Jornalismo e Construção Social do Acontecimento

August 31, 2017 | Autor: Eduardo Meditsch | Categoria: Journalism, Sociology of Journalism
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Jornalismo e construção social do acontecimento[1]
Eduardo Meditsch[2]


Resumo:
Este texto pretende problematizar a noção de construção social da realidade
pelo jornalismo, conforme tem sido apresentada nas teorias da área da
Comunicação. Parte da constatação das abordagens correntes na literatura
acadêmica sobre jornalismo e mídia, observando suas discrepâncias em
relação à noção original desenvolvida no clássico tratado de Sociologia de
Conhecimento de Berger & Luckman (1966). Com base na releitura daqueles
autores, propõe uma atenção mais cuidadosa ao processo sócio-cognitivo em
que se produz o acontecimento social, articulado à construção
intersubjetiva do senso comum, e a participação do jornalismo nesta
construção. A partir dessa perspectiva, rediscute as formas como o
jornalismo participa da construção da realidade, numa perspectiva
processual dialética que vê (a) a sociedade como produto coletivo humano -
em que o jornalismo participa desta produção, mas não a monopoliza; (b) a
sociedade como realidade objetiva – em que o jornalismo representa uma das
formas de objetivação, em meio a outras tão ou mais importantes; e (c) o
homem como produto social, num processo em que o jornalismo também
participa como uma forma de "socialização terciária". Além de relativizar
desta forma a importância do jornalismo na construção social da realidade,
o texto aponta para a necessidade de aprofundar os estudos sobre a
especificidade de sua participação neste processo para compreender a gênese
dos acontecimentos sociais.

A perspectiva construcionista nos estudos da notícia, como aponta
Traquina (2004:168), permitiu superar o empirismo ingênuo de feição
positivista que desde o final do Século XIX deu o tom das teorias
normativas da profissão. No entanto, a dicotomia entre a perspectiva que
via o jornalismo, singelamente, como um espelho da realidade, e aquela
outra que demonstra o processo de construção que o caracteriza, tem sido
empobrecedora em mais de um aspecto. O primeiro e mais óbvio é a
simplificação da relação dialética entre subjetividade e objetividade
(complexificada ainda mais pela intersubjetividade) na produção de
conhecimento sobre a realidade. O segundo é o de transferir para a questão
da construção da realidade, como através de uma correia de transmissão, por
uma generalização desmedida, o desvendamento feito do processo de
construção da notícia. No primeiro caso, ao objetivismo ingênuo se
contrapõe um subjetivismo ingênuo; no segundo, à metáfora da total
exterioridade se contrapõe o da total interiorização midiacêntrica, levando
ao absurdo lógico de uma visão de construção da realidade esgotada pelo
protagonismo da mídia.
Este texto propõe uma volta ao estudo de Berger & Luckmann sobre a
construção social da realidade para em seguida recolocar o problema do
acontecimento jornalístico nesta construção. Parte do pressuposto de que a
relação entre jornalismo e acontecimento se dá dentro de um processo maior
de construção social da realidade e é condicionada por este processo maior
que é preciso compreender previamente.
Esta é uma posição discordante daquela que afirma que "o jornalismo
constrói a realidade". A afirmação de que "o jornalismo constrói a
realidade" está presente em dezenas de textos acadêmicos da área da
comunicação, quase sempre como um pressuposto, que por isso mesmo não
requer demonstração teórica nem empírica para ser repetidamente afirmado.
Já faz parte do "repertório crítico" de nossos estudantes, ou seja, daquele
grupo de crenças chanceladas no meio social da Academia e com as quais um
novato deve se identificar para ser aceito no grupo. E se isso ocorre é
porque existem suposições "que possuem grande poder de sugestão e por isso
também de convicção, o que não significa, porém, que resistam a uma
investigação empírica", como provocam Berger & Luckmann (1995:14). O que
talvez esses autores não saibam é que o conceito de construção social da
realidade – criado por eles trinta anos antes - tenha se tornado uma dessas
suposições enganosas ao ser aplicado aos estudos de mídia e do jornalismo.
Em texto anterior (MEDITSCH, 1997), discutimos como a
desterritorialização dos conceitos pode ser problemática para a teorização
sobre jornalismo, tendo em vista que muitos deles transpuseram não apenas
diferentes línguas e culturas, mas também diferentes campos de conhecimento
para chegar até ali. Em poucos casos, no entanto, esta questão tem sido
devidamente problematizada, e o mais usual é observarmos a adoção de
conceitos que são apropriados pela área de forma descuidada em relação à
necessária investigação sobre suas origens, fundamentos, propósitos e
limites. Entre os vários casos que se enquadram mais obviamente nesta
situação, está sem dúvida o conceito de construção social da realidade.
Este conceito é atribuído a Peter Berger e Thomas Luckmannn, por ter
lhes servido de título para o livro caracterizado por eles como "um tratado
de sociologia do conhecimento" publicado originalmente nos Estados Unidos
em 1966 e logo tornado uma obra de referência mundial, com centenas de
edições publicadas em várias línguas. No Brasil, a transposição de língua
não foi em si problemática, graças à tradução realizada aqui pelo filósofo
Álvaro Vieira Pinto, em 1975, que a assinaria então com o pseudônimo de
Floriano de Souza Fernandes (CÔRTES, 2003). Já na França, a obra chegou só
em 1986 "com um prefácio impressionista e subjetivista de Michel Maffesoli
que obscureceu um pouco a proposta de livro" (conforme CORCUFF, 2001:88), e
que provavelmente influiu na sua leitura.
A aplicação do conceito ao jornalismo teria sido feita inicialmente
pela socióloga norte-americana Gaye Tuchman, em seu livro Making News: a
study in the construction of reality (TUCHMAN, 1978). Muitos acadêmicos
brasileiros tomaram conhecimento desta obra, ainda não publicada em
português, através da tradução espanhola que recebeu o título La producción
de la noticia: estudio sobre la construcción de la realidad (TUCHMAN,
1983). Embora sutil, a alteração do subtítulo na tradução (de in the para
sobre la) transforma o sentido da frase. E se a autora adota uma postura
ambígua, no texto original, sobre a relação entre a construção da notícia e
a construção da realidade, na versão castelhana esta relação de onipotência
passa a ser um dado pressuposto a partir do subtítulo.
Na introdução de seu trabalho, Tuchman diz que o mesmo é um produto
de seu esforço de onze anos para aprender sobre as notícias "como a
construção social da realidade". Diz também que ao final de seu estudo não
pode "provar" sua suposição original de que a mídia jornalística define o
contexto no qual os cidadãos discutem os assuntos públicos, mas continua
"acreditando nisso" (TUCHMAN, 1978:ix-x).
É uma postura semelhante à do semiólogo argentino Eliseo Verón, que
na introdução de seu estudo sobre a cobertura jornalística do acidente na
central nuclear de Three Mile Island, publicado originalmente em 1981, a
que deu o título de "construir o acontecimento", também afirma:
"Os acontecimentos sociais não são objetos que se encontrem já feitos em
alguma parte da realidade e cujas propriedades e transformações nos são
dados a conhecer de imediato pelos meios de comunicação com maior ou menos
fidelidade. Eles só existem na medida em que esses meios os elaboram. (...)
Os meios informativos são o lugar onde as sociedades industriais produzem
nossa realidade" (VERÓN, 1995:II).

E o afirma, assim como Gay Tuchman, nos pressupostos, e não nas
conclusões do trabalho.
A perspectiva de Eliseo Verón, assim como a de Gaye Tuchman,
influencia outros autores importantes para o estudo do jornalismo, como o
catalão Miquel Alsina, que o cita: "A mídia é quem cria a realidade social.
Os acontecimentos chegam a nós através da mídia e são construídos através
de sua realidade discursiva. Em nossa sociedade, é a mídia quem gera a
realidade social (VERÓN, 1981). Portanto, o processo de construção da
realidade social, depende completamente da prática produtiva do
jornalismo." (ALSINA, 2009:46)
Curiosamente, embora Alsina, como Tuchman, dê a entender que seus
pontos de vista sobre a participação do jornalismo na construção da
realidade estejam amparados na concepção teórica de Berger & Luckmann
(1966), estes últimos desprezaram quase completamente o papel da mídia na
construção social da realidade em seu tratado da década de 60. O jornalismo
só é citado por estes autores como uma referência utilizada pelos
indivíduos na "conservação da realidade" já interiorizada: ao descreverem
como uma pessoa que acorda pela manhã se transporta do mundo dos seus
sonhos ao mundo da realidade cotidiana, os autores colocam o jornal como um
dos índices do mundo real que esta pessoa terá a seu dispor:
"De modo considerável, todos os outros – ou pelo menos a maior parte
– encontrados pelo indivíduo na vida cotidiana servem para reafirmar sua
realidade subjetiva. Isto acontece mesmo numa situação 'tão pouco
significativa' como viajar num trem diário para o trabalho. O indivíduo
pode não conhecer ninguém no trem nem falar com qualquer pessoa.(...). Pela
conduta global os viajantes retiram o indivíduo da tênue realidade do
entremunhamento matinal e demonstram em termos indubitáveis que o mundo é
constituído de homens sérios, que vão ao trabalho, de responsabilidade e
horários, da New Haven Railroad e do Times de Nova York. Este último,
evidentemente, reafirma as mais amplas coordenadas da realidade individual.
Do boletim meteorológico até os anúncios de 'precisa-se', tudo lhe assegura
de que está, de fato, no mundo mais real possível. (...) Mas a realidade
começa a ser completamente segura somente na comunidade anônima dos
viajantes do trem. Chega a se tornar maciça quando o trem entra na Grand
Central Station. Ergo sum, pode então o indivíduo murmurar para si mesmo, e
caminhar para o escritório inteiramente acordado e seguro de si." (BERGER &
LUCKMANN, 1966:198-199)

Desta forma, o jornal é visto na obra como um dos elementos que
ajudam o indivíduo a reconhecer o que é a realidade, fornecendo "as
coordenadas mais amplas" da realidade individual mas, observe-se, o que é
salientado pelos autores são os classificados e a previsão do tempo, e não
os editoriais ou as notícias. Além disso, a importância atribuída a eles
pelo jornal é menor do que a das rotinas cotidianas – através das quais o
indivíduo se relaciona com as instituições que lhe afetam a vida – e
também menos eficaz do que as relações pessoais para esta "conservação da
realidade":

"Os outros significativos na vida do indivíduo são os principais agentes da
conservação da realidade subjetiva. Os outros menos significativos
funcionam como uma espécie de coro. (...) A importância relativa dos outros
significativos e do 'coro' pode ser vista mais facilmente se considerarmos
os casos de desconfirmação da realidade subjetiva. (...) A reiterada
opinião do melhor amigo do indivíduo, segundo a qual os jornais não estão
relatando acontecimentos consideráveis que se passam por baixo das
aparências, pode ter mais peso do que a mesma opinião expressa pelo
barbeiro. Entretanto, a mesma opinião expressa sucessivamente por dez
conhecidos casuais pode começar a contrabalançar a opinião contrária do
melhor amigo do indivíduo." (1966:201-202).

Assim, nestas duas únicas referências que fazem ao jornalismo nas 219
páginas de seu clássico tratado sobre a construção social da realidade,
Berger & Luckmann jamais colocam a mídia numa posição central deste
processo. Pelo contrário, relativizam os seus efeitos no processo de
socialização na medida em que seus enunciados são escrutinados pelo
indivíduo receptor, quer por sua experiência direta com os fatos ou temas
relatados (por suas rotinas e vínculos institucionais), quer pela
consideração da opinião das pessoas que lhes são próximas e mesmo nem tão
próximas, pelas redes sociais de que participa. Para os autores, naquela
obra, "o veículo mais importante da conservação da realidade é a conversa"
(1966:202), e não os meios de comunicação de massa.
Já em uma obra conjunta mais recente, Berger & Luckmann passam a
reconhecer que a mídia tem "um papel-chave" neste processo:

"Uma palavra a respeito dos meios de comunicação de massa desde a atividade
editorial até a televisão: como já se observou muitas vezes e
acertadamente, essas instituições desempenham um papel-chave na orientação
moderna de sentido ou, melhor, na comunicação de sentido. São
intermediadoras entre a experiência coletiva e a individual, oferecendo
interpretações típicas para problemas definidos como típicos. Tudo o que as
outras instituições produzem em matéria de interpretações da realidade e de
valores, os meios de comunicação selecionam, organizam (empacotam),
transformam, na maioria das vezes no curso desse processo, e decidem sobre
a forma de sua difusão" (1995:68).

Ainda assim, os autores não falam aqui de mídia como sinônimo de
jornalismo, como equivocadamente se tem feito mesmo em nossa área, que
deveria ter um cuidado especializado neste aspecto. Além disso, Berger &
Luckmann não definem este "papel-chave" da mídia com a centralidade ou a
exclusividade (a onipotência) com que o posicionam os vários autores que os
citam equivocadamente, antes colocando-a num papel de mediação, articulado
ao de muitas outras "instituições especializadas na produção e comunicação
de sentido", como por exemplo as igrejas e a psicanálise, e as profissões
da "indústria do conhecimento": "que se ocupam da instrução, assessoria e
planejamento de outras pessoas" (1995:68-9).
Não só o protagonismo da mídia na criação da realidade é relativizado
pelos autores, que apontam a competição destes outros atores sociais
"produtores e comunicadores de sentido", mas também os seus efeitos são
vistos como atenuados por outras variáveis: "O estudo até aqui indica que
há, na maior parte das vezes, grande diferença entre as 'ofertas morais' do
Estado, das Igrejas e de outros empresários morais que chegam ao indivíduo
via meios de comunicação de massa, e as atitudes de valor do próprio
indivíduo. No nível da comunicação cotidiana, como, por exemplo, na
família, essas 'ofertas' não são de forma alguma 'consumidas' sem critério.
Elas são processadas comunicativamente, selecionadas, rejeitadas e
adaptadas às próprias circunstâncias" (1995:90).
Desta forma, ao se discutir a construção da realidade na perspectiva
daqueles autores, deve ficar claro que, para eles, o jornalismo pode ser
incluído entre os atores que contribuem significativamente para esta
construção – tanto para a realidade objetiva quanto para a realidade
subjetiva - mas não como o ator único e nem mesmo como o principal. Uma
das principais contribuições de sua obra para a compreensão deste processo
- raramente considerada na desajeitada aplicação de suas idéias em nosso
campo – é a distinção que os autores fazem entre "realidade objetiva" e
"realidade subjetiva".
A discussão sobre objetividade e subjetividade remete a uma discussão
filosófica já milenar, que a sociologia do conhecimento não se propõe a
resolver. Pelo contrário, a obra de Berger & Luckmann admite sua limitação
neste sentido (1966:27). A complicação sobre o tema se torna ainda maior –
assim como a possibilidade de leituras enviezadas do trabalho – quando os
autores se apóiam em referências tão distintas e para muitos contraditórias
entre si, como as dos três pais da sociologia – Marx, Durkheim e Weber - a
da fenomenologia social de Alfred Schutz e as do pragmatismo e do
funcionalismo norte-americanos, entre várias outras influências assumidas.
Embora também apontem as limitações da contribuição de cada uma dessas
perspectivas para a análise do problema proposto, a riqueza do trabalho
está na síntese que consegue extrair de todas elas, ordenada a partir de
uma perspectiva dialética fundadora:

"De momento, é importante acentuar que a relação entre o homem, o produtor,
e o mundo social, produto dele, é e permanece sendo uma relação dialética,
isto é, o homem (evidentemente não o homem isolado mas em coletividade) e
seu mundo social atuam reciprocamente um sobre o outro. O produto reage
sobre o produtor. A exteriorização e a objetivação são momentos de um
processo dialético contínuo. O terceiro momento deste processo, que é a
interiorização (pelo qual o mundo social objetivo é reintroduzido na
consciência no curso da socialização) irá ocupar-nos mais tarde com
abundância de detalhes. Já é possível, contudo, ver a relação fundamental
desses três momentos dialéticos na realidade social. Cada um deles
corresponde a uma caracterização essencial do mundo social. A sociedade é
um produto humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um
produto social. Torna-se desde já evidente que qualquer análise do mundo
social que deixe de lado algum destes três momentos será uma análise
distorcida." (1966:87-8).

A partir deste enquadramento teórico é que vão propor que a primeira
e mais importante socialização é aquela em que uma criança toma
conhecimento do mundo pré-existente a ela (tanto o mundo social quanto o
mundo natural descrito pelo primeiro). Esta socialização primária ocorre
como a aquisição da língua materna, sem mediação importante que seja
externa ao círculo social mais próximo da criança, ou a seus "outros
significativos".

"Na socialização primária não há problema de identificação. (...)
Desde que a criança não tem escolha ao selecionar seus outros
significativos, identifica-se automaticamente com eles. Pela mesma razão a
interiorização da particular realidade deles é quase inevitável. A criança
não interioriza o mundo dos outros que são significativos para ela como
sendo um dos muitos mundos possíveis. Interioriza-se como sendo o mundo, o
único mundo existente e concebível, o mundo tout court. É por essa razão
que o mundo interiorizado na socialização primária torna-se muito mais
firmemente entricheirado na consciência do que os mundos interiorizados nas
socializações secundárias. Por mais que o sentimento original de
inevitabilidade seja enfraquecido por desencantos subseqüentes, a lembrança
de uma certeza que nunca deverá repetir-se – a certeza da primeira aurora
da realidade – fica ainda aderente ao primeiro mundo da infância.."
(1966:180-181)

Embora possa ser bastante modificada ao longo da vida, é a
socialização primária que define fundamentalmente o princípio de realidade
a partir do qual o indivíduo vai identificar natural e espontaneamente o
que é real e conhecido: é a partir dele que vai reconhecer a realidade com
que vai lidar na vida cotidiana. E ainda que tal conhecimento da realidade
não passe por validação ou justificação científica, é o que vai prevalecer
como "realidade dominante" para a compreensão e intervenção prática na vida
cotidiana de todas as pessoas. Inclusive daquelas pessoas que possuírem
treinamento para superar este nível de senso comum em campos
especializados, como os filósofos, os cientistas e os místicos, quando
"retornam" de seus campos finitos de significação para a "vida real".
A este outro treinamento especializado, explicado pela divisão do
trabalho na sociedade e o consequente ingresso dos indivíduos nos papéis
institucionais definidos por ela, Berger & Luckmann chamam de "socialização
secundária", e ela ocorre principalmente através dos sistemas pedagógicos
especializados. É "secundária" porque agrega um submundo à realidade
dominante internalizada pela "socialização primária", mas não a substitui
totalmente:
"Comparadas à realidade da vida cotidiana, as outras realidades
aparecem como campos finitos de significação, enclaves dentro da realidade
dominante marcados por significados e modos de experiência delimitados. A
realidade dominante envolve-os por todos os lados, por assim dizer, e a
consciência sempre retorna à realidade dominante como se voltasse de uma
excursão. (...) Todos os campos finitos de significação caracterizam-se por
desviar a atenção da realidade da vida cotidiana. Embora haja, está claro,
deslocamentos de atenção dentro da vida cotidiana, o deslocamento para um
campo finito de significação é de natureza muito mais radical. (...) A
linguagem comum de que disponho para a objetivação de minhas experiências
funda-se na vida cotidiana e conserva-se sempre apontando para ela mesmo
quando a emprego para interpretar experiências em campos delimitados de
significação. Por conseguinte, 'destorço' tipicamente a realidade destes
últimos logo assim que começo a usar a linguagem comum para interpretá-los,
isto é, 'traduzo' as experiências não-pertencentes à vida cotidiana na
realidade suprema da vida diária." (...) "O físico teórico diz-nos que seu
conceito do espaço não pode ser transmitido por meios lingüísticos, tal
como o artista com relação ao significado de suas criações e um místico com
relação a seus encontros com a divindade. Entretanto, todos eles – o
sonhador, o físico, o artista e o místico – também vivem na realidade da
vida cotidiana. Na verdade um de seus importantes problemas é interpretar a
coexistência desta realidade com os enclaves de realidade em que se
aventuram." (1966: 43-44)

Em termos de interiorização da realidade, em coerência com a teoria
de Berger & Luckmann, o jornalismo só poderia ser visto como uma forma de
socialização ainda mais tênue em termos de construção da realidade, talvez
denominada adequadamente de "terciária" se confrontada com os níveis
anteriores. Teria o papel de 'conservação' e de 'atualização' das
realidades internalizadas nas socializações primária e secundária, no mesmo
sentido em que os autores falam da função da conversa na vida cotidiana.
Mas é importante destacar aqui as semelhanças e diferenças de um
diálogo espontâneo para o que se dá na conversa cara a cara do diálogo
social produzido pelo jornalismo: Robert Park observou que o Jornalismo
realiza para o público as mesmas funções que a percepção realiza para os
indivíduos, mas Genro Filho ressalva que o Jornalismo como gênero de
conhecimento difere da percepção individual pela sua forma de produção:
nele, a imediaticidade do real é um ponto de chegada, e não de partida.
Esta ressalva é relevante para se discutir os problemas do Jornalismo como
forma de conhecimento e de seus efeitos. No entanto, ao se fixar na
imediaticidade do real, o Jornalismo opera no campo lógico do senso comum,
e esta característica definidora é fundamental e análoga à que ocorre na
conversa cotidiana:.
"...a maior parte da conservação da realidade na conversa é implícita, não
explícita. A maior parte da conversa não define em muitas palavras a
natureza do mundo. Ao contrário, ocorre tendo por pano de fundo um mundo
que é tacitamente aceito por verdadeiro. Assim, uma troca de palavras,
(...) implica um mundo inteiro dentro do qual estas proposições
aparentemente simples adquirem sentido. Em virtude dessa implicação a troca
de palavras confirma a realidade subjetiva desse mundo. Entendido isto, ver-
se-á que a maior parte, quando não a totalidade da conversa cotidiana
conserva a realidade subjetiva. De fato, seu caráter maciço é realizado
pela acumulação e coerência da conversa casual, conversa que pode se dar ao
luxo de ser casual justamente porque se refere a rotinas de um mundo
julgado verdadeiro (...) Ao mesmo tempo que o aparelho de conversa mantém
continuamente a realidade, também continuamente a modifica. Certos pontos
são abandonados e outros acrescentados, enfraquecendo alguns setores
daquilo que ainda é considerado como evidente e reforçando outros"
(1966:203).

Esta dupla função de conservação e renovação da realidade também é
observada no jornalismo como forma de conhecimento, conforme a perspectiva
sociocognitiva (VAN DIJK, 2005).
Uma estrutura de plausibilidade e o contexto social inerente são
elementos da realidade objetiva que tensionam a realidade subjetiva.
Afinal, a sociedade é uma realidade objetiva. Por outro lado, o homem é um
produto social. No novo trabalho, escrito trinta anos depois, Berger &
Luckmann reafirmam esta compreensão básica do processo de interiorização da
realidade social institucionalizada:

"As instituições foram criadas para aliviar o indivíduo da
necessidade de reinventar o mundo a cada dia e ter de se orientar dentro
dele. As instituições criam 'programas' para a execução da interação social
e para a 'realização' de currículos de vida. Elas fornecem padrões
comprovados segundo os quais a pessoa pode orientar seu comportamento.
Praticando esses modos 'prescritos' de comportamento aprende a cumprir as
expectativas ligadas a certos papéis como casado, pai, empregado,
contribuinte, transeunte, consumidor. Quando as instituições funcionam
normalmente, o indivíduo cumpre os papéis a ele atribuídos pela sociedade
na forma de esquemas institucionalizados de ação e conduz sua vida no
sentido de currículos de vida assegurados institucionalmente, pré-moldados
socialmente e com alto grau de auto-evidência. Em seu resultado, as
instituições substituem os instintos: possibilitam um agir para o qual nem
sempre é preciso pesar cuidadosamente as alternativas. Muitas interações
sociais importantes do ponto de vista da sociedade são realizadas de forma
quase automática.(...) pode-se dizer que os 'programas' institucionais são
'internalizados' na consciência do indivíduo e o dirigem em seu agir não
como experimentando um sentido estranho, mas como dele próprio. Os
programas são internalizados em processos de camadas múltiplas; em primeiro
lugar, na 'socialização primária', em que se coloca a pedra fundamental da
construção da identidade pessoal; depois na 'socialização secundária' que
introduz o indivíduo nos papéis da realidade social, sobretudo do mundo do
trabalho. As estruturas da sociedade tornam-se as estruturas da
consciência" (1995:54-56).

Note-se que há uma distância muito grande entre uma concepção de
construção social da realidade subjetiva pela internalização das estruturas
sociais institucionalizadas objetivamente, como propõem Berger & Luckmann,
e uma outra concepção que atribui esta construção ao protagonismo isolado
da mídia, ou ainda mais particularmente do jornalismo. Embora estes também
tenham seu papel, enquanto instituições produtoras de sentido participantes
deste processo, o universo das instituições sociais é muito mais amplo e
complexo. As instituições se impõem como realidade não apenas como
'programas' (ou softwares) a serem cumpridos, mas também, esmagadoramente,
como 'hardwares' a serem observados em tal cumprimento. As ferramentas,
instrumentos e outras extensões do aparato biológico desenvolvidos pela
civilização no processo de humanização do mundo natural possuem um enorme
peso material e simbólico na constituição da realidade social – a
arquitetura, o urbanismo e as modernas tecnologias são só alguns exemplos
entre muitos possíveis.
No entanto, a sociedade é um produto humano. Ainda que sujeitado por
ela, o ser humano segue contraditoriamente sendo sujeito da mesma.

(...) o mundo subjetivo do indivíduo não precisa concordar plenamente com
a realidade objetivamente definida pela sociedade – nem mesmo é possível.
Na socialização há pequenas fissuras, quando não verdadeiras rupturas. Na
formação da identidade pessoal pode haver, no melhor dos casos, uma
concordância aproximada de sentido. Uma transição sem costura da
socialização primária para a secundária é exceção e não regra na maioria
das sociedades. O indivíduo tem impulsos idiossincráticos, ousa transferir
seus sonhos para o cotidiano e procurar aventuras fora dos programas da
sociedade. (1995:56-57)"

A concepção de dialética em Berger & Luckmann é fundamental para a
compreensão de suas teorias. É também, em linhas gerais, a mesma afirmada
por Adelmo Genro Filho em sua teoria do jornalismo:

"A comunicação social só pode ser abordada como um dos aspectos da dimensão
ontológica do homem, não como um atributo ou uma qualidade adquirida. A
comunicação, sob o ponto de vista analítico, é um aspecto do trabalho e,
mais particularmente, expressa a forma social de produção do conhecimento.
Portanto, um aspecto da essência do homem como ser que trabalha a se
apropria coletivamente do mundo de modo prático e teórico. Numa palavra, a
comunicação é um momento da práxis. O homem é um ser que domina e
compreende o mundo simultaneamente e, nessa medida, transforma a si mesmo e
amplia o seu universo. A comunicação está no âmago da atividade prática
coletiva, da produção social do conhecimento que emana dessa atividade e,
ao mesmo tempo, a pressupõe. Portanto, está no âmago da produção histórica
da sociedade e da autoprodução humana." (GENRO FILHO, 1987:215)

Berger & Luckmann, no entanto, não faziam parte das referências
utilizadas na teorização de Adelmo quando sua teoria do jornalismo foi
esboçada. Apenas ambos se inspiraram nas mesmas fontes a este respeito: a
filosofia marxiana de Georg Lukács e os textos filosóficos que o próprio
Marx escreveu no início de seu percurso intelectual (período que ficou
conhecido como o do "jovem Marx"). Berger & Luckmann, como Adelmo, rejeitam
"um uso doutrinário" das idéias marxistas na ciência. É no contexto dessas
referências – e no da realidade objetiva da sociedade vista como um momento
do ciclo dialético – que tem sentido, para os primeiros, considerar a
importância de um "senso comum" na sociedade e, para o último, afirmar a
pertinência do jornalismo informativo enquanto forma social de produção de
conhecimento:
"A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo que é
considerado 'conhecimento' na sociedade. (...) Exagerar a importânca do
pensamento teórico na sociedade e na história é um natural engano dos
teorizadores. Isto torna por conseguinte ainda mais necessário corrigir
esta incompreensão intelectualista. As formulações teóricas da realidade,
quer sejam científicas ou filosóficas quer sejam até mitológicas, não
esgotam o que é 'real' para os membros de uma sociedade. Sendo assim, a
sociologia do conhecimento deve acima de tudo ocupar-se com o que os homens
'conhecem' como 'realidade' em sua vida cotidiana, vida não teórica ou pré-
teórica. Em outras palavras, o 'conhecimento' do senso comum, e não as
'idéias', deve ser o foco central da sociologia do conhecimento.É
precisamente este 'conhecimento' que constitui o tecido de significados sem
o qual nenhuma sociedade poderia existir." (BERGER & LUCKMANN, 1966: 29-
30)

A percepção da realidade como objetivada, e o reforço dessa impressão
pela intersubjetividade garante a força deste conhecimento feito da
experiência:

"A realidade da vida cotidiana é admitida como sendo a realidade. Não
requer maior verificação, que se estenda além de sua simples presença. Está
simplesmente aí, como facticidade evidente por si mesma e compulsória. Sei
que é real. Embora seja capaz de empenhar-me em dúvida a respeito da
realidade dela, sou obrigado a suspender esta dúvida ao existir
rotineiramente na vida cotidiana. Esta suspensão da dúvida é tão firme que
para abandoná-la, como poderia desejar fazer por exemplo na contemplação
teórica ou religiosa, tenho que realizar uma extrema transição. O mundo da
vida cotidiana proclama-se a si mesmo e quando quero contestar esta
programação tenho que fazer um deliberado esforço, nada fácil.(...)
Enquanto as rotinas da vida cotidiana continuarem sem interrupção são
apreendidas como não-problemáticas. Mas mesmo o setor não-problemático da
realidade cotidiana só é tal até novo conhecimento, isto é, até que sua
continuidade seja interrrompida pelo aparecimento de um problema. Quando
isto acontece, a realidade da vida cotidiana procura integrar o setor
problemático dentro daquilo que já é não problemático. O conhecimento do
sentido comum contém uma multiplicidade de instruções sobre a maneira de
fazer isso." (1966: 41-2)

Berger & Luckmann destacam ainda a função das tipificações para o
conhecimento do senso comum:

"A realidade da vida cotidiana contém esquemas tipificadores em termos dos
quais os outros são apreendidos, sendo estabelecidos os modos como
'lidamos' com eles nos encontros face à face.Assim, apreendo o outro como
'homem', 'europeu', 'comprador', 'tipo jovial', etc. (...). Nossa interação
face à face será modelada por estas tipificações, pelo menos enquanto não
se tornam problemáticas por alguma interferência da parte dele. Mas a não
ser que haja esta objeção, as tipificações serão mantidas até nova ordem e
determinarão minhas ações na situação". (...)A realidade social da vida
cotidiana é portanto apreendida num contínuo de tipificações, que se vão
tornando progressivamente anônimas à medida que se distanciam do "aqui e
agora" da situação face a face.(...). A estrutura social é a soma dessas
tipificações e dos padrões recorrentes de interação estabelecidos por meio
delas. Assim sendo, a estrutura social é um elemento essencial na realidade
da vida cotidiana." (1966: 49-52)

A tipificação está na origem dos estereótipos que, já na década de
20, Walter Lippman havia apontado como essenciais para a percepção tanto
individual quanto coletiva da realidade:
"Na maior parte dos casos nós não vemos em primeiro lugar, para então
definir, nós definimos primeiro e então vemos. Na confusão brilhante,
ruidosa do mundo exterior, pegamos o que nossa cultura já definiu para nós,
e tendemos a perceber aquilo que captamos na forma estereotipada para nós
na nossa cultura. (LIPPMANN, 1922:85). Walter Lippmann enxergava também o
papel dos estereótipos para a ideologia: "Há outra razão, além da economia
do esforço, porque tão frequentemente nós sustentamos nossos estereótipos
quando perseguimos uma visão mais desinteressada. Os sistemas de
estereótipos podem ser os cernes de nossa tradição pessoal, as defesas de
nossa posição na sociedade." (LIPPMANN, 1922: 96)
A percepção pragmática de Lippmann foi ainda mais largamente
desenvolvida na teoria marxista através do conceito de Ideologia. No
entanto, como constatou Nilson Lage, o contexto histórico de todo o Século
XX, marcado pelos grandes conflitos, provocaria o que chamou de "bolha
ideológica", distorcendo a observação científica do jornalismo, que só
começaria a ser amenizada com a consideração das revelações das ciências
cognitivas no final do século (LAGE, 2001). O próprio Lage já havia tentado
chamar a atenção para esta distorção no título do seu livro inaugural,
"ideologia e técnica da notícia" (LAGE, 1979), enfatizando que havia
componentes lógicos no jornalismo a serem observados, além dos componentes
ideológicos também presentes.
Certamente, a crítica de Lage foi uma das fontes de inspiração para o
trabalho de Adelmo Genro Filho (1987) que coloca a necessidade de uma
teoria do jornalismo no interior do pensamento marxista. Adelmo morreu em
seguida, sem tempo para dialogar com Lage posteriormente, quando este
último incorpora mais diretamente as teorias cognitivas no estudo do
discurso jornalístico. Mas, em sua obra fundamental, rompe tanto com o
marxismo doutrinário quanto com a teoria crítica em relação à visão
reducionista que estas correntes sustentavam sobre o jornalismo
informativo, e isso certamente é a contribuição mais original de sua obra.
Também Berger & Luckmann se apóiam na filosofia dialética do jovem Marx,
mas rejeitam o seu uso doutrinário e percebem, no trabalho de outras
correntes teóricas, a importância do senso comum para a cognição humana e a
vida social.
Autores contemporâneos da linha sociocognitivista, como Teun Van
Dijk, tem reafirmado a propriedade desta síntese, principalmente na
consideração do conceito de senso comum. Para o lingüista holandês, é tão
importante discutir "senso comum" no sentido ideológico proposto por
Antonio Gramsci na sua teoria da hegemonia, quanto o "senso comum" enquanto
atitude cognitiva natural da vida cotidiana, que produz crenças tidas como
não-problemáticas e compartilhadas socialmente, como proposto pela
fenomenologia social de Alfred Schutz e adotado pela microssociologia e
etnometodologia (VAN DIJK, 1979:102)
Para o sociocognitivismo de Van Dijk, assim como para a sociologia do
conhecimento de Berger & Luckmann, o mais importante é distinguir entre o
common ground de uma cultura (Berger & Luckmann usam o termo "universo
simbólico") e as ideologias que surgem em seu interior em virtude de
conflitos de interesse, disputas pelo poder e lutas sociais:
"Concluindo devemos enfatizar que, se o senso comum é identificado com as
crenças gerais de uma cultura, e se o surgimento das ideologias enquanto
crenças de grupos específicos são baseadas em tal campo comum, as
ideologias enquanto tal não são uma forma de senso comum. (...) As pessoas
são normalmente mais explicitamente e conscientemente cristãs, socialistas
ou feministas do que 'ocidentais'. Em outras palavras, as ideologias, como
definidas aqui, não podem ser tipicamente identificadas como senso comum,
ficando melhor como senso incomum ou nonsense." (VAN DIJK, 1979: 106-107)

Esta visão afirma a necessidade de se compreender o senso comum não
só como instância importante do imaginário social, mas também como
instância necessária e insubstituível. Se a cultura está para as sociedades
assim como a memória para os indivíduos, como afirmam os antropólogos, é o
senso comum a sua principal forma de manifestação. E se a ciência em
particular (e a vida acadêmica em geral) se afirma em oposição ao senso
comum, isto talvez explique a dificuldade que tem para compreender a
natureza do jornalismo. Entender o senso comum é fundamental para
compreender os processos cognitivos envolvidos na comunicação jornalística,
e a participação do jornalismo na produção dos acontecimentos e,
consequentemente, na construção da realidade.
Na que tem sido considerada a primeira tese sobre jornalismo
publicada no mundo, datada de 1690, o alemão Tobias Peucer já enfatiza a
longevidade de um gênero de discurso que chama de "relatos de novidades"
(relationes novellae), "que contém a notificação de coisas diversas
acontecidas recentemente em qualquer lugar que seja" (PEUCER, 2004:16).
A tese de Peucer descreve como tal relato de novidades se tornou uma
atividade especializada na Europa de seu tempo (Século XVII), com o
aparecimento dos periódicos jornalísticos, atribuído "em parte à
curiosidade humana e em parte à busca de lucro" (PEUCER, 2004:18). Além de
destacar o caráter predominantemente expositivo (o mesmo do atual lead) já
na narrativa jornalística de então, Peucer destaca que a matéria dos
relatos, como a da história escrita "são as coisas singulares", como
voltaria a ser enfatizado no Século XX por autores brasileiros como Alceu
Amoroso Lima (1958:66) e Adelmo Genro Filho (1987).
Embora seja razoável supor que a aceleração da vida e da mobilidade
social desde a era industrial tenha aumentado a importância e o interesse
pelo conhecimento de novidades por parte da população, Peucer já os
detectava um século antes da Revolução Francesa:
"Com efeito, o afã de conhecer coisas novas é tão grande que cada vez que
os cidadãos se encontram em encruzilhadas e nas vias públicas perguntam: 'o
que há de novo'? A fim de satisfazer esta curiosidade humana tem se
imprimido de todo modo novos relatos jornalísticos em diversos idiomas. E
os que os lêem podem satisfazer assim a sede de novidades dos companheiros
e dos grupos de amigos."(PEUCER, 2004:27)

Outros autores da teoria da notícia enfatizaram esta filiação do
jornalismo informativo a raízes profundas de nossa cultura: "A notícia,
considerada como conhecimento, é provavelmente tão velha quanto a
humanidade, talvez mais velha. Os animais inferiores não estavam, isentos
do tipo de comunicação que não é diferente da notícia. O cararejar da
galinha mãe é entendido pelos pintos como sinal de perigo ou comida, e os
pintos reagem de acordo" observou Robert Park (2008:66). Para Nilson Lage,
a notícia descende de mais antiga e singela forma de conhecimento – só que,
agora, projetada em escala industrial, organizada em sistema, utilizando
fantástico aparato tecnológico" (LAGE, 1990:14-5). SHOEMAKER & COHEN
(2006:3) também pensam a notícia jornalística como o desdobramento
contemporâneo de uma característica inata da espécie: "todos os humanos
monitoram o mundo em torno de si com o objetivo de localizar quais
ocorrências, tanto perigosas como positivas, são importantes, e esse
comportamento é observado também em outros animais." Inspirados no
darwinismo, os autores ligam a capacidade de apurar e disseminar notícias à
evolução cognitiva da espécie, propondo que os grupos primitivos que
desenvolveram melhor estas aptidões teriam tido melhores chances de
sobrevivência. Num segundo momento, o desenvolvimento das culturas humanas
teria enfatizado a importância das novidades que apontassem "desvios" ou
acontecimentos com maior "significação social" (SHOEMAKER & COHEN: 2006:15-
18).
A dimensão sócio-cultural agregada à instintivo-biológica torna muito
mais complexa a operação cognitiva suposta no reconhecimento e relato dos
fatos, já que a identificação de 'desvios' tanto quanto a de 'significação
social' não é dada naturalmente, mas historicamente construída. Já em 1904,
em sua tese de doutorado defendida na Alemanha em que propõe a distinção
entre os conceitos de "massa" (crowd) e "público" (public), Robert Park dá-
se conta da importância de clarificar o conceito de fato para explicar a
comunicação:

"Fato é um novo conceito. Embora o significado lógico desta palavra não
seja discutido aqui, seu significado psicossocial deve ser clarificado.
(...) Quando existem grupos como um público, e quando os objetos tem
diferentes significados para diferentes indivíduos, um novo método de
comunicação é necessário. Ele consiste em decompor o objeto, o evento, ou o
que quer que seja, em seus elementos. Estes elementos, por seu turno, podem
ser também objetos, eventos ou elementos de percepção, mas precisam ter o
mesmo significado para todos os membros do grupo. Os elementos que tem o
mesmo significado para todos os membros do grupo podem então ser
considerados como fatos." (PARK, 1972:58)

No entanto, por mais elementares, consensuados e evidentes que sejam
os fatos, ainda assim tratam-se de construções humanas. Se o pragmatismo se
satisfaz com a veracidade do senso comum, uma perspectiva mais crítica tem
problematizado a reificação dos fatos operada por este tipo de conhecimento
(BERGER & LUCKMANN, 1966:122-3).
Uma visão menos alienada reconhece que "a natureza não estabelece fatos,
eles só aparecem dentro de enunciados definidos por seres humanos para se
referirem à rede sem nós da atualidade que têm a sua volta" (ONG, 1982:68).
Por outro lado, não se pode desconsiderar, a partir disso, o componente
objetivo presente nos fatos:
"Sabemos que os fatos não existem previamente como tais. Existe um fluxo
objetivo da realidade, de onde os fatos são recortados e construídos
obedecendo a determinações ao mesmo tempo objetivas e subjetivas. Isto quer
dizer que há certa margem de arbítrio da subjetividade e da ideologia,
embora limitada objetivamente. A objetividade oferece uma multidão infinita
de aspectos, nuances, dimensões e combinações possíveis para serem
selecionadas (...) O material do qual os fatos são constituídos é objetivo,
pois existe independente do sujeito. O conceito de fato, porém, implica a
percepção social dessa objetividade, ou seja, na significação dessa
objetividade pelos sujeitos" (GENRO FILHO, 1987:187).
Embora se situasse num ponto bastante distinto de Adelmo no aspecto
ideológico, Walter Lippman já defendia uma posição semelhante:

"Se a reportagem fosse uma simples recuperação de fatos óbvios, o agente de
imprensa seria um pouco mais que um funcionário. Mas, uma vez que, no que
diz respeito à maioria dos grandes tópicos de notícias, os fatos não são
simples e nem tão óbvios, mas sujeitos à escolha e opinião, é natural que
cada um queira fazer sua própria seleção de fatos para serem impressos nos
jornais. O assessor de imprensa faz isso." (LIPPMANN, 2008:169-70).

Além de perceber a importância das "fontes interessadas" para a
construção das notícias já em 1922, Lippmann dá outra contribuição
fundamental (e pouco desenvolvida na teoria posterior a ele) para entender
o processo jornalístico: a dependência estrutural do jornalismo aos
sistemas de registro existentes na sociedade:

"Onde há uma boa máquina de registro, o serviço moderno de notícias
funciona com grande precisão. Há uma na bolsa de valores e a notícia sobre
o movimento de preços brilha nos registradores de cotações com precisão
confiável. Há uma máquina para informação sobre eleições e, quando a
contagem e a tabulação são bem feitas, o resultado de uma eleição nacional
geralmente é conhecido na noite das eleições. Em comunidades civilizadas,
mortes, nascimentos, casamentos e divórcios são registrados e são
conhecidos com exatidão, exceto quando são escondidos ou ignorados. A
máquina existe para alguns e apenas para alguns aspectos da indústria e do
governo, em vários graus de precisão para apólices, dinheiro e matéria-
prima, compensações bancárias, transações imobiliárias, escalas e salários.
(...) Acho que se descobrirá que existe uma relação muito direta entre a
certeza da notícia e o sistema de registro." (LIPPMANN, 2008:168)

A constatação de Lippmann agrega complexidade à questão da
participação do jornalismo na construção da realidade, chamando a atenção
para a variável intersubjetiva implicada neste processo. O relato de
eventos não passa apenas por uma relação interna entre a subjetividade do
locutor e a objetividade do mundo, mas também por processos exteriores e
anteriores de construção da realidade que precisam ser levados em conta.
Daí a utilidade da análise deste processo de construção para compreender o
acontecimento jornalístico.
A releitura de Berger & Luckmann, confrontada com os autores da
teoria do jornalismo, pode permitir uma aproximação mais rigorosa da
extrema complexidade com que se dá a construção social da realidade e de
como o jornalismo participa da produção dos acontecimentos num processo
dialético de objetivação e subjetivação do conhecimento.
O jornalismo, como instituição, e seus agentes, participam de produção da
realidade, especialmente no seu âmbito simbólico, mas nunca isoladamente,
porém em diálogo permanente com os demais atores sociais. O jornalismo é
também uma forma de objetivação da exteriorização do homem, entre outras
tantas desenvolvidas pelas tecnologias intelectuais contemporâneas. Um
acontecimento relatado pelo jornalismo difere de um não relatado por ele
talvez principalmente por este aspecto. O jornalismo, por fim, participa da
socialização do conhecimento, ainda que de forma terciária e provavelmente
menos marcante que as socializações primária e secundária observadas por
Berger & Luckmann na construção social da realidade, embora igualmente
importante na dinâmica social.
Estas três dimensões em que o jornalismo se relaciona com a produção
dos acontecimentos requerem estudos mais aprofundados para apreender sua
especificidade e delimitar seu alcance, que certamente estão ainda longe
da compreensão das concepções que sustentam, com uma profundamente
equivocada leitura de Berger & Luckmann, que "o jornalismo constrói a
realidade".

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[1] Texto originalmente publicado como capítulo do livro BENETTI, Marcia.;
FONSECA, Virginia (orgs.) Jornalismo e Acontecimento: mapeamentos críticos.
Florianópolis: Insular/Capes, 2010, produzido no Projeto Procad Tecer:
Jornalismo e Acontecimento. Ps. 19-42
[2] Pesquisador do CNPq, professor da Universidade Federal de Santa
Catarina.
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