José de Alencar e as três Américas Línguas, linguagem literária e identidades

July 31, 2017 | Autor: V. Rezende Borges | Categoria: History, Cultural History, Literature, Identity (Culture), Linguagem, José de Alencar
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José de Alencar e as três Américas Línguas, linguagem literária e identidades Valdeci Rezende Borges, Universidade Federal de Goiás/Catalão (UFG/CAC)

Introdução O romancista José de Alencar foi escritor comprometido com seu ofício e o colocou a serviço da “formação de uma nacionalidade”. Sua Jornadas Andinas de Literatura Latino-americana | 2010

escrita, engajada nessa luta, expressa em prefácios, pós-escritos e cartas, seu modo de fazer literatura e as intencionalidades nela depositada. Ela esclarece as relações estabelecidas entre as tradições culturais, americanas e europeias, e a modernidade, as influências recíprocas entre povos, culturas e nacionalidades diversas devido à colonização e às migrações. É objetivo neste texto tratar como Alencar abordou, em três textos (“Carta ao Dr. Jaguaribe”, de 1865, “Pós- escrito” a segunda edição de Iracema, de 1870, e “Questão Filológica”, de 1872), as trocas ocorridas entre as línguas do Novo Mundo, das Américas, portuguesa, inglesa e hispânica, e as “línguas mães da Europa”, qual sejam, o Português clássico e o abrasileirado, o Inglês e o Espanhol europeus e aqueles da América. Considera-se ainda as reflexões do crítico Manoel Pinheiro Chagas, sobre o assunto no texto “Literatura Brasileira – José D’Alencar”, de 1867, com o qual o escritor dialogou ao produzir a defesa de suas práticas literárias.

DAS intenções alencarianas e da primeira censura à sua escrita

O “poeta brasileiro” tinha “de traduzir em sua língua as ideias, embora rudes e grosseiras, dos índios”, por mais que “nessa tradução” estivesse grande dificuldade. Daí sairia “o verdadeiro poema nacional”. No entanto, questionando a própria poesia como gênero para apresentar seu trabalho de investigação laboriosa e arqueológica, resolveu “desviar o espírito dessa obra e darlhe novos rumos”, lembrando-se “de fazer uma experiência em prosa”. Iracema era “pois, um ensaio ou antes mostra”, em que buscou realizar suas “ideias a respeito da literatura nacional”, achando “aí poesia inteiramente brasileira, haurida na língua dos selvagens” (ALENCAR, 1964, v. 2, p. 1122-5). Já, dois anos após o lançamento de Iracema, doutro lado do Atlântico, foi publicado, no Porto, o livro Novos ensaios críticos, de Manoel Pinheiro Chagas, no qual o escritor português, ao tratar da literatura brasileira, dedicou um capítulo a Alencar e focou sua análise nesse livro. Em tal texto, o romancista recebeu elogios e honrarias pela escrita da obra, mas também foi censurado pela falta de correção no emprego da língua portuguesa. Para Chagas, apesar dos muitos talentos que se avultavam na “nossa antiga colônia americana”, não se podia dizer que o Brasil possuísse uma literatura nacional que refletisse “o caráter” de seu povo, que concedesse vida às suas tradi-

Em 1865, Alencar lançou Iracema e escreveu

ções e crenças e que fosse “a alma” da nação,

a “Carta ao Dr. Jaguaribe”, declarando que esse

com “todas as dores e júbilos que, através dos

escrito poderia chamar-se “como e por que es-

séculos, a foram retemperando”. O Brasil, como

crevi Iracema”. Nessa refletiu sobre sua busca

nação moderna e filha da Europa, não tinha “ain-

por encontrar uma forma literária para expressar

da uma existência bastante caracterizada, para

a nacionalidade por meio de uma produção so-

que os seus incidentes, refletindo no espelho

bre a vida selvagem dos indígenas brasileiros,

da literatura”, pudessem “deixar nele imagem

mas que não falassem uma linguagem clássica.

bastante colorida e enérgica.” Faltava-lhe um

1934

“período laborioso de uma gestação dificílima”,

“É isso que deve dar ao Brasil a literatura que

como ocorrera nas repúblicas espanholas na

lhe falta, foi isso finalmente o que o sr. José de

América, e “uma iniciativa no movimento civili-

Alencar compreendeu e tentou na formosa lenda

zador do mundo” debatendo as “grandes ques-

cearense, que abre um novo e desconhecido ho-

tões” da humanidade, como faziam os Estados

rizonte aos poetas e romancistas de Santa Cruz”

Unidos, que pudessem “na sua literatura deixar

(CHAGAS, 1867, p. 215-6).

tos para inflamar sua literatura com o fogo do combate, o ardor, a veemência, o entusiasmo e as comoções das lutas, os quais comporiam as páginas de “uma epopeia sublime”, coordenada, talvez, por um Homero e formando a “Ilíada gigante desses povos” (CHAGAS, 1867, p. 212-3).

Chagas considerou que, desde o Caramuru, de Santa Rita Durão, os poetas brasileiros tinham “entrevisto a mina riquíssima” de onde poderiam “arrancar diamantes literários”, mas que, até aquele momento, nenhum se impregnara “bastante nessa inspiração selvática” e tivera “ânimo para se banhar completamente

Na América do norte, os Estados Unidos ti-

nesse formoso lago poesia estranha às regras e

nham voto na congregação dos povos que diri-

aos hábitos europeus”. Os mistérios da poesia,

giam a marcha da humanidade, a “voz de seus

os esplendores e sombras “da confusa flores-

escritores” não morria no “recinto” de suas

ta das tradições populares sempre assustaram

fronteiras, sua literatura tinha “certo caráter

a literatura elegante”. Avançando em sua análi-

de apostolado”, sendo marcada também pelo

se, Chagas assegurou que “o que sucedeu na

“estudo sério, e imparcial do passado”, caracte-

Europa com a poesia popular, aconteceu no

rístico da moderna literatura européia. Cooper

Brasil com a literatura indiana”, por meio de

era “o representante dessa literatura patriótica”,

Magalhães e Gonçalves Dias, mas que, com

com o tipo que criou, Nathaniel Bempo, e as fi-

a morte do último, “antes dele ter inaugurado

guras que se agrupavam em torno deste vulto.

verdadeiramente a literatura nacional no Brasil”,

Esse tipo era “o protesto vivo contra aqueles

pertencia à Iracema, de Alencar, “a honra de ter

que da Nova Inglaterra” queriam “fazer apenas

dado o primeiro passo afoito na selva intrincada

a sucursal da antiga” e que tentavam assim

e magnificente das velhas tradições” (CHAGAS,

“afogar no seu germe a vivaz nacionalidade”

1867, p. 216-8).

(CHAGAS, 1867, p. 214-5).

Se os leitores de Cooper lamentavam que não

Para Chagas, as nações americanas, se quises-

houvesse, no Brasil, um poeta que soubesse

sem “verdadeiramente fazer ato de independên-

aproveitar os tesouros da poesia espalhados por

cia, e entrar no mundo com foros de países que

esse território e que, da mesma forma que aque-

[tinham] nobreza sua”, deveriam, como Bempo,

le, desse relevo às tradições e crônicas desses

“esquecer-se um pouco da metrópole europeia,

povos, “Alencar livrou sua pátria desse labéu”,

impregnar-se nos aromas do seu solo”, proclamar-

com Iracema, em que se revela estilista primoro-

se filhas adotivas, mas “ternas e amantes das flo-

so, pintor de paisagens natais e cronista simpáti-

restas do Novo Mundo, e aceitar as tradições dos

cos dos antigos povos brasileiros. “Pela primeira

primeiros povoadores”. Na poesia desses povos

vez aparecem os índios, falando a sua linguagem

primitivos, estava “a inspiração verdadeira”, que

colorida e ardente, pela primeira vez se imprime

deveria “dar originalidade e seiva à literatura ame-

finalmente o cunho nacional num livro brasilei-

ricana”. Foi isso que compreendeu Fennimore

ro [....]”. Portanto, “A musa nacional solta[va]-se

Cooper e fez seus romances tão apreciados por

enfim dos laços europeus” e vinha sentar-se à

uma geração que desprezou “as estioladas e pá-

sombra das bananeiras vendo o sol apagar seu

lidas plantas de estufa, nascidas numa atmosfera

facho ardente na orla das florestas americanas.

falsa”. Fechando seu raciocínio, Chagas conclui:

Chagas remeteu a uma crítica não identificada,

1935

José de Alencar e as três Américas: Línguas, linguagem literária e identidades

profundo sulco”. Assim, faltavam-lhe elemen-

Jornadas Andinas de Literatura Latino-americana | 2010

veiculada num jornal do Rio de Janeiro, que apon-

estavam “à frente desta cruzada de novo gê-

tou como “defeito” do livro a profusão de termos

nero”. Finalizando, voltou novamente a Alencar,

indígenas espalhados em suas páginas, para con-

tratando da sua postura de revolta contra o por-

trapor-se a ela. Para ele, esse aparato não tornava

tuguês, de seu estilo, linguagem e lugar na cria-

ininteligível e nem desagradável a prosa do autor

ção de uma literatura nacional. Ressaltou que

e em nada prejudicavam o interesse pela leitura:

não era “dos mais audazes revoltosos” e que

“não creio que possa macular por forma algu-

seu “estilo verdadeiramente mágico” resgatava

ma o formosíssimo quadro do pintor brasileiro”

“plenamente as incorreções de linguagem”, mas

(CHAGAS, 1867, p. 219-20).

que se desejava “que nem essa leve mácula

No entanto a obra possuía problemas. Seu

existisse num livro primoroso”, como Iracema,

“defeito” ele via “em todos os livros brasileiros”;

que estava destinado “a lançar no Brasil as ba-

era “a falta de correção na linguagem portugue-

ses duma literatura verdadeiramente nacional”

sa, ou antes a mania de tornar o brasileiro uma

(CHAGAS, 1867, p. 223-4).

língua diferente do velho português, por meio de neologismos arrojados e injustificáveis, e de insu-

DUAS respostas de Alencar aos censores

bordinações gramaticais”. Questionou os motivos

A resposta de Alencar a tais acusações veio

para que um livro brasileiro se distinguisse na linguagem de um livro português, quando os livros dos autores americanos não se distinguiam dos livros dos ingleses, que “escrevem exatamente o mesmo correto inglês”, ou, no caso dos escritores latino-americanos, que “entoam os seus inimitáveis versos no mesmo sonoro e altivo espanhol” (CHAGAS, 1867, p. 221-3).

à público em 1870, no “Pós- escrito”, à 2ª. edição de Iracema.. O escritor afirmou a real existência de um processo de mudanças no Brasil, mas discordou que esse fosse produzido e originado nos escritores, delegando ao povo tal ação. Considerou que a tendência, não para formação de uma nova língua, mas para a transformação profunda do idioma de Portugal, existia no Brasil,

Para o crítico os autores portugueses tinham

sendo fato incontestável. Porém não atribuía aos

uma postura e prática literária acertada, cingin-

“escritores essa revolução filológica” e remetia

do-se “às velhas regras” e sem desviar “da li-

para a necessidade de buscar o germe dela e seu

nha reta”, enquanto os escritores brasileiros cor-

fomento no espírito popular, no falar do povo.

rompiam o idioma e se compraziam “em seguir

Enfatizando a independência, o romancista dizia

umas veredas escabrosas”, por onde caminhava

que a “revolução” era “irresistível e fatal” e que

“aos tombos a língua de Camões”. Os autores

havia “de ser larga e profunda”, pois se os povos

brasileiros, desviantes e viciosos, estragavam,

viviam em continentes distintos, sob climas dife-

desfiguravam e maculavam a língua portuguesa,

rentes, não se rompiam “unicamente os víncu-

fazendo “brotar um idioma novo” de uma língua

los políticos”, operava-se, também, “a separação

recebida “dos seus antepassados”, de “uma lin-

nas ideias, nos sentimentos, nos costumes, e,

guagem formosa, harmoniosa e opulenta”, que

portanto, na língua, que é a expressão desses

estragada, desfigurada e maculada, era transformada, de “corpo cheio de vida em cadáver purulento, de manto de púrpura em farrapo ignóbil” (CHAGAS M. P. 1867: 223).

fatos morais e sociais.” Reafirmando a ideia da língua como fato histórico e como arma política para produção da independência cultural que reforçava aquela do campo político, defendeu que

Chagas, mesmo que avaliasse os autores

era um engano completo pretender que o inglês

brasileiros como “escritores de primeira ordem,

e o espanhol da América fossem os mesmos

talentos verdadeiramente grandiosos”, declarou

da Europa cuja diferença podia-se notar. Diante

que entraria a “dizer verdades”, que, há mui-

disso, ainda questionou: “E como podia ser de

to, pesavam em sua consciência, àqueles que

outra forma, quando o americano se acha no

1936

seio de uma natureza virgem e opulenta, sujei-

seguida Alencar passou a tratar das acusações

to a impressões novas ainda não traduzidas em

de Antonio Henrique Leal, que “contestou que

outra língua, em face de magnificiências para as

os portugueses da América possuíssem uma

quais não há ainda verbo humano?” (ALENCAR,

literatura peculiar ou elementos para formá-la”

1964, v. 2 p. 1130).

e que também reproduziam “a cansada censu-

vida social e cultural na América, onde os contatos existentes entre línguas diferentes, não só entre indígenas e europeus, como aqueles resultantes dos processos migratórios, agiam na transformação de uma língua, Alencar ampliou sua concepção apontando que a literatura nacional devia nascer da mestiçagem, da mescla entre o índio, o branco e o negro. Ele salientava que cumpria “não esquecer que o filho do Novo

ra” ao seu “estilo frouxo e desleixado”. Assim, o romancista, ao mesmo tempo em que esboçava um molde do tipo da nacionalidade literária condizente com o Brasil, que se tornava vazado nas obras que produzia e que se contrastava em pontos de estilo com aquele padrão chamado clássico da língua portuguesa, defendia o “cisma gramatical” que consubstanciava a separação e a independência política e cultural brasileira ((ALENCAR, 1964, v.2, p. 1131, 1133-5).

Mundo” recebia “as tradições das raças indíge-

As censuras de Leal, a princípio publica-

nas” e vivia ao “contato de quase todas as raças

das em dois números do jornal maranhense O

civilizadas” que aportavam a “suas plagas trazi-

País e, depois, estendidas e arquivadas no livro

das pela imigração.” No caso brasileiro, julgou

Lucubrações, publicado em Lisboa, levaram

que os estrangeiros eram “um veículo de novas

Alencar escrever outro artigo rebatendo as con-

ideias e um elemento da civilização nacional”,

siderações do crítico. Em “Questão filológica”, de

sendo aqueles que vinham de fora “os operá-

1874, ele esclareceu que era a partir dos termos

rios da transformação de nossas línguas”. Dizia

da crítica presente num capítulo daquele livro,

que eram “esses representantes de tantas ra-

que fazia reparos a seu pós-escrito de Iracema

ças, desde a saxônia até a africana,” que faziam

e censurava o estilo d’O Guarani, “tachado de

“neste solo exuberante amálgama do sangue,

frouxo e desleixado”, que acompanharia a con-

das tradições e das línguas”. Deste modo, não

trovérsia (ALENCAR, 1960, v.4, p. 939-40).

se admirava que um literato português notasse “em livros brasileiros certa dissonância com o velho idioma quinhentista”, pois essa mesma dissonância os escritores daqui achava-se nas páginas portuguesas, como de Mendes Leal, marcadas pelo estilo clássico, que destoava “no meio destas florestas seculares, destas catadupas formidáveis, desses prodígios de uma natureza virgem, que não podem sentir nem descrever as musas gentis do Tejo ou do Mondego” (ALENCAR, 1964, v.2, p. 1130-1).

Assinalou sua postura política pela busca de nossa autonomia cultural, ao advertir que seu “verdadeiro contendor” não era Leal, “mas a literatura portuguesa, que, tomada de um zelo excessivo”, pretendia “por todos os meios impor-se ao império americano.” Considerou que, nessa empreitada, ia “à cola grande parte dos escritores do Brasil”, país “ainda tão pouco nosso”, os quais sacrificavam “o sentimento nacional por alguns elogios da imprensa transatlântica”. Era “contra essa corte”, que julgava “formidável pelo

Sendo assim, Alencar, engajado de modo ex-

talento, número e intolerância”, que ele comba-

plícito na luta contra os escritores portugueses

tia. Vislumbrava, na mocidade, o despontar de

e na querela do afastamento do padrão culto

“melhor seiva, de alguns talentos bafejados pe-

e clássico do Português, defendia “o direito de

las auras americanas”, nos quais ainda poderiam

criar uma individualidade nossa, uma individu-

vibrar “os assomos de nossa independência

alidade jovem e robusta, muito distinta da ve-

literária, como outrora a ideia da emancipação

lha e gloriosa individualidade portuguesa.” Em

política fez palpitar a geração de 1823.” Possuía

1937

José de Alencar e as três Américas: Línguas, linguagem literária e identidades

Além dos fatores naturais e da formação da

Jornadas Andinas de Literatura Latino-americana | 2010

tímidas esperanças de que tal independência literária ocorresse, pois via entre os jovens tal sentimento nacional, mas também receio; uma vez que viviam e respiravam a “atmosfera estrangeira” e acolhiam com “indiferença trabalhos de nossa infantil nacionalidade” (ALENCAR, 1960, v. 4, p. 940-1). Rememorando, lembrou o começo da controvérsia. Leal havia combatido seu estilo e ele, na segunda edição de Iracema, defendeu-se contra a “tão repisada censura”, traçando um paralelo entre o estilo quinhentista e o moderno, que é “mais leve, singelo, livre e desembaraçado”. Porém, como o crítico lhe atribuía, com “ignorância sobre a língua, a loucura de querer transformá-la”, dirigia-se “à luta” (ALENCAR, 1960, v. 4, p. 941). Dentre as questões discutidas por Alencar, a última a ser abordada, já mencionada no prefácio a segunda edição de Iracema, foi da diferença que se notava entre o inglês e o espanhol da América e as línguas mães da Europa, a qual tornava mais saliente. Referindo-se ao caso inglês, recorreu à opinião “de Webster, o primeiro glossólogo americano”, que esclarecia que: “Desde que duas raças de estirpe comum separam-se, colocam-se em regiões diferentes, a linguagem de cada um começa a divergir por vários modos”. Adensando sua convicção, citou Alfred Maury, que defendia que as “causas de alteração e transformação das línguas” resultam da “evolução do entendimento” humano e da sociedade, somadas à outras ligadas à “constituição moral e física das raças” às quais foram transmitidas. A seu ver, a organização física dos celtas e iberos, “obrigou-os a modificar a pronúncia do latim”, trazendo “gradualmente a metamorfose das palavras”. O gênio intelectual de um povo chega “a dar até à fraseologia, à sintaxe um caráter novo”. Assim, era “que os anglo-americanos, todos os dias”, alteravam “a pronúncia original de seu idioma de origem anglo-saxônia”, e introduziam “locuções contractas”, que recordavam as línguas dos indígenas da América, de quem tendiam a tomar a constituição física (ALENCAR, 1960, v. 4, p. 960). Para o romancista, se Leal refutasse essas opiniões, poderia contestar o que ele, Alencar, afirmara sobre nosso idioma. Passando ao caso do

1938

espanhol, assegurava não conhecer a fundo esta língua e não ousava emitir juízo próprio acerca da linguagem dos escritores argentinos e chilenos. Mas, por intermédio de “testemunho de pessoas autorizadas”, sabia “que o estilo e a fraseologia da imprensa argentina diferia tanto do espanhol europeu, como o nosso do português lusitano”. Na visão de Alencar, se, num primeiro momento, os escritores da América, não achando na terra da pátria vestígios e tradições de uma literatura indígena, imitaram os modelos da metrópole e de outras nações com suas fórmulas consagradas, essa fase requereria uma superação, a qual estava em andamento. Para ele, “o escritor verdadeiramente nacional acha na civilização de sua pátria, e na história já criada pelo povo, os elementos não só da ideia, como da linguagem que a deve exprimir.” Os americanos do Norte já se haviam emancipado da “tutela literária da Inglaterra” e chegaria a vez dos espanhóis e brasileiros (ALENCAR, 1960, v. 4, p. 956, 960). Pensando a literatura, a história, a língua e a linguagem como armas políticas de emancipação cultural ao domínio das antigas metrópoles, José de Alencar defendia a “revolução” que ele observava em curso no cotidiano da sociedade brasileira contra a imitação dos “modelos da metrópole”. Esse processo estava ligado à independência nacional, ao analfabetismo, ao tamanho do mercado de impressos e de circulação de livros. Assim, quando contássemos mais leitores frente aos analfabetos e tivéssemos para nossos livros a circulação que davam os Estados Unidos aos seus, “nenhum escritor brasileiro se preocupar[i]a mais com a opinião que dele formar[iam] em Portugal”. Ao contrário, seriam os escritores portugueses que se afeiçoariam a nosso estilo, para serem entendidos do povo brasileiro e terem esse mercado para derramarem seus livros (ALENCAR, 1960, v.4, p. 961).

CONSIDERAÇÕES finais Indígenas, africanos e europeus, foram vistos como “operários da transformação de nossas línguas” e da linguagem literária, as quais deveriam contribuir para formar as identidades das jovens nações americanas, como a brasileira. Nesse movimento tenso, de trocas, assimilações e

José de Alencar e as três Américas: Línguas, linguagem literária e identidades

resistências, a intelectualidade tinha por missão contribuir para que a independência política se desse também no campo da cultura, da separação das ideias, dos sentimentos, dos costumes e, portanto, da língua como fato social e da linguagem literária como sua representação. As trocas e interações ocorridas entre as diversas línguas na América foram pensadas como elementos formadores de identidades, de consolidação das independências políticas e armas de resistência aos modelos estéticos das antigas metrópoles.

Referências ALENCAR, J. Questão filológica. In: ALENCAR, J. Obra completa. Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar Ltda, 1960. v. 4, p. 939-961. ALENCAR, J. Carta dr. Jaguaribe. In: ALENCAR, J. Ficção completa e outros escritos. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1964. v. 2, p.1122-1125. ALENCAR, Jose de. Pós-escrito [à 2ª edição de Iracema]. In: ALENCAR, J. Ficção completa e outros escritos. Rio de Janeiro: Companhia Aguilar, 1964. v. 2, p.1125-1136. CHAGAS, M. P. Literatura brazileira – José d’Alencar. In: CHAGAS, M. P. Novos ensaios críticos. Porto: Casa da viúva Moré, 1867. p. 212-224. DE MARCO, V. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar. São Paulo: Martins Fontes, 1986. FIORIN, J. L. O descobrimento da língua brasileira. In: BRAIT, B.; BASTOS, N.(orgs.) Imagens do Brasil: 500 anos. São Paulo: EDUC, 2000. SERRA, T. Língua “brasileira” e nacionalismo no romance romântico de José de Alencar. In: COLLOQUE INTERNATIONAL LUSOGRAPHIE/ LUSOPHONIE, 1994, Rennes. Cadernos... Rennes: Université Rennes 2. v. 2.

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