José Pessoa e a reforma da Academia Militar
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INVE DI OES i\NI )0 T NO EXÉRCITO BRASILEIRO: osé Pessoa e a . tar reforma da Escola Celso Castro
Introdução uem assiste a uma cerimônia de forllla tura dos novos oficiais do Exé cito brasileiro, na Academia Mili tar das A gulhas Neg11lS , dificilmenta deixa de sentir-se imerso na atmosfe ra de tradição que cerca o evento. Vá rios elementos sugerem a herança de um pAssa do imemorial: o "espadim", uma reprodução em miniatura da es pada do duque de Caxias, patrono do Exército, que os cadetes recebem no primeiro ano do curso e devolvem no dia da formatura; a entrada no pátio principal de cadetes trazendo as ban deiras e estandartes históricos; a apa rição dos formandos vestindo os uni formes históricos da Academia. No en tanto, todos esses elementos -a exem plo de muitos outros na Academia ou no Exército como um todo - são bem mais recentes do que pretendem pareEstucJo. flistIJriaM, Rio de Janeiro. voL 7,
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eer e, além disso, foram consciente mente inventados. O fenômeno da invenção das tradi ções, expressão que ficou consagrada ap6s a coletânea organizada por Hobs bawm & Ranger,l pode ser encontrado nce mais diversos países e contextos históricos. Pode também ser patlVCina do por diferentes agentes, desde o Esta do nacional até grupos sociais específi cos. Comum a todos os casos é a tenta tiva de expressar identidade, coesão e estabilidade social em meio a situações de transformação histórica. Isso é feito através do recurso à invenção de ceri mônias e símbolos que evocam um pas" sado muitas vezes ideal ou mitológico. A reforma da Escola Militar do Re 2 alengo, idealizada e iniciada por José Pessoa, comandante entre 1931 e 1934, é um caso exemplar de invenção de tradições no Exército brasileiro. Trata-se de um caso historicamente bem-sucedido, como o prova a perws..
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nência, por seis décadas, das tradições então foIjadas. Pretendo, atravéa dele, apresentar a gênese e discutir o signi ficado de elementos simbólicos ainda presentes no Exército brasileiro.
1. José Pessoa Uma tradição "inventada" precisa, obviamente, ser aceita e Assimilada por um círculo social para "vingar", isto é, ter eficácia e continuidade. No an .tanto, ela é sempre o resultado de um projeto consciente, desenvolvido por indivíduos específicos. No nosso caso, temos um personagem central: José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque
(1885-1959).
o movimento revolucionário chefiado por Getúlio Vargas. No dia 24, apás várias vitórias dos revoltosos, 08 co mandantes militares da capital força ram a renúncia do presidente Wash ington Luís. José Pessoa tomou parte ativa no cerco e ocupação do palácio Guanabara. Vitoriosa a revolução, per maneceu um breve período como co mandante do Corpo de Bombeiros do Distrito Federal e em seguida foi no meado, em 19 de novembro de 1930, comandante da Escola Militar do Re alengo. Exerceria essa função até 28 de abril de 1934, e nesse período teria a oportunidade de implantar a reforma que será aqui examinada.
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Nascido na Paraíba, José Pessoa pertencia a uma importante família de políticos. Era sobrinho de Epitácio Pes soa, presidente da República de 1919 a 1922, e i..mão de João Pes.soa, presi dente da Paraíba de 1928 a 1930, cujo AMsssinato desencadeou a Revolução de 1930. Quanto à sua própria carJei ra, formou-se em 1913 pela Escola Mi litar de Porto Alegre e, em 1918, fez estágio na França, chegando a partici par de combates na guerra, comandan do um pelotão de soldados franceses. Em 1919 foi promovido a capitão, por atos de bravura. Ainda na Europa, es pecializou-se em carros de combate, tendo sido, ao voltar ao Brasil em 1920, organizador da primeira unidade de tanques do Exército brasileiro. Ainda em 1920, foi nomeado para acompa nhar os reis da Bélgica em visita ao Brasil. Promovido a major em 1923, assumiu o posto de subcomandante da Escola Militar. Em seguida ocupou vá rios comandos da 8J'ü18 de Cavalaria, sendo promovido a coronel em 1929. E m 3 de outubro de 1930 eclodiu no Rio Grande do Sul e em outros estados
2. Política e disciplina A Revolução de 30 náo foi, de forma alguma, consensual no interior do Exército. Nos anos que se seguiram, ocorreram sérios conflitos internos, motivados por divergências doutriná rias, organizacionais a, principalmen te, políticas. Exemplo eloqüenta disso são as dezenAS de movimentos inter nos (incluindo agitações, protestos e revoltes) que abalaram o Exército en tre 1930 e a instauração do Estado Novo, quando ftnalmente se consolidou um projeto hegemônico para a institui ção, em torno de Góis Monteiro e Euri 4 co Gaspar Dutra.
A integridade do Exército era, por tanto, uma questão em aberto quando José Pessoa assumiu O comando da Escola Militar, logo após a vitória do movimento revolucionário. Ele procu rou, desde o início, vincular a reforma que pretendia realizar na Escola ao contexto pás-revolucionário. Essa in tenção era explícita já no Boletim n· 1 de seu comando, de 15 de janeiro de 1931, dia em que tomou posse:
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"Cadetes! a dever que o Exército tinha a cumprir para com a Repú blica já está consumado. (...) Mas a Revolução não terminou ainda, eis a palaVTa de ordem do momento. E é exato. A República está salva, res ta salvar a Nação. Redimir a Repú blica foi o meio, engrandecer a Na ção é o único e verdadeiro fIm. Reva lidada a forma de governo, cumpre restaurar o Brasil. (... ) Assim como o Exército foi o fator decisivo da Revolução, outro papel essencial ca ber-lhe-á no período de Renovação, na fase de Reeducação que 8e vai iniciando. (...) a Exército, como ins tittúção democrática por excelência, como verdadeira ossatura da nacio nalidade é, por sua natureza, a ins tituição que primeiro e mais rapida mente se deve recompor, tanto é ver dade que a integridade da Pátria, mais que a do regime, repousa em sua eficiência," Para além da preservação da ordem republicana, os grandes objetivos da revolução eram "salvar a Nação" e "manter a integridade da Pátria". A identifIcação do Exército com os con ceitos abstratos de "Pátria" e "Nação" procurava evitar refletir as divisões existentes na sociedade, afastando a instituição, no plano simbólico, dos conflitos políticos e ideológicos. a Exército, enquanto "ossatura da nacio nalidade", teria um papel fundamental na fase de "reeducação" e ')oenovaçáo" que se iniciava. Era preciso, para tan to, que ele logo se "recompusesse". A Escola Militar, onde seriam formadas as futuras gerações de oficiais, era vis ta, nessa perspectiva, como uma insti tuição seminal do unovo Exército" e, por extensão, da nova Nação que se pretendia construir.
a primeiro passo da reforma foi a melhoria das condições materiais da
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Escola, consideradas extremamente precárias por José Pessoa. A rede de esgotos foi canalizada, terrenos panta nosos foram drenados, modificou-se o sistema de coleta de lixo, cozinha e dormitórios foram pintados, o mobiliá rio substituído e constrlÚdos "cassinos" (salas de lazer) para cadetes e ofIciais. A reforma, porém, deveria ir muito além disso. A preocupação fundamen tal de José Pessoa era com a criação de "mentalidades homogéneas", de "um novo estado psicológico" no corpo de ofIciais. A reforma da Escola Militar seria apenas o primeiro passo desse processo. Em sua autobiografIa, ele es creve a respeito:
"a velho regime político decaído não tinha deixado ali coisa alguma de útil ou merecedora de ser relembrada. E verdade que dava anualmente turlllAS de aspirantes por conclusão de curso, mas nelas os elementos variavam desde o bom ao mau. As suas últimas tUflIl9S, então, foram totalmente sacrifIcadas. E vemo-las ai [isto é, no início da década de 50l, em grande ;mrte divorciadas da sua profissão. E fato que, no seio do Alto Comando, surgem admiravelmente belas inteligências e padrão de sol dados devotados, porém isso não é uma regra. a que o Exército procuJ;8 formar são -mentalidades unifor mes, e não personalismos. Resta nos, entretanto, a esperança de que a mentalidade está sendo mudada e os métodos atuais operarão, certe mente, novas e homogêneas gera· ções." ,
a que José Pessoa quer dizer com "homogeneidade''? a trecho acima afIr ma que, dentre os oficiais fotInados durante a Primeira República C'o velho regime político decaído''), agora no Alto Comando do Exército, apenas alguns
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são bons soldados. A maioria, encon tra-se udivorciada de sua proflssão". A imagem de um "divórcio" aparece tam bém em uma entrevista concedida por José Pessoa ao jornal A Noite de 17 de dezembro de 1931, ao final de seu pri meiro ano no comando da Escola. Per guntado sobre política, responde: "Não sou político. Não quero ser. A nossa maneira de fazer política tem sido a gênese de muitas infelicida des para o país. (...) Ao assumir este comando, reuni mestres e cadetes, advertindo-os de que seria desacon selhável o trato de assuntos em de sacordo com a disciplina militar, se parando-me completamente dos po líticos. Só não chamo a isso um di vórcio porque nunca estivemos jun tos. Não se deve inferir daí que eu os condene. Absolutamente. (... ) Mas a política, para os políticos e mais nin guém." Para José Pessoa, política e discipli na militar eram, portanto, duas coisas que não se misturam. Unindo os dois trechos transcritos, é possível inferir que gerações homogêneas de oficiais seriam aquelas disciplinadas e "divor ciadas" da política, enquanto as hetero
gêmas seriam as "sacrificadas" pela política, que fere a disciplina militar. Em outro documento (JP/ag 36.04.12), referindo-se ao seu tempo de estudante na Escola Militar, José Pessoa fala dos "hábitos turbulentos dos meninos de Floriano", que cometiam "excesso s de conduta". E conhecido o papel político de destaque que os jovens oficiais tive ram na consolidação da República. Mas se aquela geração mereceu, se gundo José Pessoa, as regalias discipli nares de que desfrutou, elas não deve riam tê-Ias passado como herança às gerações futuras. •
Em nome da reestruturação do Exército no período pós-revolucionário e da formação de um corpo disciplinado de oficiais, José Pessoa queria em pri meiro lugar afastar a política - que divide - e enfatizar a disciplina que une. Uma de suas medidas mais im portantes foi justamente na área disci plinar, com a criação de uma entidade chamada .'Corpo de Cadetes", reunin do o conjunto dos cadetes. Esse cor:po foi criado oficialmente no dia 25 de agosto de 1931- não por acaso data de 6 nascimento do duque de Caxias -, em solenidade à qual estiveram presentes, entre outras autoridades, o chefe do governo provisório, Getúlio Vargas. -
A respeito dessa solenidade, há um fato curioso. Por encomenda de José Pessoa, foi feito pelo pintor J. Rocha Ferreira 11m quadro retratando o mo mento da entrega do estandarte do Corpo de Cadetes pelo presidente Ge túlio Vargas. O pintor baseou-se em fotografias publicadas pelos jornais, que retratavam Vargas com seu costu meiro chapéu gelot escuro à cabeça. José Pessoa, no entanto, solicitou, o quadro já pronto, que o chapéu fosse "retirado" da cabeça de Vargas, num sinal de respeito devido, porém esque cido. Foi feita, então, esta pequena fal sificação da realidade, em nome do efeito simbólico do quadro, que hoje se encontra na biblioteca da Academia Militar das Agulhas Negras. Com a criação do Corpo de Cadetes, o aluno matriculado na Escola passava a ser considerado parte de uma entida de coletiva e adquiria, além da condi ção de aluno, a situação militar de "praça especial". O enquadramento militar dos alunos foi consolidado, no ano seguinte, pelo RegulCD1le nto inter no do Corpo de Cadetes. Seu artigo 1" dizia que o Corpo de Cadetes, fonte permanente de onde saem as futuras gerações de oficiais, é verdadeiro sím-
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bolo do "futuro do Exército e da segu rança da Pátria." Os títulos de algu mas seções desse regulamento de monstram o grau de detalhamento que atingia, até então inédito na Escola Militar: "Da atividade e do repouso", "Dos alojamentos, dos pátios e dos ba nheiros", ''Do refeitório", "Do portão", "Das visitas", "Da conespondência", uQ levantar e o café", "Da reunião após o café", "Das aulas e sessões de estudo", "Da revista do recolher e outras revis �", "Do silêncio" etc. O espaço e o tempo dos cadetes pas savam a ser, dessa forma, totalmente visíveis e previsíveis. Com isso, a Esco la Militar aproxirnava-se do modelo de uma instituição total, categoria utiliza da por E. Goffman para designar esta belecimentos sociais que concentram indivíduos em tempo integral num único local e sob uma única autoridade, com atividades diárias rigorosamente estabelecidas e padronizadas.6 Mas a autoridade que deveria controlar o cumprimento dos regulamentos pelos cadetes não era basicamente exterior, como é o nOMnal nas instituições totais. O principal controle deveria ser a cons ciência dos próprios cadeus, através da criação do que José Pessoa chamava de "um novo estado psicológico", que tarnaria cada um "escravo de sua dig· nidade pessoaL ( ...) Cada cadete era prisioneiro de si mesmo. E, podemos afirmar, não havia prisão mais sólida." (JP/dv 53.00.00, 1II:33)
3. Os novos símbolos O objetivo principal da reforma pretendida por José Pessoa era, portanto, atingir "a alma e o coração" dos jovens candidatos a oficial. Por isso, suas mais importantes iniciativas - e as mais duradouras - foram no campo simból"
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co. Inventou-se um conjunto de símbo los que expressavam o perlencimento dos cadetes a uma tradição vinculada aos valores nacionais mais profundos.
Em primeiro lugar, os unifonnes dos cadetes foram mudados. José Pessoa os considerava simbolicamente inex pressivos e pouco distintos dos unifor mes dos soldados. Foi então solicitado o auxílio do artista José Walsht Rodri gues, autor de um A/bum dos unifor mes do Exército, para criar o novo pla no de uniformes da Escola Militar. Adotaram-se elementos retirados dos uniformes militares do Império, prin cipalmente da campanha de 1852 con tra Rosas: barretina, cordões com pal matórias e borlas, charlateiras de pal ma e palmatória escarlate e emblema simbólico para a cobertura. A cor pre dominante passava a ser a turquesa.
O novo plano de uniformes foi apro vado em 30 de abril de 1931. Segundo José Pessoa, não se tratava de urna simples combinação de peças, mas de um verdadeiro plano que visava obje tivos bem determinados, entre os quais "restabelecer-se, embora respeitando as l inhas gerais dos uniformes contem porâneos, os liames históricos do Cade te da Escola Militar." (JPfvp 31.05.12, doc. 1)
Um últímo elemento - porém o sim bolicamente mais importante - veio a completar o uniforme dos cadetes: o "espadim", uma réplica em miniatura da espada de campanha do duque de Caxias. A peça original foi localizada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, copiada, e os desenhos en viados à Europa, onde foram feitos os espadins. Através desta arll19 simbólica, José Pessoa pretendia cultuar "o pilar que sustentou o Império", "o maior general sulamericano", "invicto soldado", "aquele que melhor serviu à pãtria e mais a estremeceu." A figura de Caxias deveria "pairar no seio dos �
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cadetes do Brasil" como Napoleão en tre os de'"Saint-Cyr e Washington entre 7 os de West Point. Os primeiros espadins foram entre gues em dezembro de 1932, em soleni dade realizada em frente à estátua de Caxias no centro do Rio de Janeiro. Confol'lue as recém-criadas Instruções para0 recebimento e uso do espadim, os cadetes pronunciaram o seguinte jura ,
mento: ''Recebo o sabre de Caxias como o próprio símbolo da honra militar." O espadim passou, desde entáo, a ser peça mantida pelos cadetes durante o curso na Escola Militar e devolvido pouco an tes da solenidade de formatura, quando é passado a um aluno calouro. Outros símbolos materiais foram criados durante a reforma de José Pes· soa: o estandarte e o brasão de aflUas do Corpo de Cadetes. Igualmente dese nhado por Walsht Rodrigues, o brasão trazia um escudo com uma torre de ouro, que simbolizava a Escola, tendo, ao fundo, o perfIl estilizado do pico das Agulhas Negras. Por que esta monta nha? Na ocasião, a Escola Militar fun cionava no subúrbio carioca do Realen.. go, e não na região de Resende/ltatiaia, onde está situado o pico das Agulhas Negras. Ocorre que, na época, esse pico ainda era considerado a mais alta montanha do Brasil. Além disso, fazia parte do maciço central brasileiro espinha dorsal do território nacional e era de idade geológica muito antiga outro aspecto de forte apelo simbólico. Para os que inventavam novas tradi ções, o pico das Agulhas Negras era visto, enquanto "síntese fIsiográfica" do maciço central, como um símbolo da unidade estrutural do Brasil, da mes ma fOl'ma que o Exército o era da Na ção e a Academia o era do Exército. Nas palavras de época do capitáo Mário Travassos, ajudante-de-ordens de José Pessoa:
"A constituição sienítica-nefelítica das rochas das Agulhas Neglas em presta-lhes caráter eruptivo de alta significação geológica, em vista da idade que lhes assegura a estabili dade de rocha primitiva do maciço central do Brasil. Este sentido seria transmitido ao brasão pela firmeza e estabilidade do símbolo, repre sentando a firmeza e a estabilidade ,s do Exército:
4. Uma nova aristocracia Outro elemento simbólico impor tante da reforma implementada por José Pessoa foi a reutilização do título de cadete para designar os alunos da 9 Escola Militar. Este título existira du rante o Império e nos primeiros anos da República (até 1897), sendo, origi nalmente, exclusivo dos alunos de ori gem nobre. José Pessoa começou seu discurso de posse no comando da Esco la - do qual acima foi transcrita uma parte - justamente com o vocativo "ca detes". em desuso havia mais de duas décadas. Com isso, ao mesmo tempo dava-se um ar aristocrático à condição de aspirante a oficial do Exército, reto mava-se um elemento do passado e transmitia-se a idéia de que ser cadete é pertencer a uma elite social. Numa carta ao ministro da Guerra, Góis Monteiro, de 31 de março de 1934, José Pessoa escreveu: "Com os exércitos contemporâneos, a tarefa mais dificil para os gover nos, a parte mais delicada a tratar, é a criação desse nervo motor que dá vida à nação arll1ada, isto é. a organização do corpo de oficiais. E que hoje, mais do que nos tempos passa dos, torna-se preciso que o corpo de oficiais constitua uma verdadeira -
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aristocracia, não a aristocracia de sangue, mas uma aristocracia f"lSi� ca, moral e profISsionaL" (JPfvp 31.05.12, doc. 29) A visão do cadete como membro de uma elite social, uma aristocracia do mérito, fundamentou uma série de ini· ciativas tomadas por José Pessoa du rante seu comando. No que toca ao recrutamento de alunos para a Escola Militar, ele reservou metade das vagas para o concurso de admissão aberto ao. civis - até então, a maioria de alunos era oriunda dos três colégios militare. em funcionamento (Rio de Janeiro, Porto Alegre e Fortaleza). No mesmo sentido, ele sempre se opôs à idéia de recriar uma escola preparatória ao in gresso na Escola Militar. José Pessoa pretendia alargar a ba se social de recrutamento para a Esco la, evitando o predomínio do recruta mento no próprio meio militar e favo recendo o i ngresso dos "melhores ele mentos". Foi também instituída uma inspe ção médica eliminatória e a necessida de de o candidato à Escola trazer um "conceito" firmado pelos comandantes dos colégios militares ou dos estabele cimentos de ensino secundários civis, que se tornavam, assim, fIadores do candidato perante o comando da Esco la Militar. Para José Pessoa, a "missão" da Es cola Militar era "aprimorar qualida des, e não corrigir defeitos" (JP/ag 36.04.12, doc. 32). Foram tomadas vá rias providências para dar projeção so cial ao cadete, como contatos com os clubes de maior projeção da época, o Fluminense e o Tijuca Tênis Clube, para que cadetes fossem convidados para todas as festas, ao mesmo tempo que se desestimulava seu compareci mento aos festejos suburbanos do 10 M'" 818r e de Bangu.
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5. Uma nova escola A localização da Escola Militar no Realengo sempre desagradou a José Pessoa: "Ali tudo é impróprio à formação do corpo de oficiais. O clima é exausti vo; 05 campos empantanados facul tam a proliferação dos mosquitos e, pois, os surtos de impaludismo; a paisagem, por toda parte, é cansati va e monótona; as condições da loca lidade, qualquer que seja o ponto de vista por que sejam encaradas, es tão abaixo das exigências necessá rias. E pela localização dentro da capital federal, ainda está sujeita a ser presa de agitações políticas que, periodicamente, inflamam a capital do país, como freqüentemente tem acontecido." (JP/ag 36.04.12, doc.
14) Já em seu Boletim n·1, José Pessoa falara da necessidade de se escolher um novo local para a Escola Militar. Criou-se então, em 4 de dezembro de 1931, uma Comis,ão Executiva da No va Escola, por ele presidida, e que logo elegeu a região de Resende como ideal para a construção da nova sede. Entre as razões apontadas, destacavam-se: a localização intermediária entre Rio, São Paulo e Minas Gerais, proporcio nando facilidades de comunicação com as principais cidades do país; o clima privilegiado - a região foi apelidada pelo médico Miguel Couto de "a Suíça brasileira"; a variedade de acidentes geográficos de que dispunha - as Agu lhas Negras, o rio Paraíba -, que, além do valor para a instrução militar, fa ziam José Pessoa sonhar com excur sões dos cadetes às montanhas e com a prática de esportes nãutico. no rio Pa raíba, podendo a futura escola tornar-
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se, "muito breve, uma espécie das fa mosas universidades de Oxford e Cam bridge, situadas à borda do Tâmisa, movimentando toda a cidade de Lon dres por ocasião de suas regatas"; fi nalmente, o fato de a cidade de Resen de ser considerada ideal para o conví vio social do cadete, por abrigar uma "sociedade homogênea" e de "arraiga das tradições", características da anti ga área cafeeira do vale do Paraíba, em cujo apogeu econômico "surgiu a famí lia resendense organizada, estável, e que hoje dá vida à atividade pastoril das fazendas e aos surtos industriais correlatos quejá se verificam em larga escala. Além disso, Resende está in cluída entre as estações de repouso e, assim, mantém periodicamente conta to com elementos sociais mais adianta dos." (JP/vp 31.12.15, doc. 9)
seus últimos dias à frente da institui ção foram ainda tumultuados por uma greve dos alunos, temerosos ante a aplicação de uma nova inspeção de saúde. Pouco após deixar o comando, José Pessoa foi preso por 48 horas por ordem do ministro, devido a um artigo que publicou no Correio da Manhã de 16 de maio de 1934. Duas décadas mais tarde, em sua autobiografla, José Pes soa ainda guardava enorülB mágoa contra Góis Monteiro. a quem qualifica de "oficial preguiçoso e ineficiente". apelidado quando jovem de ''Mimi bi lontra" pelos colegas. "mergulhado nu ma vida dissoluta e beberronia" na ju ventude, ainda "dissoluto e desregrado u na maturidade.u
A transferência da Escola Militarpa ra Resende com o nome mais pomposo de Academia Militar das Agulhas Ne gras seria, para José Pessoa, a coroação da reforma no sistema de formação dos futuros oficiais do Exército. Ela não se concretizaria, no entanto, durante seu comando. Apesar de conseguir a apro vação de todas S11AS inovações no início de seu comando, na gestão do general Leite de Castro no Ministério da Guerra
6. Revolução e tradição
(novembro de 1930 - junho de 1932), José Pessoa teve sérios desentendimen tos com o novo ministro, general Góis Monteiro. Em 1932, por exemplo, opôs se à idéia do ministro de utilizar os cadetes nas operações militares contra a Revolução Constitucionalista de São Paulo. Posteriormente, Góis Monteiro, segundo José Pessoa, teria tentado re matricular alguns cadetes desligados e adotado outras medidas que caracteri zariam a ''politicagem'' do minis tro con tra a Escola. Por causa das desavenças com Góis Monteiro, José Pessoa pediu desliga mento do comando da Escola Militar, e
Consideradas em seu conjunto, as tradições inventadas por José Pessoa são impressionantes. Em suas pala vras, após quatro anos de comando "criou�se uma ideologia, que é um mis to de brasilidade e sentimento militar, amalgamados pelo culto do passado, pelo espírito de tradição." (JP/dv 53.00.00, III:34) 'Ibdos os elementos da refOtlllQ permanecem praticamente inalterados até hoje, e \Im busto de José Pessoa colocado em posição de destaque na AMAN por ele idealiza da - é o sinal ma is claro de que SUB empresa foi historicamente bem-suce dida. As pessoas que assistem às come morações na AMAN, incluindo os pró prios cadetes e oficiais, provavelmente supõem serem os simbolos que vêem muito mais "tradicionais" e antigos do que são na realidade. -
No caso das tradições inventadas por José Pessoa, pode ser visto como uma contradição o fato de se vincular um "novo Exército", criado num mo-
INVENTANDO TRADIçõES NO EXÉRCITO BRASILEIRO mento pós-revolucionário, ao passado, ao invés de inventar símbol08 que rom pam com tudo o que existiu anterior mente e apontem para o novo, para o futuro. Esta contradição é, no entanto, apenas aparente. Uma das caracterís ticas centrais de todo processo de in venção de traclições é justamenta esta belecer continuidade com 11m passado histórico considerado como aqropria do. Como aponta Hobsbawm,l o conl.aste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira ímutável e invariável ao men08 alguns aspectos da vida so cial que torna a 'invenção das tracli çóea' um assunto tão interessante para 08 estucliosos da história con temporânea."
"É
Qual passado era apropriado, no ca so aqui apresentado? Não era, certa mente, o da República Velha que se derrubara, "o velho regime polltico de caído", Restava o Império, ma! não seu início ou seu final, amb08 tumultuados para o Exército. O ideal era um "méclio" Império, afastado das rupturas pollti C80 que comprometem a clisciplina -, tendo como centro a figura de Caxi9S, considerado símbolo da unidade do Exército e da Nação.Assim,lançava-se uma âncora num paAAado remoto uma tentativa de demonstrar a estabi, lidade da instituição que deveria ser a "ossatura da nacionalidade". Era essa a característica que José Pessoa consi derava essencial para superar as ins tabilidades do presente. Daí a coerên cia de todos os símbolos inventados: os novos uniformes "tradicionais", O aspa clim de Caxias representando a "honra militar", a imagem telúrica e intempo ral das Agulhas Negras.
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polltica do interior do Exército, reser vandose a política "para 08 pollticoe e mais ninguém". Ao mesmo tempo, im plementavam-se me
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