Jornalismo e Direito: os desafios lançados pela ADPF 130-DF à compreensão jurídica da liberdade de informação jornalística estabelecida pela Constituição de 1988

June 23, 2017 | Autor: Davi Diniz | Categoria: Constitutional Law, Comparative Constitutional Law, Media Law
Share Embed


Descrição do Produto

JORNALISMO E DIREITO: OS DESAFIOS LANÇADOS PELA ADPF 130-DF À COMPREENSÃO JURÍDICA DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA ESTABELECIDA PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988 JOURNALISM AND LAW: UNDERSTANDING THE CHALLENGES OFFERED BY THE BRAZILIAN SUPREME COURT DECISION IN ADPF 13O-DF TO THE FREEDOM OF JOURNALISTIC INFORMATION PROTECTED BY BRAZILIAN CONSTITUTION OF 1988 Resumo: O artigo investiga as relações entre Jornalismo e Direito, considerando os julgamentos do Supremo Tribunal Federal no tema, em especial o decidido na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-DF. Com base na análise realizada, defende-se uma melhor compreensão jurídica do conceito de plena liberdade de informação jornalística, de modo a individualizar os interesses individuais e coletivos que devem ser protegidos para o exercício do jornalismo conforme a constitucional ordem jurídica da comunicação social. Para otimizar a aplicação desses comandos constitucionais, mostra-se necessário inserir a defesa de interesses metaindividuais na aplicação da Constituição, com o objetivo de se proteger e fortalecer a qualidade da democracia e da vida social dos brasileiros, não se restringindo esse debate à defesa de direitos subjetivos individuais. Palavras-chave: Jornalismo. Liberdade de Expressão. Comunicação Social. Direitos Fundamentais. Dimensão Subjetiva. Dimensão Objetiva. Abstract: This article discusses the relationship between Journalism and Law in the Brazilian Legal System by analyzing the respective leading cases on this subject as decided by Brazil’s Supreme Court (Supremo Tribunal Federal). It considers particularly the judgment of ADPF 130-DF (ADPF is a special constitutional procedure), the Brazil's landmark judicial decision on freedom of expression. This investigation argues that a deeper understanding of the legal concept of freedom of journalistic information is necessary to single out the individual and collective rights that must be protected for the practice of journalism in compliance with the constitutional rules on social communication. In order to enforce such constitutional norms, it is necessary to approach the defense of metaindividual (general) rights and interests. Therefore, the legal discussion on freedom of journalistic information must not be reduced to the protection of subjective individual rights, but it also has to focus on the defense and strengthening of democracy and social life in Brazil. Keywords: Journalism. Freedom of Speech, Social Communication. Fundamental Rights. Subjective Dimension. Objective Dimension.

Davi Monteiro Diniz1 Artigo publicado nos anais do XXIII CONPEDI2 1 INTRODUÇÃO Ao julgar a ADPF 130-DF3, o Supremo Tribunal Federal-STF declarou a não recepção da Lei Federal nº 5.250/67, voltada para regular a liberdade de manifestação do pensamento e de informação, diploma então conhecido como "Lei de Imprensa". Nesse julgamento, o STF também tratou da liberdade de expressão jornalística, tema disciplinado diretamente pelo art. 220, § 1º, da Constituição de 1988. Ao fazê-lo, o STF publicou, no acórdão resultante daquela decisão, que a liberdade de expressão jornalística é expressão sinônima da liberdade de imprensa, também afirmando que “(...)os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos”. A magnitude dessa decisão, que alterou de modo relevante a disciplina do tema no Brasil, sustenta a relevância de se considerar o jornalismo como objeto de indagação jurídica, bem como de se estudar e explicitar as balizas legais lhe estabelecidas pela sociedade brasileira, como aplicadas pela recente jurisprudência do STF proferida sobre essa matéria. Com vistas a participar desse debate, tratar-se-á, inicialmente, das abordagens que buscam identificar o que seja jornalismo, para em seguida indagar-se sobre o quadro normativo que lhe toma como objeto e, ao final, analisar os destacados problemas jurídico-constitucionais que o tema hoje apresenta ao Direito brasileiro. Para alcançar esse objetivo, realizou-se pesquisa exploratória, com identificação, análise e interpretação da legislação, doutrina e jurisprudência relativas ao tema investigado, ao final propondo-se modos de abordagem para se melhor solucionar as questões jurídicas a seguir relatadas. 2 DIREITO, COMUNICAÇÃO DE MASSA E JORNALISMO 2.1 Noções conceituais A divulgação de escritos ao público encontra diversas referências históricas na idade antiga. Entretanto, aqui interessa o surgimento da impressão mecânica por tipos móveis, 1

Professor Adjunto na Universidade de Brasília.

2

DINIZ, Davi Monteiro. Jornalismo e Direito: Os desafios lançados pela ADPF 130-DF à compreensão jurídica da liberdade de informação jornalística estabelecida pela Constituição de 1988. In: Margareth Anne Leister; Fausto Santos de Morais; Juvêncio Borges Silva. (Org.). Direitos Fundamentais e Democracia - I. 01ed. Florianópolis: CONPEDI, 2014, v. 01, p. 399-420. 3

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130-DF. Julgada em 30.04.2009. Relator: Min. Carlos Britto.

mecanismo primeiro registrado entre os Chineses, mas posteriormente desenvolvido na Europa ocidental, em criação atribuída a Gutenberg em 1450 4. A arte de imprimir utilizandose de tipos móveis espalhou-se progressivamente pelo continente europeu. Com a ampla distribuição das impressões às pessoas em geral, o papel impresso tornou-se veículo de comunicação de massa. No bojo desse movimento surgiram, nos séculos subsequentes, impressos dos mais variados tipos e formas, dentre os quais merecem referência as primeiras publicações voltadas para relatar fatos do cotidiano (corantos, panfletos, broadsheets, newsbooks)5. Essa classe de publicação, periódica e voltada para fatos recentes, experimentou formatos diferentes no decorrer do Séc. XVIII, às vezes produzida pelo Estado (como o londrino The Oxford Gazette, iniciado em 1665), mas principalmente realizada como atividade comercial. A partir do século referido, já se pode identificar, então, a existência de jornais (papéis de notícias, newspapers) amplamente distribuídos ao público. Publicações dessa natureza, disseminadas majoritariamente como produtos comerciais, tornaram-se plataforma de divulgação para vários tipos de informação (notícias, reportagens, imagens, entrevistas, publicidade comercial, obras literárias, propaganda, previsões místicas, textos de leitores) de modo a formar um produto cultural de alcance amplo, como hoje se vê nos atuais jornais impressos. Esse mosaico de diferentes mensagens presentes no mesmo veículo de comunicação é o ponto de partida para se construir um conhecimento teórico capaz de identificar e distinguir, dentre os diversos textos, as narrativas voltadas para a divulgação dos acontecimentos cotidianos, método que permite extremar o jornalismo como um gênero de comunicação que se diferencia de outros, tais como a publicidade comercial, a propaganda política ou a ficção literária. O jornalismo emerge, então, como uma forma específica de comunicação, forma essa baseada em perguntar e responder, a respeito de fatos objetivos, as clássicas perguntas: quem, como, onde, quando e por que motivo. (HARCUP, 2009, p. 6), Nessa esteira, o jornalismo pode ser conceituado como uma atividade de narração que se utiliza de fontes, quais sejam, observações sobre fatos apurados, entrevistas e análises de documentos, para: a) inscrever sentido aos acontecimentos atuais; e b) narrá-los empregando uma linguagem de comunicação de massa, ou seja, uma linguagem tecnicamente orientada para ser recebida, selecionada e compreendida por uma grande massa de leitores. (ADAM, 1993, p. 23-45). 4

Cf. em http://en.wikipedia.org/wiki/Printing_press (acesso em 02.2014)

5

Cf. em http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_journalism (acesso em 02.2014)

O Jornalismo, assim, “(...) legitimou-se historicamente como uma prática de narrar a realidade”, narrativa essa que “(...) estrutura-se a partir de noções de verdade e credibilidade(...) um conhecimento amparado, portanto, nos princípios de verdade e justificação.” (BENNETI, 2013, p. 45). Consequentemente, como explica Seixas (2012, p. 41), nem tudo que é publicado em um veículo de mídia, mesmo que este seja chamado de jornalístico, é resultado de atividade jornalística. Pode-se afirmar, então, não é apenas o fato de um texto estar inscrito em um jornal que lhe confere a automática qualificação de informação jornalística. Ao lado da emergência da informação jornalística como informação amplamente disseminada, observe-se também que um marcado efeito da proliferação de jornais oferecidos na forma de produtos comerciais, principalmente a partir do Séc. XIX, foi o de especializar e profissionalizar a atividade de relatar o cotidiano por meio de linguagem voltada para a comunicação de massa, surgindo então a figura do repórter como o encarregado de pesquisar (apurar) os fatos e escrever esse textos. Adicionalmente, a complexidade da produção dos jornais passou a envolver outros atores encarregados da construção narrativa de tais relatos, tais como editores e fotógrafos, formando um conjunto de profissionais hoje compreendidos pela designação de jornalista. Nesse contexto, jornalista é aquele que trabalha para “(...) produzir informação sobre o estado atual do mundo, a atualidade” (SEIXAS, 2012, p. 37). Importante registrar que a percepção do jornalismo como uma atividade de comunicação com contornos próprios não permaneceu restrita ao seu emprego em publicações impressas, pois o jornalismo se ampliou com o aparecimento de outros meios de comunicação de massa, como o rádio e a televisão. Nessa linha, um firme indicador da autonomia do jornalismo e de sua identificação como atividade específica de comunicação manifesta-se pela aceitação

de que atividades

jornalísticas

são reconhecidas

com essa qualidade

independentemente do meio de comunicação de massa (imprensa, rádio, televisão, internet) em que operam. Com esse sentido, pode-se falar de jornalismo como uma atividade objetivamente definida; de jornalista, como um profissional que a realiza; de jornal como a plataforma que divulga a informação jornalística, geralmente em conjunto com outros textos e produtos; e de empresa jornalística como a organização empresarial que fabrica esse produto cultural de conteúdo múltiplo com vistas ao mercado de trocas econômicas.

2.2 Relações entre imprensa e lei no contexto histórico do Iluminismo Como acima referido, a disseminação da prensa de tipos móveis na Europa ocidental a partir do séc. XV ofereceu condições para se formar um meio de comunicação de massa que até hoje atua pela publicação de escritos impressos a respeito de diversificada temática. Dotada dessa qualidade, a imprensa rapidamente interagiu com as relações de poder da sociedade moderna. Uma conhecida reação dos soberanos da época foi a de controlar tanto o exercício da atividade econômica de impressão, o que era feito particularmente por meio das corporações de ofício, detentoras do monopólio de fabricação de impressos, como pela regulação do conteúdo desses impressos, exigindo-se autorização prévia emitida para cada publicação. Ademais, o príncipe também poderia lançar mão do confisco e destruição de obras não autorizadas ou proscritas. Entretanto, com o advento dos processos econômicos e políticos que levaram às revoluções liberais, primeiro na Inglaterra, no período que vai da guerra civil iniciada em 1630 até a Revolução Gloriosa de 1688, e depois, com as revoluções iniciadas nos Estados Unidos em 1776 e na França em 1789, o respectivo regime jurídico aplicável à impressão mecânica foi alterado nesses países. De um modo geral, considerou-se o exercício da atividade de imprimir como atividade comercial livre. Por outro lado, a regulamentação de conteúdo desses impressos tornou-se mais complexa, assim estreitando laços com o debate relativo à liberdade individual de expressão. Em consonância com esse movimento histórico geral, o qual proporcionou o recuo do absolutismo monárquico como sistema político dominante na Europa, temos que, na Inglaterra, questionou-se o poder régio de autorizar previamente publicações (prior restraint), como sustentado pelo poeta e escritor inglês John Milton em 1644, no livro Aeropagitica, em que defendeu o fim da censura prévia para a publicação de determinadas espécies de escritos. Essa oposição ao sistema administrativo de censura e controle de publicações obteve sucesso, primeiro, em 1695, com o Parlamento da Inglaterra recusando-se a renovar o Licensing Act de 1662 e, após, com a edição, em 1710, pela Rainha Anne, do Copyright Act, que sepultou qualquer pretensão de monopólio sobre fabricação de impressos como antes exercido pela Stationers’ Company. Nessa linha, em 1776, Blackstone, em seus Commentaries on the Laws of England já considerava integrado ao Common Law a concepção de que as impressões não se submeteriam à autorização prévia: entretanto, os autores poderiam ser plenamente responsabilizados pelo conteúdo de seus escritos6. 6

Cf. 4 Bl. Com. 151, 152.

Nos Estados Unidos colonial, por sua vez, a prerrogativa de regular as impressões de papéis era atribuído ao representante da coroa britânica em cada província. Entretanto, com a revolução política, esse poder foi recebido pelas unidades federadas, já livres do governo inglês. Estas, por sua vez, exigiram que a União não detivesse poderes para censurar previamente o exercício das liberdades de expressão e impressão (...abridging the freedom of speech, or of the press...), o que foi colocado na primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos em 1790. Anos depois, após a guerra civil dos Estados Unidos, a promulgação da 14º Emenda à Constituição, em 1868, viabilizou o entendimento da Suprema Corte daquele país no sentido de afirmar a prevalência dos direitos individuais inseridos na Constituição Federal, inclusive contra as autoridades das unidades federadas. No entanto, a plena aplicação de legislações federais que regularam de modo extremamente restritivo a liberdade de expressão em matéria política, quais sejam, os The Alien and Sedition Act, de 1798, e do Espionage Act, de 1917, sem que suas disposições fossem obstadas pela Suprema Corte dos Estados Unidos, fortaleceram o entendimento doutrinário no sentido de se considerar que a referida vedação inserida na Primeira Emenda (First Amendment) significou, originariamente, apenas uma defesa contra a censura prévia de escritos em geral, seguindo os moldes ingleses e oponível tão só contra a União (LEVY, 1985). No entanto, é de substancial importância registrar que, a partir do segundo quarto do Séc. XX, a Suprema Corte dos Estados Unidos ampliou o alcance dessa disposição constitucional, formando jurisprudência com notoriedade mundial. Na França absolutista, igualmente, um modelo de censura prévia estatal combinou-se com um regime de monopólios de impressão (privilégios exclusivos), sistema que entrou em crise e foi definitivamente encerrado com a Revolução de 1789 (ROCHE, 1996, p. 22), seja por meio da abolição completa dos privilégios concedidos às corporações de ofício, seja pela proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, conforme a dicção de seu art. 11. Entretanto, tal regulação só se estabilizará naquele país com o advento da III República e a promulgação, em 1881, de uma lei sobre liberdade de imprensa, então se entendendo esse termo (imprensa) como impressão de escritos em geral (WACHSMANN, 2005, p. 376-377). Como adição relevante, cumpre notar que na França o tema hoje também sofre a influência do regime de Direitos Humanos cogente na União Europeia, nos termos do art. 10 da Convenção Europeia de Direitos do Homem7. 7

Cf. O art. 10 da Convenção Europeia de Direitos do Homem: ARTIGO 10°- Liberdade de expressão

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam

Essa mudança iluminista instalou um modelo no qual a censura prévia estatal – que garantia tanto o poder de censura como o de monopólio econômico sobre a impressão e publicação de textos - recebeu um papel residual, sendo que no novo sistema a regulação de conteúdo dos impressos passou a incidir predominantemente a posteriori, a partir de múltiplos temas. Por exemplo, o sistema de privilégio baseado nas corporações de ofício foi substituído por monopólios concebidos como direitos de autor, e dessa maneira cedidos aos empresários. Assim sendo, o que, no período absolutista permitia o confisco das obras não autorizadas em razão da violação do privilégio da corporação, posteriormente encontrou, na proteção ao direito do autor, estrutura jurídica capaz de desencadear similar confisco de obras com publicação não autorizada, opção que permanece nos dias atuais. Outro exemplo pode ser visto nas obras consideradas ofensivas à moral pública, as quais, apesar das conhecidas mudanças ocorridas ao longo dos séculos a respeito do consenso dominante, ainda desencadeiam a proibição de serem publicadas em razão de seu conteúdo, o que é feito por leis e decisões que se opõem a que circule abertamente material impresso avaliado como antagônico aos costumes, v.g., que se concentre na produção e circulação de imagens de pedofilia (proteção de direitos individuais e da moral pública), ou publicações que se voltem estritamente a ensinar a praticar crimes (proteção da ordem pública). A respeito desse entrelaçamento de autorizações e vedações ao conteúdo de impressos, não há dúvida que ele também toca o jornalismo, uma vez entendido como modo de expressão e comunicação da pessoa humana. No entanto, cabe notar que, para além dessa regulamentação geral sobre liberdade de expressão, o jornalismo provocou o aparecimento de uma legislação que tratou de aspectos que lhe são específicos. Diante desse fenômeno, indaga-se, portanto, em que medida essas duas dimensões, a que regula aspectos gerais da expressão humana, e a que se volta para tratar especificamente da atividade jornalística, merecem ser entendidas com relativa especificidade, ou se, ao contrário, não há que se falar em normas particulares ao jornalismo, desse modo se limitando a estabelecer sua regulação apenas indiretamente, como espécie de expressão do indivíduo. Veja-se, então, a experiência normativa brasileira sobre o tema.

as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia. 2. O exercício desta liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder judicial

2.3 Imprensa e lei no Brasil Como relata Franca (1936, p. 2-35), a relação de Portugal com a colônia brasileira em relação a escritos chegava às raias do obscurantismo, com a proibição da imprensa no território colonial e um forte controle alfandegário quanto à importação de impressos em geral. Esse cenário começou a mudar com a chegada da corte portuguesa em fuga das tropas de Napoleão. Com a criação da imprensa régia, em 1808, sob o modelo de estrita censura, aparece a Gazeta do Rio de Janeiro, como órgão oficial do governo português, Não surpreende, pois, que outro jornal iniciado no mesmo ano, o Correio Braziliense, fosse impresso na Inglaterra, logo tendo sua circulação na colônia proibida pela Coroa. A censura prévia da imprensa só seria afastada em 1821, seguindo os movimentos constitucionalistas ocorridos naquele ano em Portugal. Com Constituição outorgada de 1824, consolidou-se um modelo que praticamente serviu de paradigma até a Constituição de 1988. Com efeito, o artigo 179, 4º, da Constituição imperial prescrevia que: “Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura; contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício deste direito, nos casos, e pela forma, que a lei determinar”. A combinação desses dois parâmetros, ausência de censura prévia e ampla discricionariedade de controle de conteúdo pela figura do abuso, principalmente por meio de sanções penais, variou ao longo da história brasileira nos períodos autoritários, especialmente no Estado Novo instituído por Getúlio Vargas (1937-1945) 8 e no golpe militar de 1964 (19641985)9, épocas em que o uso da censura prévia em jornais foi amplamente institucionalizado. Para os períodos que intercalaram os regimes ditatoriais de exceção, podemos citar como normas que se voltaram especificamente para regular a liberdade de imprensa, o Decreto nº 4.743, de 31 de Outubro de 1923 (Regula a liberdade de imprensa e dá outras providências) e a Lei nº 2.083 de 12 de novembro de 1953 (Regula a liberdade de imprensa). Esses diplomas revelam cristalina influência francesa em suas linhas gerais, por adotarem uma preocupação em estabelecer uma dicotomia que combina a afirmação da liberdade de impressão com o combate repressivo a ilícitos de impressão (abusos), o que é implementado por meio de sanções civis e penais voltadas principalmente para a proteção individual dos 8

Cf. o art. 10 do Decreto-Lei nº 1.949, de 30 de Dezembro de 1939: Art. 10. Fica sujeita à aplicação de penalidade a transgressão ou inobservância de instruções oficiais vedando, por motivo de interesse público, a divulgação de determinados assuntos, fatos, acontecimentos ou medidas administrativas. 9 Cf. o art. 2º do Dec.-Lei 1.077, de 26 de janeiro de 1970: Art. 2º. Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.

atingidos. (WACHSMANN, 2005, p. 377). Entretanto, a Lei brasileira de 1953 já trouxe, como característica destacada em seu art. 1º10, uma mudança na relação com o emprego do termo imprensa, no sentido de que ela se direcionava precipuamente para jornais e outros periódicos, sendo perceptível que a palavra “imprensa” ali se concentrou nas publicações dessa natureza. Essa abordagem, porém, recebeu modificações por meio da Lei nº 5.250/67 (Regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação), que procurou ampliar a regulação da comunicação pública, usando a palavra “imprensa” apenas lateralmente, para se referir a “crimes cometidos através da imprensa e das emissoras de radiodifusão”, e a “abuso de liberdade de imprensa”. Sublinhe-se, no entanto, que essa lei já qualificou de forma expressa a empresa jornalística11, emprestando-lhe identificação legal. Com o advento da Constituição de 1988 (C.F.) e o reconhecimento inequívoco da supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico brasileiro, podemos citar, como dispositivos presentes no texto da Constituição que repercutem diretamente no jornalismo, o prescrito pelo art. 5º, incisos IV (é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato), V (é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;), IX (é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;), X (são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação), XII (é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas), XIII (é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer) e XIV (é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional). Ressalte-se, sobretudo, o disciplinado nos artigos 220 a 223, inseridos na Seção III, Capítulo V (Da Comunicação Social) da C.F., emprestando-se ênfase, para os fins desse trabalho, ao disposto no art. 220, §1º: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”. 10

Cf. o art 1º da Lei nº 2.083 de 12 de novembro de 1953: Art 1º É livre a publicação e a circulação no território nacional de jornais e outros periódicos. 11 Cf. A redação original do art. 3º, § 4º, da Lei nº 5.250/67: (...)§ 4º. São emprêsas jornalísticas, para os fins da presente Lei, aquelas que editarem jornais, revistas ou outros periódicos. Equiparam-se às emprêsas jornalísticas, para fins de responsabilidade civil e penal, as que explorarem serviços de radiodifusão e televisão e o agenciamento de notícias.

O dispositivo em destaque chama atenção, uma vez que rompe com a tradição legislativa anterior ao empregar uma expressão com contornos bem definidos “plena liberdade de informação jornalística”, identificando o jornalismo como figura autônoma que pode ter suporte em qualquer veículo de comunicação social. Essa redação apoia diretamente o entendimento de que a informação jornalística é disciplinada com especificidade pela Constituição de 1988, merecendo abordagem hermenêutica que não dilua esse preceito constitucional considerando-o apenas como forma geral de expressão do pensamento humano. 3 A ADPF 130-DF E REGULAÇÃO JURÍDICA DO JORNALISMO A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130-DF foi oferecida pelo Partido Democrático Trabalhista - PDT, que requereu a declaração de incompatibilidade da Lei nº 5.250/67 com a Constituição de 1988. A ação foi julgada procedente, por maioria, nos termos do voto do relator, Min. Carlos Britto. O acórdão resultante (com 324 páginas) registra um extenso debate entre os ministros do STF a respeito das matérias tocadas pela Seção III, Capítulo V (Da Comunicação Social) da C.F. e sua relação com direitos fundamentais, matérias reguladas pela Constituição de 1988. A respeito desse debate, é de se ressaltar, particularmente, a explicitação de voto feita pela Min. Cármen Lúcia (p. 300-322), em que se encontra uma exposição detalhada das incompatibilidades percebidas entre a Lei nº 5.250/67 e o texto constitucional em vigor, bem como a sustentação de que tais falhas contaminavam o texto por inteiro, assim justificando a procedência da ação. No entanto, avançando além do contraste de normas de diferente hierarquia, o acórdão proferido pelo Tribunal Pleno do STF, ao lado de declarar a não recepção da referida lei pela C.F. de 1988, foi publicado com uma ementa na qual ao menos dez de seus itens tecem considerações a respeito dos comandos constitucionais que dispõem a respeito de liberdade de expressão, de liberdade de imprensa, de liberdade de informação jornalística e de sua respectiva regulamentação. Nessa visão geral, percebe-se que o arcabouço conceitual empregado pelo STF a respeito dessas figuras jurídicas não considerou necessário distinguir o jornalismo com aspectos precisos, embora praticamente o tenha colocado como figura central de suas disposições. Com efeito, logo no segundo item da ementa há a afirmação de que regime constitucional da liberdade de imprensa surge como “(...) reforço das liberdades de manifestação do pensamento, de informação e de expressão em sentido genérico, de modo a abarcar os direitos

à produção intelectual, artística, científica e comunicacional”. Por essa perspectiva, então, o termo imprensa parece estar entendido a partir de seu significado antigo: liberdade de imprensa revela-se pela liberdade de imprimir mensagens em geral, livros, jornais, panfletos, independentemente do conteúdo a que se refere o impresso, uma noção diretamente ligada à liberdade de expressão. Entretanto, no mesmo item há a afirmação de que “(...) O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa”. Aqui, portanto, parece afirmado de que quando trata de liberdade de imprensa, a Constituição dispõe principalmente sobre jornalismo. Essa mesma abordagem se repete no item subsequente da ementa, ponto em que a comunicação social é percebida como um prolongamento da liberdade de expressão, mas registra-se a afirmação de que “a liberdade de informação jornalística é versada pela Constituição Federal como expressão sinônima de liberdade de imprensa.”. Mais à frente, uma especificação do jornalismo em face da liberdade de expressão surge no sexto item da ementa, onde se dispõe que a imprensa deve “Desfrutar de uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados”. Em seguida, nos itens sétimo e oitavo, essa conexão entre imprensa e jornalismo é aprofundada, afirmando-se que “(...) a crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada”. A linha de raciocínio apresentada pelo STF chega ao seu ápice no oitavo item da referida ementa, em que afirma a existência de um núcleo protegido pela liberdade de imprensa que impossibilita o “(...) Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas.” Este conjunto de ideias revela, evidentemente, que o jornalismo recebe proteção constitucional privilegiada. É de se convir, porém, que esse campo só consegue ser logicamente delineado a partir da identificação do que seja jornalismo, pois este, na visão do acórdão, precisa viabilizar a expressão de um pensamento crítico “(...) Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos.” Em julgado posterior, esse debate prosseguiu no Tribunal Pleno do STF, quando este dirimiu a Reclamação 9.428-DF12, ali se decidindo, por maioria, que a autoridade do decidido

12

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Reclamação 9.428-DF. Julgada em 10.12.2009. Relator: Min.Cezar

Peluso.

na ADPF 130-DF volta-se para decisões fundadas na chamada Lei de Imprensa, não se lhe reconhecendo, até então, força vinculante para além dessas balizas. Dessa maneira construída pelo STF uma recente hermenêutica jurídica a respeito das relações entre Jornalismo e Direito em nível constitucional, para analisá-la cabe primeiro averiguar os prováveis motivos que justificam não só no Brasil, mas em vários países, atribuir ao jornalismo tão grande proteção. 4 COMUNICAÇÃO DE MASSA, JORNALISMO E DEMOCRACIA Em uma época de populações urbanas, a percepção do mundo pelas pessoas é fornecida predominantemente pela comunicação de massa. Assim, as narrativas e imagens oferecidas por textos, livros, filmes, programas de rádio e de televisão, e mais recentemente, internet, são determinantes para a formação da identidade humana. Nesse contexto, o jornalismo ganha especial atenção por se apresentar à sociedade como um narrador de fatos reais, assumindo o compromisso de que sua narração é verdadeira, ou, nos termos de um memorável bordão de um programa de rádio brasileiro (O Seu Reporter Esso), o jornalismo se apresenta à sociedade como testemunha ocular da história recente. Ou seja, o jornalismo alcança a atenção do público por prometer-lhe uma percepção verdadeira da realidade, assim, do que está objetivamente acontecendo em seu entorno cotidiano. Evidentemente, como visto supra, o jornalismo não se resume a realizar um relato descritivo de fatos, mas se revela por uma narrativa que busca inscrever sentido a esses fatos, significando-os. Desse modo, o jornalismo vai além de descrever os fatos do cotidiano, pois também os seleciona e procura lhes dar sentido, narrando, assim, acontecimentos. Nessa linha, é igualmente perceptível que convivem, por um lado, o espaço intocável de liberdade necessário para essa narrativa ser produzida, individual ou coletivamente, como também ser publicada e, por outro, a presença de uma realidade objetiva exterior cuja verificação impede que essa mesma narrativa seja amplamente manipulada pelo narrador para depois ser apresentada como ocorrência de fatos inquestionáveis. Essa diferença é particularmente importante para diferenciar e preservar a liberdade de expressão tanto para o jornalismo como para as obras literárias e artísticas, uma vez que nestas, a ficção narrativa não só é amplamente permitida, como incentivada e esperada. Assim, uma determinada narrativa jornalística pode mais facilmente ser objeto de impugnação judicial sob a acusação de falsidade do que uma obra literária ou artística.

Nesse quadro, ao ser publicada sob a premissa de estar narrando a realidade, a informação jornalística constitui um bem imprescindível para a vida na sociedade contemporânea, pois ela se revela fundamental para o conhecimento do mundo cotidiano pelas pessoas, capaz de influenciar diretamente suas decisões em todos os campos da vida, particular e social. Ademais, contemporaneamente, em uma sociedade no qual o exercício do poder, em especial do poder estatal, não pode contar apenas com o uso de instrumentos de violência para se fazer obedecido, pois há a possibilidade de enfrentar forte desobediência ou até mesmo resistência organizada capaz de substituir os governantes, a aquiescência dos governados quanto à titularidade e o uso desse poder depende cada vez mais de um permanente processo de participação e convencimento da população, convencimento no qual a comunicação de massa exerce papel fundamental. Um bom exemplo das consequências dessas transformações sociais para o Direito pode ser apontado pela crescente utilização das teorias de Habermas a respeito da presença de uma esfera pública de debate e formação da opinião geral, bem como de suas consequências para a democracia, problema para o qual o autor propõe, a partir das insuficiências das teorias republicana e liberal, um modelo político evolutivo, entendido como democracia discursiva (GOMES, 2008, p. 75-77). Nessa linha de envolvimento da população no funcionamento do Estado, pode-se arguir a necessidade de que o processo de formação e interpretação das leis envolvam maior participação daqueles por ela governados (OLIVEIRA, 2008, p. 44), assim também como a execução administrativa e judicial das leis (enforcement), debatendo-se publicamente sua interpretação e modo de efetivá-las. Embora não se deva diminuir o papel de outros produtos de comunicação na formação desse convencimento público (distrações, entertainment), o jornalismo continua sendo um instrumento de influência fundamental para a formação da opinião pública, pois continua a atrair a atenção das pessoas para as narrativas que seleciona, interagindo com a formulação de vontades individual e coletiva. Desse modo, consubstanciada como fenômeno de comunicação social (de massa), a informação jornalística se refere a várias circunstâncias relevantes ao Direito, despontando sua importância jurídica de modo inequívoco, seja como forma de viabilizar a expressão da liberdade humana, seja para atender ao direito das pessoas serem informadas, seja para concretizar o direito de elas participarem do debate público.

5 COMPREENSÃO JURÍDICA DA INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA EM FACE DOS DIVERSOS DIREITOS QUE LHE TOMAM COMO OBJETO Ao se afirmar que a informação jornalística é simultaneamente direito de quem a publica e de quem a recebe, necessário se faz esclarecer essas afirmações no sentido de se evitar ilogismos. Afirmar que alguém tem direito a produzir e publicar informação jornalística permite derivar um conjunto de pretensões jurídicas que realizem esse poder jurídico, por exemplo, contra entes públicos (censura) ou privados (monopólio) que impeçam a pessoa de desfrutar essas prerrogativas. Paralelamente, legislar que alguém tem direito a receber informação jornalística produz outro conjunto de pretensões jurídicas que consubstanciam esse direito, por exemplo, a pretensão contra quem impeça esse acesso, e a pretensão de exigir que essa informação seja, como anunciada por seu produtor, efetivamente jornalística. Essa ressalva se mostra necessária diante de uma teoria constitucional cada vez mais preocupada com a utilização de direitos subjetivos como referencial central para as suas decisões. Nessa esteira, não surpreende ver que um ponto muito debatido ao se julgar a ADPF-130 foi o relativo a compatibilizar a liberdade de expressão com outros direitos fundamentais individuais, como os direitos à honra e à imagem. Entretanto, com a imprecisão a respeito de se estar falando especificamente de informação jornalística ou de publicações em geral, não restou claro, nos debates, em que medida a qualidade de a informação ser jornalística pode readequar, em casos concretos, a fórmula de equilíbrio de direitos fundamentais ali aventada. A relevância, para o Direito, de a informação ser considerada com valor jornalístico (noticiabilidade, newsworthy), ocorre na medida em que o reconhecimento desse valor seja capaz de alterar a aplicação do quadro normativo geral, em regra fazendo recuar a aplicação de leis que de outro modo impediriam ou restringiriam a publicação da notícia. Um exemplo desse fenômeno pode ser visto diante de informações classificadas como sigilosas. Se alguém viola o dever jurídico de manter um segredo e o divulga sem justo motivo, expõe-se a sanções. Por conseguinte, se outrem ajuda essa divulgação conscientemente, poderá assumir a condição de co-autor ou partícipe, e por esse motivo ser punido. Porém, se essa informação é considerada de interesse geral, sua publicação na condição de informação jornalística pode ser qualificada como ato lícito, evitando a incidência do regime geral de responsabilização (e, por óbvio, destruindo o segredo). Na experiência dos Estados Unidos, exemplos muito citados dessa circunstância podem ser colhidos nos casos New York Times Co. v. United States13, em que a Suprema Corte 13

403 U.S. 713 (1971).

daquele país autorizou a publicação de documentos do Executivo sobre a guerra dos EUA contra o Vietnã; e Bartnicki v. Vopper14, no qual aquele Tribunal considerou que uma empresa de rádio, por ter obtido informações sigilosas sem ter agido de forma ilícita, poderia publicálas, mesmo sendo evidente que foram obtidas por terceiros ilegalmente, por meio de escuta telefônica não autorizada. Adicione-se que o núcleo desse entendimento foi espelhado pela Corte Constitucional Federal alemã em 1984, na decisão Wallraff/Bild15. No caso, tratou-se de uma ação oferecida pelo jornal Bild contra o jornalista Günter Wallraff, uma vez que este, disfarçado e usando nome falso, conseguiu ser contratado pela referida empresa, publicando em seguida um livro a respeito daquele jornal com base nas informações assim coletadas. A posição final do Judiciário foi a de que, embora a publicação de informação obtida por meios ilegais é em princípio proibida, tal poderá será excepcionado diante da importância dessa informação para a população, bem como para o debate e a formação da opinião pública. O ponto que se apresenta imediatamente ao debate diz respeito aos critérios empregados para decidir se a informação deve ser publicada em detrimento da violação de sigilo, bem como se tais critérios decorrem principalmente do direito individual de publicação, ou diferentemente, derivam do direito fundamental de a coletividade ser informada daquela situação, por se tratar de questão de interesse coletivo. Se a resposta concentrar-se na primeira opção, estaremos diante da predominante proteção de um direito individual; se prevalecer a segunda opção, estaremos diante da prevalente defesa de interesse jurídico de natureza metaindividual. Nesse segundo caso, então, problematizar-se-á também quem estará autorizado a proteger juridicamente esse interesse geral, por ação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ou por organizações e indivíduos externos aos entes estatais. No Brasil, essa questão foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal, ao dirimir, em 2002, a Pet 2702 MC-RJ16, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, no caso denominado, pela própria ementa do acórdão, “Caso O GLOBO X GAROTINHO”. O Tribunal considerou que a publicação da transcrição de conversas de telefone feitas pelo então Governador do Rio de Janeiro, Antony Garotinho, poderiam ser judicialmente obstadas, afirmando que, por se tratar de interceptação de comunicação telefônica, “(...) não há como se prestar peso relevante, na pondera-

14

532 U.S. 514 (2001).

15

BVerfGE 66, 116 1 BvR 272/81.

16

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Petição 2702-MC-RJ. Julgada em 18.09.2009. Relator: Min.Sepúlveda Pertence.

ção entre os direitos fundamentais colidentes, ao interesse público no conteúdo das mensagens vinculadas, nem a notoriedade ou ao protagonismo político e social dos interlocutores.”17. Ao que parece, pesaram nessa decisão18 a consideração sobre os interesses empresariais do grupo de comunicação em questão e o fato de a publicação ter sido programada nas imediações da disputa eleitoral à presidência da república. Em um contexto de predominância avassaladora de um grupo empresarial no plano da comunicação social e um histórico de interferências desse grupo em pleitos eleitorais, interferência orientada por expressiva, mas não declarada, preferência entre os candidatos na disputa político-eleitoral, dois elementos gerais, quais sejam, a liberdade de informação jornalística e a liberdade de escolha editorial, podem ter sido empregados para, em combinação com o emprego da posição dominante de mercado de comunicação e da seletividade de notícias publicadas, interferirem de modo nefasto na formação da opinião pública e sua consequente manifestação no sufrágio universal. No entanto, percebe-se com a leitura dessa decisão que a proteção do interesse coletivo à informação jornalística plena dificilmente será adequadamente justificada, em termos jurídicos, colocando-se ênfase tão só na defesa subjetiva individual oferecida pelos direitos fundamentais, em especial se isso é feito por meio de hermenêutica na qual prepondera tal faceta subjetiva e se reduz a importância da repercussão (dimensão) objetiva desse grupo de direitos no ordenamento jurídico, notadamente em detrimento de proteção de interesses metaindividuais. Como esclarece Meindl (2003, p. 253), “O reconhecimento desse caráter objetivo tem o efeito de conferir aos direitos fundamentais uma dimensão coletiva, por dizer universal, que lhes permite sair de sua dimensão de exclusiva defesa individual.”. Nessa linha, a presença de um capítulo da Constituição de 1988 relativo à Comunicação Social sugere que nesse bloco se encontra mais do que um reforço à proteção de direitos subjetivos individuais. Com efeito, a plena liberdade de informação jornalística prevista no art. 220, § 1º, da C.F. comanda não apenas a defesa individual dos envolvidos por essa liberdade perante o Estado (proteção negativa), mas também o dever estatal de o legislador organizar juridicamente o exercício dessa liberdade (proteção positiva), de modo a permitir e otimizar a presença de real atividade jornalística na esfera pública, garantir um espaço livre e plural de comunicação social e protegê-lo de modo efetivo em face de ameaças de natureza pública (v.g. censura política) ou privada (v.g. abuso de posição econômica dominante). Em reforço a essa abordagem, destaque-se que uma estrutura jurídica que garanta a múltipla produção e acesso à informação jornalística, oferecendo proteção jurídica não só a 17

Cf. pag. 18 do Acórdão, item 64.

18

Cf. Ibidem, item 67.

interesses individuais, mas também a interesses metaindividuais, é justamente o estabelecido pelo art. 11.2 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia 19, problema que foi abordado como tema e preocupação central do documento “Medias Livres e Plurais para sustentar a Democracia Europeia”, relatório final do Grupo de Alto Nível para a Liberdade e Pluralismo dos Media, grupo independente de estudos constituído pela União Europeia20. O relatório considerou não apenas a importância da liberdade para os meios de comunicação, mas também a necessidade de que eles ocorram com pluralidade de exercício, assim afirmando: A democracia requer uma esfera pública bem informada, inclusiva e pluralística. Os agentes de comunicação social (media) são em grande parcela, os criadores bem como os “editores” dessa esfera pública. Ao atuarem, eles se tornam os titulares de um poder considerável e podem assumir a posição de um “quarto poder” na sociedade. Ao mesmo tempo, a função de mocrática da mídia e sua dimensão como serviço público pode ser ameaçada, seja por interferência política, seja por influência comercial indevida, seja pelo progressivo desinteresse social e indiferença geral por parte do público.21

Registre-se, ademais, que a definição do que está envolvido por esse interesse coletivo, desse modo tornando juridicamente protegida a divulgação dos respectivos acontecimentos em função de seu conteúdo, revela-se um dos problemas centrais na relação do jornalismo com o Direito. Essa afirmação se justifica, entre outros motivos, por a resposta dessa questão auxiliar no traçado da fronteira entre o que se permite ao jornalismo para atender ao interesse geral e a proteção da privacidade, a qual, é de se lembrar, não se confunde necessariamente com a proteção à honra ou a imagem da pessoa humana. É importante notar que o texto narrativo, particularmente o jornalístico, feito por profissionais experientes, pode trazer múltiplas camadas de discurso e informação, as quais podem referir-se a problemas jurídicos diferentes. Aliás, nesse tema, é importante clarificar tais diferenças. Veja-se, para tanto, o decidido pela Corte de Apelações da Califórnia22, como citado por Zelezny (2006, p. 183-184): o jornal publicou notícia sugerindo que a presidente do grêmio estudantil não era uma mulher, 19

Cf. o art.11 da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia: Artigo 11- Liberdade de expressão e de informação: (1). Todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras. (2). São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social. 20

UNIÃO EUROPEIA. A free and pluralistic media to sustain European democracy. The report of the HighLevel Group on Media Freedom and Pluralism. Janeiro de 2003. Disponível em https://ec.europa.eu/digitalagenda/sites/digital-agenda/files/HLG%20Final%20Report.pdf (acesso em fevereiro de 2014) 21

Ibidem, p. 10. No original: “Democracy requires a well-informed, inclusive and pluralistic public sphere; the media are, to a large extent, the creators as well as the “editors” of this public sphere. In this they become the holders of considerable power and may come to assume the status of a “fourth estate” within society. At the same time, the public service aspect and democratic function of media can come under threat either through political interference, undue commercial influence, or increasing social disinterest and indifference on the part of the general public.” 22 Diaz v. Oakland Tribune, 188 Cal. Rptr 762 (1983).

mas sim um homem. Constatou-se nos autos que ela era transexual, tendo feito cirurgia corretiva, o que sempre preferira manter em segredo. Em sua decisão, o Tribunal considerou que as alegações da defesa, feitas no sentido de que se estaria diante de legítimo interesse (legitimate public interest) a que as pessoas fossem informadas desses fatos, não alterava a constatação de que a notícia fora redigida de modo tão ofensivo que autorizava o júri a averiguar se o colunista, ao construir o texto, agira com a manifesta intenção de ofender ou humilhar a pessoa ali referida. Outra quadra de problemas jurídicos que advém da proteção qualificada à informação jornalística refere-se à atividade de produzi-la. O Tribunal Pleno do STF tocou em parte nessa questão no julgamento do RE 511.961-SP23, Rel. Min. Gilmar Mendes, decisão em que considerou o Decreto-Lei n° 972/1969 não recepcionado pela Constituição de 1988. Na respectiva ementa, o STF dispôs que “(...) O jornalismo é a própria manifestação e difusão do pensamento e da informação de forma contínua, profissional e remunerada. Os jornalistas são aquelas pessoas que se dedicam profissionalmente ao exercício pleno da liberdade de expressão”. Seguindo essa dicção, o STF parece conceber o jornalismo como uma atividade geral de publicação de ideias, e como jornalistas, as pessoas que são pagas para criá-las e publicálas. Nessa abordagem, então, o conceito de informação jornalística dissolve-se na sugestão de que jornalismo envolveria tudo o que seja publicado como manifestação do pensamento. No entanto, é de se considerar que, com o decréscimo dos custos de publicação de textos, a possibilidade de qualquer pessoa produzir e publicar qualquer narrativa, inclusive informação jornalística, tornou-se mais presente. Nesse sentido, a diluição da informação jornalística na noção de que ela seria sinônima de qualquer expressão publicada do pensamento acaba por gerar impasses de difícil solução. Por exemplo, se jornalismo é simplesmente publicar (liberdade de expressão e manifestação de pensamento), e jornalista é quem cria e publica de modo contínuo, tais balizas amplas acabam por estabelecer uma noção conceitual capaz de envolver quem quer que crie narrativas e as publique. Um problema imediato surge quando se procura compatibilizar essa noção ampla com outras diretrizes constitucionais. De modo mais direto, pode-se elaborar um questionamento imediato a respeito da proteção ao sigilo como oferecida pelo Art. 5º, XIV, da CF: todos os que publicam estarão, por esse motivo, autorizados a alegar o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional? Em caso de eventual afirmativa, deverá o sigilo se restringir a situações de interesse geral? Na mesma linha, caberá indagar, relativamente ao exercício pro23

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 511.961-SP. Julgado em 17.06.2009. Relator: Min.Gilmar Mendes.

fissional do jornalismo, se o acesso privilegiado aos órgãos públicos que ocorre, por exemplo, mediante o assim chamado credenciamento de jornalistas, tornar-se-á direito de qualquer pessoa que faça e publique textos em que manifesta suas ideias. A partir desses questionamentos percebe-se que qualificar a produção da informação jornalística essencialmente como um problema geral de direito da personalidade, a ser regrado pelas disposições atinentes a essa classe de direitos individuais, pode esmaecer diferenciações constitucionalmente estabelecidas, assim diminuindo a força normativa de dispositivos da Constituição que tratam da inequívoca relevância da informação jornalística produzida por atividade profissional direcionada à comunicação social. Nessa linha não foi definida, ainda, qual a responsabilidade a ser exigida do profissional jornalista se este, desconsiderando a promessa pública de relatar a realidade, maliciosamente divulgar em meios de comunicação de massa afirmações falsas, por motivos pessoais ou econômicos (notoriedade pessoal, publicidade de produtos), particularmente se dessa falsidade não se verificar violação a direito de personalidade alheio. Igualmente é de se questionar se tal responsabilidade envolveria o veículo que estimula essa publicação com intuito de lucro ou concorrência desleal. Em face do atual silêncio, não está claro, pois, se esse interesse geral à lealdade e veracidade da informação jornalística é tutelável juridicamente e, em caso de resposta positiva, por quais sujeitos e respectivos instrumentos jurídicos, embora o STF tenha reiterado enfaticamente a importância da informação jornalística para o debate público e o exercício da democracia. 6 SÍNTESE CONCLUSIVA Ao iniciar o ano de 2014, Chelsea (antes Bradley) Manning está presa indefinidamente, e corre o risco de ser executada pelos Estados Unidos, sob a acusação de ajudar o inimigo; Julian Assange está confinado em uma embaixada na Inglaterra, sem poder sair, pois corre o risco de ser preso e extraditado; e Edward Snowden está temporariamente asilado na Rússia, ameaçado de igual destino. Seus problemas decorrem, basicamente, de prestar informações governamentais sigilosas a jornais, que as publicaram sem impedimento jurídico. Qualquer dúvida sobre a importância dos interesses e valores que envolvem a informação jornalística no Séc. XXI é dissipada pelo debate mundial que ora gravita em torno desses três personagens. A falta de consenso a respeito de como tais situações devem ser resolvidas com justiça bem mostra a atualidade da observação de Smolla (1993, p. 22-23), no sentido de que a disciplina contemporânea da liberdade de expressão se insere num campo em que as respostas simples

geralmente têm vida curta (the shortcomings of all simple answers). Como observa esse autor, proteções à liberdade de expressão que se pretendem absolutas acabam por não funcionar, a história jurídica do instituto normalmente não ajuda a solucionar os litígios mais recentes, e o ajuste da posição preferencial constitucionalmente determinada à liberdade de expressão acaba por envolver numerosos detalhamentos. É de se comemorar, pois, que a ADPF 130-DF tenha inaugurado a modernização desse debate no Brasil, celebrando-se mais ainda o fato de que o julgado resultante tenha se posicionado majoritariamente no sentido de apoiar a plena liberdade de informação jornalística. Apresenta-se agora o desafio de como se avançar nessa direção compatibilizando os diversos interesses individuais e coletivos que devem ser assegurados por meio da assim constitucionalmente estabelecida, ordem jurídica da comunicação social. Como defendido neste ensaio, um caminho jurídico para melhorar esses avanços decorre de se adotar uma concepção mais precisa do que significa jornalismo e informação jornalística, bem como a identificação do conteúdo e extensão dos direitos que lhe tomam com objeto. Ademais, é importante perceber que esse debate não se limita aos modos de atender a direitos individuais, mas que estão presentes interesses sociais de grande relevância política e social, que merecem não só proteção jurídica, como também os meios para efetivá-la. Acima de tudo cumpre lembrar que as práticas herdadas do uso disseminado e contínuo da censura no Brasil ao longo de muitos séculos encontraram, na decisão que solucionou a ADPF 130-DF, um relevante obstáculo. Nesse contexto, a afirmação ali proferida de que existe, sim, um espaço de liberdade para a informação jornalística que não poderá ser tocado pelo Estado, é plena de sentido. No entanto, delinear esse espaço, bem como a permanente relação de seus limites com outros indisponíveis interesses da cidadania é um fascinante desafio posto hoje à sociedade brasileira. No debate que se seguirá ao longo dos anos sobre esse tema, mostra-se importante permanecer em nossas vistas a advertência do Supremo Tribunal Federal, no sentido que não serão aceitas leis e decisões judiciais que, desconsiderando a plena liberdade de informação jornalística garantida pela Constituição de 1988, acabem por esvaziar as marcadas características dessa forma de comunicação social, para assim destituí-la de importância jurídica em prol de outros produtos culturais oferecidos pelas empresas que atuam nesse mercado.

REFERÊNCIAS ADAM, Gordon Stuart. Notes towards a definition of journalism: understanding an old craft as an art form. St Petersburg-FL: Poynter Institute for Media Studies, 1993. BENETTI, Márcia. Revista e jornalismo: conceito e particularidades. In: TAVARES, Frederico. SCHWAAB, Reges. A revista e seu jornalismo. Porto Alegre: Penso Ed., 2013. FRANCA, Geminiano da. A imprensa e a lei. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco: 1936. GOMES, Wilson. MAIA, Rousiley. Comunicação e democracia: problemas e perspectivas. São Paulo: Paulus, 2008. HARCUP, Tony. Journalism: principles and practice. London: SAGE Publications Ltd, 2009. LEVY, Leonard W. Emergence of a free press. Oxford: Oxford University Press, 1985. MEINDL, Thomas. La notion de droit fondamental dans les jurisprudences et doctrines constitutionnelles françaises et allemandes. Paris: L.G.D.J., 2003. OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Direito, política e filosofia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. ROCHE, Daniel. A censura e a indústria editorial. In: DARTON, Robert. ROCHE, Daniel. Revolução impressa: a imprensa na frança (1775-1800). São Paulo: Edusp, 1996. SEIXAS, Lia. Gêneros jornalísticos: partindo do discurso para chegar à finalidade. In: MELO, José Marques, LAURINDO, Rosemméri, ASSIS, Francisco. Gêneros jornalísticos: teoria e praxis. Blumenau: Edifurb, 2012. SMOLLA, Rodney. Free speech in an open society. New York: Vintage Books, 1993. UNIÃO EUROPEIA. A free and pluralistic media to sustain european democracy. The report of the High-Level Group on Media Freedom and Pluralism. Janeiro 2003. Disponível em: https://ec.europa.eu/digital-agenda/sites/digital-agenda/files/HLG%20Final%20 Report.pdf (acesso em fevereiro de 2014) WACHSMANN, Patrick. La liberté d’expression. In: CABRILLAC, Rémy. FRISONROCHE, Marie-Anne. REVET, Thierry. Libertés et droits fondamentaux. Paris: Dalloz, 2005. ZELEZNY, John D. Communications law: liberties, restraints, and the modern media. Belmont: Thomson, 2006.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.