José Pessoa e a reforma da Academia Militar

June 14, 2017 | Autor: Celso Castro | Categoria: Brazil, Military, Invention of Tradition, Exercito Brasileiro, Academia Militar
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INVE DI OES i\NI )0 T NO EXÉRCITO BRASILEIRO: osé Pessoa e a . tar reforma da Escola Celso Castro

Introdução uem assiste a uma cerimônia de forllla tura dos novos oficiais do Exé cito brasileiro, na Academia Mili­ tar das A gulhas Neg11lS , dificilmenta deixa de sentir-se imerso na atmosfe­ ra de tradição que cerca o evento. Vá­ rios elementos sugerem a herança de um pAssa do imemorial: o "espadim", uma reprodução em miniatura da es­ pada do duque de Caxias, patrono do Exército, que os cadetes recebem no primeiro ano do curso e devolvem no dia da formatura; a entrada no pátio principal de cadetes trazendo as ban­ deiras e estandartes históricos; a apa­ rição dos formandos vestindo os uni­ formes históricos da Academia. No en­ tanto, todos esses elementos -a exem­ plo de muitos outros na Academia ou no Exército como um todo - são bem mais recentes do que pretendem pareEstucJo. flistIJriaM, Rio de Janeiro. voL 7,

n.

eer e, além disso, foram consciente­ mente inventados. O fenômeno da invenção das tradi­ ções, expressão que ficou consagrada ap6s a coletânea organizada por Hobs­ bawm & Ranger,l pode ser encontrado nce mais diversos países e contextos históricos. Pode também ser patlVCina­ do por diferentes agentes, desde o Esta­ do nacional até grupos sociais específi­ cos. Comum a todos os casos é a tenta­ tiva de expressar identidade, coesão e estabilidade social em meio a situações de transformação histórica. Isso é feito através do recurso à invenção de ceri­ mônias e símbolos que evocam um pas" sado muitas vezes ideal ou mitológico. A reforma da Escola Militar do Re­ 2 alengo, idealizada e iniciada por José Pessoa, comandante entre 1931 e 1934, é um caso exemplar de invenção de tradições no Exército brasileiro. Trata-se de um caso historicamente bem-sucedido, como o prova a perws..

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nência, por seis décadas, das tradições então foIjadas. Pretendo, atravéa dele, apresentar a gênese e discutir o signi­ ficado de elementos simbólicos ainda presentes no Exército brasileiro.

1. José Pessoa Uma tradição "inventada" precisa, obviamente, ser aceita e Assimilada por um círculo social para "vingar", isto é, ter eficácia e continuidade. No an­ .tanto, ela é sempre o resultado de um projeto consciente, desenvolvido por indivíduos específicos. No nosso caso, temos um personagem central: José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque

(1885-1959).

o movimento revolucionário chefiado por Getúlio Vargas. No dia 24, apás várias vitórias dos revoltosos, 08 co­ mandantes militares da capital força­ ram a renúncia do presidente Wash ­ ington Luís. José Pessoa tomou parte ativa no cerco e ocupação do palácio Guanabara. Vitoriosa a revolução, per­ maneceu um breve período como co­ mandante do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal e em seguida foi no­ meado, em 19 de novembro de 1930, comandante da Escola Militar do Re­ alengo. Exerceria essa função até 28 de abril de 1934, e nesse período teria a oportunidade de implantar a reforma que será aqui examinada.

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Nascido na Paraíba, José Pessoa pertencia a uma importante família de políticos. Era sobrinho de Epitácio Pes­ soa, presidente da República de 1919 a 1922, e i..mão de João Pes.soa, presi­ dente da Paraíba de 1928 a 1930, cujo AMsssinato desencadeou a Revolução de 1930. Quanto à sua própria carJei­ ra, formou-se em 1913 pela Escola Mi­ litar de Porto Alegre e, em 1918, fez estágio na França, chegando a partici­ par de combates na guerra, comandan­ do um pelotão de soldados franceses. Em 1919 foi promovido a capitão, por atos de bravura. Ainda na Europa, es­ pecializou-se em carros de combate, tendo sido, ao voltar ao Brasil em 1920, organizador da primeira unidade de tanques do Exército brasileiro. Ainda em 1920, foi nomeado para acompa­ nhar os reis da Bélgica em visita ao Brasil. Promovido a major em 1923, assumiu o posto de subcomandante da Escola Militar. Em seguida ocupou vá­ rios comandos da 8J'ü18 de Cavalaria, sendo promovido a coronel em 1929. E m 3 de outubro de 1930 eclodiu no Rio Grande do Sul e em outros estados

2. Política e disciplina A Revolução de 30 náo foi, de forma alguma, consensual no interior do Exército. Nos anos que se seguiram, ocorreram sérios conflitos internos, motivados por divergências doutriná­ rias, organizacionais a, principalmen­ te, políticas. Exemplo eloqüenta disso são as dezenAS de movimentos inter­ nos (incluindo agitações, protestos e revoltes) que abalaram o Exército en­ tre 1930 e a instauração do Estado Novo, quando ftnalmente se consolidou um projeto hegemônico para a institui­ ção, em torno de Góis Monteiro e Euri­ 4 co Gaspar Dutra.

A integridade do Exército era, por­ tanto, uma questão em aberto quando José Pessoa assumiu O comando da Escola Militar, logo após a vitória do movimento revolucionário. Ele procu­ rou, desde o início, vincular a reforma que pretendia realizar na Escola ao contexto pás-revolucionário. Essa in­ tenção era explícita já no Boletim n· 1 de seu comando, de 15 de janeiro de 1931, dia em que tomou posse:

INVENTANDO TRADIÇÕES NO ExtRCITO BRASILEIRO

"Cadetes! a dever que o Exército tinha a cumprir para com a Repú­ blica já está consumado. (...) Mas a Revolução não terminou ainda, eis a palaVTa de ordem do momento. E é exato. A República está salva, res­ ta salvar a Nação. Redimir a Repú­ blica foi o meio, engrandecer a Na­ ção é o único e verdadeiro fIm. Reva­ lidada a forma de governo, cumpre restaurar o Brasil. (... ) Assim como o Exército foi o fator decisivo da Revolução, outro papel essencial ca­ ber-lhe-á no período de Renovação, na fase de Reeducação que 8e vai iniciando. (...) a Exército, como ins­ tittúção democrática por excelência, como verdadeira ossatura da nacio­ nalidade é, por sua natureza, a ins­ tituição que primeiro e mais rapida­ mente se deve recompor, tanto é ver­ dade que a integridade da Pátria, mais que a do regime, repousa em sua eficiência," Para além da preservação da ordem republicana, os grandes objetivos da revolução eram "salvar a Nação" e "manter a integridade da Pátria". A identifIcação do Exército com os con­ ceitos abstratos de "Pátria" e "Nação" procurava evitar refletir as divisões existentes na sociedade, afastando a instituição, no plano simbólico, dos conflitos políticos e ideológicos. a Exército, enquanto "ossatura da nacio­ nalidade", teria um papel fundamental na fase de "reeducação" e ')oenovaçáo" que se iniciava. Era preciso, para tan­ to, que ele logo se "recompusesse". A Escola Militar, onde seriam formadas as futuras gerações de oficiais, era vis­ ta, nessa perspectiva, como uma insti­ tuição seminal do unovo Exército" e, por extensão, da nova Nação que se pretendia construir.

a primeiro passo da reforma foi a melhoria das condições materiais da

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Escola, consideradas extremamente precárias por José Pessoa. A rede de esgotos foi canalizada, terrenos panta­ nosos foram drenados, modificou-se o sistema de coleta de lixo, cozinha e dormitórios foram pintados, o mobiliá­ rio substituído e constrlÚdos "cassinos" (salas de lazer) para cadetes e ofIciais. A reforma, porém, deveria ir muito além disso. A preocupação fundamen­ tal de José Pessoa era com a criação de "mentalidades homogéneas", de "um novo estado psicológico" no corpo de ofIciais. A reforma da Escola Militar seria apenas o primeiro passo desse processo. Em sua autobiografIa, ele es­ creve a respeito:

"a velho regime político decaído não tinha deixado ali coisa alguma de útil ou merecedora de ser relembrada. E verdade que dava anualmente turlllAS de aspirantes por conclusão de curso, mas nelas os elementos variavam desde o bom ao mau. As suas últimas tUflIl9S, então, foram totalmente sacrifIcadas. E vemo-las ai [isto é, no início da década de 50l, em grande ;mrte divorciadas da sua profissão. E fato que, no seio do Alto Comando, surgem admiravelmente belas inteligências e padrão de sol­ dados devotados, porém isso não é uma regra. a que o Exército procuJ;8 formar são -mentalidades unifor­ mes, e não personalismos. Resta­ nos, entretanto, a esperança de que a mentalidade está sendo mudada e os métodos atuais operarão, certe­ mente, novas e homogêneas gera· ções." ,

a que José Pessoa quer dizer com "homogeneidade''? a trecho acima afIr­ ma que, dentre os oficiais fotInados durante a Primeira República C'o velho regime político decaído''), agora no Alto Comando do Exército, apenas alguns

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são bons soldados. A maioria, encon­ tra-se udivorciada de sua proflssão". A imagem de um "divórcio" aparece tam­ bém em uma entrevista concedida por José Pessoa ao jornal A Noite de 17 de dezembro de 1931, ao final de seu pri­ meiro ano no comando da Escola. Per­ guntado sobre política, responde: "Não sou político. Não quero ser. A nossa maneira de fazer política tem sido a gênese de muitas infelicida­ des para o país. (...) Ao assumir este comando, reuni mestres e cadetes, advertindo-os de que seria desacon­ selhável o trato de assuntos em de­ sacordo com a disciplina militar, se­ parando-me completamente dos po­ líticos. Só não chamo a isso um di­ vórcio porque nunca estivemos jun­ tos. Não se deve inferir daí que eu os condene. Absolutamente. (... ) Mas a política, para os políticos e mais nin­ guém." Para José Pessoa, política e discipli­ na militar eram, portanto, duas coisas que não se misturam. Unindo os dois trechos transcritos, é possível inferir que gerações homogêneas de oficiais seriam aquelas disciplinadas e "divor­ ciadas" da política, enquanto as hetero­

gêmas seriam as "sacrificadas" pela política, que fere a disciplina militar. Em outro documento (JP/ag 36.04.12), referindo-se ao seu tempo de estudante na Escola Militar, José Pessoa fala dos "hábitos turbulentos dos meninos de Floriano", que cometiam "excesso s de conduta". E conhecido o papel político de destaque que os jovens oficiais tive­ ram na consolidação da República. Mas se aquela geração mereceu, se­ gundo José Pessoa, as regalias discipli­ nares de que desfrutou, elas não deve­ riam tê-Ias passado como herança às gerações futuras. •

Em nome da reestruturação do Exército no período pós-revolucionário e da formação de um corpo disciplinado de oficiais, José Pessoa queria em pri­ meiro lugar afastar a política - que divide - e enfatizar a disciplina que une. Uma de suas medidas mais im­ portantes foi justamente na área disci­ plinar, com a criação de uma entidade chamada .'Corpo de Cadetes", reunin­ do o conjunto dos cadetes. Esse cor:po foi criado oficialmente no dia 25 de agosto de 1931- não por acaso data de 6 nascimento do duque de Caxias -, em solenidade à qual estiveram presentes, entre outras autoridades, o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas. -

A respeito dessa solenidade, há um fato curioso. Por encomenda de José Pessoa, foi feito pelo pintor J. Rocha Ferreira 11m quadro retratando o mo­ mento da entrega do estandarte do Corpo de Cadetes pelo presidente Ge­ túlio Vargas. O pintor baseou-se em fotografias publicadas pelos jornais, que retratavam Vargas com seu costu­ meiro chapéu gelot escuro à cabeça. José Pessoa, no entanto, solicitou, o quadro já pronto, que o chapéu fosse "retirado" da cabeça de Vargas, num sinal de respeito devido, porém esque­ cido. Foi feita, então, esta pequena fal­ sificação da realidade, em nome do efeito simbólico do quadro, que hoje se encontra na biblioteca da Academia Militar das Agulhas Negras. Com a criação do Corpo de Cadetes, o aluno matriculado na Escola passava a ser considerado parte de uma entida­ de coletiva e adquiria, além da condi­ ção de aluno, a situação militar de "praça especial". O enquadramento militar dos alunos foi consolidado, no ano seguinte, pelo RegulCD1le nto inter­ no do Corpo de Cadetes. Seu artigo 1" dizia que o Corpo de Cadetes, fonte permanente de onde saem as futuras gerações de oficiais, é verdadeiro sím-

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bolo do "futuro do Exército e da segu­ rança da Pátria." Os títulos de algu­ mas seções desse regulamento de­ monstram o grau de detalhamento que atingia, até então inédito na Escola Militar: "Da atividade e do repouso", "Dos alojamentos, dos pátios e dos ba­ nheiros", ''Do refeitório", "Do portão", "Das visitas", "Da conespondência", uQ levantar e o café", "Da reunião após o café", "Das aulas e sessões de estudo", "Da revista do recolher e outras revis­ �", "Do silêncio" etc. O espaço e o tempo dos cadetes pas­ savam a ser, dessa forma, totalmente visíveis e previsíveis. Com isso, a Esco­ la Militar aproxirnava-se do modelo de uma instituição total, categoria utiliza­ da por E. Goffman para designar esta­ belecimentos sociais que concentram indivíduos em tempo integral num único local e sob uma única autoridade, com atividades diárias rigorosamente estabelecidas e padronizadas.6 Mas a autoridade que deveria controlar o cumprimento dos regulamentos pelos cadetes não era basicamente exterior, como é o nOMnal nas instituições totais. O principal controle deveria ser a cons­ ciência dos próprios cadeus, através da criação do que José Pessoa chamava de "um novo estado psicológico", que tarnaria cada um "escravo de sua dig· nidade pessoaL ( ...) Cada cadete era prisioneiro de si mesmo. E, podemos afirmar, não havia prisão mais sólida." (JP/dv 53.00.00, 1II:33)

3. Os novos símbolos O objetivo principal da reforma pretendida por José Pessoa era, portanto, atingir "a alma e o coração" dos jovens candidatos a oficial. Por isso, suas mais importantes iniciativas - e as mais duradouras - foram no campo simból"



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co. Inventou-se um conjunto de símbo­ los que expressavam o perlencimento dos cadetes a uma tradição vinculada aos valores nacionais mais profundos.

Em primeiro lugar, os unifonnes dos cadetes foram mudados. José Pessoa os considerava simbolicamente inex­ pressivos e pouco distintos dos unifor­ mes dos soldados. Foi então solicitado o auxílio do artista José Walsht Rodri­ gues, autor de um A/bum dos unifor­ mes do Exército, para criar o novo pla­ no de uniformes da Escola Militar. Adotaram-se elementos retirados dos uniformes militares do Império, prin­ cipalmente da campanha de 1852 con­ tra Rosas: barretina, cordões com pal­ matórias e borlas, charlateiras de pal­ ma e palmatória escarlate e emblema simbólico para a cobertura. A cor pre­ dominante passava a ser a turquesa.

O novo plano de uniformes foi apro­ vado em 30 de abril de 1931. Segundo José Pessoa, não se tratava de urna simples combinação de peças, mas de um verdadeiro plano que visava obje­ tivos bem determinados, entre os quais "restabelecer-se, embora respeitando as l inhas gerais dos uniformes contem­ porâneos, os liames históricos do Cade­ te da Escola Militar." (JPfvp 31.05.12, doc. 1)

Um últímo elemento - porém o sim­ bolicamente mais importante - veio a completar o uniforme dos cadetes: o "espadim", uma réplica em miniatura da espada de campanha do duque de Caxias. A peça original foi localizada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, copiada, e os desenhos en­ viados à Europa, onde foram feitos os espadins. Através desta arll19 simbólica, José Pessoa pretendia cultuar "o pilar que sustentou o Império", "o maior general sulamericano", "invicto soldado", "aquele que melhor serviu à pãtria e mais a estremeceu." A figura de Caxias deveria "pairar no seio dos �

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cadetes do Brasil" como Napoleão en­ tre os de'"Saint-Cyr e Washington entre 7 os de West Point. Os primeiros espadins foram entre­ gues em dezembro de 1932, em soleni­ dade realizada em frente à estátua de Caxias no centro do Rio de Janeiro. Confol'lue as recém-criadas Instruções para0 recebimento e uso do espadim, os cadetes pronunciaram o seguinte jura­ ,

mento: ''Recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar." O espadim passou, desde entáo, a ser peça mantida pelos cadetes durante o curso na Escola Militar e devolvido pouco an­ tes da solenidade de formatura, quando é passado a um aluno calouro. Outros símbolos materiais foram criados durante a reforma de José Pes· soa: o estandarte e o brasão de aflUas do Corpo de Cadetes. Igualmente dese­ nhado por Walsht Rodrigues, o brasão trazia um escudo com uma torre de ouro, que simbolizava a Escola, tendo, ao fundo, o perfIl estilizado do pico das Agulhas Negras. Por que esta monta­ nha? Na ocasião, a Escola Militar fun­ cionava no subúrbio carioca do Realen.. go, e não na região de Resende/ltatiaia, onde está situado o pico das Agulhas Negras. Ocorre que, na época, esse pico ainda era considerado a mais alta montanha do Brasil. Além disso, fazia parte do maciço central brasileiro espinha dorsal do território nacional­ e era de idade geológica muito antiga­ outro aspecto de forte apelo simbólico. Para os que inventavam novas tradi­ ções, o pico das Agulhas Negras era visto, enquanto "síntese fIsiográfica" do maciço central, como um símbolo da unidade estrutural do Brasil, da mes­ ma fOl'ma que o Exército o era da Na­ ção e a Academia o era do Exército. Nas palavras de época do capitáo Mário Travassos, ajudante-de-ordens de José Pessoa:

"A constituição sienítica-nefelítica das rochas das Agulhas Neglas em­ presta-lhes caráter eruptivo de alta significação geológica, em vista da idade que lhes assegura a estabili­ dade de rocha primitiva do maciço central do Brasil. Este sentido seria transmitido ao brasão pela firmeza e estabilidade do símbolo, repre­ sentando a firmeza e a estabilidade ,s do Exército:

4. Uma nova aristocracia Outro elemento simbólico impor­ tante da reforma implementada por José Pessoa foi a reutilização do título de cadete para designar os alunos da 9 Escola Militar. Este título existira du­ rante o Império e nos primeiros anos da República (até 1897), sendo, origi­ nalmente, exclusivo dos alunos de ori­ gem nobre. José Pessoa começou seu discurso de posse no comando da Esco­ la - do qual acima foi transcrita uma parte - justamente com o vocativo "ca­ detes". em desuso havia mais de duas décadas. Com isso, ao mesmo tempo dava-se um ar aristocrático à condição de aspirante a oficial do Exército, reto­ mava-se um elemento do passado e transmitia-se a idéia de que ser cadete é pertencer a uma elite social. Numa carta ao ministro da Guerra, Góis Monteiro, de 31 de março de 1934, José Pessoa escreveu: "Com os exércitos contemporâneos, a tarefa mais dificil para os gover­ nos, a parte mais delicada a tratar, é a criação desse nervo motor que dá vida à nação arll1ada, isto é. a organização do corpo de oficiais. E que hoje, mais do que nos tempos passa­ dos, torna-se preciso que o corpo de oficiais constitua uma verdadeira -

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aristocracia, não a aristocracia de sangue, mas uma aristocracia f"lSi� ca, moral e profISsionaL" (JPfvp 31.05.12, doc. 29) A visão do cadete como membro de uma elite social, uma aristocracia do mérito, fundamentou uma série de ini· ciativas tomadas por José Pessoa du­ rante seu comando. No que toca ao recrutamento de alunos para a Escola Militar, ele reservou metade das vagas para o concurso de admissão aberto ao. civis - até então, a maioria de alunos era oriunda dos três colégios militare. em funcionamento (Rio de Janeiro, Porto Alegre e Fortaleza). No mesmo sentido, ele sempre se opôs à idéia de recriar uma escola preparatória ao in­ gresso na Escola Militar. José Pessoa pretendia alargar a ba­ se social de recrutamento para a Esco­ la, evitando o predomínio do recruta­ mento no próprio meio militar e favo­ recendo o i ngresso dos "melhores ele­ mentos". Foi também instituída uma inspe­ ção médica eliminatória e a necessida­ de de o candidato à Escola trazer um "conceito" firmado pelos comandantes dos colégios militares ou dos estabele­ cimentos de ensino secundários civis, que se tornavam, assim, fIadores do candidato perante o comando da Esco­ la Militar. Para José Pessoa, a "missão" da Es­ cola Militar era "aprimorar qualida­ des, e não corrigir defeitos" (JP/ag 36.04.12, doc. 32). Foram tomadas vá­ rias providências para dar projeção so­ cial ao cadete, como contatos com os clubes de maior projeção da época, o Fluminense e o Tijuca Tênis Clube, para que cadetes fossem convidados para todas as festas, ao mesmo tempo que se desestimulava seu compareci­ mento aos festejos suburbanos do 10 M'" 818r e de Bangu.

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5. Uma nova escola A localização da Escola Militar no Realengo sempre desagradou a José Pessoa: "Ali tudo é impróprio à formação do corpo de oficiais. O clima é exausti­ vo; 05 campos empantanados facul­ tam a proliferação dos mosquitos e, pois, os surtos de impaludismo; a paisagem, por toda parte, é cansati­ va e monótona; as condições da loca­ lidade, qualquer que seja o ponto de vista por que sejam encaradas, es­ tão abaixo das exigências necessá­ rias. E pela localização dentro da capital federal, ainda está sujeita a ser presa de agitações políticas que, periodicamente, inflamam a capital do país, como freqüentemente tem acontecido." (JP/ag 36.04.12, doc.

14) Já em seu Boletim n·1, José Pessoa falara da necessidade de se escolher um novo local para a Escola Militar. Criou-se então, em 4 de dezembro de 1931, uma Comis,ão Executiva da No­ va Escola, por ele presidida, e que logo elegeu a região de Resende como ideal para a construção da nova sede. Entre as razões apontadas, destacavam-se: a localização intermediária entre Rio, São Paulo e Minas Gerais, proporcio­ nando facilidades de comunicação com as principais cidades do país; o clima privilegiado - a região foi apelidada pelo médico Miguel Couto de "a Suíça brasileira"; a variedade de acidentes geográficos de que dispunha - as Agu­ lhas Negras, o rio Paraíba -, que, além do valor para a instrução militar, fa­ ziam José Pessoa sonhar com excur­ sões dos cadetes às montanhas e com a prática de esportes nãutico. no rio Pa­ raíba, podendo a futura escola tornar-

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se, "muito breve, uma espécie das fa­ mosas universidades de Oxford e Cam­ bridge, situadas à borda do Tâmisa, movimentando toda a cidade de Lon­ dres por ocasião de suas regatas"; fi­ nalmente, o fato de a cidade de Resen­ de ser considerada ideal para o conví­ vio social do cadete, por abrigar uma "sociedade homogênea" e de "arraiga­ das tradições", características da anti­ ga área cafeeira do vale do Paraíba, em cujo apogeu econômico "surgiu a famí­ lia resendense organizada, estável, e que hoje dá vida à atividade pastoril das fazendas e aos surtos industriais correlatos quejá se verificam em larga escala. Além disso, Resende está in­ cluída entre as estações de repouso e, assim, mantém periodicamente conta­ to com elementos sociais mais adianta­ dos." (JP/vp 31.12.15, doc. 9)

seus últimos dias à frente da institui­ ção foram ainda tumultuados por uma greve dos alunos, temerosos ante a aplicação de uma nova inspeção de saúde. Pouco após deixar o comando, José Pessoa foi preso por 48 horas por ordem do ministro, devido a um artigo que publicou no Correio da Manhã de 16 de maio de 1934. Duas décadas mais tarde, em sua autobiografla, José Pes­ soa ainda guardava enorülB mágoa contra Góis Monteiro. a quem qualifica de "oficial preguiçoso e ineficiente". apelidado quando jovem de ''Mimi bi­ lontra" pelos colegas. "mergulhado nu­ ma vida dissoluta e beberronia" na ju­ ventude, ainda "dissoluto e desregrado u na maturidade.u

A transferência da Escola Militarpa­ ra Resende com o nome mais pomposo de Academia Militar das Agulhas Ne­ gras seria, para José Pessoa, a coroação da reforma no sistema de formação dos futuros oficiais do Exército. Ela não se concretizaria, no entanto, durante seu comando. Apesar de conseguir a apro­ vação de todas S11AS inovações no início de seu comando, na gestão do general Leite de Castro no Ministério da Guerra

6. Revolução e tradição

(novembro de 1930 - junho de 1932), José Pessoa teve sérios desentendimen­ tos com o novo ministro, general Góis Monteiro. Em 1932, por exemplo, opôs­ se à idéia do ministro de utilizar os cadetes nas operações militares contra a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Posteriormente, Góis Monteiro, segundo José Pessoa, teria tentado re­ matricular alguns cadetes desligados e adotado outras medidas que caracteri­ zariam a ''politicagem'' do minis tro con­ tra a Escola. Por causa das desavenças com Góis Monteiro, José Pessoa pediu desliga­ mento do comando da Escola Militar, e

Consideradas em seu conjunto, as tradições inventadas por José Pessoa são impressionantes. Em suas pala­ vras, após quatro anos de comando "criou�se uma ideologia, que é um mis­ to de brasilidade e sentimento militar, amalgamados pelo culto do passado, pelo espírito de tradição." (JP/dv 53.00.00, III:34) 'Ibdos os elementos da refOtlllQ permanecem praticamente inalterados até hoje, e \Im busto de José Pessoa colocado em posição de destaque na AMAN por ele idealiza­ da - é o sinal ma is claro de que SUB empresa foi historicamente bem-suce­ dida. As pessoas que assistem às come­ morações na AMAN, incluindo os pró­ prios cadetes e oficiais, provavelmente supõem serem os simbolos que vêem muito mais "tradicionais" e antigos do que são na realidade. -

No caso das tradições inventadas por José Pessoa, pode ser visto como uma contradição o fato de se vincular um "novo Exército", criado num mo-

INVENTANDO TRADIçõES NO EXÉRCITO BRASILEIRO mento pós-revolucionário, ao passado, ao invés de inventar símbol08 que rom­ pam com tudo o que existiu anterior­ mente e apontem para o novo, para o futuro. Esta contradição é, no entanto, apenas aparente. Uma das caracterís­ ticas centrais de todo processo de in­ venção de traclições é justamenta esta­ belecer continuidade com 11m passado histórico considerado como aqropria­ do. Como aponta Hobsbawm,l o conl.aste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira ímutável e invariável ao men08 alguns aspectos da vida so­ cial que torna a 'invenção das tracli­ çóea' um assunto tão interessante para 08 estucliosos da história con­ temporânea."



Qual passado era apropriado, no ca­ so aqui apresentado? Não era, certa­ mente, o da República Velha que se derrubara, "o velho regime polltico de­ caído", Restava o Império, ma! não seu início ou seu final, amb08 tumultuados para o Exército. O ideal era um "méclio" Império, afastado das rupturas pollti­ C80 que comprometem a clisciplina -, tendo como centro a figura de Caxi9S, considerado símbolo da unidade do Exército e da Nação.Assim,lançava-se uma âncora num paAAado remoto uma tentativa de demonstrar a estabi,­ lidade da instituição que deveria ser a "ossatura da nacionalidade". Era essa a característica que José Pessoa consi­ derava essencial para superar as ins­ tabilidades do presente. Daí a coerên­ cia de todos os símbolos inventados: os novos uniformes "tradicionais", O aspa­ clim de Caxias representando a "honra militar", a imagem telúrica e intempo­ ral das Agulhas Negras.

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polltica do interior do Exército, reser­ vandose a política "para 08 pollticoe e mais ninguém". Ao mesmo tempo, im­ plementavam-se me
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