JORNALISMO DESENHADO: A NARRATIVA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS A SERVIÇO DAS REPORTAGENS

June 1, 2017 | Autor: M. Salles Falcão | Categoria: Jornalismo, Narrativas, Comics Journalism, Joe Sacco, Jornalismo em quadrinhos, Augusto Paim
Share Embed


Descrição do Produto





Naturalmente, dentro de limites em que uma reprodução feita por mãos humanas possa ser dita real, ponto ao qual retornaremos e analisaremos com mais calma ao longo deste trabalho.
Essa vinculação entre a prática jornalística e sua função de servir à sociedade se mantém até os dias atuais, como mostra Kanno em seu trabalho de conclusão de curso Jornalismo nas Histórias de Super-Heróis:Os Quadrinhos de Clark Kent e Peter Parker. A inspiração para a pesquisa surgir ao observar falas de seus colegas, ainda no primeiro período, para explicar o porquê de terem escolhido Jornalismo. "Uma resposta recorrente e impressionante da turma, ao lado de outras como 'gostar de escrever' e 'profissão sem rotina', foi algo como 'gostaria de ajudar as pessoas, melhorar o mundo'. Quer dizer que o Jornalismo, uma profissão como outras (...) relaciona-se a atos dignos de heróis?" (2006, p.2). Heróis jornalistas estes que, continua o autor, abundam nas histórias em quadrinhos: do destemido Tintin, criação do belga Hergé, passando por Brenda Starr, repórter-detetive dos primórdios dos quadrinhos americanos, até chegar a atuações esporádicas de populares personagens da Disney como jornalistas (com destaque para Margarida, que em algumas histórias chega a ser editora do suplemento A Patinha, além de apresentadora de programa de televisão e âncora de telejornal). (Ibid., p.3).

Interessante notar que, se tanto Clark Kent quanto os exemplos da última nota de rodapé por um lado retratam o lado mais idealizado do Jornalismo, na figura do Homem Aranha aparece uma outra face da profissão, em sua função muito humana de servir como meio de sustento. Peter Parker, alter ego do super-herói aracnídeo, trabalha como fotojornalista para o jornal de J.J. Jameson, e não tem pudores ao jogar para escanteio qualquer idealização de seu ofício: "Só tiro foto para pagar as contas, sabe?", admite, na edição 29 de Homem Aranha da Panini (KANNO, 2006, p. 126).

Apenas a título de curiosidade, o pesquisador também é defensor de que é possível encontrar a narrativa não só na unidade jornalística solta (com destaque para sua forma mais objetiva, que estaria no formato da notícia), mas também na soma de todo conteúdo consumido diariamente. Se a narrativa é a forma pela qual o ser humano organiza e entende o mundo real, pode-se ver a leitura das fragmentadas notícias como um ato através do qual é possível "conectar as partes, tecer os laços de significação temporal, preencher as lacunas, reconfigurar as indeterminações, articular passado, presente e futuro, montar os atravessados quebra-cabeças das intrigas e significados através dos atos criativos de recepção"(MOTTA, 2004, p.15). Curiosamente, esse ato de criação do significado maior a partir da soma de vários fragmentos (no caso, as notícias) em muito se assemelha ao trabalho mental que é pedido quando da leitura de quadrinhos. O leitor deve "observar as partes, mas perceber o todo" (MCCLOUD, 1995, p. 63), uma vez que é a sequência dos quadros, e não cada um sozinho, que monta a história contada e lhe dá uma significação ampla.

Vale lembrar que, nos últimos anos, com o advento de programas de manipulação de imagem, sendo o Photoshop o mais conhecido deles, o posto da fotografia como inegável e objetivo retrato do real foi sendo questionado. Na visão desse trabalho, porém, a facilidade de alterar uma foto por meio da manipulação digital apenas joga luz sobre uma característica da produção fotográfica por vezes esquecida, a saber, sua natureza que também leva consigo uma carga subjetiva (ainda que menor do que a de um desenho, admitidamente). Augusto Paim ilustra bem essa questão, ao argumentar: "..o fotógrafo tira sua fotografia escolhendo ângulos, iluminações, foco, tipo de lente, filtros etc. Mesmo se não usar máquinas digitais, um fotógrafo pode manipular fotografias de modo a alterar percepções, tais como volume, perspectiva e distância. Isso se faz tanto durante a revelação em laboratório, quanto no momento de optar pela abertura do diafragma e a velocidade do obturador, por exemplo, antes de a foto ser batida. Além disso, no fotojornalismo há a seleção subjetiva, feita pelo editor, de qual foto será publicada no jornal" (2007, p. 54).
Em entrevista realizada por email em setembro/2012, assim Paim qualifica as vantagens e desvantagens do formato quadrinístico para o Jornalismo: "para mim, trabalhar com reportagem em quadrinhos tem duas vantagens principais: primeiro, esse trabalho tem me permitido um resgate do jornalismo romântico, que é aquele de ir pra rua e sujar os sapatos de lama (e isso vale também para o desenhista); segundo, que há uma série de elementos importantes da narrativa em quadrinhos (como visualidade, sequencialização, memória, estilo do desenho, etc) que podem prestar contribuições para determinados tipos de pautas, ou seja, para pautas em que essas características dos quadrinhos combinem com a melhor forma de tratar o assunto em questão. Já as limitações são as mesmas de qualquer mídia: há recursos narrativos próprios de determinadas linguagens que não encontram correspondente em outra. Por isso é tão importante se pensar em que tipo de pauta pode ser adequada ou não para a linguagem dos quadrinhos."

Não é o objetivo desse trabalho analisar em detalhes essas duas reportagens, mas é interessante notar como se estruturam de maneira a se colocar lado a lado do estilo de fazer jornalismo que orienta o mestre Joe Sacco. O jornalista maltês seguidas vezes afirmou ser seu compromisso maior a honestidade diante do leitor, até mais do que a objetividade, e parece ser esse o guia de Inside the Favelas e Inside the Maré, que devem ser lidas em sequência. Logo na página que abre Inside the Favelas, Paim e o desenhista MAUMAU deixam claro os objetivos de sua reportagem: "A mídia retratou isso (a ocupação das favelas) como uma luta entre policiais bons e traficantes malvados. De acordo com esse ponto de vista, a população das favelas estaria logo celebrando a liberdade. Para ver esse episódio pelo outro lado, é preciso ir dentro das favelas" (PAIM&MAUMAU, 2011, p.1)

A título de curiosidade, no momento de elaboração deste trabalho, o time está na série D.
As citações creditadas a Archer se referem a declarações feitas em entrevista por email, em junho de 2012. Archer faz um interessantíssimo trabalho unindo a linguagem do jornalismo em quadrinhos com recursos multimídia na internet, o que por si só daria material para outra monografia. Atualmente se dedicando a uma série de quadrinhos sobre tráfico de pessoas no Nepal, o quadrinista e jornalista disponibiliza seus trabalhos no site archcomix.com.
Declaração dada em entrevista, realizada por email em setembro de 2012.
14

20



MARIANNA SALLES FALCÃO









JORNALISMO DESENHADO: A NARRATIVA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS A SERVIÇO DAS REPORTAGENS








Uerj
2013
JORNALISMO DESENHADO: A NARRATIVA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS A SERVIÇO DAS REPORTAGENS







MARIANNA SALLES FALCÃO




Monografia de conclusão do curso de Comunicação Social apresentada ao Departamento de Jornalismo da Faculdade de Comunicação Social (FCS) da Uerj.
Orientador: Prof. Dr. Marcelo Kischinhevsky














Rio de Janeiro, 1 sem. de 2013
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
FOLHA DE EXAME
JORNALISMO DESENHADO: A NARRATIVA DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS A SERVIÇO DAS REPORTAGENS

Marianna Salles Falcão

Monografia submetida ao corpo docente da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) como parte dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Bacharel.













Banca Examinadora:

__________________________________________
Professor Doutor Marcelo Kischinhevsky (FCS/Uerj) – Orientador


_________________________________________
Ms. José Carlos Messias Santos Franco (FCS/Uerj)


__________________________________________
Professora Doutora Letícia Cantarella Matheus (FCS/Uerj)


Resultado:_________________
Conceito:__________________
Grau obtido:_______________
Rio de Janeiro, ___/___/______


DEDICATÓRIA













Dedico essa monografia a minha família, em especial a meus pais, que sempre me fizeram ter a certeza de que o estudo, ainda que cansativo e por vezes frustrante, é um caminho nobre que se deve buscar. E, claro, a autores como Natsuki Takaya, CLAMP, Ai Yazawa, Naoki Urasawa, Quino, Maurício de Souza e tantos outros que desde a mais tenra idade me mostraram e seguem mostrando as mil possibilidades dos quadrinhos.










AGRADECIMENTOS




Agradeço ao meu orientador, Marcelo Kischinhevsky, pelo apoio e entusiasmo de e-mails trocados de madrugada. À mamãe pela revisão; a meu irmão por entender as vezes que fiquei presa na frente de um computador sem poder dar atenção a ele; a papai, Dedé e Tchocou pelo carinho de todos os dias. Aos amigos pelas vezes que fingiram interesse no andamento deste pequeno trabalho – principalmente naqueles momentos em que a atenção era genuína.












EPÍGRAFE






"There's more than one truth."
The Cartoon Movement















RESUMO
FALCÃO, Marianna Salles. Jornalismo desenhado: A Narrativa das Histórias em Quadrinhos a Serviço da Reportagem. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Kischinhevsky. Rio de Janeiro: UERJ/FCS, 2013. 85 p. Monografia. (Graduação em Comunicação Social).
O objetivo deste trabalho é analisar o Jornalismo em Quadrinhos, estilo de produção jornalística recente que une as técnicas de montagem de reportagens com o grafismo das histórias em quadrinhos. Com atenção a detalhes e uso de práticas como as entrevistas, o registro fotográfico e a análise de documentação, os quadrinhos – tradicionalmente associados com fábulas, super-heróis e outros devaneios infanto-juvenis – são tão válidos para a produção jornalística quanto o vídeo, o áudio ou a escrita. Atente para o fato de que não se objetiva provar uma dita superioridade dos quadrinhos ou ignorar suas limitações – é difícil pensar, por exemplo, num jornal diário com todas as notícias no formato de quadrinhos, devido em grande parte à demora com que sua parte artística, o trabalho do desenho em si, é montada. O que se pretende nessa monografia é simplesmente mostrar que os quadrinhos devem ser vistos sem preconceitos como mais uma mídia que serve ao propósito de enriquecer e aumentar a abrangência da produção jornalística. Para tanto, depois de realizada revisão bibliográfica – com destaque para os pensamentos de Muniz Sodré e Luiz Gonzaga Motta sobre narrativa -, serão analisadas as obras Notas Sobre Gaza, reportagem em quadrinhos de Joe Sacco, maior referência no gênero; e a brasileira Juventude: Tempo de Crescer, de Augusto Paim (texto) e Ana Luiza Goulart Koehler (arte), além da série de reportagens publicadas na seção Jornalismo em Quadrinhos da Revista Fórum, de autoria de CarlosCarlos(texto) e Alexandre de Maio(arte). Argumentamos que a linguagem dos quadrinhos usa de recursos narrativos que, ainda que não imediatamente reconhecidos como passíveis de serem usados no Jornalismo, são mais uma ferramenta para a construção do real que é a base mesmo das notícias e reportagens mais tradicionais.
Palavras chave: Jornalismo em Quadrinhos; Joe Sacco; narrativa; Augusto Paim.







LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – PÁGINA 343 DE NOTAS SOBRE GAZA ...................................................79
FIGURA 2 – PÁGINA 203 DE NOTAS SOBRE GAZA ...................................................80
FIGURA 3 – COMPARAÇÃO YOUTUBE E REPORTAGEM EM QUADRINHOS DA REVISTA FÓRUM ..............................................................................................................81
FIGURA 4 – PÁGINA DA REPORTAGEM SOBRE CRACK DA REVISTA FÓRUM .82
FIGURA 5 – ABERTURA DE JUVENTUDE: EM TEMPO DE CRESCER ....................83
FIGURA 6 – ÚLTIMA PÁGINA DE JUVENTUDE: EM TEMPO DE CRESCER ..........84
FIGURA 7 – PÁGINA 116 DE NOTAS SOBRE GAZA ...................................................85














LISTA DE ANEXOS
ANEXO 1 – ENTREVISTA DAN ARCHER .....................................................................73
ANEXO 2 – ENTREVISTA AUGUSTO PAIM .................................................................76
ANEXO 3 – FIGURAS ........................................................................................................79

















SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................11
1. DO SUPER-HOMEM AO RELATO DE GUERRA .......................................................15
1.1. COMO TUDO COMEÇOU ......................................................................................15
1.2. TERRENO APENAS DE FANTASIA? ...................................................................18
1.3. OS TRÊS GRANDES ...............................................................................................25
1.4. E O BRASIL? ...........................................................................................................28
2. JOE SACCO, PALESTINA E UMA NOVA FORMA DE FAZER JORNALISMO .....37
2.1. BREVE BIOGRAFIA E O PRIMEIRO TRABALHO .............................................37
2.2. NOTAS SOBRE GAZA – ENREDO .......................................................................39
2.3. NOTAS SOBRE GAZA – POR QUE É JORNALISMO? .......................................43
3. O BRASIL NO JORNALISMO EM QUADRINHOS ....................................................52
3.1. EXEMPLOS PONTUAIS E A PERIODIZAÇÃO DA FÓRUM .............................52
3.2. JUVENTUDE: EM TEMPO DE CRESCER ............................................................55
3.2.2. BREVE APRESENTAÇÃO DO AUTOR .....................................................55
3.2.3 JUVENTUDE: EM TEMPO DE CRESCER – QUANDO PALAVRAS E DESENHOS SE UNEM PARA CONTAR UMA HISTÓRIA JORNALÍSTICA ..............57
CONCLUSÃO .....................................................................................................................62
BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................................67
BIBLIOGRAFIA DIGITAL ................................................................................................69
INTRODUÇÃO
Naturalmente, é difícil aceitar a ideia de que histórias em quadrinhos possam ser "jornalísticas". Quadrinhos são tradicionalmente associados a trabalhos essencialmente ficcionais. Até que se fosse aceito que esta mídia podia reivindicar para si o caráter de válida para contar histórias reais e se livrar de estigmas de ser uma leitura "menor", um longo caminho foi percorrido. No Capítulo I, veremos com mais detalhes essa trajetória: indo desde as primeiras histórias em quadrinhos, surgidas nos jornais dos EUA ainda no final do século XIX até o aparecimento do trabalho de Joe Sacco, jornalista e quadrinista maltês tido como o responsável pelo amadurecimento e consolidação do termo Jornalismo em Quadrinhos graças a seus trabalhos em zonas de guerra como a Palestina e a Bósnia da década de 90. Veremos também, brevemente, a trajetória dos quadrinhos no Brasil, com destaque para o papel do jornalista Adolfo Aizen, pioneiro em perceber o potencial de mercado das historinhas vistas como diversão rasteira, voltada para crianças.
Tanto no Brasil quanto no exterior, os quadrinhos passaram por várias fases, em que velhos preconceitos foram sendo desconstruídos. Nessa caminhada para provar que não são uma mídia que serve apenas a narrativas vazias de personagens caricatos, o ano de 1986 aparece com destaque: por coincidência, nesse ano foram lançados Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbon¸ The Dark Knight Returns, de Frank Miller e Klaus Janson, e Maus, de Art Spielgeman. Cada um desses trabalhos a sua maneira contribuiu para diminuir preconceitos contra quadrinhos e mostrar sua validade para contar outras histórias além das infanto-juvenis. Mas Maus (que conta as lembranças do pai de Spielgeman, judeu sobrevivente da perseguição nazista) talvez tenha o maior valor simbólico por ter sido o primeiro trabalho em quadrinhos a ganhar um prêmio Pulitzer de Jornalismo, o que na época foi recebido com incredulidade por alguns: como chamar de "jornalismo" uma obra que teve o desrespeito de tratar um tema como o Holocausto usando "desenhinhos"?
O objetivo dos Capítulos II e III é mostrar que estes "desenhinhos" não precisam ter medo de se dizer reportagens jornalísticas. Para tanto, será analisado, no segundo capítulo, Notas Sobre Gaza, trabalho mais recente de Joe Sacco, de 2009. Nele, Sacco volta para a o cenário de sua primeira reportagem em quadrinhos Palestina, em busca de testemunhas de dois massacres de civis acontecidos nas cidades vizinhas de Khan Younis e Rafah, em 1956.
Já o terceiro capítulo pretende mostrar exemplos do Jornalismo em Quadrinhos no Brasil, servindo estes também como objetos de análise para provar a validade do referido suporte, com o mesmo referencial teórico do estudo da obra de Sacco. Por seu caráter inédito, serão avaliadas brevemente as reportagens mensais publicadas na seção Jornalismo em Quadrinhos da Revista Fórum (editora Publisher Brasil). Esta seção foi criada em janeiro de 2012, e tem por mérito ser a primeira iniciativa brasileira na criação de um espaço fixo para esse tipo de fazer jornalístico. São reportagens curtas, todas de autoria de CarlosCarlos (texto) e Alexandre de Maio (arte), que já abordaram temas variados, da Copa do Mundo no Brasil ao problema do crack em São Paulo. O interesse em avaliar esses trabalhos é para mostrar também a flexibilidade dos quadrinhos, que, por mais que velhos – e felizmente cada vez menos levados a sério – preconceitos digam o contrário, podem ser usados para tratar dos mais diversos temas.
Ainda na busca de exemplos brasileiros, pretende-se analisar com mais cuidado a obra Juventude: Em Tempo de Crescer, pequena reportagem de autoria de Augusto Paim (texto) e Ana Luiza Goulart Koehler (arte), publicada originalmente na revista Continumm do Itaú Cultural em 2010. Na visão desse trabalho, a breve reportagem tem em alguns momentos um entendimento exemplar do uso ideal dos quadrinhos: aquele em que imagens e palavras se unem para expressar uma mensagem de maneira única e singular, numa amálgama perfeita que é justamente o ponto mais fascinante da linguagem quadrinística.
Para sustentar a análise qualitativa tanto de Notas Sobre Gaza quanto de Juventude: Em Tempo de Crescer e dos trabalhos da Revista Fórum, foi feita cuidadosa revisão bibliográfica, além de entrevistas realizadas por email com o jornalista e quadrinista americano Dan Archer e com o próprio Paim (ambas na íntegra na seção de Anexos). Nosso principal argumento é que a linguagem única dos quadrinhos pode servir como mais um instrumento no auxílio da construção do real empreendida pelo Jornalismo, que se trata, como mostram autores como Muniz Sodré e Luiz Gonzaga Motta, de uma representação estruturada em formato narrativo – ainda que muitas vezes não nos demos conta. Da notícia, que guarda consigo o potencial de uma história, se estruturando como um relato micronarrativo (SODRÉ, 2009, p.71), até a reportagem, onde as muitas possibilidades do fato jornalístico estruturado como um contar são experimentadas com mais liberdade, o discurso do Jornalismo também se estrutura como um dos muitos meios pelos quais os seres humanos organizam o real e criam suas próprias interpretações. O uso da linguagem dos quadrinhos, acredita este trabalho, deixa esse caráter de construção mais claro, ponto que será melhor explicado nas páginas finais desta pesquisa.
Na conclusão, será mostrado como o Jornalismo em Quadrinhos lida com esta questão de "reproduzir o real", apresentando também possíveis críticas que se posicionam contra a qualificação de tais trabalhos como "jornalísticos". A busca pela objetividade, usada como guia para a produção jornalística e forma de legitimar essa prática enquanto digna de apresentar fatos ditos "reais", não é ignorada pelos repórteres que usam quadrinhos como sua mídia – que fazem entrevistas, tiram fotografias e estudam material documental para criar as bases de suas histórias, por exemplo. Parece-nos, porém, haver uma melhor aceitação dos limites dessa tarefa de se atingir um relato objetivo dos fatos. Tal consciência, antes de apresentar uma incapacidade para o fazer jornalístico, traz algumas vantagens para a relação leitor-repórter que serão detalhadas no capítulo final.
Em nenhum momento este trabalho espera pôr um ponto final na discussão sobre Jornalismo em Quadrinhos, suas limitações e potencialidades, mas espera-se que esta pesquisa contribua para que os quadrinhos sejam vistos com outros olhos. O Jornalismo em Quadrinhos deu seus primeiros passos nas décadas de 80-90, sendo, então, uma forma de fazer jornalismo extremamente nova e que passará ainda por muitas experimentações, erros e acertos para se firmar. O importante é que seja reconhecido, antes de valores como se quadrinhos são "melhores" ou "piores" do que mídias tradicionais, que este suporte tem o potencial para servir aos mais diferentes temas, sendo o Jornalismo mais um dos gêneros que podem ter suas histórias contadas com auxílio de balões.


1. DO SUPER-HOMEM AO RELATO DE GUERRA
1.1 COMO TUDO COMEÇOU
As histórias em quadrinhos não decidiram se aventurar pelos meandros do Jornalismo do nada. Até que essa mídia atingisse um nível de maturidade e conseguisse respeito o suficiente para se julgar digna de ser palco para histórias reais, um longo caminho foi percorrido. Se aceitamos como correta a definição de Scott McCloud em seu clássico Desvendando os Quadrinhos – de que histórias em quadrinhos seriam "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada, destinadas a transmitir informação e/ou produzir uma resposta no espectador" (1995, p.9) -, essa maneira de contar histórias teve suas raízes embrionárias ainda nos tempos mais remotos. Considerando "quadrinhos" como uma sequência de imagens colocadas numa lógica cronológica, é possível ver sua gênese em "hieróglifos egípcios que registravam cenas cotidianas, (n)os murais maias que historiavam batalhas e cerimônias religiosas, e (n)as iluminuras medievais que ilustravam passagens do evangelho" (VALLE, 2010, p.15).
Avançando um pouco, mas ainda numa fase pré-revolução industrial, o artista que talvez melhor tenha entendido as possibilidades dessa forma graficamente seriada de contar histórias tenha sido o suíço Rodolfo Töpffer. Foi ele o responsável por um conjunto de obras gráficas que o fariam ser reconhecido mais tarde como pioneiro no trabalho com quadrinhos, introduzindo novidades que se tornariam comuns, como a caricatura e a veia satírica que abundariam nas tirinhas de jornais décadas mais tarde, além do uso dos requadros, ainda nos primórdios da imprensa ilustrada. Mais importante que isso, porém, foi que, através de histórias como Les Amours de Monsieur Vieux Bois ou Voyages et Aventures du Docteur Festus, Töpffer daria os primeiros passos no amálgama das imagens e das palavras – a relação entre elas até então era hierárquica, numa função meramente ilustrativa. Foi o entendimento de que o visual e o escrito poderiam agir de maneira complementar, visando à melhora da relação entre o leitor e a obra, que daria aos quadrinhos sua característica única e distintiva, numa relação que, se bem trabalhada, pode "fazer milagres", na concepção de McCloud:
As figuras podem induzir sensações fortes no leitor, mas também podem carecer das especificidades das palavras. As palavras, por outro lado, oferecem essa especificidade, mas não têm a carga emocional imediata das figuras, dependendo de um efeito cumulativo gradual (1995, p.135)

Para que se chegasse ao total entendimento dessa mistura "milagrosa", ainda seriam necessários mais alguns passos. O pontapé inicial de Töpffer teve continuidade na obra de
Richard Fenton Outcault, com seu famoso Yellow Kid, tido como o pai do quadrinho moderno. A tirinha, iniciada em 1895 no The New York World, acompanhava um garotinho careca e dentuço, que exibia comentários satíricos ou cômicos sobre o cotidiano norte-americano em seu grande camisolão amarelo. Curioso é saber que a escolha da cor-título não passou de um acaso: quando da chegada da impressora a cores na redação, um dos técnicos se aproximou da prancheta de Outcault e pediu para testar o amarelo na grande camisola do personagem que o artista desenhava.
Nesse momento histórico, nasciam duas coisas importantes: os comics como os concebemos hoje, com personagens periódicos e seriados, e o termo 'jornalismo amarelo' para designar a impressa sensacionalista, em busca do sucesso fácil com o grande público. (MOYA, 1972, p.36).

Se se conhece a história do quadrinho moderno, a ideia de associá-lo ao Jornalismo não parece tão absurda. Afinal, "é preciso lembrar que as histórias em quadrinhos nasceram e se desenvolveram como afilhadas do Jornalismo, em cujos suportes iniciais e mais básicos, os jornais impressos, elas se iniciaram, como páginas dominicais e, posteriormente, como tiras" (KANNO, 2006, p.3). Em meio aos embates da imprensa sensacionalista, tão bem ilustrada pela clássica rivalidade entre os magnatas americanos Joseph Pulitzer e William Hearts - que, aliás, tiveram seu primeiro embate de renome justamente para decidir para qual dos dois o talentoso Outcault trabalharia (Ibid, p.3) -, as histórias em quadrinhos proliferavam inicialmente nos suplementos dominicais, numa estratégia de atrair simultaneamente tanto a massa de trabalhadores que ia aos poucos ganhando maior letramento, quanto o grande número de imigrantes que chegavam aos Estados Unidos naquele final de século, e cuja dificuldade com a língua podia ser contornada pela intimidade muitas vezes universal com ícones gráficos. Esse caminho já se mostrava frutífero na profusão de matérias ilustradas, que atendiam à necessidade do homem moderno de consumo mais rápido, adaptado à velocidade crescente do dia-a-dia pós-revolução industrial, ao mesmo tempo em que permitiam ser sanado seu desejo individual de, com auxílio de imagens conhecidas, sentir-se mais próximo e íntimo daquilo que consumia. (KLAWA&COHEN, 1972 p.108). Com essa perspectiva histórica em mente, "não deveria haver estranheza ao se falar em jornalismo em quadrinhos" (OLIVEIRA&PASSOS, 2006, p.3), uma vez que seu desenvolvimento sempre esteve muito próximo do mundo dos jornais.
Com o sucesso do Yellow Kid, a imprensa americana foi inundada por uma série de tirinhas, a maioria de caráter humorístico – daí o nome "comics" -, que usavam algumas convenções trazidas pela obra de Outcault – notadamente, o uso dos balões para representar graficamente algo que não pode ser reproduzido perfeitamente na folha de papel, a saber, o som. É importante notar que, ainda que muitas das tirinhas se tratassem de diversão descartável, uma vez que eram produzidas em escala industrial para atender à grande demanda dos jornais populares de conseguir mais atrativos para vendas, mesmo naquela época já surgiam artistas que não se limitavam pelo estágio ainda primitivo dos quadrinhos ou por imposições externas. Um deles foi George Herriman, que em 1911 criou a tirinha Krazy Kat, um dos primeiros trabalhos em quadrinhos a receber uma crítica elogiosa, na análise do crítico Gilbert Selders em 1926. A linguagem poética de Herriman, que colocava suas experiências pessoais num cenário surrealista habitado por gatos e ratos, tornou-o reconhecido como artista excepcional, capaz até mesmo de se colocar acima de imposições do mercado americano, onde os personagens pertencem às editoras. "Por isso, personagens de sucesso como Superman e Batman continuam sendo produzidos mesmo após a morte de seus criadores."(MESSIAS, 2009, p.29). Depois que Herriman faleceu, em 1944, contrariando a prática comum, sua tirinha não foi relegada a outros autores para que fosse possível continuar colhendo os frutos da publicação das famosas histórias (MOYA, 1972, p.36), respeitando a noção de que apenas Herriman poderia ser responsável pelo desenvolvimento de seus personagens, tão pessoais.

1.2 TERRENO APENAS DE FANTASIA?

O final da década de 20 foi marcado pela chegada das aventuras fantasiosas aos quadrinhos, com o surgimento de obras como Tarzan, Buck Rogers e Flash Gordon. Nos anos seguintes ao grande crash de 1929 que abalou as estruturas da economia americana, os quadrinhos se caracterizaram por ter como principal função a fuga da realidade – daí os cenários das matas verdejantes de Tarzan ou as viagens espaciais pelo universo inexplorado das aventuras de Flash Gordon. "O conservadorismo que se instalou na sociedade estadunidense varreu para debaixo do tapete as produções que criticavam o sonho americano" (VALLE, 2010, p.26). Nesse período, surgiram também as primeiras revistas totalmente dedicadas a quadrinhos, com compilações das aventuras originalmente publicadas nos jornais.
Foi esse cenário que abriu as portas para um dos maiores símbolos da chamada Era de Ouro dos quadrinhos: o Super Homem. Nascido em 1938, o homem de aço é uma criação de Jerry Siegel (roteiro) e Joe Shister (desenho), e, curiosamente, foi recusado por muitas editoras por ser considerado "muito fantástico" (MOYA, 1972, p.63). A aposta daqueles que ignoraram a força do filho de Krypton não poderia ter sido mais enganada: surgido nas páginas da Action Comics Magazine, o Super Homem foi responsável por dobrar as vendas da revista depois de poucos números. Em 1939, ganharia uma edição própria com a tiragem de 1.400 exemplares, números extraordinários para a época, e se estabeleceria como "gênese de uma série interminável de super-heróis" (Ibid., p.65).
Vale ressaltar que o Super Homem, talvez até hoje um dos símbolos máximos dos quadrinhos, tem como alterego a figura de Clark Kent, um jornalista. A escolha da profissão parece natural se levarmos em conta toda a trajetória dos quadrinhos, que em seus primórdios tiveram as páginas dos jornais como suporte, mas também não deixa de ser sintomático de uma visão romântica da profissão. O Jornalismo, além de tornar possível o acesso a informações privilegiadas, muitas vezes se encontra envolvido em uma aura elevada, sendo seus profissionais frequentemente comparados com heróis pelos serviços que prestam à sociedade. Em uma das edições, Clark Kent:
se justifica para Lois Lane como profissional jornalista de maneira heroica, e vocacionado desde pequeno (Super-Homem 113: 57): 'Mesmo antes de meus poderes se manifestarem, eu sabia que queria contribuir com a sociedade! Por isso, o jornalismo me atraiu!'(KANNO, 2006, p.53).

Se o Super-Homem olha para o Jornalismo com olhos sonhadores, o mesmo se pode dizer de muitos profissionais, que atribuem a si mesmo qualidades exageradas e uma idealização sobre-humana de seu ofício, coisa que Geraldinho Vieira intitulou como "Complexo de Clark Kent", em seu livro homônimo.
O poder da palavra, da imagem, da seleção e interpretação dos fatos, e de sua multiplicação cria a ilusão do repórter super-homem como, a começar pela tradicional história em quadrinhos, foi tantas vezes utilizada pela ficção(...) A ficção coloriu uma profissão onde o dia-a-dia é uma maravilhosa aventura no combate aos males sociais e na procura da verdade, onde as portas parecem abertas a toda sorte de liberdade, da manipulação da realidade ao acesso e divulgação da informação"(VIEIRA, 1991, p.12).

O afastamento dos quadrinhos do mundo real, iniciado pelo Super Homem, fez com que surgissem as primeiras críticas a essa mídia, notadamente focando-se na sua dita "inferioridade": seriam os quadrinhos constituídos por "revistas coloridas, cheias de arte sofrível, aventuras idiotas e sujeitos de colante" (MCCLOUD, 1995, p.2). Partindo do ponto de vista de que as histórias em quadrinhos cometeriam o "pecado" de tentar diminuir a profundidade e o significado das palavras ao juntá-las ao imediatismo das imagens, essa forma de narração e arte foi considerada "na melhor das hipóteses, uma diversão para massas; na pior das hipóteses, um produto comercial crasso" (Ibid, p.140). A proliferação de revistas policiais e de terror que abusavam de tramas rocambolescas cheias de violência e sensualidade, numa forma de comunicação considerada mais adequada às crianças, também contribuiu para essa visão negativa dos quadrinhos.
Mas mesmo nessa época de exageros gráficos e histórias de homens vestindo cuecas por cima das calças para defender o mundo de vilões excêntricos, havia quem soubesse se usar da fantasia para falar do mundo real. Al Capp, artista cujo personagem mais famoso era o interiorano Li'l Abner, criado em 1934, ganhou notoriedade por usar a fictícia terra de Dog Patch como um espelho ácido da vida americana. Essa visão crítica se estenderia até os anos 70, quando o personagem deixaria de ser publicado.
..(Li'l Abner) satirizava a bomba, Nova York, o capitalismo, os astros, os discos voadores, a TV, a propaganda, a fome, os políticos, a diplomacia, a guerra, a paz, o FBI, o Macarthismo, o Kennedysmo, o matriarcado e até a Coca-Cola (...)(MOYA, 1972, p.51)

Uma das figuras mais icônicas de Li'l Abner, e uma boa ilustração para o fato de que fantasias nem sempre estão descoladas do que acontece no mundo de fato, foram os Shmoos, surgidos pela primeira vez numa história de 1948. Eram criaturas que habitavam o vale dos Shmoos, encontrado por acaso pelo inocente Abner. Pequeninos e dóceis, os animaizinhos botavam ovos, davam leite e sua carne tinha o gosto de frango, vaca ou porco, dependendo de como fosse preparada. Além disso, se reproduzem extrema- mente rápido e não precisavam de nada para se alimentar.
Entusiasmado, Abner leva um casal de Shmoos para Dog Patch, certo de que é responsável por um grande feito – com animais que proveem todo o necessário para sobreviver, pelo que mais os homens poderiam brigar? Mas o dono do armazém fica incomodado com aquela novidade. "Eu estarei arruinado se todos tiverem grátis o que necessitam e eu não farei dinheiro" (Ibid, p. 54). No final da história, os Shmoos são exterminados pelo exército, temerosos de que a os bichinhos causassem a quebra total da economia mundial ao tornar obsoleta a indústria de alimentos. E o povo é, então, "exortado a voltar a seu modo normal de vida" (Ibid, p. 55). Na época, a história chamou atenção por poder ser facilmente tomada como uma alegoria do medo crescente do domínio do comunismo nos Estados Unidos, representado por inocentes e amáveis criaturinhas.
Iniciativas como a de Al Capp, um exímio mestre da contação de histórias, foram fundamentais para que os quadrinhos se afastassem do estereótipo comum de terra apenas dos heróis que voavam pelo céu com suas capas esvoaçantes. Mas era preciso ainda um passo mais ousado, a coragem de dar a cara a tapa e dizer que quadrinhos podiam ser veículos tão válidos para contar histórias sérias quanto o tradicional livro encontrado nas bibliotecas e livrarias. Para tanto, o próprio formato das histórias teve que se aproximar de seu parente literário: surgiam as graphic novels.
O termo graphic novels – romances gráficos – é rechaçado por alguns pesquisadores, que veem na tentativa de ignorar sua origem de quadrinhos uma aceitação de que esta mídia seria menor, digna de atenção apenas se equiparada à literatura tradicional. Tal "medo de dizer seu nome" seria fruto de velhos preconceitos, presentes até mesmo entre os profissionais do meio. "A expressão 'história em quadrinhos' teve conotações tão negativas que muitos profissionais preferem ser conhecidos como 'ilustradores', 'artistas comerciais' ou, na melhor das hipóteses, 'cartunistas'"(MCCLOUD, 1995, p. 18). Um caso interessante, vivenciado por Will Eisner, um dos maiores nomes dos quadrinhos modernos e grande entusiasta das possibilidades criativas dessa mídia – chamada por ele de arte sequencial -, também é sintomático dessa visão redutora que por vezes os próprios autores tinham de seu trabalho: numa reunião da National Cartoonists' Society, nos anos 60, o criador do Espírito se aproximou de Rube Goldberg, cartunista responsável por uma série de tiras de sucesso em jornais do começo do século XX.
De algum modo, a conversa pendeu para as opiniões de Will sobre o potencial dos quadrinhos como forma artística. Tendo ouvido o que lhe bastava, Goldberg bateu a bengala no chão e disse: 'isso é besteira, rapaz! Nós não somos artistas!'(MCCLOUD, 2000, p.26).

Independente de os termos graphic novel ou arte sequencial serem justos ou não, a questão é o que surgimento das primeiras foi um passo inicial para que se quebrassem velhas concepções acerca dos quadrinhos. Em oposição ao padrão de quadrinhos como narrativas curtas e publicadas em capítulos seriados, que muitas vezes privilegiavam a rotina de produção industrial ao respeito à criatividade e timing do artista, as graphic novels surgem como histórias pensadas de maneira completamente nova para o meio.

A possibilidade de construção de narrativas mais longas e completas permitiu a construção de personagens psicologicamente mais complexas, a utilização de quadros descritivos e o prolongamento das ações em mais quadros (VALLE, 2007, p.36).

Eisner, que já tinha experiência em puxar os limites tanto narrativos quanto gráficos das histórias em quadrinhos a partir das aventuras de seu detetive Espírito, iniciadas em 1940, sabia melhor do que ninguém que ler quadrinhos era um ato de "percepção estética e de esforço intelectual" (EISNER, 1999, p.8), sendo dignos de reconhecimento como suportes válidos para tratar de todo e qualquer tema.
É Um Contrato Com Deus que inicia essa nova era, primeira graphic novel de Eisner, publicada em 1978. Na história, que tem quase 200 páginas – bem longe da uma folha dedicada aos quadrinhos nos suplementos dominicais, onde sua forma moderna se consolidou -, quatro contos se entrelaçam, tendo como cenário o bairro pobre do Bronx e como protagonistas personagens que vivem os conflitos e a dramas de ser imigrantes.
É importante ressaltar que o foco no dia-a-dia de pessoas comuns e seus dilemas aparentemente banais só poderiam ser o tema de uma história em quadrinhos graças ao trabalho de inúmeros artistas da chamada contracultura. Foram eles que criaram os comix, em contrapartida aos quadrinhos tradicionais, ainda nas décadas de 60. Essa época coincidiu com o surgimento de heróis um pouco mais falíveis do que o Homem de Aço. Frutos do trabalho de mestres da Marvel - sendo Stan Lee o nome de maior reconhecimento -, o Homem-Aranha, o Hulk e os X-Men deram novas nuances ao tratamento dos super-heróis. "Esses personagens possuíam falhas e enfrentavam também tribulações mais 'humanas', como baixa autoestima, falta de dinheiro, problemas amorosos ou reprovação numa prova" (MESSIAS, 2009 , p.32).
Com Robert Crumb e sua revista underground Zap como maior símbolo da contracultura nos quadrinhos, esses novos artistas, cansados de não poder criticar o american way of life ou da imposição de ter apenas os rendáveis cenários "fantásticos" como fundo para as tramas, colocam o homem comum como o novo protagonista, seja ele dotado de valores admiráveis ou não, dono de uma vida excitante ou não. Se o Super-Homem parecia um ideal inalcançável de herói perfeito, os "traços neuróticos da vida adulta moderna" (MCCLOUD, 1995, p.126) de Crumb colocam o leitor cara-a-cara com realidades mais familiares, numa crítica ao cotidiano.
O homem comum alcança a condição de protagonista, seu caráter marginal, suas dificuldades, suas dúvidas existenciais, a contestação política e social, a revolução sexual e as drogas constituem a temática dessa nova tendência das histórias em quadrinhos (VALLE, 2008, p.2)

1.3 – OS TRÊS GRANDES
Até aqui, foi visto como as histórias em quadrinhos foram gradativamente se desenvolvendo, indo das tirinhas satíricas dos primeiros jornais e passando pelo boom dos super-heróis nas décadas de 20 e 30, até ter todas suas estruturas abaladas pelos comix de Crumb e a inventividade e técnica de Eisner com suas graphic novels. Esse caminho, influenciado por conjunturas históricas como o crash de 29 ou a tendência mais ampla de contestação cultural em todas as esferas nas décadas de 60 e 70, também foi fruto de um movimento natural de gradativa maior intimidade com uma mídia relativamente nova. O próprio Eisner, que sempre pareceu à frente de seu tempo pelo trabalho cuidadoso da arte e narrativa do Espírito, admitiu que a percepção das potencialidades dos quadrinhos só veio à medida que aprofundou seu estudo e trabalho no meio: "...durante a maior parte de minha vida profissional, estive lidando com um veículo que exigia mais habilidade e intelecto do que eu e meus contemporâneos imaginávamos" (EISNER, 1999, p. 6).
Nesse cenário, talvez o ano mais emblemático seja 1986. Nesse ano, coincidiram os lançamentos das graphic novels Watchmen, de Alan Moore e Dave Gibbon, The Dark Knight Returns, de Frank Miller e Klaus Janson, e Maus, de Art Spielgeman. Cada qual a sua maneira, essas três marcantes obras foram responsáveis por consolidar para o grande público que "quadrinhos podem ser mais que entretenimento leve e divertido, voltado para crianças" (RUSSEL, 2009, 221). Watchmen e The Dark Knight Returns tiveram como grande mérito a ousadia de mexer na quase imaculada mitologia dos super-heróis começada lá em 1938, com o surgimento do Super Homem.
Fugindo da lógica do homem de aço de não envelhecer - o que permite a ele ser uma figura eterna, adaptável a todas as eras - em Watchmen acompanhamos uma galeria de justiceiros envelhecidos e sem poderes extraordinários – fora o personagem Dr. Manhattan. Ao longo de uma trama de investigação e aventura, seus protagonistas se mostram extremamente humanos e vulneráveis, características até então impensáveis para um personagem denominado "herói". "A trama acentuava as falhas morais dos heróis mostrando que todos têm um lado sombrio, sem exceção, e como humanos falhos essa parte da personalidade às vezes se sobressai levando a verdadeiros atos de vilania" (MESSIAS, 2009, p.32).
The Dark Knight Returns, por sua vez, mergulha ainda mais fundo nessa desconstrução, ao se apoderar de um personagem clássico – no caso, o Batman, criado em 1939 – e levá-lo para um cenário sombrio e caótico, ainda inédito na trajetória do Homem-Morcego. Na trama, um Batman extremamente amargurado e atormentado por conflitos de seu passado decide retornar às ruas de Gotham depois de anos aposentado, numa história de forte apelo emocional que teve ecos na própria produção dos quadrinhos de super-heróis, que passaram por uma fase de reformulações e colocações de questões mais adultas em seus roteiros a partir nas décadas de 80 e 90.
Maus, por sua vez, gerou controvérsias por tratar de um tema extremamente delicado através de quadrinhos, forma de arte por tantos anos acusada de ser "menor". Usando um traço extremamente estilizado e com personagens antropomórficos (em que ratos eram os judeus; gatos, os nazistas, entre outras representações na base nacionalidade/ideologia-animal), Spiegelman conta a história de Vladek, seu pai, um imigrante polonês sobrevivente do genocídio de Hitler. Dessa maneira, o livro se formula como uma "entrevista no formato de HQ, estendendo-se por mais de 300 páginas" (OLIVEIRA&PASSOS, 2006, p.5). À época de seu lançamento, não foram economizados ataques à obra. "Uma preocupação recorrente na crítica literária sobre Maus é que o Holocausto não devia ser 'trivializado' ao ser colocado no formato de quadrinhos" (RUSSEL, 2009, p.221). Em entrevistas, o próprio Spiegelman, que pode ser visto desenhado em Maus em vários momentos se perguntando como continuar a história, mostrava dúvidas quanto a se tinha ou não o direito de tratar algo tão sério no formato de quadrinhos, com medo de que aquela iniciativa fosse "um passo maior que suas pernas". Ainda que o artista nova iorquino também tenha despontado no meio underground – com várias histórias que, curiosamente, tratavam da relação sempre um tanto fria que mantinha com o teimoso e orgulhoso Vladek -, esses questionamentos não deixam de ser um reflexo da visão tradicional dos quadrinhos como incapazes de sustentar a "maturidade, complexidade e validade existentes na cultura literária" (Ibid, p.221).
Visão essa que teria seu derradeiro golpe com o Prêmio Pulitzer concedido à obra em 1992, depois do lançamento de seu último volume no ano anterior. Primeiro trabalho em quadrinhos a ganhar um prêmio tradicionalmente dedicado a obras jornalísticas, Maus abriu os olhos de toda uma geração para o valor das marginalizadas historinhas que usam balões como meio de comunicação, aquele gênero de valor inferior que nunca poderia estar na mesma estante que a alta literatura. Com Maus, ficou claro que os quadrinhos não se tratavam de uma deturpação da linguagem superior das palavras ao misturá-las com imagens, mas antes uma forma de expressão única que agrega o melhor de cada uma dessas instâncias – "as regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria, pincelada)" e da "literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe)" (EISNER, 1999, p.8).
Das profundezas das loucuras humanas evidenciadas pelo traço cru de Crumb, da genialidade e sensibilidade ao unir arte e literatura através das habilidosas mãos de Eisner, até o relato familiar e surpreendente do Holocausto visto pelos olhos do pai de Spielgeman, os quadrinhos conseguiram chegar a um ponto em que podiam se dizer dignos de tratar temas sérios, e, acima de tudo, reais. Foi apenas a partir do momento em que se reinvidicou este estatuto, se dando o direito de ser uma mídia de reprodução de histórias verdadeiras, que os quadrinhos passaram a ser vistos como um suporte válido para o gênero maior da narrativa do real: o Jornalismo. E o primeiro e até hoje mais bem sucedido artista – e jornalista – a conseguir unir essas duas mídias é o maltês Joe Sacco, cujas experiências em zonas de guerra mundo afora consolidaram um novo gênero: o Jornalismo em quadrinhos.

1.4 – E o Brasil?
Antes de focarmos nossa atenção nas experiências de guerra de Sacco, vale fazer uma revisão das histórias em quadrinhos no Brasil. Seguindo a tendência que se viu na trajetória das comics americanas e dos quadrinhos europeus, por aqui o primeiro exemplar de histórias em quadrinhos também se apresentou através da imprensa. Foi o ítalo-brasileiro Ângelo Agostini o responsável pelos primeiros passos dos quadrinhos no país, com o grande diferencial de – ao contrário de algumas tentativas futuras de se conseguir sucesso com quadrinhos nacionais – tratar de temas que não deixavam dúvidas quanto à origem de seus personagens, em trabalhos publicados em revistas como Vida Fluminense. Com As Aventuras de Nhô Quim, de 1869, inaugura o gênero de quadrinhos no Brasil. Aproveitando-se da experiência com uma história curta anterior, As Cobranças, publicada em 1867 – que ainda não usava balões ou outros grafismos modernos, mas já mostrava uma preocupação de sequenciar imagens de maneira a formar uma narrativa, ideia que é a base das histórias em quadrinhos -, Agostini criou nosso primeiro personagem. Nhô Quim era "um interiorano às voltas com a corte do Rio de Janeiro, numa aventura seriada com bastante aceitação por parte dos leitores" (CIRNE&MOYA, 2002, p.122)
Ainda nos primórdios da imprensa ilustrada no Brasil, a clássica revista O Tico-Tico, com seus passatempos, contos e quadrinhos, em 1905 aparece como a grande querida das crianças – e também de adultos que conseguiam ver algo de crítico ou a aguda percepção do cotidiano brasileiro nos traços arredondados de nomes como Osvaldo Storni, Luís Sá ou J. Carlos. O grande destaque fica para a publicação de Buster Brown, outro célebre personagem de Outcault, na primeira transposição de destaque de uma obra de quadrinhos estrangeira para revistas brasileiras. Aqui conhecido como Chiquinho, o garotinho loiro atraía fãs graças a suas muitas travessuras, que muitas vezes terminavam com lições de moral cínicas que pouco tinham a ver com algo que o menino poderia ter de fato aprendido. O personagem, extremamente popular por aqui, seguiu n'O Tico-Tico anos depois de suas tiras pararem de ser publicadas nos Estados Unidos, com artistas brasileiros como Rocha ou Alfredo Storno responsáveis por histórias inéditas do menino endiabrado – não por acaso, para muitos causava surpresa saber que o Chiquinho não se tratava de uma criação brasileira. (MOYA, 1972, p. 38).
O próximo marco de renome dos quadrinhos no Brasil viria quase 30 anos depois, graças à iniciativa de Adolfo Aizen, repórter e futuramente editor, um dos mais ativos defensores dos quadrinhos no país. Em viagem aos Estados Unidos, em 1933, com objetivo de produzir uma série de matérias sobre a sociedade norte-americana, Aizen se encanta pelo mercado editorial que ali encontra (JÚNIOR, 2004, p.24). Tendo adquirido como um de seus hobbies passear por bancas de jornais, o jornalista se impressionara com a alta vendagem dos suplementos que continham histórias em quadrinhos. Mais do que isso, admirou-lhe o fato de, nos Estados Unidos, aquelas histórias sequenciadas não parecerem conhecer fronteiras:
...continuações das histórias de Buck Rogers e Tarzan eram acompanhadas com ansiedade por uma legião de fãs, como se fossem folhetins. O mais curioso: os comics exerciam fascínio sobre o público de todas as idades, ao contrário do que acontecia no Brasil, onde os raros quadrinhos publicados em revistas como O Tico-Tico eram dirigidos às crianças (Ibid, p. 26).

Retornando ao Brasil, tenta sem sucesso uma aliança com Roberto Marinho, que não considera quadrinhos – aquelas "histórias para crianças" (AIZEN, 2002, p.102) - economicamente viáveis. João Alberto Lins de Barros, do jornal A Nação, por outro lado, é convencido pelo entusiasmo de Aizen, e concorda em deixar a cargo do jornalista a publicação de suplementos diários. Iniciados em 1934, cada um era voltado para um tema específico: Infantil, Humorístico, Policial, Feminino e Esportivo. Graças ao primeiro – e também o de notadamente maior repercussão, chegando a triplicar a vendagem normal de A Nação – o público brasileiro pôde pela primeira vez ter em mãos histórias que faziam sucesso arrebatador nos Estados Unidos, como Buck Rogers, Príncipe Valente, Flash Gordon, Tarzan, Mandrake e os quadrinhos da Disney, entre outros. (JÚNIOR, 2004, p.31). Ainda que nunca tenham sido o carro-chefe do Suplemento – uma vez que comprar histórias prontas do Syndicates, os grandes conglomerados responsáveis pelas transações dos quadrinhos americanos era muito mais barato do que criar aventuras originais -, já nessa época o veículo reservava algumas páginas a colaborações brasileiras, com destaque para As Aventuras de Roberto Sorocaba, de autoria de Monteiro Filho e Maria Monteiro, e Os Quatro Ases, que tinha Jorge Amado como um dos roteiristas (Ibid., p. 31-32).
Percebendo o grande filão do mercado que deixara escapar por entre seus dedos, Roberto Marinho não tardou a se aventurar pelo mundo dos quadrinhos. Com seu Globo Juvenil, de 1937, Marinho traíra a confiança de Aizen – que considerava o suplemento de quadrinhos do rival um plágio de seu Suplemento Juvenil, nome dado a seu jornal de quadrinhos depois que se separou do A Nação -, mas trouxe ao crescente número de fãs de quadrinhos mais opções nas bancas. Nas páginas de sua publicação, foram editados Ferdinando, Robin Hood, Os Sobrinhos do Capitão, O Fantasma, Dick Dare e muitos outros (Ibid., p. 61). Os anos seguintes viram uma acirrada luta entre os dois editores, com uma série de publicações que visavam se aproveitar do óbvio interesse de crianças, jovens e – por que não? – adultos nos quadrinhos. Em 1939, Roberto Marinho dá um passo mais fundo na disputa ao conseguir o direito de todos os personagens que a King Features Syndicate até então havia concedido apenas a Aizen – este último, num admirável exemplo de respeito por seus leitores, publicaria, numa das derradeiras edições de seu Suplemento que contaram com as histórias do desbravador Flash Gordon: "'... o que estarão Flash Gordon e os outros vendo na caverna? Quem serão esses estranhos personagens de neve? Vejam a continuação n'O Globo Juvenil, futuramente'" (AIZEN, 2002, p.105).
Responsável pela chegada ao Brasil dos quadrinhos de aventuras e fantasia que faziam milagres para as tiragens de jornais americanos, Aizen foi também um pioneiro ao perceber que quadrinhos podiam servir para contar histórias reais. Foi dele a ideia de, em 1944, para comemorar os 10 anos de lançamento do Suplemento Juvenil, lançar uma versão romanceada em quadrinhos de sua viagem aos Estados Unidos – aquele momento derradeiro que resultaria na decisão de publicar histórias em quadrinhos por aqui. Intitulado A Grande Aventura, o álbum teve tiragem restrita e foi desenhado por Fernando Dias da Silva, Celso Barroso e Sálvio Correia Lima, com roteiro assinado por Antônio Euzébio (JÚNIOR, 2004, p. 112-113). Determinado também a provar a validade dos quadrinhos enquanto instrumento educativo, partiu dele a iniciativa de lançar as famosas Edições Maravilhosas, dedicadas a versões em quadrinhos de textos literários, tanto nacionais quanto estrangeiros. Lançadas a partir da década de 50, as Edições Maravilhosas eram publicadas já sob o selo do maior empreendimento de Aizen, a Editora Brasil-América (EBAL), fundada em 1945. Com a EBAL, o editor trouxe para o Brasil ícones dos quadrinhos americanos, como as revistas Batman e Super Homem, esta última publicada por 35 anos sem interrupção (Ibid, p. 107).
O esforço de associar quadrinhos com literatura – afastando-os, então, de velhos preconceitos que diziam que o primeiro era menos válido que o segundo – não apareceu por acaso. A década de 50 foi marcada por uma acirrada "caça às bruxas" aos quadrinhos, principalmente depois do lançamento do já icônico livro The Seduction of the Innocent, de Fredric Wertham. Sem fazer distinção entre o "bom e o mau quadrinho", o manifesto de Wertham classificava os comics como deseducativos, apresentando uma série de dados para provar uma suposta associação entre crimes e leitura de histórias em quadrinhos. "Descarregou também sua ira em direção aos super-heróis: é dele a insinuação de que Batman e Robin seriam homossexuais" (MOYA&D'ASSUNÇÃO, 2002, p. 49). A preocupação excessiva de parte da sociedade quanto aos supostos efeitos nocivos dos quadrinhos levou as editoras americanas a impor um rigoroso Código de Ética, que em muito contribuiu para a visão comum de esta mídia ser um entretenimento raso voltado apenas para crianças.
Foram proibidas quaisquer descrições de sangue, sexo ou comportamentos sádicos, mas proibiram-se igualmente quaisquer desafios à autoridade estabelecida, os detalhes exclusivos de quaisquer crimes, quaisquer insinuações de 'relações ilícitas' ou de aprovação ao divórcio, quaisquer referências a aflições ou deformidades físicas e quaisquer alusões a 'perversões sexuais' de todo tipo (MCCLOUD, 2000, p.87).

Uma vez que as críticas nascidas nos EUA também encontraram eco nas discussões em terras brasileiras, as Edições Maravilhosas surgiam para provar que quadrinhos não eram o abrigo apenas de histórias recheadas de violência ou de escapismos para mundos fantásticos. Entre os textos adaptados, estão A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, Menino de Engenho, de José Lins do Rêgo, Os Sertões, de Euclides da Cunha, O Guarani, de José de Alencar, entre outros grandes romances da literatura brasileira e estrangeira. Mais do que a evidência do uso educativo dos quadrinhos, o que a experiência com as Edições Maravilhosas, publicadas até 1961, trouxe de mais significativo para os artistas e admiradores de quadrinhos foi a evidência da característica única dessa mídia: a relação entre imagem e palavra, numa troca sem hierarquias em que uma serve para complementar a outra. José Lins do Rêgo admirou-se ao constatar essa interdependência, como deixou claro no prefácio para a edição em quadrinhos de seu Menino de Engenho, publicado em 1955: "...chego a me emocionar como se estivesse num universo alheio à minha criação (...) Palavra e figura são a mesma coisa, na correnteza dos fatos que nos absorvem o interesse" (MOYA&D'ASSUNÇÃO, 2002, p. 59-60).
Tal percepção do valor literário e artístico dos quadrinhos foi o mote para a realização da Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos, num curioso pioneirismo brasileiro. Realizada no Centro Cultural e Progresso de São Paulo, em 1951, a mostra, a primeira do gênero no mundo, teve curadoria de apaixonados pelos quadrinhos, a saber: Jayme Cortez Martins (desenhista), Miguel Penteado (desenhista), Reinaldo de Oliveira (produtor gráfico), Syllas Roberg (escritor) e Álvaro de Moya (pesquisador). A exposição tinha originais de obras como Krazy Kat, Flash Gordon e Li'l Abner, contava com murais com a gênese e desenvolvimento das comics, análises detalhadas das muitas nuances das histórias do Espírito de Eisner, entre outras atrações que tinham por objetivo provar a validade do interesse adulto nos quadrinhos.
O adulto lê, atenciosamente, histórias em quadrinhos porque manterá estreita aproximação com a sátira do genial Al Capp; porque estudará as notáveis exteriorizações do expressionista Will Eisner; porque se embevecerá com o poeta da linha de E.T. Coelho; porque apreenderá ou aprenderá extraordinárias composições artísticas com Alex Raymond, Milton Caniff, Hal Foster, etc. (MOYA, 1972, p. 17)

Mesmo com a defesa enfática de Moya, a exposição não se viu livre de polêmicas, com um número expressivo de críticos de artes plásticas se recusando a "levar a sério aquela ideia 'maluca' de querer promover os quadrinhos à condição de arte" (JÚNIOR, 2004, p.176).
Fora a dita "inferioridade" dos quadrinhos, outro foco de contestação, específica do Brasil, estava na "americanização" que o consumo de heróis como o Homem Aranha ou o Super Homem infligiria na juventude. Devido a tais temores, não faltaram iniciativas de associações e publicações 100% nacionais, algumas com mais êxito do que outras. Entre as iniciativas de sucesso, é impossível não mencionar o Pererê, revista de Ziraldo que, entre 1960 e 1964, foi responsável por arrancar alguns elogios até mesmo dos mais ferrenhos opositores dos quadrinhos. Considerada "uma profunda reflexão sobre o Brasil da época" (CIRNE&MOYA, 2002, p.131), a publicação chamava atenção para a falácia de argumentos que diziam que os leitores não teriam interesses por assuntos nacionais. Iniciativa das Edições O Cruzeiro, as aventuras do brasileiríssimo Pererê, ao lado de uma galeria de ícones de nossa natureza (como a onça, o tatu, o macaco e tantos outros), chegaram a ter tiragens de 90 mil exemplares por edição. Em entrevista aos Diários Associados de Chateaubriand, Ziraldo enfatizou os propósitos nacionalizantes de sua revista, dizendo que o objetivo que buscava alcançar com a publicação era que as crianças pensassem "em brasileiro", uma vez que, "acostumada(s) às histórias importadas, ela(s) só pensava(m) em fazer bonecos de neve, em comer morangos e passear em trenós na época do Natal" (JÚNIOR, 2004, p.347).
Pouco antes da publicação de Pererê, a Editora Continental, nascida em 1959, aparecia com destaque na tentativa de dar corpo à tarefa de "pensar em brasileiro" de Ziraldo. A editora tinha orgulho de dizer-se totalmente brasileira, publicando apenas trabalhos feitos por artistas nacionais – entre eles, a primeira revista do Bidu, originalmente publicado em forma de tirinhas no jornal Folha de São Paulo, pelo futuro magnata dos quadrinhos Maurício de Souza.
A trajetória de sucesso de Maurício, que desde 1970 publica com êxito as histórias da Turma da Mônica, não é o padrão entre os artistas brasileiros. A maioria das editoras mantém a lógica de relegar ao trabalho nacional apenas a arte das capas e o retoque de histórias que possam ser tomadas como ofensivas (Ibid., p. 383). Tal estratégia contribuiu para tornar o pai da Mônica e Cebolinha "o único desenhista a viver exclusivamente de quadrinhos, pois outros são publicitários, ilustradores, professores e também desenhistas de quadrinhos" (MOYA&OLIVEIRA, 1974, p.226).
Ter em mente essa realidade do mercado nacional, que se estende até os dias atuais, é importante para melhor compreender o porquê de nossa produção de quadrinhos parecer empalidecer diante de exemplos internacionais – o que, naturalmente, não quer dizer que não haja artistas empenhados e talentosos em território brasileiro. Muito pelo contrário: ao longo da trajetória dos quadrinhos no Brasil, nomes como Ziraldo (não apenas com Pererê, mas também com obras satíricas como Os Zeróis, que brincavam com ideário dos super-heróis americanos) ou Henfil (com a politicamente consciente Graúna ou a acidez das posições corrosivas das críticas dos Fradinhos) mostraram que, em genialidade e sensibilidade, nada deixamos a dever a autores de grande renome dos Estados Unidos ou Europa. Além disso, demos indícios importantes de nosso entendimento precoce da capacidade dos quadrinhos de contar as mais diversas histórias e atrair leitores de todas as idades, fosse através da edição comemorativa dos 10 anos do lançamento do Suplemento Juvenil de Aizen, ou do marco icônico da Primeira Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos de 1951. Com essa trajetória em mente, não deve causar surpresa constatar que, mesmo sem causar o burburinho de lançamentos estrangeiros, alguns pioneiros como Augusto Paim e CarlosCarlos também ousem dar seus primeiros passos no novíssimo Jornalismo em Quadrinhos. Mas voltaremos nossos olhos para essas iniciativas nacionais no capítulo III. Antes, nos foquemos no indiscutível pai dessa nova configuração entre Jornalismo e Histórias em Quadrinhos: o maltês Joe Sacco.












2 - JOE SACCO, PALESTINA E UMA NOVA FORMA DE FAZER JORNALISMO
2.1 - BREVE BIOGRAFIA E O PRIMEIRO TRABALHO
Nascido em Malta em 1960, mas tendo morado nos Estados Unidos desde seus 12 anos de idade, Joe Sacco aparece hoje como o mais destacado nome entre os jornalistas que usam os quadrinhos como sua mídia de expressão. Formado em Jornalismo pela Universidade de Oregon (EUA), Sacco admite serem os quadrinhos "a paixão de sua vida" (2007, p.17), e conseguiu unir o que aprendera na faculdade a tal adorada atividade na década de 90. À época, o jornalista encontrava-se pouco estimulado para seguir na profissão, e era com pesar que via o ofício a qual escolhera se dedicar cometendo o que, a seus olhos, pareciam falhas graves - sobretudo na cobertura do aparentemente eterno conflito entre judeus e árabes pelo domínio das terras de Israel e Palestina.
Comecei a questionar a imagem como Israel era retratada - uma inocente e oprimida naçãozinha sitiada por uma horda de árabes loucos - depois de seu bombardeio aéreo a Beirute (usando bombas fornecidas pelos Estados Unidos, para fins supostamente 'defensivos') e a subsequente invasão do Líbano, no início da década de 1980. Após os massacres nos campos de refugiados de Sabra e Shatila, onde centenas de palestinos indefesos foram executados por uma milícia cristã aliada às forças de invasão de Israel, em uma área cercada e isolada pelos israelenses, comecei a pressentir que a dinâmica do poder naquela parte do mundo não era exatamente a que me fora transmitida.(Ibid, p.17)

Foi com essas incômodas questões em mente que Sacco decidiu se aventurar no território que até então só conhecia pelos jornais, e seguiu em viagem para a Palestina e Israel no começo da década de noventa. Nos dois meses que passou imerso no universo caótico - no inverno de 1991/1992 -, o jornalista foi guiado pela sensação de que talvez as pessoas comuns tivessem vontade de saber mais sobre o "povo palestino ou o que acontece com indivíduos que foram atropelados pela História, em oposição aos políticos e generais que sempre ganham declarações", como contou ao site AVClub (ADDAMS, 2011). Essa experiência resultou numa série de cadernos com impressões e detalhes do que viu e viveu nas ruas de Gaza, Israel e outros territórios ocupados, recheados de falas e comentários de israelenses e palestinos entrevistados, além de dezenas de fotografias. A grande diferença é que este material não deu origem a uma vasta reportagem no formato de texto, ou a uma série televisiva ou radiofônica de matérias especiais. As experiências de Sacco foram reunidas numa grande reportagem desenhada: entre 1993 e 1995, a série Palestina foi publicada em edições de 24 a 32 páginas, no formato das conhecidas histórias em quadrinhos dos super-heróis para crianças. O que o jornalista e desenhista esperava ser simplesmente um "relato quadrinizado" (Ibid., p.17) de sua viagem, deu substância a uma nova forma de fazer jornalismo, que já ensaiava seus primeiros passos desde o clássico Maus, de Spielgeman: o jornalismo em quadrinhos.
Pelas quase 300 páginas da obra - com os capítulos seriados mais tarde compilados em único livro -, Sacco mostra os casebres onde se espremem famílias numerosas, construídos sobre ruas lamacentas entrecortadas por esgotos a céu aberto; reproduz relatos de torturas e prisões; contrapõe essa realidade à relativa tranquilidade da capital israelense, Tel Aviv, deixando espaço também, como veremos adiante, para pequenos detalhes que provavelmente seriam deixados de lado em trabalhos que seguem o tradicional conceito da objetividade jornalística, bem expresso no modelo da pirâmide invertida - em que as informações mais relevantes estão em primeiro plano, com muito pouco ou nenhum espaço para divagações que não sejam o foco principal do assunto tratado, privilegiando valores como a concisão e a síntese (SODRÉ, 2009, p. 208).
Tais digressões, no entanto - ainda que por vezes deem um tom um tanto confuso à obra, que, sendo a primeira grande reportagem de Sacco, por vezes soa episódica e sem um guia condutor claro, o que pode afastar alguns leitores -, enchem de cor a existência dos palestinos, nos lembrando constantemente que - contrariando uma ideia geral que colocava árabes como "marginais, insignificantes e talvez quase desprezíveis, se não fosse o insolúvel inconveniente que representam, como no caso dos palestinos" (SAID, 2007, p. 11) - tratam-se antes de tudo de seres humanos. Basta ver, por exemplo, a insistência em enfatizar o hábito dos palestinos de receber o jornalista com chás absurdamente doces ou oferecendo-lhe o pouco que têm, numa valorização cultural da hospitalidade. Ou ainda um pequeno capítulo dedicado à representação literal de uma piada que zomba das táticas da Shin Bet (a polícia secreta israelense), evidenciando a insistência do humor de se estabelecer mesmo em um cenário de violências e privações constantes como é o da Palestina revelada pelos olhos de Sacco. Com seu relato, o jornalista "produz as suas próprias imagens de mundo para subverter, questionar uma percepção uniformizada pela grande mídia. E não será este, precisamente, o objetivo maior de uma grande reportagem?" (ARBEX, 2007, p. 15).
2.2 - NOTAS SOBRE GAZA - ENREDO
Para mostrar a validade jornalística do trabalho de Sacco - e, se forem seguidos os métodos adotados em sua produção, do gênero do Jornalismo em quadrinhos como um todo - analisaremos seu livro mais recente, intitulado Notas Sobre Gaza. Publicado originalmente em 2009, o livro se dedica a uma investigação sobre dois massacres a civis por tropas israelenses, ocorridos nas cidades palestinas de Khan Younis e Rafah no distante ano de 1956. Fora algumas poucas notícias em jornais como o Times londrino e o israelense Kol Ha'am, o documento mais relevante sobre os ocorridos é o Relatório Especial do Diretor da Agência de Socorro e Trabalhos da ONU para os Refugiados Palestinos no Oriente Próximo (Sobre o período de 1o de novembro de 1956 a meados de dezembro de 1956). O texto relata, sem maiores aprofundamentos, uma série de baixas ocorridas durante a ocupação israelense nas duas cidades, numa ação violenta que resultou em 275 mortos em Khan Younis (sendo 140 refugiados e 135 moradores locais), no dia 3 de novembro. Pouco tempo depois, em 12 de novembro, é registrada outra ocorrência, dessa vez na vizinha Rafah, totalizando 111 mortos, sendo 103 refugiados, 7 moradores locais e um egípcio (SACCO, 2010, p.400).
Ainda segundo o relatório, a causa do incidente em Kan Younis não teve motivos claros: se as autoridades israelenses diziam que houve resistência à ocupação, os refugiados afirmavam não ter havido manifestação contrária, e "civis desarmados" teriam sido mortos quando "as tropas israelenses passaram pela cidade e pelo acampamento à procura de homens que portavam armas" (Ibid., p.400). Quanto à Rafah, o relatório diz que as mortes aconteceram durante uma operação de triagem das forças de Israel no campo, com o objetivo de encontrar membros das Brigadas Palestinas ou pessoas que tivessem participado de operações dos fedayeen (grupo guerrilheiro nascido em 1955 na faixa de Gaza). Segundo as autoridades, a reação dos refugiados foi hostil, com resistência à operação, dado negado por palestinos. O relatório conclui que a causa do abrir fogo pode ter sido devido ao fato de muitos não terem ouvido os anúncios do toque de recolher antecedente à triagem. "Em meio à confusão, um grande número de refugiados correu para os locais de triagem com medo de estarem atrasados, e alguns soldados israelenses aparentemente entraram em pânico e abriram fogo contra a multidão que corria" (Ibid., p.400).
Sacco lembrou-se dos dados desse relatório da ONU em 2001, quando estava na Faixa de Gaza como enviado especial da revista Harper`s. Com a certeza de que "este episódio - ao que tudo indica o maior massacre de palestinos em seu próprio território, caso o número de 275 mortos fornecido pela ONU esteja correto - não merece ser relegado à obscuridade" (Ibid., p. 7), o jornalista retorna à região, onde se mantém de novembro de 2002 a março de 2003. Seu objetivo maior é evitar que, tanto ao caso de Khan Younis quanto ao de Rafah, seja-lhes relegado apenas uma nota de rodapé "no contexto mais amplo da história" (Ibid., p. 6). Quanto a ganhos objetivos desse aprofundamento de dois casos perdidos no hoje distante 1956, o jornalista é sincero, como mostra em entrevista ao site Art Threat:
eu olho para o livro Notas sobre Gaza e penso comigo, ok, pelo menos está no papel! Pelo menos tem outra narrativa além daquele maldito documento da ONU que não contava nenhuma parte real da história. Pelo menos está lá, registrado. Mas se isso faz alguma diferença ou não, não é algo que eu possa responder. Eu sei que simplesmente tinha de fazê-lo (WINTON, 2010).

Notas Sobre Gaza se divide em três grandes seções, cada uma com seus subcapítulos. A primeira, intitulada Khan Younis, é dividida em 17 capítulos menores, sendo seu foco principal a reprodução do dia 3 de novembro de 1956, quando aconteceu o massacre a civis descrito no relatório da ONU. Como é uma constante no livro, acompanhamos na verdade duas trajetórias: a do próprio Sacco, correndo atrás de testemunhas que possam contar sobre o episódio, e o desenrolar do massacre em si, desenhado a partir dos relatos colhidos pelo jornalista. Sacco tem a preocupação de situar o leitor num contexto maior, dedicando capítulos a explicar o surgimento da Faixa de Gaza (onde se encontram tanto Khan Younis quanto Rafah), pequena porção de terra mantida sob comando do exército egípcio logo depois da declaração de independência de Israel, em 1948 (Ibid., p. 21), e também às condições dos recém-chegados palestinos, que foram expulsos de suas terras ou fugiam da guerra. A hostilidade entre palestinos e israelenses se manteve, uma vez que muitos refugiados invadiam suas antigas terras para saquear rebanhos, comidas e equipamentos, o que aumentou a força da repressão do exército de Israel contra quem avançasse em suas fronteiras (Ibid., p. 37).
Ainda que, num primeiro momento, tais fatos possam não parecer de imediata relevância para o ocorrido em 3 de novembro de 1956 - como mostra o livro, o massacre teve como principal causa a invasão da Faixa de Gaza por Israel quando da crise do Canal de Suez (Ibid., p.81) -, são importantes para desenhar o cenário cíclico de vinganças e abusos que assola aquela região, estando contidos neles "as sementes do sofrimento e ódio que dão forma aos acontecimentos do presente" (Ibid., p 7). A 3 de novembro em si, são destinados dois capítulos de reconstrução daquele dia, seguidos de um intitulado O Documento em que os relatos colhidos por Sacco são contrapostos ao que diz o relatório da ONU. Entre eles, o capítulo A Memória e a Verdade Pura merece especial atenção, e a ele voltaremos na conclusão desse trabalho.
A segunda seção do livro, chamada Celebração, tem apenas cinco capítulos, como uma espécie de interlúdio entre a narração do caso de Khan Younis e o de Rafah, em que é apresentado o personagem Hani, amigo de Abed, guia e tradutor de Sacco, e que será de grande importância para ajudá-lo em suas investigações a respeito de Rafah. Na última e mais longa seção - são 36 subseções -, que ganha o nome da segunda cidade onde civis foram mortos em 56, há a preocupação de registrar em detalhes a vida cotidiana atual do local (ou, no caso, de 2003, quando Sacco a visitou). A atenção especial fica para uma série de demolições de casas, que, sob a alegação de esconderem túneis de contrabando entre Rafah e o Egito (Ibid., p. 162), eram extremamente comuns. Tal situação é também o mote para inúmeros questionamentos à validade da pesquisa de Sacco, sintetizado muito bem na fala de um palestino que, depois de mostrar marcas de tiros em sua casa e relatar que tanques são vistos nas ruas com frequência, decreta: "56 já passou" (Ibid., p.253).
Ao contrário de Khan Younis, o território de Rafah foi tomado por Israel em 1º de novembro de 1956, e permaneceu sob ocupação desde então - qualificada por Sacco, a partir de relatos, de "nada pacífica" (Ibid.,p.171). A reconstrução do massacre em si, em 12 de novembro de 1956, começa com o capítulo "O Anúncio" e se estende por mais onze, todos montados a partir de depoimentos de mais de 20 homens e mulheres, envolvidos direta ou indiretamente no "procedimento militar padrão, ainda que complexo" (no caso, uma triagem para descobrir guerrilheiros e soldados palestinos escondidos) que acabaria resultando "na morte de mais de cem pessoas" (Ibid., p. 8).

2.2.1 - NOTAS SOBRE GAZA - POR QUE É JORNALISMO?
Se não se conhece a trajetória das HQs para chegar a um patamar em que podiam se dizer "jornalísticas" (como é visto no Capítulo I), parece natural estranhar essa aproximação, uma vez que permanece muitas vezes relegada aos quadrinhos a visão destes como "um gênero menor". Assim, ainda é difícil para muitos reconhecê-los como uma "linguagem completa, autônoma e sofisticada" (DUTRA, 2003, p.17). A identificação imediata de quadrinhos como uma mídia para contar histórias sem valor - com os super-heróis e seus mundos fantasiosos e fantásticos frequentemente lembrados - torna difícil reconhecê-los como suporte válido para o Jornalismo. Mas o fato de as HQs terem uma grande identificação com instrumentos narrativos da ficção não diminui seu mérito como tal - até porque, com frequência, o Jornalismo tradicional o faz, sobretudo no gênero da reportagem, "o lugar por excelência da narração jornalística" (SODRÉ&FERRARI, 1986, p. 9).
Numa explicação prática e imediata, Muniz Sodré diz que narrar é simplesmente "contar uma história" (SODRÉ, 2009, 203). E, apesar de por história termos o impulso de entender algo inventado, ficcional, esta característica imaginativa não é obrigatória quando da montagem de uma narrativa, que trata, sobretudo, da descrição de algo "enunciando uma sucessão de estados de transformação" (MOTTA, 2007, p.2). Em outras palavras, a narrativa é o instrumento através do qual "somos capazes de colocar as coisas em relação umas com as outras em uma ordem e perspectiva, em um desenrolar lógico e cronológico" (Ibid, p. 2).
O ser humano é fortemente impulsionado a organizar eventos de maneira a montar uma história, em grande parte porque, antes da invenção da escrita para registrar os pensamentos e passar adiante conhecimento, era preciso guardar, de alguma forma, informações que só podiam ser trocadas através da oralidade. Pela sua fácil memorização, a narrativa surge, então, como a forma de organizar a realidade. A partir dessa escolha nasceram, por exemplo, as antigas narrativas orientas, as canções de gesta, os "romances corteses", as lendas nacionais e os relatos dos ciclos heroicos, a epopeia primordial (SODRÉ, 2009, p 179).
Articulando narrativamente passado e futuro, as histórias de feitos exemplares eram transmitidas para eternizar na memória os grandes feitos humanos, mas principalmente para fixar, pela sugestão da continuidade dos nossos modos de vida, a ideia de humanidade como natureza (Ibid., p. 60).

Enraizado quase como um "programa genético", o ser humano passa, então, a processar "progressivamente sequências associativas em narrativas e cenários mais complexos, que se tornam bases para a ação" (MOTTA, 2009, p.7).
Este impulso para organizar o real numa forma narrativa é visto até mesmo nos temas mais áridos do Jornalismo, como bem mostra Motta:
Por exemplo: quando um jornal anuncia em linguagem objetiva no duro noticiário de economia que o presidente do Banco Central vai manter ou modificar as taxas de juros, a matéria vem recheada de pequenos depoimentos de empresários ou de assalariados que relatam como a medida afeta seus negócios, suas empresas, suas vidas. O 'fato duro' é inserido no drama da vida e as fotos que ilustram tais reportagens mostram quase sempre homens e mulheres, seres humanos afetados pela medida. E assim, suavizam a hard news com uma pitada de soft news, narrando no meio da descrição, aproximando o leitor da obra e fornecendo-lhes pistas discursivas indutoras da narratividade para que ele, leitor, realize as experimentações éticas e morais" (2004, p.12)

Aceitar que o Jornalismo pode ser estruturado de maneira narrativa - com destaque para a reportagem, onde a possiblidade de maior aprofundamento e detalhamento torna tal formato ideal para uma organização nessa forma - não quer dizer em nenhum momento que seria válido usá-lo para contar histórias inventadas. Muito pelo contrário, uma vez que "...(a reportagem) é mesmo, a justo título, uma narrativa - com personagens, ação dramática e descrições do ambiente - separada entretanto da literatura por seu compromisso com a realidade objetiva" (SODRE&FERRARI, 1986, p. 9, grifo nosso)
Não se pode negar que Notas Sobre Gaza, salpicada por inúmeros personagens, situações de tensão e descrições (que aparecem, sobretudo, nos desenhos) é uma história - ou melhor, são três histórias: uma sobre o massacre de Khan Younis, outra sobre o de Rafah, e uma terceira, de um jornalista que anda pelas areias de Gaza tentando reconstruir fragmentos desses dois acontecimentos. Acompanhamos Joe andando de casa em casa, seguindo pistas que às vezes não levam a lugar nenhum, atrás de nomes conhecidos por terem histórias trágicas sobre os massacres. Mostrado em primeiro plano num desenho caricatural, com seus óculos redondos e boca carnuda, Sacco aparece frequentemente de bloquinho ou gravador em mãos, ouvindo atento - ou nem tanto - o que pessoas têm a dizer sobre acontecimentos de mais de 50 anos atrás. Preocupado mais com a honestidade de seu relato do que com pintar uma boa imagem, o jornalista deixa que adentremos em seus pensamentos e acompanhemos sua frustração por mais de uma ocasião.
E me lembrei das vezes em que sentei diante de senhores que testaram a minha paciência, que divagaram, que misturaram as coisas, que pularam alguns acontecimentos (...) me lembrei das vezes em que mentalmente suspirei e revirei os olhos, porque sabia mais sobre aquele dia do que eles próprios (SACCO, 2010, p.385).

Além do próprio autor, há ainda uma vasta galeria de personagens: o tradutor e guia Abed, que oscila entre um profundo posicionamento crítico e momentos "menos filosóficos" - quando afirma, por exemplo, precisar "beber alguma coisa, para esquecer tudo, ficar bêbado" (Ibid, p.17); Ashraf, amigo de Abed que, com seu rosto redondo e aspecto bonachão, consegue sorrir mesmo ao afirmar que talvez só consiga uma moradia decente quando morrer, uma vez que sua casa em Rafah tenha sido seguidas vezes fuzilada (Ibid., p. 198-199); os opositores, cada qual representando sua geração: um velho fedayee evasivo e o pesaroso Khaled, membro da Fatah e procurado pelo exército israelense, que não sabe o que responder quando a filha pergunta se "vai vir para casa" no dia seguinte (Ibid., p. 178); e, claro, os inúmeros sobreviventes dos massacres de Khan Younis e Rafah, cada um com seu relato aterrador sobre fuzilamentos, parentes desaparecidos e uma série de violências que permeiam não só aqueles dias fatídicos de 3 de novembro ou 12 de dezembro de 1956, mas grande parte de suas vidas. O relato do lado israelense fica representado, na história em quadrinhos, por Mordechai Bar-On, chefe de gabinete do então comandante do exército de Israel nos anos 50, e Naftali Carni, antigo soldado do batalhão que invadiu Khan Younis - ambos concederam entrevistas ao jornalista.
Situações dramáticas podem ser encontradas a todo momento, não apenas na reconstrução dos massacres em si, mas também na reação de cada entrevistado forçado a refazer aqueles dias em sua memória - seja o senhor que logo começa a chorar ao admitir que o "medo" era sua pior lembrança do ataque a Rafah (Ibid., p.384), ou uma velha senhora que, ao ser perguntada por Ramadan Mohammed El-Modalel, morto durante o massacre, imediatamente muda seu semblante para um sorriso que revela esperança e espanto, perguntando se eles o haviam encontrado enfim (Ibid., p. 341). Essa sequência em especial, mostra muito bem a força da interação entre palavras e imagens que é o grande diferencial dos quadrinhos: depois que Ashraf e Joe percebem que a mulher não saberia dizer nada valioso para a pesquisa, vão embora de sua casa, com o último quadro dedicado a mostrá-la encostada na porta, afastada e envolta em sobras, com o balão de fala um tanto distante, como se sugerisse um breve sussurro: "pensei que vocês o tinham encontrado" (Ibid., p.343). Mal podemos ver o rosto da senhora (figura 1), o que acontece pelo fato de ela estar contra a luz, parada na porta de entrada de um cômodo iluminado, que também serve como um forte recurso dramático, evidenciando o vazio da vida de uma mulher, que, depois de mais de 50 anos sem notícias do neto, ainda consegue se empolgar com a possibilidade de o jovem ter sido encontrado vivo.
A dramaticidade de uma situação de violência tão absurda quanto os massacres relatados em Nota Sobre Gaza torna-se ainda mais forte se lembrarmos que todas aquelas histórias não nasceram da imaginação fértil de um escritor, mas sim foram construídas a partir de uma série de informações e relatos colhidos por um repórter. Por construir uma narrativa jornalística, Sacco mantém em mente "a diferenciação de projeto entre a literatura e o jornalismo: na primeira, predomina o imaginário, no segundo, deve-se impor a realidade (histórica, atual) dos fatos narrados"(SODRÉ&FERRARI, 1986, p. 123). Mesmo usando os recursos visuais permitidos pela estética dos quadrinhos, ou estruturando o que conta de maneira a criar pontos de tensão semelhantes aos encontrados em histórias de ficção, a base de tudo que é mostrado surgiram das experiências colhidas não só em exaustivas entrevistas (mostradas na terceira história, a do jornalista atrás da reconstituição dos fatos de 1956), mas também do apurado e cuidadoso trabalho de pesquisa documental.
Como nos é revelado nos apêndices, para contextualizar todos os trâmites políticos, diplomáticos e militares de episódios como a guerra de independência de Israel, o nascimento da Faixa de Gaza ou a crise do Canal de Suez, foram usados como base os livros Suez: The Twice-Fought War, de Kennett Love, Warriors at Suez, de Donald Neff, The First Israelis, de Tom Segev, Israel's Border Wars, de Benny Morris, The Gates of Gaza, de Mordechai Bar-On e A Guerra do Sinai, de Moshe Dayan. Para entender o posicionamento da ONU à época, o livro escolhido foi Between Arab and Israeli, de L.M. Burns. Além disso, uma série de arquivos, tanto de fotos quanto de documentos de imprensa e de fontes oficiais e militares, também foi consultada - para material não disponível em inglês, foram contratados dois pesquisadores israelenses, encarregados de buscar informações sobre os episódios (Ibid., p. 8). Nos apêndices, por fim, são apresentadas reportagens sobre Rafah e Khan Younis, o famoso documento da ONU, transcrições de diálogos entre militares e entrevistas realizadas com israelenses sobre os acontecimentos. Não reproduzida na história central, uma longa entrevista com autoridades sobre a demolição de casas em Rafah também pode ser lida em um dos apêndices, mostrando outro ponto de vista para explicar sua ocorrência frequente.
Como conversa com um grande número de pessoas - são mais de 20 apenas para reconstruir o caso de Rafah, de duração de um único dia -, a organização de todos os relatos é de suma importância. Pode-se acompanhar esse processo na página 203 (figura 2), onde é mostrada que cada história recolhida é catalogada através de números - porque Sacco não consegue memorizar nomes -, e posteriormente passada para uma planilha, com nome do entrevistado, endereço e uma série de comentários sobre fatos chave do massacre. Com tal organização, é possível "confrontar os depoimentos das testemunhas de forma rápida e prática" (Ibid, p. 203).
Quanto aos desenhos, não se pode negar que são, antes de tudo, representações subjetivas, uma vez que nascem das mãos de Sacco e certamente não contêm o mesmo detalhamento objetivo de, por exemplo, uma fotografia. O próprio autor chama atenção para essa condição no prefácio do livro, ao dizer que "o leitor deve levar em conta que essas histórias passaram ainda por mais um filtro antes de chegar ao papel - a saber, minha interpretação visual" (Ibid., p.8). Para reconstrução de fatos passados, o jornalista se valeu de fotos de referência disponíveis nos arquivos da Agência de Socorro e Trabalhos da ONU, além das descrições dadas pelos próprios palestinos. Para desenhar os personagens, fotos também serviram de base factual para sua representação, assim como para o desenho dos cenários das cidades em 2003. Mesmo com todo esse cuidado, Sacco admite: "...é preciso ter em mente que qualquer ato de visualização - neste caso, o desenho - acaba sofrendo inevitavelmente algum grau de refração" (Ibid., p. 8).
Mas se o desenho não consegue reproduzir com total fidelidade o real, não se pode dizer que o Jornalismo verdadeiramente o faça: notícias, antes de ser o real, o moldam. Isto porque, como bem lembra Motta, "nenhuma narrativa é ingênua" (2007, p.3). Dessa maneira, uma série de fatores determina a escolha do que será contado e como, uma vez que:
...o jornalista é apenas parcialmente autônomo, já que tem de obedecer às regras de um planejamento produtivo, assim como a uma concepção coletiva do acontecimento, que em parte o ultrapassa, fazendo com que a seleção das ocorrências informe tanto sobre o campo quanto profissional do jornalismo quanto sobre o meio social a que se refere a notícia(SODRÉ, 2009, p. 26).

Assim, o Jornalismo, antes de refletir sem falhas o real, representa apenas uma parte dele, a partir de escolhas que têm como base tanto uma cultura profissional quanto um contexto social, constituindo uma moldagem do real a partir de fatos que atendam a valores-notícia pré-determinados. A seleção do que mostrar – num processo semelhante ao filtro ao qual Sacco se refere na hora de desenhar suas ambientações e personagens – sempre foi uma constante na prática jornalística. Admitir a existência de tais filtros - sejam a subjetividade do repórter, como no caso de Sacco, ou ainda imposições da cultura ou de padrões empresariais, como é comum na grande mídia - não torna o Jornalismo menos hábil em sua tarefa de ser factual e verdadeiro. É, mais do que uma postura objetiva, um posicionamento honesto diante do leitor (SACCO, 2011, p.23).






3 - O BRASIL NO JORNALISMO EM QUADRINHOS
3.1 EXEMPLOS PONTUAIS E A PERIODIZAÇÃO DA FÓRUM
Segundo Aristides Dutra, pioneiro no estudo do jornalismo em quadrinhos com sua dissertação de mestrado Jornalismo em Quadrinhos: A Linguagem Quadrinística como Suporte para Reportagens na Obra de Joe Sacco e Outros Autores, de 2003¸ o icônico Ângelo Agostini foi responsável por uma série de reportagens ilustradas que mostravam o potencial da combinação desenho-palavras para contar histórias factuais, ainda nos anos 1860 (PUSTAI, 2012). A iniciativa do mestre, porém – em parte também por seu caráter essencialmente embrionário, anterior ao estabelecimento mesmo do quadrinho moderno como conhecemos - não gerou uma tendência ou deu bases para uma forma estruturada de fazer jornalismo em quadrinhos. A bem verdade, uma fórmula para tal ainda não existe, estando o gênero mergulhado em experimentações e sendo poucos os artistas que conseguem atingir o grau de entendimento e domínio da técnica, como faz o baluarte Joe Sacco. Por isso, vemos, tanto no Brasil quanto em outros países, exemplos isolados, sendo, naturalmente, alguns mais bem estruturados que outros.
Uma das primeiras aparições relevantes do jornalismo em quadrinhos na imprensa brasileira foi uma entrevista com Tom Zé e Otto, assinada por Patrícia Villalba e desenhada pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, veiculada na Folha de S. Paulo em 1999 (Ibid). Em 2007, o jornal A Tarde, da Bahia, publicou a reportagem intitulada Vanguarda: História do Movimento Estudantil da Bahia, originalmente um trabalho de conclusão de curso dos jornalistas Leandro Silveira, Caio Coutinho e Fábio Franco. Ao longo de quatro semanas, sempre às terças-feiras, o jornal publicou o extenso trabalho, dividido em capítulos. No total, são 30 páginas em que se contam "episódios importantes que marcaram a história do movimento estudantil baiano, entre 1942 e 2003, basead(os) nos depoimentos de pessoas que foram protagonistas de cada fato e contextualizad(os) por especialistas, pesquisadores e historiadores do tema" (SILVEIRA, 2007). Já a edição de 8 de fevereiro de 2010 do suplemento Folhateen da Folha de S. Paulo trazia uma reportagem sobre o Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême (França), em que a cobertura do jornalista Diogo Bercito deu origem a uma história em quadrinhos com desenhos de Júlia Bax e colorização de Davi Calil. Ainda que isolados, esses exemplos brasileiros mostram a versatilidade dos quadrinhos para o uso jornalístico – seja servindo de suporte para entrevistas (na sabatina com Otto e Tom Zé de 1999), reportagens de reconstrução histórica (no caso do baiano A Tarde), ou para coberturas in loco, como a matéria sobre o festival francês.
Dentre as iniciativas nacionais, a Revista Fórum se destaca pela preocupação com uma estrutura mais definida, ao criar a seção Jornalismo Em Quadrinhos. Até onde tem conhecimento esta pesquisa, trata-se do primeiro exemplo de publicação brasileira que coloca esta forma de fazer Jornalismo como parte fixa de seu projeto editorial. Desde a edição 106, de janeiro de 2012, é publicada uma vez por mês uma reportagem no formato de quadrinhos, com roteiro do jornalista CarlosCarlos e desenhos de Alexandre de Maio. Com em média quatro páginas por edição, as reportagens da série já abordaram temas como a Copa do Mundo de 2014 e a desapropriação de moradias para obras, o problema crescente do crack, o sistema carcerário brasileiro, o aumento da violência na periferia de São Paulo, a polêmica dos ataques aos índios Guarani-Kaiowá, o massacre de Corumbiara (resultante de um confronto entre policiais e sem-terras no município homônimo, em Rondônia, no ano de 1995), a riqueza da cultura brasileira (através de entrevista com o cantor Rapadura, que mistura rap com ritmos tipicamente nordestinos), entre outros.
As reportagens normalmente se estruturam como o relato de entrevistas individuais, em que é possível ver a preocupação do desenhista Alexandre de Maio em reproduzir com cuidado detalhes dos personagens abordados – o que fica muito claro ao se comparar o resultado final com vídeos da apuração de algumas das matérias, disponíveis no Youtube. Na primeira reportagem, sobre as desapropriações causadas pela Copa do Mundo, por exemplo, a entrevistada é Renata Nery, integrante de movimentos sociais e moradora de Jardim Pantanal, zona leste de São Paulo. Em sua versão em quadrinhos, repara-se que Alexandre de Maio teve o cuidado de reproduzir não só suas vestimentas e detalhes (como os fios que fugiam do coque com o qual Renata prendia seus cabelos), mas também a posição em que se a jovem se manteve durante a maior parte da entrevista, numa atenção minuciosa que ajuda a dar o sentido de veracidade ao que está sendo contado no formato desenhado (figura 3). A própria colocação das gravações que deram origem às reportagens em quadrinhos no Youtube funciona para, ao mesmo tempo em que permite que o leitor adentre no processo de montagem da reportagem, servir como instrumento de legitimação. Trata-se, pois, de uma prova documental de que os relatos reproduzidos na forma de quadrinhos – como já vimos, plataforma essa quase sempre identificada com histórias de fantasia – correspondem a opiniões factuais de pessoas reais.
Sendo publicadas na Fórum, revista que, como diz seu site oficial, tem por objetivo mostrar "uma visão de mundo diferente da presente nos grandes meios de comunicação", as reportagens da série Jornalismo Em Quadrinhos não fogem desse plano editorial. Como o próprio CarlosCarlos afirma, o maior objetivo de suas reportagens é quebrar "os paradigmas do Jornalismo tradicional, tanto na forma quanto no conteúdo" (PUSTAI, 2012). Essa disposição, colocada diante dos leitores de maneira aberta, justifica a busca por personagens dificilmente encontrados nas páginas de revistas e jornais maiores, como, por exemplo, Keitin Tardivo, usuário de drogas entrevistado para a matéria sobre a Cracolândia de São Paulo (edição 107, fevereiro/2012). O homem, viciado há 22 anos, impressiona pela postura lúcida e crítica diante da situação de combate à droga no Estado, e, nas páginas da reportagem, tem liberdade suficiente para qualificar a Cracolândia como uma "família" (figura 4) - palavra que dificilmente veríamos associado a tal ambiente em outras publicações.
A iniciativa da Fórum merece aplausos pelo ineditismo em criar uma seção fixa dedicada inteiramente ao Jornalismo em Quadrinhos, ao mesmo tempo em que sua postura de não limitar os temas abordados mostra a flexibilidade desta plataforma para narrar as mais diversas histórias (algumas com melhor encaixe do que outras, naturalmente). Entre os trabalhos a que teve acesso esta pesquisa, porém, o que se destaca por melhor entender o potencial da união da qualidade emocional dos quadrinhos com o papel de informar, base do Jornalismo, foi a pequena reportagem Juventude: Em Tempo de Crescer, do jornalista gaúcho Augusto Paim, em parceria com a ilustradora Ana Luiza Goulart Koehler. No próximo subcapítulo, analisaremos tal obra com a mesma base teórica que fundamentou o ensaio sobre Notas Sobre Gaza.

3.2 – JUVENTUDE: EM TEMPO DE CRESCER
3.2.2 – BREVE APRESENTAÇÃO DO AUTOR
Em seu trabalho de conclusão de curso, o jornalista Augusto Paim explica que, apesar de os quadrinhos terem tido papel importante em sua infância, sendo responsáveis por sua "iniciação na leitura"(2007, p.11), essa forma de contar histórias, abandonada a partir da adolescência, só voltaria a fazer parte de sua vida ao entrar na faculdade. Membro de um grupo de pesquisa, o jovem jornalista escolheu os quadrinhos como seu foco de estudo: "a ideia era juntar Jornalismo e história em quadrinhos numa nova forma narrativa: o Jornalismo em Quadrinhos (JQ). Depois, descobri que isso já existe, encabeçado por autores como Joe Sacco, Art Spielgeman e Étienne Davodeau" (Ibid., p.11).
Fascinado pelo novo mundo que encontrara – que permitia unir o gosto pela narrativa com seu amor pelo Jornalismo, muito influenciado por uma visão romântica que vê resgatada no fazer do jornalismo em quadrinhos -, Paim continuou seus estudos no Programa Rumos de Jornalismo Cultural, do Itaú Cultural, que o incentivou a criar o CABRUUUM, blog sobre quadrinhos. Em 2010, viria o primeiro trabalho em quadrinhos assinado por ele, a reportagem sobre o clube gaúcho Juventude, encomendada pelo Itáu Cultural para sua revista Continuum e que será analisada adiante. Em 2011, duas reportagens sobre o processo de pacificação das favelas do Rio de Janeiro, intituladas Inside the Favelas e Inside the Maré, são publicadas na plataforma digital The Cartoon Movement, site que se dedica a reunir produções jornalísticas no formato de quadrinhos de todo o mundo.
Em sua trajetória com jornalismo em quadrinhos, Paim se destaca também por ter sido organizador e curador do I e II Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos. A primeira edição, feita em conjunto com o Goethe-Institut Porto Alegre e com a Feira do Livro, aconteceu na capital gaúcha entre 28 e 30 de outubro de 2010. Com a certeza de que o Jornalismo em quadrinhos é um tema dinâmico que merece estudos e debates contínuos, a segunda edição aconteceu em 2012, dessa vez em Curitiba, como parte da Convenção Internacional de Quadrinhos da cidade, entre os dias 24 e 27 de outubro. Ambos os eventos contaram com mesas-redondas, palestras e exposições.

3.2.3 – JUVENTUDE: EM TEMPO DE CRESCER – QUANDO PALAVRAS E DESENHOS SE UNEM PARA CONTAR UMA HISTÓRIA JORNALÍSTICA
Juventude: Em Tempo de Crescer é uma reportagem curta, de apenas 6 páginas, que se debruça sobre o clube homônimo da cidade de Caxias do Sul (RS). Desde 2007, quando foi rebaixado para a série B, o Juventude vê seu prestígio e posição entre as grandes agremiações do futebol brasileiro caindo vertiginosamente: na época da reportagem, de 2010, o time se encontrava na série C. O objetivo da obra é, então, reconstruir a trajetória do Juventude, que colecionou títulos importantes na década de 90, bem como apresentar projeções para o futuro. Para tanto, são entrevistados uma série de personagens, a saber: Francisco Michielin, autor de Assim Na Terra Como No Céu, sobre a história do clube; Ricardo Finger, há 15 anos fisioterapeuta do time; Edgvar Vaz, seu assessor de imprensa; Cláudio Jr. Spigolon, o Dinho, presidente da torcida Mancha Verde; Edemar Antonio Picoli, ex-jogador, e Anderson DalBosco, torcedor.
Da mesma forma que Notas Sobre Gaza, a reportagem apresenta personagens e situações de apelo dramático, recursos típicos da ficção que, em ambos os casos, são usados para tornar mais atraente uma narrativa jornalística, sem no entanto desprestigiá-las enquanto forma de construção do real. Construção essa que, como lembra em entrevista o jornalista americano Dan Archer, não é uma característica única da linguagem dos quadrinhos:
A maioria das reclamações vem do último ponto, clamando que quadrinhos ´recriam´ eventos de acordo com o artista, o que significa que são inerentemente subjetivos. Eu argumento que todas as formas de representação (sejam fotográficas, textuais ou de áudio) têm que, por definição, editar algum conteúdo para apresentar ao leitor uma junção de informações inteligíveis, que ele possa processar. A câmera tem um enquadramento, uma faixa de áudio não pode gravar todos os sons numa dada situação, etc.

O "enquadramento" escolhido por Augusto Paim e por sua colega Ana Luiza Goulart Koehler, responsável pelos desenhos, é uma de cunho notadamente emocional, numa aproximação simpática à esperança que resiste entre os amantes do clube - independente da situação complicada do Juventude. Essa posição fica evidente na escolha cuidadosa para abertura e encerramento da matéria, com quadros que estabelecem um estreito e sensível diálogo, como será melhor explicado adiante.
A reportagem começa mostrando, no primeiro quadro, o Estádio Alfredo Jaconi (nome de um antigo e apaixonado presidente do Juventude) de longe e vai se aproximando aos poucos, até chegar em suas arquibancadas quase vazias, onde dois meninos, com as camisas do time, brincam de bafo com figurinhas (figura 5). A parte escrita fica dedicada a enumerar os grandes feitos do time (campeão brasileiro da série B em 1994, campeão gaúcho invicto em 1998, campeão da Copa do Brasil em 1999, disputa da Libertadores da América em 2000), estabelecendo um forte contraste com a realidade atual do clube, que fica evidente no estádio com pouquíssimos torcedores – sequência esta que ilustra bem como desenho e escrita, nos quadrinhos, devem servir como complementos, com o mesmo peso na tarefa de melhor contar uma história.
Depois dessa apresentação, segue-se para a apresentação da trajetória do clube, fundado em 1913. Grandes momentos são narrados a partir das lembranças dos entrevistados, num processo de produção que aparece para o leitor na colocação, ainda que discreta, do próprio Paim em cena, quase sempre com bloquinho em mãos. Ainda que a desenhista não apareça, pela posição do jornalista diante da maneira correta de se montar uma reportagem em quadrinhos, é sensato supor que Ana Luiza Goulart Koehler também tenha estado presente durante todas as etapas de apuração:
Existe Jornalismo em Quadrinhos mal feito, como existe reportagem de TV ruim, de rádio, de web etc. (...) Para mim, a reportagem em quadrinhos ruim é aquela em que desenho e texto são vistos de forma separada, ou seja, quando o desenhista é chamado apenas para ilustrar um roteiro já pronto. Nos meus trabalhos, quero sempre que o desenhista esteja junto comigo no momento da apuração. Isso mostra resultados no produto final: quando o desenhista também apurou, o desenho da reportagem passa a ser informativo; quando isso não acontece, é meramente ilustrativo.

É esse entendimento da não-hierarquia entre imagem e palavra na linguagem de quadrinhos que aparece novamente na sequência de encerramento da reportagem, em que voltamos para o Estádio Alfredo Jaconi. A narração se pergunta quanto ao futuro do time.
A papada (apelido pelo qual é conhecida a torcida do Juventude) viu passar pelo clube grandes ídolos do futebol nacional, que viveram no Juventude momentos importantes de suas carreiras. Comemorou, com vigor, a gloriosa fase das vitorias e dos troféus, amadureceu com os fracassos. Qual será a próxima conquista? Ou derrota? O próximo ídolo?" (PAIM&KOEHLER, 2010, p.67)

Essas palavras são complementadas – e não meramente ilustradas – pelo foco no garotinho que vimos jogando bafo no começo da reportagem. O enquadramento vai chegando cada vez mais perto do menino, que guarda suas figurinhas e então se levanta, levando o álbum contra o peito. No último quadro, o enfoque fica no álbum, com figuras de grandes nomes que já passaram pelo time (Felipão, Marcos Senna, Ricardo Gomes, Everaldo, Cafu e Thiago Silva), contra o escudo do Juventude na camisa do menino (figura 6). Essa imagem final sintetiza o sentimento passado pelos entrevistados, que mostravam "uma confiança inesperada para um clube recém-rebaixado para a série C" (Ibid., p. 67), ao unir a glória do passado (visto nos ídolos de outros tempos, enfocados na página do álbum) com a inabalável esperança dos jovens, evidente na capacidade do time de conquistar torcedores novos, como o garotinho que coleciona figurinhas de seu time do coração.
É importante frisar que, apesar dessa abordagem que se usa de recursos de carga emotiva, tal escolha foi motivada pelo sentimento otimista passado pelos entrevistados, que mantinham, no momento da reportagem, um inabalável orgulho pelo time que trouxe tantas alegrias. A frase do ex-jogador Edemar Antonio Picoli talvez seja a que melhor resume esse posicionamento geral: "ele não é um clube da série C, ele está apenas na série C" (Ibid, p. 66). Assim, o recurso narrativo de, por exemplo, enfocar uma criança para deixar óbvia a persistente esperança dos apaixonados pelo Juventude serve para melhor comunicar uma verdade entendida pelo repórter como tal – sendo ela não A verdade com letra maiúscula, mas um pedaço dela que foi construída a partir das entrevistas colhidas, do processo de apuração que antecedeu à montagem da reportagem em quadrinhos. Essa montagem sofre influência também – deve-se admitir – da interpretação, do posicionamento do próprio repórter envolvido (basta pensar que alguém mais crítico diante da situação de constante queda do Juventude provavelmente não escolheria um enquadramento final que remete à esperança da volta às glórias do passado, por exemplo). Isto porque:
todo texto tem como objetivo implícito a persuasão. Não importa se esse texto é uma campanha publicitária, um filme, uma história em quadrinhos ou uma notícia de jornal: sempre que um enunciador manipula os códigos de linguagem, criando um ato de comunicação, esse enunciador está buscando persuadir enunciatários de uma verdade, de um valor, de uma crença. O enunciador, portanto, busca o outro por meio da mensagem (PAIM, 2007, p14).












CONCLUSÃO
De tudo que foi lido para escrever essa monografia – que não pretende ser um tratado definitivo sobre o Jornalismo em Quadrinhos (afinal, como dar um ponto final a discussão que está apenas começando?), mas antes apenas outro esboço para chegar a um desenho mais acabado do que seria de fato esse novo tipo de fazer jornalístico -, aquilo que talvez melhor exprima os pontos defendidos nesse trabalho seja o capítulo intitulado A Memória e a Verdade Pura e Simples, de Notas Sobre Gaza. Em apenas cinco páginas, o pequeno capítulo sintetiza os principais pontos de nossa abordagem, a saber, de que tratar um fato jornalístico como uma narrativa, ou seja, como uma história, não tira dele seu caráter factual, evidenciando ao contrário todas as refrações pelas quais qualquer ato de contar inevitavelmente passa, bem como as limitações para abarcar tudo o que seria o real – o que não muda, deve-se frisar, o fato de que, sendo uma narrativa jornalística, teve, durante seu processo de montagem, uma preocupação com o máximo apuro possível, na busca de fontes, testemunhos e outras evidências que sustentem o que se fala enquanto algo factual, não fictício.
A Memória e a Verdade Pura e Simples é colocado na sequência de uma série de capítulos que reconstroem o primeiro massacre que Sacco se propôs a investigar, acontecido em Khan Younis em 3 de novembro de 1956. Logo no segundo quadro, o autor, sem medo de ter sua credibilidade posta em dúvida pelo leitor, avisa:
De acordo com esses testemunhos (colhidos para reconstruir o dia do ataque), os homens foram mortos dentro de casa ou enfileirados nas ruas em paredões de fuzilamento. Agora me permita abalar as bases que sustentam a nossa história (SACCO, 2009, p.112, grifo nosso).
A partir daí, o repórter revela algumas passagens conflitantes entre os relatos colhidos, sendo as várias versões para a história de um sobrevivente chamado Khamis a que apresenta os maiores pontos de atrito.
Segundo o próprio Khamis, ele conseguiu fugir depois que militares israelenses o obrigaram, junto a seus três irmãos, a se enfileirar do lado de fora de casa para serem executados. "Ele conta que saiu correndo enquanto os irmãos eram fuzilados... Nocauteou um soldado que o perseguia... Pulou um muro... E fugiu enquanto os soldados atiravam contra ele" (Ibid., p.113). A partir daí, o sobrevivente se escondeu num matagal até o cair da noite, quando, se esgueirando entre as moradias de Khan Younis, voltou para casa. Ao chegar, encontrou seu irmão Subhi, agonizante, com um tiro no abdômen – diante de Sacco, deita-se no chão para mostrar a posição em que o parente se encontrava, bem como seus poucos movimentos antes de morrer. O homem termina seu relato aos prantos, afirmando que a lembrança da perda de seu irmão sempre volta nitidamente, "como se fosse um filme" (Ibid., p.115).
O relato de Khamis em grande parte coincide com aquilo que outros envolvidos no drama dos quatro irmãos presenciaram, mas não se encaixa num ponto crucial. "Dias depois, tivemos notícias... Nosso Tio Khamis tinha chegado a Rafah, e estava em segurança... Ele só voltou a Khan Younis depois de dois meses, quando a situação se acalmou de vez" (Ibid., p. 115), diz o sobrinho Abu Antar El-Sa'doni, que tinha sete anos quando o massacre ocorreu. Já Omn Nafez, viúva de um dos irmãos assassinados, conta: "Ele (Khamis) ficou longe por quatro meses. Só voltei a vê-lo depois que os judeus foram embora de Khan Younis" (Ibid., p.115). Ou seja, no relato do sobrinho e da cunhada, a lembrança que aparece tão nítida na mente de Khamis sempre que pensa no massacre simplesmente não aconteceu (figura 7).
Sacco, não envergonhado ou frustrado diante do fato de não ter conseguido montar o quebra cabeças com perfeição, coloca algumas suposições para o desencontro entre os relatos. Talvez Khamis, que tantas vezes ouviu a história da morte de seu irmão, tenha incorporado aquele fato à memória como se o tivesse testemunhado. Ou, atormentado pela culpa de ser um dos poucos sobreviventes – além dos irmãos, viria a perder 36 amigos e parentes no dia 3 de novembro de 1956 -, tenha se agarrado a uma lembrança inventada para sentir que não havia abandonado todos que amava na tragédia. Talvez a viúva Omn tenha bloqueado a memória de Khamis devido ao abalo pela perda do marido. Talvez o pequeno Abu Antar fosse novo demais para lembrar que o tio voltara para casa. (Ibid., p.116).
Coerente com sua posição de buscar sempre ser honesto com seus leitores, Sacco não tem medo de mostrar as dificuldades pelas quais qualquer processo de montagem de uma história passa – em especial, as jornalísticas, em que o compromisso com a verdade é tão forte. Mas que verdade seria essa? Na opinião do autor de Notas Sobre Gaza (cuja construção do real nesse trabalho específico passou pelo filtro não só de sua sensibilidade subjetiva, mas também pelos próprios desgastes que a memória acaba sofrendo – afinal, trata-se da reconstrução de acontecimentos que ocorreram há mais de 50 anos), há sim algo essencialmente verdadeiro. Tal coisa ultrapassaria mesmo discrepâncias tão absurdas quanto a presença ou não de um membro da família no momento da morte de um irmão baleado.
Só quero deixar claros os problemas de se depender do relato de testemunhas para contar a nossa história. Mas isso não pode desviar o nosso foco da verdade pura e simples. Três irmãos de Khamis foram mortos por soldados israelenses no dia 3 de novembro de 1956" (Ibid., p. 116, grifo nosso).

Nessa busca pela verdade pura e simples está o grande diferencial da narrativa que se diz jornalística daquela intitulada ficcional. Por mais que apresente inúmeros personagens ou momentos de conflito estruturados de maneira a montar uma história, por mais que se foque em pequenos detalhes que a velha escola da objetividade julgue desnecessários, ou mesmo que se opte por um suporte pouco usual como os quadrinhos, se uma narrativa reivindica o estatuto de jornalística, ela tem que ter como objetivo principal apresentar uma verdade essencial. Nas palavras de Sacco, em entrevista ao The Art Threat:
a verdade essencial é que essas coisas (as mortes em Rafah e Khan Younis) de fato aconteceram. Fiquei sabendo dela por vozes diferentes, e, talvez, com 50 anos de memória no meio, as pessoas não possam olhar para trás com claridade. Mas elas meio que conseguem vê-la pelo canto de seus olhos, e se você consegue pessoas suficientes que veem essa coisa pelo canto do olho de uma mesma maneira, então essa verdade tem um formato e um corpo (WINTON, 2010)

O leitor/ouvinte/telespectador precisa ser avisado que, para desenhar esse formato e corpo, há vários caminhos, sendo eles moldados por uma série de fatores, tanto externos (valores de identidade profissional ou pressões de códigos da sociedade, por exemplo) quanto internos (a visão de mundo do próprio repórter). Admitir essa variabilidade e – mais importante – a impossibilidade de reconstruir o real com 100% de fidelidade, antes de diminuir a credibilidade do que está sendo narrado, estabelece uma relação de troca diferente daquela imposta pela visão tradicional do jornalismo como um espelho sem falhas, um relato imparcial e distante sobre realidades objetivas.
Os quadrinhos, principalmente por sua natureza extremamente subjetiva, tornam mais fácil deixar essa posição às claras: afinal, com o perdão da obviedade, se está desenhado é porque alguém desenhou. Naturalmente, pode-se responder que o texto escrito também nasce das mãos de uma pessoa, mas nessa forma de comunicação há uma série de estratégias, das quais se usa muito bem o jornalismo, que permitem deixar tal fato quase totalmente às escondidas: o uso da terceira pessoa, das aspas e outros recursos contribui para um distanciamento entre o autor e aquilo que ele escreveu.
Esconder o autor de um desenho é mais complicado, se não impossível – e talvez daí venha a tendência de, no Jornalismo em Quadrinhos, o repórter aparecer nas páginas como mais um personagem. Pois aquele que narra não deixa de ser alguém fundamental na estrutura da história: é ele que escolhe como e quais pedaços contar. Por não conseguir esconder esse personagem essencial, a narrativa jornalística dos quadrinhos não se coloca como melhor nem pior que a de outras mídias, tendo potencialidades e limitações como qualquer outra plataforma. Mas estabelece uma relação sobretudo mais honesta. Isto porque, como explica Dan Archer, os quadrinhos não deixam dúvidas quanto a sua posição não como representantes da "'verdade inteira' de uma dada situação", se colocando apenas como uma "janela particular para tal situação". Mesmo que por vezes custe-se a admitir, essa condição é partilhada com a reportagem de tv, a matéria radiofônica, a notícia do jornal, ou qualquer outra forma de reprodução do real construída por seres humanos.










BIBLIOGRAFIA
AIZEN, Naumin. Uma Saga – A Difusão da Literatura em Quadrinhos no Brasil. In: CIRNE, Moacyr; MOYA, Álvaro de; D'ASSUNÇÃO, Otacílio et al. Literatura em Quadrinhos no Brasil – Acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2002.
ARBEX, José. Prefácio. In: SACCO, Joe. Palestina – Edição Especial. São Paulo. Conrad, 2011.
CIRNE, Moacyr; MOYA, Álvaro de; D'ASSUNÇÃO, Otacílio et al. Literatura em Quadrinhos no Brasil – Acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2002.
CIRNE, Moacyr; MOYA, Álvaro de. Cronologia Comentada das Histórias em Quadrinhos no Brasil. In: Literatura em Quadrinhos no Brasil – Acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2002.
EISNEIR, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
JÚNIOR, Gonçalo. A Guerra dos Gibis – A Formação do Mercado Editorial Brasileiro e a Censura aos Quadrinhos, 1933-64. São Paulo. Companhia das Letras, 2004.
KANNO, Maurício de Paula. Jornalismo nas Histórias de Super-Heróis: Os Quadrinhos de Clark Kent e Peter Parker. 2006. 149 f. Monografia (Graduação em Comunicação e Artes) – Escola de Comunicação e Artes – Departamento de Jornalismo e Editoração, Universidade de São Paulo, 2006.
KLAWA, Laonte; COHEN, Haron. Os quadrinhos e a Comunicação de Massa. In: MOYA, Álvaro de (Org). Shazam! São Paulo. Editora Perspectiva, 1972.
LUNSFORD, Andrea A; ROSENBLATT, Adam. Critique, Caricature and Compulsion in Joe Sacco's Comics Journalism. In: WILLIANS, Paul; LYONS, James. The Rise of The American Comics Artist: Creators and Contexts. Mississipi. The University Press of Mississipi, 2010.
MCCLOUD, Scott. Reinventando os Quadrinhos – Como a Imaginação e a Tecnologia Vêm Revolucionando Essa Forma de Arte. São Paulo. M. Books do Brasil, 2006.
_______________. Desvendando os Quadrinhos. São Paulo. Mkron Books, 1995.
MESSIAS, José Carlos. O Imaginário do Herói Nas Histórias em Quadrinhos: Uma Análise Comparativa entre Superman e Samurai X. 2009. 63 f. Monografia (Graduação em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social – Departamento de Jornalismo, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009.
__________________. A Construção da Figura do Herói nos Mangás e Comics: Uma Análise Comparativa entre Samurais e Super-Heróis. 2012. 154 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Comunicação Social – Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2012.
MOYA, Álvaro de (Org). Shazam! São Paulo. Editora Perspectiva, 1972.
MOYA, Álvaro de; OLIVEIRA, Reinaldo de. História (dos quadrinhos) no Brasil. In: MOYA, Álvaro de (Org). Shazam! São Paulo. Editora Perspectiva, 1972.
MOYA, Álvaro de; D'ASSUNÇÃO, Otacílio. Edições Maravilhosas – As adaptações Literárias em Quadrinhos. In: CIRNE, Moacyr; MOYA, Álvaro de; D'ASSUNÇÃO, Otacílio et al. Literatura em Quadrinhos no Brasil – Acervo da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2002.
PAIM, Augusto. Análise de Estratégias Discursivas na Narrativa de Jornalismo em Quadrinhos "Palestina: Na Faixa de Gaza", de Joe Sacco. 2007. 70 f. Monografia (Graduação em Comunicação Social – Jornalismo) – Curso de Comunicação Social – Centro de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria, 2007.
RUSSEL, Vanessa. The Mild Mannered Reporter – How Clark Kent Surpassed Superman. In: NDALIANIS, Angela (Org). The Contemporary Comic Book Super Hero. Nova York. Taylor&Francis, 2009.
SACCO, Joe. Notas Sobre Gaza. São Paulo. Companhia das Letras, 2009.
__________. Palestina – Edição Especial. São Paulo. Conrad, 2011.
SAID, Edward. Homenagem a Joe Sacco. In: SACCO, Joe. Palestina – Edição Especial. São Paulo. Conrad, 2011
SODRÉ, Muniz. A Narração do Fato: Notas Para Uma Teoria do Acontecimento. Petrópolis. Editora Vozes, 2009.
____________; FERRARI, Maria Helena. Técnica de Reportagem – Notas Sobre Narrativa Jornalística. São Paulo. Summus Editorial, 1986.
VALLE, Flávio Pinto. O Boom do Jornalismo em Quadrinhos – A Reivindicação do Estatuto Jornalístico nas Histórias em Quadrinhos de Joe Sacco. 2010. 133 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.
________________. Quadro a Quadro – Reflexões Sobre o Jornalismo em Quadrinhos. 2007. 95 f. Monografia (Graduação em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Departamento de Comunicação Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007.
VANDERBEKE, Dick. In the Art of the Beholder: Comics as a Political Journalism. In: BERNINGER, Mark; ECKE, Jochen; HABERKORN, Gideon (Org). Comics as a Nexus of Cultures – Essays on the Interplay of Media, Disciplines and International Perspectives. Carolina do Norte. McFarland&Company, 2010.
VIEIRA, Geraldinho. Complexo de Clark Kent – São Super-Homens os Jornalistas?. São Paulo. Summus Editorial, 1991.
BIBLIOGRAFIA DIGITAL
ADDAMS, Sam. Interview – Joe Sacco. Disponível em: < http://www.avclub.com/articles/joe-sacco%2c57360/> Visitado em ago. 2012.
ARCHER, Dan. An Introduction to Comics Journalism, in the Form of Comics Journalism. Disponível em: Visitado em mar. 2012.
CARLOSCARLOS; MAIO, Alexandre de. Crack: Caso de Polícia ou de Saúde Pública? Disponível em: < http://catracalivre.folha.uol.com.br/2012/03/243021> Visitado em out. 2012.
_________________________________. Moradia Digna, Direito da População. Disponível em: < http://catracalivre.folha.uol.com.br/2012/02/jornalismo-em-quadrinhos-sobre-a-questao-da-moradia-na-revista-forum/> Visitado em nov. 2012.
DUTRA, Aristides. Quadrinhos de Não-Ficção. Disponível em < http://www.portcom.intercom.org.br/pdfs/82788180333222761064488141803562219892.pdf> Visitado em jan. 2013.
MOTTA, Luiz Gonzaga. A Análise Pragmática da Narrativa Jornalística. Disponível em < galaxy.intercom.org.br:8180/dspace/bitstream/1904/.../R2419-1.pdf> Visitado em mar. 2012.
__________________. Jornalismo e Configuração Narrativa da História do Presente. Disponível em: Visitado em mar. 2012.
__________________. Narrativas: Representação, Instituição ou Experimentação da Realidade?. Disponível em: Visitado em mar. 2012
OLIVEIRA, Ana Paula Silva; PASSOS, Mateus Yuri. Joe Sacco: Jornalismo Literário em Quadrinhos. Disponível em: Visitado em dez.2012.
PAIM, Augusto. Os Filhos de Joe Sacco. Disponível em: < http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc44/index2.asp?page=materia1> Visitado em jan. 2013.
_____________.; KOEHLER, Ana Luiza Goulart. Juventude: Tempo de Crescer. Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br/continuum/quadrinhos.pdf> Visitado em dez. 2012.
______________.; MAUMAU. Inside The Favelas. Disponível em: Visitado em out. 2012.
____________________________. Inside the Maré. Disponível em: Visitado em out. 2012.
PRIEGO, Ernesto. Comic book news: a look at graphic narrative journalism (part 1). Disponivel em: Visitado em jun. 2012.
________________. Comic Books news: a Look at Graphic Narrative Journalim (part 2). Disponível em:< http://www.niemanstoryboard.org/2009/11/13/comic-book-news-joe-sacco-draws-on-history> Visitado em jun. 2012.
PUSTAI, Bárbara. Série sobre Jornalismo em Quadrinhos no Blog Jogo da Notícia. Disponível em: < http://jogodanoticia.wordpress.com/> Visitado em fev. 2013.
SILVEIRA, Leandro. Jornalistas Desenvolvem Primeira Grande Reportagem em Quadrinhos. Disponível em: < http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/jornalistas_desenvolvem_primeira_grande_reportagem_em_quadrinhos> Visitado em jan. 2013
VALLE, Flávio Pinto. Fragmentos do Real: o Realismo no Jornalismo em Quadrinhos. Disponível em: < www.fafich.ufmg.br/cis/pdfs/grispress/VALLE_flavio.pdf> Visitado em mar. 2012.
WILLIAMS, Kristin. The Case of Comics Journalism. Disponível em: Visitado em jun. 2012.
WINTON, Ezra. Picking Through the Rubble of Memory. Disponível em: < http://artthreat.net/2010/12/joe-sacco-interview-1/> Visitado em ago. 2012
WOO, Benjamin. Reconsidering Comics Journalism – Information and Experience in Joe Sacco's Palestine. Disponível em: Visitado em abr. 2012.

































ANEXOS






ANEXO 1 – ENTREVISTA DAN ARCHER
Dan Archer, jornalista, quadrinista e editor do site archcomix.com. Entrevista realizada por email em julho de 2012.
1) What makes comics a suitable media for journalistic pieces?
I think comics are suited to dryer, perhaps less "sexy" topics, where they can add a more compelling, visual dimension to purely textual or statistical data. They are equally suited to oral testimonies, provided full disclosure is stated that all visuals are based on eyewitness sources.

2) Is there any criticism towards comics journalism? What do critics say? 
The majority of complaints stem from the last point above, claiming that comics "recreate" events according to the artist, meaning they are inherently subjective. I argue that all forms of representation (be it photographic, textual or audio) has to, by definition, edit out some content in order to present the reader with an intelligible chunk of data that they can process. A camera has a frame, an audio track can't record every sound in a given situation, etc. There is also talk of comics being inherently childish or lacking the authority to deal with subjects of a certain gravitas, which I don't accept either. Comics allow for the most personal, honest, accounts of news events - they are not claiming to account for the entire "truth" of a given situation, more like present a particular window that situation.

3) Which authors were important in order to make it possible for comics to be recognized as a suitable tool for journalism making? Why is Joe Sacco often highlighted as the more important of them all? 
Joe Sacco, first and foremost: Emanuel Guibert, behind the wonderful "The Photographer", Josh Neufeld, and going back further, social chroniclers such as Hogarth, Breughel, and the wordless woodcut artists such as Masereel and Lynd Ward. Joe Sacco was the first to synthesize a meticulous reporting style with the same incredible attention to detail with his breakthrough work, "Palestine". Before then, Art Spiegelman had used comics to explore the themes of historical memory, trauma narratives and identity in Maus, but through the very subjective, personalized prism of his Father's experience of the holocaust. Sacco was the first to approach interview subjects like a "traditional" journalist would.

4) Comics are often used in graphic reportages about wars or conflict areas. Why is there that tendency? Can comics be used in any kind of piece?
Yes, but admittedly war provides more visual reference! There's something compelling about capturing the trauma, pain and suffering through minute pen marks and attention to detail that I think is lost in the act of taking a photo - I feel like by spending the time drawing these situations, there's a more personal connection between the comics journalist and the reader. But yes, comics can be used in almost any journalistic context, I've found them to be exceptional versatile.

5) How do you see the future of comics journalism?
I see it moving onto tablets and smart phones, incorporating more interactive elements, as well as incorporating animation and multimedia annotations to further deepen the reading experience. It's exactly what I'm focusing on in my work now, actually: http://www.archcomix.com/multimedia/












ANEXO 2 – ENTREVISTA AUGUSTO PAIM
Augusto Paim, jornalista e estudioso do Jornalismo em Quadrinhos. Entrevista realizada em setembro de 2012, por email.
1) O que torna os quadrinhos válidos enquanto suporte para produção jornalística?
A legitimação do quadrinho enquanto linguagem possível de ser usada no jornalismo é a mesma da literatura, quando se fala em Jornalismo Literário. Quando falamos em 'reportagem', independente do formato, estamos falando em 'narrativa'. Há infinitas formas de se fazer narrativas, e o próprio jornalismo já demonstra essa diversidade: TV, rádio, web, impresso... A veracidade e a profundidade de uma notícia independem da mídia utilizada. Usar a linguagem dos quadrinhos ou da literatura em uma reportagem, dependendo de como for usada, pode ser um enriquecimento.

2) Por que a decisão de trabalhar com quadrinhos? Quais são as vantagens e desvantagens dessa mídia?
Para mim, trabalhar com reportagem em quadrinhos tem duas vantagens principais: primeiro, esse trabalho tem me permitido um resgate do jornalismo romântico, que é aquele de ir pra rua e sujar os sapatos de lama (e isso vale também para o desenhista); segundo, que há uma série de elementos importantes da narrativa em quadrinhos (como visualidade, sequencialização, memória, estilo do desenho etc) que podem prestar contribuições para determinados tipos de pautas, ou seja, para pautas em que essas características dos quadrinhos combinem com a melhor forma de tratar o assunto em questão. Já as limitações são as mesmas de qualquer mídia: há recursos narrativos próprios de determinadas linguagens que não encontram correspondente em outra. Por isso é tão importante se pensar em que tipo de pauta pode ser adequada ou não para a linguagem dos quadrinhos.

3) Existem críticas ao jornalismo em quadrinhos? Se sim, quais seriam?
Sim, existem críticas. Existe Jornalismo em Quadrinhos mal feito, como existe reportagem de TV ruim, de rádio, de web etc. Não dá para endeusar tudo que é feito em quadrinhos - mas infelizmente ainda estamos nesse momento de euforia no uso dessa linguagem. Para mim, a reportagem em quadrinhos ruim é aquela em que desenho e texto são vistos de forma separada, ou seja, quando o desenhista é chamado apenas para ilustrar um roteiro já pronto. Nos meus trabalhos, quero sempre que o desenhista esteja junto comigo no momento da apuração. Isso mostra resultados no produto final: quando o desenhista também apurou, o desenho da reportagem passa a ser informativo; quando isso não acontece, é meramente ilustrativo. Hoje em dia, tem saído muita coisa com o título de "Jornalismo em Quadrinhos" que, no meu ver, é apenas quadrinho baseado em fatos reais, ou então humor sobre fatos reais. Jornalismo de verdade é raro de se ver. É por isso que ainda hoje Joe Sacco é insuperável, porque ele não está brincando com a linguagem dos quadrinhos; está sim pensando em usar a linguagem dos quadrinhos para trazer um nível novo de profundidade ao jornalismo.

4) Como o sr vê o futuro do jornalismo em quadrinhos?
O futuro do Jornalismo em Quadrinhos depende do que vai se seguir a essa fase de euforia. Quando se desenvolver um olhar crítico para o uso dos quadrinhos no jornalismo, pode ser que se comece a separar o joio do trigo. Por enquanto, até pelo aspecto da novidade, tudo parece "interessante", e qualquer assunto não-ficcional tratado em quadrinhos já recebe o nome de reportagem. O amadurecimento da reportagem em quadrinhos passa pela postura crítica. No ano passado, procurei trazer isso à tona nesta reportagem, no qual os autores discutem as vantagens de se trabalhar com quadrinhos no Jornalismo: http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc44/index2.asp?page=materia1. E agora em outubro haverá o II Encontro Internacional de Jornalismo em Quadrinhos, evento que tem justamente o intuito de preencher essa lacuna que faltava, de estudo e crítica.
















ANEXO 3 - FIGURAS
Figura 1 - A força da interação entre palavras e imagens aparece neste exemplo, em que a sombras que cobrem o rosto da idosa reforçam a ideia da vida vazia de alguém que há 50 anos espera notícias do neto, da mesma forma que o balão afastado sugere um leve e cambaleante sussurro.

Figura 2 - Em Notas Sobre Gaza, Sacco (de óculos) aparece com frequência nas páginas, sendo permitido aos leitores acompanhar o processo de produção da reportagem. Tal estratégia funciona como forma de aproximação do leitor, ao mesmo tempo em que legitima o trabalho enquanto jornalístico ao focar-se no cuidado no momento da apuração das informações colhidas enquanto o repórter estava em Gaza.










Figura 3 – O cuidado na representação dos detalhes, seja no sutiã à mostra, na estampa floral da blusa ou nos fios que fogem do coque, serve para reforçar o sentido de que a reportagem em quadrinhos representa personagens e situações factuais, ou seja, não ficcionais, como fica evidente na comparação entre o vídeo e o desenho de uma das reportagens da Revista Fórum.


Figura 4 – Como é comum na prática do jornalismo em quadrinhos, o repórter com frequência mostra a cara no produto final, a exemplo de CarlosCarlos (no círculo). Pelo seu formato pouco convencional, os quadrinhos casam muito bem com a abordagem de personagens normalmente não enfocados na grande mídia, como o usuário de crack bem articulado, que considera a Cracolândia uma "família"(sublinhado).


Figura 5 - No uso ideal dos quadrinhos, desenhos não apenas ilustram o que é dito, mas sim servem como complemento – logo no 2º quadro, o estádio vazio já chama atenção para o fato de que os tempos áureos do Juventude se foram, num contraste com a enumeração de seus títulos nos quadros de narração.

Figura 6 – Estruturada num formato narrativo, a reportagem volta a seu ponto inicial (o estádio), para terminar de maneira esperançosa ao dedicar seu último quadro a colocar lado a lado grandes figuras do clube e o escudo do Juventude, ambos os símbolos levados ao peito por uma criança, evidenciando a capacidade do time, mesmo combalido, de seguir angariando torcedores apaixonados.

Figura 7 – Khamis consegue lembrar com riqueza de detalhes o momento da morte de seu irmão, mas a cunhada e o sobrinho dizem que o homem não estava em casa naquela hora. O que é, nessa história, a verdade?






Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.