação ao consumo e a comunicação. (PRIORE, 2013. P. 6 – Trabalho da mulher). Foram as mulheres americanas ligadas a outros movimentos sociais e com visão política de esquerda, que inicialmente propuseram a troca de experiências de vida por meio de grupos de conscientização ou de reflexão. (COSTA; SARDENBERG, 2008. P. 31).

32 33

Em “Trabalho de mulher e mulher no trabalho”. Idem.

29

Compreender tal transformação no âmbito das mídias digitais, retratando a importância da participação feminina no jornalismo colaborativo, é o desafio deste trabalho. 2.2.2 Feminismo ciberjornalístico colaborativo Se nos primórdios a internet parecia um ambiente pouco afeito à participação das mulheres, atualmente a presença feminina mostra-se marcante, muito embora existam dificuldades de inserção em áreas mais técnicas do ciberespaço, como em programação. De acordo pesquisa feita pelo Ibope Inteligência entre julho e dezembro de 2014, as mulheres representam 53% dos usuários de internet no Brasil (IBOPE, 2015). E elas são as principais responsáveis por debates envolvendo questões de gênero no ciberespaço nacional, em busca de mudanças na maneira como a mídia representa a figura feminina. Isso pode ser explicado porque blogs e sites brasileiros voltados para a causa feminista constantemente abrem espaço para colaboração do público, não se baseando apenas na produção ciberjornalística de autoras ou de coletivos de autoras responsáveis por esses espaços online. A prática jornalística colaborativa no Brasil, independente dos veículos da grande mídia, revela-se bastante associada aos blogs e às redes sociais, pois são as ferramentas que permeiam a interatividade e aproximam as duas pontas da comunicação, permitindo aos usuários manterem canais próprios de publicação. Espaços automatizados geralmente gratuitos para publicação de conteúdo, tanto os blogs como as redes sociais permitem que qualquer um publique e expresse opiniões que, no ciberespaço, podem ter alcance maior do que produtos feitos por grandes empresas de comunicação. Segundo Francisco Madureira, “O fenômeno parte do princípio que qualquer cidadão é um jornalista em potencial e pode contribuir para a construção do noticiário.” (MADUREIRA, 2010. P. 14) Os blogs parecem ser a ferramenta preferida das feministas para o processo de colaboração jornalística no Brasil, em conjunto com as redes sociais. Febre na internet desde que surgiram, em 1997, abarcam expressões e opiniões que não figuram constantemente nos portais mais bem posicionados da internet brasileira,

30

como é o caso da temática feminista – apesar de um ou outro nome de destaque no movimento ter conquistado espaço (parceria) em muitos desses veículos. Especificamente no segmento online feminista, destacamos os blogs Blogueiras Feministas e Blogueiras Negras como principais influenciadores identificados para esta pesquisa. Em comum, ambos possuem o feminismo como tema central das postagens em suas plataformas. No último capítulo descreveremos mais detalhadamente cada um dos veículos de comunicação. A integração entre jornalismo online e ativismo feminista acontece por meio dos dois blogs escolhidos, além de em outros blogs, sites e páginas em redes sociais relevantes como Escreva Lola Escreva, Lugar de Mulher e Think Olga, que divulgam campanhas de conscientização dos direitos femininos na sociedade, abordam questões relacionadas a aborto, condições de trabalho, violência física e psicológica e o acesso à educação. Em alguns casos, o recorte para estas questões é ainda mais específico e trata das dificuldades de se ser mulher e negra, caso do Blogueiras Negras. Diferentemente de outros casos de colaboração jornalística entre empresas de mídia e usuários, o jornalismo colaborativo pautado pelo feminismo não está baseado em portais, embora em alguns casos ações e parcerias façam com que se desdobrem para este rumo. Majoritariamente, são mais espaços de discussão como blogs que permitem que usuárias feministas compartilhem suas impressões e opiniões sobre temas que entendem como pertinentes à causa. Sem a possibilidade dos blogs, no entanto, esse canal feminista com os meios de comunicação da grande imprensa talvez nem existisse atualmente. Foi por causa da relevância que blogs adquiriram nas redes sociais que essas empresas passaram a enxergar o potencial informativo e, com isso, diversificar o modo estereotipado como a mulher é construída pela mídia. Ainda há muito o que reformular, o sexismo ainda é marcante na sociedade, mas os blogs parecem estar cumprindo bem a função de conscientizar os cidadãos que navegam pela web. É por meio dos blogs, principalmente, que a voz das mulheres feministas ganha o espaço público e subverte a ordem sexista vigente. Com base nos preceitos do jornalismo, o modelo de colaboração parece ser pautado pela apuração em torno dos temas comuns ao movimento feminista, tendo

31

suas publicações em blogs, sites e páginas de redes sociais checadas pelas usuárias, em um esquema que parece se retroalimentar e gerar debates para além da questão primordial lançada. O agir colaborativo, associado ao jornalismo existe desde antes da profissionalização em escala industrial da área. Algo que remonta ao século XIX, mas que tomou forma a partir dos anos 1990, quando nos Estados Unidos “um movimento que buscava resgatar a participação do público na produção dos conteúdos jornalísticos, definido como jornalismo cívico ou público, que evoluiu para participativo ou cidadão, também denominado open source, ou de fonte aberta.” (SCHWINGEL, 2012. P. 2 e P. 334). Este movimento passou a ter força, ainda nos Estados Unidos, durante as eleições de 2002, período em que aproximadamente vinte veículos de comunicação do país tentaram ações de aproximação com o público por meio de pesquisas promovidas pela The Pew Charitable Trusts, que criou a Pew Center for Civic Journalism. (SCHWINGEL, 2012. P. 3 e P. 435). Pierre Lévy defende que a comunicação mediada em ambiente digital tornouse possível por causa de um movimento organizado por jovens cultos no fim da década de 1980, culminando na invenção e no desenvolvimento da World Wide Web, criada por uma equipe de pesquisadores do CERN, em Genebra (Suiça), ao longo dos anos 1990 – sem a interferência de grandes empresas da informática, como a Microsoft ou a IBM (LÉVY, 2010. P. 228). Foram os próprios usuários, cibernautas, conforme definição de Pierre Lévy, e pesquisadores os responsáveis por configurar um ambiente onde o compartilhamento de informações e a criação coletiva pudessem culminar no modelo de internet que conhecemos hoje, com suas redes sócias coletivas e até mesmo com espaço para que veículos independentes possam se desenvolver. “Aqueles que fizeram crescer o ciberespaço são em sua maioria anônimos, amadores dedicados a melhorar constantemente as ferramentas de software de comunicação, e não grandes nomes, chefes de governo, dirigentes de grandes companhias cuja mídia nos satura.” (LÉVY, 2010. P. 128) O ciberespaço, de acordo com Lévy, nada mais é do que “a ferramenta de organização de comunidades de todos os tipos e tamanhos em coletivos inteligentes” (LÉVY, 2010. P. 135), permitindo que as pessoas possam interagir 34 35

Em “O jornalismo colaborativo”. Idem.

32

entre si sem a necessidade de um órgão „oficial‟ – seja ele um veículo de comunicação privado ou uma instituição pública - como intermediário. Podemos dizer, então, que para o jornalismo colaborativo se desenvolver faltava apenas tempo. Tempo esse que considera espaços para interconexão, a criação de comunidades virtuais e a inteligência coletiva, propostos por Lévy em sua análise da cibercultura. Quando as pessoas não ligadas às questões estruturais da internet encontraram espaços automatizados para manifestar suas opiniões, os fenômenos dos blogs e das redes sociais consolidaram-se e desdobraram-se para a prática do jornalismo colaborativo no ciberespaço. Para que a colaboração possa ser de troca positiva na comunidade virtual onde ela se desenvolve, unida por afinidades de interesse como a questão do feminismo, por exemplo, algumas regras de conduta são aplicadas. “A moral implícita da comunidade virtual é em geral a da reciprocidade.”, afirma Pierre Lévy (LÉVY, 2010. P. 130). Sendo assim, mesmo que diversos integrantes de uma mesma comunidade não se conheçam, por distanciamento geográfico, por exemplo, eles compreendem a necessidade de publicar informações e opiniões pertinentes, pois o ciberespaço é composto também por membros atentos e interessados no compartilhamento de saber e projetos. “(...)longe de encorajar a irresponsabilidade ligada ao anonimato, as comunidades virtuais exploram novas formas de opinião pública.” (LÉVY, 2010. P. 131). O movimento feminista pretende redefinir a identidade da mulher na sociedade patriarcal e teve, no decorrer de sua história, diferentes fases. Entretanto, conforme afirma Manuel Castells, “Em todos os casos, seja por meio da igualdade, da diferença ou da separação, o que é negado é a identidade da mulher conforme definida pelos homens e venerada na família patriarcal.” (CASTELLS, 1999. P. 211). A diversidade é uma das principais características do movimento feminista em todo o mundo. Isso porque, embora voltado para o debate de questões que envolvem mulheres, a discussão adquire diferentes nuances de acordo com as realidades vividas em cada país, por cada etnia e cultura. Com o advento da internet, observar tal diversidade unificada ficou ainda mais fácil. A profusão de áudios, fotos, textos e vídeos distribuídos em blogs, sites e páginas

33

de redes sociais, sobretudo Facebook, Twitter e Instagram, dedicados ao universo das mulheres, com viés feminista ajuda-nos a compreender a dinâmica atual.

Enquanto as pioneiras que redescobriram o feminismo nos anos 60 eram, em sua esmagadora maioria, brancas, de classe média e alto nível educacional, nas três décadas seguintes os temas feministas focalizaram as lutas das mulheres afro-americanas, latinas e de outras minorias étnicas em suas respectivas comunidades. Por meio de sindicatos e organizações autônomas, operárias mobilizaram-se em torno de suas exigências, aproveitando-se da legitimidade outorgada às lutas feministas. O resultado foi uma diversificação cada vez maior do movimento feminista e certa falta de clareza quanto à autodefinição feminista. No entanto, de acordo com pesquisas de opinião, a partir de meados da década de 80 a maioria das mulheres aderiu positivamente aos temas e as causas feministas, justamente porque o feminismo não se associava a nenhuma posição ideológica. O feminismo tornou-se palavra (e o estandarte) comum contra todas as causas da opressão feminina à qual cada mulher, ou categoria feminina, vincularia seus lemas e reivindicações. (CASTELLS, 1999. P. 219)

Castells nos dá esse panorama com foco nos Estados Unidos. No entanto, o movimento feminista online brasileiro, conforme conseguimos perceber por meio da pesquisa para este trabalho, enfrenta certas dificuldades para inserir pautas que abranjam também questões em torno da vida das mulheres negras, sobretudo em um país com expressiva parcela populacional negra feito o Brasil, tema que será aprofundado nos capítulos seguintes. Faz se, então, necessária à fragmentação feminista em múltiplas identidades autoconstruídas, com base na etnia ou na nacionalidade, conforme Castells, para que o feminismo possa permanecer transgressor da cultura patriarcal: “(...) Assim, a autoconstrução da identidade não é expressão de uma essência, mas uma afirmação de poder pela qual mulheres se mobilizam para mudar de como são para como querem ser. Reivindicar uma identidade é construir poder.” (CASTELLS, 1999. P. 235) Se em meados dos anos 1960, a divisão entre feministas liberais e radicais era mais acirrada, sobretudo nos Estados Unidos, a partir da década seguinte as pautas relacionadas a direitos iguais para mulheres e homens, defendidas pelas feministas liberais, e as tentativas de conscientização para abusos que vitimam mulheres, defendidas pelas feministas radicais, uniram-se e seguem espelhando as novas gerações de feministas, agora na internet. “A defesa dos direitos da mulher é

34

o ponto crucial do feminismo. (...) Nesse sentido, o feminismo é positivamente uma extensão do movimento pelos direitos humanos. (CASTELLS, 1999. P. 230). Embora a rede seja apta a receber todos, nem todos estão, de fato, nela incluído. Sobretudo na condução de projetos de desenvolvimento de ferramentas para navegação e na capacidade de interconectar mulheres por meio de comunidades virtuais. A constatação dessa dificuldade, entre outras coisas, fez com que surgisse, nos idos dos anos 1990, uma versão repaginada do feminismo: o ciberfeminismo. É ele quem nos oferece uma nova perspectiva para a causa feminista no ciberespaço, ao conquistar lugar para que mulheres e seus dilemas sociais possam debater e questionar padrões também na internet. O ciberfeminismo social é o recorte que mais se aproxima da proposta de jornalismo colaborativo feminista, considerando que a proposta inicial do ciberfeminismo está atrelada basicamente à noção de ocupação da internet por meio da produção artística. Ele é a vertente, concebida nas cidades de Nova Iorque (Estados Unidos) e Londres (Inglaterra) no decorrer dos anos 1990, que permitiu às mulheres organizarem e utilizarem as primeiras redes sociais da Internet como estratégia de comunicação. (BOIX in Internet em código feminino. La Crujía, 2013. P. 68). O surgimento do ciberfeminismo, no início dos anos 1990, está ligado ao aparecimento das primeiras redes de computadores, como BBs e intranets, e não possui um local de origem definido, pois despontou em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, sendo que com mais destaque na Austrália e em países da América do Norte e Europa. Nascido muito antes da criação da World Wide Web, o ciberfeminismo tem na publicação do Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX escrito pela bióloga Donna Haraway em 1984 a margem para seu desenvolvimento. (LEMOS, 2009. P. 7 e P. 12) Donna defende a necessidade de rompimento com a teoria marxista e também com o feminismo radical e outros movimentos sociais que, de acordo com ela, não souberam dialogar com categorias como classe, raça e gênero, conforme explica Marina Gazire Lemos:

35

Sendo assim, seria necessário romper com essa política da identidade e substituí-la pelas diferenças e por uma coalizão política baseada na afinidade e não numa identificação concebida como “natural”. O ciborgue seria, assim, o modelo, o mito fundante dessa nova política de identificação construída a partir da afinidade, longe da lógica da apropriação de uma única identidade. A partir disso iniciam-se as discussões e análises do processo de construção desses novos modos de discurso em redes eletrônicas e suas relações com os movimentos de identidade. (GAZIRE, 2010).

Múltiplo

desde

seu

nascimento,

o

ciberfeminismo

diferencia-se

dos

movimentos feministas das décadas de 1960 e 1970, que se fragmentavam por constantes divergências, por usufruírem da internet como forma de reunião e a fim de compartilhar ideias entre seus diferentes núcleos ciberfeministas para discutir, sobretudo, questões ligadas ao gênero e à tecnologia. (GAZIRE, 2010). De acordo com a dissertação de mestrado de Marina Gazire Lemos, o ciberfeminismo, em suas variadas vertentes, buscava inserir a mulher em profissões relacionadas às novas tecnologias, fazendo com que ocupássemos as redes eletrônicas e, a partir disso, tivéssemos acesso à palavra pública que, no decorrer da história patriarcal, nos foi relegada. (LEMOS, 2009. P. 12) Ele predominou no decorrer da década de 1990 e início dos anos 2000 e trouxe o debate sobre o distanciamento da mulher do ambiente tecnológico em um período em que as novas tecnologias despontavam e a cibercultura ganhava força. Se durante a década de 1960 o vídeo e os veículos de comunicação em massa davam suporte ao movimento feminista, o ciberfeminismo adentrou “um complexo território tecnológico e também político” (LEMOS, 2009. P. 37) para compreender e questionar desigualdades de gênero.

Como a tecnologia influência na formação dos gêneros; como a Internet permite escapatória à discriminação a partir do anonimato dos gêneros; porque os geeks da informática são desproporcionalmente homens, foram algumas das questões que, independente do surgimento do Ciberfeminismo, apareceram pelo fato da Internet se tornar uma mídia popular entre mulheres como forma de ferramenta para o ativismo. Essas foram algumas das questões levantadas pelas ciberfeministas, independente da diferentes correntes teóricas. (LEMOS, 2009. P. 55).

O ciberfeminismo se desenvolveu, sobretudo, em países europeus e na Austrália, onde a arte e o ativismo deram as cartas do movimento. No Brasil, por

36

causa do contraste cultural, econômico e educacional que vivenciamos em diferentes estados, a prática ciberfeminista esteve associada a principalmente a projetos de cunho social, mas que também tinham interesse em introduzir no contexto tecnologia o engajamento político diário das mulheres. (LEMOS, 2009. P. 87 e P. 88) Nem todos os usuários que interagem por meio dos blogs, sites e páginas de redes sociais com cunho feminista compreendem a necessidade do rótulo feminista. Esse modelo está bastante ligado ao modo como o feminismo se desenvolveu no Brasil e em outros países em desenvolvimento. Por isso, a interação de feministas declaradas, mantenedora dos canais de comunicação, e usuários que não têm consciência de que se opõem ao patriarcado, mostra-se tão relevante para a causa no ciberespaço brasileiro, tendo em vista que nas mídias clássicas (online e off-line) as questões feministas ganham espaço esporadicamente – quase sempre ocupando as páginas policiais, com os agora classificados crimes de feminicídio. Sendo assim, é interessante para usuários dispostos a discutir sobre questões feministas usufruírem de espaço nos blogs, sites e páginas nas redes sociais porque, conforme explica Chris Anderson em seu A Cauda Longa: “Hoje, milhões de pessoas lançam publicações diárias para um público que, no conjunto, é maior que o de qualquer veículo da grande mídia. Por sua vez, os blogs são consequência da democratização das ferramentas: o advento de softwares e de serviços simples e baratos que facilitam a tal ponto a editoração on-line que ela se torna acessível a todos.” (ANDERSON, 2006. P. 61) A

facilidade

na

gestão

desses

espaços,

conforme



explicamos

anteriormente, explica a difusão de canais pelo ciberespaço. As pessoas não esperam mais por um sinal, elas vão lá e fazem acontecer. Mesmo assim, paira a dúvida sobre credibilidade na rede. Tal como acontece com os veículos da mídia clássica, nem tudo que se publica, de fato, corresponde à realidade. Vivemos em meio à profusão de diferentes pontos de vista e objetivos e, mesmo que o movimento feminista tenha uma causa em comum, a diversidade vez ou outra pode irromper em postagens cheias de inverdades. “Os blogs são uma forma de Cauda Longa e é sempre um erro generalizar sobre a qualidade ou natureza do conteúdo na Cauda Longa – ela é, por definição, variável e diversa.

37

Mas, em conjunto, os blogs estão se revelando tão fidedignos quanto a grande mídia ou até mais confiáveis. Apenas é necessário ler mais de um deles para decidir.” (ANDERSON, 2006. P. 67) A revolução está posta, e o movimento feminista se aproveita disso para difundir ainda mais seus preceitos pela rede, agora sem intermediários na comunicação:

“Se uma mudança na sociedade fosse facilmente compreendida de imediato, não seria uma revolução. E a revolução está, hoje, centrada no choque da inclusão de amadores com produtores, em que não precisamos mais pedir ajuda ou permissão a profissionais para dizer as coisas em 36 público.” (SHIRKY, 2011. P. 46 e P. 47 ).

36

Ibidem.

38

3. Raça e feminismo no contexto das mídias digitais O debate acerca da condição da mulher negra brasileira, dentro do feminismo difundido por meio dos blogs, como estopim do diálogo acerca do preconceito arraigado na sociedade. A colaboração jornalística feminista, quando se trata de questões raciais, almeja integrar e discutir realidades sociais distintas? Pesquisas teóricas e uma entrevista com Bianca Santana, jornalista, especialista em cultura digital e mestre em educação podem nos ajudar a compreender. 3.1 As mulheres negras e o feminismo O feminismo negro é reconhecido como integrante da segunda onda do feminismo, ocorrida entre os anos 1960 e 1980, por meio da fundação do National Black Feminist, nos Estados Unidos, e da ação de mulheres negras que passaram a escrever sobre o assunto (RIBEIRO, 2015). Entretanto, o questionamento da mulher negra sobre ser mulher na sociedade já acontecia. Em 1851, Sojourner Truth, ex-escrava que se tornou oradora, discursou sobre „E eu não sou uma mulher?‟ durante a Convenção dos Direitos das Mulheres no estado americano de Ohio:

Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também agüentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? (RIBEIRO, 2015).

Sobre esse depoimento, Djamila Ribeiro afirma que ele elucida as diferenças de situações vividas por mulheres brancas e negras. “Enquanto àquela época mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto, ao trabalho, mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas.” (RIBEIRO, 2015). É nos anos 1980 que o feminismo ganha visibilidade no Brasil, por meio do 3º Encontro Feminista Latino-americano, em 1985. (RIBEIRO, 2015). Nesse período,

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surgem os primeiros coletivos de mulheres negras que adotam a identidade feminista, outrora rejeitado em décadas anteriores, o que acontecia pelo fato de as negras “não se identificarem com um movimento até então majoritariamente branco e de classe média” e também “pela falta de empatia em perceber que as mulheres negras possuem pontos de partidas diferentes, especificidades que precisam ser priorizadas.” (RIBEIRO, 2015).

É que nos últimos anos, como sabemos, o feminismo no Brasil cresceu, se multiplicou, deixou de ser o Movimento Importado para se tornar algo mais tipicamente brasileiro. Saiu dos guetos militantes e ganhou as ruas, mobilizando no trajeto amplos contingentes de mulheres dos mais diferentes segmentos da população. Ademais, penetrou também nas plataformas partidárias e nas pautas de reivindicações sindicais, abrindo espaços até mesmo nos redutos mais conservadores da sociedade (na polícia, por exemplo), através dos vários Conselhos e Delegacias de Mulheres. Sem esquecer que alcançou também as tribunas do Parlamento, conquistando a transformação de “bandeiras de luta” em direitos constitucionais, extensivos a todas as brasileiras. (COSTA; SARDENBERG, 2008. P. 13).

A dificuldade das feministas brancas em compreender as diferenças entre pontos de partida acaba por afastar mulheres que deveriam estar unidas por uma causa comum, uma vez que há a reprodução de velhas lógicas de opressão, de acordo com Djamila Ribeiro.

Em O Segundo sexo Beauvoir diz: “se a questão feminina é tão absurda é porque a arrogância masculina fez dela uma querela e quando as pessoas querelam não raciocinam bem”. E eu atualizo para a questão das mulheres negras: se a questão das mulheres negras é tão absurda é porque a arrogância do feminismo branco fez dela uma querela e quando as pessoas querelam não raciocinam bem. (RIBEIRO, 2015).

Bianca Santana, assim como Djamila Ribeiro, também aponta para a dificuldade do movimento feminista em compreender que existem diferenças entre as mulheres que buscam representar. O que leva a criação de correntes diversas, como a formada por “mulheres brancas, eurocêntricas, acadêmicas, ricas e até racistas.” (SANTANA, 2014). Jornalista, especialista em cultura digital e mestre em educação, Santana, em entrevista concedida a autora, na cidade de São Paulo, em 2015, observa com

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alegria e preocupação a possibilidade de se debater o racismo que a comunicação via internet imprime ao movimento feminista brasileiro. Sobretudo por ver "conflitos agressivos, discursos de ódio, generalizações" em torno de um tema importante que finalmente ganha destaque na rede. Referência mundial em determinados temas que envolvem as mulheres, o movimento feminista brasileiro é, de acordo com Sueli Carneiro, “um dos movimentos com melhor performance dentre os movimentos sociais do país.” (CARNEIRO, 2003). Ela cita a aprovação de cerca de 80% de aceitação das propostas que compõem a Constituição de 1988, incluindo a destituição do pátrio poder, para exemplificar o poder desse movimento. (CARNEIRO, 2003). Entretanto,

Carneiro

também

denuncia

o

caráter

eurocêntrico

e

universalizante adotado pelo feminismo brasileiro durante certo tempo, o que acarretou a permanência no silêncio e na invisibilidade de “vozes silenciadas e [de] corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo”, caso das mulheres negras. (CARNEIRO, 2003). O advento da consciência social da mulher negra e indígena, exigiu a reelaboração do discurso e das práticas políticas do feminismo aplicado em território nacional: Enegrecendo o feminismo é a expressão que vimos utilizando para designar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro. Buscamos assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica feminista, de um lado; e, de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirraciais e pluriculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda específica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero; afirmamos e visibilizamos uma perspectiva feminista negra que emerge da condição específica do ser mulher, negra e, em geral, pobre, delineamos, por fim, o papel que essa perspectiva tem na luta anti-racista no Brasil. (CARNEIRO, 2003).

Qual é, afinal, o papel social da mulher negra no Brasil? Para Rosana Paulino, é um papel aglutinador:

Mães de santo, benzedeiras, parteiras, comerciantes, depois professoras, costureiras, atrizes, doutoras, pesquisadoras, etc., a mulher negra tem se

41

colocado

na

linha

de

frente

do

desenvolvimento

da

população

negrodescendente no país. (PAULINO, 2011. P. 82).

De acordo com Paulino, são as líderes religiosas de comunidades negrodescendentes que desempenham com mais ênfase a transmissão do conhecimento da cultura negra ao reunirem informações que podem ser obtidas por meio das roupas que as mães de santo vestem e de como são adornadas. (PAULINO, 2011. P. 82).

Diversificando o olhar sobre o que é desigualdade de gêneros, politizando essa questão, o movimento feminista passa a ampliar a abrangência das lutas pelas quais se propõe protagonizar, incluindo e compreendendo as necessidades específicas que envolvem grupos de mulheres negras e indígenas. (CARNEIRO, 2003).

Incluir o racismo como aspecto de associação às causas que envolvem mulheres se faz necessário uma vez que essa infelicidade histórica produziu gêneros subalternizados e estigmas tanto para a identidade feminina quanto para a masculina do povo negro. (CARNEIRO, 2003).

Em face dessa dupla subvalorização, é válida a afirmação de que o racismo rebaixa o status dos gêneros. Ao fazê-lo, institui como primeiro degrau de equalização social a igualdade intragênero, tendo como parâmetro os padrões de realização social alcançados pelos gêneros racialmente dominantes. Por isso, para as mulheres negras atingirem os mesmos níveis de desigualdades existentes entre homens e mulheres brancos significaria experimentar uma extraordinária mobilidade social, uma vez que os homens negros, na maioria dos indicadores sociais, encontram-se abaixo das mulheres brancas. (CARNEIRO, 2003).

É a dialética que torna o diálogo entre feministas brancas e negras mais próximo. Por meio dela, a diversificação de vivências promove a afirmação feminina enquanto novos sujeitos políticos ao mesmo tempo em que reconhece a diversidade e as desigualdades que permeiam essa relação entre mulheres. (CARNEIRO, 2003).

42

O caminho para a consideração da demanda das mulheres negras dentro do movimento feminista nacional não foi, no entanto, tão fácil:

A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras e brancas no Brasil. (CARNEIRO, 2003).

A conscientização e partida para um feminismo negro vem sendo promovida desde a década de 1980, fomentando fóruns e debates sobre as condições específicas às quais mulheres negras estão submetidas em nossa sociedade. (CARNEIRO, 2003). Exemplo disso é a questão da autonomia do corpo, um dos fatores de diferenças entre mulheres brancas e negras no feminismo. Enquanto uma parte luta por ressignificar palavras pejorativas como “vadia”, expondo o corpo nu como forma de protesto, outra parcela segue sendo explorada arbitrariamente (SANTANA, 2014):

Mulheres brancas são percebidas como frágeis. Mulheres negras, por outro lado, são quase sempre chamadas de fortes. Nossos corpos nus são expostos na televisão antes, durante e depois do carnaval. Nós trabalhamos fora de casa desde sempre. E não temos acesso à justiça. A justiça no Brasil ter uma cor muito específica: ela é branca. (SANTANA, 2014).

Como dar um novo sentido a opressão vivida por mulheres negras, pobres e pretas,

com

relação

aos

seus

corpos

vistos

como

objetos

sexuais

despudoradamente explorados pela mídia? De acordo com Santana, muitos movimentos populares e de mulheres negras não acreditam que a autonomia sobre o corpo como “direito a ser vadia e explorar a nudez” seja possível no caso das mulheres negras. E esse passa a ser, então, um ponto conflituoso dentro do movimento feminista nacional. (SANTANA, 2014). Quanto aos meios de comunicação, Carneiro aponta que eles “vêm se constituindo em um espaço de interferência e agendamento de políticas do

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movimento de mulheres negras”, tendo em vista a maneira como a representação das negras se dá – por meio da naturalização do racismo e do sexismo que culminam em “estereótipos e estigmas que prejudicam, em larga escala, a afirmação de identidade racial e o valor social desse grupo”. (CARNEIRO, 2003).

Se partimos do entendimento de que os meios de comunicação não apenas repassam as representações sociais sedimentadas no imaginário social, mas também se instituem como agentes que operam, constroem e reconstroem no interior da sua lógica de produção os sistemas de representação, levamos em conta que eles ocupam posição central na cristalização de imagens e sentidos sobre a mulher negra. Muito tem se falado a respeito das implicações dessas imagens e dos mecanismos capazes de promover deslocamentos para a afirmação positiva desse segmento. (CARNEIRO, 2003).

Paulatinamente,

conforme

Carneiro

demonstra,

percebemos

que

as

mudanças sociais ocorridas no Brasil nos anos 2000 permitem o aumento da participação feminina negra na mídia em situações que diferem de posições subalternas como papeis em novelas onde negras não necessariamente fazem o papel de empregadas. Há ainda mudanças mais radicais a serem feitas. (CARNEIRO, 2003).

As mulheres negras vêm atuando no sentido de não apenas mudar a lógica de representação dos meios de comunicação de massa, como também da capacitar suas lideranças para o trato com as novas tecnologias de informação, pois falta de poder dos grupos historicamente marginalizados para controlar e construir sua própria representação possibilita a crescente veiculação de estereótipos e distorções pelas mídias, eletrônicas ou impressas. (CARNEIRO, 2003).

3.2 Retrato da mídia à moda brasileira: questões de igualdade, gênero e raça A construção de uma mídia igualitária é uma das metas dos movimentos sociais brasileiros, entre eles o movimento negro. Resultado da parceria entre a Federação Nacional dos Jornalistas e a ONU Mulheres, criou-se uma proposta para profissionais de jornalismo no país pudesse produzir conteúdos que refletissem a

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diversidade de pessoas em nossa sociedade, sobretudo com relação às questões de gênero, raça e etnia. (BASTHI, 2011. P. 8).

Há alguns anos – e, particularmente, desde a Primeira Conferência Nacional pela Democratização da Comunicação (1ª Confecom), realizada em 2009 – vem sendo amadurecido o debate para a construção de um novo marco regulatório da comunicação que irá reordenar o sistema de comunicação do país. Entre as suas metas, está uma nova plataforma política, institucional e jurídica a partir da construção de uma mídia mais plural e representativa da diversidade brasileira, livre de estereótipos e mais próxima das demandas da população. (BASTHI, 2011. P. 13).

A luta por uma mídia que inclua mais as mulheres, especialmente as que pertencem às populações negra e indígena, tem muito a ver com o fim da dominação masculina, assim como da discriminação de gênero, raça e etnia, incluindo ainda “a eliminação de todas as formas de exclusão e perseguição às mulheres jornalistas nas redações de jornais, rádios, revistas, televisões e mídias digitais.”. (BASTHI, 2011. P. 13 e P. 14). Sobre os hábitos de consumo de mídia pela população brasileira, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República divulgou pesquisa, realizada em 2014, apontando que o brasileiro gasta cinco horas por dia com internet, sendo que metade (48%) usa esse meio de comunicação no país. (BRASIL, 2014. P. 7). O perfil de quem acessa a internet diariamente é formado por 65% de jovens em contraponto aos 4% de usuários com mais de 65 anos, sendo que 76% dos usuários possui ensino superior completo. A pesquisa foi feita em parceria com o Ibope e entrevistou mais de 18 mil pessoas em 848 municípios. (BRASIL, 2014. P. 7). De maneira geral, a população negra concentra-se mais nas faixas jovens do que a população branca, presente, sobretudo, nas faixas etárias mais elevadas. Especificamente no caso das mulheres essa diferença também é perceptível:

Enquanto 42,6% das negras tinham até 24 anos, as mulheres brancas na mesma faixa de idade respondiam por 37,1%. No outro extremo, tem- se que as negras de 60 anos ou mais eram apenas 10,3% do total, enquanto as brancas alcançaram 14%. Apesar de ser uma diferença pequena, é possível levantar algumas hipóteses relacionadas aos maiores índices de violência enfrentados pelos(as) jovens negros(as) e pela maior dificuldade

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de acesso aos serviços de saúde e infraestrutura social por parte da população negra. Isto significa, portanto, uma menor expectativa de vida para a população negra em comparação à branca. (MARCONDES et al., 2013. P. 24).

De acordo com a pesquisa, a internet se consolida como a terceira principal mídia no país, alcançando a preferência de 42% dos brasileiros (93% preferem TV e 46%, rádio). Esses usuários, 67%, estão em busca de informações – notícias diversas quando acessam a internet. É importante considerar que 92% dos entrevistados fazem uso de redes sociais, sendo que o Facebook desponta como a rede preferida com 83%. Em seguida vem WhatsApp, 58%, YouTube, 17%, Instagram, 12%, Google Plus, 8%, e Twitter, que concentra a elite política e formadora de opinião, com 5%. (BRASIL, 2014. P. 49 e P. 50). Sendo a mídia reprodutora de estereótipos que envolvem a parcela da população historicamente discriminada, o que se percebe é a manutenção de comportamentos sexistas e racistas na internet, por exemplo, baseados na lógica etnocentrista, que só provocam sofrimentos e contribuem para a continuidade de uma sociedade desigual. (BASTHI, 2011. P. 14).

A combinação do sexismo, do racismo e do etnocentrismo na mídia constitui uma violação dos direitos humanos à comunicação e contribui para a manutenção de um Brasil com alto índice de desigualdades e produtor de estereótipos, preconceitos e estigmas sobre as mulheres e, em especial, sobre mulheres negras e indígenas. (BASTHI, 2011. P. 14).

Mesmo com as tentativas de mudança por parte de setores da imprensa, a maior parte do conteúdo noticioso continua insistindo em uma linguagem que retrata mulheres

negras

e

indígenas

deslocadas

da

realidade

em

que

vivem,

majoritariamente, e apresentando-as ao público com periodicidade irregular. (BASTHI, 2011. P. 14).

Ainda que ocupe o lugar de defensora da liberdade de imprensa e de expressão, a mídia tem se revelado incapaz de identificar e propor mudanças rápidas e eficazes para o tratamento preconceituoso, desigual e discriminatório às mulheres e, em especial, às mulheres negras e indígenas. (BASTHI, 2011. P. 14).

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Apesar desse quadro, nos últimos anos assistimos às tentativas das mulheres brasileiras em modificar a forma como são retratadas por essa mídia. Temos conquistado fatias expressivas do mercado e galgando posições em instância de poder. (BASTHI, 2011. P. 17). Especificamente com relação à atuação da mídia, as mulheres fazem uso da versão digital para questionar desde campanhas publicitárias até representações jornalísticas, sobretudo quando relacionados à crimes contra mulheres. De acordo com Basthi, estudos mostram que a mulher é tema de notícias que a mostram como vítima social, celebridade, casada com alguma personalidade importante ou como personalidade política. Constantemente, as mulheres são retratadas por meio de um discurso que privilegia a narrativa jornalística textual ou imagética sob a perspectiva do homem. (BASTHI, 2011. P. 40).

O sexismo produz um olhar perverso sobre a mulher, cuja imagem é a do objeto para consumo sexual, símbolo da sedução, descartável, superficial, submissa, sem autonomia sobre sua vida (e seu próprio corpo) e destinada a um papel secundário na sociedade. (BASTHI, 2011. P. 40).

A tríade formada por sexismo, racismo e etnocentrismo é prejudicial a toda população, uma vez que caracteriza determinados valores como positivos, no caso da população branca, enquanto estigmatiza negativamente outros, quando pertencentes às culturas negra e indígena. (BASTHI, 2011. P. 40).

Nesse contexto, os homens e as mulheres brancas aparecem diariamente na mídia como bem-sucedidos, educados, competentes, poderosos, bonitos, privilegiados, inteligentes, bem-vestidos e ricos. Já os homens e as mulheres negras e indígenas correspondem à imagem, nem sempre explícitas, de preguiçosos, burros, feios, violentos, marginais, servis, incompetentes e intelectualmente inferiores. (BASTHI, 2011. P. 40).

O feminismo negro tem como premissa a diversidade de experiências que podem ser vividas tanto por mulheres quanto por homens, além de demarcar quais são os lugares de fala de quem se propõe a analisar determinados fenômenos, de acordo com as pesquisadoras. (MARCONDES... et al., 2013. P. 38). 3.2.2 Acesso à internet pela população negra

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Quando se compara o índice de acesso aos bens de consumo e a exclusão digital, é possível notar que as questões de raça e gênero influenciam nessas demandas. “A combinação das subordinações de gênero e de raça leva aos piores resultados possíveis, como é expresso no caso das mulheres negras.”, afirma a pesquisadora Layla Daniele Pedreira de Carvalho. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 85). Analisados pela PNAD/IBGE desde 2001, o acesso aos bens de consumo e a exclusão digital referem-se à posse de computador e o aceso à internet pela população brasileira, visando a ampliação do uso e a propriedade das tecnologias de informação. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 94).

O efeito da importância da comunicação em rede e do uso dos computadores e da internet é a necessidade de promover a inclusão digital das populações, uma vez que o acesso a informações e a produção de conteúdo digital por parte dos indivíduos estão diretamente relacionados às oportunidades de inserção social mais ampla. As oportunidades de trabalho e formação educacional e profissional estão vinculadas ao acesso a computadores e ao uso da internet. A rápida evolução desta forma de economia demanda a necessidade de acelerados mecanismos para superar a exclusão digital, que se expressa pelas dificuldades de acesso ao computador e à internet; pelo analfabetismo digital, que em geral se combina com a limitação do universo cultural das pessoas; e pela cristalização do status de consumidor ou produtor de conteúdo digital. No caso da população negra, a exclusão digital reforça e perpetua as desigualdades enfrentadas e torna ainda mais difícil o acesso à educação de qualidade, a um emprego formal e às diversas formas de sociabilidade disponibilizadas pela internet. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 95).

O dossiê revela que o número de domicílios sem computador chefiados por mulheres é superior aos dos chefiados por homens dentro de uma mesma raça. Em 2001, por exemplo, os lares sem computador chefiados por mulheres correspondiam a 89,5% contra 87% dos chefiados por homens. Comparando-se apenas homens de raças diferentes, temos que 81% dos domicílios sem computador eram chefiados por homens brancos, enquanto 94,6% por negros neste mesmo ano. Esses números passaram para, respectivamente 54% e 75,1% em 2009. No caso das mulheres separadas por raça, em 2001, 85% dos lares sem computador eram chefiados por

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mulheres brancas e 95,3% por mulheres negras. Já em 2009, esses números passaram para 57,7% e 76,3% respectivamente. “Nos domicílios chefiados por mulheres negras, há não só uma maior dificuldade de acesso ao computador, mas também uma tendência mais lenta de mudança da situação da posse do bem.”, aponta Carvalho. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 95). Quando se compara esses dados entre homens e mulheres, é possível notar que a chefia de domicílios feita por mulheres brancas tem piores níveis em relação a dos homens brancos, mas é melhor em relação a chefia feita por mulheres e homens negros. O que reforça a ideia de que as desigualdades sociais baseadas na questão da raça influenciam no acesso a bens e a exclusão digital. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 96). Com relação ao acesso à internet, a maioria possui. Em 2001, 32,2% da população total não possuíam tal acesso, enquanto em 2009 essa proporção diminuiu para 21,1%. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 100).

Assim como o acesso ao computador, a desigualdade de gênero não se mostra relevante para as desigualdades de acesso à internet. Em 2001, 32,4% dos domicílios com computador chefiados por homens não tinham acesso à internet. No mesmo ano, quando considerada a chefia feminina, este número é de 31,5%, número inferior à média nacional. Em 2009, o número dos domicílios chefiados por homens com computador e sem internet evoluiu para 21,2%, e a porcentagem de domicílios nesta situação chefiados por mulheres era de 21%. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 100 e P. 101).

Entretanto, com relação a desigualdade racial esse acesso à internet mostrase relevante. Em 2011, 29% dos domicílios chefiados por brancos não possuíam acesso à internet, melhor do que a média nacional, enquanto nos domicílios chefiados por negros esse número correspondia a 42,4%, 10% acima da média nacional. No ano de 2009, estas proporções foram, respectivamente, de 18,2% e 26, 3%. As pesquisadoras justificam:

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Há duas explicações para esta redução: por um lado, é importante lembrar da tendência de que categorias que partem de situação inicial mais precária, quando há inclusão, tendem a evoluir de forma mais rápida que as que estão em melhores condições; por outro lado, pode-se remeter à percepção da vinculação entre a superação das desigualdades e a inclusão digital, influenciando a evolução mais rápida da busca por acesso a este serviço. (CARVALHO in Dossiê mulheres negras: um retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. IPEA, 2013. P. 100 e P. 101).

Quando o recorte contempla perspectivas de raça e gênero, as pesquisadoras apontam para uma trajetória parecida nos lares chefiados por pessoas negras. Se em 2001, 30,3% dos domicílios chefiados por homens brancos não possuíam acesso à internet e 28,4% dos lares com chefia feminina branca não tinham esse mesmo acesso, os lares chefiados por homens negros correspondiam a 41,9% sem acesso e a 44% no caso da chefia feita por mulheres negras. Em 2009, no entanto, o número coincide em domicílios chefiados tanto por homens quanto por mulheres pertencentes a raça negra: 26,3% dos lares sem acesso à internet. Entender como essas diferenças de acesso influenciam na atuação das mulheres negras no movimento feminista que se desenvolve via internet, especificamente dentro do recorte a que se propõe esse trabalho, o jornalismo colaborativo

ambientado

pela

cibercultura

e,

consequentemente,

pelo

ciberjornalismo, é assunto para o próximo capítulo. Será que as internautas brasileiras realmente protagonizam o processo noticioso em blogs e sites feministas, influenciando quais pautas terão ou não destaque? "Muito difícil responder a essa questão. Porque em um universo mais politizado, em que os temas do racismo e do feminismo estão na agenda, acho que sim as mulheres protagonizam o destaque. Mas, para o público em geral, no que cobre a grande mídia, estamos longe dessa representatividade. Tanto nas pautas femininas, mesmo com a presença de mulheres brancas, muito menos nas pautas raciais, já que nem temos muitas mulheres negras protagonizando estes espaços.", opina Bianca Santana, em entrevista à autora realizada na cidade de São Paulo em 2015.

3.3 Negras no mercado jornalístico

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A questão do trabalho envolve disputas pelo poder, produção e divisão de riquezas, conforme nos explica Isabel Clavelin. (CLAVELIN, 2014. P. 2 e P. 3). A tradição colonialista que persiste no Brasil contemporâneo faz com que negros e mulheres, embora reconhecidos como maioria populacional, sejam os mais afetados nesse campo. Reproduzindo dados do censo demográfico de 2010, Clavelin revela que homens e mulheres negras representavam 50,7% da nossa população, o que corresponde a 97 milhões do total de 191 milhões de habitantes do país. (CLAVELIN, 2014. P. 3). Ainda de acordo com o censo de 2010, pela primeira vez na história brasileira o contingente de mulheres ultrapassou o de homens – 97,3 milhões e 93, 4 milhões respectivamente, sendo que 51% das mulheres viviam em municípios com mais de 500 mil habitantes.

A presença em profissões, a ocupação de postos de trabalho de maior relevância e o topo da pirâmide salarial continuam a ser uma expressão das desigualdades raciais e de gênero. São as hierarquizações que asseguram posições de poder e reconhecimento a homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras, respectivamente, a chamada pirâmide sociorracial brasileira. (CLAVELIN, 2014. P. 5)

A pesquisa “Quem é o jornalista brasileiro? Perfil da profissão no país” publicada em 2013 pelo programa de pós-graduação em sociologia política da Universidade Federal de Santa Catarina, em parceria com a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj), revelou que dos 2.731 profissionais participantes da pesquisa 25% são negros, enquanto 72% são brancos e que 64% são mulheres em comparação ao percentual de homens, 36%. (CLAVELIN, 2014. P. 7 e P. 8). Dos locais possíveis para o exercício do jornalismo, a saber, redações jornalísticas, assessorias de imprensa e atuações freelancer, Clavelin aponta para como: São espaços demarcados sob égide do racismo por reservarem mercado a profissionais do grupo racial branco, em decorrência da estruturação do campo e das relações de trabalho, alicerçadas em demandas e necessidades de formação e qualificação profissional que se deparam com distorções de cunho racial não corrigidas pela ação do Estado nem do mercado. Conforma-se, assim, reduto para atuação profissional de trabalhadores e trabalhadoras de origem racial branca. (CLAVELIN, 2014. P. 8).

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É interessante notar a forte presença da força de trabalho feminina nos locais possíveis para o exercício profissional do jornalismo. Entretanto, Clavelin afirma que as mulheres estão confinadas em áreas com “baixo poder decisório, prestígio e remuneração.” (CLAVELIN, 2014. P. 8). Ela aponta ainda para a pouca discussão em torno das desigualdades de gênero em âmbito profissional, uma vez que os estratos de comando acabam em mãos masculinas na maior parte dos casos. (CLAVELIN, 2014. P. 9). A manutenção das coisas como elas sempre foram parece a regra no campo jornalístico. Nem mesmo com a entrada das mulheres, sobretudo as brancas, na área conseguiu transpor essa ideia que une instituições e profissionais. (CLAVELIN, 2014. P. 10). Se tais mudanças na lógica de produção jornalística não chegam, por conta da redução de conflitos internos ocasionado pela presença de gêneros diferentes pertencentes a mesma raça, a reivindicação de direitos entra em ação visando a busca de igualdade de condições, de oportunidade e desconcentração de poder e privilégios pelos movimentos negro, feminista e de mulheres. (CLAVELIN, 2014. P. 10 e P. 12). Para se adequar ao novo comportamento social das mulheres, os profissionais da mídia devem adotar “uma perspectiva de gênero para a cobertura jornalística”, alinhando-se assim “ao combate ao racismo e ao etnocentrismo em todos os conteúdos midiáticos”, segundo Basthi. (BASTHI, 2011. P. 18). A luta contra as discriminações de gênero e raça na mídia é cotidiana para as mulheres. De acordo com Angelica Basthi, embora sejamos maioria nos postos de trabalho ligados à área, ainda sofremos com salários mais baixos, a pouca inserção em cargos de chefia e a preterição em seleções de vagas pelos fatos de engravidarmos ou já sermos mães. “Em alguns casos, os homens chegam a ter preferência para fazer as pautas de maior impacto na opinião pública ou que representem os espaços masculinos “tradicionais”.”. (BASTHI, 2011. P. 20). Entrando no mercado mais cedo do que as mulheres brancas, as mulheres negras geralmente recebem salários menores dos que as brancas e estão mais associadas à informalidade, aos piores postos de trabalhos e grau de escolaridade, sofrendo dupla discriminação – de raça e de sexo. (BASTHI, 2011. P. 22).

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De acordo com o “Dossiê Mulheres Negras – retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil”, no ano de 2009, as negras representavam um quarto da nossa população, compondo 50 milhões de mulheres dentro de uma população de 191, 7 milhões de habitantes. (MARCONDES... et. al, 2013. P. 21). Para fins de pesquisa, considera-se como população negra aquela formada pelas categorias preta e parda, conforme definido pelo IBGE. (MARCONDES... et al., 2013. P. 21. Assim como o dossiê, este trabalho também opta por utilizar apenas duas categorias: branca e negra. O dossiê revela ainda que desde que passou a ser produzido, em 1995, somente a partir de 2008 que as mulheres negras tornaram-se mais numerosas que as brancas, tanto em termos absolutos quanto relativos. Em 2009, 50% eram mulheres negras e 49, 3% mulheres brancas. No ano anterior, havia quase 70 mil negras a mais do que brancas. (MARCONDES... et al, 2013. P. 21). Com relação a presença de jornalistas negras e indígenas nas redações e em cargos de chefia, a situação se apresenta como rara, uma vez que são elas constatantemente invisibilizadas. (BASTHI, 2011. P. 20)

Em geral, a situação das mulheres negras e indígenas é a mais vulnerável. Enfrentam as piores condições de vida, os maiores obstáculos para o acesso aos bens e serviços e os piores salários – seja qual for sua ocupação no mercado de trabalho. O padrão cultural sexista, racista e etnocêntrico cria mecanismos que as exclui até mesmo das mais recentes conquistas das mulheres brasileiras. As negras e indígenas estão invisíveis, por exemplo, nas profissões consideradas de prestígio – seja porque foram discriminadas ou não foram estimuladas a seguirem essas carreiras, seja por não corresponderem ao padrão estético eurocêntrico que prevalece na mídia. Cada grupo exibe suas singularidades no enfrentamento à discriminação de gênero, raça e etnia no mercado de trabalho. (BASTHI, 2011. P. 20).

Como alternativa a esse quadro, mostra-se frequente a participação das mulheres negras, assim como as brancas, em espaços difundidos via internet. São os blogs, sites e redes sociais objetos de análise desse trabalho. Compreender se as contribuições

encontradas

nesses

espaços

correspondem

às

colaborações

jornalísticas é uma das metas a serem desenvolvidas no capítulo posterior a este.

53

Para Bianca Santana, essa avaliação depende do comprometimento que eventuais

colaboradoras

têm

com

informações

apuradas,

checadas

e

contextualizadas - premissas básicas do conteúdo jornalístico. "Mesmo os textos opinativos precisam estar pautados em critérios jornalísticos para serem assim considerados.", afirma a docente, em entrevista à autora. De acordo com Santana, ainda em entrevista à autora, é interessante analisar a produção colaborativa feminista de uma perspectiva específica da comunicação em rede entre mulheres brancas e negras para entender como se organizam para criar conteúdos que muitas vezes não conseguimos classificar como jornalísticos que muitas vezes não conseguimos classificar como puramente jornalísticos. Ela ressalta, no entanto, que mesmo quando esses parâmetros jornalísticos não são plenamente atingidos pelas colaboradoras, há valor no conteúdo pelo qual se tenta passar uma mensagem significativa: "A literatura, a pintura, o grafitti, a música, a publicidade e muitas outras linguagens são potentes para a conscientização das pessoas.", afirma Santana, em entrevista à autora.

54

4. Feministas interconectadas?

As pessoas sempre ficavam lisonjeadas quando Ifemelu perguntava sobre a vida delas e, se ela não dissesse nada depois que começassem a responder, isso só fazia com que falassem mais. Eram condicionadas a preencher silêncios. Se perguntavam o que Ifemelu fazia, ela respondia vagamente 'Tenho um blog sobre comportamento', porque dizer 'Tenho um blog anônimo chamado Raceteenth ou Observações diversas sobre negros americanos (antigamente conhecidos como crioulos) feitas por uma negra não americana' os deixava constrangidos. Mas Ifemelu já dissera isso algumas vezes. (ADICHIE, 2014. P. 10)

Para compreender se o feminismo nas mídias digitais, por meio do jornalismo colaborativo, consegue acolher as diferentes perspectivas inerentes ao movimento quando a questão racial torna-se evidente analisaremos dois dos blogs mais influentes identificados em nossa pesquisa, o Blogueiras Feministas e o Blogueiras Negras. 4.1 Caracterização dos blogs

Figura 2 Logotipo Blogueira Feministas

Fonte: Blogueiras Feministas

De construção coletiva, conforme a descrição mantida em seu endereço virtual, o Blogueiras Feministas37 é coordenado por Bia Cardoso, e conta com moderadoras e editoras responsáveis pela avaliação do conteúdo e também por posicionamentos. A inspiração para veicular conteúdos na internet surgiu após um grupo de discussão se formar durante o primeiro turno das eleições de 2010. Conforme mais 37

http://blogueirasfeministas.com/about/

55

participantes surgiam, houve a necessidade de se criar o blog, com o intuito de compartilhar informações e debates. Definindo-se como um blog político, que opta por não publicar textos contrários as causas pelas quais milita, o Blogueiras Feministas tem como missão discutir o feminismo e também suas pluralidades e particularidades. De acordo com a definição presente em seu editorial de apresentação, o blog faz uso do conceito de interseccionalidade para minimizar a incidência do preconceito. Ainda segundo o texto, todo o conteúdo publicado no Blogueiras Feministas é de responsabilidade coletiva.

Figura 3 Logotipo Blogueiras Negras

Fonte: Blogueiras Negras

Aumentar a visibilidade da produção de blogueiras negras. Este é o objetivo do Blogueiras Negras38, criado em 2012 e que conta com uma equipe de facilitadoras para organização dos conteúdos, além de um grupo de discussão no Facebook e a manutenção de um grupo de escritoras mais atuantes. As organizadoras mantêm um canal de comunicação com interessadas em contribuir para o blog. Podem colaborar mulheres negras e afrodescendentes, que fazem ou não parte da comunidade. A organização também deixa a critério da autora do texto o formato que julgar mais adequado para publicação. O tema principal do blog é o feminismo negro, o protagonismo da mulher negra e demais assuntos relacionados com a negritude e seus desdobramentos. Esse enfoque, de acordo com a definição disponível no blog, se dá por meio do

38

http://blogueirasnegras.org

56

ativismo de inserção, direcionando a observação para demandas e especificidades da mulher negra e evitando a incidência de discursos preconceituosos. O Blogueiras Negras também informa sobre a revisão editorial, feito pela organização, dos textos encaminhados para serem publicados. O intuito é adequar conteúdos gramaticalmente e também sugerir alterações no formato do post, além de investigar se o conteúdo está seguindo a linha editorial proposta. Com base na pesquisa de blogs, sites e redes sociais para o desenvolvimento deste trabalho, selecionamos como objetos de análise os blogs Blogueiras Feministas e Blogueiras Negras para discutir se e como o jornalismo colaborativo se faz presente nesses espaços de discussão do feminismo. A escolha está baseada na aproximação que esses dois blogs têm com alguns dos preceitos fundamentais do jornalismo, como edição e hierarquia de pautas, em contrapartida com a ideia inicial – que contemplava também as análises do blog Escreva Lola Escreva e dos sites Lugar de Mulher e Think Olga -, embora nem sempre tal aproximação com este formato profissional esteja clara, conforme apresentaremos no decorrer do capítulo. 4.1.1 Nuances feministas Conforme apresentamos anteriormente, o movimento feminista tem na questão racial um ponto de conflito entre mulheres brancas e negras. A representatividade diante das pautas comuns ao feminismo é constantemente colocada em debate afim de assegurar que as variadas formações e perspectivas sejam contempladas. Entretanto, para as mulheres negras protagonizar as discussões ainda é um desafio. Sobretudo por razões de classe e pelo histórico do negro na sociedade brasileira, conforme Maria Célia Malaquias resume:

No Brasil colonial, o escravo vivia em condições degradantes, sem espaço físico ou moral para se expressar e desprovido de referências afetivas e materiais. Eram seres humanos vivendo em um lugar que não escolheram estar, considerados engrenagens humanas que serviam aos mecanismos de produção. Por quase quatro séculos o sistema escravagista imperou em demonstrações explícitas de violência física e emocional, em desestruturações de toda ordem. Embora se tenha passado mais de um século da assinatura da Lei Áurea, que aboliu oficialmente a escravidão no Brasil, ainda é um longo e difícil processo de luta pela libertação. A mulher

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negra tem sido protagonista desse processo determinado - iniciado nos tempos da escravidão quando sua condição era de ser coisa, propriedade do senhor - buscando se firmar e se colocar como agente transformador de si e do outro. (MALAQUIAS in Mulher do século XXI, 2008. P. 144)

Em entrevista à autora, realizada na cidade de São Paulo, em 2015, a jornalista especialista em cultura digital e mestre em educação, Bianca Santana, comenta que a dificuldade de representação das mulheres negras em ambientes feministas se dá, entre outros motivos, pela diversidade de pautas abordadas tanto por mulheres brancas quanto negras, o que é reflexo das realidades distintas vivenciadas por elas:

Se observarmos, as mulheres negras ainda participam menos em rede e é evidente que as [questões das] mulheres negras são menos presentes na rede do que as discussões das mulheres brancas. Acho que há um grande trabalho a ser feito com as mulheres negras, que é ocupar espaço de fala, ocupar tempo de fala, identificar-se como mulher negra. Porque precisamos de referências. Então, se muitas vezes a gente diz que tem pouca mulher no mundo da tecnologia, tem pouca mulher nas redes digitais, falando sobre as redes, imagina mulher negra? Tem pouca mulher, imagina quantas mulheres negras. Nesse sentido, você também não tem homem negro. Que homem negro que você tem que trabalha com tecnologia? Que fala sobre tecnologia?

Para a docente é preciso observar essas disparidades raciais dentro do movimento feminista com generosidade, pois é ela que pode nos ajudar a não acusar, mas tentar compreender os fenômenos:

Tentando compreender, acho que, para as mulheres brancas tem uma questão, tem uma perspectiva um pouco liberal, até mesmo na Casa de Lua, coletivo do qual eu faço parte. "Cadê as mulheres na literatura?", "cadê as mulheres em cargo de poder?", "cadê as mulheres?". Então, cadê as mulheres nos lugares ocupados pelos homens. Mas nesse "cadê as mulheres?", muitas vezes não tem a preocupação de ter a mulher negra ou a mulher branca. Talvez porque não dê mesmo para olhar para tudo ao mesmo tempo, talvez porque as mulheres negras talvez também precisem olhar para si, entrar nesse campo, falar "opa, está faltando a gente aqui".

Além da questão racial dentro e fora do movimento feminista, portanto, Santana entende que é necessário atentar para outros pontos que condicionam a menor representação da mulher negra, como a questão de classe, para descobrir

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que

talvez a

participação de mulheres negras

nos coletivos feministas,

especificamente nas mídias digitais, talvez corresponda a parcela pertencente a classe média de nossa sociedade. "Se olharmos para as mulheres pobres, tanto as brancas quanto as negras, elas não são nem blogueiras feministas, nem blogueiras negras", sugere Santana. Por essa razão, de acordo com Santana, não se deve desqualificar a luta feminista, apontando as ausências em vez de contribuir com integrações e tentar incluir todos os problemas vividos por mulheres brancas e negras:

Sempre pudermos vamos olhar para os problemas sociais, raciais e de gênero. Só que, em alguns momentos, o discurso político vai focar em um desses temas e não dá muito para julgar que se faça isso porque há algo de estratégia política mesmo [nessa opção] e talvez seja uma estratégia dos grupos de mulheres negras bater nos grupos de mulheres brancas para ter visibilidade nas pautas [ligadas às causas negras].

A leitura que fizemos de Stuart Hall revelou que a questão da identidade, em um mundo pós-moderno, ajuda a corroborar a opinião de Santana, a medida em que ele nos mostra o papel do feminismo justamente na reformulação da sociedade em que vivemos, interferindo em questões sólidas tais como o limite do que deve ser discutido em público e em âmbito particular: "Ele questionou a clássica distinção entre o "dentro" e o "fora", o "privado" e "público". O slogan do feminismo era: "o pessoal é político"." (HALL, 2004. P. 45). Segundo Hall, sociedades modernas são aquelas que sofrem mudanças constantemente, o que as distinguem das sociedades tradicionais (HALL, 2004. P. 14). O feminismo, tendo papel central nessas mudanças, contribui para que conceitos relacionados à família, sexualidade e trabalho doméstico, por exemplo, sejam constantemente reformulados (HALL, 2004. P. 45). Além disso:

Ele também enfatizou, como uma questão política e social, o tema da forma como somos formados e produzidos como sujeitos generificados. Isto é, ele politizou a subjetividade, a identidade e o processo de identificação (como homens/mulheres, mães/pais, filhos/filhas). (HALL, 2004. P. 45).

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Ainda

segundo

Hall,

o

feminismo,

que

inicialmente

questionava

o

posicionamento da mulher na sociedade, incluiu também o processo de formação de identidades sexuais e de gênero, passando a abordar as diferenças existentes entre os dois sexos. (HALL, P. 45 e P. 46). 4.2 É jornalismo ou não o que blogs feministas produzem? Mais do que a preocupação em atender requisitos técnicos que definem o que é jornalismo, sobretudo no meio empresarial, os blogs feministas escolhidos para análise neste trabalho tentam discutir - por meio de artigos opinativos, um dos principais gêneros jornalísticos - temas que foram abordados em mídias diferentes da digital, mas que impactam principalmente o público leitor de tais blogs. Sobre esse aspecto, Luís Mauro Sá Martino ajuda-nos a compreender a natureza da colaboração jornalística praticada em blogs. Para ele, ao analisarmos esse formato devemos notar que eles não “são apenas a transposição de uma escrita tradicional para o ambiente da internet, mas o espaço para a geração de possibilidades múltiplas de novas formas de comunicação e constituição de identidades textuais.” (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 209). Se, conforme Martino explica, um blog “pauta-se pela ambivalência da virtualidade” (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 209), podemos entender que mesmo sem a intenção de produzir conteúdo jornalístico segundo a lógica das empresas de mídia, os blogs feministas analisados por este trabalho se valem de características intrínsecas à linguagem comum ao jornalismo.

A discussão a respeito dos blogs no campo jornalístico parece se estruturar em torno de problemas de fronteira. Há uma série quase interminável de perguntas ainda a serem delineadas para se estabelecer as linhas principais de argumentação a respeito do tema, e, se este texto tem alguma pretensão, é a de oferecer algumas dessas perguntas, indicando, no máximo, caminhos possíveis para as respostas - como, de resto, tende a acontecer na reflexão a respeito de algo que está em pleno desenvolvimento. A resposta para várias dessas questões sobre informação, identidade, blogs e jornalismo está sendo escrita a cada novo blog, a cada texto postado, a cada inovação. MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 210).

60

Aborto, racismo, transexualidade e violência de gênero são alguns dos temas tagueados como jornalismo no Blogueiras Feministas, enquanto no Blogueiras Negras encontramos textos focados especificamente em racismo e violência de gênero. Destacaremos, primeiramente, o texto Racismo pouco é bobagem: o desfile de Ronaldo Fraga e a defesa do idefensável39, escrito pela jornalista Jeanne Callegari e publicado no Blogueiras Feministas em 22 de março de 2013, para exemplificar de que maneira o jornalismo colaborativo se desenvolve neste blog, dentro de uma perspectiva de raça e gênero. Nele, a autora reflete e questiona sobre o posicionamento da revista Marie Clarie acerca das críticas que o estilista Ronaldo Fraga recebeu por causa do desfile que apresentou durante a edição daquele ano da São Paulo Fashion Week. Na ocasião, modelos, brancas e negras, tiveram seus cabelos substituídos por palhas de aço, o que gerou comentários negativos pela alusão preconceituosa ao cabelo das mulheres negras. Callegari, então, produziu um texto para o Blogueiras Feministas que, conforme apresentamos anteriormente, tem como premissa dialogar tanto com mulheres brancas quanto negras. O espaço disponível serviu para que outros pontos de vista, além dos levantados pela revista Marie Claire em seu site oficial, fossem apresentados, com base no posicionamento feminista, criticando, entre outras coisas, o uso da palha de aço em vez dos cabelos originais e também a atitude do estilista responsável pelo desfile - que alegou não ter tido a intenção do racismo, pois possui antepassados negros.

Aí, a revista apela para uma falácia completamente sem pé nem cabeça: “Os detradores de Ronaldo Fraga, provavelmente, não entendem nem de arte e nem de negros. Acusá-lo de racista seria o mesmo que dizer que Tarsila do Amaral é jocosa em seu “Abaporu”, ao retratar o povo brasileiro em linhas modernistas.” Sério, Marie Claire? Primeiro, não é verdade: muitas das pessoas que se manifestaram contra o desfile entendem MUITO de arte e de negros. De um lado, escritores, músicos, artistas. Do outro, pessoas do movimento negro, gente que MILITA NISSO HÁ ANOS. E claro, muita intersecção entre os dois grupos. Não que isso importe; no fundo, o argumento é o que vale. E esse vale. Afinal, os negros e negras que tiveram seus cabelos chamados de “ruim” e “bombril” a vida 39

Texto completo disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2013/03/racismo-pouco-e-bobagemdesfile-ronaldo-fraga/. Acesso em 02/05/2015.

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inteira é que podem dizer se o recurso das palhas de aço foi ofensivo. Pelo que vi por aí, eles não gostaram nada. Pois é. (CALLEGARI, 2013).

A escolha por este artigo se deu após a observação de ser ele um dos casos em que a autora dialoga com os leitores, por meio da caixa de comentários, na medida em que a repercussão em torno do seu texto se deu. Há tanto contribuições positivas quanto negativas, entre elas uma que parece questionar o lugar de fala da mulher negra (ver anexo), uma vez que Jeanne, de acordo com a foto de seu perfil é branca. No caso do Blogueiras Negras, destacamos o texto Uma charge racista e os haitianos em São Paulo40, escrito por Gabi Porfírio e publicado em 6 de junho de 2014. Nele, a autora discorre sobre o poder da imagem para a representação do negro pelas mídias clássicas. Porfírio reflete a respeito de uma charge publicada pelo jornal Fato Paulista que, de acordo com ela, reproduz ideias racistas e classistas para falar sobre a presença de cidadãos vindos do Haiti em território paulistano. A autora, que leciona para o Ensino Médio e em cursinhos pré-vestibular, destrincha a linguagem não textual da charge para evidenciar a caricatura em torno da figura do negro e da negra na nossa cultura, uma vez que o cartunista responsável pela arte ilustra uma empregada doméstica, negra, e dá a ela uma fala – afirmativa – que questiona o abrigo dado a refugiados haitianos enquanto, de acordo com o autor, não há moradias suficientes nem para os brasileiros. Porfírio busca aproximar o leitor da caricatura para o que ela traz de significado por meio de uma ilustração:

Vamos começar pelo personagem que „fala‟ na charge: uma empregada doméstica e, acima dela, os dizeres „a pergunta que não quer calar‟. Isso significa que a pergunta feita partiria dessas trabalhadoras porque elas estariam preocupadas com possível divisão de moradia com haitianos: quer dizer, já não tem pra gente aqui, vocês ainda vão colocar mais? Mais ainda, é como se a charge tivesse sido concebida a partir do ponto de vista de uma mulher negra doméstica. Desconfiamos que não, né? E isso é um problema: colocar uma fala em uma mulher negra doméstica é associá-la 40

Texto completo disponível em: http://blogueirasnegras.org/2014/06/06/uma-charge-racista-e-oshaitianos-em-sao-paulo/. Acesso em 02/05/2015.

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necessariamente a essa fala, e isso não pode ser feito. Escutaram-se as empregadas domésticas para falar sobre o assunto? A que interessa que o povo ache que essa preocupação seja, de fato, dessa classe trabalhadora? (Porfírio, 2014).

Embora este texto tenha obtido apenas uma interação no blog, ele exemplifica a tentativa de se fazer jornalismo colaborativamente, uma vez que dialoga com outro veículo de informação e faz uso do gênero artigo para refletir sobre a forma com que as mídias clássicas, nesse caso um jornal, retratam mulheres negras. Conforme descobrimos até o momento, são estas tentativas de aproximação entre autor e demais usuários que pode contribuir para que o jornalismo seja mais colaborativo e consiga ampliar o enfoque sobre os temas abordados. Esta intenção fica clara por meio do comentário, respondido pela autora, deixado na postagem (ver anexo). Na perspectiva de Clay Shirky, ignorar o blog como um formato possível em prol de se continuar defendo o jornalismo enquanto praticado somente em outras plataformas como jornais e revistas e um erro de definição tanto da figura do jornalista quanto da própria carreira. Shirky entende que tal ideia "preserva o que há de mais errado na definição original de jornalista, a saber, sua falta de consistência interna, que a torna dependente da propriedade de mecanismos de publicação." (SHIRKY, 2012. P. 65) Dividindo-se

os

blogs

em

categorias,

conforme

propõe

Martino,

a

compreensão do caráter de adaptação da linguagem jornalística por não profissionais tende a ficar mais evidente. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 211). Martino sugere que os blogs jornalísticos, comumente vinculados às marcas já consolidadas nos meios impressos, eletrônicos e digitais, ocupe um dos extremos da categorização, enquanto os blogs pessoais estejam na outra

ponta

“rearranjados”,

e

aqueles

blogs

modificados,

cujos

misturados

elementos com

jornalísticos

encontram-se

procedimentos

anteriormente

associados à ficção literária e aos espaços da autobiografia” configurem uma posição intermediária. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 211). Desta maneira, estes últimos:

63

Adicionam às práticas, valores e procedimentos consagrados na criação jornalística a liberdade de escrita, novo valores para a seleção de dados, uma vinculação com a mídia que se revela, em alguns casos, mais uma interdependência do que propriamente uma relação linear. São blogs de caráter jornalístico, mas nos quais o espaço autoral é consideravelmente ampliado e, com isso, as formas da escrita derivadas das condições específicas da produção de notícias são alteradas. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 211).

É o lugar em que se enquadram os blogs Blogueiras Feministas e Blogueiras Negras. Livre da lógica empresarial que condiciona a prática jornalística e impõe determinada rotina editorial (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 212), esses dois espaços, embora reproduzam conteúdos que estejam alinhados de acordo com suas propostas editorias expostas em seus respectivos manuais de orientações para eventuais participantes, parecem fazer uso da linguagem e dos formatos comuns ao jornalismo, a exemplo dos artigos opinativos, para reproduzir questões pertinentes à causa feminista e, consequentemente integrar pontos de vistas que aproximem as demandas de mulheres brancas e negras. Mesmo distantes do que se consegue perceber mediante análise de publicações e também das informações sobre curadoria disponíveis em cada um dos blogs, das condições ideais de produção empresarial do discurso jornalístico – que prevê, de acordo com Martino, atenção ao tempo da informação, assim como a consulta e checagem de dados, entre outros cânones da profissão jornalística e prevê as condições de criação, venda e gerenciamento de determinado capitalinformação (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 212), é possível perceber as tentativas de organizar a comunicação entre gestoras e interessadas em colaborar, dando margem à intenção de se concretizar a prática do jornalismo colaborativo caso consideremos que:

A organização empresarial do jornalismo contrasta com o princípio artesanal do blog. A informação produzida reflete parcialmente a diversidade dessas condições, em particular quando se pensa nas vantagens e desvantagens que a institucionalização da prática jornalística traz. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 213).

64

Shirky afirma que, com o fim da escassez no acesso a publicação, até então um privilégio jornalístico onde era possível reconhecer os responsáveis pela edição e perceber quem eram os jornalistas, entendê-los como uma categoria profissional, assistimos a uma "abundância de opções de publicação" e, consequentemente, nos resta ir "acrescentando itens à lista dos possíveis veículos a que o jornalismo está associado - jornais e televisão, e agora blogs, videoblogs e podcasts etc. (SHIRKY, 2012. P. 65 e P. 66).

Qualquer pessoa pode ser um editor (e frequentemente é). Nunca haverá um momento em que nos perguntaremos, como sociedade: 'Queremos isso? Queremos as mudanças que o novo fluxo de produção, acesso e difusão da informação vai ocasionar?' Isso já aconteceu; de muitas maneiras, é melhor encarar o surgimento de redes de formação de grupos não como uma invenção, mas como um evento, algo que aconteceu no mundo e não pode ser desfeito. (SHIRKY, 2012. P. 65 e P. 66).

Martino acredita que a ideia de objetividade da informação, assim como as de neutralidade e imparcialidade são quebradas pelos blogs e o fator de semelhança entre eles e os veículos de informações “clássicos” seria justamente a desconstrução da prática jornalística definida segundo uma lógica empresarial que distancia o autor daquilo que ele reporta. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 213). Segundo Martino:

(...)Os 'valores-notícias' que orientam a prática jornalística cotidiana, se não desaparecem, modificam-se no universo dos blogs - não é necessário ter um 'gancho' para se tratar de um assunto: o autor do blog, ao se pautar, já seleciona as informações as quais pretende tratar e, como resultado, escolhe os critérios de seleção de notícias conforme sua ética particular - e, nesse sentido, pode dar espaço para tema distantes das pautadas tratadas nas empresas de comunicação. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 214).

Sendo assim, à medida que as barreiras entre a prática empresarial e a amadora passam a serem menos claras, assistimos a alteração do jornalismo como

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lógica exclusivamente profissional permeada por técnicas inacessíveis a outras pessoas que pertencem a nossa sociedade midiática digital:

A dissolução das fronteiras entre emissor-receptor da notícia não se daria apenas no plano do domínio técnico específico da manipulação da ferramenta ou da movimentação no ambiente, mas também em uma segunda modalidade, no plano cognitivo, em que as distinções entre produtor e consumidor são diminuídas na medida em que ambos compartilham do mesmo quadro de estruturas cognitivas responsáveis por apreender determinadas situações, lidar com conjuntos de signos e mesmo estruturas culturais completas. Dessa maneira, não é somente o fato de uma pessoa colocar no ar um blog de conteúdo jornalístico que indica esse abalo nas fronteiras do campo, mas o fato de uma pessoa, sem a formação específica e o saber fazer jornalístico, compartilhar com o profissional, ao menos em termos rudimentares, as mesmas estruturas cognitivas e o 'reflexo de pauta' responsáveis por dizer, em cada circunstância, o que é ou não notícia. Uma universalização, em território menor, do habitus jornalístico. (MARTINO in Esfera pública, redes e jornalismo, 2009. P. 219).

4.3 Representatividade importa Ampliando a análise de conteúdos que tenham relação com a prática do jornalismo colaborativo tanto no Blogueiras Feministas quanto no Blogueiras Negras, buscando entender se há mesmo intersecção entre os dois espaços, com base nas questões de raça e gênero, analisaremos mais alguns textos publicados nos respectivos blogs. O intuito é de refletir sobre os pontos de aproximação e de distanciamento com relação ao jornalismo conforme descrito pelos teóricos selecionados por este trabalho e também sobre como (e se) o feminismo contribui para a representação, em âmbito digital, da mulher negra dentro do movimento e na sociedade em geral. Na ficção literária, a escritora Chimamanda Ngozi Adichie tem se destacado na abordagem desse tema. Sobretudo após o lançamento de Americanah, livro em que a protagonista Ifemelu reflete sobre ser uma mulher negra em busca de melhores condições educacionais fora de seu país natal, a Nigéria, nos Estados Unidos. Os primeiros passos da protagonista em território estadunidense contam a dificuldade de identificação em uma cultura que garante certos privilégios para certos

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tons de pele e classe social. Ifemelu, após passar por apuros, começa a escrever em um blog para apontar nuances racistas na vida em sociedade:

Às vezes, a ligação que Ifemelu fazia entre um fato e a questão racial era frágil. Outras vezes, ela própria não acreditava no que estava dizendo. Quanto mais escrevia, menos certa estava. Cada post arrancava mais uma escama de seu eu, até que ela passou a se sentir nua e falsa. (ADICHIE, 2014. P. 11 e P. 12)

Os temas escolhidos para a análise foram as abordagens existentes nos dois blogs a respeito da representação da mulher negra na mídia. No caso do Blogueiras Feministas, selecionamos o texto Vozes-Mulheres de escritoras e intelectuais negras41, escrito por Bárbara Araújo, professora de história, e publicado no blog em 21 de novembro de 2012. Parte de uma blogagem coletiva em homenagem ao Dia da Consciência Negra, o texto apresenta algumas autoras negras como referência no combate à discriminação racial e à violência contra as mulheres e tenta mostrar como o meio acadêmico pode contribuir para que a militância feminista possa ter cada vez mais destaque social. Este é um tema ainda pouco abordado nas mídias clássicas, exceção feita à Chimamanda Ngozi Adichie, que é, ao lado da atriz Lupita Nyong'o, uma das poucas referências negras mencionadas em reportagens sobre cultura em geral. De caráter informativo, o artigo de Bárbara preocupa-se em associar mulheres negras a outras situações que não as priorizadas pelas mídias clássicas, acostumada a mostrar mulheres negras em temporadas de Carnaval, por exemplo. Desta forma, Bárbara parece criar um diálogo entre o papel da mulher negra na sociedade e no movimento feminista, mesmo que para isso a postagem esteja atrelada a uma efeméride. A prática do jornalismo colaborativo também pode ser, então, encontrada neste contexto, uma vez que a cobertura das mídias clássicas nesse período não costuma ir além de roteiros culturais e conteúdos sobre quem foi Zumbi dos Palmares.

41

Texto completo disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2012/11/vozes-mulheres-deescritoras-e-intelectuais-negras/. Acesso em 02/05/2015.

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A intelectual negra bell hooks (que escolheu grafar o nome assim mesmo, em letras minúsculas) é um exemplo da importante conjugação entre militância e vida acadêmica. Em um de seus textos, ela mostra como a representação das mulheres negras nos diversos meios de comunicação forma uma percepção coletiva de que elas estão no mundo principalmente para servir aos outros. O corpo da mulher negra, desde a escravidão até hoje, “tem sido visto pelos ocidentais como o símbolo quintessencial de uma presença feminina „natural‟, orgânica, mais próxima da natureza, animalística e primitiva”. Essa formulação discursiva que encerra a mulher negra em seu aspecto biológico – seja como extremamente sexual ou como a figura da “mãe preta” – atua para tornar o domínio intelectual um lugar interdito, já que “mais do que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade, as negras têm sido consideradas „só corpo, sem mente‟. (ARAÚJO, 2012).

Em contrapartida, quando há um texto assinado pela Equipe de Coordenação do Blogueiras Feministas, parece haver mais traços de comunicação com a própria rede digital feminista do que de jornalismo colaborativo em si. Isso porque alguns dos textos encontrados no blog, como O problema dos relacionamentos abusivos e a idade

dos

homens42,

refletem

sobre

o

que

outros

coletivos

feministas

compartilharam em seus espaços e menos com veículos da mídia clássica, conforme exemplificamos:

Semana passada, a Revista Capitolina publicou o texto: Relacionamentos com caras mais velhos e o que há de errado com eles. E nós sentamos para discutir. Tanto nós, como várias mulheres que conhecemos, nos relacionamos com homens mais velhos quando jovens, até mesmo adolescentes. Então, primeiro, nosso objetivo é dialogar com o texto e refletir sobre outras perspectivas. Segundo, temos consciência que nossas experiências pessoais não podem ser usadas como régua para medir todas as pessoas. (BLOGUEIRAS FEMINISTAS, 2015).

De qualquer forma, há em Feminismo e resistência43, também assinado pela equipe que coordena o Blogueiras Feministas, o intuito de dialogar sobre como o feminismo é apresentado pela mídia. Em comparação ao texto da jornalista Jeanne Callegari, sobre o desfile de Ronaldo Fraga, este não gerou comentários de caráter

42

Texto completo em: http://blogueirasfeministas.com/2015/04/o-problema-dos-relacionamentosabusivos-e-a-idade-dos-homens/. Acesso em 02/05/2015. 43 Texto completo em: http://blogueirasfeministas.com/2015/01/feminismo-e-resistencia/. Acesso em 02/05/2015.

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mais informativo para a prática do jornalismo colaborativo, tendendo mais para a reflexão acerca do posicionamento do espaço sobre o que é feminismo:

Nosso objetivo é desconstruir e romper relações de poder. E, para que essas transformações se concretizem, é preciso que sejam feitas individualmente e em grupos. Devem ser implementadas tanto no nível pessoal como no nível estrutural. Individualmente, quero romper barreiras. Como grupo, queremos romper amarras opressoras. Individualmente, não posso fazer isso por ninguém e ninguém pode fazer isso por mim. Como grupo, o trabalho pode ser feito de muitas formas, mas só terá efeito quando pensado em conjunto, como uma estratégia maior. (BLOGUEIRAS FEMINISTAS, 2015).

A análise de textos retirados do Blogueiras Negras optou pelo enfoque na ideia de representação pura. No sentido de buscar o entendimento acerca de como a mulher negra, atuante, pretende discutir a presença das negras em geral na mídia e na sociedade. Em Representatividade e somente isso?44, publicado em 30 de março de 2015, Camila Araújo aborda a questão do deslumbramento com a fama que algumas mulheres negras, na opinião da autora, parecem vivenciar, esquecendo-se da luta pela reformulação do modo como as mulheres negras são retratadas:

Ter uma mulher negra na Globo é bom? Pode ser, mas o correto na minha concepção, é que os meios de comunicação revolucionassem completamente, do seu conteúdo às pessoas que atuam, dirigem, roteirizam, etc. Mas, se acreditamos que seja positivo para nossas filhas ver uma mocinha negra na novela das 8, ótimo!, mas que esse „ver‟ seja reflexivo. Não podemos nos contentar somente com as moças menos retintas e com os cabelos quimicamente alterados. (ARAÚJO, 2015).

Já em Tirem as mãos de nossos símbolos de luta45, um dos textos com maior número de comentários do blog, escrito por Eliane Nogueira e publicado em 27 de novembro de 2013, encontramos uma reflexão, bastante contundente, sobre o uso

44

Texto completo disponível em: http://blogueirasnegras.org/2015/03/30/representatividade-esomente-isso/. Acesso em 02/05/2015. 45

Texto completo disponível em: http://blogueirasnegras.org/2013/11/27/tirem-maos-simbolos-luta/. Acesso em 02/05/2015.

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do turbante por mulheres que não são negras. A intenção da autora é pensar sobre apropriação cultural e, consequentemente, anulação da negritude:

O que fico me perguntando é se essas pessoas têm noção do que estes “elementos” significam de fato para a luta do povo negro. Ok, o leitor pode me dizer, “é uma questão de identificação com a causa”, entendo que, realmente, a força que estes símbolos ganharam, de resistência e contestação atingiu um nível esplêndido, porém ninguém se “torna negro” sem vivenciar as lutas desse povo de alguma forma e tão pouco sem conhecer as literaturas que tratam do movimento negro. Além disso, os usos que se faz destes elementos símbolos são os mais diversos, temos Black Power em movimentos que estão longe de discutir e defender reivindicações dos negros. (NOGUEIRA, 2013).

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5. Considerações finais No decorrer da pesquisa estive diante de um dilema sobre se o jornalismo, frente às constantes mudanças causadas pela consolidação das mídias digitais, deveria mesmo ser ponto central do trabalho. Isso porque, conforme minhas leituras foram sendo concluídas e eu conseguia vislumbrar a forma como os grupos sociais que analisei de fato se articulavam na rede, tive dúvidas sobre se falar em jornalismo, especificamente, era realmente necessário. Afinal, afora a linguagem específica da área jornalística, as feministas em geral conseguem, sim, se articular. Entretanto, embora a forma jornalística entendida como atividade empresarial - possa ser questionada, ela não pode ainda ser totalmente colocada de lado. Mesmo por meio dos blogs, eficientes na comunicação feminista, o que conseguimos observar no decorrer da pesquisa é que a rotina do jornalismo, com hierarquia de funções, por exemplo, se faz ainda relevante. Mesmo quando todos podem colaborar é, ao que parece, necessário certo controle organizacional. Seja em nome das tentativas de apuração daquilo que se publica, seja na intenção de disseminar determinados conteúdos para, assim, potencializar o acesso às informações que as mídias clássicas, com seus recortes muitas vezes enviesados e que não permitem réplicas imediatas, ignoram - por motivos sociais, conforme apresentamos no trabalho. Entrevistas com as coordenadorias organizacionais dos respectivos blogs certamente contribuirão para validar o debate acerca do jornalismo colaborativo, uma vez que essas pessoas podem contribuir com o relato de suas experiências diárias a frente desse modelo com características jornalísticas no meio feminista. Questões como se há ou não modelos de negócios definidos podem ajudar a entender as motivações desses coletivos nas redes sociais: apenas educativo ou também economicamente rentável? Uma pesquisa nesses moldes teria como intenção compreender, principalmente, como o nicho feminista nas mídias digitais projeta o futuro em meio ao pleno uso de blogs, sites e redes sociais de forma independente em comparação às práticas adotadas por marcas jornalísticas na internet. Alguns pontos específicos, acredito, também podem ser mais bem abordados em pesquisas posteriores a esta. É o caso da investigação mais apurada do acesso da mulher negra aos meios tecnológicos, assim como se o acesso à educação e à

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reflexão sobre como são representadas influenciam mesmo na atuação dessas mulheres nas mídias digitais. Quem são as mulheres negras que fazem uso desse meio para pensar sobre as condições imposta pela sociedade? Apontar as razões pelas quais o Brasil tem evoluído para maior inserção de pessoas negras nas classes sociais mais altas pode ser, então, uma maneira de ampliar e desenvolver o presente trabalho de estudo. Até que ponto a ascensão negra influencia na vida digital em rede? As pautas propostas pelas ativistas negras, nas mídias digitais, refletem o todo da população negra feminina ou elas correspondem mais a parte da rotina de quem é de classe média? Outro ponto que merece ser analisado é o grau de interação das mulheres com a prática do jornalismo em mídias digitais. Pesquisas, como a que apresentamos aqui, dão conta de que são as mulheres as principais atuantes nesse segmento, mas qual é, de fato, o poder de decisão delas nesse meio? Um estudo detalhado da influência de jornalistas profissionais no processo de produção colaborativa também merece destacar as ações realizadas em redes sociais, sejam em grupos ou em páginas vinculados as principais redes. Assim como a análise específica do engajamento que a prática do jornalismo colaborativo oferece ao movimento feminista em âmbito digital. Estudar essa dinâmica, ampliada ao contexto das redes sociais como intermediador das relações entre coletivos e mulheres, independente da questão de raça, apresentasse como possibilidade para o desenvolvimento de uma pesquisa voltada para o mestrado, tendo o surgimento da revista Azmina46 como motivo, uma vez que a publicação reúne engajamento do público pelas redes sociais, um modelo de negócios para captação de recursos e a aposta no formato jornalístico, a princípio colaborativo, que tem interesse em retratar o cotidiano das mulheres por meio de um viés feminista que contemple as diversidades coexistentes no movimento brasileiro.

46

Disponível em https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/revista-azmina-quer-dar-voz-amulher-real/. Acessado em 24/05/2015.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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APÊNDICE – ENTREVISTAS COM A PROFª. MSª. BIANCA SANTANA

- Entrevista concedida por e-mail, na cidade de São Paulo, em 25 de março de 2015. Como você observa a discussão sobre racismo no movimento feminista brasileiro difundido pela internet? Bianca Santana - Com muita alegria, por ver um tema importante finalmente vindo à tona. E com alguma preocupação por ver conflitos agressivos, discursos de ódio, generalizações. Podemos considerar as contribuições em blogs, sites e redes sociais voltadas para o feminismo como colaborações jornalísticas? BS - Depende. Muitas das colaborações não estão comprometidas com informações apuradas/ checadas/ contextualizadas. Mesmo os textos opinativos precisam estar pautados em critérios jornalísticos para serem assim considerados. Você acha que as internautas brasileiras realmente protagonizam o processo noticioso em blogs e sites feministas, influenciando quais pautas terão ou não destaque? Pensei nas questões de representação da mulher pela mídia e o dia a dia da mulher negra, nos âmbitos pessoal e profissional, em comparação ao da mulher branca. BS - Muito difícil responder a essa questão. Porque em um universo mais politizado, em que os temas do racismo e do feminismo estão na agenda, acho que sim as mulheres protagonizam o destaques. Mas, par ao público em geral, no que cobre a grande mídia, estamos longe dessa representatividade. Tanto nas pautas femininas, mesmo com a presença de mulheres brancas, muito menos nas pautas raciais, já que nem temos muitas mulheres negras protagonizando estes espaços.

Checagem dos fatos, apuração, edição ainda são objetivos a serem atingidos no jornalismo colaborativo com enfoque feminista – sobretudo com relação às mulheres negras? De que maneira essas etapas jornalísticas são desenvolvidas e contribuem para a conscientização do público?

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BS - Sem dúvidas! Mas não podemos esquecer que há muita potência nos textos não jornalísticos. A literatura, a pintura, o grafitti, a música, a publicidade e muitas outras linguagens são potentes para a conscientização das pessoas. Falando especialmente do jornalismo, é essencial que o rigor da apuração, da checagem da contextualização estejam presentes, independentemente de o jornalismo ser ou não colaborativo.

- Entrevista presencial realizada na cidade de São Paulo em 10 de abril de 2015. O jornalismo colaborativo ainda é útil, pensando em um panorama geral para internet e em um recorte voltado para o feminismo? Pergunto se o jornalismo colaborativo ainda é útil porque há muitas mudanças desde que o jornalismo colaborativo se tornou objeto de análise pela academia. Não sei se agora, em 2015, ainda é válido falar em jornalismo colaborativo como uma alternativa de contato ou de propagação de notícias, de diferentes vieses de uma mesma questão. Bianca Santana - Acho que lá para 2007, 2008, 2009, essa discussão do jornalismo colaborativo estava muito pulsante porque tínhamos também a discussão da web 2.0. Naquelas discussões, a colaboração era um termo muito usado. Depois, de fato, o termo tem sido cada vez menos utilizado quando se fala em jornalismo. Não sei nem dizer exatamente porquê. O que eu sei é que usamos vários termos, às vezes, para a mesma coisa. Então, tem quem prefere falar em cibercultura, pensando na cultura da contemporaneidade e das tecnologias digitais como parte dela, tem quem fala em cultura digital, tem gente que prefere falar em sociedade informacional. Depende da perspectiva teórica, depende dos autores de referência para formular conceitualmente que termos utilizar. Colaboração, participação, também são termos. Jornalismo participativo, jornalismo colaborativo, jornalismo cidadão. Hoje tem muito gente que fala em jornalismo aberto. Open journalism. Então, no fundo, no fundo, são vários termos que querem dizer que as pessoas não necessariamente [trabalhando] numa redação, não necessariamente com um diploma de jornalismo, produzem informação, produzem jornalismo.

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Tem várias questões aí. Tem várias pessoas que defendem que "não, as pessoas podem produzir informação, só que a preocupação de apurar, checar, contextualizar é uma especificidade do trabalho jornalístico.". Não significa que as pessoas, ao postarem conteúdos na rede precisam ter todo esse rigor. Porque isso é algo do fazer jornalístico. E tem gente que diz que "não, que todo mundo que publica está aí na vida [jornalística], não precisa ter alguém que se responsabilize por fazer o contexto, checar informações.". Não temos resposta para essas coisas. Porque mesmo essa discussão já tendo quase dez anos é pouco tempo para analisar uma prática social. Tivemos, há alguns anos, o Estadão experimentando com o Limão, para as pessoas postarem [conteúdos em uma plataforma colaborativa], acreditando também que todo mundo ia achar lindo e maravilhoso ficar dando informação para o Estadão. Quando na verdade, não. "Porque eu vou dar informações para o Estadão e não no meu blog?". Essas questões precisam ser olhadas ainda porque é tudo ainda muito novo. Nesses exemplos de mulheres produzindo informação em rede, ou mulheres produzindo conteúdo em rede, a gente pode olhar o Blogueiras Feministas e o Blogueiras Negras como espaços de articulação, de produção de conhecimento colaborativo. Se isso é jornalismo eu acho que a gente precisava analisar. Talvez seja a sua análise. Como fazer essa análise? [Perguntando] O que é jornalismo? Você terá que fazer escolhas. Tem vários autores que veem o jornalismo de diferentes formas. O que é jornalismo colaborativo? Também temos diversas escolhas. Para entender e conseguir analisar de acordo com esses parâmetros, se aquilo é jornalismo colaborativo ou não você precisa falar em jornalismo. Você não pode falar em produção de jornalismo em rede. É um enrosco, né? O jeito de sair desse enrosco seria falar em produção colaborativa, produção em rede, produção de mulheres, falar de conteúdo, sobre como elas se organizam. A minha sugestão é, se você for olhar para o jornalismo, fescolher um grupo: ou Blogueiras Feministas ou Blogueiras Negras. Porque são muitas variáveis. Porque não dá para te responder se é jornalismo colaborativo. É analisar com base em algum critério. Então quais são os critérios?

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Outro trabalho seria: "não, não quero responder sobre jornalismo, eu quero entender quais são as especificidades da colaboração em rede entre mulheres negras e mulheres brancas.". Então aí você vai pegar o Think Olga, o Blogueiras Negras e o Blogueiras Feministas e vai definir novas relações, mas não vai discutir jornalismo. Sobre a representação da mulher negra no meio digital, há uma tentativa de mudar como a mulher é vista, mas não sei se a questão da mulher negra, especificamente na internet e principalmente no ambiente feminista, é tão relevante para o movimento feminista em geral. Eu falo, por exemplo, de campanhas como as da cervejaria Skol que recentemente, no Carnaval, não usou a mulher como objeto de forma direta, mas usou uma linguagem que se apropriava da figura feminina como fim para vender cerveja e curtição. Vi essa campanha ser muito debatida nos grupos que têm mulheres brancas participando em maioria, mas não vi tanto em grupos onde as mulheres negras são mais presentes. Tivemos ainda a repercussão em torno de uma linha de esmaltes da marca Risquè, que teve uma mobilização muito grande por causa do uso de nomes masculinos associados a ações diárias comuns as mulheres e majoritariamente incomum aos homens como se tais ações, realizadas por homens, merecessem parabenizações, mas em contraponto a isso não vi tanta gente falando sobre o concurso da Globeleza, cuja selecionada inicial, de pele escura, foi substituída por outra de pele mais clara sob a justificativa da aceitação do público. Pode falar sobre a problemática da representação a partir dos exemplos citados? BS - É uma questão muito difícil, porque ela gera muito embates e eu tento olhar para ela com generosidade. Tanto para os grupos de mulheres negras que acusam os grupos feministas de não olharem para a questão racial, quanto para as mulheres brancas que estão lutando pelas causas delas e não dão conta, muitas vezes, de olhar para o lado e perceber que "calma, tem também uma questão complexa aqui". Acredito que essa generosidade sempre nos ajuda a não acusar, mas a tentar compreender os fenômenos. Tentando compreender, acho que, para as mulheres brancas tem uma questão, tem uma perspectiva um pouco liberal, até mesmo na Casa de Lua, coletivo do qual eu faço parte. "Cadê as mulheres na literatura?", "cadê as mulheres em cargo de poder?", "cadê as mulheres?". Então, cadê as

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mulheres nos lugares ocupados pelos homens. Mas nesse "cadê as mulheres?", muitas vezes não tem a preocupação de ter a mulher negra ou a mulher branca. Talvez porque não dê mesmo para olhar para tudo ao mesmo tempo, talvez porque as mulheres negras talvez também precisem olhar para si, entrar nesse campo, falar "opa, está faltando a gente aqui". Mas claramente há uma diversidade de pautas. E quem incorpora cada uma dessas pautas. Na discussão do protagonismo, além da representatividade, muitas vezes as mulheres negras não querem que as mulheres brancas falem por elas. Porque senão "estamos falando de coisas que não são as que se vive, então eu quero falar por mim, eu não quero ser tutelada". Eu acho que tudo isso entra nessa questão da representatividade. Se observarmos, as mulheres negras ainda participam menos em rede e é evidente que as [questões das] mulheres negras são menos presentes na rede do que as discussões das mulheres brancas. Acho que há um grande trabalho a ser feito com as mulheres negras, que é ocupar espaço de fala, ocupar tempo de fala, identificarse como mulher negra. Porque precisamos de referências. Então, se muitas vezes a gente diz que tem pouca mulher no mundo da tecnologia, tem pouca mulher nas redes digitais, falando sobre as redes, imagina mulher negra? Tem pouca mulher, imagina quantas mulheres negras. Nesse sentido, você também não tem homem negro. Que homem negro que você tem que trabalha com tecnologia? Que fala sobre tecnologia? Temos muitas questões a olhar. Entre elas, a questão de classe além de gênero e de raça. Talvez a gente descubra que a maior parte das mulheres negras que participam desses grupos são mulheres negras de classe média. Porque se formos olhar para as mulheres pobres, tanto brancas quanto negras, elas não são nem blogueiras feministas, nem blogueiras negras. Podemos desqualificar a luta feminista porque "esse site é um lixo porque não tem as lutas de classe.". Não, calma, podemos falar desses problemas e tentar olhar para outros. Sempre pudermos vamos olhar para os problemas sociais, raciais e de gênero. Só que, em alguns momentos, o discurso político vai focar em um desses temas e não dá muito para julgar que se faça isso porque há algo de estratégia política mesmo [nessa opção] e talvez seja uma estratégia dos grupos de mulheres

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negras bater nos grupos de mulheres brancas para ter visibilidade nas pautas [ligadas às causas negras]. E aí, como é que analisamos? Acho que olhando [para entender as razões] e falando "É assim e talvez seja assim por isso, talvez seja assim por aquilo".

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ANEXOS

Exemplos de comentários nas postagens citadas no capítulo 3: Blogueiras Feministas Racismo pouco é bobagem: o desfile de Ronaldo Fraga e a defesa do indefensável

Texto completo disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2013/03/racismopouco-e-bobagem-desfile-ronaldo-fraga/. Acesso em 02/05/2015.

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Texto completo disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2013/03/racismopouco-e-bobagem-desfile-ronaldo-fraga/. Acesso em 02/05/2015.

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Vozes-mulheres de escritoras e intelectuais negras

Texto completo disponível em: http://blogueirasfeministas.com/2012/11/vozesmulheres-de-escritoras-e-intelectuais-negras/. Acesso em 02/05/2015.

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Blogueiras Negras Uma charge racista e os haitianos em São Paulo

Texto completo disponível em: http://blogueirasnegras.org/2014/06/06/uma-chargeracista-e-os-haitianos-em-sao-paulo/. Acesso em 02/05/2015.

87

Tirem as mãos dos nossos símbolos de luta!

Texto completo disponível em: http://blogueirasnegras.org/2013/11/27/tirem-maossimbolos-luta/. Acesso em 02/05/2015.

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