Jornalismo em Quadrinhos e Internet: uma análise da apropriação das potencialidades da convergência midiática

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Abreviação de Histórias em Quadrinhos.
Abreviação de Jornalismo em Quadrinhos.

Jornalista e quadrinista maltês radicado nos Estados Unidos.
Richard Felton Outcault (1863-1928) foi um quadrinista americano.
Quadrinista americano que se destacou no movimento underground dos quadrinhos nos anos 1960 e 1970. Em 1992, Spiegelman ganhou um prêmio Pulitzer especial (o prêmio não prevê a categoria quadrinho) pela publicação da obra gráfico-narrativa Maus, que narra a luta de seu pai, um judeu polonês, para sobreviver ao Holocausto.
Na verdade, é possível questionar essas datas, pois a arte sequencial acolhe uma variedade ilimitada de estilos, conteúdos e meios físicos, o que faz retroceder o nascimento dos quadrinhos em, pelo menos, 3 mil anos. Desde as cavernas, antes da palavra escrita, esse registro é feito com o uso de imagens. Monumentos, paredes e papiros egípcios, 70 metros de tecido bordado (conhecida como Tapeçaria de Bayeux, do século XI), esculturas em baixo-relevo em uma coluna de pedra (coluna de Trajano, do ano 113 d.C.) ou desenhos ziguezagueando uma pele pintada sanfonada (o Códice Nutall, do México pré-colombiano) contavam a vida e os feitos de pessoas importantes por meio de sequências gráfico-narrativas que apresentavam todas as características fundamentais da técnica quadrinística. Narrativas históricas e biográficas como essas também são encontradas na Mesopotâmia, na antiguidade mediterrânea, no Oriente e na América Pré-Colombiana (MCCLOUD, 2006, p. 200 - 201).
Um dos primeiros periódicos a utilizar desenhos para reproduzir visualmente os acontecimentos como parte da informação jornalística (DUTRA, 2003, p. 43).

Na visão de Dutra, o veículo mais adequado para as reportagens em quadrinhos é o livro-reportagem, em função deste formato buscar relações diferentes com o leitor do que as que o jornalismo tradicional estabelece nos jornais e nas revistas semanais e mensais e até mesmo no jornalismo eletrônico. "Duas características do livro-reportagem serão especialmente importantes para as reportagens em quadrinhos. A primeira refere-se ao fato de o livro-reportagem buscar uma permanência maior que a do jornalismo mais ligeiro (e descartável) das mídias tradicionais e almejar tocar o leitor mais pela razão (e pela argumentação) que pela emoção instantânea e barata. Com sua elaboração mais lenta e cuidadosa, os livros-reportagem podem – e devem – ser mais profundos, abrangentes e detalhados que as matérias para jornais e revistas, tanto em seus recursos dissertativos e descritivos quanto em seus aspectos reflexivos e interpretativos. Histórias em quadrinhos, quando bem elaboradas, geralmente também são lentas para serem produzidas e não se prestam muito bem para uma cobertura jornalística diária, por exemplo. (...) A segunda característica do livro-reportagem importante para as reportagens em quadrinhos é a sua abertura para experimentações com outros procedimentos não jornalísticos. As origens da atual popularização do livro como suporte jornalístico estão intimamente ligadas ao new journalism e à heterodoxia de suas reportagens regadas com muitos recursos advindos de outras expressões, especialmente da ficção literária. O livro-reportagem tem, portanto, sedimentadas as bases para a incorporação do jornalismo em quadrinhos como uma de suas tantas possibilidades. Quando inserido no âmbito do new journalism, o livro-reportagem em quadrinhos deixa de ser um objeto único e esdrúxulo e acaba funcionando como uma das tantas outras possibilidades dentro da gama de recursos à disposição do jornalista" (2003, p. 55-56).
Também referidas neste trabalho como webcomics ou quadrinhos online.

Abreviação, em inglês, de Drug Enforcement Administration.


O movimento Occupy foram protestos que ocorreram pelo mundo contra a desigualdade social e econômica. O primeiro protesto a ganhar destaque foi o Occupy Wall Street, na cidade de Nova York em 17 de setembro de 2011. Em 9 de outubro daquele mesmo ano, o movimento se espalhou por 951 cidades de 82 países.

Meio de informação que permite aos usuários publicarem breves atualizações de imagem e texto com um número reduzido de caracteres (até 200, em geral).


The Open Society Foundations é uma organização que trabalha para construir democracias tolerantes e com governos responsáveis e abertos à participação de todos.






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FACULDADE CÁSPER LÍBERO







Karina Aurora Dacol







Jornalismo em Quadrinhos e Internet: uma análise da apropriação das potencialidades da convergência midiática
























São Paulo
2016

KARINA AURORA DACOL









Jornalismo em Quadrinhos e Internet: uma análise da apropriação das potencialidades da convergência midiática





Trabalho de conclusão de curso de Pós-Graduação lato sensu apresentado à Faculdade Cásper Líbero como requisito parcial para a especialização em Jornalismo.

Orientadora: Profª. Drª. Michelle Prazeres


















São Paulo


2016
KARINA AURORA DACOL




Jornalismo em Quadrinhos e Internet: uma análise da apropriação das potencialidades da convergência midiática





Trabalho de conclusão de curso de Pós-Graduação lato sensu apresentado à Faculdade Cásper Líbero como requisito parcial para a especialização em Jornalismo.

Orientadora: Profª. Drª. Michelle Prazeres




______________________

Data da aprovação


Banca Examinadora:



Prof. Dr.
Instituição:


Prof. Dr.
Instituição:
São Paulo
2016
AGRADECIMENTOS























Agradeço à minha mãe, por tudo e para sempre.

À Gay Talese, Tom Wolfe, Gabriel García Márquez, Joe Sacco, Will Eisner, João Guimarães Rosa e todos os outros jornalistas e escritores que me inspiram e me fazem companhia por meio de suas obras.

Aos meus amigos, que torcem por mim e me fazem ser uma pessoa menos sozinha e mais feliz. Muito obrigado pelos ótimos momentos.

Aos professores da Faculdade Cásper Líbero, em especial Prof. Dr. Dimas Künsch e Prof. Dr. Eugênio Menezes, pelo apoio, pelo carinho e pelas valiosas lições que aprendi com vocês.

À minha orientadora, Profª. Drª. Michelle Prazeres, pelo zelo, pelo apoio, pela preocupação e pela serenidade na orientação e autonomia e liberdade concedidas. Obrigada por tudo.

Ao colega de profissão e de objeto de estudo, Augusto Paim, pela inspiração e pelas trocas.

Ao Senac São Paulo, por me proporcionar a oportunidade de cursar essa pós-graduação.
























































Nenhuma forma de arte viveu numa caixa menor do que os quadrinhos nos últimos cem anos. Eu digo que devemos explodir o fecho!
(Scott McCloud)






RESUMO




Esta monografia desenvolve uma abordagem contemporânea das histórias em quadrinhos (HQs), mais especificamente do jornalismo em quadrinhos (JQ) produzido na e para a internet. A pesquisa aborda as transformações ocorridas no meio dos quadrinhos diante da disseminação das tecnologias digitais que caracterizam a cibercultura, apresentando o cenário da convergência com enfoque nas características do webjornalismo. A discussão parte das contribuições do new journalism para o desenvolvimento do JQ como linguagem e aborda as influências da tecnologia digital na produção e na difusão das HQs e as novas características que podem ser observadas. A pesquisa de campo concentrou-se na análise de reportagens do website holandês Cartoon Movement, que publica charges e reportagens em quadrinhos. O conceito de cibercultura foi fundamental para a reflexão, que partiu das características do webjornalismo para as indagações: como o JQ está se apropriando das potencialidades do meio online para contar suas histórias? Há uma efetiva utilização dessas potencialidades e estamos diante de uma mudança de paradigma ou estamos apenas perante uma transposição de formas oriundas do meio impresso para a internet? Este estudo conclui-se com algumas considerações sobre as apropriações dos recursos hipermidiáticos que o JQ online faz e/ou deixa de fazer.


Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos. Jornalismo em Quadrinhos. Webjornalismo. Cibercultura. Convergência.

SUMÁRIO





INTRODUÇÃO7

1 JORNALISMO E CIBERCULTURA10
1.1 O jornalismo de ontem: contribuições do new journalism para a narrativa jornalística10
1.2 O futuro que está sendo moldado hoje: o jornalismo no contexto da cibercultura12
1.3 As sete características do webjornalismo14
1.3.1 Hipertextualidade15
1.3.2 Multimedialidade16
1.3.3 Interatividade17
1.3.3 Memória18
1.3.4 Instantaneidade18
1.3.5 Personalização19
1.3.6 Ubiquidade20

2 JORNALISMO E QUADRINHOS22
2.1 Breve reflexão sobre mídia, linguagem e um mundo de possibilidades22
2.2 O quadrinho mostra e o jornalismo conta24
2.3 Quadrinhos na internet: ainda há muito o que explorar28

3 JORNALISMO EM QUADRINHOS E CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA31
3.1 Análise do uso dos recursos do webjornalismo nas reportagens do site Cartoon Movement 31
3.1.1 Down in Smoke32
3.1.2 So Close, Faraway34
3.1.3 Chicago is My Kind of Town35
3.1.4 International Criminal Court: Global Deterrent or Paper Tiger?37
3.1.5 Meet the Somalis38
3.2 As possibilidades da convergência39

CONSIDERAÇÕES FINAIS43

REFERÊNCIAS46



INTRODUÇÃO



Considerado um gênero de literatura e arte de menor prestígio, os quadrinhos foram deixados de lado por acadêmicos por tempo demais. O questionamento do escritor americano Jonathan Hennessey (2014), sobre por que a alta cultura venera a palavra escrita e as artes visuais separadamente, mas quando colocadas juntas, passa a considerá-las um produto juvenil é pertinente. Por décadas, a maior parte da produção de quadrinhos era, de fato, formada por obras para crianças ou adolescentes. A abordagem era escapista e sem relação com a realidade, contribuindo para a desvalorização da imagem do gênero, tido como inócuo. As produções quadrinísticas socialmente relevantes, provocativas e profundas existiam, mas eram uma minoria invisível, negligenciada e desconhecida.
Apesar de o gênero ser uma área ainda pouco explorada – e, em certa medida, ainda subestimada -, o interesse por ele vem crescendo nas últimas décadas, já que o poder da informação visual de um gibi aproxima e cativa leitores, além de facilitar a compreensão. Autores como Sonia Luyten, Álvaro de Moya, Will Eisner, Moacy Cirne desbravaram caminhos teóricos e metodológicos, enquanto Scott McCloud foi além e criou seus livros utilizando os quadrinhos para analisar eles próprios, provando que gibi não serve só para contar histórias.
Nesse período, a produção bibliográfica sobre HQs aumentou, mas ainda existem muitas lacunas a serem preenchidas, afinal, os quadrinhos já mostram faz um bom tempo que merecem que pesquisadores se debrucem sobre eles. Pelo seu caráter mutável, a psicologia, a sociologia e a filosofia, por exemplo, são campos que reúnem grandes ferramentas do conhecimento para compreender e estudar as HQs. Esses diferentes pontos de vista podem agregar novos caminhos teóricos e metodológicos à investigação do objeto.
Com o advento das tecnologias da informação e da comunicação, novas questões surgiram, bem como novas formas de divulgação de trabalhos e pesquisas na área. No entanto, a produção de HQs evolui mais rápido que a teoria, e por isso, até hoje, a maior parte da conceituação sobre quadrinhos ainda se baseia nas publicações impressas do gênero, principal formato desde o seu surgimento. Mas com a chegada e a popularização da internet, as possibilidades narrativas dos quadrinhos se expandiram. Nos últimos tempos, é possível observar a inserção de elementos multimídias nas reportagens do gênero. Inclusive, tem ficado mais difícil diferenciar uma reportagem em quadrinhos de outros tipos de reportagem multimídia, pois muitas vezes o quadrinho é apenas um elemento ao lado de outros (vídeos, fotos, links, animações, sons etc). Nesse sentido, o JQ tem seguido o caminho da própria linguagem dos quadrinhos, que se expande e incorpora outras linguagens, o que potencializa novos usos. Muitos desses trabalhos já nem podem mais ser impressos, pois trazem imagens em movimento ou áudios.
Assim, o objetivo desta pesquisa não é o de avaliar as qualidades jornalísticas das obras estudadas, mas sim o de investigar as potencialidades ferramentais e contextuais da convergência midiática para o gênero. Para isso, a pesquisa aborda as transformações ocorridas no meio dos quadrinhos diante da disseminação das tecnologias digitais que caracterizam a cibercultura, apresentando o cenário da convergência com enfoque nas características do webjornalismo. A análise das novas relações e possibilidades de produção e recepção de conteúdo digital quadrinístico proporcionadas pela convergência midiática é feita nas cinco reportagens em quadrinhos que utilizam recursos do jornalismo online mais acessadas do site holandês Cartoon Movement. Assim, é possível verificar o que já é feito em termos de convergência midiática aplicada ao jornalismo em quadrinhos e também identificar quais potencialidades poderiam ser (mais) exploradas nesse universo.
Ainda são poucos autores que desbravaram as potencialidades hipermidiáticas e aplicaram-nas aos quadrinhos. Ao se mapear a gradativa difusão dos quadrinhos na internet, parece que a maioria dessas histórias, jornalísticas ou não, encontraram uma espécie de fronteira nesse meio que, supostamente, é sem limites. Nesse contexto, não foram encontradas bibliografias a respeito da convergência midiática no jornalismo em quadrinhos especificamente. Por isso, este trabalho se concentra nas seguintes obras: na dissertação de mestrado de Antônio Aristides Corrêa Dutra, intitulada Jornalismo em Quadrinhos - a linguagem quadrinística como suporte para reportagens na obra de Joe Sacco e outros autores, em que ele analisa a linguagem quadrinística em diversas obras, com base na pergunta de o que pode acontecer numa reportagem-HQ que normalmente não acontece (ou que acontece em menor escala) em outras formas de jornalismo. Na obra de Henry Jenkins, Cultura da Convergência, que sustenta que a convergência das mídias (fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, cooperação entre múltiplos mercados midiáticos) é mais do que apenas uma mudança tecnológica; ela altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A palavra convergência consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais e será utilizada para definir a relação do jornalismo em quadrinhos com o online. O seu conceito é fundamental na argumentação. André Lemos contribui com suas obras para a reflexão sobre como o jornalismo se relaciona com outras instâncias de formação dos indivíduos hoje e o que muda no (papel do) jornalismo em condição cibercultural. Em Webjornalismo: 7 caraterísticas que marcam a diferença, uma coletânea de artigos de autores de diversos países estuda cada uma das particularidades que distinguem o jornalismo que se faz na web dos que se fazem noutros meios. É a partir dessas sete características que o corpus da pesquisa será analisado. Por fim, no livro HQtrônicas: do suporte papel à rede Internet, de Edgar Silveira Franco, quadrinista e um dos precursores dos estudos dos quadrinhos digitais. A obra trata da entrada dos quadrinhos para o meio digital e sua posterior difusão na Internet, por meio de um resgate histórico do momento em que o uso do computador pessoal passou a oferecer possibilidades únicas para as HQs.
Esta pesquisa se divide em três capítulos. No primeiro, o jornalismo é abordado pelo viés do new journalism, partindo para o jornalismo no contexto da cibercultura e a apresentação das sete características do jornalismo online. O segundo capítulo faz um breve resgate histórico dos quadrinhos e do jornalismo em quadrinhos e discute as experimentações com o uso de uma linguagem híbrida após o advento da internet.
O terceiro e último capítulo analisa as reportagens do site Cartoon Movement, investigando o uso das potencialidades da convergência na produção de JQ. Na construção desse trabalho, a bibliografia tradicional sobre HQs foi utilizada no intuito de contextualização histórica. Por fim, essa pesquisa pretende iniciar as discussões sobre as potencialidades hipermidiáticas aplicadas ao JQ e explorar possíveis caminhos para o futuro do gênero.

1 JORNALISMO E CIBERCULTURA


O jornalismo de ontem: contribuições do new journalism para a narrativa jornalística


O objetivo inerente e primordial do jornalismo é conquistar, por meio da palavra (e, no caso da televisão e da internet, também da imagem), leitores, espectadores e/ou ouvintes. Apesar das diferentes formas pelas quais o jornalismo se manifesta, que dependem do veículo utilizado na difusão das notícias - rádio, televisão, internet, revista, etc. -, o tratamento das informações possui características semelhantes. Todas as formas de jornalismo passam por apuração, processamento e transmissão de informações da atualidade que, posteriormente, são divulgadas em veículos de difusão coletiva.
Para elevar o nível do jornalismo praticado no mundo todo, no início dos anos 1960, alguns jornalistas começaram a pensar e executar reportagens especiais com apuração mais primorosa, destacando a experiência humana dos fatos relatados e com escrita mais elaborada, criativa e até divertida. Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer e Truman Capote são os principais expoentes desse gênero jornalístico, que acabou ficando conhecido como new journalism, novo jornalismo ou jornalismo literário. Esses repórteres acreditavam que era possível escrever jornalismo para ser lido como um romance, misturando a narrativa jornalística com características das narrativas literárias – e que isso era a mais sincera homenagem ao romance e aos grandes romancistas. Para tanto, se apropriaram de qualquer recurso literário que achassem válido, dos dialogismos tradicionais do ensaio ao fluxo de consciência.
Esse novo gênero surgiu em uma época em que os jornalistas perceberam que os romancistas abandonaram o realismo social, ou seja, deixaram de querer escrever sobre toda a sociedade americana. Os repórteres se apropriaram disso e, muito mais por instinto do que por teoria, começaram a descobrir os recursos que deram ao romance realista seu poder único, conhecido por seu "imediatismo", sua "realidade concreta", seu "envolvimento emocional", sua qualidade "absorvente" ou "fascinante" (WOLFE, 2005). E esse poder todo vinha de quatro artifícios apenas, descobriram eles. Só por meio das formas mais investigativas de reportagem era possível, na não-ficção, usar cenas inteiras, diálogos extensos, mudança de ponto de vista e monólogo interior, que são recursos realistas, subjacentes à qualidade de envolvimento emocional dos mais potentes textos em prosa, sejam eles de ficção ou de não-ficção. O uso exuberante de pontos, travessões, pontos de exclamação, itálicos e, ocasionalmente, pontuações que nunca existiram antes e de interjeições, gritos, palavras sem sentido, figuras de linguagem, a tipografia visivelmente diferente, ajudam, nesse novo jornalismo, a dar a ilusão não só de uma pessoa falando, mas de uma pessoa pensando.
Assim, com a construção cena a cena da reportagem, os jornalistas contam uma história passando de uma cena para outra cena e recorrem o mínimo possível à mera narrativa histórica. Já o diálogo realista envolve o leitor mais completamente e estabelece e define o personagem mais depressa e com mais eficiência do que qualquer outro recurso. A mudança de ponto de vista cria a ilusão de olhar a ação pelos olhos de alguém que estava de fato na cena e envolvido nela, em vez de um narrador "bege". Este recurso dá a sensação de estar dentro da cabeça do personagem, experimentando a realidade emocional da cena como o personagem a experimenta. Por fim, a descrição detalhada do status de vida dos personagens trata do registro dos gestos, hábitos, maneiras, costumes, estilos de mobília, roupas, decoração, maneiras de viajar, comer, manter a casa, modo de se comportar com os filhos, com os criados, com os superiores, com os inferiores, com os pares, além dos vários ares, olhares, poses, estilos de andar e outros detalhes simbólicos do dia-a-dia que possam existir dentro de uma cena. É o que o escritor francês Honoré de Balzac chama de "autópsia social" - o esforço em retratar um panorama de todos os aspectos da sociedade.
Nesse novo jornalismo não havia regras sacerdotais. Assim, os intrépidos repórteres não hesitavam em experimentar qualquer recurso concebível capaz de reter os leitores de algum modo por mais alguns segundos – qualquer coisa para não parecer o narrador de não-ficção comum, com voz velada, como o narrador de uma partida de tênis pelo rádio (WOLFE, 2005). A finalidade era excitar o leitor tanto intelectualmente quanto emocionalmente. O resultado dessas experimentações foi uma forma que não é meramente um romance. Afinal, os recursos já conhecidos da prosa foram combinados com um algo a mais: o poder de o leitor saber que tudo aquilo realmente aconteceu.
Para conseguir esses resultados, a apuração das reportagens envolve passar dias, às vezes semanas, com as pessoas sobre as quais se escreve - reunir todo o material que o jornalista convencional procura – e ir além. É importante estar presente quando ocorrerem as cenas dramáticas, para captar os diálogos, os gestos, as expressões faciais, os detalhes do ambiente. A ideia é dar a descrição objetiva completa, mais alguma coisa que os leitores sempre tiveram de procurar em romances e contos: a vida subjetiva e emocional dos personagens. O ponto de partida do repórter é invadir a privacidade de alguém e fazer perguntas que não tem o direito de esperar que sejam respondidas.
Em meio à enxurrada de informações que diariamente atinge o público, o new journalism é um esforço positivo que suscita um interesse maior pelo aspecto qualitativo das informações.
O leitor de hoje não quer apenas saber o que acontece à sua volta, mas assegurar-se de sua situação dentro dos acontecimentos. Isto só se consegue com o engrandecimento da informação a tal ponto que ela contenha os seguintes elementos: a dimensão comparada, a remissão ao passado, a interligação com outros fatos, a incorporação do fato a uma tendência e a sua projeção para o futuro (DINES apud RABAÇA; BARBOSA, 2001, p. 405).

Foi em meio à efervescência criativa dessa forma heterodoxa de pensar e fazer jornalismo que o livro se popularizou como suporte jornalístico. Assim como os expoentes do new journalism, os repórteres que trabalham com o jornalismo em quadrinhos almejam atingir o leitor pela razão e pela argumentação, e não por uma emoção efêmera. Este gênero jornalístico também exige uma elaboração mais lenta e cuidadosa, o que fez com que os livros-reportagem fossem o suporte mais adequado para as publicações, caracterizadas por conteúdos mais "profundos, abrangentes e detalhados do que as matérias para jornais e revistas, tanto em seus recursos dissertativos e descritivos quanto em seus aspectos reflexivos e interpretativos" (DUTRA, 2003, p. 55).


O futuro que está sendo moldado hoje: o jornalismo no contexto da cibercultura


Na contramão do movimento do jornalismo literário, com o surgimento, a popularização e o estabelecimento das tecnologias digitais como parte quase indissociável do cotidiano de muitas pessoas, a forma de consumir informações mudou: o público, mais conectado, acaba por dedicar pouco tempo à apreensão de conteúdo. Essa é uma das razões para Castells (2007) afirmar que o modelo atual de jornalismo está com os dias contados. A convergência das mídias transforma tanto as formas de produção, quanto as formas de consumo dos meios de comunicação.
A essa nova relação entre as tecnologias e a sociabilidade, que emergiu na década de 1970 e que configura a cultura contemporânea, dá-se o nome de cibercultura. Segundo Lemos (2004), o princípio que rege a cibercultura é a "re-mixagem", conceito que define o "conjunto de práticas sociais e comunicacionais de combinações" de informação, em que novos critérios de criação, criatividade e obra emergem. Na cibercultura, tudo comunica e está em rede, desde pessoas, até máquinas, objetos, cidades...

A cibercultura caracteriza-se por três "leis" fundadoras: a liberação do polo da emissão, o princípio de conexão em rede e a reconfiguração de formatos midiáticos e práticas sociais. Essas leis vão nortear os processos de "re-mixagem" contemporâneos. Sob o prisma de uma fenomenologia do social, esse tripé (emissão, conexão, reconfiguração) tem como corolário uma mudança social na vivência do espaço e do tempo. (LEMOS, 2004, p.1)

O jornalismo no contexto da cibercultura, assim como o radiojornalismo e o telejornalismo, que surgiram na primeira metade do século XX, apresenta novas características de linguagem e de agilidade, que integram um novo e intenso processo de renovação que se iniciou com a popularização da internet na virada do século XXI. É o "processo de convergência das mídias, fenômeno que confere ao jornalismo atributos de atualidade permanente e interatividade em tempo real" (RABAÇA; BARBOSA, 2001, p. 406). No emergente paradigma da convergência, toda história importante é contada por múltiplos suportes, resultando em formas cada vez mais complexas de interações entre as mídias.
Para Jenkins, convergência representa uma mudança de paradigma. É um conceito que define mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias circulam em nossa cultura. Em um cenário mais amplo, convergência se refere à conjuntura "em que múltiplos sistemas de mídia coexistem e em que o conteúdo passa por eles fluidamente" (JENKINS, 2008, p. 377), representando múltiplos modos de acesso aos conteúdos. Também representa uma interdependência entre os variados mercados midiáticos e o comportamento migratório do público e dos meios de comunicação em busca de experiências de entretenimento. Na era da cultura da convergência, velhas e novas mídias se relacionam de formas cada vez mais complexas: às vezes colidindo, às vezes se cruzando. Nela, o poder da cultura participativa e o da mídia corporativa interagem de maneiras imprevisíveis.
O conceito de convergência foi delineado, provavelmente pela primeira vez, como um poder de transformações na indústria midiática no livro Technologies of Freedom, de 1983, escrito por Ithiel de Sola Pool, que foi cientista político do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Henry Jenkins se refere a ele como "profeta da convergência dos meios de comunicação", em uma comparação com a proclamação de Marshall McLuhan pela revista Wired como o "santo padroeiro da revolução digital". Em sua obra, Pool fala que um processo chamado "convergência de modos" está redefinindo os limites entre os media:

Um único meio físico – sejam fios, cabos ou ondas – pode transportar serviços que no passado eram oferecidos separadamente. De modo inverso, um serviço que no passado era oferecido por um único meio – seja a radiodifusão, a imprensa ou a telefonia – agora pode ser oferecido de várias formas físicas diferentes. Assim, a relação um a um que existia entre um meio de comunicação e seu uso está se corroendo (POOL apud JENKINS, 2008, p. 37).

A estabilidade que os meios almejam nessa incessante dinâmica entre competição e colaboração nunca chegou, conforme previu Pool. Esse longo período de mudanças funciona como uma força constante pela unificação, mas o poder transformador da convergência ainda não permitiu que essa transição midiática "marcada por decisões táticas e consequências inesperadas, sinais confusos e interesses conflitantes e, acima de tudo, direções imprecisas e resultados imprevisíveis" (JENKINS, 2008, p. 39) apontasse para uma constância nesse processo contínuo. Por enquanto, o que é possível afirmar é que o que está acontecendo nessa fase do processo é uma reconfiguração midiática em que ambos os formatos permanecem e têm seus nichos de usuários assegurados. O que virá a seguir ainda é uma grande incerteza.
As rotinas produtivas jornalísticas são influenciadas pela tecnologia de difusão. A diferença é que essa convergência midiática permite uma integração de ferramentas, espaços, metodologias e linguagens antes desagregadas, o que possibilita que os jornalistas criem conteúdos para múltiplas plataformas (SALAVERRÍA; AVILÉS; MASIP, 2008 apud BECKER; BARREIRA, 2013, p. 75). Ainda assim, as características do jornalismo na web aparecem, em sua maioria, como continuidades e potencializações, e não efetivamente como rupturas em relação ao jornalismo pensado para suportes anteriores. Nesse sentido, o espaço ilimitado para a disponibilização de material noticioso é a "maior ruptura resultante do advento da web como suporte mediático para o jornalismo" (PALACIOS, 2003, p. 24).
As potencialidades que a internet oferece ao jornalismo desenvolvido para a web são possibilidades advindas das novas tecnologias de informação e comunicação. Esses recursos são empregados em maior ou menor escala e de maneiras diferentes pelos sites de conteúdo jornalístico, por razões técnicas, de conveniência, de adequação à espécie do produto oferecido ou ainda por questões de aceitação do mercado consumidor (PALACIOS, 2002). Vale ressaltar que não existe um modo correto, mais avançado ou mais apropriado da aplicação dos recursos que a web oferece ao jornalismo. As possibilidades são muitas e experimentações vêm sendo feitas há mais de uma década, implicadas pelas multiplicidades de formatos possíveis e complementares, que exploram, de modo variado, as potencialidades dessas novas tecnologias.


1.3 As sete características do webjornalismo


O desenvolvimento da internet transformou para sempre o jornalismo. Um dos destaques é o aparecimento das versões web dos meios tradicionais, além do surgimento de publicações nativas. Marcado por particularidades, o jornalismo que se faz na web reflete as potencialidades oferecidas pela internet.
Bardoel e Deuze (apud PALACIOS, 2002), em suas pesquisas sobre o ciberjornalismo, apontaram quatro potencialidades que o ambiente virtual permite desenvolver: interatividade, customização, hipertextualidade e multimidialidade. Palacios (1999 apud PALACIOS 2002), estabeleceu cinco características: multimidialidade/convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização e memória. Em 2002, em uma atualização de sua pesquisa, acrescentou a instantaneidade do acesso, que possibilitava a atualização contínua das informações como mais uma característica do jornalismo online. Nesta pesquisa, utilizaremos como base para a análise do corpus as setes potencialidades descritas no livro de 2014 "Webjornalismo: 7 caraterísticas que marcam a diferença". São elas: hipertextualidade, multimedialidade, interatividade, memória, instantaneidade, personalização e ubiquidade. A seguir, cada uma delas será brevemente descrita.


1.3.1 Hipertextualidade


Theodor Nelson, nos anos 1960, utilizou a palavra "hipertexto" pela primeira vez, definindo-a como uma escrita não sequencial, que permite que o leitor escolha uma dentre diferentes opções de leitura. De acordo com Canavilhas (2014, p.4), "na web, (...) o texto transforma-se numa tessitura informativa formada por um conjunto de blocos informativos ligados através de hiperligações (links), ou seja, num hipertexto".
O autor recupera algumas definições de outros autores que simplificam a compreensão da hipertextualidade, como a de Salaverría (2014, p. 5 - 6): "capacidade de ligar textos digitais entre si"; e a de Lévy, que fala de um "conjunto de nós (palavras, páginas, imagens, gráficos, etc.)" conectados por hiperligações, abrindo a possibilidade para o leitor traçar sua própria ordem de leitura. Como a web não tem as limitações espaciais de um veículo impresso, o jornalista concentra-se na estrutura da notícia e procura a melhor maneira de oferecer toda a informação disponível para o leitor, que escolhe em qual aspeto da notícia quer se aprofundar.

De uma forma geral, pode dizer-se que as notícias na web devem obedecer a arquiteturas abertas e interativas, permitindo uma resposta mais eficaz a duas tipologias de leitores: 1) os que procuram uma informação específica, e por isso estão disponíveis para explorar itinerários pessoais de leitura; 2) os que simplesmente navegam numa notícia e precisam de ser guiados pelas qualidades estruturais do formato (Lowrey & Choi, 2006). Esta situação remete para técnicas específicas de redação hipertextual e para arquiteturas abertas, existindo alguma variedade de propostas. (CANAVILHAS, 2014, p.10)

Ainda, é importante colocar que a hipertextualidade pode ser encontrada não apenas em suportes digitais, inclusive aqueles mais antigos, como o CD-ROM, mas igualmente em um objeto impresso e antigo como uma enciclopédia (PALACIOS, 2002). Ela pode ser caracterizada como uma continuidade, um recurso que foi potencializado pelos meios digitais.
1.3.2 Multimedialidade


A narrativa multimídia, um formato unitário e polifônico, emerge como um dos formatos mais inovadores do século XXI (BECKER; CASTRO, 2014). Para além de uma definição simplista, de que multimídia é uma combinação de texto, som, imagem e vídeo, aqui utilizaremos, considerando o viés desta análise, especialmente o terceiro dos três sentidos que Salaverría (2014, p. 26) aponta como principais deste conceito. São eles: 1) como multiplataforma, 2) como polivalência e 3) como combinação de linguagens. Esta terceira acepção do termo está muito presente no âmbito jornalístico, especialmente no jornalismo desenvolvido para a web, que multiplicou as possibilidades para o crescimento da narrativa multimídia. A convergência é possível devido ao processo de digitalização da informação e sua circulação e disponibilização subsequente em diversas plataformas e suportes, "numa situação de agregação e complementaridade" (PALACIOS, 2002). No entanto, é importante frisar que para uma transmissão de informação ser multimídia, basta que coincidam duas linguagens, sejam elas quais forem (SALAVERRÍA, 2014). Assim, fica claro que, apesar de potencializar a característica, a multimedialidade não é um patrimônio exclusivo da internet. Diante disso, qualquer reportagem em quadrinhos, com desenhos e textos é, por si só, uma reportagem multimídia. No entanto, ao empregar as potencialidades que a convergência oferece, como sons, referências fotográficas, hiperlinks, etc., o jornalismo em quadrinhos ganha outra dimensão de profundidade.
Para Savazoni e Deak (2007), a reportagem multimídia é uma obra aberta, em que caminhos "aparentemente desconexos se integram num todo multiforme" e cabe ao repórter encontrar as narrativas, as diferentes camadas da história que vão direcionar cada um desses caminhos.

(1) A narrativa principal deve ter começo, meio e fim. O usuário que caminhar apenas por essa infovia tem o direito de abandoná-la sentindo-se informado. (...) (Apenas aqui é preciso lembrar que a mesma história pode ser contada de maneiras diferentes, portanto a narrativa é, em última análise, uma escolha, uma opção e não necessariamente uma obrigação decorrente da história. Evidentemente que a história pode sugerir uma narrativa específica, mas ela pode ser adotada ou subvertida, conforme a necessidade ou vontade). O essencial – não o fundamental – deve ser trabalhado nesta camada da história. O fundamental é tudo que faz parte da reportagem. Se não for, deve ser jogado fora.
(2) O repórter pode usar a narrativa secundária para o aprofundamento da narrativa principal. (...) O repórter entrevista um líder quilombola. O repórter oferece além de trechos da fala desse líder a íntegra de sua conversa com o líder. Cenas que não estariam à disposição do usuário. (...) A narrativa secundária pode servir também para (des)construir a narrativa principal. Serve a qualquer interesse do repórter. A narrativa secundária deve existir, porque é por meio dela que estabelece o jogo de interação da rede. Sem ela, temos nas mãos apenas uma história linear (...).
(3) A narrativa terciária pode ser tudo o que a secundária é. Pode e não pode existir. Quando existe, qualifica o trabalho. (...). É o espaço ideal para pendurar textos explicativos, links internos e externos, informações adicionais (...). Não há fim da linha. Não há regras. (SAVAZONI e DEAK, 2007)

Segundo Becker e Castro (2014, p.347), há interesse do mercado e da academia nessas experimentações com a narrativa jornalística, mas essas produções pedem o pleno aproveitamento dos potenciais da hipertextualidade e da interatividade e demandam muito mais trabalho do que a simples, rápida e fácil transposição de conteúdos produzidos por outros suportes - mais condizente com a realidade do cotidiano das redações. Em vista disso, "a construção de reportagens mais contextualizadas e inventivas é uma ação de resistência ao imediatismo e à velocidade dos fluxos de informação que tendem a esvaziar os valores simbólicos das notícias".
Salaverría (2014, p. 33) identifica oito elementos que podem integrar um conteúdo multimídia: 1) texto; 2) fotografia; 3) gráficos, iconografia e ilustrações estáticas; 4) vídeo; 5) animação digital; 6) discurso oral; 7) música e efeitos sonoros; 8) vibração. Nesse sentido, vale apontar que "apesar da comunicação multimédia ter dado especial realce aos formatos gráficos e audiovisuais, na era da internet o conteúdo textual continua a ser um elemento chave". Isso acontece principalmente em detrimento do caráter mais racional e interpretativo que o conteúdo textual apresenta. Mas o impulso que a internet deu à imagem como elemento constituinte em todas as modalidades da narrativa multimídia também é inegável.


1.3.3 Interatividade


A interatividade é um dos pilares da linguagem web. Ela é a ponte entre os leitores usuários da rede e os jornalistas, e possibilita uma certa transferência de poder do meio para os utilizadores, que se sentem mais diretamente como parte do processo jornalístico. É o potencial para responder ao feedback do leitor (JENKINS, 2008, p. 382). Rost (2014, p. 55) define interatividade como "a capacidade gradual que um meio de comunicação tem para dar maior poder aos utilizadores tanto na seleção de conteúdos ('interatividade seletiva') como em possibilidades de expressão e comunicação ('interatividade comunicativa')".





1.3.4 Memória


Técnica e economicamente, o acúmulo de informações é mais viável na internet que em outras mídias (PALACIOS, 2002). Nesse sentido, o lugar do jornalismo pode ser entendido como "espaço vivo de produção da atualidade, lugar de agendamento imediato, e igualmente lugar de testemunhos, produtor de repositórios de registros sistemáticos do cotidiano, para posterior apropriação e (re)construção histórica" (PALACIOS, 2014, p. 90). Como consequência desse potencial, os textos jornalísticos ganharam uma nova estrutura:

Não somente tornou-se mais fácil para os jornalistas incorporarem elementos de memória na produção do texto (comparações, analogias, nostalgia, desconstrução etc.), mas igualmente tornou-se praxe uma forma de edição que remete à memória. Textos relacionados passam a ser indexados hipertextualmente (Leia mais; Veja também; Notícias relacionadas etc.), seja através de um trabalho de edição humana, seja por um processo (nem sempre bem-sucedido!) de associação algorítmica, através de tags e palavras-chave dos textos estocados nos arquivos e bases de dados dos veículos (PALACIOS, 2014, p. 97).

Ou seja, a memória e sua preservação estão presentes na produção dos textos jornalísticos, informando o contexto, permitindo o aprofundamento e possibilitando formas de narrativas diferenciadas, com modos de incorporação desse recurso em diferentes formatos.


1.3.5 Instantaneidade


Conforme aponta Bradshaw (2014, p. 115), historicamente, as limitações físicas dos processos de produção de notícias impunham restrições, pois cada etapa dependia da anterior para ser desenvolvida. Na cibercultura, a instantaneidade em publicar um conteúdo jornalístico não depende mais de impressoras ou da grade de programação da TV ou do rádio. Hoje em dia, essa característica não está mais restrita à publicação, que combinada à rapidez do acesso e à facilidade de produção e de distribuição, se tornou extremamente ágil: ela também está presente no consumir e no distribuir.




O desafio fundamental é que agora as notícias estão a ser produzidas sem as limitações do espaço físico que sustentava a organização das redações. A captação de notícias, a produção e distribuição podem, agora, ocorrer simultaneamente – e serem potencializadas. (...) Neste contexto, não é suficiente falar apenas em "velocidade". Imediaticidade seria uma melhor palavra a ser empregada. Esta é uma qualidade que se faz sentir em todas as notícias, em que os usuários podem agora ultrapassar o jornalista e a estória, chegar à testemunha, à cena; ao que está ocorrendo no momento.
Isso cria uma pressão para simplificar o processo editorial e o número de estágios que o repórter precisa passar até a publicação/distribuição. O fato de que o jornalista pode publicar sem o filtro editorial é tão significativo quanto o de que qualquer um possa fazê-lo (BRADSHAW, 20014, p. 116).

No que diz respeito à realidade de produção do jornalismo em quadrinhos, a instantaneidade acaba por ser uma limitação do gênero. Afinal, fazer uma reportagem em quadrinhos é um trabalho que pode levar meses, ou até mesmo anos para ser finalizado.


1.3.6 Personalização


A personaliza ão é a característica do webjornalismo que permite atender às diferentes necessidades dos usuários, com base em preferências. Ainda pouco explorada pelos media, essa potencialidade consiste em oferecer ao leitor um produto jornalístico configurado de acordo com seus interesses individuais. Um dos motivos, segundo Lorenz (2014), é o uso de métricas em detrimento do estabelecimento de uma relação de confiança com o usuário. Ele sugere que os meios pensem seus conteúdos para audiências que podem ser pequenas, talvez composta por uma só pessoa, mas que estejam altamente envolvidas. Para o autor, passar a pensar na personalização com abordagens novas pode trazer a renovação (e a rentabilização) que os meios de comunicação vêm buscando na web:

Poderíamos desenvolver estratégias que são precisamente o oposto ao que vemos hoje? Poderíamos encontrar formas de tornar o tempo de utilização do conteúdo consideravelmente mais longo, não sem atenção, mas fora das necessidades de contexto mais profundo, respostas claras e ajuda real com decisões difíceis? Poderíamos prolongar o uso de notícias e informação de segundos a minutos ou mesmo horas, semanas, meses ou anos? Para os produtores de notícias que estão acostumados a produzir um produto perecível de atualização diária, isso seria algo novo. O produto notícia iria transformar-se em algo mais parecido com um livro um conjunto de informações, talvez sobre um só tema ou sobre um interesse particular do utilizador. Tais serviços e produtos poderiam ser vendidos se atingissem o nível de qualidade e interesse necessário para convencer os utilizadores de todo o mundo. (LORENZ, 2014, p. 138).


Os livros-reportagem de Gay Talese, Tom Wolfe e Joe Saco, para citar apenas alguns exemplos, cumprem um papel semelhante ao que Lorenz se refere. São obras sobre um ou mais temas que, mesmo tendo sido produzidas há décadas, ainda são referenciais indispensáveis para a abordagem de alguns temas e como registro histórico. Um exemplo é a obra Hiroshima, do norte-americano John Hersey. O artigo, que descreve como os bombardeios de Hiroshima e Nagasaki afetaram a vida de seis indivíduos, foi publicado em 31 de agosto de 1946 na revista The New Yorker, sendo a única matéria da revista naquela edição - que esgotou-se em poucas horas. Pouco depois, o relato foi publicado em livro, tamanha sua relevância e atualidade. Questionar, pensar e repensar o jornalismo online é necessário, mas as respostas só podem vir com a aplicação prática dessas potencialidades, e cabe aos executivos, editores e jornalistas se disporem a essas experimentações.


1.3.7 Ubiquidade


A ubiquidade é sinônimo de onipresença, ou seja, a capacidade de estar, de ser encontrado em todo lugar - inclusive simultaneamente. Isso significa que, no contexto da mídia, "qualquer um, em qualquer lugar, tem acesso potencial a uma rede de comunicação interativa em tempo real" (PAVLIK, 2014, p. 160). Assim, qualquer usuário pode acessar conteúdos e ainda contribuir com eles e com seu compartilhamento. Neste cenário, o autor observa que as fontes também estão cada vez mais ubíquas, e incluem câmeras de vigilância e segurança, por exemplo.

A internet móvel com tecnologia ubíqua está, em muitos sentidos, alimentando a concretização da aldeia global de Marshall McLuhan (1964). O jornalismo tem a oportunidade de se juntar a esta aldeia global de forma significativa. Notícias acontecem em toda a parte. No entanto, na era da mídia analógica, parecia ser impossível e certamente impraticável para os jornalistas ou para as organizações de mídia estarem em todo lugar o tempo todo para cobrir os acontecimentos. Na era digital, esta situação está mudando. Com a banda larga ubíqua, especialmente com a tecnologia wireless, a conectividade móvel está redefinindo os preceitos básicos do jornalismo e da mídia. (PAVLIK, 2014, p. 164)

Essa potencialidade do webjornalismo aponta, segundo Pavlik (2014, p. 164 - 179), para quatro consequências para o jornalismo no século XXI: a emergência do jornalismo cidadão ao redor do mundo; o crescimento de novas formas narrativas geolocalizadas e imersivas; o crescimento do Big Data e do jornalismo orientado por dados (que estão transformando o jornalismo, provendo os meios para fornecer contexto a reportagens que possuem poucos fundamentos); e o declínio da privacidade e sua substituição por uma sociedade da vigilância global. Assim, ao permitir a contribuição e a participação ativa dos cidadãos no fluxo informacional, no mundo conectado, o valor do jornalismo na sociedade se expande.
Todas essas sete características, que aqui são vistas como continuidades e potencializações, e não necessariamente rupturas, representam mudanças profundas no modo de fazer e de consumir jornalismo. Como visto, essas transformações são provocadas não só por experimentações, mas também por necessidades sociais, e são intrínsecas à característica vanguardista do jornalismo. É uma articulação complexa e dinâmica de diversos formatos jornalísticos, em diversos suportes, convivendo e se complementando no espaço midiático (PALACIOS, 2002). A combinação dessas características potencializadas tem a capacidade de gerar novos efeitos – alguns, conforme visto, já são "velhos" conhecidos. Outros, ainda estamos por apreender e experimentar.
De posse dessas informações, teremos condições de, no segundo capítulo, adentrar o universo dos quadrinhos, especificamente do jornalismo em quadrinhos, e compreender suas possibilidades gráfico-narrativas no âmbito da convergência das mídias, bem como analisar algumas reportagens no terceiro capítulo.

2 JORNALISMO E QUADRINHOS


Breve reflexão sobre mídia, linguagem e um mundo de possibilidades


Em meio à demanda de inovações e renovações no jornalismo, as formas, técnicas e gêneros inflexíveis já não se sustentam mais. Novos paradigmas são indispensáveis e é preciso repensar as linguagens e as plataformas empregadas. Texto e imagem sobrepõem-se, confundem-se, entrecruzam-se, completam-se, juntam-se, separam-se. Essas hibridizações produzem experiências ricas tanto nos processos de criação quanto de recepção do conteúdo, facilitando a compreensão da mensagem e promovendo uma reflexão diferenciada, pressupondo uma nova leitura e uma nova produção de significado (MOURA, 2014).
Nesse cenário, se destacam as histórias em quadrinhos. Will Eisner (1917 - 2005) foi um renomado quadrinista americano, que conferiu aos quadrinhos uma nova perspectiva e o status de arte. Para Eisner (2001), ler uma obra em quadrinhos é um exercício de percepção, pois a absorção das linguagens sobrepostas não ocorre de forma isolada, o que abre espaço para significações. Nesse sentido, há um grupo de teóricos franceses, o OuBaPo – Ouvroir de Bande Dessinée Potencielle, que pesquisa o "'quadrinho potencial', ou novas possibilidades quadrinísticas ainda inexploradas ou pouco utilizadas" (DUTRA, 2003, p. 5). No livro OuBaPo OuPus 1, lançado em 1997, esses pensadores propuseram "histórias em quadrinhos com múltipla direção de leitura, quadrinhos aleatórios e palimpsestos quadrinísticos (com texto reescrito, aproveitando-se apenas os desenhos de outra história), entre outros jogos formais" (DUTRA, 2003, p. 5). Na obra, os autores questionam se o quadrinho deve ser necessariamente impresso, se precisa apresentar personagens em ação ou apresentar uma narrativa, por exemplo.
Todas essas possibilidades se apresentam porque as histórias em quadrinhos são tanto uma linguagem quanto uma mídia, completas e independentes. Como linguagem, os quadrinhos são híbridos e plurais e sempre abertos a renovações gráfico-narrativas. A linguagem da nona arte conta com um arsenal de recursos e possibilidades técnicas, narrativas e estilísticas. É orientado por essas escolhas que o artista expressa o tom que a obra terá. Ao analisar os quadrinhos como uma mídia, os conceitos de Marshal McLuhan de meios quentes e frios podem ser aplicados:




(...) segundo Marshall McLuhan, quentes são os meios de comunicação de alta resolução ou densidade de informação enquanto frios são os meios de baixa resolução. Assim, o cinema é quente, a televisão é fria. A literatura é quente, o quadrinho é frio. Devido à sua baixa resolução ou incompletude, os meios frios demandam uma maior participação e envolvimento do público. (DUTRA, 2009, p. 45).

As grandes possibilidades dos quadrinhos como mídia e como linguagem envolventes e sintéticas também podem ser atribuídas às temáticas. Da mesma forma como o cinema, a literatura ou a fotografia podem tratar de qualquer assunto, os quadrinhos também não apresentam nenhuma restrição.
Histórias em quadrinhos são fenômenos universais, geralmente associados à adolescência: fáceis de ler, de trocar, de guardar e de descartar. Um sentido mais universal é conquistado por meio de símbolos, onomatopeias, códigos especiais e elementos pictóricos. Elas são um conjunto e uma sequência, em que cada quadro ganha sentido depois de visto o anterior. Para Klawa e Cohen (apud RABAÇA; BARBOSA, 2002, p. 365), na história em quadrinhos, há cortes de espaço e de tempo, mas os quadros estão conectados a uma rede coerente e de ações lógicas. Desde o seu surgimento, a narrativa em quadrinhos experimenta permanente evolução. São novas concepções de montagem, de planos e de enquadramentos, que permitem romper com os esquemas tradicionais dos quadros regulares, dispostos em sequência linear, da esquerda para a direita (considerando o sentido de leitura ocidental).
The Yellow Kid, de Outcault, é considerada a primeira história em quadrinhos. O pioneirismo é reconhecido pelo uso de vários recursos que caracterizaram os quadrinhos como os conhecemos hoje, como a narração sequencial com imagens, a continuidade dos personagens, a inclusão do texto dentro dos quadros e o balão, uma característica única das HQs.

Com o aparecimento do balão, os personagens passam a falar e a narrativa ganha um novo dinamismo, libertando-se, ao mesmo tempo, da figura do narrador e do texto de rodapé que acompanhava cada imagem. Com essa autonomia, cada quadrinho ganhou uma incrível agilidade, porque passou a contar em seu interior, integradas à imagem, com todas as informações necessárias para o seu entendimento. Os personagens passam a expressar-se com suas próprias palavras, e surgem as onomatopeias acrescentando sonoridade às imagens. (LUYTEN, 1987, p. 19)

Além disso, The Yellow Kid foi "a primeira obra amplamente difundida por um meio de comunicação de massa, alcançando assim um grande público" (MELO, 2009, p.10). Nesse sentido, vale destacar que, por décadas, a maior parte da produção quadrinística era voltada para um público formado por crianças e adolescentes. A abordagem era, de acordo com Dutra (2003, p.1), "fortemente escapista e descolada da realidade". As obras com profundidade, provocações e de relevância social eram uma minoria ignorada, negligenciada ou apenas desconhecida.


O quadrinho mostra e o jornalismo conta


Até hoje, para muitos adultos, histórias em quadrinhos são consideradas superficiais, inúteis e pouco relevantes, sem muito fundamento. Mas as grandes reportagens sobre conflitos étnicos internacionais de Joe Sacco, como Palestina, que retrata a guerra entre palestinos e israelenses na Faixa de Gaza e Área de Segurança: Gorazde, sobre o massacre de muçulmanos na Bósnia, por exemplo, fogem desses estereótipos. Vencedor de vários prêmios, como o American Book Award, a linguagem escolhida para seus relatos de não-ficção - que constituem o veio central de sua produção e não apenas uma experimentação eventual - consagrou o jornalista e o gênero, batizado de Jornalismo em Quadrinhos. A criação deste termo contribuiu para a ampliação do espaço que as HQs tinham na mídia, aumentando a visibilidade para possíveis leitores. De acordo com Dutra, no entanto, o termo "jornalismo em quadrinhos"' deve ser bem delimitado:

'Jornalismo' é uma denominação genérica aplicada a diversas atividades afins. Ela é utilizada como um conjunto de categorias. Peças jornalísticas específicas são classificadas em subcategorias específicas. Assim, se perguntarmos a uma pessoa diante de um jornal ou de uma revista aberta o que está fazendo, ela certamente dirá que está lendo uma reportagem, uma entrevista, uma resenha, uma crítica, uma crônica, um ensaio, um editorial, um cartum ou alguma outra coisa. Mas ela jamais dirá que está lendo um jornalismo.
Da mesma forma, também devemos considerar inespecífico e inadequado o termo 'jornalismo em quadrinhos' quando aplicado a uma determinada peça jornalística. Em sua especificidade, os livros de Sacco são, mais exatamente, reportagens em quadrinhos. Sua escolha de tema, sua pesquisa, sua abordagem e sua escrita são as da reportagem. E se seus procedimentos o situam como repórter, seu suporte, o livro, o insere em uma outra categoria: a do livro-reportagem. (...) Assim, ao invés de dizer que Sacco faz jornalismo em quadrinhos, é mais correto dizer que ele faz reportagens em quadrinhos ou, para sermos mais específicos, faz livros-reportagem em quadrinhos. O termo 'jornalismo em quadrinhos' será aqui utilizado no mesmo sentido amplo que a palavra 'jornalismo' tem em relação a 'reportagem'. (DUTRA, 2003, p. 14)

No JQ, utiliza-se uma plataforma alternativa e artística, que é o quadrinho, com argumentos construídos por meio de práticas jornalísticas, como as entrevistas, as técnicas de apuração e o caráter informativo e interpretativo do texto. O resultado é uma reportagem gráfico-narrativa contada de forma mais subjetiva e, por vezes, mais ampla. Essa subjetividade é inerente aos quadrinhos, afinal, semelhante ao olhar de um fotógrafo através da câmera fotográfica, o HQ-repórter - termo utilizado para designar os profissionais que se aventuram pelo JQ - nos apresenta a realidade que seus olhos presenciaram.
Definir o que é jornalismo em quadrinhos não é tarefa simples, já que existem muitas definições de quadrinhos e mais definições ainda de o que é jornalismo. Aqui, utiliza-se o conceito cunhado por Scott McCloud (1995, p. 9) combinada com a importância de se atender critérios jornalísticos no resultado final. Assim, jornalismo em quadrinhos consiste em "imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada destinadas a transmitir informações e/ou a produzir uma resposta no espectador" que devem, pelo menos parcialmente, atender os critérios de qualidade jornalística academicamente convencionados.
Para um repórter se aventurar no gênero, além conhecer a teoria e ter o hábito de consumo de quadrinhos, é preciso, inicialmente, se familiarizar com questões técnicas da linguagem e conhecê-la no nível de um criador na área. Aprofundar-se no jornalismo literário também pode ser um diferencial no envolvimento do HQ-repórter com o tema tratado. Não há qualquer ressalva quanto às temáticas que podem ou não serem tratadas no gênero. No entanto, os principais trabalhos publicados até hoje têm se concentrado em dramas humanos, como conflitos étnicos e injustiças sociais, do presente e do passado, o que de forma alguma significa uma restrição, apenas aponta para interesses comuns de uma geração de autores, incluindo, nesse rol, Will Eisner, Joe Sacco e Art Spiegelman.
No fazer do JQ, é necessário que o desenhista esteja presente durante a apuração, no caso de duplas. Afinal, nem todo repórter precisa trabalhar sozinho e dominar a arte do desenho. Em outros termos, essa pessoa tem a mesma função de um fotorrepórter ou de um cinegrafista, que precisa apurar através das imagens. Só assim seus desenhos podem ser igualmente informativos, não apenas ilustrativos. Além disso, há a questão da perspectiva: enquanto muitos jornalistas mantêm a pretensão de "observador neutro", Joe Sacco, por exemplo, é um personagem de suas histórias, participando ativamente das situações retratadas, conversando com o leitor e constantemente observando o que ocorre ao seu redor.

Alguns críticos consideram as reportagens em quadrinhos de Sacco até mesmo superiores às reportagens tradicionais sobre o mesmo tema. Marcelo Starobinas (Op. cit.) lembra que "Área de segurança Gorazde (...) tem sido apontado por acadêmicos e pela imprensa americana como uma das melhores reportagens de guerra já publicadas". Celso Fonseca (Op. cit.) também relata que "pode ser exagero, mas Joe Sacco vem sendo comparado a nomes de peso como Truman Capote e Tom Wolfe". (...) Margo Jefferson (Op. cit.) confessa: "Eu achava que tinha lido atentamente sobre a guerra sérvia na Bósnia e sobre palestinos em acampamentos nos territórios ocupados de Gaza e West Bank. Mas eu não havia percebido os fatos como percebi desta vez [lendo Sacco]". E David Rieff (Op. cit.) pergunta-se, surpreso: "Quem teria imaginado que a melhor evocação dramática da catástrofe bósnia viria a ser uma história em quadrinhos do tamanho de um livro?" Encerro este apanhado de citações com as palavras de Teddy Jamieson (Op. cit.): "Qualquer pessoa que comece a ler Palestina perguntando-se por que alguém pensaria que o quadrinho poderia ser um suporte adequado para jornalismo terminará perguntando-se por que ele não é utilizado ainda mais". (DUTRA, 2003, p. 32-33)

Apesar de não serem conhecidos pelo termo "jornalismo em quadrinhos", que só passou a ser utilizado depois de Joe Sacco, a partir de 1992, há registros de narrativas que se aproximam desse formato que datam do século XVIII, como mostram as charges dos jornais ingleses da época e as reportagens ilustradas do século XIX, como algumas produções de Angelo Agostini, desenhista italiano que firmou carreira no Brasil, que já publicava quadrinhos e periódicos desde 1864. Em suas obras de humor gráfico, fazia críticas ao governo monarquista no Brasil e às normas eclesiásticas. No entanto, o título de primeiro HQ-repórter é, provavelmente, do pintor Constantin Guys, que cobriu a Guerra da Crimeia (1853-1856) para o jornal inglês Illustrated London News. Ele produzia os desenhos e os enviava para a capital inglesa, onde eram transformados em xilogravuras e impressos no jornal. Inclusive, Herbert Ingram, fundador do veículo, já dizia, há mais de um século e meio, que "'apelo visual é a essência do drama'" (DUTRA, 2003, p.43). No entanto, o campo teórico só se definiu a partir da nomeação do conceito, impulsionada pelas publicações de Joe Sacco - que também acredita que o apelo dos quadrinhos existe em detrimento das imagens e, assim, é possível contar para os leitores histórias difíceis e transmitir informações relevantes.
Dessa forma, o jornalismo em quadrinhos se relaciona com o new journalism e suas técnicas narrativas pelos vieses da reportagem em profundidade e do uso de experiências estéticas com a finalidade de provocar empatia no leitor e levá-lo ao tempo e ao lugar que o autor descreve. Usar desenhos em reportagens em quadrinhos com fins meramente ilustrativos é algo que precisa ser criticado, pois aproxima o jornalismo do entretenimento e o desenho acaba tendo a função única de facilitador e simplificador. O autor de uma reportagem assim faz, no máximo, jornalismo ilustrado, e não jornalismo em quadrinhos. As opções narrativas precisam ser usadas de forma coerente e consciente. É muito difícil informar por meio do desenho, mas será que a função do desenho em uma reportagem seria realmente informar? Com o desenho, é possível alcançar outro nível de profundidade, que passa longe do jornalismo tradicional.
O JQ é uma linguagem que possui algumas características técnicas, como a subjetividade e o anonimato, que o tornam uma das melhores formas de se contar algumas histórias. A subjetividade opera através dos desenhos, permitindo uma abordagem mais pessoal de um tema em relação ao uso de fotografias. O anonimato, conseguido com o apoio das ilustrações, permite proteger a identidade das fontes. É possível, muitas vezes, saber os nomes, idades, profissões, mas suas feições estão reinterpretadas em um desenho, e assim não se pode reconhecê-las da mesma forma como uma fotografia viabilizaria. Esse fator é importante nos casos em que se lida com histórias difíceis e há a intenção de proteger a identidade de alguém.
No gênero, a intenção não é ser "objetivo", mas gerar experiências estéticas e estimular a empatia, de modo a gerar melhorias sociais - o que, a propósito, conecta o JQ com a tradição da reportagem social. Histórias podem provocar diversos efeitos sobre os leitores, especialmente se contadas com profundidade, apresentando diferentes aspectos da vida e a complexidade de um personagem. É possível sentir empatia por personagens assim como por pessoas de carne e osso, e ler sobre eles pode até fazer um indivíduo mudar suas opiniões e se mobilizar por alguma causa (SILLESEN; IP; UBERTI, 2015). E é isso o que se buscava com o novo jornalismo: a humanização do relato, a identificação do leitor com os personagens e as mudanças de perspectivas, que só podem ser feitas por meio de técnicas narrativas. Não é pensar como o jornalismo em quadrinhos pode se adaptar à antiga e desgastada forma de se fazer jornalismo, mas sim, descobrir novas funções para ele.
Um dos fatores limitadores da produção de JQ é a inexistência de um veículo que seja, de fato, adequado. "Afinal, até há alguns anos, quem buscava informações sobre a realidade dos fatos jamais imaginaria encontrá-las em um gibi, conhecidos que são como terreno de aventuras e fantasias mirabolantes" (DUTRA, 2003, p. 136). Com as práticas heterodoxas do new journalism, se iniciou um (lento) processo de descompartimentação de formatos, resultando, entre outras coisas, em uma aproximação mais intensa do jornalismo com os quadrinhos. "As premiações de Spiegelman e de Sacco devem ser entendidas como uma indicação de que a associação entre o suporte quadrinístico e os procedimentos jornalísticos tem grandes potenciais que devem continuar sendo explorados" (DUTRA, 2003, p. 136). Afinal, em uma reportagem, veículos, formas e suportes diferentes permitem abordagens e conclusões diferentes sobre um mesmo tema. Um site, um telejornal, uma revista semanal, um documentário ou uma história em quadrinhos não usam o mesmo conteúdo, a mesma quantidade de informação e a forma como o público recebe tudo isso também muda diante de um ou outro formato. Mesmo com suas limitações, as histórias em quadrinhos têm vantagens interessantes e que devem ser consideradas. Para Dutra (2003, p. 141-142), a portabilidade, o hibridismo, a profundidade, o apelo aos jovens e o parentesco com a charge são algumas delas. Diante disso, a questão pertinente é: "o que pode acontecer numa reportagem-HQ que normalmente não acontece ou que acontece em menor escala em outras formas de jornalismo?".


Quadrinhos na internet: ainda há muito o que explorar


A mudança de suporte técnico do impresso para o digital começou a se desenrolar no início dos anos 1980, quando uma série de experimentações começaram a ser feitas, incentivadas pela popularização do computador pessoal e da interface gráfica, que atingiu todo o mundo civilizado e modificou drasticamente muitas profissões. Tanto que, em 1985, nos Estados Unidos, é publicada a primeira história em quadrinhos produzida em um computador: Shatter, de Mike Saenz e Peter Gillis, pela editora First Comics:

Shatter é considerada por muitos um trabalho visionário, pois na época as ferramentas digitais disponíveis para a criação de uma HQ daquela envergadura eram poucas. Saenz e seu parceiro criaram toda a arte em preto-e-branco no monitor de um computador AppleMacintosh de 128 Kbytes, usando apenas um disk drive. O trabalho foi gerado em computador mas impresso em papel no formato revista, mantendo o suporte tradicional de veiculação das HQs (FRANCO, 2008, p. 55).

Apesar de o grande domínio dos quadrinhos estar, até hoje, no meio impresso, o computador trouxe inegáveis melhorias, especialmente em termos de softwares e nos recursos gráficos disponíveis. Quando a ferramenta começou a ser aplicada aos quadrinhos, constatou-se que a mão e o olho humanos não davam conta de alcançar a qualidade e as cores e tonalidades apropriadamente para a impressão na mesma medida que um computador (MELO, 2009, p. 19). Com isso e com o aperfeiçoamento dos artistas nas novas técnicas, o aparelho passou a ser utilizado em todos os processos, da criação à produção das histórias em quadrinhos, tanto as pensadas para meios impressos, quanto as concebidas para serem consumidas exclusivamente no meio digital, as quais Franco (2008) chama de "HQtrônicas". Sobre o uso do computador na criação de HQs, Dutra (2003, p. 46) pondera: "os computadores funcionam de forma cada vez mais impressionante no desenho animado, mas no quadrinho eles quase que só se destacam em funções acessórias, como a colorização e o letreiramento". Assim, o potencial que a inserção de outras mídias nos quadrinhos traz em si ainda é uma área pouco explorada, já que os recursos à disposição dos autores estão apenas começando a ser experimentados.
Com a introdução da tecnologia do CD-ROM como suporte para as HQs digitais, a partir da década de 1990, elas puderam adquirir novas características, que eram inviáveis no meio impresso. A principal inovação foi a interatividade proporcionada pelo meio, mas também a capacidade da utilização de recursos multimídia, como animação e som, e o uso de cores sem a preocupação do resultado após a impressão. Segundo Melo (2009, p.26), o uso do computador para criar HQs e as primeiras experiências delas com o CD-ROM aconteceram quase ao mesmo tempo, "no entanto, foi preciso aguardar o melhor domínio da tecnologia e a popularização do computador". Por meio dessa nova mídia, o papel do leitor na obra passou a ter a possibilidade de ser ampliado: pela primeira vez o leitor poderia escolher caminhos alternativos em uma obra sem que ela perdesse seu sentido. "Ainda que numericamente limitados, os possíveis caminhos alternativos encontrados em uma HQ digital proporcionam uma experiência única de intervenção e alteração na história, algo impraticável nas versões impressas das HQs" (MELO, 2009, p. 27-28). Sobre isso, Franco exemplifica:

O CD-ROM de Sinkha foi lançado na Europa em 1995 e posteriormente, devido ao seu grande sucesso nos Estados Unidos, como uma edição especial em CD-ROM da notória revista de HQs de fantasia e FC Heavy Metal. O trabalho foi um marco pelo uso criativo que fazia das cenas animadas, textos intercalados à narrativa que guiavam o usuário pelos caminhos da história e ainda pela climática trilha sonora inspirada no rock progressivo com base eletrônica de bandas como Krafwerk e Tangerine Dream. Essa fusão de texto escrito, trilha sonora e partes animadas era algo novo para a época
(FRANCO, 2008, p. 83).


Então, a internet se populariza e, com isso, novos patamares de transformações e reinvenções são atingidos. Apesar de ter sido desenvolvida ainda nos anos 1960, o uso e o alcance só se estenderam a partir da criação da World Wide Web, possibilitada pela invenção da linguagem HTML em 1991. A difusão dos quadrinhos na web aconteceu de forma gradativa, mas é permanente e está em constante expansão. Com o ambiente virtual, surgiram também novas características que, pelo menos potencialmente, trazem múltiplas vantagens sobre as formas convencionais de publicação. Obstáculos foram superados, facilitando o processo de publicação.
O quadrinista americano e teórico dos quadrinhos Scott McCloud, em 1998, começou a produzir quadrinhos online, sendo considerado um dos pioneiros nessa prática. Segundo Franco (2008, p. 158), "McCloud é um dos primeiros artistas das HQs a perceber as possibilidades narrativas dessa nova tela infinita e dedica boa parte do espaço de criação de seu site a desenvolver HQs eletrônicas que explorem esses recursos". Esse tipo de publicação independente se tornou popular, mas a maioria dos trabalhos são considerados de qualidade inconsistente ou ainda, seguem o padrão dos quadrinhos impressos ou o tradicional formato e modo de leitura.
Conforme observa Dutra (2003, p. 58), se McLuhan viu na máquina de reproduzir palavras de Guttenberg uma galáxia de possibilidades, então a internet é um multiverso, formado por incontáveis universos paralelos - e estamos no seu limiar. Para Melo (2009, p. 37), "a maioria das HQs parece mesmo ter encontrado um tipo de fronteira na internet" - justamente nela, caracterizada por não ter fronteiras. Apesar disso, a tendência é que os autores passem a desenvolver, cada vez mais, obras específicas para o ambiente virtual, aproveitando ao máximo suas potencialidades.
Com isso, estamos prontos para, no próximo capítulo, analisar algumas webcomics e, assim, verificar como os autores estão utilizando os recursos da web para contar sus histórias.



3 JORNALISMO EM QUADRINHOS E CONVERGÊNCIA MIDIÁTICA


Análise do uso dos recursos do webjornalismo nas reportagens do site Cartoon Movement


Para analisar as reportagens selecionadas, cada uma foi estudada individualmente, para identificar os usos ou o não uso de cinco caraterísticas do ciberjornalismo: hipertextualidade, multimedialidade, instantaneidade, personalização, memória. Consideramos aqui que a instantaneidade não se aplica ao JQ de modo geral, já que a produção de reportagens de qualidade no formato quadrinístico é um trabalho que precisa de tempo para ser concluído. Além disso, a ubiquidade é intrínseca a todo conteúdo publicado na web, seja ele jornalístico, em quadrinhos, ou não.
Apesar de "perder" na rapidez de publicação, o gênero costuma ganhar muito no aprofundamento dos temas, indo além da mera informação, proporcionando uma análise do contexto e dando voz a diversos "personagens" importantes para a compreensão do tema. Inclusive, o jornalista americano Peter Laufer incentiva o movimento "slow news", com o intuito de promover uma apuração e reflexão mais rigorosas no processo noticioso. Segundo ele, um veterano na profissão, "não há problema em ler amanhã a notícia de ontem." (apud PAVLIK 2014, p. 166-167). Tanto que, uma peça exemplar de JQ precisa, ao mesmo tempo, ser uma boa história em quadrinhos e ainda trazer os elementos necessários para uma boa reportagem, como rigorosos processos de pesquisa, apuração, entrevista e checagem das informações - no entanto, isso não é regra, já que na realidade basta uma história em quadrinho pretender ser jornalística para que seja aceita como tal.
Após esse levantamento, foi feita uma análise exploratória acerca do uso dessas potencialidades na produção de jornalismo no formato gráfico-narrativo. A seleção do corpus se deu no site Cartoon Movement, dentre as reportagens mais acessadas que não fossem apenas uma transposição do meio impresso, sem o uso de recursos do online. O Cartoon Movement é um website baseado na Holanda que serve como plataforma global para divulgação de charges e reportagens de jornalismo em quadrinhos. A plataforma foi idealizada pelo cartunista holandês Tjeerd Royaards e pelo norte-americano Matt Bors, em parceria com os jornalistas holandeses Thomas Loudon e Arend Jan van den Beld. No ar desde 2010, ele surgiu com a intenção de promover charges políticas como uma forma de expressão jornalística fundamental e legítima e também para apoiar a liberdade de imprensa e os direitos editoriais dos artistas. Segundo o próprio site, ele é a principal plataforma de publicação de charges políticas e de reportagens-HQ da internet. Em números, o website recebe entre 60 e 100 contribuições por dia, de mais de 300 colaboradores independentes de cerca de 80 países diferentes, que fornecem suas perspectivas sobre diversas questões internacionais.
Sobre a característica da personalização, o Cartoon Movement não traz nenhum filtro de configuração de preferências do usuário e o conteúdo é apresentado da mesma forma a todos que o acessam. Se o site passasse a aplicar alguns filtros, a página inicial poderia destacar as últimas charges, reportagens em quadrinhos e/ou webcomics, por exemplo, conforme a preferência do leitor. Atualmente, o mesmo material de publicação mais recente é exibido para todos os usuários. Uma possibilidade para implementar essa característica no site é a agregação. Ela é uma resposta às novas necessidades das audiências. De acordo com Lorenz (2014, p. 138), "a ideia principal é reunir, classificar e filtrar o conteúdo disponível, incluindo as notícias mais interessantes. Ou, como dizem os críticos, os itens que recebem mais cliques. Apesar de ser criticado por muitos jornalistas e editores, a agregação é muito popular entre os leitores". Já em relação à ubiquidade, no site estudado vemos que essa potencialidade traz à tona elementos do jornalismo cidadão, dando voz à HQ-repórteres do mundo todo para apresentarem as situações enfrentadas em seus países, expandindo o valor do jornalismo na sociedade. No Cartoon Movement, o compartilhamento de uma publicação está a um clique de distância, o que aproxima a audiência e representa uma capacidade de interação com o leitor, assim como a possibilidade de comentar individualmente cada reportagem.


Down in Smoke


A primeira reportagem analisada se chama Down in Smoke, e foi produzida pela americana Susie Cagle e publicada em 8 de agosto de 2012. O tema tratado por ela é a luta pelo uso medicinal da maconha travada entre os estados e o governo federal americanos. Ela investiga o impacto, na época, das operações do DEA, o órgão para controle e combate de narcóticos nos Estados Unidos. Por meio do uso de gravações de áudio de ativistas, a HQ-repórter retrata uma "guerra de classes" entre os produtores locais, os pacientes e os funcionários municipais, que lutam contra a perda de seus empregos, remédios e arrecadações fiscais.
Os recursos multimídia utilizados são gravações de áudio, de vídeo, o uso de links que redirecionam para outros sites e, no nono quadro, a ilustração tem características de infográfico, ou seja, uma imagem que une textos breves com representações figurativas e esquemáticas, com o objetivo de explicar para o leitor, nesse caso, o crescimento do apoio ao uso medicinal da maconha no mundo. Naturalmente, o JQ online já é uma reportagem multimídia, por combinar duas linguagens - desenho e texto. No caso desta reportagem, observa-se uma clara potencialização dessa característica, com a agregação de sons e vídeos que só é possibilitada pelo ambiente digital. Esses recursos não são meros acessórios: eles contribuem para a compreensão, aprofundamento e legitimidade da matéria.
A reportagem possui um "roteiro": são 18 passos que o leitor deve seguir, onde estão o começo, meio e fim da história contada - esta é a narrativa principal e é composta pelos desenhos e textos. A narrativa secundária apresenta-se por meio dos áudios e vídeos incorporados aos desenhos - ao passar o mouse em cima das ilustrações ou por determinados ícones, o leitor acessa as informações complementares, como trechos de entrevistas, falas e interações, em áudio e em vídeo, com pacientes, ativistas e com policiais, além de sonoras das palavras de ordem dos protestos. Por links externos, na camada terciária da reportagem, é possível ao leitor se aprofundar em alguns aspectos relacionados por meio de páginas de organizações, acessando informações complementares que fundamentam a narrativa principal.
Os hiperlinks, representando a característica da hipertextualidade, estão em quase todos os quadros, redirecionando para os elementos descritos acima, tanto incorporados quanto externos. Com eles, o leitor escolhe sobre o que quer (ou não quer) se aprofundar. Eles complementam a história principal, que é narrada em uma sequência definida de quadros, e permite que ele, por vezes, desvie de seu caminho na leitura da reportagem. Esse poder também está relacionado à interatividade, outra potencialidade do webjornalismo. As reportagens do site Cartoon Movement costumam apresentar os dois tipos de interatividade: a seletiva, em que o leitor pode selecionar conteúdos, intrínseca à reportagem; e a comunicativa, por meio de comentários na página da publicação e de botões de redes sociais incorporados, presentes no site, mas não diretamente na reportagem em si. Já como memória, a reportagem é um registro histórico da realidade do cenário da luta pelo uso medicinal da maconha nos anos 2010. Não há a indexação hipertextual de recursos de memória e nem um aprofundamento histórico relacionado ao tema, sendo a matéria, nesse sentido, nada mais que um recorte do que acontecia no país naquele ano.
De modo geral, a reportagem faz um bom uso das potencialidades do webjornalismo, incrementando a reportagem em quadrinhos em níveis de profundidade e informação. As demais mídias não estão ali por acaso: ajudam a mostrar a situação dos protestos, a dar uma voz com discurso mais complexo - que não caberia nos balões de uma HQ - a personagens e à própria autora, além de links para páginas que servem para validar o que é retratado e proporcionar um espectro mais amplo para aqueles que desejarem saber mais. Não é uma reportagem ambiciosa, mas cumpriu seu papel de webcomic de forma satisfatória.



So Close, Faraway


A segunda reportagem selecionada tem o título So Close, Faraway. Ela foi feita a seis mãos pelo jornalista Augusto Paim, pelo historiador Bruno Ortiz, encarregado da arte, e pelo desenvolvedor Maurício Piccini - todos brasileiros. A obra foi disponibilizada pelo Cartoon Movement em 13 de novembro de 2013. A história acompanha um dia na vida de um morador de rua de 43 anos, chamado Jorge, na cidade de Porto Alegre, traçando um paralelo com a realidade das ruas em nível nacional.
O primeiro destaque dessa reportagem-HQ online é que, ao clicar na capa, que contém uma ilustração de Jorge, o título, o nome e a função dos autores - sendo o clique a única possibilidade para começar a ler matéria - o leitor é levado a uma página com instruções para navegar na reportagem, autodenominada interativa. A orientação é que se siga as "páginas" um a 11 primeiro, sem clicar em mais nada. Nesses quadros, a história é contada apenas por imagens. Após, indica-se que o leitor volte ao início e comece a experiência interativa por meio de alguns ícones presentes nos quadros, que escondem o texto da reportagem. Na primeira "leitura", feita sem o apoio dos textos, ocorre uma aproximação com o jornalismo literário e há uma inversão de foco em relação ao que ocorre na vida real: o destaque é o morador de rua e os demais passantes são aqueles invisíveis nas ruas. Por meio da segunda leitura, agora com o suporte dos textos escondidos, o leitor tem a chance de aprender o quanto quiser sobre a situação de vida na rua no país. Segundo Paim (2013), esta escolha permitiu que os autores mostrem e contem e que os leitores aprendam e sintam.
Os elementos multimídia, como fotos, áudios, textos e para um arquivo de extensão .pdf de uma revista mencionada na obra, proporcionam informações adicionais e legitimam a realidade retratada pelos autores e adicionam a segunda camada de profundidade à narrativa. O acesso a esses elementos está escondido na reportagem, o que é dito na página de instruções, instigando o leitor a interagir mais ainda com a reportagem em busca desses elementos. Também têm a função de dar veracidade e trazer um terceiro nível de conhecimento sobre o tema e envolvimento na narrativa os links externos, presentes no corpo dos textos. Por ter um "passo a passo" (que pode ou não ser seguido), há uma ordem para a leitura principal, com início, meio e fim e indicada nos quadros, que vão de 1 a 11. Essa leitura pode ser interrompida para o acesso de alguma página linkada, por exemplo, e deve ser retomada do ponto onde se parou.
O hipertexto está presente em todos os quadros, mais voltado para referência internas do que externas - o que não desqualifica a obra e, como objetivavam os autores, trazem à tona as possibilidades de interação para o leitor. Registro da situação de vida dos que moram na rua no país, essa reportagem é um retrato das ruas das grandes cidades brasileiras.
A reportagem se destaca, também, pela proposta de gamificação, que é a técnica que utiliza mecanismos e pensamentos orientados a jogos para enriquecer outros contextos. Isso é visível na escolha dos autores de esconderem alguns ícones que dão acesso a outras mídias e incentivar o leitor a procurá-las nos quadros, com o objetivo de proporcionar mais interação e diversão na leitura. Os recursos do webjornalismo foram empregados com funções claras pelos autores, sem ser uma mera escolha técnica, mas pensados para despertar diferentes níveis de sensações no leitor por meio do jogo de esconder e mostrar as informações para aprofundamento e visão geral sobre o tema em nível nacional.



Chicago is My Kind of Town



Próxima reportagem a ser analisada, Chicago is My Kind of Town é de autoria do americano Luke Radl. Ela retrata os protestos que aconteceram em maio de 2012, em detrimento de uma conferência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na cidade de Chicago. Além de confrontos com a polícia, os protestos contaram com uma cerimônia contra a guerra liderada por veteranos da Guerra do Iraque. Na ocasião, cerca de 50 veteranos discursaram e descartaram suas medalhas de honra. O trabalho foi publicado em 2 de julho de 2012. Essa foi a primeira webcomic a ser publicada no site Cartoon Movement e serviu de inspiração para Augusto Paim escolher esse mesmo formato para contar sua história So Close, Faraway (PAIM, 2013).
Com uma apuração feita no local, no meio dos protestos, o autor incorporou fotos, vídeos e sonoras de personagens que participaram como ativistas nos eventos relatados. O material multimídia serve como uma espécie de documentação de que aquilo tudo de fato ocorreu conforme os desenhos mostram. Não há exageros na quantidade de policiais presentes e na forma como eles repreenderam (e prenderam) os participantes dos protestos. Links para sites de notícias que reportaram o ocorrido e outros sites também ilustram e embasam a história, proporcionando mais informações sobre os eventos. Essa indexação manual de links relacionados ao tema também faz parte da característica de memória do webjornalismo, além de a própria reportagem registrar um momento importante que os Estados Unidos viviam no início da década, com a efervescência do movimento Occupy.
Chama a atenção nesta reportagem a incorporação de posts do Twitter, uma rede social para microblogging. As atualizações são exibidas em tempo real no perfil de um usuário e também aparecem para outros usuários que assinaram para recebê-las. A plataforma acabou se tornando muito utilizada para divulgar e comentar eventos importantes que acontecem em nível local e mundial. As postagens utilizadas na reportagem reportam e mostram, por meio de texto e fotos, manifestantes feridos durante os protestos. Aqui, a ubiquidade está presente também na forma de jornalismo colaborativo, em que cidadãos comuns, sem formação jornalística, participam ativamente da coleta, da reportagem, da análise e/ou da disseminação de informação de interesse público.
A narrativa é contada em uma ordem única, seguindo 12 telas que apresentam, em ordem cronológica, a essência do que ocorreu em Chicago naquele maio de 2012. Os quadros trazem o texto principal, e ícones levam o leitor para as demais mídias ou para mais blocos de texto com informações explicativas e/ou complementares a esse texto principal. Tanto o texto fixo quanto o texto opcional trazem os links mencionados acima. Por meio desses cliques, o leitor pode interagir ou não com o texto e, assim, escolhe o tipo de leitura que fará.
Como primeira publicação do tipo no site, o uso das potencialidades do ciberjornalismo não deixa nada a desejar em relação a outras reportagens posteriores. A incorporação das características vem para somar e tornar a narrativa mais completa e complexa, agregando informação e conhecimento sobre o tema.

International Criminal Court: Global Deterrent or Paper Tiger?



De autoria de autoria do britânico Dan Archer, essa reportagem-HQ online aborda, sob as perspectivas histórica e política, o Tribunal Penal Internacional (TPI). A pergunta central da reportagem é se o TPI é um impedimento global ou apenas um órgão aparentemente imponente, mas que não representa perigo algum? Publicada em 21 de janeiro de 2013, essa webcomic foi pensada como uma linha do tempo horizontal que conta a história da corte e as questões que ela enfrentava na época.
Para navegar pela reportagem, é preciso utilizar o teclado. Pressionando as setas viradas para a direita, o leitor vai adiante na leitura. Para a esquerda, ele pode voltar para o texto anterior. Ao pressionar a seta voltada para baixo, é possível acessar informações suplementares, o que permite que o leitor escolha o quanto quer se aprofundar na história. O formato é semelhante a um grande infográfico. Percebe-se, neste caso, a exploração da tela infinita, uma oportunidade de design para quadrinhos online apontada por McCloud (2006, p. 222 – 223). Segundo ele, não há razão para que, num ambiente digital, uma história de 500 quadrinhos não seja contada verticalmente ou horizontalmente. Desse modo, na internet, elas podem assumir praticamente qualquer tamanho e forma, conforme o crescimento do mapa temporal do que está sendo relatado.
Essa reportagem pode ser classificada como documental, pois é expositiva e aproxima-se de uma revisão histórica baseada em pesquisas, até com certo cunho pedagógico. Apresenta os elementos de forma objetiva, com o uso de texto, desenho e citações que apresentam, ilustram e complementam o assunto tratado. Não há o uso de recursos hipertextuais nem o de outras mídias além do texto e do desenho. O aprofundamento da narrativa se dá por meio da navegação pelas setas, que mostram e escondem a segunda camada de informação. Essa escolha é responsável pela interatividade do leitor no contato com essa webcomic. São 22 quadros dispostos horizontalmente, e alguns deles possuem quadros adicionais acessados pela seta direcionada para baixo. A navegação só pode ser feita na ordem quadro a quadro, seja horizontalmente ou verticalmente. Assim, não é possível deixar de navegar pelos quadros do sentido horizontal, onde está o texto principal. Como o próprio conceito de reportagem documental já imbui, International Criminal Court: Global Deterrent or Paper Tiger? é uma recapitulação do desenvolvimento do TPI, com análises complementares feitas pelo autor, sendo um recurso de memória importante a respeito do desenvolvimento do Direito Internacional, com uma jurisdição universal e permanente.
Essa reportagem-HQ online aproveita muito pouco as tantas possibilidades que os recursos do ciberjornalismo podem proporcionar. Nesse caso específico, o uso de hiperlinks enriqueceria a narrativa, bem como o uso de fotos, mapas e vídeos, por exemplo, que poderiam resgatar a história e a localização visual dos conflitos, linkar imagens e documentos relacionados, etc. Isso não a invalida como webcomic, apenas a empobrece diante das potencialidades que o meio oferece.


Meet the Somalis


Produzida pelos britânicos Benjamin Dix e Lindsay Pollock, por meio da Open Society Foundations, essa webcomic ilustra a vida de 14 somalianos em sete cidades europeias: Amsterdam, Copenhague, Helsinque, Leicester, Londres, Malmö e Oslo. Para ter uma visão singular sobre o dia a dia dessas pessoas - parte de um diversificado grupo minoritário, que inclui refugiados, somalianos nascidos na Europa e pessoas que migraram entre diversos países europeus -, os autores realizaram entrevistas por seis meses durante o ano de 2013. As conversas abordaram questões como educação, representação na mídia, moradia, emprego, participação política e identidade. A reportagem foi publicada em 8 de janeiro de 2014.
O trabalho é composto por uma tela inicial dividida em 15 quadros: um com o título e outros 14 com cada um dos personagens da matéria, cujo conteúdo pode ser acessado por um clique. Essa webcomic integra ao todo 14 histórias em quadrinhos independentes, unidas pelo fato de retratarem protagonistas de uma das maiores comunidades estrangeiras no continente europeu. Cada uma das histórias contém desenho e texto e a navegação é feita com o auxílio do mouse, que leva o leitor para o próximo quadro. Não é possível escolher um quadro para visualização, é preciso seguir a ordem predisposta. No entanto, o leitor tem total autonomia para escolher sobre quem e em que ordem lerá cada história, proporcionando uma interação entre reportagem e leitor. Não chega a ser um caso de personalização da leitura, pois a única informação dada para a escolha de por onde começar ou por onde seguir a leitura é o nome do personagem e a cidade em que reside. Assim, sem muitos subsídios, a definição sobre a ordem não é, necessariamente, objetiva. Talvez, um morador de Londres, por exemplo, tenha interesse em conhecer as histórias dos somalianos que residem na mesma cidade que ele. Mas para aqueles que não têm nenhuma referência de ponto de partida, escolher qualquer uma delas permite o contato com as mais diversas histórias de vida, muitas delas retratando uma realidade muito distante da vivida pelo leitor comum, como a fuga de uma zona de guerra ou o fato de ter de deixar a família para trás em busca de melhores oportunidades; outras, falam sobre valores universais, como a importância da família e da identidade.
Da mesma forma que em International Criminal Court: Global Deterrent or Paper Tiger?, não há o uso de hipertexto com ligações externas, apenas os links internos que dão acesso a cada uma das histórias, que descentralizam a leitura, e nem de outros elementos multimídia. Nesse caso, mesmo sendo histórias pessoais em que, talvez, preservar o anonimato seja a intenção, o uso de links, imagens, sonoras, etc. poderia ter sido feito, agregando qualidade e profundidade ao conteúdo. Como está, a reportagem só tem uma camada de história. Qualquer dado oficial, notícias sobre a imigração somali na Europa, etc. precisa ser buscada fora da webcomic. Uma aproximação parecida com a feita em So Close, Faraway - que também centra em uma história pessoal, mas sem deixar de lado a visão global da situação retratada -, ainda que pensada com mais simplicidade, teria enriquecido o trabalho dos autores. Também não há o uso de recursos de memória, sendo apenas a própria reportagem parte do registro da situação da Somália e do histórico europeu de abrigar imigrantes, especialmente de suas ex-colônias e refugiados de zonas de conflito.


As possibilidades da convergência


Feitas as análises, é possível afirmar que, apesar da consagração do computador como ferramenta de produção e, em partes, de disseminação de HQs, ainda não houve uma mudança de paradigma em relação à produção de histórias em quadrinhos e o novo suporte em termos de exploração das potencialidades do meio online. Existem, sim, produções louváveis, mas elas ainda são isoladas e, se comparadas ao avanço tecnológico das últimas décadas, o que vem sendo feito ainda é bastante sutil. Das 73 reportagens em quadrinhos do site Cartoon Movement, 29 são classificadas como webcomics, sendo que destas, cinco são partes de uma mesma reportagem separada em capítulos, que foi publicada, também, em holandês, somando dez publicações. Nesse meio, 11 reportagens não incorporam outros elementos além do texto e dos desenhos, inovando apenas em um design diferente da estrutura padrão de publicação no site. Ou seja, das 24 publicaç es originais, menos da metade (45,8%) usam, de fato, características como hipertextualidade e a incorporação de outras mídias para contar suas histórias.
Na pesquisa, essas duas características se mostraram fundamentais para atender a complexidade das narrativas. São elas que permitem a potencialização do recurso da memória, da interatividade, da ubiquidade e da personalização. Este último recurso é praticamente inexplorado pelas reportagens analisadas e também pelo próprio webjornalismo praticado nos portais de maneira geral (LORENZ, 2014). Por meio da personalização, poderia ser possível envolver o leitor de forma mais significativa e por mais tempo com a reportagem e com o meio. Para desenvolver novas ideias com a personalização, é necessário, inicialmente, desafiar as visões tradicionais e fazer jornalismo de acordo com as necessidades individuais dos leitores, e não do que a empresa de mídia acredita ser o que a maioria dos leitores quer. As empresas de media estão acostumadas a medir o sucesso pelo tamanho da sua audiência, o que, de certa forma, funciona. Mas esse sistema tem tantas falhas que aplicar novos conceitos se faz necessário.

Que tal começar a pensar na personalização com abordagens realmente novas? Poderíamos desenvolver estratégias que são precisamente o oposto ao que vemos hoje? Poderíamos encontrar formas de tornar o tempo de utilização do conteúdo consideravelmente mais longo, não sem atenção, mas fora das necessidades de contexto mais profundo, respostas claras e ajuda real com decisões difíceis? Poderíamos prolongar o uso de notícias e informação de segundos a minutos ou mesmo horas, semanas, meses ou anos? (LORENZ, 2014, p. 138).

Em geral, a personalização envolve o trabalho manual ou especializado, ou seja, tudo o que, em parte, o jornalismo em quadrinhos é. E na internet, o usuário, leitor, se depara com uma imensidão desorganizada porém vasta de experiências de notícias personalizadas. Isso ocorre porque a possibilidade de distribuir notícias está disponível para todos. Essa ampla oferta pode apresentar uma forma mais adequada para publicar textos, fotos ou quadrinhos por exemplo. No meio online, as audiências são de nichos: o crescimento dessas plataformas provém do foco em pequenas audiências, específicas, mas altamente interessadas. "Resumidamente, os grupos pequenos tornaram o mercado mais interessante e promissor, baseado em interesses comuns, hábitos de leitura, preferências de conteúdos (...)" (LORENZ, 2014, p. 142). A audiência dos quadrinhos, impressos e online, se enquadra nessa descrição. Assim, as alternativas que a personalização apresenta possibilitam encontrar novas posições de mercado estáveis, com um público fiel, que confia na plataforma e no produto. Nesses termos, o jornalismo colaborativo pode ser uma opção, potencializada pelo surgimento das ferramentas de edição e publicação na internet e pela popularização dos celulares equipados com câmeras digitais e conectados à internet, por exemplo. De porte dessas tecnologias e com o domínio necessário, os cidadãos podem possibilitar, entre outras coisas, que o jornalista atualize sua reportagem com material recente sobre os fatos relatados. Como Jenkins (2008) estabelece, estamos na era dos usuários, e os produtores culturais estão cada vez mais descentralizados em relação às grandes mídias. Essas pessoas não estão interessadas em ser audiência passiva, mas querem participar e compartilhar.
Outra possibilidade para os autores que se aventuram na criação de webcomics é incorporar técnicas de gamificação, porém não com a finalidade de proporcionar entretenimento pelas reportagens, mas para estreitar a relação do leitor com a história e favorecer a compreensão do tema. Com isso, potencialidades como a interatividade e personalização podem ter um papel muito mais ativo no desenrolar das narrativas. No caso da interação, verificou-se que o uso de elementos, como uma estrutura hipertextual, que propõe o meio para navegar os conteúdos, o menu de ligações semânticas, a incorporação de motores de busca, hemerotecas, índices geográficos e temáticos, etc. (ROST, 2014, p.57) ainda são escassos ou empregados de maneira superficial. São esses fatores que definem, em algum grau, as possibilidades de interação para os usuários: tanto em termos de navegação e acesso aos conteúdos quanto em relação a formas de personalização. Para a interatividade ser plenamente empregada, o leitor deveria poder fazer escolhas narrativas, escolher sobre quais personagens saber mais e até manipular algum deles, por exemplo. Muitas webcomics trabalham com possibilidades de interação, mas na maioria dos casos, o uso do recurso representa que o leitor pode apenas ativar ou desativar recursos, como mostrar ou esconder sons e textos na tela. Em termos de interatividade, a personalização dos conteúdos em um ambiente cada vez mais modular é tendência. "Cada utilizador configura a sua própria rede de acesso às notícias. Alargaram-se também as possibilidades de pesquisa e recuperação da informação, assim como as alternativas que cada utilizador tem para selecioná-la e administrá-la" (ROST, 2014, p. 76).
A hipertextualidade e a multmedialidade, apesar de exploradas em algumas reportagens, não têm seu potencial amplamente empregado. Uma das características do hipertexto é ser descentralizado (MITRA, 1999), ou seja, "o ponto de entrada na leitura da notícia pode ser um bloco informativo mais afastado do bloco inicial, ou ponto de entrada, o que dificultará a identificação de um centro" (CANAVILHAS, 2014, p. 6 - 7). Nas análises feitas, com exceção da reportagem Meet the Somalis, todas tinham um ponto de partida e um trajeto específico a ser seguido para a compreensão da história. Além disso, o hipertexto é a principal ferramenta para tecer oportunidades de interação. No entanto, muitas webcomics não aproveitam a sua riqueza de possibilidades narrativas e restringem seu emprego a ligações semânticas. Para McCloud (2006, p. 227), "navegar por uma série de quadrinhos embutidos em cada um dos quadrinhos anteriores pode criar uma sensação de aprofundamento na história", e a possibilidade de ocultar os quadrinhos que vêm a seguir podem manter o leitor de "guarda aberta", sem saber o que virá pela frente – só para citar alguns exemplos.
Ainda, nas análises feitas verificou-se que as inserções de recursos multimídias não são tão orgânicas quanto a de um hiperlink, por exemplo. Por vezes, os ícones são grandes demais, destoando e até prejudicando o impacto da arte no leitor. O exemplo da reportagem So Close, Faraway é um a ser seguido. A criação de iconografia própria, temática, colocada em locais estratégicos da tela ou que aparecem ao passar o mouse em cima da região foram um diferencial. Algumas outras possibilidades gráfico-narrativas são:

A impressão de "onde você está" a todo momento poderia ser proporcionada pela mudança de cor nos quadrinhos já lidos. Os padrões de fundo e as cores poderiam refletir estados de espírito cambiantes. Mesmo a recordação de histórias poderia ser auxiliada por sua aparência geral variante (...). Seja escolhendo uma trilha, revelando uma janela, oculta, ou dando um zoom num detalhe, há maneiras incontáveis de interagir com a arte sequencial num ambiente digital. (...) Os quadrinhos são uma natureza morta; muda, inerte e passiva por si mesma, mas o ato de ler quadrinhos (...) é tudo menos isso. Os quadrinhos num ambiente digital continuarão uma natureza morta, mas uma natureza morta que exploramos dinamicamente! (MCCLOUD, 2006, p. 228 -229).

Apesar disso, nota-se a vontade de alguns autores de proporcionar novas experiências para seus leitores por meio de suas HQs online. Há uma preocupação em explorar o tema além das supostas limitações que o gênero impõe e conseguem fazer isso com sucesso, especialmente ao abordarem assuntos de cunho social que acontecem em uma determinada localidade e conseguem impressionar, sensibilizar, emocionar os leitores e até despertar a percepção de que aquele problema existe também ao seu redor. Como definiu Josh Neufeld (2012), jornalismo em quadrinhos não é jornalismo tradicional. É um híbrido entre jornalismo, pesquisa histórica e arte, e deve-se aproveitar ao máximo essa combinação de poderes para chegar até o leitor e sensibilizar, impressionar, emocionar, enternecer, abalar, comover...













CONSIDERAÇÕES FINAIS



No texto A linguagem libertada (2007), Savazoni e Deak escrevem que o repórter Marcos Faerman, conhecido pela prática do jornalismo literário e por trabalhos na imprensa alternativa, era um entusiasta de reportagens em quadrinhos, reportagens puramente fotográficas, reportagens na rua, inscritas nos muros da metrópole. Lá nos idos dos anos 1970 ele já estimulava as diversas formas de se contar uma história. Hoje em dia, existe a rede. "O repórter tem diante de si a rede, com suas veias abertas, pulsantes. Estamos na era digital. Imagem estática. Imagem em movimento. Sons. Links. Interações tridimensionais" (SAVAZONI; DEAK, 2007). Isso significa que as regras na forma de se contar a verdade em uma reportagem podem (e devem) ser superadas. Linearidade, monomidialidade, unilateralidade. Com essas ferramentas, um excelente repórter, hoje, pode permitir aos leitores fazerem seus próprios caminhos por meio da forma de criar sua reportagem, de mostrar as trajetórias dos personagens, de descrever e ilustrar, no sentido de apresentar imagens dos lugares, de inserir sons e contexto sobre a história que está sendo contada, em uma narrativa clara, envolvente. Para isso, é preciso olhar para todas as possibilidades que as técnicas das novas mídias proporcionam e, assim, perceber qual é o melhor recurso para contar essa determinada história: um texto, uma foto, um vídeo, um áudio, um gráfico, um jogo.
Assim como fizeram Tom Wolfe, Gay Talese, Norman Mailer e outros nos anos 1960, está na hora de, novamente, lançar um olhar fresco às coisas. Para que isso aconteça, o jornalista precisa "utilizar as novas tecnologias para construir novas formas de interpretar e (re)conhecer o mundo. (...) Acima de tudo, precisa pensar multimídia, (...) encontrar as narrativas. As diferentes camadas da história" (SAVAZONI; DEAK, 2007). Nesse sentido, o jornalismo em quadrinhos, especialmente quando emprega recursos do webjornalismo, oferece ao leitor uma experiência íntima e única, envolvendo-o na história de um modo que outras mídias não conseguem fazer tão bem. Como mídia, os quadrinhos são uma combinação única de desenhos e texto, e a narrativa fragmentada do formato quadro-a-quadro permite que o leitor tenha um papel ativo na interpretação da história.
Apesar de a internet ter um papel importante na produção e, especialmente, na disseminação de HQs, como proporcionar a operação de serviços de streaming por assinaturas para HQs, como os brasileiros Cosmic e Social Comics, e do aplicativo de celular e tablets Comix Trip, que vende as obras de mais de 100 artistas nacionais independentes, ainda não houve uma mudança de paradigma em relação à produção de histórias em quadrinhos e o meio online em termos de exploração das potencialidades da convergência midiática. No caso do JQ, temos algumas produções notáveis, mas que ainda não representam todo o potencial que o avanço tecnológico e a criatividade dos autores permitem. Como a maior parte das publicações de JQ são independentes e, portanto, sem imposições editoriais de terceiros, é desanimador ver que vários recursos, muitos deles que não dependem de um vasto conhecimento de ferramentas complexas, como o hipertexto e a incorporação de recursos multimídia, ainda não são amplamente utilizados – o que também pode ser verificado na análise do corpus da pesquisa. A maioria das reportagens-HQ são reduzidas ao lugar comum em termos de formato e de estrutura – o que, de maneira alguma é um problema. Ao escolher o formato dos quadrinhos para uma reportagem, os jornalistas estão cientes dos desafios envolvidos, mas parece que não há uma abertura muito grande dos autores para as inovações narrativas e estéticas proporcionadas pela web. Trabalhar com ferramentas consolidadas e conhecidas em vez de com o novo e imprevisível é, realmente, mais fácil. Mas as possibilidades de enriquecer a reportagem, tanto em termos de conteúdo quanto em termos de formato não podem ser ignoradas. "Para aproximadamente todo desafio narrativos, os quadrinhos digitais podem oferecer soluções potenciais diversas de qualquer coisa jamais tentada na imprensa" (MCCLOUD, 2006, p. 226). Assim, com as ferramentas disponíveis, é uma questão de dar asas à criatividade e explorar o que o mundo digital tem para oferecer. Afinal, o que os quadrinhos almejam "é encontrar uma mutação durável que lhe permita sobreviver às inovações tecnológicas" (NICOLAU; MAGALHÃES, 2011, p. 6). O JQ não carece de esperar que o webjornalismo alcance primeiro a plenitude no aproveitamento de suas possibilidades para que, a partir daí, desenvolva seu potencial para atingir o mesmo nível. O progresso pode ser paralelo.
É importante deixar claro que as análises e considerações feitas não pretendem, em nenhum momento, ser definitivas e absolutas em relação às webcomics. Além disso, elas permitem, sim, certas liberdades em termos de arte, tema, espaço e forma, mas não é o objetivo deste trabalho reivindicar que a internet é um meio superior para os quadrinhos, por ser livre das "caixinhas" e das "telas finitas". (FENTY; HOUP; TAYLOR, 2004). Inclusive, limites para a velocidade, a potência e o espaço de armazenamento sempre existirão; e, segundo McCloud (2006, p. 224) uma tela infinita no sentido literal talvez jamais exista. O analógico e o digital são incomparáveis, visto que são meios diferentes, cada um com as suas capacidades e possibilidades distintas. Com isso em vista, a pesquisa se baseou em observações particulares que contaram com o apoio do referencial teórico para serem reportadas. Dessa forma, pretende-se contribuir para o estudo das HQs, especificamente do jornalismo em quadrinhos, diante das novas tecnologias e colaborar para a reflexão sobre a utilização de recursos hipermidiáticos como ferramentas inovadoras da comunicação contemporânea.
Frente os indícios iniciais apresentados aqui nesta pesquisa, parece claro que a ideia do jornalista que restringe seu trabalho à escrita de textos para meio impressos ou audiovisuais não está em sintonia com as novas realidades da produção de conteúdo midiático. Esses novos paradigmas e linguagens estão cada vez mais intrínsecos às necessidades de formação do profissional de comunicação. Há, sim, uma expansão no uso de recursos multimídia para se fazer jornalismo na web, mas seguem um compasso lento, que não está alinhado à velocidade do desenvolvimento das tecnologias e da internet. A produção jornalística na web ainda não conseguiu definir uma identidade só sua. O momento é de exploração narrativa e descobrimento de novos gêneros.
São vários os fatos que contribuem para esta renovada efervescência: 1) a simplificação dos processos de publicação de conteúdos audiovisuais na internet; 2) a dinâmica de comunicação facilitada pelas redes sociais, que proporcionam uma contribuição de conteúdos cada vez mais ativa por parte dos internautas; 3) a popularização dos dispositivos móveis, enquanto dispositivos de captação, distribuição e consumo de conteúdos multimídia; e 4) a estratégia de diferenciação adotada por certos meios de comunicação e pelos seus concorrentes, procurando oferecer formatos multimídia bastante avançados (SALAVERRÍA, 2014, p. 47-48).
O webjornalismo tem muito potencial a ser explorado. A opção por ofertar conteúdos mais simples se relaciona, muitas vezes, com a falta de profissionais que dominam o uso de equipamentos tecnológicos além dos computadores nos meios de comunicação. O sonho do jovem que quer ser jornalista ainda está atrelado ao glamour de caçar reportagens na rua, sendo que a realidade da apuração nas redações contemporâneas está a poucos palmos, na tela do computador. Entender a linguagem do computador e saber programar é a "alfabetização do futuro". Não dominar as novas tecnologias - não apenas seu uso, mas seus sistemas, códigos e símbolos - é um tema que quase não é discutido e não causa incômodo, diferente de saber que, ainda hoje, há muitas pessoas incapazes de ler e escrever. As linguagens de programação são dominadas por um percentual ínfimo da população, e isso em escala mundial. Ou seja, grandes decisões são tomadas e compreendidas por pouquíssimas pessoas, enquanto aprender programação já deveria ser algo que se aprende na escola há muito tempo. A tecnologia abre possibilidades extraordinárias de participação na vida pública, mas para isso é preciso se alfabetizar na linguagem digital. Talvez, pela autonomia de jornalistas e profissionais da mídia, esse seja um próximo passo importante e necessário para o desenvolvimento dos currículos dos cursos de comunicação - isto, porém, já é tema para outras pesquisas.

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