Jornalismo e Cultura e a cabeça de Janus Cultura nos jornais de oitocentos: da elite à massa

September 21, 2017 | Autor: Ana Peixinho | Categoria: Journalism
Share Embed


Descrição do Produto

WHY CULTURE? Novembro de 2011

Jornalismo e Cultura e a cabeça de Janus Cultura nos jornais de oitocentos: da elite à massa

Ana Teresa Peixinho (FLUC/ CEIS20)

1. Para uma definição de conceitos Uma leitura sistemática e atenta da imprensa generalista diária nacional permite constatar que, em termos culturais, os jornais têm servido cada vez mais como meio de divulgação de eventos, promoção de produtos e agenda, secundarizando a sua função de produtores de cultura ou de amplos espaços de debate, crítica e opinião sobre cultura. Esta é uma das conclusões de um estudo de 2009, em que é afirmado precisamente que o jornalismo de “divulgação” está a crescer, privilegiando-se os serviços em detrimento da opinião ou da crítica: “O desenvolvimento deste formato é proporcional ao desaparecimento da crítica estruturada, que está a ficar cada vez mais exclusiva das revistas académicas e especializadas.” (Silva, 2009: 10) Segundo o mesmo estudo, os jornais funcionam como cartazes, pelos quais se publicitam e divulgam as iniciativas, sem, no entanto, proporcionarem uma leitura crítica das mesmas, nem uma cabal compreensão dos temas culturais. Aliás, a desproporção deste procedimento em relação a outras áreas como a economia e a política é gritante. A questão que colocamos para dar início à nossa abordagem consiste em tentar perceber se esta rutura entre jornalismo e cultura, constatada por alguns autores como decorrente de uma conjuntura atual, não será, pelo contrário, endémica ao jornalismo. Tal dúvida conduz-nos a um olhar retrospetivo para um tempo e um espaço em que a relação entre cultura e jornalismo se equaciona como estruturante: trata-se do papel da imprensa ao longo de todo o século XIX, com

1

WHY CULTURE? Novembro de 2011

particular enfoque para a última metade do século, na dinamização do espaço público português. Assim, para tentarmos mapear o tipo de relação que, ao longo dessa centúria crucial para a emergência do jornalismo moderno - jornalismo e cultura entabularam, convém, antes de mais, esclarecer alguns conceitos fundamentais, nomeadamente o que se entende por cultura e a que nos referimos quando falamos em jornalismo oitocentista. Se é certo que nenhuma destas problemáticas poderá ser devidamente aprofundada ou problematizada, convém estabelecer algumas coordenadas fundamentais sobre os conceitos. O conceito de cultura é, muito provavelmente, um dos mais polissémicos e deslizantes, em virtude da apropriação metalinguística de diversas disciplinas e campos do saber, com as suas diversas perspetivas e enfoques: desde a Sociologia, à Filosofia, passando pela Antropologia, Semiótica, Ciências da Comunicação, entre muitas outras. Se o Guerra e Paz de Tolstoi ou a Guernica de Picasso são inquestionavelmente produtos culturais, porque são arte e refletem elevados valores estéticos, requerendo necessariamente um conjunto complexo de competências para a sua fruição e decodificação, também não o são menos o modo como nos vestimos ou um qualquer acervo de literatura de cordel mirandês. Se os graffiti urbanos e Os Maias de Eça de Queirós, se a Quinta Sinfonia de Beethoven e o rap são com certeza produtos culturais, no sentido de serem fruto da intervenção humana, modelados a partir de valores, crenças e atitudes perante o mundo, não podemos deixar de nos questionar se será legítimo envolvê-los sob um mesmo rótulo comum. Ou seja: será cultura um conceito suficientemente explícito para permitir perceber formas tão díspares de modelar o mundo, de projetar sentido e de veicular valores? Não é nosso objetivo, já o dissemos, aprofundar ou problematizar o conceito, pois esse é um verdadeiro work in progress e que tem sido, como é sabido, objeto de grandes debates, nomeadamente aquele que foi espoletado por Adorno e

2

WHY CULTURE? Novembro de 2011

Horkheimer da Escola de Frankfurt1, em meados do século passado. Todavia, necessitamos, naturalmente, de explicitar em que termos o utilizamos nesta nossa abordagem, pois só assim se torna claro e percetível o que significamos quando nos referimos a jornalismo cultural. Além disso, sendo o objeto da nossa análise situado numa época específica, é imprescindível tentar contextualizá-lo, para evitar distorções de leitura. Não será preciso um grande exercício epistemológico para se entender que, no século XIX, muitos dos fenómenos que hoje cobrimos sob o conceito de Cultura, nem sequer existiam ou, caso existissem, estariam arredados das inquietações dos intelectuais da época. Quer isto dizer que, quando utilizamos a expressão «Jornalismo Cultural», nos referimos, atualmente, a um jornalismo especializado, tal como o jornalismo económico, o desportivo ou o político, cujo objeto de trabalho é ingratamente lato e abrangente. Tanto assim é que, em termos mundiais, não é unânime nem consensual a sua aceção. Na verdade, se pensarmos em termos antropológicos, todo o jornalismo é cultural, pois a imprensa é em si mesma uma atividade cultural que exerce a mediação entre os diversos setores da sociedade, construindo representações de práticas, costumes, rituais e mitos. Contudo, a tradição da imprensa ocidental reserva, nas suas editorias e rubricas, secções destinadas a cobrir eventos culturais, que podem ter denominações muito diferenciadas: cultura, artes e espetáculos, etc. Ou seja, do ponto de vista jornalístico, há o reconhecimento, atestado historicamente, da especificidade de alguns temas e da sua autonomia face a outras dimensões sociais. Assim, para já, aceitaremos como ponto de partida a definição de Jorge Rivera, jornalista e investigador argentino, que traduz precisamente esta complexidade e indefinição: [O jornalismo cultural é uma] zona complexa e heterogénea de meios, géneros e produtos que abordam com propósitos criativos, críticos, reprodutivos ou de divulgação, os territórios das belas artes e das belas

1

Referimo-nos sobretudo à obra A Dialética do Esclarecimento, publicada em 1944.

3

WHY CULTURE? Novembro de 2011

letras, as correntes de pensamento, as ciências sociais e humanas, a chamada cultura popular e muitos outros aspetos que têm a ver com a reprodução,

circulação

e

consumo

de

bens

simbólicos,

independentemente da sua origem ou do seu destino. (Rivera, 2003: 19)2.

Partindo desta aceção, fica claro que, quando nos referimos a jornalismo cultural, temos de ter em consideração pelo menos dois níveis de cultura distintos: a cultura de elite, no sentido aristocrático do termo, e a cultura massificada, acessível a todos e por todos fruída. Se, atualmente, a discussão se centra precisamente no tipo de cobertura que os jornais fazem à cultura, apostando sobretudo na divulgação de fenómenos provenientes de um círculo restritivo de cultura, acreditamos que vale a pena um olhar retrospetivo até à génese da imprensa moderna, pois, sob pena de recorrermos a um cliché, defendemos que a história se repete e, em certa medida, salvas as devidas distâncias, este é um debate ao qual o espaço público português e europeu já assistiu. Nos alvores do jornalismo moderno, a imprensa constituiu um fórum privilegiado de divulgação, promoção e debate cultural (Dias, 2008). Ao longo de todo o século XIX, as elites culturais europeias participavam amplamente das querelas e debates promovidas na e pela imprensa, não sendo possível fazer uma história da literatura portuguesa oitocentista, por exemplo, sem a pensar à luz da evolução do espaço público e da imprensa. As elites literárias não só promoviam as suas publicações no espaço do jornal, como a própria dinâmica de debate público se nutria de cartas, panfletos e textos escritos e publicados pelos agentes culturais da altura (Peixinho, 2011). Contudo, esta génese comum rapidamente começava a dar sintomas de afastamento e fratura, à medida que o jornalismo se industrializava3 Tradução livre. Referimo-nos ao auge da imprensa de massas, cuja eclosão se fica a dever à convergência de inúmeros fatores, entre eles os progressos técnicos que permitiam o aumento do número das tiragens, a expansão da instrução que potenciava o número de leitores, e a consequente massificação do público que levava a uma forte concorrência entre as publicações e ao recurso a 2 3

4

WHY CULTURE? Novembro de 2011

(Tengarrinha, 1982). Embora, em Portugal, esse cenário seja mais tardio, não deixa de ser verdade que os nossos intelectuais oitocentistas se ressentiram disso mesmo. O alargamento dos públicos, a abertura às massas, a importação de fórmulas feitas e rentáveis foram fatores que, progressivamente, afastaram para as margens esses homens de letras, alargando a territorialidade do jornal e cedendo a novos produtos culturais mais acessíveis, fáceis e lucrativos. Face às vincadas mudanças no universo da imprensa, decorrentes da difusão das práticas americanas, intelectuais e jornalistas europeus, formados numa arreigada tradição histórica segundo a qual literatura, política e jornalismo se harmonizavam, recusam ceder aos constrangimentos da massificação da imprensa. As reflexões de Zola ou de Eça, para citarmos dois contemporâneos, são bem um sintoma disso mesmo, como veremos.

2. Cultura e espaço público Para percebermos a evolução da imprensa e do jornalismo, ao longo de todo o século XIX, é fundamental que os enquadremos num movimento cultural mais amplo, em que se cruzam diversos fatores sociais, discursivos, históricos e políticos. Não será possível obter uma visão tridimensional da evolução do jornalismo, sem o perspetivarmos precisamente à luz da história cultural, como um campo vital para a criação, transformação e evolução do espaço público moderno. Num texto de referência sobre a criação do espaço público e a formação da opinião pública, datado de início do século XX, Gabriel Tarde, ao explicar a importância do jornalismo na formação da opinião pública no século XIX, perspetiva o jornal como uma carta pública, com importantes funções na modelação de um público e de uma opinião partilhada por grupos cada vez mais alargados. Segundo Tarde, a imprensa, sobretudo a partir da segunda

certas estratégias comerciais que influenciavam tanto os formatos como os conteúdos (Balle, 1997: 76-77).

5

WHY CULTURE? Novembro de 2011

metade do século XVIII, é o principal motor de formação deste público, ávido de atualidade, e é a responsável pela distinção de públicos no seio das multidões. (Tarde, 1989 : 136). Habermas, por seu turno, num texto de referência, valoriza a imprensa no âmbito de um conjunto de aspetos sociodiscursivos do século XVIII que terão contribuído para a emergência da esfera pública burguesa. A valorização da intimidade e o surgimento de um novo conceito de família, domínios separados da vida profissional, têm influências profundas ao nível dos processos de reprodução cultural. Seguindo a abordagem habermasiana, percebemos que a esfera pública burguesa pode ser encarada como um conjunto de pessoas privadas que, fazendo uso da razão, publicitam as suas opiniões4. Segundo Habermas, o ideal iluminista de um espaço público esteve ligado a uma série de fenómenos culturais do século XVIII: desde o desenvolvimento de novos espaços públicos, como o parque, o museu e o café mas também à rápida expansão da indústria da imprensa, bem como à filosofia política liberal que moldou as grandes revoluções do século. O desenvolvimento de uma “república das letras” iluminista no século XVIII foi, portanto, o fundamento sobre o qual se estabeleceu uma exigência da república política. Para o autor, as redes epistolares, os debates, os jornais tiveram um papel fundamental na constituição desta república das letras e marcam muito bem a transformação de uma esfera pública literária numa esfera pública política, através da reunião de pessoas privadas. Desta reunião nasceram públicos de debate que, em última análise, deram lugar ao espaço público político. Como explica o filósofo, o termo ‘público’, na França do século XVII, era aplicado aos destinatários e consumidores de arte e literatura, tanto na corte, quanto nos salões aristocráticos e nos teatros. Filipe Carreira da Silva, numa leitura crítica da obra de Habermas, encontra uma síntese muito precisa para esta ideia quando afirma que “a esfera pública burguesa surgiu do encontro A esfera pública burguesa pode ser concebida, antes de mais, como a esfera em que pessoas privadas se juntam enquanto público (Habermas, 2002: 27). 4

6

WHY CULTURE? Novembro de 2011

entre os herdeiros da sociedade aristocrática e humanista, em que se baseava a esfera pública literária, e a camada intelectual da burguesia, então em ascensão.” (Silva, 2002: 17-18). Quer isto dizer, portanto, que o conceito de público moderno começa por ganhar contornos definidos no âmbito das artes, da literatura e da cultura de elite, publicitadas e discutidas nos salões, tribunas de legitimação das criações artísticas5. Estamos, portanto, perante o nascimento de um novo tipo de organização social, em que “a divisão simbólica, fundada em motivos e convicções, (…) se sobrepõe (…) às tradicionais divisões religiosas, étnicas, económicas, etc.” (Esteves, 2003: 194). Na esfera pública burguesa, na perspetiva habermasiana que, como já se disse não reúne consensos, a força da argumentação e os valores simbólicos sobrepunham-se a outros recursos de tipo material ou social; para além do mais, dinamiza discussões críticas, com base racional, sobre temas e assuntos até ao momento monopolizados pelo Estado e pela Igreja; um terceiro aspeto inerente a esta esfera pública burguesa diz respeito ao caráter democrático da participação: (quase) todos podiam participar, criticar, julgar bens acessíveis a (quase) todos. Contudo, se analisarmos a transformação do espaço público português, ao longo do século XIX, sem esquecer naturalmente o considerável atraso nacional em relação à Europa do Norte e Centro, constatamos que a imprensa se desvia progressivamente da promoção do debate racional, participado e democrático, primeiro em função de interesses ideológicos e, posteriormente, em função de interesses comerciais. De veículo da opinião política, em que os jornais se estruturavam como prolongamentos dos palanques parlamentares, a imprensa

“El salón mantenía, por así decirlo, el monopolio de la primera publicación: um nuevo opus, incluído el musical, tenía que comenzar legitimándose ante esa tribuna.” (Habermas, 2002: 72). Em Portugal, foi reconhecido o salão de Marquesa de Alorna foco de ebulição cultural, onde se debatiam as novas ideias políticas e também as novas correntes estéticas e literárias, frequentado por nomes como os de Bocage e Alexandre Herculano. “Empossada no título e nos bens do Marquesado de Alorna, fez do seu salão um foco das novas ideias estéticas; a influência que exerceu, como «Staël portuguesa», ressalta do testemunho agradecido de Herculano.” (Coelho, 1994).

5

7

WHY CULTURE? Novembro de 2011

adquire, a pouco e pouco, novas funcionalidades, dando ênfase à dimensão informativa e à função de entretenimento.

3. O estatuto do homem de letras Uma das características identitárias do jornalismo português moderno é o seu estreito vínculo estruturante ao campo cultural e literário, ao longo de todo o século XIX, à semelhança do que sucedeu em França6. A ligação dos homens de letras ao jornalismo processa-se, ao longo do século XIX, de diversas formas e é um fenómeno tipicamente europeu que trouxe consequências para a evolução das formas de fazer jornalismo. Antes da autonomização da profissão de jornalista, os jornais eram dirigidos e redigidos em parte por escritores que viam a imprensa como um modo de angariar público leitor e como forma de compensar o parco sustento conseguido com a venda dos livros: exemplo clássico em Portugal, «o Sampaio da Revolução» como referência ao papel de Rodrigues Sampaio no jornal Revolução de Setembro. Em Inglaterra7, foi ainda no século XVIII que diversos escritores participaram e dirigiram publicações periódicas; em França, o fenómeno é mais tardio e em parte resulta do desaparecimento do regime de mecenato e de pensões, obrigando os escritores a praticar a chamada escrita lucrativa (Thérenty, 2003 : 21).

Jean Chalaby, num estudo comparativo entre o jornalismo francês e o anglo-americano, defende que um dos motivos para o atraso na modernização do jornalismo em França se ficou a dever ao forte envolvimento entre imprensa, política e literatura: “Em França, nesse período, o jornalismo permaneceu sob a influência das suas esferas tradicionais de origem, a política e a literatura. A importância conferida à forma literária afastou dos jornais franceses o estilo telegráfico das notícias anglo-americanas. Além disso, um número significativo de jornalistas franceses continuava a escrever na tradição dos publicistas, numa escrita de propaganda de doutrinas políticas e de defesa dos interesses de um grupo político particular.” (Chalaby, 2003: 6) 7 Note-se que o jornalismo inglês já no século XVIII vive esta aliança entre homens de letras e jornais: Daniel Defoe, autor do célebre Robinson Crusoé, publicado em folhetins em 1719 no Daily Post, possuía um jornal – The Review; Joseph Addison, Dean Swift e Richard Steele foram os principais ensaístas ingleses da centúria de setecentos. J. Addison, escritor e político, escreve para The Tatler e também funda a revista The Spectator em 1711, com Richard Steele, também político e escritor. Dean Swift, famoso pelas suas Gulliver Travells, era irlandês, ensaísta, político e panfletário, tendo participado no The Tatler, The Examiner e The Spectator. 6

8

WHY CULTURE? Novembro de 2011

Escrever nos jornais era uma forma de afirmação de uma autoridade, um modo de publicitar ideias, de divulgar obras, de defender ideologias, de travar polémicas diversas, enfim, de participar ativamente na construção da esfera pública. Com o tempo, era também uma forma de o intelectual se moldar às alterações das regras do mercado: o jornalismo era também encarado pelos homens de letras e pelos políticos como acesso a outras carreiras ou funções, uma passagem obrigatória para abrir caminhos e conseguir uma promoção socioprofissional8. Assim, uma História da imprensa periódica portuguesa passa obrigatoriamente pela história da afirmação e consolidação da elite intelectual oitocentista, devendo necessariamente ser perspetivada sob o enfoque de uma história cultural das transformações no corpo social (Dias, 2011a; 2011b; 2011c)9. Muitas vozes se levantaram contra esta relação entre o campo literário e os jornais,

considerada

perversa

para

a

qualidade

estético-literária

das

publicações, antes de mais por cercear a liberdade intelectual dos escritores, submetendo-os a lógicas de mercado, segundo as quais o critério de vendas se sobrepunha ao elitismo seletivo e à desejável independência que uma produção artística deveria exigir. Stendhal é um dos autores que se agita contra a

Numa análise às nossas elites intelectuais da primeira metade de oitocentos, Maria de Lourdes Lima dos Santos constata precisamente este aspecto: “O jornalismo, mais do que uma alternativa, aparecia como um modelo relativamente rápido e fácil para fazer uma reputação, valorizar-se e começar a escalada para a desejada meta. Fazer jornalismo (e particularmente jornalismo político) significava enveredar por uma via promocional que, nos novos tempos, exercia sobre os jovens desfavorecidos um poder de atracção comparável ao da carreira eclesiástica no antigo regime.” (Santos, 1985a: 332). Este fenómeno verificado na história do jornalismo português é comum a outros países europeus, nomeadamente a França onde, ao longo de toda a centúria de oitocentos, o jornal ou a revista são os espaços de promoção, publicidade e afirmação pública dos homens de letras. Como explica Thomas Ferenczi, referindo-se à participação dos homens de letras no campo jornalístico, “le journalisme est une voie de passage, non un lieu d’arrivée. Il n’est pas recherché pour lui-même, mais pour tout ce à quoi il mène (…)” (Ferenczi, 1993: 29) ; também para Christian Delporte “la plupart des contemporains [ont] regardé le journalisme comme une expérience, un passage, une étape (…) la presse pouvait conduire à une célébrité rapide servant d’antichambre à la littérature, au pouvoir, à l’administration. La presse permettait de se faire des relations, de fréquenter l’élite.” (Delporte, 1995: 17). 9 Alguns dos artigos de Luís Augusto Costa Dias foram gentilmente cedidos pois ainda se encontram no prelo, facto que reconhecidamente agradecemos. 8

9

WHY CULTURE? Novembro de 2011

prostituição do escritor e a sua submissão à nova indústria cultural, representada pelos jornais: L’empire naissant ce que l’on appelle aujourd’hui les médias consacre pour le dilettante libéral mais élitiste qu’est Stendhal une nouvelle pratique de la littérature dont il dit ne vouloir aucune part : « La vie littéraire telle qu’elle existe en 1840 est une vie misérable », note-t-il dans son journal. Et de cette misère-là, la presse est en grande partie responsable : camaraderie, annexion de la littérature par la politique, universalisation d’une esthétique de masse et pour les masses, soumission corollaire des écrivains ravalés à la simple fonction de «book-maker» qui se plient frileusement aux diktats de l’opinion publique, la « nouvelle reine intellectuelle de la France (…) (Diaz, 2004 : 17-18).

Não esqueçamos, a este respeito, que António Feliciano de Castilho, no programa da Revista Universal Lisbonense, em 1841, embora reconhecendo a importante missão educativa e pedagógica do jornal, o define com desconfiança: Este século, tão destruidor como criador, matou a Livraria, e pôs no seu lugar o Jornalismo. Assim devia ser, porque este século é popular. Os livros eram a muita ciência para poucos homens; os jornais são um pouco de pouca ciência para todos10 (Castilho, apud Santos, 1985ª: 165).

Opiniões como esta devem, em nosso ver, ser inscritas numa mais ampla discussão que, pelos meados do século, ocupou o universo dos escritores e que se prende com a tensão criada pelo aumento exponencial do público leitor e pela sujeição a novas regras de mercado. Esta fratura, particularmente visível no último quartel de Oitocentos, começa a dar sinais, ao findar a primeira metade do século. Não esqueçamos que, já aquando da discussão sobre a propriedade literária, a voz cética de Alexandre Herculano se insurge contra aquilo que ele considerava ser a prostituição do escritor e a consequente perda de qualidade da obra. No segundo volume dos seus Opúsculos, publica dois longos textos – uma carta dirigida a Almeida Garrett, em 1852, e um ensaio sobre o Esta citação de Castilho foi retirada do programa da Revista Universal Lisbonense, publicado em O Recreio, nº 8 de Agosto de 1841 (Santos, 1985a: 261).

10

10

WHY CULTURE? Novembro de 2011

tema, escrito em 1872 – em que expõe as suas reservas relativamente à criação das leis de propriedade literária precisamente por estas porem em causa a liberdade do criador. Vale a pena alongar um excerto: Estes homens [os Arlincourts, os de Kocks, os Balzacs, os Sues, os Dickens], cujos estudos se reduzem a correr os teatros, os bailes, as tabernas, os lupanares, a viajar comodamente de cidade para cidade, de país para país, a gozar os deleites que cada um deles lhes oferece, a adornar os vícios, a exagerar as paixões, a trajar ridiculamente os afetos mais puros, a corromper a mocidade e as mulheres; estes homens, que só buscam produzir efeitos que subjuguem as multidões; que espreitam as inclinações do povo para as lisonjearem, os seus gostos depravados para os satisfazerem; a estes operários da dissolução e não da civilização, a estes sim, aproveitam as doutrinas da propriedade literária! Para eles a recompensa do mercado; para eles os grossos proventos do industrialismo literário, que é o grande incitamento dos seus infecundos trabalhos. A literatura-mercadoria, a literatura-agiotagem, tem na verdade progredido espantosamente à sombra de tão deploráveis doutrinas! (Herculano, 1973: 74-75)11.

Para Alexandre Herculano, a lei de propriedade não deveria aplicar-se às criações do espírito humano, sob pena de os escritores se transformarem em produtores artesanais de artefactos de consumo público; repare-se que os nomes citados por Herculano coincidem com os escritores franceses e ingleses que passaram a viver da escrita impressa nos e mediada pelos jornais. O que está aqui em causa, portanto, é a manifestação de uma resistência de um escritor e homem de letras que cedo percebeu que a evolução do mercado, bem como o alargamento do público rapidamente acarretariam consequências sérias para a qualidade artística das obras e para o estatuto do intelectual. A cultura deixaria de estar reservada a uma elite culta e desceria da torre de marfim para as ruas: cedo, portanto, Herculano reage à mudança de paradigma que se anunciava, a partir do momento em que os bens culturais passariam a ser necessariamente mediados.

11

A atualização da ortografia é da nossa responsabilidade.

11

WHY CULTURE? Novembro de 2011

Quase no final do século, numa carta-prefácio à obra Azulejos do Conde de Arnoso, Eça de Queirós alarga-se em interessantes considerações sobre as novas tensões que regiam a relação entre o escritor/autor e os seus novos públicos, constatando que o aparecimento de “uma multidão azafamada e tosca que se chama o «público»” veio alterar radicalmente o papel do escritor no processo de comunicação literária, bem como as suas relações com os leitores: Essa coisa tão maravilhosa, de um mecanismo tão delicado, chamada o indivíduo, desapareceu; e começaram a mover-se as multidões, governadas por um instinto, por um interesse ou por um entusiasmo. Foi então que se sumiu o leitor, antigo leitor, discípulo e confidente, sentado longe dos ruídos incultos sob o claro busto de Minerva, o leitor amigo, com quem se conversava deliciosamente em longos, loquazes «Proémios»: e em lugar dele o homem de letras viu diante de si a turba que se chama o público, que lê alto e à pressa no rumor das ruas (Queirós, 2009: 189).

A lucidez destas considerações, reveladoras antes de mais da aguda consciência que o escritor tinha do seu tempo e contexto, permitem ilustrar o que temos vindo a descrever: no último quartel do século XIX, os homens de letras – guardiões da cultura – percebem com acuidade que o amplo movimento de mediação, desencadeado pela erupção da imprensa veio revolucionar o campo cultural, cindindo-o. O leitor é substituído pelo público; a relação intimista entre autor e leitor passa a ser aberta e mediada; a leitura perde a dimensão de recolhimento e a rua, o café, a esplanada e o parque ocupam o lugar, outrora privilegiado, da biblioteca. A moda do romance-folhetim, que satisfazia o apetite da baixa e média burguesia, com particular incidência para o público feminino, o aparecimento de coleções literárias populares e de revistas acessíveis aos novos públicos urbanos são fenómenos que reorganizam a sociedade de massas, podendo ser lidos como sintomas claros do despontar da modernidade, embriões daquilo a que Adorno e Horkheimer virão a chamar de “indústria cultural” (Adorno, 2003).

12

WHY CULTURE? Novembro de 2011

O jornal começou, portanto, a ser encarado pelos homens de letras oitocentistas como um meio ambivalente: se era o modo eficaz e abrangente de publicitar obras e de lançar nomes no mercado livreiro, compensando as fragilidades do sistema editorial português, bem como a ineficiência dos livreiros e editores12; por outro lado, promovia uma atitude mercenária face à escrita e à arte, que passam a estar dependentes da serialidade, da periodicidade e do espaço reservado pelos jornais, e que tem no romance-folhetim o seu exemplo paradigmático. Se, por um lado, lhe garante o reconhecimento público e lhe assegura um papel no espaço público, por outro, representa também uma cedência a uma literatura de qualidade inferior, sujeita ao gosto e expectativas do público13, e uma sujeição ao funcionamento periódico e fragmentado da imprensa: O romance folhetinesco ia impor aos escritores novas sujeições, quer quanto à qualidade, quer quanto à quantidade da sua produção, sobretudo através das exigências dos diretores dos jornais que, face ao teor das cartas enviadas pelos leitores, incitavam os romancistas a explorar ou a modificar um certo modelo de narrativa e de personagens (Santos, 1985a: 174).

Na verdade, estes géneros que se nutriam fundamentalmente da imprensa e que respondiam a um novo modelo de cultura, moldado a um alargamento a novos públicos, exigiram dos escritores uma adaptação da arte literária ao formato e à periodicidade do jornal: sujeitos a uma lógica de publicação serial e fragmentada, eles próprios se apropriam desses vetores, inovando no recurso a novos códigos narrativos e obrigando o leitor a novas e diferentes competências 12 “Na imprensa periódica, além dos anónimos anúncios das obras, implementava-se a publicação de artigos críticos assinados, capazes de orientar favoravelmente para essas obras os leitores do jornal e, sobretudo, os da respectiva secção, cujo redactor tinha, em regra, o seu público regular. Visando esta forma de propaganda não anónima, os autores enviavam exemplares das suas obras para vários jornais e revistas e cuidavam igualmente de oferecer alguns a um certo número de personalidades.” (Santos, 1985ª: 218). 13 Para Marie-Ève Thérenty, “le roman-feuilleton représente à la fois une victoire pour l’écrivain de fiction (victoire économique et idéologique) et une défaite (défaite esthétique dans la mesure où la production tente de s’ajuster le plus étroitement possible à l’attente d’un public). Dans l’écriture du roman-feuilleton l’écart par rapport à l’horizon d’attente est minimal et les effets de surprise, si prenants dans l’intrigue, sont des effets poétiques maîtrisés, prévus et pour tout dire très conventionnels. ” (Thérenty, 2003 : 13).

13

WHY CULTURE? Novembro de 2011

de leitura14. Em O Mistério da Estrada de Sintra, romance epistolar publicado nas páginas do Diário de Notícias em 1870, Eça e Ramalho encenam a paródia destes procedimentos estratégicos, desnudando os clichés de toda uma literatura de consumo, produzida para entreter a crescente burguesia urbana. Sintomático que, no prefácio à segunda edição da obra, Eça escreva: Há catorze anos, uma noite de Verão, no Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao som de um soluçante pot-pourri dos Dois Foscaris, deliberámos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias15.

Independentemente da maior ou menor veracidade desta afirmação, até porque é proferida por um Eça já mais maduro e distanciado década e meia em relação ao tempo de redação d’ O Mistério da Estrada de Sintra, parece-nos particularmente relevante que o escritor sublinhe, como objetivo primeiro deste “bluff” literário, o facto de pretender acordar a letargia do público urbano português, com algo que inovasse e abanasse as consciências: “acordar a berros a opinião pública (…) e desencerrá-la do torpor em que a deixara a sociedade da Regeneração (…) poderia dizer-se que foi o primeiro passo de uma caminhada longa (mas também lenta) de transformações para as quais concorreram inúmeros factores de evolução do espaço público em Portugal.” (Dias, 2008: 312). 4. Que cultura nos jornais de oitocentos Este alargamento do fenómeno cultural às massas vai progredindo ao longo de toda a segunda metade de oitocentos e acentua-se no seu último quartel. O benévolo Leitor que recatadamente lia Voltaire, num canto escuro da sua Como afirma Ernesto Rodrigues, ao abordar as estratégias de composição desta nova literatura: “A criação existe no contexto de instituições jornalístico-editoriais e adapta-se aos seus ritmos, assuntos e estilemas. Condutor de histórias e da imaginação alheia, o autor precisa de controlar efeitos e regular a atenção de milhares (…)” (Rodrigues, 1998: 210). 15 A partir deste momento, todas as indicações de página relativas a O Mistério da Estrada de Sintra referem-se à recente edição consultada: Queirós, Eça de e Ortigão, Ramalho, O Mistério da Estrada de Sintra, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2005, da responsabilidade de A. Campos Matos. 14

14

WHY CULTURE? Novembro de 2011

biblioteca é substituído pela “multidão tosca” de que fala Eça, que lê à pressa, no rumor da praça, preferindo o jornal ao livro. Numa das crónicas enviadas por Eça para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, jornal com quem o escritor manteve uma assídua e profunda colaboração, pode ler-se o seguinte, a respeito de um evento cultural de referência da capital francesa: Como uma fila submissa de bons carneiros, todos estes milhares de seres pensantes,

e

únicos

donos

do

seu

pensamento,

marchavam

arrebanhadamente para aquelas obras que, na véspera, o Estudo Crítico, ou antes o Guia Crítico do «Salão», publicado pelo jornal, lhes indicava, ou melhor lhes impusera, como as únicas diante das quais deviam parar, e fazer «ah!» e sentir uma emoção, e depor um louvor (Queirós, 2002: 477).

A partir daqui, o autor alarga-se em considerações, muitas delas ainda de grande atualidade, sobre o fracasso dos ideais revolucionários e da Democracia, pois que já no final do século XIX, o público – leia-se o público urbano burguês – se comporta como o habitante de Damasco ou de Bagdad que não prescindia do seu “cádi” ou do seu “ulemá” para poder ter uma opinião que seguir; com uma diferença, imposta pelos tempos modernos: neste final de século, nenhum homem civilizado que se queira respeitado pode prescindir da Arte ou da Literatura, pois elas representam a “sobrecasaca da inteligência”, rápida e fugazmente consumidas nos jornais, afinal os grandes formadores (e deformadores) da opinião pública: O expediente natural portanto é recorrer àqueles que têm por profissão e especialidade fornecer, sobre coisas de arte, opiniões e frases. Estes são os críticos e têm a sua loja de retalho no jornal. Nada mais cómodo, mais rápido, pois, do que comprar ao crítico, pela tolerável soma de dez réis, três ou quatro opiniões, como se compram no luveiro três ou quatro pares de luvas, escuras e claras. Enverga-se a opinião como se calça a luva, e desde logo se fica apto a aparecer na sociedade com o ar e a elegância moral de um ser culto (Queirós, 2002: 481)

Num estilo satírico e saltitante, bem característico da escrita queirosiana para a imprensa, o que estes comentários prenunciam é uma posição muito negativa 15

WHY CULTURE? Novembro de 2011

relativamente às transformações da esfera pública nacional e europeia, devidas à massificação dos públicos, do impresso em geral e da imprensa em particular. Cremos poder interpretar esta crónica como um exemplo paradigmático da posição ambivalente dos homens de letras face às grandes mudanças operadas no universo da cultura no final do século: se perspetivam os jornais como um bem imprescindível que ensina a ler o mundo e permite a vivência democrática, por outro lado, também captam os seus aspetos mais disfóricos, nomeadamente o enfeudamento do intelectual à nova força crescente da massa de leitores. Note-se que esta duplicidade não é de todo específica de Eça de Queirós, pois um escritor como Stendhal, algumas décadas antes de Eça, também via o jornal como une arme à double tranchant: se, por um lado, é a arma fundamental para o combate das tiranias, por outro lado, é profundamente nociva à arte, provocando a estandardização dos julgamentos estéticos e a decadência da arte e da literatura. Em inúmeros textos publicados nas revistas inglesas, o romancista francês reflete esta preocupação, perspetivando o jornal como um ecrã que opacifica a realidade, impedindo o contacto direto do cidadão com a arte e a literatura e conduzindo-o ao reduto das ideias feitas16. A consciência aguda de que o paradigma do homem de letras estava em vias de esgotamento, para ser substituído por outros agentes culturais, cuja projeção passava pela mediação dos jornais e revistas que cada vez mais respondiam a estratégias comerciais, adaptando quer os seus formatos, quer os seus conteúdos, é bem percetível no final de século português e europeu. A imprensa de massas, como explica João Carlos Correia, “chama a si conceitos novos que até aí eram na sua maioria desconhecidos pelo jornalismo de opinião: mais do que a urgência ideológica da mensagem veiculada contava a sua atualidade, isto é, o seu caráter de acontecimento novo, tendencialmente “Ce nouveau public voit tout à travers le journal. Et c’est dans le “fatraslittéraire” livré par la presse que le lecteur – plus prosaïquement rebaptisé par Stendhal “l’acheteur de livre” incapable de juger par lui-même ce qu’on lui fournit, va puiser des opinions poétiques frelatées et activer en conséquence la production de ces “prétendus chefs d’œuvre poffés dans les quotidiens” (Diaz, 2004 : 23). 16

16

WHY CULTURE? Novembro de 2011

inesperado e recente; mais do que a mobilização dos leitores para uma cruzada, importava proporcionar-lhes informações sobre o mundo que fossem simultaneamente úteis e agradáveis, ou seja, suscetíveis de serem consumidas.” (Correia, 1998: 94-95). Se atentarmos na ampla e acesa discussão que envolveu os intelectuais franceses no fim do século, perceberemos que a visão crítica de Eça de Queirós não é isolada nem original. Segundo Thomas Ferenczi, entre 1897 e 1898, a Revue Bleue desenvolveu um largo debate sobre o papel da Imprensa, em que se destacaram duas conceções antagónicas de jornalismo: uma conceção de matriz pedagógica que entendia o jornalismo como uma prática com deveres públicos e edificantes, capaz de traduzir ideias e defender princípios, por um lado; por outro, uma conceção mais moderna e consentânea com as inovações importadas do jornalismo americano, que colocava a ênfase na vertente lúdica e lucrativa do jornal17. Quer isto dizer, portanto, que face às vincadas mudanças no universo da imprensa,

decorrentes da

propagação das práticas americanas e

da

comercialização do jornalismo, escritores e jornalistas franceses, formados numa arreigada tradição histórica segundo a qual literatura, política e jornalismo se conciliavam, recusam ceder aos constrangimentos da massificação da imprensa18. Ainda no decurso do debate acima referido, aliás lançado pelo No fundo, este debate traduzia a tensão sentida no universo jornalístico francês do final do século: “les premiers ont la nostalgie d’un journalisme qui mettait au premier plan la littérature, les idées, la politique, qui n’était pas damé par les préoccupations d’argent et qui ne cherchait pas à multiplier les reportages sur le terrain. Les seconds ont le désir d’une presse qui s’assignerait pour mission de décrire la réalité et par le seul fait de la publicité qu’elle donne aux événements, (…) de dénoncer les iniquités, qui saurait mettre d’importantes ressources financières au service de cette tache et qui offrirait à son public des informations exactes, précises, sûres.” (Ferenczi, 1993 : 235). 17

Num artigo em que analisa a obra Le Sieur de Va-Partout, da autoria de Pierre Giffard, Myriam Boucharenc sintetiza bem esta oposição entre os defensores do velho jornalismo e aqueles que aderiram ao novo jornalismo anglo-americano: “À l’aube de sa modernité, le journalisme est encore largement dépositaire de l’héritage du Second Empire. Même si Le Petit Journal donne le corps d’envoi des reportages en séries, (…) la presse française reste largement dominée par «les vieux maréchaux de la chronique» et n’emboîte que timidement le pas aux Stanleys d’outreAtlantique. L’affrontement est alors vif, et bien connu, entre les tenants du «vieux système», regrettant l’intrusion du reportage dans le très littéraire journal français (…) et ceux que l’on 18

17

WHY CULTURE? Novembro de 2011

filósofo Alfred Fouillée, o senador francês Bérenger, homem de letras e jornalista, abriu a discussão, isolando precisamente os dois grandes vícios desta nova imprensa: o excessivo gosto pelo espetacular e sensacional e a corrupção pelo dinheiro (Delporte, 1995: 30-31). A leitura de uma das cartas do Fradique queirosiano,

endereçada

a

Bento

S.,

texto,

aliás,

que

resulta

do

reaproveitamento de uma crónica publicada pelo próprio Eça na Gazeta de Notícias, legitima a defesa de um certo ideal de imprensa, incompatível com a massificação e a industrialização dos jornais, uma imprensa que pudesse contar ainda com o homem de letras, intelectual em clara crise no final do século. Assim se entende que tenha emprestado à pena do seu proto-heterónimo, o cético elitista e dandy, as mesmas críticas sobre o jornalismo, sendo que Fradique simboliza a derradeira tentativa de superação da morte do intelectual oitocentista. Dito de outro modo, Fradique Mendes constitui-se como a metáfora do velho paradigma de intelectual que, perseguindo de novo a “aura perdida da cultura”, se remete ao silêncio e assume uma atitude de desistência seletiva e blasée. Não muitos anos após, foi esse, nostalgicamente, o olhar de Sampaio Bruno para a sua pena de escritor: Olho para a minha pena. Trouxe-me ela a riqueza, a posição definida, a independência, a fortuna, a rutilância social, as considerações sociais? Granjeou-me o descanso para meus velhos dias, a segurança na vida? Libertou-me da apreensão do amanhã? Favoreceu-me com a tranquilidade de espírito, indispensável (se delas fosse capaz) às cogitações altas e desinteressadas, que, honrando o cismador, dignificam as sociedades e enobrecem as literaturas? Conquistou-me a amizade dos meus patrícios, a estima de meus concidadãos?19

Se pensarmos que o próprio Eça nada publica a partir de Os Maias, em 1888, tendo limitado a sua projeção pública aos textos dispersos da correspondência appelle désormais les «nouveaux journalistes», parmi lesquels Fernand Xau, le fondateur du Journal, Hugues Leroux, écrivain et reporter prolixe ou encore Jules Huret, tous prônant un journalisme d’investigation qui jouit de la faveur grandissante du public.” (Boucharenc, 2004 : 512). 19 BRUNO, Sampaio – Os Modernos Publicistas Portugueses. Porto, s.n., 1906, p. XIX (Sobre esta questão, veja-se DIAS, 2008).

18

WHY CULTURE? Novembro de 2011

para a imprensa, talvez consigamos perceber melhor por que motivo, neste pequeno estudo, o escolhemos para paradigma da cisão de dois campos: a cultura para as massas e a cultura de elite. Na década de 90, quando o escritor se empenha na criação da Revista de Portugal, rapidamente percebe que já não havia (ou ainda não havia?) lugar no país para uma publicação daquele género. Apesar de ter tido um período de vida relativamente efémero, não passando do número 2420, a Revista de Portugal, pela qualidade dos textos que divulgou e pela ressonância dos nomes da intelectualidade portuguesa e brasileira que nela colaboraram, chegou a ser, segundo Miranda de Andrade, “a expressão mais elevada da intelectualidade portuguesa” e o “seu alto nível cultural (…) deu-lhe foros de categorizada revista europeia.” (Andrade, 1953: 6). Valorizar o que de melhor se produzia, em áreas tão diversificadas, que vão desde a Literatura, à Crítica, passando pela Ciência, pela História, pela Política, era uma forma de oferecer um produto de elevada qualidade a leitores portugueses e brasileiros, e era simultaneamente uma maneira de elevar a moral do país, propagando dele uma imagem de progresso e cultura viva. Suprindo uma lacuna do nosso país, “único povo da Europa culta que não possuía até agora uma grande Revista de carácter nacional”, cumprindo de forma elevada os seus intuitos pedagógicos, o apoio a esta causa é, como diz o escritor, “na esfera das coisas da Inteligência, um acto de patriotismo” (Queirós, 1953: 30). Ambicioso, imodesto, Eça acreditava aparentemente ainda ser possível acordar o público nacional da letargia em que se arrastava há décadas, interessando-o e conquistando-o com cultura séria. Em breve, as dificuldades financeiras que abortaram o projeto, mostraram-lhe o quão certeiros haviam sido os conselhos que Ramalho lhe dera, quando lhe apresentara o projeto da Revista de Portugal, e que iam no sentido de criar uma publicação mais leve, ligeira e superficial que certamente iria ter uma receção mais ampla, indo ao encontro do horizonte de expectativas desse novo público, cada vez mais massificado e heterogéneo, que Eça tão bem 20 “A partir do primeiro ano a Revista entra em dificuldades financeiras e deixa de se publicar com a regularidade inicial. Consegue, apesar de tudo, sobreviver com notável qualidade – nem sempre a que o seu director desejaria – até Maio de 1892.” (Santana, 1995a: 156).

19

WHY CULTURE? Novembro de 2011

identificou.. Parece-nos, portanto, que a Revista de Portugal pode ser lida como um requiem geracional, através do qual alguns vencidos tentam recuperar o protagonismo público, fingindo acreditar que a “iluminação” das massas poderia ser feita por uma cultura… culta. 5. Em síntese Afirmámos, no início deste texto, que a rutura entre jornalismo e cultura na atualidade

poderia

ser

mais

bem

compreendida

em

retrospetiva,

acompanhando a génese do jornalismo moderno, no final de oitocentos. Afirmámos também que, qual cabeça de Janus, com dois rostos e olhares em direções opostas, jornalismo e cultura sempre viveram movimentos e forças contraditórias. Se, por um lado, a génese do espaço público burguês, tal como o entende Habermas, começa precisamente na publicitação da cultura, através da discussão racional e partilhada sobre arte e literatura, que decorria em diversos espaços socioculturais urbanos, entre eles a imprensa; por outro lado, também é reconhecido que a massificação da imprensa, ao longo do século XIX, acompanhando todo um amplo movimento de evoluções técnicas, económicas e sociais até se entranhar em novas práticas e representações no corpo social, foi responsável pela rutura indelével do campo cultural e pelo aparecimento de um novo conceito de cultura. Esta deixa de restringir-se à elite de burgueses cultos e proprietários e sofre uma metamorfose que a mediação aporta, tornando-se acessível aos novos públicos de classes emergentes. Do salão, da corte e dos púlpitos, a cultura passa para os cafés, as tabernas, as avenidas, os teatros. Entra nos lares burgueses por via dos livros de bolso, cada vez mais objetos de consumo fácil, e sobretudo pelos jornais, que entram em todos os lares. Nasce aquilo a que a Escola de Frankfurt chamará “indústria cultural” que remeterá para um lugar secundário outras tantas culturas, quer a de elite, quer a popular. Ora, os jornais, a partir do momento em que se tornam produtos mercantis, naturalmente que passam a divulgar e a incorporar esses produtos culturais massificados: foi assim com o romance-folhetim, foi assim com o fait divers, é assim com um conjunto de fenómenos culturais dos nossos dias. 20

WHY CULTURE? Novembro de 2011

Embora a tese que defendemos e de onde partimos, por ora meramente esboçada, exija um estudo de maior fôlego, que passará necessariamente pela análise circunstanciada do jornalismo cultural nos nossos dias, cremos ter conseguido mapear um conjunto de fatores que nos legitimam a falar do caráter endógeno desta relação bipolar entre jornais e cultura.

Bibliografia:

ADORNO, T. (2003). Sobre a Indústria Cultural. Edição de Sousa Ribeiro. Coimbra: AngelusNovus. BALLE, F. (1997). Médias et Sociétés. De Gutenberg à Internet. 8ª ed., Paris: Monchrétien. CHALLABY, J. (2003), «O Jornalismo como invenção anglo-americana. Comparação entre o desenvolvimento do jornalismo francês e anglo-americano (1830-1920)», Media & Jornalismo, Nov. 2003, Vol. 1, nº 3, pp.29-50, http://revcom.portcom.intercom.org.br COELHO, J. P. (1994). Dicionário de Literatura Portuguesa. 4.ª ed. Porto: Figueirinhas. CORREIA, J. C. (1998). Jornalismo e Espaço Público. Covilhã: Universidade da Beira Interior. DELPORTE, C. (1995). Histoire du Journalisme et des Journalistes en France (du XVIIe siècle à nos jours), Paris, P.U.F., Col. «Que sais-je ?». DIAS, Luís A. Costa (2008). «O papel do impresso. A imprensa e a transformação do espaço público em Portugal (último quartel do século XIX – primeiro quartel do século XX)» In : Estudos do Século XX. Coimbra : CEIS20 / IUC. DIAS, L. A. Costa (2011a), «Elites intelectuais». In : ROLLO, M. F. (coord), Dicionário da História da I República e do Republicanismo, Lisboa [no prelo] DIAS, L. A. Costa (2011b), «Imprensa e Espaço Público». In : ROLLO, M. F. (coord), Dicionário da História da I República e do Republicanismo, Lisboa [no prelo] DIAS, L. A. Costa (2011c). «Um esboço de Rafael na transgressão do estatuto oitocentista do “homem de letras”». In : NEMI, Ana; ROVAI, Mauro; RUIZ, Rafael (ogr.), Mundo Ibérico: Representações e Projectos, S. Paulo [em org.] DIAZ, B. (2004). «Stendhal face à la presse de son temps», Thérenty, Marie-Ève e Vaillant, Alain (dirs.), Presse & Plumes. Journalisme et Littérature au XIXe siècle, Paris, Nouveau-Monde Editions, pp. 17-29. ESTEVES, J.P. (2003). A Ética da Comunicação e os Media Modernos. 2ªed., Lisboa: FCG. FERENCZI, T. (1993). L’invention du journalisme en France. Naissance de la presse moderne à la fin du XIXe siècle, Paris, Plon. HABERMAS, J. (2002). Historia y Crítica de la opinión pública. La transformación estructural de la vida pública. Madrid: Ediciones G. Gili. HERCULANO, A. (1973). «Da propriedade Literária e da recente Convenção com França. Ao Visconde d’Almeida Garrett», Opúsculos, Tomo II, Lisboa, Bertrand. LAW, G. e MORITA, N. (2000). «The Newspaper Novel: towards an international history». In: Media History, Vol. 6, Nº1, pp. 5-17, Waseda University, Tokyo, http://dx.doi.org/10.1080/713685376

21

WHY CULTURE? Novembro de 2011

PEIXINHO, A.T. (2011). A Epistolaridade nos Textos de Imprensa de Eça de Queirós. Lisboa: F.C.G. / F.C.T. QUEIRÓS, E. e ORTIGÃO, R. (2005). O Mistério da Estrada de Sintra. Edição de A. Campos Matos. Lisboa: Parceria A. M. Pereira. QUEIRÓS, E. (1953). «Uma circular de E. Q.». In: Andrade, M. «Eça de Queiroz e a Revista de Portugal». Ocidente, Suplemento, Vol. XLIV, Nº 177, Lisboa: Edição de Álvaro Pinto, p. 30. QUEIRÓS, E. (1995). Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal), Edição Crítica de Helena Santana. Lisboa: I.N.C.M. QUEIRÓS, E. (2002). Textos de Imprensa IV (da Gazeta de Notícias). Edição Crítica de Elza Miné e Neuma Cavalcante. Lisboa: I.N.C.M. QUEIRÓS, E. (2009). Cartas Públicas. Edição Crítica de Ana Teresa Peixinho. Lisboa: INCM. REIS, C., (1999), «As Viagens como hipertexto: hipótese de trabalho». In: Leituras. Revista da Biblioteca Nacional, nº4, primavera, pp. 115-123. RIVERA, J. B. (2003). El periodismo cultural. Buenos Aires: Paidós. RODRIGUES, E. (1998). O Mágico Folhetim. Literatura e Jornalismo em Portugal. 1ªed., Lisboa: Editorial Notícias. SANTOS, M. L. Lima dos (1985). Intelectuais Portugueses na primeira metade de oitocentos. Lisboa: Editorial Presença. SILVA, D. S. (2009). Tendências do Jornalismo Cultural em Portugal. Atas do 6.º SOPCOM. In: www.bocc.pt [Acedido em agosto de 2011] SILVA, F. C. (2002). Espaço Público em Habermas. Lisboa : Imprensa de Ciências Sociais. TARDE, G. (1989). L’Opinion et la Foule. Paris: Presses Universitaires de France. TENGARRINHA, J. (1989). História da Imprensa Periódica Portuguesa. 2ª ed., Lisboa: Caminho. THÉRENTY, M. E. (2003).

22

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.