José Craveirinha e a busca de uma poética do passado, presente e futuro nos poemas “Xigubo”, “Grito Negro” e “Poema do futuro cidadão”

May 31, 2017 | Autor: Pablo Rodrigues | Categoria: African Studies, Africa, José Craveirinha
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro, 09 de outubro de 2010.
Aluno: Pablo Baptista Rodrigues – DRE: 11120197 – Turma: LED
Matéria: Poesia Africana
Professor: Léticia Villela

José Craveirinha e a busca de uma poética do passado, presente e futuro nos poemas "Xigubo", "Grito Negro" e "Poema do futuro cidadão"

Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa, a origem da palavra ensaio aponta para o latim tardio "ato de pesar", "ponderar" e "avaliar". A essa palavra é atribuído todo uma serie de significados, entre eles a noção de flexibilidade. O ensaio é um caso fronteiriço e "provoca resistência porque evoca aquela liberdade de espírito" que outro gênero textual e literário, nos dirá Adorno em seu texto "Ensaio como forma", não nos permite.
Talvez a nomenclatura esteja equivocada, mas é a única que dispomos. E com essa postura de tentativa de escrita mais livre nos tornamos coerentes com o objeto artístico que iremos nos debruçar ao longo de nosso texto: a literatura de língua portuguesa manifestada em África, em especial a do poeta moçambicano José Craveirinha. Pois, ao tratar de África não seria a liberdade um tema de maior importância?
Ganhador do Prêmio Camões de 1991, José Craveirinha nasceu em 28 de maio de 1922, cidade de Maputo, antiga cidade de Lourenço Marques, em Moçambique. É filho não apenas de pais de cultura diferentes, seu pai algarvio e sua mãe africana, como podemos tê-lo como filho das aproximações e do afastamento dessas duas culturas, poeta que encarna a cisão do homem africano. Foi criado pela esposa oficial de seu pai, mas do contato inicial com sua mãe biológica pode aprender a língua ronga, fator importante para o desenvolvimento de sua poética.
Da sua poesia, de forma ampla, podemos identificar a influência do Neorrealismo. E podemos comprar tal postura estética na presença de temas como a constante busca de descrever a exploração colonial do negro africano, como também, o processo de degradação a que foi submetido. Uma proximidade com questões do passado africano, antes do Imperialismo europeu seu presente colonial e seu futuro independente.
Na tentativa de esmiuçar tais características, nos valemos aqui da antologia preparada por Ana Mafalda Leite, Poetas de Moçambique (LEITE, 2010), em especial a seleção de três poemas deste poemário: "Xigubo", "Grito Negro" e "Poema do futuro cidadão". Toda escolha toma como base a subjetividade de quem escreve, o que cruelmente nos faz preterir poemas como "Karingana ua Karingana" e ainda o poema "África". Assumimos esse erro. Comecemos com o poema "Xigubo":

"Xigubo"

Minha mãe África
meu irmão Zambeze
Culucumba! Culucumba!

Xigubo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência levantam os braços para o lume da irmã Lua
e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos da margem do rio.
(LEITE, 2010. p. 13)

Se apropriando de um dos textos de Fernando Pessoal, "A poesia ortonômica", obtemos do poeta português passos importantes para um caminho para a análise crítica de um poema. O primeiro passo seria a simpatia. O interpretar, como nos diz Pessoa, é "sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar". E por simpatia entendemos todo uma afinidade no sentir e no pensar, que aproxima o interprete ao objeto do poema.
De início, o que nos chama à atenção é a palavra "Xibugo". Pensemos aqui o poema como uma unidade autossuficiente de significado, fechado em si mesmo, e portanto, o primeiro elemento que nos permite todo uma origem de significação. "Xibugo", como podemos inferir pelo próprio poema, é uma ação, um movimento. Na leitura, partindo para a segunda estrofe temos: "Xibugo estremece terra do mato/ e negros fundem-se ao sopro da xipalapala". O que será confirmado nos decorre do poema, sendo Xigubo uma dança tipicamente africana.
Craveirinha evoca logo no primeiro verso de "Xibugo" a maternidade e o continente africano; levando a África a estatuto, não de apenas de lugar renegado pela história, mas de lugar de origem: "Minha mãe África". E do continente vivo, temos também a relação familiar onde o eu-lírico se coloca. Ele é irmão de Zambeze. E como irmão de um dos principais rios africanos, e que forma uma bacia hidrográfica que une países como Zâmbia, Congo, Angola, Namíbia, Botswana, Zimbabwe, Moçambique, Malawi e Tanzânia, o poeta nos convida à fraternidade.
O elemento natural não é apenas uma demonstração de união do sujeito poético com a natureza, como uma forma de estar em harmonia familiar com sua origem, paisagem não manchada pelo colonialismo. Vale ressaltar também, que o rio é uma imagem que convida à irmandade com esses noves países. Ou seja, a imagem do poeta é a da unidade na diversidade africana. E o eu poético assume, como vemos em outros poemas de Craveirinha, a missão de falar pelos sem voz. É por Moçambique que o Rio deságua Zambeze, extravasa.
No terceiro verso temos uma expressão que ao molde de "Karingana ua Karingana", poderíamos tomar como "Meu Deus", isto é, o clamor a uma divindade, um grande espírito, situação semelhante a tradição ocidental de evocação ao Deus cristão. Há toda uma relação do ronga com a proposta de Craveirinha em subverter a língua num processo de antropofagia linguística, subjugando o português à língua africana, criando uma nova relação simbólica. Agora, a expressão antes costumeira, "Meu Deus! Meus Deus" é trocada por elementos da língua do que antes fora subjugado. É necessário ser o outro, ter a língua do outro como interpretação do mundo.
Na segunda estrofe temos a palavra que dá título ao poema "Xigubo". E daí depreendemos a relação da palavra com a movimentação: "estremece terra do mato". E os negros fundem-se ao sopro da xipalapala, instrumento feito com haste de impala, variedade de um antílope. Temos representado pelos versos a fusão entre o ser, "negros", e o som, a música. Ou seja, o sujeito poético nos leva a um tempo do mundo da oralidade Momento que é anterior ao mundo do imperialismo europeu. E envolvidos na dança são também os "negrinhos de peitos nus", que adentram ao ritmo da música e se relacionam com o luar. No último verso dessa terceira estrofe temos ainda, não apenas o continuar do processo musical, mas também o convite ao tempo primordial, o tempo "das velhas tribos da margem do rio".
Música que espanta a fera, "Ao tantã do tambor/ e o leopardo traiçoeiro fugiu". Noite de profundo mistério, de "assombrações" e "alucinações". Coragem do "negro Maiela" que com a afiada azagaia, tingida pela caça, está "rubra", salta o fogo. A noite ainda é esse espaço de vida e de mudança, já que "desflorada", nos remete a flor logo após sua fecundação, isto é, temos aqui uma conotação sexual, uma transformação radical da noite, uma mescla de vida que estar por vir, e que segue uma lógica natural. O som a fecunda. Contrasta esse poema com o seguinte, o "Grito negro".

"Grito negro"

Eu sou carvão
E tu arrancaste-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não
Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua minha
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei o teu carvão
Patrão!
(LEITE, 2010. p. 15)


Se no primeiro poema escolhido vemos uma relação com um passado primordial, é possível observar em "Grito negro", a relação direta com o presente colonial. Não há fuga ao passado, porém a necessidade de olhar o presente subjugado. Para que assim o moçambicano atinja sua libertação de libertação.
De início temos o título, que nunca deve ser desprezado. Se grito é tomado como um som penetrante, emitido com força, devemos lembrar que ele não é um mero grito, mas sim um "grito negro". Não um grito "de" negro, mas sim um protesto veemente, barulho estridente de um povo. O título novamente, já no fornece cor de todo o poema e sua função social.
"Eu sou carvão" pode ser tomada aqui, como uma possível resposta a grande questão do homem livre do designo da opressão colonial: Como atingir a minha liberdade? O eu lírico nos responde, que sua liberdade será atingida no ato de "ser carvão", queimar a si e modus operandi do mundo colonial. Ou seja, sua essência inicialmente é ser meio, fonte, matéria prima para o homem branco e para sua própria revolução psicológica e posteriormente social.
Vale ressaltar que o poeta, não de forma ingênua, se utiliza do lugar singular da produção de carvão que Moçambique ocupa no cenário energético mundial. Ao levar o negro moçambicano à condição de carvão é como se o poeta relacionasse não só a relação de exploração do negro pelo homem branco, "E tu arrancaste-me brutalmente do chão", mas também que a riqueza de Moçambique é o seu próprio povo.
Vale ressaltar ainda, que nas duas primeiras estrofes o eu lírico ainda está resignado. Ainda se dirige ao senhor: "E tu acendes-me, patrão". Ainda é o senhor fornecedor de sentido de existência, o negro serve apenas de "força motriz". Mas se nesses versos iniciais temos um eu lírico resignado, são nesses versos também que ele percebe que a mudança está em si, "Para te servir eternamente como força motriz/ mas eternamente não/ Patrão".
É na força dessa combustão, no olhar para si, nesse processo químico interior, que eu lírico contagia-se e faz queimar não só a si mesmo, gerando sua própria libertação, como pode também dirigir-se a seu irmão: "Arder vivo com alcatrão, meu irmão/ Até não ser mais tua mina/ Patrão!". O poeta ainda, pelo uso do aumentativo "ão" aproxima as duas palavras, "irmão" e "Patrão", criando um par ambíguo. De um lado o irmão, família, libertação, força positiva e o patrão com sua opressão, dor e exploração. Do outro a possibilidade desse mesmo Patrão agora ser irmão.
A escolha deste último poema se justifica pelo sentimento de se lançar ao futuro. Até agora podemos ver nos dois poemas inicial um resgata das origens, com o poema "Xibugo". Uma leitura de convite à possibilidade de mudar o presente com o poema "Grito negro". E por fim, o poema "Poema do futuro cidadão", encontraríamos na voz do poeta o lugar de Moçambique definitivamente livre:

"Poema do futuro cidadão"

Vim de qualquer parte
de uma nação que ainda não existe.
Vim e estou aqui!

Não nasci apensa eu
nem tu nem outro...
mas irmão
Mas
tenho amor para dar às mãos-cheias.
Amor do que sou
e nada mais.

E
tenho no coração
gritos que não são meus somente
porque venho de um País que ainda não existe.

Ah! Tenho meu Amor a todos para dar
do que sou.
Eu!
Homem qualquer
Cidadão de uma Nação que ainda não existe.
(LEITE, 2010. p. 19)

Este cidadão poético é de origem geográfica desconhecida, "de qualquer parte". Não importa nesse contexto de qual hemisfério, continente ou país. Ele está presente e isto basta, "Vim e estou aqui!". Convida a todos para a formação da história, e, portanto, a formação de uma coletividade nunca antes vista. Esse cidadão é local, é o moçambicano independente, mas também são os refugiados palestinos, os moradores de rua, as minoria. Todos os que estão à margem.
Ele quebra a lógica individualista do capitalismo, pois não há individuo, mas sim irmão, cheio de amor: "Não nasci apenas eu/ nem tu nem outro.../ mas irmão. / Mas/ tenho amor para dar às mãos-cheias/ Amor do que sou/ e nada mais.". O poeta em seguida encarna a coletividade quando diz ter dentro de si o grito no peito, o que nos permite recordar diretamente do poema "Grito negro".
O sujeito poético está, portanto, fundamentando as bases dessa nova Nação: "Ah! Tenho meu Amor a todos para dar/ do que sou". E ainda afirma, que sendo ele homem comum e contribuinte a esse futuro, todos os demais que se colocarem nessa mesma condição de humildade, estão aptos a construir esse novo país.
Nosso trabalho teve como tentativa, a construção de uma linha de compreensão na poética de Craveirinha, que passa pela importância de um passado primordial, não só moçambicano, mas de toda a cultura africana. O convite á libertação não apenas política, mas psicológica do próprio povo, que precisa queimar como um carvão para alcançar a liberdade e assim por fim, poder projetar um novo futuro de nação.























Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. "Ensaio como forma". In: ADORNO, T. W. Notas de literatura I. São Paulo: Livraria Duas Cidades, Editora 34, 2003. p 15-45.
DICIONÁRIO, eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. (v 3.0). Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
JORGE, S. R. "José Craveirinha: e a busca da palavra moçambicana". In: CAMPOS, M. C. S; e SALGADO, M. T (Org.). África & Brasil: letras em laços.
LEITE, A. M. José Craveirinha: antologia poética. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

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