José Pina Delgado, Jorge Carlos Fonseca & Liriam Tiujo Delgado (orgs.), Aspectos Polémicos da Extradição em Cabo Verde e no Espaço Lusófono: Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Afins,

July 23, 2017 | Autor: Jose Pina-Delgado | Categoria: Extradition, Extradition Law, Extradição, Cooperação Judiciária Em Matéria Penal
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ASPECTOS POLÉMICOS DA EXTRADIÇÃO EM CABO VERDE E NO ESPAÇO LUSÓFONO Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Afins

Franklin Furtado Wladimir Brito José Pina Delgado José Luís Jesus Júlio Martins Tavares Nuno Piçarra Artur de Brito Gueiros Souza Ilda Cristina Ferreira

ASPECTOS POLÉMICOS DA EXTRADIÇÃO EM CABO VERDE E NO ESPAÇO LUSÓFONO Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Afins

Praia 2009

Delgado, José Pina; Fonseca, Jorge Carlos; Tiujo Delgado, Liriam (Orgs.) Aspectos Polémicos da Extradição em Cabo Verde e no Espaço Lusófono: Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Afins, Praia, Fundação Direito e Justiça & Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, 2009. 405 p.

Título: Aspectos Polémicos da Extradição em Cabo Verde e no Espaço Lusófono: Nacionalidade, Pena Aplicável, Institutos Afins Propriedade: Copyright © Autores Coordenação: José Pina Delgado Organização: José Pina Delgado, Jorge Carlos Fonseca, Liriam Tiujo Delgado Capa e Concepção gráfica: Tony Ramos Impressão: Imprensa Nacional – Praia Tiragem: 500 exemplares Apoio: Ministério da Justiça de Cabo Verde Janeiro de 2009 Praia – CABO VERDE Edição: Fundação Direito e Justiça & Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais

SUMÁRIO

Introdução

09

PARTE I ASPECTOS POLÉMICOS DA EXTRADIÇÃO EM CABO VERDE

1. Extradição e o Tribunal Penal Internacional no Contexto da Revisão Constitucional Franklin Furtado 23 2. A Extradição de Cidadão Nacional Wladimir Brito

59

3. Extradição de Nacional (Cabo-verdiano): Acto Indigno, Abandono de uma Relíquia do Passado ou Possibilidade Razoável? José Pina Delgado 71 4. Extradição de Cidadãos Cabo-verdianos na Constituição de Cabo Verde: Como Evitar que a Disposição Constitucional da Não-Extradição de Nacionais não se Transforme numa Inaceitável Fuga à Justiça? José Luís Jesus 125 5

Sumário

5. A Nacionalidade, o Princípio Constitucional da Proibição de Extradição de Nacionais, a Proibição Constitucional da Extradição em Função da Pena Aplicável e a Política Criminal Júlio Martins Tavares 159

PARTE II ASPECTOS POLÉMICOS DA EXTRADIÇÃO NO ESPAÇO LUSÓFONO: Portugal, Brasil e Macau 6. A Proibição Constitucional de Extraditar Nacionais em Face da União Europeia Nuno Piçarra 219 7. Extradição de Brasileiros Artur de Brito Gueiros Souza

247

8. Breves Notas sobre o Instituto da “Entrega de Infractores em Fuga” na Região Administrativa Especial de Macau Ilda Cristina Ferreira 269

PARTE III DOCUMENTOS RELEVANTES: Extradição I. Constituição da República de Cabo Verde (Extracto)

6

297

Aspectos Polémicos da Extradição

II. Convenções Internacionais de Âmbito Universal que Vinculam Cabo Verde 298 A) Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas 298 B) Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes 300 C) Convenção Internacional para Supressão do Financiamento do Terrorismo 301 D) Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba 305 E) Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional 307 F) Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção 309

III. Convenções Internacionais de Âmbito Regional e Equiparado assinadas por Cabo Verde 313 A) Convenção sobre Extradição entre os Governos dos Estados Membros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, CEDEAO 313 B) Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP 323 C) Declaração de Rabat e Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo e de Extradição contra o Terrorismo 331

IV. Acordos Bilaterais

356

A) Acordo de Cooperação Judiciária entre a República de Cabo Verde e a República do Senegal 356 B) Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República de Cabo Verde e a República Portuguesa 357 7

Sumário

C) Acordo sobre Extradição entre a República de Cabo Verde e o Reino da Espanha 366

V. Regime Jurídico Interno

374

Decreto Legislativo n.º 6/97, de 5 de Maio, Regula a situação jurídica do estrangeiro no território nacional (alterado pelo Decreto Legislativo n.º 3/2005, de 1 de Agosto)

VI. Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em Matéria de Extradição 384 A) B) C) D) E)

Caso Fischer Caso Ana Alves Casos dos Ucranianos Caso Jean Charles da Silva Caso Adilson Júlio Lubrano Monteiro

Autores e Organizadores

8

384 386 387 397 398

402

INTRODUÇÃO José Pina Delgado * – Jorge Carlos Fonseca ** – Liriam Tiujo Delgado ***

Sumário I. A génese da obra; II. Apresentação sumária dos artigos; III. Agradecimentos

I. A génese da obra O problema da extradição de nacional cabo-verdiano tem suscitado acesa polémica em Cabo Verde; seja em círculos políticos, seja em quadrantes académicos, seja naquele ligado aos operadores jurídicos, desde algum tempo a esta parte muitos têm sido os que, institucional ou pessoalmente, se têm posicionado a respeito desta controversa questão. Não admira, uma vez que se trata de reacção que já se observou em outras latitudes a respeito da mesma questão. O facto é que o artigo 37.1 da Lei Fundamental de Cabo Verde, combinado

evidentemente

com

outros

preceitos

constitucionais,

* Professor Assistente Graduado, Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, República de Cabo Verde. ** Professor Auxiliar, Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, República de Cabo Verde. *** Professora Assistente Graduada, Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, República de Cabo Verde.

9

Introdução

nomeadamente com a cláusula dos limites materiais à revisão, tem dado margem a muita discussão. Inicialmente, com objectivos mais modestos de tentar acomodar a Constituição a uma instituição internacional entretanto criada, o Tribunal Penal Internacional (TPI), actualmente o facto mais saliente da polémica não tem a ver com a mera colocação sob autoridade do TPI de indivíduo para propósitos de processo criminal ou de cumprimento de pena, mas também sob a autoridade de um outro Estado, sendo, neste caso, o motivo propulsor, a presença em Cabo Verde de muitos nacionais procurados no exterior pela comissão de crimes graves, nomeadamente ligados ao narcotráfico e ao terrorismo. Desde

logo

notou-se

que

muitas

indagações

resultavam

naturalmente da colocação do problema, nomeadamente se seria algo desejável e útil, e, principalmente, se existiria amparo constitucional, haja vista a cláusula de limites materiais, se seria uma medida necessária para a adesão ao Tribunal Penal Internacional ou se seria um passo dispensável para atingir este desiderato, se o ordenamento jurídico nacional garante soluções para impedir a impunidade de nacionais que cometem crimes no estrangeiro ou se o país, face a ausência de soluções jurisdicionais

internas,

transformar-se-ia

num

“santuário

de

criminosos”, pela não-extradição de nacional. A ideia de banir ou limitar a cláusula da proibição da extradição de nacional foi relançada mais recentemente dentro do contexto da abortada revisão constitucional de 2005 e reforçada, mais recentemente, por intervenção directa do Presidente da República, que recebeu e manifestou preocupação com determinadas situações consideradas perigosas para a segurança nacional aos líderes dos partidos políticos com assento na Assembleia Nacional, tendo suscitando reacções diferentes da sua parte.

10

Aspectos Polémicos da Extradição

A questão foi alvo de debates radiofónicos, de pronunciamentos formais e informais, ou tratado em conferências. Efectivamente, a Rádio Nacional de Cabo Verde, organizou um debate radiofónico moderado pelo jornalista Júlio Vera-Cruz Martins e que tomaram parte a antiga Bastonária da Ordem dos Advogados de Cabo Verde, Lígia Dias Fonseca, o Conselheiro do Presidente da Assembleia Nacional de Cabo Verde, José Lopes da Graça e o Professor do Curso de Direito do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, José Pina Delgado. Pouco tempo depois, o próprio Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais organizou um ciclo de conferências em 2007. Na sequência de uma delas, proferida pelo então Procurador-Geral da República, Franklin Furtado, e em razão da existência de posições distintas a respeito da questão é que Mário Silva e João Santos deram a ideia da publicação de um pequeno volume compilando as diversas posições sobre a matéria em causa. Portanto, diante da actual discussão que vem a lume no seio da comunidade cabo-verdiana acerca da possibilidade de extradição de nacionais e suas implicações constitucionais, pretendeu-se organizar um volume dedicado ao debate das intrincadas questões que o referido tema implica, bem como analisar outras questões correlatas, nomeadamente relacionadas à proibição de extraditar em função da pena aplicável, a entrega a tribunais internacionais e a possibilidade de adesão ao Estatuto de Roma, entre várias outras matérias correlatas.

II. Apresentação sumária dos artigos Os

artigos

que

compõe

esta

publicação

colectiva

são

naturalmente diferentes. Apesar de todos tratarem, por motivos óbvios, de aspectos polémicos da extradição, fazem-no com enfoques distintos, que reflectem, aliás, áreas de interesse, cosmovisões e filosofias políticas 11

Introdução

e jurídicas distintas. Se se pensar que entre os colaboradores, alguns têm uma propensão maior para o direito internacional, outros para o direito penal e outros para o direito constitucional, uns são mais práticos e exercem funções de magistratura ou assessoria em órgãos nacionais ou internacionais, outros são mais académicos, fazendo parte do corpo docente de faculdades de direito, nada mais natural do que se ter um resultado plural quanto aos enfoques e fundamentação. Acrescente-se que infelizmente não se pôde contar com uma reflexão completamente contrária a alterações ao tratamento dado à extradição nos diversos ordenamentos jurídicos cobertos pela colectânea, principalmente o de Cabo Verde. A publicação começa com um artigo intitulado “Extradição e TPI no Contexto da Revisão Constitucional” assinado pelo antigo ProcuradorGeral da República de Cabo Verde, Franklin Furtado, que levanta interessantes questões, especialmente tendentes a promover alterações ao regime existente que, nomeadamente, levassem a limitações à proibição constitucional de extraditar nacionais e de extradição em função da pena aplicável, e que permitissem à República de Cabo Verde conceder extradição quando se tratassem de crimes graves cujos agentes sejam nacionais e, ademais, aderir ao Tribunal Penal Internacional. O segundo texto é de autoria de Wladimir Brito, Professor da Escola

de

Direito

da

Universidade

do

Minho,

e

conhecido

constitucionalista cabo-verdiano, que contribuiu na elaboração da actual Lei Fundamental de Cabo Verde. Com o título de “A Extradição do Cidadão

Nacional”,

a

reflexão

do

festejado

académico

incide

essencialmente sobre os mesmos temas supra referidos: a proibição absoluta de extradição de nacional, mesmo em casos de criminalidade grave e a possibilidade de adesão ao Tribunal Penal Internacional, instituição à qual atribui um papel essencial na protecção dos direitos da 12

Aspectos Polémicos da Extradição

pessoa humana no Século XXI. Para qualquer dos casos, entende que, desde que existam garantias devidas aos suspeitos, acusados ou condenados, dever-se-ia poder extraditar o nacional cabo-verdiano. Na sequência, foi incluído um artigo de José Pina Delgado, docente do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, e coorganizador deste volume. O ensaio tem o nome de “Extradição de Nacional (Cabo-verdiano): Acto Indigno, Abandono de uma Relíquia do Passado ou Possibilidade Razoável?”, tendo por preocupação principal analisar os argumentos que têm sido enunciados por decisores políticos e pela doutrina nacional em relação à extradição de nacional, concluindo que actualmente a possibilidade de extradição de nacional não é um acto indigno do Estado, nem tão pouco o abandono de uma relíquia do passado, devendo, no entanto, ser permitida nas relações entre Estados que partilham valores públicos liberais democráticos, pelo menos nas situações de grave criminalidade e violações graves aos direitos humanos. Critica, ademais, a ideia de que se deve permitir a extradição de nacional porque o Estado de Cabo Verde é incapaz de julgar e executar sanções criminais em casos envolvendo criminosos perigosos e violentos, porque se trata de acto necessário à adesão ao Tribunal Penal Internacional ou ainda em razão de se evitar a impunidade; por outro lado, sustenta que na extradição de nacional, pelo menos nas condições acima referidas, não está envolvido nenhum direito fundamental que mereça tutela formal da comunidade política e que ela se justifica como forma de realização efectiva da justiça e a sua boa administração ao nível universal. O

artigo

“Extradição

de

Nacionais

Cabo-verdianos

na

Constituição de Cabo Verde: Como evitar que a disposição constitucional da não-extradição de nacionais não se transforme numa inaceitável fuga à justiça?”, de José Luís Jesus, diplomata cabo-verdiano, actualmente a exercer funções de Juiz do Tribunal Internacional do Mar, propõe-se a 13

Introdução

resolver os obstáculos constitucionais que impedem a extradição de nacional, de modo a permitir que o Estado de Cabo Verde tenha todas as condições internas para cooperar com tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional ou os dois Tribunais Ad Hoc – da Antiga Jugoslávia e do Ruanda – com Tribunais Internacionalizados, como o Tribunal Especial de Serra Leoa, ou ainda com outros Estados. Defendendo a existência de incompatibilidade entre a Constituição da República, por um lado, o Estatuto de Roma e os Estatutos dos Tribunais Ad hoc, por outro, não só em razão da proibição da extradição de nacional, mas igualmente do direito a não ser privado da liberdade, que não integra as suas excepções, a entrega, sugere uma fórmula concreta que seria passível de resolver os problemas de compatibilidade que detectou, clarificar a Lei Magna da República nesta matéria e garantir base jurídica para que o país colabore na perseguição e punição a criminosos internacionais; no caso específico da extradição de nacional (para outros Estados, bem dito), aceita a flexibilização do regime, mas somente nos casos de reciprocidade e do extraditando ter a nacionalidade do Estado requerente. A última contribuição nacional é da lavra do actual ProcuradorGeral e docente do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, Júlio Martins Tavares, cuja principal preocupação tem a ver com a relação entre extradição e nacionalidade e a proibição constitucional de extraditar em função da pena aplicável e as bases de atribuição de jurisdição criminal existentes na legislação criminal infra-constitucional. No âmago da tese que esposa está a seguinte ideia: de que o actual regime de aquisição da nacionalidade cabo-verdiana careceria de uma reforma tendente a fortalecer o vínculo entre o indivíduo e o Estado e que é necessário alterar o Código Penal para colmatar algumas lacunas existentes na aplicação extra-territorial da lei cabo-verdiana. 14

Aspectos Polémicos da Extradição

Além dos estudos mais focados no sistema jurídico cabo-verdiano é de se salientar a valiosíssima colaboração de três eminentes especialistas lusófonos. A primeira é de Nuno Piçarra, renomado constitucionalista e especialista em Direito Europeu da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, que escolheu um título sugestivo para o seu estudo: “A Proibição de Extraditar Nacionais em Face da União Europeia”. Nele, reconstrói a revisão que foi feita à Constituição da República Portuguesa em 1997, cujo objectivo era permitir a inserção de Portugal no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça criado na União Europeia e que, entre outras medidas, preconiza a possibilidade de extradição de nacional entre os membros da comunidade, não obstante o cumprimento da pena ser feito, com objectivos de ressocialização plena, no país de nacionalidade ou residência permanente. Este autor não se limita, no entanto, a tratar da discussão

portuguesa,

pois

dá-nos

conta

das

controvérsias

constitucionais geradas por essa possibilidade na Alemanha, Polónia e República Checa, enriquecendo, sobremaneira, esta publicação. Logo a seguir, Artur de Brito Gueiros Souza, docente universitário e procurador brasileiro, com a colaboração do Grupo de Pesquisa em Direito Penal Internacional da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em artigo que intitula de “Extradição de Brasileiros”, brinda-nos com um estudo histórico, conceptual e jurisprudencial sobre a extradição de nacional no Brasil, colocando ênfase nas frequentes alterações de orientação a respeito da questão na legislação brasileira, até à sua consagração na Constituição Federal

de

acompanhado

1988, as

nas

divergências

discussões

sobre

jurisprudenciais a

extradição

de

que

tem

nacional,

particularmente em relação ao tratamento diferenciado entre o brasileiro nato e o naturalizado para efeitos de extradição. Finaliza o seu estudo 15

Introdução

dando conta da discussão havida no Brasil a respeito da ratificação do Estatuto de Roma, em razão de uma eventual, mas rejeitada inicialmente naquele país, inconsistência entre esse documento jurídico-internacional e a Constituição brasileira. De todo o modo, entende que a questão somente ficará resolvida quando o Supremo Tribunal Federal, enquanto guardião da Constituição do Brasil, se puder pronunciar sobre a matéria. A parte doutrinária é finalizada com uma interessante contribuição de Ilda Cristina Ferreira, Jurista do Gabinete de Estudo de Direito Internacional de Macau, sobre uma figura de cooperação judiciária em matéria penal típica da Região Administrativa Especial de Macau: a entrega de Infractores em Fuga (“Breves notas sobre o instituto da “Entrega de Infractores em Fuga” na Região Administrativa Especial de Macau”). Não sendo um Estado soberano, mas uma unidade administrativa da República Popular da China, não obstante com abrangentes autonomias em matéria jurídica, o sistema macaense não conhece a figura da extradição ou da entrega, mas possui instituto análogo. Depois de fazer o devido enquadramento jurídico-político da Região Administrativa Especial, nomeadamente nas suas dimensões internacional e constitucional, passo essencial para se entender uma experiência institucional e jurídica sui generis como é o caso, a autora descreve os princípios gerais aplicáveis à cooperação judiciária em matéria penal em Macau e discute os aspectos essenciais e particularmente interessantes do instituto da entrega de infractores em fuga. Na tentativa de colmatar as dificuldades de acesso à legislação aplicável à extradição em Cabo Verde, a publicação incluiu, como anexos, parte

do

regime

constitucional,

aplicável,

convencional

nomeadamente e

legal,

na

sua

dimensão

consubstanciando-se

nos

dispositivos constitucionais relativos à extradição, em alguns acordos 16

Aspectos Polémicos da Extradição

multilaterais e bilaterais que vinculam a República e de extractos da Lei do Estrangeiro, aplicável igualmente à extradição. Por limitações de espaço optou-se por deixar para uma oportunidade futura a publicação de outros tratados multilaterais que podem servir de base jurídica à extradição em Cabo Verde. Assim, incluímos como anexos as normas da Constituição da República que tratam da extradição, bem como todos os acordos internacionais regionais e bilaterais assinados até este momento por Cabo Verde cujo âmbito inclui a extradição – não só os acordos que estão em vigor, nomeadamente o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária com o Senegal e o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre Cabo Verde e a República Portuguesa, mas também outros que foram assinados recentemente, mas ainda não vinculam Cabo Verde por não terem sido ratificados: o Acordo de Extradição da CPLP e o Acordo de Extradição entre a República de Cabo Verde e o Reino da Espanha, recentemente aprovado para ratificação pela Assembleia Nacional de Cabo Verde. Para finalizar, e ainda nesta rubrica, incluiu-se o Acordo de Extradição da Comunidade Económica dos Países da África Ocidental, curiosamente aprovado para ratificação pelo parlamento cabo-verdiano em 2000, mas que nunca chegou a ser efectivamente ratificado por motivos desconhecidos. Quanto às convenções multilaterais que podem servir de base à extradição quando necessário e que, ademais, incluem importantes directrizes nesta matéria, nomeadamente o princípio do aut dedere aut judicare (ou extraditar ou julgar), limitamo-nos a seleccionar aqueles que, por um lado, vinculam a República de Cabo Verde, e, do outro, cobrem matérias de maior importância para o nosso país. São a Convenção contra a Tortura ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984), a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (1988), a 17

Introdução

Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba

(1997),

a

Convenção

Internacional

para

Supressão

do

Financiamento do Terrorismo (1999), a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (2000), e a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2003). Com o mesmo desiderato de organizar a prática interna, compilamos a, ainda reduzida, jurisprudência cabo-verdiana em matéria de extradição. Os acórdãos e outras decisões importantes do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, encontram-se reproduzidos em anexo, podendo servir de importante instrumento de consulta para estudiosos e práticos interessados no instituto jurídico alvo desta colectânea. III. Agradecimentos Aproveitamos a oportunidade para agradecer a todos quantos, institucional ou individualmente, contribuíram para que esta compilação de textos, legislação e jurisprudência viesse a lume. Entre tantos, destacaríamos, por ordem cronológica o incentivo dado pelo jornalista Júlio Vera-Cruz, ao Professor Mário Silva, do ISCJS, e ao jurista João Santos, em diversos momentos à sua publicação, a aceitação imediata da ideia pela Direcção do ISCJS, enquadrando-a nos seus planos editoriais, os co-autores que, desde a primeira hora, se prontificaram a colaborar com uma peça para o livro, em especial, neste caso, a Júlio Martins Tavares, docente do ISCJS e actualmente a exercer funções como Procurador-Geral da República, que nos auxiliou na recolha da legislação e jurisprudência inserta nos anexos deste livro, e por motivos similares aos estudantes do ISCJS Magda Tavares e Olívio Borges. Finalmente, não poderíamos deixar de agradecer o inestimável apoio do Ministério da Justiça de Cabo Verde por ter acolhido esta ideia e visualizado os efeitos positivos da divulgação desses elementos 18

Aspectos Polémicos da Extradição

doutrinários, legislativos e jurisprudenciais em matéria de extradição, apostando em sua publicação. É, também de se louvar que o apoio desta instituição tem sido valioso para o aprofundamento do debate jurídico em Cabo Verde, sempre pronta a estabelecer parcerias com as instituições de ensino comprometidas com esta causa. A todos que contribuíram para a publicação desta obra, os nossos sinceros agradecimentos.

Praia, Outubro de 2008

19

PARTE I

ASPECTOS POLÉMICOS DA EXTRADIÇÃO EM CABO VERDE

EXTRADIÇÃO E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL NO CONTEXTO DA REVISÃO CONSTITUCIONAL Franklin Furtado *

Sumário: I. Introdução; II. Quadro Geral da Extradição; III. Extradição – Mudanças; 3.1. Extradição de nacionais. Sua admissibilidade; 3.2. A alternativa; 3.3. Situações de extradição de nacionais; IV. Pena de Morte; V. Lesão Irreversível da Integridade Física; VI. Prisão Perpétua; VII. Limites Materiais da Revisão Constitucional; VIII. Solução de Dupla Revisão; IX. Texto; X. Tribunal Penal Internacional – TPI; XI. Texto; XII. Conclusão

I. Introdução A problemática da extradição e do Tribunal Penal Internacional, TPI, estão na ordem do dia e todos, ainda que seja pelo “mero” exercício de cidadania, têm o direito de se posicionar face a estes assuntos tão delicados e sérios. A extradição é um dos mecanismos mais importantes da cooperação judiciária internacional em matéria criminal e desde os tempos mais recuados que ela vem sendo utilizada na luta solidária dos povos contra a criminalidade.

* Procurador de Carreira, Antigo Procurador-Geral da República, República de Cabo Verde.

23

Franklin Furtado

Consiste, essencialmente na entrega de uma pessoa a um Estado estrangeiro, onde ela se encontra arguida ou condenada, pelo cometimento de um crime. Daqui resulta que ela pode ser concedida, tanto para o procedimento criminal, como para o cumprimento de uma pena, já decretada por sentença judicial. Sabe-se que a facilidade dos transportes tornou mais fácil a deslocação de pessoas e por isso, tem sido cada vez mais fácil que uma pessoa que cometa um crime num determinado Estado se desloque para outro, tentando fugir à acção da justiça e neutralizar o exercício do jus puniendi do Estado lesado pelo cometimento do crime. Num momento de intensificação das relações entre os Estados não seria compreensível que estes não apostassem numa cooperação cada vez mais estreita no combate ao crime, o que faz com que os mecanismos de cooperação judiciária passem a ter uma importância cada vez maior, e neste particular, a extradição não pode deixar de ter um lugar de destaque. Aliás, o crime tende cada vez mais a internacionalizar-se, reclamando da parte de todos uma actuação concertada por forma a garantir um combate eficaz, sendo bem verdade a sentença daquele que disse que a uma criminalidade sem fronteiras deve-se reagir com respostas sem cancelas. As exigências de cooperação judiciária internacional tornam-se cada vez mais intensas e deve-se preparar para interagir adequadamente com outros parceiros. Cremos que são acertadas as palavras de Mendes Serrano quando diz que “a concepção tradicional de intangibilidade da soberania dos Estados, ainda dominante na práxis judiciária, leva à ineficiência do combate à criminalidade quando esta última ultrapassa as fronteiras políticas. Contudo, a pressão duma criminalidade cada vez mais internacionalizada, e em regra, mais organizada – e por isso mesmo, 24

Aspectos Polémicos da Extradição

mais ameaçadora para a estabilidade e subsistência das sociedades democráticas –, torna necessário um aprofundamento da cooperação judiciária internacional em matéria penal como forma de tornar mais eficaz o combate a essa criminalidade. É hoje necessário derrubar de forma mais radical as velhas fronteiras judiciárias” 1. É certo, no entanto, que os Estados podem cooperar no combate ao crime sem ser através da extradição, que de resto sempre conheceu algumas limitações. O Estado onde o criminoso seja encontrado pode extraditar, mas, em princípio, pode também ele julgá-lo pelo crime cometido fora do seu território. Já Grotius defendia “(…) a existência de uma obrigação geral (e internacional), que impenderia sobre cada Estado, de extraditar ou punir relativamente a todos os delitos pelos quais um outro Estado em que o ofensor se refugiasse pudesse impedir o exercício desse direito. A este Estado apresentar-se-ia a seguinte alternativa: ou entregar o indivíduo culpado ao Estado reclamante ou puni-lo” 2 – Aut dedere aut judicare. No que concerne ao TPI, é sabido que ele visa uma protecção maior dos direitos humanos, combatendo crimes que atentam gravemente contra o género humano e que não devem ficar impunes. Ele representa a esperança numa justiça penal internacional, mais justa e equitativa e não seria desejável que Cabo Verde não integrasse um organismo de tão nobres propósitos. Se, num mundo cada vez mais globalizado, pretendermos colocar, nos mais altos píncaros a bandeira da nossa cidadania e soberania, não precisamos alterar muita coisa; mas se pensarmos, que a cidadania global pode significar algo ou, se entendermos que ante a soberania do

1 2

Mário Mendes Serrano, Extradição, regime e praxis, p. 25. Ibid., p. 18.

25

Franklin Furtado

Estado, se ergue hoje, a soberania dos direitos humanos veremos, com mais nitidez, a vantagem em mudar o nosso quadro actual. II. Quadro Geral da Extradição Entre nós a regulamentação da extradição acha-se sobretudo nos artigos 84.º e ss. do Decreto Legislativo n.º 6/97, de 5 de Maio. É ocioso dizer, no entanto, que os princípios fundamentais da extradição encontram-se plasmados na própria Constituição. Particularmente, no art. 37.º, que reza assim: Extradição 1. Não é admitida a extradição de cidadão cabo-verdiano, o qual pode responder perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro. 2. É admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida, determinada por autoridade judicial cabo-verdiana, nos termos do direito internacional e da lei. 3. Não é porém admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida: a) Por motivos políticos ou religiosos ou por delito de opinião; b) Por crimes a que corresponda na lei do Estado requisitante pena de morte, de prisão perpétua ou de lesão irreversível de integridade física; c) Sempre que, fundadamente, se admita que o extraditando possa vir a ser sujeito a tortura, tratamento desumano, degradante ou cruel.

São estes os princípios travejantes do direito extradicional que o Decreto Legislativo acima mencionado concretiza. É assim que, inter alia, o seu art. 90.º rejeita a possibilidade de extradição quando (a) o facto for punível com a pena de morte, penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, prisão perpétua ou prisão ou medida privativa de liberdade de duração indeterminada pelo Estado requerente, (b) se trate de crime político, etc. Além disso, é preciso sublinhar que a extradição só é concedida pelo Juiz, in casu, pelo Supremo Tribunal de Justiça e só quando estejam em causa crimes puníveis com pena não inferior a um ano de prisão. 26

Aspectos Polémicos da Extradição

É importante sublinhar ainda que o processo extradicional vigente entre nós, até hoje, se subdivide, essencialmente, em duas partes: uma administrativa e outra jurisdicional. A fase administrativa é da competência do Governo e ela visa uma apreciação política do pedido de extradição com vista a decidir se ele deve ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política, de oportunidade ou de conveniência – art. 99.º/2 do D. Legs. 6/97, de 5 de Maio. Já

daqui

se

alcança

que

a

intervenção

do

Governo

é

verdadeiramente decisiva uma vez que pode impedir definitivamente o prosseguimento de um determinado pedido de extradição, pois, a decisão negativa que vier a tomar nesta fase preliminar do procedimento extradicional, é inapelável. A este propósito o n.º 4 do art. 100.º do diploma atrás mencionado é bem claro: no caso de indeferimento do pedido, a decisão é comunicada ao Estado requerente, pela mesma via por que aquele foi recebido e o processo é arquivado sem mais formalidades e da decisão não há recurso. Se a decisão for favorável no sentido do prosseguimento do pedido, o processo é remetido ao Procurador-Geral da República que submete o pedido ao Supremo Tribunal de Justiça, onde decorrerá a fase judicial e onde o extraditando terá todas as possibilidades de se defender antes da decisão final do processo. III. Extradição – Mudanças Desde há um tempo a esta parte que algumas pessoas têm vindo a perguntar-se se não é chegado o momento de flexibilizar o regime que temos nesta problemática da extradição. A nossa Constituição é bastante rígida a este propósito. Não permite a extradição de nacionais; nem permite a extradição de 27

Franklin Furtado

estrangeiros e apátridas nas situações em que seja possível a aplicação da prisão perpétua ou da pena de morte. 3.1. Extradição de nacionais. Sua admissibilidade Embora continue a ser observado por vários países, sobretudo os da tradição da civil law, a verdade é que o princípio da não extradição de nacionais vai perdendo grande parte do fulgor que conheceu outrora, estando a sua justificação a ser hoje objecto de crescente questionamento por muitos juristas eminentes. Temos todos a consciência de que se trata de uma questão sensível e qualquer mudança a respeito poderá significar o rompimento com uma tradição, de certa forma, antiga. Note-se, neste particular, que já a Constituição de 1980 proibia em termos categóricos a extradição de nacionais, dizendo no seu art. 33.º que “em caso algum é admissível a extradição ou a expulsão do país, do cidadão nacional”. E entre nós, toda esta temática não pode deixar de assumir uma relevância particular, uma vez que, certamente, somos dos poucos países do mundo em que a maior parte da população vive no estrangeiro, mantendo a cidadania cabo-verdiana, muitas vezes, em concurso com a nacionalidade do país de residência. Deve-se dizer, de resto, que têm vindo a surgir, com uma frequência crescente, casos de cabo-verdianos que cometem crimes lá fora e fogem para Cabo Verde, na certeza de que não serão extraditados, embora tenhamos vindo a instaurar-lhes, aqui, processos pelos crimes cometidos no estrangeiro 3.

3 Muitos vêm para cá na esperança de que nada lhes vai acontecer. Houve casos em que arguidos de tráfico de droga no estrangeiro fizeram chegar o seu desagrado pelo facto de um colega deles que fugiu para Cabo Verde ter sido preso aqui. É que, no entendimento deles, “arguên ta fugi ti na si casa”, sendo por isso ilegítimo que seja chateado depois “dê tchiga si casa”!!

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Aspectos Polémicos da Extradição

E em alguns desses casos os arguidos têm também a nacionalidade do país onde cometeram o crime, o que leva as autoridades desse a pensar, à partida, que não haveria problemas de extradição, uma vez que se trataria de extradição de concidadão. Mas, depois de apresentar o pedido de extradição, não raro, são surpreendidas com uma certidão comprovativa de que, pese embora o facto de o arguido ter nascido nesse país, não obstante o facto de ele nunca ter vindo a Cabo Verde, de não ter ligações afectivas ou efectivas com Cabo Verde, ele não deixa de ter nas suas veias o sangue jurídico cabo-verdiano e por isso não podemos pensar sequer em extraditá-lo. As autoridades desse país estrangeiro terão que se contentar em julgar os seus outros cidadãos que, eventualmente, tenham cometido o crime em comparticipação com o cidadão que também é cabo-verdiano, só que este, pelo facto de ser um dos nossos, não admitimos que seja julgado por “estrangeiros”. Chega por vezes a ser chocante recusar a extradição em casos desses. Afinal, parece que a nossa cidadania vale indiscutivelmente mais do que outra – a do país em que vive e onde nasceu – e deixa a amarga impressão de que, para o nosso sistema, tudo pode prestar no país estrangeiro, mas a justiça criminal desse país não prestará, de certeza. Permitimos que tratem bem os nossos concidadãos, que lhes dêem um trabalho razoavelmente bem remunerado, que lhes disponibilizem cuidados de saúde, que assegurem a educação dos seus filhos etc.; mas não lhes damos a “licença” de os julgar e sentenciar, quando post delictum comissum, correm, aceleradamente, para os braços da nossa bem amada e conveniente cidadania. Cremos que, se a cidadania, a nacionalidade desse país estrangeiro existe para fins políticos, sociais e económicos, ela deve representar também alguma coisa de importante para efeitos de extradição.

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Mas afinal porque é que não se extraditam nacionais? Qual a razão de ser de semelhante regime? Será que a Justiça Criminal dos países estrangeiros não merece crédito? Marcello Caetano escreveu a este propósito que a regra da não extradição de nacionais “(…) resulta do sentimento de desconfiança que os Estados nutrem uns dos outros. Portugal receia que em Espanha a justiça não proceda imparcialmente com os portugueses, a França teme o procedimento da Alemanha, etc.” 4 Quer me parecer, porém, que estas velhas suspeitas de que os nacionais são sempre maltratados, ou tratados com injustiça pelas autoridades dos outros países já não convencem e estão quase totalmente ultrapassadas. Desde logo, é preciso não esquecer que a questão da justiça criminal constitui um dos capítulos em que a pressão da comunidade internacional e de organizações de direitos humanos se tem feito sentir com maior acuidade, e por isso, a margem de manobra para que a Justiça criminal de determinado país maltrate os estrangeiros, ou os trate com discriminação é cada vez menor. Assim, os velhos receios e suspeitas não podem justificar, hoje, a proibição de extradição de nacionais. Quanto a mim, desde que o país do cometimento do crime seja credível e apresente todas as garantias de um processo equitativo, segundo os standards internacionais, não haverá, em princípio, motivo para se recusar a extradição de nacionais. E isso pode ser avaliado,

Lições de Direito Penal, Ed. de 1939, p.160. No dizer do Embaixador José Calvet de Magalhães: “Os fundamentos geralmente apresentados a seu favor são de que ninguém deve ser subtraído ao julgamento dos seus juízes naturais e de que os Estados têm o dever de aplicar as suas próprias leis aos seus cidadãos. Tais argumentos não são, na verdade, muito sólidos pois justificariam igualmente a não extradição de nacionais de terceiros Estados indo contra o princípio da territorialidade do crime. O professor Georg Daham considera que o princípio da não extradição de nacionais se baseia, em grande parte, em sentimentos irracionais” – Cfr. Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. IV, p. 316.

4

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Aspectos Polémicos da Extradição

nomeadamente, pelo Governo que é quem tem o poder de, em primeira mão, decidir se um determinado pedido de extradição terá seguimento ou não. Em 1939 Marcello Caetano já dava conta de que se desenhava uma corrente no sentido de seguir nova orientação: depois da Inglaterra e da América do Norte, a Itália admitiu em princípio a extradição de nacionais quando expressamente consentida nas convenções internacionais. Mas,

como

estas

normas

convencionais

estabelecem

a

reciprocidade, é necessário que, os outros países também aceitem a nova orientação para que ela vingue.” Num momento em que já se fala de cidadania global pode parecer intempestiva a atitude daqueles que insistem em erguer cada vez mais os muros de qualquer cidadania local. Na aldeia global em que vivemos e seremos forçados a viver, haverá cada vez menores distâncias entre todos, sendo certo ainda que a importância dos feudos, qualquer que seja a sua natureza, tenderá a ser cada vez menor. Uma atitude de maior abertura aos outros terá que ser assumida cada vez mais. Muitos países já fizeram uma evolução favorável, nesse domínio, e a evolução do direito português, afigura-se-me de grande interesse para nós. Sabe-se que até 1997 esse ordenamento jurídico não admitia a extradição de nacionais e isto resultava, desde logo, do próprio texto constitucional. Foi necessário rever a Constituição para se prever a possibilidade de extraditar cidadãos portugueses. Ao longo do processo de Revisão Constitucional foram ouvidas várias personalidades e uma esmagadora maioria foi favorável à possibilidade da extradição de nacionais.

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Franklin Furtado

O então Ministro da Justiça, Dr. Vera Jardim, no seu depoimento disse a propósito da norma constitucional que proibia a extradição de nacionais: “(…) não tem a ver com direitos, liberdades e garantias, porque esses estão assegurados, na própria lei da extradição, por um conjunto de condições para que a ela se possa dar, e tem o seu fundamento, naturalmente, numa concepção do direito punitivo relativo aos nacionais que sejam encontrados no Estado de que são nacionais, independentemente do local da prática do crime.” Penso que é de perguntar se – continuo a citar –, “neste momento, este princípio continuará num contexto novo de combate a formas de criminalidade altamente organizada e que obedecem, em muitos casos, a estratégias de dimensão internacional, europeia ou ainda mais ampla.” Será

que

esta

norma



resposta

aos

objectivos

de

responsabilização penal dos agentes de crimes? Refiro-me em especial, àquilo que hoje se conhece pela criminalidade organizada, que engloba um conjunto de crimes: tráfico de estupefacientes, tráfico de pessoas, armas, corrupção, fraude, terrorismo, etc. Pensava o Ministro “que devemos ter em atenção um princípio que é o princípio do exercício da competência pelo Estado que está em melhores condições para o exercício da acção penal em criminalidade deste tipo. Trata-se nestes casos de redes – refiro-me sempre a estes casos de criminalidade organizada – de processos que englobam, muitas vezes, cidadãos de vários Estados e redes que se estendem a vários países, podendo a recusa da extradição de nacionais colocar em causa o próprio poder punitivo. Não lhe parecia que fosse suficiente, como alguns podem defender, o julgamento e condenação por cada Estado onde o agente do crime seja encontrado, visto que como é sabido, nestes crimes que trazem consigo 32

Aspectos Polémicos da Extradição

geralmente a associação criminosa – crimes organizados – é importante, para várias matérias, mas sobretudo para a matéria de prova, que o julgamento se efectue ao mesmo tempo e no mesmo local. Não chega julgar estas várias pessoas em vários países e em ocasiões diferentes, podendo até, em certos casos, violar-se com isso o princípio penal ne bis in idem, que também é aceite pelo nosso sistema jurídico. Perguntava-se ainda se este princípio poderá fazer face a problemas cada vez mais frequentes, sobretudo num país como o nosso, com um conjunto de cidadãos emigrados noutros países, com princípios de dupla nacionalidade, em relação aos quais vários Estados poderão reclamar, face ao mesmo princípio da nacionalidade, o exercício do seu próprio poder punitivo”. 5 Concluía “que hoje a proibição, em absoluto da extradição de nacionais,

não

se

justifica;

justificava-se,

talvez,

num

mundo

completamente diverso e também num mundo de criminalidade muito diferente daquele com que nos confrontamos hoje.” Se as fronteiras se abriram, então temos de tirar algumas conclusões dessa abertura de fronteiras. Cunha Rodrigues, então Procurador-Geral da República de Portugal, disse, na oportunidade, que “o problema de extradição de nacionais é fundamental por razões várias e devia colocar-se em termos gerais, em regime de reciprocidade, com as garantias que a Constituição pudesse prever”. Este aspecto tem a ver com várias exigências de combate à criminalidade que passam, por um lado, “pela gestão das provas, que só podem ser feitas correctamente no local onde é praticado o crime, com um problema, que começa a ser preocupante nas relações internacionais,

5

Cfr. Diário da Assembleia da República, II, Série RC, n.º 82, p. 2349-2350.

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que é o da repetição dos julgamentos e do princípio do non bis in idem, que o risco de julgamentos em países diferentes coloca”. Da revisão constitucional resultou um passo importante que consistiu na possibilidade da extradição de cidadãos portugueses em determinados casos 6. Portugal não é o único exemplo de país que teve que reponderar a extensão do princípio constitucional da proibição de extradição de nacionais. Vários outros países que constituem hoje sólidas democracias e que em matéria de Estado de Direito representam para as democracias emergentes espaços de referência, viram-se igualmente na contingência de introduzir excepções ao princípio da não extradição de nacionais por forma a que pudessem corresponder à obrigação de cooperação judiciária internacional. Na Europa continental, embora fosse princípio tradicional a não extradição de nacionais, tem-se vindo a registrar uma evolução no sentido de maior abertura, o que justifica, por exemplo, a existência no espaço da União Eurpeia de uma figura como o mandado de detenção europeu por força do qual qualquer cidadão arguido por um dos crimes que permitem a extradição pode ser detido no país aonde for encontrado, ainda que seja o da sua nacionalidade, e entregue às autoridades judiciárias do país aonde tiver cometido o crime para ser julgado. A Alemanha, uma das democracias mais sólidas do mundo e dotada de uma jurisdição constitucional muito ciosa da tutela efectiva dos direitos fundamentais, procedeu à revisão da sua Constituição em 2000 7 precisamente para introduzir uma excepção ao princípio da não 6 O n.º 3 do art. 33.º da Constituição Portuguesa estatui agora que “a extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo”. 7 Lei Constitucional de 29 de Novembro de 2000.

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Aspectos Polémicos da Extradição

extradição de nacionais, que até aí era uma proibição absoluta 8, de modo a permitir a extradição dos seus nacionais para outros países da União Europeia e a entrega ao Tribunal Penal Internacional, desde que as garantias próprias de um Estado de Direito sejam observadas. Fora da Europa continental, e para além do caso do Reino Unido, vale a pena referir o caso dos Estados Unidos, que desde 1990 aprovaram uma legislação que permite a extradição de cidadãos americanos para países estrangeiros, desde que verificados os outros requisitos indicados no tratado de extradição em referência. Igualmente o México abandonou a sua tradicional relutância em extraditar seus nacionais e desde 2001 passou a fazê-lo, desde que verificada uma série de garantias. Entendo, que, à semelhança do que se passou em Portugal e em outros países referidos, também deveríamos alterar a nossa Constituição por forma a admitir alguma excepção ao princípio da não extradição de cidadãos nacionais. 3.2 A alternativa É certo que não faltarão vozes a sustentar que, ao invés de optar pela extradição de seus nacionais, mesmo que em situações excepcionais, Cabo Verde deveria continuar assim como está e melhorar, se possível, as condições para que os seus nacionais fossem julgados no território nacional e pelos tribunais cabo-verdianos. Seria a opção pelo judicare, em vez de dedere. Se é certo que o princípio da não extradição de nacionais assenta numa desconfiança da ordem interna sobre a justeza do tratamento que poderá ser dispensado ao seu nacional por jurisdições estrangeiras, O artigo 16, n.º 2, da Constituição Alemã, antes da revisão, dizia que nenhum cidadão alemão podia ser extraditado para um país estrangeiro.

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opção assente em razões de índole meramente subjectiva, afectiva ou senão mesmo irracional, já a admissão da extradição, seja como princípio ou regra geral para estrangeiros ou apátridas que se encontram no território nacional, seja como excepção para os próprios nacionais, assenta noutra ordem de razões, não menos nobres nem menos ponderáveis: razões de justiça associadas ao imperativo de evitar ou desencorajar expectativas de impunidade em relação à criminalidade mais grave que por vezes acaba por atingir não só a vítima, mas também a comunidade estatal, ou mesmo internacional. Os que levantam objecções à extradição de nacionais, com o argumento de que podem ser julgados no território nacional pelos Tribunais cabo-verdianos, fazem-no no pressuposto e na convicção de que esse hipotético julgamento em Cabo Verde cumpriria da mesma forma os objectivos da realização da justiça, como se fosse feito pelo tribunal do local em que o crime foi praticado. Trata-se de um pressuposto que está por demonstrar e que, a fazer fé

na

mera

observação

empírica,

pode

desde



dar-se

por

indemonstrado. E não se trata, como por vezes se pretende fazer crer, de qualquer espécie de desconfiança em relação às instituições judiciárias nacionais. Longe disso! Mas não se pode olvidar que, para além dos meios logísticos que tais julgamentos reclamam, na maior parte dos casos trata-se de crimes graves em que os arguidos, em regra, aguardarão o julgamento em prisão preventiva. A prisão preventiva está sujeita a prazos bem precisos na legislação cabo-verdiana os quais, uma vez expirados, impõem inexoravelmente, a soltura do arguido. Pergunta-se, se as autoridades cabo-verdianas, sejam elas Polícia de Investigação Criminal, o Ministério Público ou os próprios 36

Aspectos Polémicos da Extradição

Tribunais, estarão em condições de cumprir rigorosamente os prazos, quando a prova que tem de sustentar as suas promoções e decisões está nas mãos de autoridades estrangeiras e pode haver dificuldades em fazêlas chegar ao nosso país? Mas, há que perguntar igualmente se o país dispõe de condições logísticas para lidar com esse tipo de criminalidade, normalmente organizada ou violenta. Referimo-nos às infraestruturas penitenciárias, ao sistema prisional, aos recursos humanos qualificados e devidamente preparados e às condições de segurança suficientes para se evitar uma fuga ou um motim. Finalmente, pergunta-se se o julgamento não seria mais equitativo se se realizasse no local do cometimento do crime em que o arguido terá, normalmente maiores possibilidades de apresentar a sua defesa, de controlar a produção de prova, sendo inegável que, de outro modo haverá sempre restrições, maiores ou menores, a esse nível 9. Deve sublinhar-se, de resto, que quase todos estão de acordo em como não existe melhor lugar do mundo para se fazer o julgamento do que o lugar do cometimento do crime; não há melhor lugar para se reparar uma ofensa do que o local em que ela foi praticada; não há melhor lugar para se reafirmar a validade duma norma do que aquele em

Parece manifesto que tais dificuldades existirão quando o grosso das provas só podem ser produzidas por autoridades estrangeiras. Como compelir testemunhas que residem fora do país a prestar o seu depoimento, ainda que por meios audio-visuais? Em caso de necessidade, haverá condições para fazer deslocar a alçada do tribunal e os advogados da defesa ao estrangeiro para ouvir testemunhas ou realizar outras diligências, nomeadamente o exame ao local do crime (artigo 389º do Código de Processo Penal)? Haverá consentimento das autoridades estrangeiras para que essas diligências sejam realizadas em seu território?

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que a mesma foi violada, nenhuma comunidade tem mais direito a julgar o criminosos do que aquela que foi abalada pelo crime 10. Não é por acaso que o princípio fundamental em matéria da aplicação da lei penal no espaço é o da territorialidade. Sobre este princípio, o Prof. Eduardo Correia escreveu: “(…) o direito penal de um determinado país deve fundamentalmente aplicar-se a todos os factos praticados no seu território, qualquer que seja a nacionalidade do agente. Em favor deste princípio pode, na verdade, “dizer-se que em nenhuma parte é possível aclarar e fazer melhor a prova do facto, e, portanto, a mais recta justiça, do que no lugar onde foi cometido o crime. Depois, é aí que a necessidade de reprovação e intimidação mais se faz sentir” 11. Não é diferente a posição do Prof. Figueiredo Dias. Segundo este Mestre “(…) deve antes de tudo dar-se ênfase à circunstância de ser na sede do delito que mais vivamente se fazem sentir as necessidades de punição e de cumprimento das suas finalidades, nomeadamente de prevenção geral positiva. É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e que exige por isso que a sua confiança no ordenamento jurídico e as suas expectativas na vigência da norma sejam estabilizadas através da punição. A estas razões (que poderiam chamar-se substantivas) acresce (razão processual) que o lugar do facto é também aquele onde melhor se pode investigá-lo e

Têm havido alguns casos em que depois de terem fugido para Cabo Verde e depois de lhes ser instaurado o processo, os arguidos se queixam de que afinal estariam a ser injustiçados, porque os factos não se deram aqui e não conseguiriam exercer eficazmente o contraditório aquando dos depoimentos das testemunhas que normalmente são ouvidas através de cartas rogatórias. Afinal, acabam por demonstrar que, também para eles, o melhor lugar para o julgamento de crimes é o do lugar do seu cometimento! 11 Direito Criminal, I, p. 167-168. 10

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Aspectos Polémicos da Extradição

fazer a sua prova e onde, por conseguinte, existem mais fundadas expectativas de que possa obter-se uma decisão judicial justa.” 12 Ora, se concordamos com estas vozes autorizadas de que o melhor lugar para se fazer a mais recta Justiça é o local do cometimento do crime, teremos razões fortes para, rejeitar liminar e terminantemente a extradição de nacionais para que sejam julgados no local em que delinquiram? São todas essas questões, que tornam, quanto a nós, absolutamente incontornável a necessidade de se abrir excepções ao princípio da não extradição de cidadãos nacionais. 3.3. Situações de extradição de nacionais Uma vez assente a necessidade de se reponderar a extensão do princípio da não extradição de cidadãos nacionais, há que perguntar em que termos e em que condições deverá ser permitida a extradição. É que, tratando-se de uma ruptura com aquilo que tem sido o nosso direito até ao presente, a prudência aconselha que se tomem certas cautelas, e não passar logo de um extremo a outro. Como já foi referido, a nossa lei permite a extradição desde que o crime cometido seja punível com pena não inferior a um ano de prisão. Parece-me que, mesmo que seja avisado não permitir a extradição de nacionais para todos os casos de crimes, por assim dizer, «extraditáveis», a mesma deveria ser concedida quando estivessem em causa crimes graves, crimes que criem alarme ou suscitem grande repulsa no local do seu cometimento 13. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, p. 197. Cfr. F. Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 106-17, em que fala da distinção entre as penas de prisão de curta, média e longa duração, sendo as primeiras não superiores a 6 meses, as segundas não superiores a 3 anos e a últimas superiores a este limite, para de seguida escrever que “(…) a distinção em causa é

12 13

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Penso, v.g., que se um cabo-verdiano for surpreendido, em Lisboa com 50 ou 100 quilos de cocaína de elevado grau de pureza, deve poder ser julgado em Portugal onde os malefícios dessa droga, sobretudo sobre a juventude, se fazem sentir duma forma mais directa. Se um cabo-verdiano, sozinho, ou em comparticipação com outras pessoas, mata 3 ou 4 pessoas em Roterdão, não me repugnaria que, tomadas as devidas cautelas, o mesmo fosse julgado na Holanda. Se um cabo-verdiano viola várias mulheres nos EUA, não teria grandes razões para me opor a um julgamento dele na América, prestadas que sejam determinadas garantias. Se um cabo-verdiano faz explodir uma bomba em Paris ou no Rio de Janeiro, creio que se deveria permitir o seu julgamento em França ou no Brasil. Se um cabo-verdiano se entrega ao intolerável exercício de abuso sexual de crianças numa pacata aldeia da Noruega, creio que o mesmo merecerá ser julgado nesse país. Para mim em casos de crimes graves, dever-se-ia permitir a extradição de cabo-verdianos para que possam ser julgados lá onde delinquiram 14. O que se há-de entender por crimes graves seria tarefa a deixar ao legislador ordinário, que ponderaria se todos os crimes puníveis com pena superior a 3 anos deveriam justificar a extradição.

particularmente relevante na medida em que possui uma clara correspondência às categorias criminológicas de pequena criminalidade, da criminalidade média e da grande (ou grave) criminalidade (…). 14 De igual modo, entendo que se um cidadão estrangeiro é surpreendido a traficar droga na Praia, o mesmo merece ser julgado na Praia; se um turista estrangeiro mata duas ou três cabo-verdianas e as enterra numa praia de Boa Vista, o julgamento dele merece ser feito em Cabo Verde; se, amanhã, um estrangeiro coloca uma bomba nas Torres da Praia Negra, todos concordarão que o melhor lugar para o seu julgamento deve ser na Praia e apoiarão o pedido de extradição dele para Cabo Verde.

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Aspectos Polémicos da Extradição

Quanto a mim, preferiria que houvesse a extradição em todos os casos de crimes puníveis com penas superiores a 8 anos de prisão. Para além disso, não se pode deixar de exigir para a extradição dos nossos concidadãos a garantia da reciprocidade, i.e., só extraditamos nossos cidadãos quando o Estado requisitante pudesse também, nas mesmas condições, extraditar um cidadão desse país para ser julgado aqui pelos crimes que cometa em território cabo-verdiano. Por último, não se poderá deixar de sublinhar que só se admite a extradição para países que garantam um processo justo e equitativo ao extraditando. IV. Pena de Morte Conforme resulta da norma constitucional acima transcrita, a extradição não é admitida nos casos em que o crime é punível com pena de morte, de acordo com a legislação do Estado requerente. Entendemos que, nesta parte, a Constituição deve-se manter, assim como está. É certo que se pode defender que, à semelhança daquilo que é possível acontecer nos casos de prisão perpétua, o Estado requerente pode prestar garantias adequadas e suficientes de que, no processo concreto que motivou o pedido extradicional, não será aplicada a pena de morte. Se as garantias são suficientes para a não aplicação da prisão perpétua, são também suficientes para a não aplicação da pena de morte. Portanto, ao admitir a abertura para um caso, penso que não teríamos grandes argumentos para não admitir também relativamente ao outro. Ou seja, se se admite que no caso da prisão perpétua possam ser prestadas garantias válidas e suficientes, o mesmo há-de valer para o caso de pena de morte (aliás esta tese fez vencimento no Acórdão do Tribunal Constitucional português n.º 1/2001, de 10 de Janeiro que não 41

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declarou a (…) inconstitucionalidade do art. 6.º/2 da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto, na parte em que permite a extradição na hipótese prevista na al. e) do mesmo artigo, se o Estado que formula o pedido, por acto irrevogável e vinculativo para os seus tribunais ou outras entidades competentes para a execução da pena, tiver previamente comutado pena de morte ou outra de que possa resultar lesão irreversível da integridade da pessoa” 15). A meu ver, porém, a pena de morte deve ser combatida em todas as oportunidades e a recusa da extradição para casos puníveis com pena de morte constitui, certamente, também uma oportunidade de dizer não a essa pena. Entendemos que o Senhor da vida não é o homem nem é o Estado e por isso, não será nunca justo matar qualquer pessoa, seja em que circunstância for, seja por que razão for. Para além disso, ao contrário daquilo que por vezes se pensa a pena de morte não responde relevantemente a qualquer problema de combate ao crime. Last but not the least, o erro judiciário é uma eventualidade que nunca pode ser afastada de todo, sendo certo que no caso de condenação à morte, tal erro seria insuportável e tragicamente irremediável. É certo que havendo recusa de extradição, seria de todo desejável o julgamento no nosso país, dos autores dos crimes puníveis com pena de morte no local do seu cometimento, que são, naturalmente, os autores dos crimes mais graves. Infelizmente, as situações em que os estrangeiros ficam sob a alçada da nossa jurisdição quando o crime seja cometido lá fora, são muito limitadas, conforme se alcança da leitura do art. 4.º do nosso Código Penal, podendo, até, dar-se o caso de termos de avançar com

15

um

processo

contra

cabo-verdiano

e,

nas

mesmíssimas

Apud Catarina Veiga, Cristina Máximo dos Santos, Constituição Penal, p. 565.

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Aspectos Polémicos da Extradição

circunstâncias não ser possível perseguir aqui um estrangeiro cuja extradição não seja possível por causa da pena de morte 16. É verdade ainda que tal circunstância pode legitimar que se diga que nós recebemos, com morabeza, os criminosos mais perigosos e extraditamos, sem piedade, os autores de pequenos delitos, o que pode transformar o país em porto de abrigo seguro para alguns “campeões da criminalidade” do mundo. Salta à vista que se fossem julgados não seria de afastar, de todo, problemas à administração penitenciária - e não só! - num cenário em que a superlotação das cadeias é inquestionável, para além do facto de não termos sequer alas de alta segurança nesses estabelecimentos. Como quer que seja, é preciso dizer que tudo tem o seu preço, e não parece que isso seja um preço excessivo para a defesa da vida, para dizer não à entrega das pessoas aos «braços da morte». Por tudo isso, entendo que no que concerne à pena de morte, o regime constitucional actual deve manter-se. V. Lesão Irreversível da Integridade Física O mesmo valerá, mutatis mutandis para os casos de penas que acarretem lesão irreversível da integridade física. Cortar o braço ao ladrão é, desumano e infamante. Por exemplo, se num determinado Estado o homicídio agravado é punível com pena de morte, o cabo-verdiano que cometa tal crime contra um cidadão desse país e fuja depois para Cabo Verde, pode ser aqui perseguido, visto que nos termos do art. 4.º al. d) do Código Penal “(…) a lei penal cabo-verdiana é aplicável a factos praticados fora do território de Cabo Verde (…);d) Quando forem cometidos por cabo-verdianos, ou por estrangeiros contra cabo-verdianos, desde que o agente seja encontrado em Cabo Verde, os factos sejam igualmente puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados e constituírem crime que legalmente admita extradição e esta não possa em concreto ser concedida”. No entanto se o tal homicídio fosse praticado por estrangeiro ele não seria extraditado para não ser morto, mas também não seria julgado aqui, por não lhe ser aplicável a nossa lei. Então teríamos o autor de um crime grave, em plena e total liberdade e impunidade no nosso país.

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Castrar o violador é cruel e bárbaro. Cortar

a

língua

ao

difamador

é

desumano

e

sempre

desproporcional. Penas dessas e outras que acarretem lesão irreversível da integridade física do criminoso não devem ser permitidas. Antes, pelo contrário, devem merecer o mais vivo repúdio, sendo certo que a recusa de extradição nesses casos pode constituir uma forma de manifestar a nossa rejeição de penas tão bárbaras e … irreversíveis. VI. Prisão Perpétua Relativamente à prisão perpétua a minha recusa não é assim tão radical. Desde logo porque, havendo erro judiciário, este pode, mais cedo ou mais tarde, ser remediado, minimamente. É certo ainda que uma pena como a prisão perpétua não leva muito em conta as necessidades ou mesmo a possibilidade de readaptação social do condenado. Não me repugnaria que se pudesse prever a possibilidade de extradição nas situações em que a lei do Estado requerente prevê a prisão perpétua, desde que haja garantias de que esta pena não será executada no processo do extraditando 17.

Evidentemente que há quem pense que nada garante que as garantias sejam o garante suficiente da não aplicação da prisão perpétua. Veja-se, por exemplo, o caso do penalista José António Barreiros, para quem “(…) nem sequer em favor de prestações de garantias concretas, quaisquer que elas fossem. Penso que só assim Portugal manterá a identidade da tradição de que se honra. Deveríamos ser o último país a admitir rever esse princípio e em enfileirar nos países que parecem ter pressa em abandonar as poucas coisa de que nos podemos orgulhar, nesta matéria. Portanto, se essa fosse a regra, penso que, além disso, estaria ao serviço de um interesse prático. E isto porque só em países de sinal político-autoritário é que as garantias que são prestadas valem alguma coisa, pois só em países de regimes autoritários, países em que o judiciário está subordinado ao executivo, em que o 17

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Aspectos Polémicos da Extradição

Tal possibilidade evitaria que acolhêssemos nas nossas prisões os “campeões da criminalidade” de outros países, e, a um tempo, asseguraria ao extraditando que não iria cumprir ou sofrer a prisão perpétua. Creio ser indiferente tratar-se de garantias jurisdicionais, ou de garantias diplomáticas. Ponto é que se trate de garantias seguras de que a pena de prisão perpétua não irá ser executada in casu 18. VII. Limites Materiais da Revisão Constitucional Têm-se ouvido algumas vozes a sustentar que uma alteração da Constituição, que consagre a possibilidade da extradição de nacionais ou que permita extradição em casos de prisão perpétua, constituiria uma violação dos limites materiais de revisão constitucional, tal como previstos no art. 285.º da Lei Fundamental.

poder judicial vale aquilo que vale, é que os governos dos Estados respectivos, podem, realmente, arrojar-se a prestar garantias externas. Quanto aos Países que tenham um poder judicial independente, a garantia não vale, porque nada nos garante que o poder judicial se sinta sequer vinculado. E nós não poderíamos sequer, em último lugar de reflexão, neste ponto, aceitar estar numa situação, delicada porque incómoda, de imaginar que, por detrás do biombo da separação de poderes – regra de ouro da democracia –, havia afinal, arranjos entre o judiciário e o executivo e que, afinal, o executivo estava a ser porta-voz informal de um acordo desta natureza. Portanto, quanto à pena de morte, manter-me-ia fiel à letra da Constituição, contra as interpretações flexibilizantes do próprio Tribunal Constitucional e sem qualquer espécie de excepção.” – DAR, Série II, Número 84, p. 2407. 18 Podem suscitar-se dúvidas quanto à suficiência dessas garantias. Evidentemente que se num dado caso já existe decisão jurisdicional irrevogável, aplicando não a prisão perpétua que era uma das penas aplicáveis, mas uma outra, parece evidente que não existirá qualquer obstáculo à extradição. De igual modo, se depois da sentença, a autoridade competente, já comutou a pena de prisão perpétua aplicada numa outra pena, nada impedirá a extradição. De igual modo, se mesmo antes da condenação, houver garantias diplomáticas seguras de que a autoridade competente – no nosso caso o Presidente da República –, irá comutar a pena se essa for prisão perpétua, cremos que também nesse caso, nada impedirá a extradição.

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Estaria em causa, fundamentalmente, o n.º 2 deste artigo, segundo o qual “as leis de revisão não podem, ainda, restringir ou limitar os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição”. Em minha opinião, no entanto, uma tal revisão não violaria esses limites. Na verdade, esses limites não podem significar a proibição de aquelas matérias poderem vir a ser objecto de uma qualquer nova regulamentação por parte do legislador da revisão ou mesmo ordinário. Cada tempo tem as suas preocupações e não seria exigível que o legislador do presente deixasse de adaptar o seu ordenamento jurídico às necessidades dos tempos que correm em nome de uma mais do que discutível obediência ao legislador do texto originário da Constituição que houve por bem fixar os limites materiais de revisão. Sabe-se que a problemática dos limites materiais de revisão constitucional, constitui uma temática muito polémica e a divergência dos autores vai desde a sua legitimidade, da sua utilidade até ao sentido profundo de cada um dos limites com a configuração que o legislador constituinte lhe dá 19.

19 Jorge Miranda dá-nos conta dessa problemática, escrevendo que “o sentido a conferir aos limites materiais da revisão constitucional tem sido uma vaexata questio que há cerca de cem anos divide os constitucionalistas. Três teses principais, com cambiantes vários, se defrontam: a dos que os tomam como imprescindíveis e insuperáveis; a daqueles que impugnam a sua legitimidade ou da sua eficácia jurídica; e a daqueles que, admitindo-os, os tomam apenas como relativos, porventura susceptíveis de remoção através de dupla revisão ou de duplo processo de revisão. Os argumentos principais da primeira tese extraem-se do conceito do poder de revisão e do princípio da identidade da Constituição material. O poder de revisão, porque criado pela Constituição e regulado por ela quanto ao modo de se exercer, porque poder constituído, tem necessariamente de se compreender dentro dos seus parâmetros, não lhe compete dispor contra as opções fundamentais do poder constituinte originário. Inversamente, aqueles que impugnam a legitimidade ou a eficácia jurídica das normas de limites materiais aduzem a inexistência de diferença de raiz entre poder constituinte e poder de revisão. O poder constituinte de certo momento não é superior ao poder constituinte de momento posterior. Um povo tem sempre o direito

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Aspectos Polémicos da Extradição

O Prof. Gomes Canotilho escreveu a propósito que “(…) o verdadeiro problema levantado pelos limites materiais do poder de revisão é este: será defensável vincular gerações futuras a ideias de legitimação e a projectos políticos que provavelmente, já não serão os mesmos por que pautaram o legislador constituinte? Por outras palavras que se colheram nos Writings de Thomas Jefferson: “uma geração de homens tem o direito de vincular outra?” 20 A resposta tem de tomar em consideração a evidência de que nenhuma Constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos. Nenhuma lei constitucional evita o ruir dos muros dos processos históricos, e, consequentemente, das alterações constitucionais, se já perdeu a sua força normativa. Mas há também que assegurar a possibilidade de as Constituições cumprirem a sua tarefa e esta não é compatível com a completa disponibilidade da Constituição pelos órgãos da revisão, designadamente quando o órgão de revisão é o órgão legislativo ordinário. Não se deve banalizar a sujeição da lei fundamental à disposição de maiorias parlamentares «de dois terços». Assegurar a continuidade da Constituição num processo histórico em permanente fluxo implica, necessariamente, a proibição não só duma revisão total (desde que isso não seja admitido pela própria

de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição e nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras às suas leis. Numa postura só aparentemente intermédia, afirma-se a validade dos limites materiais explícitos, mas, ao mesmo tempo, entende-se que as normas que os prevêem, como normas do direito positivo que são, podem ser modificadas ou revogadas pelo legislador da revisão constitucional, ficando, assim, aberto o caminho para, num momento ulterior, serem removidos os próprios princípios correspondentes aos limites. As cláusulas de limites materiais são possíveis, é legítimo ao poder constituinte (originário) decretá-las e é forçoso que sejam cumpridas enquanto estiverem em vigor. Todavia, são normas constitucionais como quaisquer outras e podem elas próprias ser objecto de revisão, com as consequências inerentes.” – Teoria do Estado e da Constituição, p. 599-603. 20 No mesmo sentido a Constituição francesa de 1793 que proclamou no seu artigo 28º que “um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição. Nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras às suas leis”.

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Constituição), mas também de alterações constitucionais aniquiladoras da identidade de uma ordem constitucional histórico-concreta. Se isto acontecer é provável que se esteja perante uma nova afirmação do poder constituinte, não perante uma manifestação do poder de revisão.” 21 Glosando sobre uma disposição constitucional idêntica à do n.º 2 do art. 285.º acima transcrito, várias vozes autorizadas têm defendido que a existência dos limites materiais não significa a impossibilidade de o legislador de revisão dispor diversamente. Ponto assente é que não traga uma regulamentação que afecte drasticamente as garantias actuais. “Teoricamente, há duas maneiras de interpretar os limites materiais de revisão: a) como garantias de determinados princípios, independentemente da sua expressão concreta da Constituição, b) como garantias de cada princípio aqui referido na expressão concreta da Constituição. No primeiro sentido, este artigo não proibiria, em termos abstractos, a revisão das disposições constitucionais referentes a cada um dos princípios, no segundo sentido, os limites materiais implicariam a intocabilidade dos artigos da Constituição que regulam cada uma das matérias aqui referidas. Assim, no primeiro sentido acima indicado, a al. d) do art. 288.º da Constituição da República Portuguesa, por exemplo, não garantiria a intocabilidade dos «direitos, liberdades e garantias», reconhecidos na Constituição, apenas proibiria a sua eliminação ou substancial redução, (…)” 22.

Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Ed. 3.ª, p. 995. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Ed. 3.ª, p. 1063 e ss. 21

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“Os limites materiais devem considerar-se como garantias de determinados princípios, independentemente da sua concreta expressão constitucional, e não como garantias de cada princípio na formulação concreta que tem na Constituição” 23. “A interpretação prevalecente do art. 288.º da CRP é que ele não implica um congelamento do regime constitucional concreto previsto nessas áreas; o que ele tem a ver é com conteúdos essenciais e não com cada uma das soluções concretas. Por isso só haveria lesão dos limites materiais se as alterações constitucionais (…) afectassem o conteúdo essencial dos citados princípios” 24. Também o professor Jorge Miranda sustenta que “o artigo 290º não se dirige a esta ou aquela disposição, impedindo que, sem ele ser previamente modificado, essa disposição seja, de qualquer maneira, tocada; dirige-se sim a princípios, expressos em vários preceitos, ou num só ou até em nenhum, porventura. Somente na medida em que determinado preceito se apresente como manifestação essencial de certo princípio é que a sua revisão implicaria ou não violação ou afastamento do princípio. “E somente na medida em que o conteúdo essencial do preceito – para empregar um termo de que a Constituição se serve no artigo 18º, n.º 3 – venha a ser diminuído ou vulnerado é que se justifica falar em preterição do princípio” 25. Assim, mesmo que haja uma ou outra redução de direitos fundamentais, os limites materiais só seriam atingidos se houvesse uma redução substancial, o que manifestamente, não é o caso da permissão da

23 Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 998. Cfr. Jorge Miranda, Teoria do Estado e da Constituição, p. 606. 24 Vital Moreira, “O TPI e a Constituição” in: O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Portuguesa, p. 33. 25 A Constituição de 1976, Formação, Estrutura, Princípios Fundamentais, Livraria Petrony, 1978, p. 253 e 254.

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extradição de nacionais, em situações claramente excepcionais, nem a possibilidade de extradição nos casos de prisão perpétua uma vez que as garantias exigidas permitem de certa forma afirmar-se que haverá flexibilização do regime sem contudo afectar o essencial da garantia dos direitos do extraditando. Aliás, o acolhimento que mereceu a revisão constitucional portuguesa de 1997 que incidiu sobre um preceito idêntico ao da Constituição cabo-verdiana e que abriu caminho à extradição de cidadãos portugueses, reduzindo assim o alcance do preceito originário, só pode ser compreendido à luz desse entendimento de que, não obstante a redução, não se afectou o núcleo essencial da garantia em referência. VIII. Solução de Dupla Revisão Em todo o caso, se se colocasse efectivamente, qualquer problema de violação de limites materiais de revisão constitucional, as necessidades actuais aconselhariam a que se avançasse com o processo de dupla revisão constitucional, defendida, designadamente pelo Prof. Jorge Miranda. Para este Insigne Professor “as cláusulas de limites realçam de novo a ideia de Direito, a estrutura fundamental, aquilo que identifica a Constituição em sentido material subjacente à Constituição em sentido formal. Mas não pode impedir futuras alterações que atinjam tais limites, porque o poder constituinte é, por definição, soberano. O que obrigam é a dois processos, em tempos sucessivos, um para eliminar o limite de revisão e o outro para substituir a norma constitucional de fundo garantida através dele” 26.

26 Teoria do Estado e da Constituição, p. 605. De notar que nem todos concordam com esse entendimento, havendo mesmo quem fale em fraude à Constituição – Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 997.

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Aspectos Polémicos da Extradição

Qualquer que seja o entendimento que se tenha a respeito desta questão particular, a verdade é que temos que acertar o passo com as exigências dos tempos actuais, pois é bem verdade que “nenhuma Constituição pode conter a vida ou parar o vento com as mãos”. Veja-se que, por exemplo, em Portugal, perante uma Constituição idêntica à nossa, neste particular, foram feitas alterações constitucionais de sentido semelhante

àquelas

que

se

propõem,

tendo-se

prevalecido

o

entendimento de que não terá havido qualquer violação dos limites materiais de revisão constitucional. Se aqui prevalecer outro entendimento, se calhar não restará outra alternativa que não seja o processo de dupla revisão, sendo certo que o tempo urge. IX. Texto Por tudo o que fica dito preferiria que o art. 37.º da nossa Constituição passasse a ter mais ou menos a seguinte redacção: Artigo 37.º (Extradição) 1. Não é admitida a extradição por motivos políticos, nem por crimes puníveis no Estado requerente com pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física. 2. Só é admitida a extradição por crimes a que corresponda, segundo o direito do Estado requerente, pena ou medida de segurança privativa ou restritiva de liberdade de carácter perpétuo ou de duração indefinida, desde que o Estado requerente ofereça garantias de que tal pena ou medida de segurança não será aplicada ou executada. 3. A extradição de cidadãos cabo-verdianos do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade, nos casos de criminalidade grave definidos na lei, e desde que a ordem jurídica do Estado requerente consagre garantias de um processo justo e equitativo.

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X. Tribunal Penal Internacional – TPI Uma outra temática que tem estado na ordem do dia é a da ratificação do Estatuto de Roma e a adesão de Cabo Verde ao Tribunal Penal Internacional (TPI). Cremos que é ocioso, no momento presente, encarecer a importância do TPI na luta pela justiça, contra a impunidade de crimes graves que chocam a consciência de todos. A mera leitura do preâmbulo do Estatuto de Roma evidencia a necessidade do funcionamento desse Tribunal. 27 Os crimes graves de genocídio, crimes contra a humanidade e os crimes de guerra que o Estatuto de Roma tipifica – arts. 6.º a 8.º - são actos graves que merecem ser punidos convenientemente. O mundo conheceu já vários tribunais penais internacionais para o julgamento de certos crimes, mas tratou-se quase sempre de tribunais ad hoc, e em algumas situações houve a sensação amarga de que se tratou de tribunais dos vencedores para julgar os vencidos e se colocaram diversas dúvidas quanto à imparcialidade dos seus julgamentos. 28- 29

27 O preâmbulo apresenta uma justificação cabal da urgência da criação do TPI. Nele se lê que “tendo presente que, no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da Humanidade; reconhecendo que crimes de uma tal gravidade constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem estar da humanidade; afirmando que os crimes de maior gravidade, que afectam a comunidade internacional no seu conjunto, não devem ficar impunes e que a sua repressão deve ser efectivamente assegurada através da adopção de medidas a nível nacional e do reforço da cooperação internacional; decididos a pôr fim à impunidade dos autores desses crimes e a contribuir assim para a prevenção de tais crimes” convieram na criação do TPI. 28 Para uma abordagem exaustiva e ex professo de toda esta temática Cfr. Wladimir Brito, “Tribunais Penais Internacionais – Da arbitragem aos Tribunais Internacionais ad hoc”, in Revista do Ministério Público, n.º 81, p. 25-55. 29 “(…) O pacto constitutivo do TPI (…) não tem como finalidade criar um Tribunal para julgar vencidos numa guerra, mas sim para julgar e punir a prática de actos que, pela sua natureza, são considerados como crimes internacionais” – Cfr. Prof. Wladimir Brito, “TPI, uma Garantia Jurisdicional para a protecção dos direitos da

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Aspectos Polémicos da Extradição

E desde os tempos mais recuados que a comunidade jurídica internacional anseava por um tribunal penal permante que, assegurando o velho e venerável princípio do juiz natural, julgasse com independência e com base num processo equitativo os crimes da sua jurisdição 30. Por isso é que muitos saudaram efusivamente o advento do TPI como um marco de esperança numa nova era de verdadeira Justiça, a nível mundial. Mary Robinson felicitou «todos os Estados que ratificaram este tratado revolucionário pelo seu compromisso para com uma maior Justiça Internacional», dizendo ainda que «a luta contra a impunidade só pode ser travada e vencida se todos os membros da comunidade das nações participarem nela.». Nas Palavras de Kofi Annan, o Tribunal Penal Internacional “é um passo de gigante na universalização do direito”. Para Wladimir Brito ele “(…) simboliza a vontade da sociedade internacional em perseguir e punir os violadores dos mais sagrados direitos consagrados na ordem jurídica internacional” 31. Ruth Wedgwood considera-o o evento do Milénio 32. Sabe-se que o TPI é uma jurisdição complementar que só entra em acção quando as justiças dos países em que os crimes tenham sido pessoa Humana”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXXVI, p. 95. 30 “(…) Desde a instituição da arbitragem internacional, até ao Tratado de Roma de 1998 que cria o Tribunal Penal Internacional, longo e difícil foi o caminho percorrido pela humanidade em direcção a este Tribunal. (…) Este órgão judicial não aparece como fruto de uma precipitação da sociedade internacional, nem da vontade dos Estados mais poderosos. Pelo contrário, o processo da sua gestação dura cerca de cinquenta anos, sendo tal projecto, portanto, quase tão antigo como a própria organização internacional que o promoveu e realizou, a ONU”. Prof. Wladimir Brito, “TPI: Uma Garantia Jurisdicional para a Protecção dos Direitos da Pessoa Humana”, p. 91-93. 31 “TPI: Uma Garantia Jurisdicional para a Protecção dos Direitos da Pessoa Humana”, p. 98. 32 Apud Wladimir Brito, RMP. cit., p. 55.

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cometidos não quiseram ou não puderam julgar convenientemente os responsáveis – cfr. os arts. 1.º e 17.º do Estatuto de Roma. Com Vital Moreira diremos que a “racionalidade do TPI não consiste em substituir a justiça nacional por uma justiça internacional mas sim em estabelecer um mecanismo subsidiário ou, sendo caso disso, correctivo, que impeça a impunidade penal em relação a crimes especialmente graves. A função da justiça penal internacional consiste essencialmente em corrigir as falhas da justiça penal nacional” 33. Cabo Verde não deve ficar fora desse sistema de justiça, devendonos colocar convictamente do lado daqueles que pugnam pelo julgamento e responsabilização dos (ir)responsáveis que violem brutalmente os direitos humanos. É claro que a nossa adesão ao TPI e aos Estatutos de Roma implica algumas mudanças, havendo vários aspectos a reclamar alguma harmonização com o nosso ordenamento jurídico. Desde logo, a questão da pena de prisão perpétua (art. 77.º/ b)) 34, a irrelevância da qualidade oficial e as imunidades (art. 27.º) 35, a imprescritibilidade dos crimes (art. 29.º) 36, a entrega de pessoas ao TPI (art. 89.º) 37.

“O TPI e a Constituição”, AAVV, in TPI e a Ordem Jurídica portuguesa, p. 14. Art. 77.º, Penas aplicáveis, Sem prejuízo do disposto no artigo 110.º, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no art. 5.º do presente Estatuto uma das seguintes penas: pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos, ou pena de prisão perpétua, se o elevado grau da ilicitude do facto e as condições pessoais do condenado o justificarem. Art. 110.º, Reexame pelo Tribunal da questão de redução de pena, O Estado da execução não poderá libertar o recluso antes de cumprida a totalidade da pena proferida pelo Tribunal; 1. Somente o Tribunal terá a faculdade de decidir sobre qualquer redução da pena e, ouvido o condenado, pronunciar-se-á a tal respeito. 2. Quando já tiver cumprido dois terços da pena, ou 25 anos de prisão em caso de pena de prisão perpétua, o tribunal examinará a pena para determinar se haverá lugar à sua redução. Tal exame só será efectuado transcorrido o período acima referido. 35 Art. 27.º, Irrelevância da qualidade oficial, 33

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Aspectos Polémicos da Extradição

À semelhança do que acontece com muitos países é nossa convicção que a acomodação do Estatuto de Roma ao ordenamento jurídico cabo-verdiano exige algumas alterações ao texto constitucional. É certo que há quem defenda a possibilidade da ratificação do Estatuto de Roma sem necessidade de revisão constitucional, mas creio que existe toda a vantagem em que se faça a revisão 38. E a propósito da revisão, pode seguir-se uma de duas soluções: a solução francesa, com uma cláusula genérica pela qual se aceita e se recebe as soluções constantes do Estatuto de Roma 39. A outra implicaria modificar todas as normas da Constituição incompatíveis com o Estatuto, designadamente, as dos arts. 37.º, 131.º, 132.º, 169.º e 198.º.

1. O presente Estatuto será aplicável de forma igual a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada na qualidade oficial. Em particular, a qualidade oficial de Chefe de Estado ou de Governo, de membro de Governo ou do Parlamento, de representante eleito ou de funcionário público, em caso algum eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena. 2. As imunidades ou normas de procedimentos especiais decorrentes da qualidade oficial de uma, nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa. 36 Artigo 29.º, Imprescritibilidade, Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem. 37 Art. 89.º, Entrega de pessoas ao Tribunal, 1. O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no art. 91.º, a um qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente Capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos. 38 Veja-se a propósito de toda esta temática o estudo profundo do Dr. José Manuel Pina Delgado, “Obstáculos Constitucionais à Ratificação do Estatuto de Roma”, in Direito e Cidadania, n.º 19, pp. 143-194. 39 Cfr. o art. 53.º/2 da Constituição Francesa: “A República pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nas condições previstas pelo tratado assinado no dia 18 de Julho de 1998”.

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Vários países seguiram o modelo francês, designadamente Portugal que alterou o art. 7.º da sua Constituição, aditando um n.º 7 assim redigido: Portugal pode, tendo em vista a realização de uma justiça internacional que promova o respeito dos direitos da pessoa humana e dos povos, aceitar a jurisdição do TPI nas condições de complementaridade e demais termos estabelecidos no Estatuto de Roma.

A

introdução

constitucionalização Constituição, constitucionais

dessa

daquelas

mediante na

cláusula

a

estrita

tem

soluções

derrogação medida

como

que das

efeito

“(…)

a

conflituem

com

a

competentes

necessária

para

normas acomodar

constitucionalmente o Estatuto. Ou seja, o programa normativo de vários preceitos da Constituição passa a ter de comportar implicitamente as excepções decorrentes do Estatuto do TPI, as quais só podem ser identificadas mediante o confronto entre os dois textos” 40. É certo que aqui se podem colocar vários problemas e de facto tem havido polémica a respeito designadamente sobre a violação dos limites materiais de revisão Constitucional. É que, designadamente a admissão da prisão perpétua constituiria tal violação. Com Vital Moreira entendemos que não há qualquer violação desses limites materiais, à semelhança, do que se disse acima a respeito da extradição 41.

Vital Moreira, “O TPI e a Constituição”, p.17. “O problema foi levantado a dois títulos, nomeadamente o do possível desrespeito do princípio da independência nacional e da garantia dos direitos, liberdades e garantias. E o problema é saber se, ao admitir restrições em matéria de soberania jurisdicional penal e algumas qualificações quanto ao regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias, são com isso afectados os limites materiais da revisão. É de entender que não. A interpretação prevalecente do art. 288.º da CRP é que ele não implica um congelamento do regime constitucional concreto previsto nessas áreas; o que ele tem a ver é com conteúdos essenciais e não com cada uma das soluções concretas. Por isso só haveria lesão dos limites materiais se as alterações 40 41

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Aspectos Polémicos da Extradição

Aliás, seria de certa forma estranho que um tribunal que é visto como uma garantia internacional dos direitos humanos, constituísse ele próprio, um factor inaceitavelmente restritivo de direitos, liberdades e garantias de cabo-verdianos 42.

constitucionais provocadas pela recepção constitucional do TPI afectassem o conteúdo essencial dos citados princípios. (…) Problema mais delicado é obviamente a questão da prisão perpétua. Em que medida é que a Constituição, ao admitir agora a condenação a prisão perpétua, mesmo que não seja decretada por tribunais portugueses significa um recuo substantivo susceptível de ser considerado como afectando o núcleo da protecção constitucional dos direitos, liberdades e garantias? Mais uma vez é de entender que não. Apesar de tudo, a prisão perpétua não é a pena de morte, longe disso; pode nem sequer equivaler a admissão de penas cruéis, infamantes ou degradantes. A própria Constituição revela alguns sinais de alguma relativização da proibição de prisão perpétua. Por um lado, admite a extradição de arguidos de crimes puníveis com essa pena, embora com garantias prévias de que ela não será aplicada no Estado requisitante, o que não sucede com a pena de morte, mesmo com garantia idêntica. Por outro lado, na indicação dos direitos que não podem ser suspensos em estado de sítio ou em estado de emergência não consta a proibição da prisão perpétua, estando porém salvaguardado o direito à vida. Em todo o caso, mesmo admitindo que a prisão perpétua constitui uma significativa compressão da garantia constitucional do direito à liberdade, é de concluir que, pela sua exepcionalidade e pela obrigatoriedade de revisão ao fim de 25 anos, quando aplicada pelo TPI, ela não afecta essencialmente o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias em geral, pelo que a revisão constitucional que introduziu a cláusula do TPI não violou os limites materiais de revisão constitucional.” – “O TPI e a Constituição”, p. 33-35. 42 Não deixa de ter interesse a este propósito fazer alusão a linha argumentativa expendida pelo Supremo Tribunal da Costa Rica (Sala Constitucional) para sustentar a compatibilidade entre a probição constitucional de extradição de nacionais e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional: “La Corte Suprema examinó, em primer lugar, la cuestión de la estradición de nacionales e mantuvo que la garantía constitucional estipulada en el artículo 32 de la Constitución (“ningún costarricense podrá ser compelido a abandonar el território nacional”) no era absoluta y que para determinar su alcance, hay que tener en cuenta lo que es razonable y proporcionado a los fines a cuyo servicio esa garantía sirve. En el marco de la Constitución, el reconocimiento de esta garantía tendría que ser compatible com el desarrollo del derecho internacional de los derechos humanos; no debría considerarse que la Constitución se opone a nuevos desarrollos, sino más bien que es un médio para promorcionalos. La Corte Suprema decidió que el nuevo orden internacional estabelecido por el Estatuto de la CPI para proteger los derechos humanos no es incompatible com la garantía constitucional del artículo 32.”

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Por tudo o que fica dito entendemos que é chegado o momento de aderirmos ao TPI e uma alteração da Constituição do género daquela que foi feita em Portugal ou França seria suficiente. XI. Texto Muitos teriam razões para ficar satisfeitos se no art. 11.º se aditasse um n.º 8 com a seguinte redacção: O Estado de Cabo Verde pode reconhecer a jurisdição do Tribunal Penal Internacional nas condições previstas no Estatuto de Roma. XII. Conclusão Em conclusão: - A revisão do regime constitucional da extradição deve ser empreendida por forma a facilitar uma melhor cooperação judiciária internacional em matéria penal; - Tal revisão não acarretará, em princípio, qualquer violação de limites materiais de revisão constitucional; - A adesão ao TPI, por aquilo que este representa, não deve ser adiada; - Impõe-se, a este propósito alterar a Constituição.

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A EXTRADIÇÃO DE CIDADÃO NACIONAL Wladimir Brito *

1. Como é do conhecimento geral, já a originária Constituição de 91 estabelecia no n.º 1 do seu artigo 35.º que “nenhum cidadão nacional pode ser extraditado ou expulso do país”, disposição esta que, na revisão de 99, sofreu alteração exclusivamente no sentido de separar a expulsão da extradição e colocá-las em artigos distintos. Assim, essa separação originou o artigo 36.º que passou a tratar a questão da expulsão e o artigo 37.º que se dedica à extradição. Pode-se ver que o legislador constituinte manteve em sede de revisão a mesma concepção filosófica da relação de pertença do homem cabo-verdiano ao território nacional. É essa relação que fundamenta e impede a sua expulsão do país de que é nacional e a sua extradição para países terceiros, impondo que seja julgado em Cabo Verde por crimes que tenha cometido no estrangeiro, sempre que, praticado o acto, venha a ser encontrado em território cabo-verdiano, antes ou depois de ter sido julgado e condenado no país onde praticou o crime. Sem pretender aprofundar teoricamente a questão da extradição, sempre é de relembrar aqui que a extradição é a transferência do

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Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho.

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Wladimir Brito

território de um Estado, por determinação das suas autoridades judiciais, a pedido de outro Estado e para o território deste, de um indivíduo, cidadão nacional ou estrangeiro, que, no território deste último, tenha praticado crime, esteja sob inquérito criminal, tenha sido acusado ou julgado e condenado, para ser entregue às autoridades criminais deste último. Como vimos, a extradição tanto pode ser de cidadão nacional como de estrangeiro e, por isso mesmo, as Constituições, por regra, tratam parcialmente e de forma diferenciada estas duas situações. Como se pode ver, deste conceito de extradição, procura-se nele acentuar – o que na velha noção de extradição poderia não ser relevante – a intervenção das autoridades judiciais como determinante para validar o pedido. Mas, hoje, jurídico-internacionalmente surge uma nova e mais abrangente figura que não implica o pedido de qualquer Estado, mas sim de um Tribunal, não distingue nacional de estrangeiro e opera expressamente com o conceito jurídico-internacional de indivíduo. Trata-se da figura de entrega, criada pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional – cfr. artigos 58.º, 59.º e 60.º –, mas que o Estatuto do Tribunal ad hoc para ex-Jugoslávia e dos demais Tribunais ad hoc – para o Ruanda e para a Serra Leoa – ainda não consagravam, por os tais Estatutos, imbuídos do conceito de extradição, ainda falarem em transferência, esquecendo simplesmente que, esta sempre implica a ideia de saída de um e entrada noutro território estatal, ou seja, a ideia de território e de soberania territorial, que nenhum Tribunal Internacional necessariamente tem. Ora, o conceito de entrega, mais adequado aos Tribunais Internacionais, não é tecnicamente uma extradição, por não implicar como esta, o pedido de um Estado a outro, nem a entrega a uma autoridade estatal, mas sim um pedido de um Tribunal feito a um Estado 60

Aspectos Polémicos da Extradição

e a entrega do suspeito ou arguido a uma autoridade judiciária internacional. A entrega não tem, portanto, como elemento estruturante o território, mas sim uma autoridade judicial internacional, hospedado no território de um Estado. A estas diferenças acresce que a entrega implica a prévia emissão não de um pedido, mas sim e já de um mandado de detenção internacional emitido por Juiz internacional. Finalmente, importa esclarecer que a entrega internacional tem necessariamente na sua base um Tratado internacional, o que institui o Tribunal Penal Internacional e que vincula obrigatoriamente os Estados Partes desse Tratado. Posto isto, podemos ver que a questão da “extradição” de cidadão nacional pode ser mais ampla do que parece à primeira vista e, o que é de extrema relevância. Trata-se assim de uma problemática que implica realidade nova que não existia quando foi elaborado e aprovado o projecto da Constituição de 91, nem quando foi feita a revisão de 99. Numa palavra, o mundo mudou radicalmente desde a primeira versão da nossa Constituição e dessa mudança resultaram novos tipos de criminalidade, novas práticas criminais, novos e sofisticados métodos de agir

criminal,

novos

e

perigosos

efeitos

dos

crimes,

âmbitos

tendencialmente globalizantes de acção criminal, que postularam a necessidade de elaboração de novos conceitos e práticas jurídicoconstitucionais e jurídico-internacionais em matéria criminal, em especial, de crimes que atentam contra a humanidade lato sensu. Importa finalmente relembrar que Cabo Verde, embora ainda não tenha ratificado a Convenção de Roma de 1998 que cria o Tribunal Penal Internacional, não se pode colocar à margem da sociedade e da comunidade internacional, nem estar alheio à prática de crimes internacionais por grupos ou por autoridades estatais de que podem fazer parte cabo-verdianos de origem ou seus descendentes que, nos termos da 61

Wladimir Brito

Constituição, possam vir a adquirir nacionalidade cabo-verdiana, crimes que, pela sua natureza, ofendem a humanidade no seu todo, e por isso mesmo, ofendem também a consciência jurídica e cívica do povo caboverdiano. 2. Do que acabámos de expor decorre que o nacional caboverdiano, autor de crime praticado no território de um Estado terceiro, que tanto pode ser crime comum ou internacional, não poderá, por determinação da actual Constituição, ser extraditado, porque, a esta medida se opõe esta Lei Fundamental, independentemente da gravidade desse crime. Contudo, entendemos que a Constituição se limita a proibir a extradição – conceito que acima definimos, relembre-se, como transferência do território de um Estado, por determinação das autoridades judiciais deste e a pedido de outro Estado para ser entregue às autoridades criminais deste último, de indivíduo (cidadão nacional ou estrangeiro) que, no território deste último Estado, tenha praticado crime, esteja sob inquérito criminal, tenha sido acusado ou julgado e condenado, e que se encontre ocasional ou permanentemente no território do Estado de que é nacional –, o que significa que a Lei Fundamental proíbe que o cidadão nacional seja transferido, a pedido de terceiro Estado, do território do Estado de Cabo Verde para o desse Estado e a sua entrega à autoridade judicial deste último pela prática de crime comum. De facto, a ideia da extradição implica uma relação interestadual, pelo que os crimes têm de ser aqueles que estão previstos no Código Penal do Estado solicitante e por este são punidos. Não se trata, portanto, de crimes internacionais, mas sim de “crimes nacionais”, se nos é permitido usar uma linguagem pouco correcta mas mais expressiva. Decorre do que acabamos de dizer que a nossa Constituição não proíbe a entrega de cidadãos nacionais a Tribunais Internacionais, seja aos ad hoc, seja ao de Roma, pela prática de crimes internacionais 62

Aspectos Polémicos da Extradição

previstos e puníveis pelos Estatutos desses Tribunais, o que significa que Cabo Verde, até à ratificação da Convenção de Roma – que urge fazer –, poderá celebrar acordos ad hoc para efeitos de entrega com respeito pelo estabelecido nos Estatutos desses Tribunais e no seu direito interno. 3. Mas…, o mundo mudou. E mudou também sob o ponto de vista da crescente consciencialização da necessidade de garantir a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, dos direitos humanos, numa palavra. Hoje, efectivamente, a protecção da pessoa, mesmo quando se encontra na situação de suspeito ou de arguido é cada vez mais e melhor assegurada, e, mesmo nos países dominados por ditaduras violentas, a atenção que a comunidade e a sociedade internacional dão às práticas violadoras desses direitos também não pode deixar de ser considerado como

uma

garantia

do

respeito

pelos

direitos

fundamentais,

nomeadamente em matéria penal. É claro, que não somos ingénuos para ignorar a ocorrência de violação desses direitos em muitos países, incluindo aqueles que têm uma tradição e sistema de governo democráticos. É o caso dos Estados Unidos e da sua Guantánamo, por exemplo. Por isso mesmo, aceitamos a importância e reconhecemos a relevância das cláusulas de salvaguarda em matéria de extradição, nomeadamente aquelas que a Constituição cabo-verdiana estabelece quer para os nacionais quer para os estrangeiros. 4. Posto isto, podemos agora dizer que a primeira questão que a extradição coloca é a de saber quem é cidadão nacional, pois este é o requisito essencial para que não seja possível a extradição nos termos consagrados na Constituição. E dizemos isso, visto que a nossa Magna Carta remete para a lei ordinária a definição de cidadão nacional e é esta que define quem é nacional cabo-verdiano ou quem pode adquirir a nacionalidade cabo-verdiana. Assim, de acordo com esta lei, é nacional somente aquele que tenha nascido em Cabo Verde ou que, tendo nascido 63

Wladimir Brito

fora do território cabo-verdiano, tenha requerido e obtido esta nacionalidade, logo, legalmente considerado cidadão cabo-verdiano. Daqui decorre que não basta ser descendente de cabo-verdiano para, ipso facto, ser cidadão nacional de Cabo Verde, o que significa que no caso de um descendente – filho ou neto, por exemplo, de um caboverdiano –, nascido no estrangeiro e que tenha a nacionalidade do país em que nasceu, ter praticado um crime nesse ou noutro país e, de seguida, ter fugido à Justiça e radicado em Cabo Verde, sem nunca ter pedido a nacionalidade cabo-verdiana, para que beneficie do direito de não

poder

ser

extraditado.

Na

verdade,

a

extradição

é

constitucionalmente admitida se, no momento da detenção desse indivíduo, ele não provar com documento legalmente considerado válido para a prova da nacionalidade – cédula pessoal ou bilhete de identidade – que é cidadão nacional cabo-verdiano. Não basta exibir uma certidão de nascimento do pai ou do avô para que, ipso facto, possa ser judicialmente considerado cabo-verdiano. Não sendo nacional, pode, com respeito pelo disposto nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição, ser extraditado. Quer isto dizer que em nossa opinião, devem ser mantidas todas as condições de inadmissibilidade da extradição, o que defendemos sem qualquer hesitação e com toda a convicção, pois essas condições são decisivas cláusulas de salvaguarda preventiva da defesa dos direitos da pessoa humana, de que não podemos abdicar como seres livres, responsáveis e tolerantes. 5. Mas hoje efectivamente, o crime internacional organizado – por grupos políticos, político-religiosos ou por forças político-militares e entidades estatais –, cuja prática à escala global e com desrespeito de todas as regras jurídico-internacionais protectoras da pessoa humana, nomeada e especificamente, daquelas que visam evitar sofrimento inútil 64

Aspectos Polémicos da Extradição

da pessoa ou mesmo de certas categorias especiais de pessoas ou danos ambientais de que possam vir resultar tais sofrimentos para pessoas e animais, impõe a derrogação da natureza absoluta da proibição de extradição e a obrigação de a permitir, excepcionalmente, sempre com respeito pelos próprios direitos de defesa e dos demais direitos fundamentais do suspeito e/ou arguido e com a garantia de apertado controlo

jurisdicional

dos

pressupostos

que

justificam

constitucionalmente a decisão de extraditar. Estamos a pensar, por exemplo, nos casos de crimes de terrorismo internacional, de crimes contra a humanidade, de genocídio, de guerra, tais

como

estão

definidos

nas

Convenções

internacionais,

nomeadamente, no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, ou crimes praticados num país que, pela sua natureza, cause intencional e desnecessariamente grande sofrimento ou ofensa física e psíquica ou à saúde de civis inocentes e a destruição de bens colectivos não militares. Numa palavra, sempre que se trate de crime internacional previsto e punido por Convenções Internacionais ou de crimes praticados num país com a natureza dos acima referidos, a extradição deve ser admitida, com respeito pelas cláusulas de salvaguarda acima mencionadas. Mas, hoje para além desses crimes de natureza internacional ou a eles equiparados, se assim, por brevidade, nos é permitido exprimir, há crimes organizados que, pela sua natureza, podem causar directamente grande sofrimento a grupos humanos e indirectamente a muitas outras categorias de pessoas e, até mesmo, graves danos aos Estados. Esses crimes são planeados e executados em vários países por associações ou organizações criminosas internacionalmente criadas para o efeito e dotados de sofisticados meios de acção. Trata-se de crimes (continuados ou não) cuja perseguição implica a cooperação internacional e cujo julgamento pode ser da competência de Tribunais de vários Estados. 65

Wladimir Brito

Estamos a pensar nos crimes de tráfico internacional de droga ou de branqueamento internacional de capitais ilicitamente obtidos. Nesses casos, que preocupam vários Estados, em especial aqueles que não têm condições para assegurar a detenção dos criminosos e/ou o cumprimento por estes das penas que lhes vierem a ser aplicadas, colocase a questão de saber se deve ou não ser permitida a extradição de nacional seu – no nosso caso de nacional cabo-verdiano –, que integre a organização criminosa e tenha participado na prática do crime, para ser julgado noutro Estado, por exemplo no da sede da organização ou no da prática de actos criminosos de relevo. A questão é controversa, desde logo porque para uns, o país não corre qualquer risco por ter preso, julgado e, se condenado, aprisionado para cumprimento de pena no território nacional um cidadão cabo-verdiano membro de organização criminosa internacional, enquanto outros entendem que o país não tem meios para assegurar, sem perigo público, nomeada e especialmente para pessoas – agentes da polícia, magistrados, guardas prisionais, outros presos



envolvidas

na

perseguição,

detenção,

julgamento

e

aprisionamento do criminoso. Ora, entendemos que a questão não pode ser colocada sob o ponto de vista da incapacidade do país em proceder contra o criminoso – persegui-lo, detê-lo, julgá-lo e em caso de condenação, aprisioná-lo –, posto que internamente também existem criminosos perigosos que se organizam em associações criminosas e nem por isso o Estado se demite do seu dever de agir contra esses criminosos e suas organizações. A questão deve ser colocada sob o ponto de vista da natureza internacional do crime e da organização ou associação criminosa. O Estado tem o dever de criar todas as condições para combater criminosos e suas organizações, qualquer que seja a sua natureza e não deve servir-se da extradição para se demitir desse dever. 66

Aspectos Polémicos da Extradição

Vale isto dizer que, o problema da extradição coloca-se aqui exactamente

por

estarmos

em

presença

de

criminalidade

internacionalmente organizada e actuante, cujo combate implica a cooperação internacional de vários Estados e cujo julgamento, justo e equitativo, deve ser feito pelo Tribunal de um dos Estados com competência jurídico-processual para tal. Assim, pode acontecer que, em certas situações, o Tribunal competente seja o de terceiro Estado, que também tem competência para fazer cumprir em estabelecimento prisional seu a pena aplicada aos criminosos. É perante este Tribunal que devem responder todos os arguidos, que, em caso de condenação, deverão cumprir a pena em estabelecimento prisional do país onde foram julgados e condenados, salvo se, por convenção internacional, outro for o local do cumprimento da pena, nomeadamente o da nacionalidade do condenado. Nesta perspectiva, começa a ficar claro que defendemos que em caso de criminalidade internacional organizada e actuante deve ser admitida a extradição de cidadão nacional para ser julgado em país terceiro e aí cumprir pena. Em caso de condenação, ou tendo já sido julgado e condenado deve ser permitida a extradição de cidadão nacional que se refugie em território nacional para se subtrair ao cumprimento da pena que lhe foi aplicada por Tribunal de terceiro Estado onde foi julgado e condenado. Assim, um cabo-verdiano que integre uma associação criminosa de natureza internacional e que, conjuntamente com membros da sua associação, tenha cometido crime num dado país não pode refugiar-se em Cabo Verde para evitar o seu julgamento ou o julgamento conjunto de todos os membros da sua organização criminosa, no país onde o crime foi praticado ou para não cumprir a pena que aí lhe foi aplicada. Deve, assim, esse cidadão poder ser jurídico-constitucionalmente extraditado 67

Wladimir Brito

para o país onde foi ou deva legalmente ser julgado ou onde deva cumprir pena a que foi legalmente condenado. 6. Mas, essa admissibilidade de extradição tem de ser submetida a pressupostos necessários, para garantir o rigoroso respeito pelos direitos fundamentais do arguido, nomeada e especificamente pelo seu inalienável direito de defesa. Com efeito, mesmo tratando-se de crimes internacionais graves e que revelam perversidade, o suspeito ou arguido não pode ver-se privado do exercício do seu direito de defesa, nem deve ser tratado de forma cruel ou desumana, nem pelas autoridades caboverdianas, nem pelas autoridades do Estado que pediu a extradição. Por essa razão, todas as cláusulas de salvaguarda consagradas nas alíneas a) a c) do nº. 3 do artigo 37.º da Constituição devem ser respeitadas, devendo a autoridade cabo-verdiana recusar a extradição de nacional cabo-verdiano (e também de estrangeiro) sempre que ocorra uma das situações previstas nessa disposição constitucional. Acresce que o pedido de extradição deve ser sempre apreciado pelo Tribunal, cabendo a este órgão de soberania a competência exclusiva para o conceder ou não, com respeito pelo contraditório e por todas as garantias de defesa do arguido e em julgamento público. 7. Em conclusão, em minha opinião, com a globalização e a mudança

ocorrida

quer

nas

relações

internacionais,

quer

na

disponibilização técnico-científica de meios e/ou de instrumentos, alguns, potencial ou efectivamente, perigosos, utilizados na prática de crimes internacionais por agentes de Estados e/ou por organizações criminosas, com a maior consciencialização a nível global do dever de assegurar a protecção dos direitos fundamentais da pessoa humana, a questão da extradição de cidadão nacional deve ser encarada de forma diferente daquela em que se encontra consagrada constitucionalmente e sempre com a salvaguarda dos direitos fundamentais. Assim, em nossa 68

Aspectos Polémicos da Extradição

opinião, só nos casos de crimes internacionais previstos em Tratados ou Convenções Internacionais, nomeada e especificamente, no Estatuto do Tribunal Penal Internacional, e os praticados por organizações ou associações criminosas de natureza internacional – criminalidade internacional organizada e actuante – em território de um ou mais Estados e cujo combate implique a cooperação internacional, é que se deve admitir a extradição de cidadão nacional, que deve sempre ser solicitada, apreciada e decidida por Tribunal Judicial cabo-verdiano. Devem ainda ser assegurados todos os direitos de defesa do suspeito ou arguido, bem como salvaguardados os seus direitos fundamentais. Em nenhum caso, deve a extradição ser concedida com violação das aqui denominadas

cláusulas

de

salvaguarda

dos

direitos

humanos

consagradas nas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 37.º da Constituição. Disso resulta que, em primeiro lugar, nesses concretos casos não se justifica que ao cidadão nacional seja dispensado tratamento diferente do concedido a estrangeiro e que em nenhum caso deve ser admitida a extradição pela prática de crimes previstos e punidos pelo Código Penal nacional, que não tenha qualquer conexão com ou não sejam consumidos pelos crimes internacionais aqui referenciados ou que, tendo tal relação, se verifique da entrega do cidadão (nacional ou estrangeiro) à autoridade solicitante poderá resultar para ele a submissão a tratamento desumano, cruel ou degradante ou a aplicação da pena de morte ou de prisão perpétua. Mas, mesmo nos casos em que aqui admitimos a extradição, esta só deverá ser aceite mediante a prévia celebração de acordos ou convenções internacionais entre Cabo Verde e os outros Estados, que, com base no princípio da reciprocidade, consagrem expressamente essa admissibilidade da extradição nesses casos e só nesses, mas sempre com absoluto respeito pelas cláusulas de salvaguarda preventiva da defesa dos

69

Wladimir Brito

direitos da pessoa humana constitucionalmente consagradas na nossa Lei Fundamental.

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EXTRADIÇÃO DE NACIONAL (CABO-VERDIANO): Acto Indigno, Abandono de uma Relíquia do Passado ou Possibilidade Razoável? José Pina Delgado *

Sumário: I. Introdução; II. Contextualizando a Discussão sobre a Extradição de Nacional em Cabo Verde; III. Argumentos Pró-Extradição de Nacionais; 3.1. O argumento da incapacidade do Estado; 3.2. O argumento da adesão ao Tribunal Penal Internacional; 3.3. O argumento do santuário de criminosos; 3.4. O argumento da realização efectiva da justiça; IV. Argumentos Contrários à Extradição de Nacional; 4.1. O argumento da soberania do Estado; 4.2. O argumento dos direitos fundamentais do cidadão cabo-verdiano; 4.3. O último bastião: o argumento da cláusula dos limites materiais à revisão constitucional; V. À Guisa de Conclusão: Por que devemos estar abertos a rever a cláusula que proíbe a extradição de nacionais?

“Causa repulsa ao sentimento nacional entregar um nacional francês à justiça estrangeira” **. “[A Itália] deve protecção aos seus filhos, e não os pode abandonar à sua sorte, se acusados por um crime, à mercê do direito e de juízes estrangeiros. A dignidade nacional não pode consentir que um cidadão, um membro do Estado, possa ser compelido a curvar a sua Professor Assistente Graduado, Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, República de Cabo Verde. ** Palavras de um ministro da justiça francês em 1843 ante a possibilidade de extraditar nacionais gauleses reproduzidas em Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, Emory International Law Review, v. 13, n. 1, 1999, p. 94. *

71

José Pina Delgado

cabeça a determinação de uma autoridade estrangeira” ***. “Não sentimos a nossa honra ultrajada ante a possibilidade de entregar um inglês nas mãos de juízes estrangeiros. Primeiro, ele é um criminoso e somente depois um inglês” ****. “Disseram-nos que o apelante é um cidadão dos Estados Unidos da América. Mas tal cidadania não lhe garante imunidades para cometer crimes em outros países, nem lhe dá o direito de requerer um julgamento de modo diverso daquele que o país reserva aos seus nacionais para aqueles que violam as suas leis e de cuja justiça fugiu” *****.

I. Introdução 1. As palavras do Ministro da Justiça da França, o relatório da Comissão governamental italiana, as declarações do Parlamentar britânico e o voto do Juiz norte-americano, todos proferidos ou publicados no Século XIX ou início do Século XX, constituem um marco interessante de contrastes a respeito do problema da extradição de nacional; além de marcar as diferenças entre a tradição continental europeia e a anglo-saxónica relativamente ao controverso instituto 1, assinalam duas perspectivas filosóficas opostas de concepção da questão:

Conclusões de um relatório de uma comissão criada pelo Governo italiano para estudar a extradição de nacional, igualmente reproduzidas em Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 93. **** Declaração do Presidente da Casa dos Comuns da Grã-Bretanha, também reproduzida em Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 94. ***** Palavras do Juiz Conselheiro Harlan do Supremo Tribunal (Supreme Court) dos Estados Unidos da América, representando a maioria dos seus pares, no caso Neely vs. Henkel, 180, U.S. 123 (1901) (Disponível em http://supreme.justia.com/us/180/109/case.html, consulta a 20 de Outubro de 2007). 1 Aprofundaremos esta ideia adiante. ***

72

Aspectos Polémicos da Extradição

por um lado, a que toma por base a existência de um vínculo ontológico e essencialista entre o Estado e os seus nacionais, que não pode ser quebrado sob pena de significar algo próximo da vergonha nacional; por outro lado, a concepção que pressupõe que os vínculos de pertença a uma nação devem estar submetidos à realização efectiva da justiça universal, tendo igualmente subjacente a ideia de que, quando um indivíduo sai do seu país para cometer crimes no estrangeiro ele se coloca fora da protecção do seu Estado, ficando, por conseguinte, submetido a uma jurisdição externa (estrangeira ou internacional) 2- 3. A primeira pode ser chamada de comunitário-nacionalista 4 e a segunda cosmopolitauniversalista 5. Defenderei uma versão moderada desta última.

Ver as palavras do Juiz Conselheiro Harlan do Supremo Tribunal (Supreme Court) dos Estados Unidos da América, representando a maioria dos seus pares, no caso Neely vs. Henkel, 180, U.S. 123 (1901): “Disseram-nos que o apelante é um cidadão dos Estados Unidos da América. Mas tal cidadania não lhe garante imunidades para cometer crimes em outros países, nem lhe dá o direito de requerer um julgamento de modo diverso daquele que o país reserva aos seus nacionais para aqueles que violam as suas leis e de cuja justiça fugiu” (Disponível em http://supreme.justia.com/us/180/109/case.html, consulta a 20 de Outubro de 2007). 3 É de se salientar que esta discussão não tem qualquer conexão necessária com as que se tem travado a respeito do Direito Penal do Inimigo (Feindstrafrecht), por influência do penalista germânico Günther Jakobs (em especial, v. do próprio, “Bürgerstrafrecht und Feindstrafrecht”, Online Zeitschrift für Höchstrichterliche Rechtsprechung im Strafrecht, Jahrgang 5, Ausgabe 3, 2004, pp. 88-95; “Terroristen als Personen im Recht”, Zeitschrift für die Gesamte Strafrechtswissenschaft, b. 117, h. 4, 2005, pp. 839-851, e para comentários, endossos e críticas variados, Manuel Canció Meliá & Goméz-Jara Diéz (coords.), Derecho Penal del Enemigo. El discurso penal de la exclusión, Madrid/Montevideo/Buenos Aires; Edisofer/Editorial B de F, 2006, 2. v). 4 Vide, por exemplo, o seguinte trecho da principal obra do teórico político comunitarista Michael Walzer, Las esferas de la justicia. Una defensa del pluralismo y de la igualdad, Tradução Castelhana de Heriberto Rubio, México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 1993, p. 44, no qual embora a preocupação seja directamente a não-pertença, acaba por assinalar os efeitos mais salientes da pertença a uma comunidade política a partir de um viés comunitarista: “os homens e mulheres sem qualquer pertença a algum lugar são como pessoas sem pátria. (…) Estão isolados das previsões comunitárias de segurança e de bem estar. Mesmo os aspectos de segurança e bem estar que, como a saúde pública, são distribuídos colectivamente não são garantidos aos não-membros, já que estes não têm um lugar garantido na 2

73

José Pina Delgado

Ora, antes de mais, a primeira concepção, institucionalizada em França, fez também escola na Europa Continental e na América Latina 6. Na Alemanha teve como corolário o conceito de Treuplicht, que se consubstanciou num dever de lealdade exclusiva do indivíduo para com o seu Estado e do correspondente direito de um cidadão não ser afastado da sua própria comunidade política – seja por via de extradição, expulsão ou perda de nacionalidade – e de poder desfrutar da sua protecção 7, garantindo-se, de outra parte, jurisdição aos tribunais internos para colectividade e estarão sempre expostos à expulsão. A condição de quem não tem pátria é de perigo infinito”. Portanto, se alterarmos a ordem de exposição, a pertença daria garantias absolutas de segurança e de bem-estar e fundamentalmente de um cidadão não ser expulso da sua própria comunidade política. 5 A respeito das concepções cosmopolitas, ver as interessantes contribuições de David Held, “Democracy: from the City-States to a Cosmopolitan Order?” In: David Held (ed.), Prospects for Democracy. North, South, East, West, Cambridge, UK, Polity Press, 1992, pp. 13-52, e Jürgen Habermas, “Kant’s Idea of Perpetual Peace, with the Benefit of Two Hundred Years’ Hindsight” In: James Bohman & Mathias LutzBachmann (eds.), Perpetual Peace: Essays on Kant’s Cosmopolitan Ideal, Cambridge, Mass/London, The MIT Press, 1997, pp. 113-153. Apesar de este texto não pressupor as instituições cosmopolitas universais defendidas por esses autores, tem por base a ideia de que as relações entre Estados de Direito devem ser conduzidas como se elas os vinculassem efectivamente. 6 Sobre a tradição latino-americana em matéria de extradição de nacional, vide Ivan Shearer, “Non-Extradition of Nationals – A Review and a Proposal”, Adelaide Law Review, v. 2, n. 3, 1966, pp. 291-294, ainda que chamando a atenção para a ausência de prática consistente de todos os Estados no sentido de não-extraditar os seus nacionais. O texto foi escrito em 1966, obviamente antes da leva de constituições democráticas da América Latina que vieram a cristalizar e elevar o princípio da nãoextradição de nacional a proibição constitucional. 7 Cf. o artigo 112 (2) da “Constituição de Weimar” In: Jorge Miranda (org.), Textos Históricos do Direito Constitucional, 2. ed., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990, p. 283 (“Todos os alemães têm o direito a protecção do Império, dentro e fora do seu território”), englobando não só a dimensão internacional da protecção diplomática, mas igualmente interna, o que implicaria necessariamente na sua manutenção na comunidade política; Ainda a respeito desta noção de treuplicht, recomenda-se Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 82, sustentando, no essencial, que “treuplicht é o princípio jurídico alemão que o Estado tem um dever especial de estender a sua protecção a todos os seus súbditos”, apesar de que, para este autor, esse conceito não ser muito claro (p. 90); ver igualmente In re Galwey Q. B. 230, 233 (1896), citado por Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 90, em que se sustentou que “enquanto súbdito britânico o detido deve fidelidade à Rainha, tendo em troca o direito à sua protecção, pois a nacionalidade envolve um duplex ligaman”.

74

Aspectos Polémicos da Extradição

julgar os crimes que ele eventualmente cometa no estrangeiro; a segunda foi sustentada continuamente pelos sistemas jurídicos de influência anglo-saxónica, até porque tradicionalmente não se reconhece jurisdição extra-territorial nesses países 8. No entanto, a evolução política e jurídica global fez com que essas duas tradições começassem a sofrer mutações consideráveis, traduzindo-se em alterações ao enfoque nacionalista nos países europeus continentais e nos anglo-saxónicos, pelo reconhecimento de jurisdição extra-territorial em determinados casos 9- 10. 2. Permitir-me-ei, antes de prosseguir, fazer mais uma incursão pela História do Direito, com a desculpa de ser um cultor desse ramo das ciências jurídicas 11. Duas imagens me ocorrem quando penso no

Conforme lembra João Marcelo de Araújo Júnior, “Extradição – Alguns aspectos fundamentais”, Revista Forense, Rio de Janeiro, a. 90, v. 326, 1994, p. 72, “naqueles países cujo direito está vinculado, em suas origens, ao direito romano, a jurisdição está fundada na ideia da nacionalidade, em razão disso, não se admite a extradição de nacionais. Já os Estados cujo sistema jurídico está fulcrado no direito comum, adoptam como principal fundamento de jurisdição a territorialidade. Por isso, neles prevalece o entendimento de que os criminosos devem retornar ao local onde cometeram os crimes, pouco importando a nacionalidade do agente”. 9 Para discussões sobre esta dicotomia entre não-extradição e jurisdição extraterritorial, cf. C. Sachor-Landau, “Extra-Territorial Penal Jurisdiction and Extradition”, International & Comparative Law Quarterly, v. 29, 1980, pp. 274-295. 10 Notada igualmente por abalizados comentários acerca do problema da extradição (e.g., Geoff Gilbert, Transnational Fugitive Offenders in International Law. Extradition and Other Mechanisms, The Hague/Boston/London, Martinus Nijjhoff, 1998, p. 179, destacando, não obstante, a timidez do processo). 11 Não é, no entanto, preocupação deste pequeno comentário constitucional, recuperar a evolução histórica do instituto. Para tanto, pode-se recomendar a generalidade dos textos seminais sobre esta matéria, nomeadamente Ivan Shearer, “Non-Extradition of Nationals – A Review and a Proposal”, p. 274 e ss, e Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, pp. 80-84, que fazem referência a alguns traços marcantes, porque na Antiga Grécia, os nacionais não podiam ser extraditados, e em Roma, só em casos muitos limitados essa possibilidade era considerada; por sua vez, a prática de não-extraditar os nacionais conheceu algum reforço na Idade Média, fazendo parte do contrato feudal, no qual se garantia o chamado ius non evocando, para depois conhecer dignidade convencional com um tratado de 1834 entre a França e a Bélgica; não se trata do momento ideal para se fazer esta discussão, mas não se pode deixar de se dizer que subsistem vários pontos controversos e obscuros da reconstrução histórica tradicional que aqui mereceriam uma discussão. No entanto, por limitações de espaço e de tempo não 8

75

José Pina Delgado

problema da extradição de nacional. A primeira é bem longínqua e tem lugar no Senado de Cartago no ano de 218 Antes de Cristo, tendo como protagonistas Roma e esta influente cidade do Norte de África. Depois de Aníbal Barca – o célebre general cartaginês –, atacar a cidade espanhola de Saguntum, aliada de Roma, esta enviou uma delegação chefiada pelo Senador Quintus Fabius, para, nos termos do Direito Romano de Guerra, exigir a extradição do General, para ser julgado em Roma por crimes contra a República e contra o Direito das Gentes 12. O pedido foi negado e deu-se início à mítica II Guerra Púnica 13. Os motivos da recusa eram naturais. Aníbal seria julgado, condenado e executado em Roma com base no Direito Romano e na concepção romana do Direito Internacional. A segunda (imagem) é mais actual, apesar de não ser propriamente contemporânea. Desenrola-se séculos depois do fim da era romana e

teremos condições de a fazer. Recomendando igualmente cautelas neste plano está Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 81; recomenda-se para uma reconstrução histórica do instituto da extradição, Christopher Blakesley, “The Practice of Extradition from Antiquity to Modern France and the United States: a Brief History”, Boston College International & Comparative Law Review, v. 4, n. 1, 1981, pp. 39-60, e, na literatura jurídica lusófona Mário Mendes Serrano, “Extradição. Regime e Práxis” In: José Manuel da Cruz Bucho; Luís Silva Pereira; Maria da Graça Vicente de Azevedo & Mário Mendes Serrano, Cooperação Internacional Penal, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pp. 15-25. 12 Sobre o direito romano de guerra, embora nem sempre com visões convergentes, recomenda-se a leitura de Alan Watson, International Law in Archaic Rome: War and Religion, Baltimore/London, The John Hopkins University Press, 1993, e David Bederman, International Law in Antiquity, Cambridge, Cambridge University Press, 2001, pp. 231-241. 13 Cf. de modo resumido, William C. Morey, Outlines of Roman History, New York/Cincinatti/Chicago, American Book Company, 1901 (Disponível em http://www.forumromanum.org/history/morey15.html, acesso a 16 de Agosto de 2007), contando que “os romanos enviaram uma embaixada para Cartago a fim de pedir a entrega de Aníbal. Reza a História que Quintus Fabius, o Chefe da Delegação levantou uma dobra da sua toga e disse ao Senado cartaginês: “Aqui trazemos-lhes a paz e a guerra, Qual delas vocês escolhem?” “Dá-nos qualquer delas” foi a resposta. “Então ofereço-vos a guerra”, disse Fabius, “E é o que aceitamos”, gritaram os cartagineses. Assim começou a guerra mais memorável da Antiguidade”.

76

Aspectos Polémicos da Extradição

acontece na Alemanha do Pós-Primeira Guerra Mundial. Pela primeira vez na história, o princípio da não-extradição de nacional ganhou dignidade constitucional 14. Nada de estranho dir-se-ia. Porém, os motivos eram muito claros. A Alemanha tinha perdido a Primeira Guerra Mundial, a República em construção lutava pela existência face a uma contestação

permanente

provenientes

de

projectos

políticos

ideologicamente distintos 15; problema: a direita e os saudosistas da Alemanha

Wilhelmina 16;

objectivo:

viabilizar

a

Constituição,

e,

consequentemente, a República de Weimar 17; Solução: proteger os militares alemães de qualquer processo criminal por violações do direito de guerra, incluindo uma cláusula constitucional que proibia a extradição

O princípio da não-extradição de nacional foi vertido para o artigo 112 (3) da “Constituição de Weimar” In: Jorge Miranda (org.), Textos Históricos do Direito Constitucional, 2. ed., Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, p. 283, com a seguinte redacção: “Nenhum alemão pode ser entregue a um Governo estrangeiro para ser perseguido ou punido”. 15 Diz-nos, por exemplo, Arthur Jacobson & Bernhard Schlink, “Constitutional Crisis: The German and the American Experience” In: Arthur Jacobson & Bernhard Schlink (eds.), Weimar. A Jurisprudence of Crisis, Berkeley/Los Angeles/London, University of California Press, 2000, p. 8, “A Constituição de Weimar foi o resultado da derrota alemã na I Guerra Mundial. A derrota significou o fim da instituição do Kaiser e das dinastias estaduais e fez originar uma revolução da qual o futuro parlamentar e democrático não era nada evidente; pelo contrário, elementos da esquerda esforçaram-se por uma República Soviética no modelo da Rússia Soviética”. 16 Recorde-se que, desde cedo, Friedrich Ebert, face às ameaças comunistas de uma revolução, decidiu convocar uma assembleia nacional constituinte e garantir o apoio das forças armadas e de sectores mais conservadores da Alemanha, objectivo que alcançou por via de um acordo com o General Groener em Novembro de 1918. Cf. Arthur Jacobson & Bernhard Schlink, “Constitutional Crisis: The German and the American Experience”, p. 9. 17 A aliança que viabilizou a Constituição de Weimar era constituída não só pela esquerda democrática de Ebert, mas também pelo Centro Católico e pela direita, igualmente moderada, mas que não estava inclinada para aceitar algo que viam como um atentado à soberania e ao orgulho da Alemanha, como o Tratado de Versalhes. Aliás, sintomático foi o pedido de demissão de membros do Governo filiados ao Partido Democrático Alemão, quando o Parlamento aprovou a ratificação desse tratado. Ver também Arthur Jacobson & Bernhard Schlink, “Constitutional Crisis: The German and the American Experience”, p. 9. 14

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de nacionais 18; alternativa: o julgamento em tribunais nacionais por crimes de guerra 19; desfecho: a cláusula do artigo 112 da Constituição de Weimar e os julgamentos “fantoches” de Leipzig, onde poucos foram levados a julgamento, menos ainda foram condenados, e destes ninguém sofreu uma pena correspondente à gravidade dos factos 20. Entre o período romano e Weimar passou-se muita coisa sem dúvida, porém, o aspecto mais relevante para os propósitos deste comentário constitucional, prende-se com a demonstração de dois extremos do mesmo problema. A utilização do princípio da nãoextradição de nacional para legitimamente proteger nacionais de

18 Nina Jorgensen, “International Criminal Responsibility in the Two World Wars” In: The Responsibility of States for International Crimes, Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 8, lembra que “entretanto, um movimento contra a entrega de criminosos de guerra surgiu na Alemanha”. 19 Foi o que de facto aconteceu. Nas palavras de Timothy McCormack, “From Sun Tzu to the Sixth Commitee: The Evolution of an International Criminal Law Regime” In: Timothy McCormack & Gerry Simpson (eds.), The Law of War Crimes: National and International Approaches, The Hague, Kluwer Law International, 1997, p. 49, “o Governo alemão informou aos aliados que não tinha como cumprir [os pedidos de entrega dos suspeitos] e propuseram como alternativa que os aliados submetessem os casos ao Tribunal Supremo da Alemanha em Leipzig”. 20 Ver a este respeito o estudo de M. Cherif Bassiouni, “World War I: “The War to End All Wars” and the Birth of an Handicapped International Criminal System”, Denver Journal of International Law & Policy, v. 30, n. 3, 2002, pp. 285-290, onde se dá conta dos processos de Leipzig – sede do tribunal competente, o Supremo Tribunal da Alemanha –, e salienta-se que “no final, somente doze oficiais foram julgados (…). Dos doze casos, seis resultaram em condenação dos arguidos” (p. 287). Paradigmáticos foram o uso da obediência de ordem de superior hierárquico, como causa de justificação e a reacção da população à absolvição dos arguidos de mais alta patente militar (“Na sequência da absolvição do General Strenger, o (…) veterano de guerra recebeu um banho de flores de uma multidão de admiradores alemães”) (p. 290); cf. igualmente Timothy McCormack, “From Sun Tzu to the Sixth Commitee: The Evolution of an International Criminal Law Regime”, pp. 48-50 (“De uma lista de quarenta e cinco nomes, alguns tinham falecido, outros tinham saído da Alemanha e nenhum podia ser encontrado ou submetido a custódia alemã ou aliada. As autoridades germânicas só puderam iniciar processos contra doze suspeitos. Destes, alguns foram absolvidos por falta de provas e outros foram absolvidos em circunstâncias mais controversas” (p. 49)), e Nina Jorgensen, “International Criminal Responsibility in the Two World Wars”, pp. 4-9 (“aqueles que foram condenados sofreram penas desproporcionalmente baixas e a imprensa e o público alemães trataram-nos como heróis de guerra” (p. 8)) .

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procedimentos criminais viciados, e sem qualquer preocupação pela equidade e justiça, e a utilização de uma cláusula da não-extradição, para garantir a impunidade de nacionais por crimes graves cometidos no estrangeiro. Um dos propósitos deste texto será precisamente de mostrar que, actualmente, e em determinados espaços, já não faz sentido continuar-se a utilizar a não-extradição de nacional para proteger concidadãos de processos criminais, a partir de uma presunção geral de tratamento discriminatório, mas também advogar que a não-extradição não resulta necessariamente em impunidade. As justificações pró ou contra a extradição de nacional deverão ser encontradas em outros argumentos ou contextos políticos, sendo no entanto certo que não existe nenhuma ligação necessária entre Estado de Direito e não-extradição de nacional. Neste sentido, devemos dissociar a questão da extradição de nacional das suas antigas bases ontológicas e estudá-la dentro dos – ainda assim complexos –, parâmetros e efeitos que inevitavelmente ela tem para o Estado de Direito Democrático, inserido numa comunidade de nações, muitas das quais partilham os mesmos valores públicos de liberdade, justiça e segurança: por um lado, garantir a efectivação de uma cooperação internacional entre os membros dessa comunidade no combate ao crime, especialmente a criminalidade organizada e violenta, que em alguns casos, faz perigar a estabilidade e a ordem em determinados Estados, e, por outro, a necessidade de se garantir no processo, que os direitos humanos e os direitos fundamentais, conaturais ao Estado de Direito Democrático e à comunidade liberal de nações, dos indivíduos sujeitos a uma eventual colocação sob autoridade de um outro Estado, sejam escrupulosamente respeitados 21. Ora, para Em sentido similar, ver Carlos Fernandes, A Extradição e o Respectivo Sistema Português, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 8, que sentencia: “Na extradição, como no asilo diplomático (ou militar e naval) e no refúgio, estão subjacentes dois princípios fundamentais, só aparentemente contraditórios: a protecção dos direitos

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garantir esse equilíbrio não parece existir qualquer distinção entre o estrangeiro e o nacional. Neste sentido, a cláusula constitucional que proíbe em absoluto a extradição de nacional parece realmente uma relíquia de um passado remoto de comunidades políticas soberanas, cada qual à busca da sua própria glória e realização 22. II. Contextualizando a Discussão sobre a Extradição de Nacional em Cabo Verde 3. A possibilidade de extradição de nacional cabo-verdiano é indubitavelmente uma questão polémica, que toca por vezes os nossos mais elementares sentimentos, mormente os de pertença a uma comunidade política. Trata-se de uma questão que conheceu alguma estabilidade na década de noventa, momento em que as opções constitucionais em matéria de extradição de nacional, aparentemente não foram questionadas e a prática estatal consistente 23. Imediatamente humanos essenciais e a não impunidade dos criminosos, isto é, a protecção do indivíduo contra a vingança e violências desumanas e o princípio da punição de criminosos, que são bases estruturais do Direito e do Estado de direito, ou seja, o princípio da efectivação da justiça, interna e internacionalmente”; no mesmo sentido, representando a doutrina brasileira, Artur Gueiros Souza, As Novas Tendências do Direito Extradicional, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, pp. 97-99, sustentando que “quem se debruça sobre o estudo das extradições, tanto no direito brasileiro quanto no estrangeiro, percebe que dois valores se projectam, em nítido antagonismo: de um lado, o postulado de se optimizar, com eficácia e celeridade, a chamada cooperação judiciária em matéria penal; de outro, a obrigação que compete ao Estado, de fazer valer, aos que se encontrem sob sua tutela, os direitos inerentes à condição humana”. 22 Estas palavras foram inspiradas em Martin Manton, “Extradition of Nationals”, Temple Law Quarterly, v. 10, 1935-1936, p. 24, que, no entanto, e décadas antes, foi muito mais contundente, chamando a não-extradição de nacional de “criatura da desconfiança nacional, relíquia de uma ordem civilizacional mais primitiva”. 23 Muito embora seja também desse período a aprovação para ratificação do “Protocolo de Extradição da CEDEAO” (aprovado para ratificação pela Resolução nº 160/V/00, de 4 de Setembro), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 27, que no seu artigo referente à extradição de nacional deixa à discrição dos membros o cumprimento de um pedido de extradição de nacional, porém, estipula que “a qualidade de nacional aprecia-se com referência à época da comissão da infracção pela qual a extradição é solicitada” (art. 10), um critério que não se coaduna com a lei cabo-verdiana da nacionalidade. Ao que parece tratou-se de um descuido

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a seguir ao ano 2000, também não se notaram ataques directos à cláusula da proibição de extradição de nacional 24, com excepção de alguma discussão, envolvendo o Tribunal Penal Internacional 25, que, a acreditar nas orientações da República em matéria de negociação externa e aprovação interna de acordos envolvendo extradição, não sofreu inflexões claras 26. No entanto, desde que se retomou de forma mais intensa o tema nos últimos tempos, volta-se a debater, e sempre com a intensidade que uma questão tão delicada suscita, a hipótese de se extraditar o nacional cabo-verdiano 27, num quadro evidentemente de tanto do Governo quanto do Parlamento, que foi resolvido por um outro descuido. É que, pelo que se sabe, esqueceu-se de mandar as cartas de ratificação, não ocorrendo, pois a vinculação ao supramencionado protocolo comunitário. 24 Vide a prática do período em João Pinto Semedo, “Cooperação judiciária internacional em matéria penal”, Revista Direito e Cidadania, a. v, n. 18, 2003, pp. 139-141, com vários exemplos de denegação de pedidos de extradição de nacionais provenientes dos Estados Unidos da América e de Portugal. 25 Nesta altura, o Governo colocou a hipótese de aderir ao Estatuto de Roma, tendo, no entanto, recebido um parecer da Comissão Interdisciplinar (ad hoc) para o estudo do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, “Memorandum: das implicações na ordem jurídica cabo-verdiana na eventualidade da imediata ratificação da Convenção de Roma de 18 de Julho que instituiu o Tribunal Penal Internacional”, Praia, Junho de 2002, p. 1 e ss, constituída pelos juristas Eduardo Rodrigues, José Lopes Graça e Felino Carvalho, a recomendar a necessidade de se proceder a uma revisão da Constituição antes de o fazer, posição que tivémos a oportunidade de analisar e criticar num artigo de nossa lavra publicado pouco tempo depois (José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, Revista Direito e Cidadania, n. 19, 2004, pp. 143-194). 26 Por exemplo, é desse período, o “Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde” (Aprovado para ratificação pela Resolução nº 98/VI/2004, de 7 de Junho), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 17, 7 de Junho de 2004, que no seu artigo 54 continua a incluir entre as causas de recusa da extradição a nacionalidade (“O Estado requerido tem o direito de recusar a extradição dos seus nacionais e recusa-la-á sempre que a sua Constituição ou a sua Lei o determine”). 27 A questão recomeçou a ser discutida em Cabo Verde, como demonstra o artigo “Santuário de criminosos”, A Semana, nº 798, 6 de Abril de 2007, pp. 2-3, depois da detenção de alguns nacionais suspeitos da comissão de crimes graves, mormente de terrorismo, em países europeus e que não puderam ser extraditados em razão da sua nacionalidade. Não obstante, tratar-se de questão recorrente de algum tempo a esta parte, seja em discussões relativas à adesão ao Tribunal Penal Internacional, seja face

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lege ferenda, já que é pacífico na doutrina e na jurisprudência que não se pode neste momento extraditar o nacional 28. Estes mesmos debates já aconteceram em outros países, com maior ou menor aproximação ao nosso 29. No entanto, raras vezes é possível manter níveis de racionalidade adequados, quando se discute a possibilidade de se extraditar o nacional 30. Se se propõe a manutenção do preceito a preocupações que têm vindo a ser manifestadas por alguns órgãos de investigação criminal ou de manutenção da ordem pública. Comprovando esta ideia, o artigo supra-citado aponta que “a Procuradoria-Geral da República pretende propôr aos partidos políticos a alteração do artigo 37 da Constituição, por forma a evitar dissabores num futuro próximo”. 28 Vide, e.g., um despacho do Caso Jean Charles da Silva (“Autos do Pedido de Detenção Provisória nº 4/2007, Juiz Conselheiro Manuel Alfredo Monteiro Semedo, 12 de Março de 2007, pp. 2-3), em que, sem ambiguidades, se diz que “visto o preceituado no art. 37/1 da Constituição da República de Cabo Verde, que não admite a extradição de cidadão cabo-verdiano (…) somos a concluir que o pedido de extradição não deve ser deferido. Assim sendo, ordeno a soltura imediata do arguido (…)”. 29 Discutindo num quadro mais jurídico o conteúdo dessas reformas e a evolução do sistema constitucional português nesta matéria, cf. Nuno Piçarra, “As revisões constitucionais em matéria de extradição e a influência da União Europeia”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Edição Especial: 30 Anos da Constituição Portuguesa 1976-2006, 2006, pp. 217-241, artigo no qual o autor descreve a influência da União Europeia na revisão dos artigos atinentes à extradição na Constituição da República Portuguesa; veja-se, para caso do Brasil, Florisbal de Souza del´Olmo, “A extradição na contemporaneidade: breves reflexões” In: Wagner Menezes (org.), O Direito Internacional e o Direito Brasileiro: homenagem a José Francisco Rezek, Ijuí, Ed. Unijuí, 2004, p. 794, sustentando que “é chegado o momento de os legisladores do país verificarem a possibilidade de inserirem o Brasil no rol dos Estados que deixam de privilegiar delinquentes apenas pelo facto de serem nacionais” e que, entre a doutrina brasileira, existe larga maioria favorável à revisão desse dispositivo da Constituição Federal de 1988 (“Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, Hildebrando Accioly, Oyama César Ituassú, Rodrigo Otávio e Luís Ivani de Amorim Araújo, entre outros estudiosos brasileiros, se colocam a favor da universalidade da extradição, sem excluir os nacionais do Estado requerido” (p. 784)). Para uma análise de outros dois casos recentes, o alemão e o polaco, Nuno Piçarra, “A Transposição da Decisão-Quadro Relativa ao Mandado de Detenção Europeu sob Escrutínio dos Juízes Constitucionais Nacionais – Anotação aos Acórdãos do Tribunal Constitucional da Polónia”, de 27 de Abril de 2005, e do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, de 28 de Julho de 2005”, Jurisprudência Constitucional, n. 8, 2005, pp. 56-101. 30 Veja-se, ilustrativamente, o relato feito pelo antigo Ministro da Justiça da República Portuguesa José Vera Jardim, “Por fim podemos extraditar portugueses! Explicações de um ministro” in: AAVV, A inclusão do outro, Coimbra, Coimbra

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constitucional que proíbe a extradição de nacional, está-se a pender para o lado do terrorismo e do crime organizado e coniventes com a destruição da estabilidade e quiçá das instituições democráticas da República; se, pelo contrário, se propugnar pela necessidade de se discutir as virtudes da manutenção da proibição de extradição de nacional, mais do que atentar aos direitos fundamentais, algo de per se considerado ignóbil o suficiente, estar-se-ia a conspirar contra a própria comunidade política, ao se aventar a hipótese de se entregar parte dela a um Estado estrangeiro. A meu ver as duas teses parecem pecar pelo seu radicalismo e por não deduzirem justificações plenamente convincentes, para fundamentar as respectivas posições. A extradição de nacional não é nem uma necessidade imperiosa que o Estado de Cabo Verde tem para se proteger de indivíduos indesejáveis e de ameaças letais, nem incompatível com o Estado de Direito Democrático, ou por si só um acto de lesa-pátria ou de violação dos direitos fundamentais dos cidadãos nacionais. Seguidamente, cuidarei de examinar alguns argumentos que têm sido usados, por um lado, para justificar a limitação ou até a eliminação da cláusula constitucional que proíbe a extradição de cabo-verdiano (2.1) e aqueles que, de outro lado, fazem parte dos recursos argumentativos contrários a tais diligências ou, por outras palavras, advogam a manutenção da cláusula de proibição da extradição de nacional (2.2). Editora, 2002, pp. 96-97, justificando a revisão de uma cláusula similar da Constituição lusitana: “a discussão dessa e de outras questões relacionadas com a revisão constitucional em matéria de extradição não decorreu a meu ver da forma mais apropriada. Não me refiro à discussão parlamentar e sim à discussão extraparlamentar. Algumas intervenções, porventura mesmo donde menos se pode esperar, roçaram, por vezes, a demagogia. (…). Sabemos que estas questões são questões sensíveis da nossa sociedade, mas penso que é importante retomar um debate sereno com vista a encontrar as melhores soluções para o futuro”. Em relação ao Brasil, a questão é reputada por estudos relativamente recentes, como o de Artur Gueiros Souza, As Novas Tendências do Direito Extradicional, p. 3, como uma das mais polémicas desse país.

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III. Argumentos Pró-Extradição de Nacionais 3.1. O argumento da incapacidade do Estado 4. A ideia de que se deve expurgar do ordenamento jurídicoconstitucional a proibição de extradição de nacional em razão da incapacidade do Estado de Cabo Verde fazer face a criminosos de alguma periculosidade 31, foi sustentada por várias autoridades com as mais altas responsabilidades nos órgãos do Estado cabo-verdiano ou equiparados, entre as quais o mais alto magistrado da nação, o Presidente da República, e o antigo Procurador-Geral da República, Franklin Furtado na qualidade de representante máximo do Ministério Público e de respeitado jurista do país. A estrutura deste argumento, ou aquilo que dele se pode depreender, é relativamente simples. Cabo Verde é um Estado com poucos recursos, por conseguinte sem condições para garantir a sua segurança, num contexto de presença no território nacional de criminalidade altamente organizada e perigosa. Além disso, a nossa rede penitenciária não teria os índices de segurança necessários para garantir o cumprimento efectivo da pena por tais presos perigosos, nem para prevenir evasões ou perturbações graves à ordem prisional. Na minha opinião, e sem pretender ser extensível, até porque se trata de objectivo que se deve afastar da filosofia desta publicação colectiva, o argumento é muito perigoso. De facto, quando assumido da 31 De acordo com o artigo “Santuário de criminosos”, A Semana, nº 798, 6 de Abril de 2007, p. 4, o próprio Presidente da República sustentou esta tese quando em entrevista emitida pelo canal público de televisão terá alertado para “a perigosa graduação dos crimes que vêm sendo perpetrados no país nos últimos tempos e da fragilidade de Cabo Verde para albergar cidadãos cabo-verdianos que, cometendo crimes em países (sic), acabam por encontrar guarida nessas ilhas”. Alguém exprimiu a ideia de modo ainda mais claro em declarações ao jornal A Semana (v. “A Semana põe extradição na ordem do dia: Pires desafia partidos a encontrar solução”, A Semana, nº 800, 20 de Abril de 2007, p. 4), com as seguintes palavras: “uma fonte pergunta: como vamos manter na prisão cabo-verdiana um indivíduo que conseguiu fugir de helicóptero de uma cadeia de alta segurança da França?”.

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forma como o foi, por autoridades públicas, praticamente equipara Cabo Verde a um Estado falhado 32, que não tem capacidade para assumir funções mínimas de soberania 33, entre as quais estariam a manutenção da segurança interna, o direito de punir e o exercício de poderes jurisdicionais que ele próprio se atribuiu por via constitucional, convencional ou legislativa. A soberania no direito internacional é uma ficção; todos os Estados que, após o seu reconhecimento, integram a comunidade das nações, passam a partir de então a ser considerados formalmente soberanos, e a gozar de personalidade jurídica, portanto com aptidão para desfrutar de direitos, entre os quais o de concluir tratados, de ser tratado como igual ou à não intervenção nos seus assuntos internos, e a ter deveres, cujo desrespeito acarreta a sua responsabilização na esfera internacional 34. O problema é que a soberania não se limita a ser uma ficção jurídica, mas tradicionalmente exigiu alguma correspondência entre o legal e o real 35. Os desenvolvimentos mais recentes no direito internacional têm

32 Por todos, vide Daniel Thürer, “The Failed State and International Law”, International Review of the Red Cross, n. 836, 1998, pp. 731-761; Michael Ignatieff, “State Failure and Nation Building” In: J.L. Holzgrefe & Robert Keohane (eds.), Humanitarian Intervention: Ethical, Legal, and Political Dilemmas, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2003, pp. 299-321; Richard S. Williamson, “NationBuilding: The Dangers of Weak, Failing, and Failed States”, The Whitehead Journal of Diplomacy and International Relations, v. 7, n. 1, 2007, pp. 9-19. 33 Vide a respeito da evolução do conceito de soberania, Telma Berardo, “Soberania, um novo conceito?”, Revista Brasileira de Direito Constitucional e Internacional, São Paulo, a. 10, n. 40, 2002, pp. 21-45. 34 Em geral, cf. Benedict Kingsbury, “Sovereignty and Inequality”, European Journal of International Law, v. 9, n. 4, 1998, pp. 599-625. 35 Com objectivos muito específicos, Francis Fukuyama, A Construção de Estados. Governação e Ordem Mundial no Século XXI, Tradução de F. J. Azevedo Gonçalves, Lisboa, Gradiva, 2006, p. 106, e com muita ironia, põe em evidência o problema: “soberania, e, portanto, a legitimidade, deixavam de poder ser conferidas automaticamente ao detentor real do poder num dado país. A soberania do Estado era uma ficção ou uma piada de mau gosto em países como a Somália ou o Afeganistão, que tinham caído nas mãos de senhores de guerra”.

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agudizado essa tendência 36. Um Estado incapaz de exercer determinadas funções não pode ser verdadeiramente soberano, ficando sob a tutela de um outro ou da comunidade internacional. Explicitando melhor, o Estado que, de facto, não consegue exercer essas funções mínimas passa a gozar, passe a expressão, de uma soberania limitada ou cessa até de ser soberano, deixando de ter direitos e deveres iguais aos seus congéneres 37. Em suma, se Cabo Verde ainda não tiver condições de manutenção da segurança interna e de um sistema prisional com capacidade para executar sanções criminais contra delinquentes perigosos que as crie; se não o conseguir é sinal de que está perigosamente num processo de perda de estadualidade e de soberania. O mínimo que um Estado pode fazer é conseguir exercer o jus puniendi, e garantir a segurança no seu território, aliás, duas das mais clássicas funções do Estado Moderno, por mínimo que seja. De outra parte, não deixa de ser verdade que a Constituição não pode ser vista como um contrato que, para estabelecer a comunidade política, cria as condições para a sua própria destruição. Assim, a Lei Magna não pode ser, como já disseram alguns, um “Pacto Suicida” 38.

36 Já havia alertado para tais desenvolvimentos num ensaio anterior intitulado “Os perigos da (não) construção e da (não) Reforma do Estado. Lições de Fukuyama, A Construção de Estados, para Cabo Verde”, Revista Direito & Cidadania, a. VII, n. 23, 2005, pp. 237-251; ver principalmente Francis Fukuyama, A Construção de Estados. Governação e Ordem Mundial no Século XXI, passim e Robert Cooper, The Breaking of Nations: Order and Chaos in the 21st Century, New York, Atlantic Monthly Press, 2004, passim. 37 Não será esta a ocasião mais indicada para aprofundar esta discussão, de maneira que se sugere a leitura dos seguintes textos: Alexandros Yannis, “The Concept of Suspended Sovereignty in International Law and its Implications in International Politics”, European Journal of International Law, v. 13, n. 5, 2002, pp. 1037-1052; Stephen Krasner, “The Hole in the Whole: Sovereignity, Shared Sovereignity, and International Law”, Michigan Journal of International Law, v. 25, n. 4, 2004, pp. 1075 -1112. 38 Cf., por todos, Richard Posner, Not a Suicide Pact. The Constitution in a Time of National Emergency, Oxford/New York, Oxford University Press, 2006, citando um voto do Juiz Robert Jackson no Caso Terminiello v. Cidade de Chicago (1949),

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Aspectos Polémicos da Extradição

Porém, em relação a este aspecto, duas coisas podem ser ditas. Antes de mais, as Constituições, mesmo as liberais-democráticas, possuem mecanismos de defesa que, em princípio, lhes permitem fazer face a momentos de excepção 39. No caso de Cabo Verde, perante situações que o justifiquem, a possibilidade de declaração do estado de emergência ou até

do

estado

de

sítio

sempre

está

presente 40,

implicando,

nomeadamente a suspensão temporária de determinados direitos fundamentais e a concessão de poderes mais alargados aos poderes públicos para proteger a Lei Fundamental 41. Aliás, a rigor, é possível até discutir-se se, em razão disso, temos realmente neste momento uma segundo o qual “a escolha não é entre ordem e liberdade. É entre liberdade com ordem e anarquia sem um nem outro. Existe o perigo de, se o Tribunal não temperar a sua lógica doutrinária com alguma sabedoria prática, converter o regime constitucional de direitos fundamentais num pacto suicida”. 39 Em geral sobre esta matéria, cf. Jorge Bacelar Gouveia, O estado de excepção no Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, Coimbra, Almedina, 1998, vs. I e II. 40 Os dispositivos relevantes da Constituição cabo-verdiana estabelecem o seguinte: artigo 265 – “O estado de sítio só pode ser declarado, no todo ou em parte do território nacional, no caso de agressão efectiva ou iminente do território nacional por forças estrangeiras ou de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional”; art. 266 – “O estado de emergência será declarado, no todo ou em parte do território nacional, em caso de calamidade pública ou de perturbação da ordem constitucional cuja gravidade não justifique a declaração do estado de sítio”. Para comentários sobre o sistema cabo-verdiano da excepção constitucional, vide Jorge Bacelar Gouveia, O estado de excepção no Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, pp. 769-771, obra, no entanto, publicada antes da última revisão da Constituição da República. 41 Cita-se, mais uma vez, a emblemática obra de Jorge Bacelar Gouveia, O estado de excepção no Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, p. 839, onde se sustenta que “a ideia de expansibilidade do poder público, em resultado da suspensão dos direitos fundamentais, não equivale, portanto, a uma efectiva intervenção de tal poder público, mas apenas na possibilidade de isso acontecer. Isso explica-se facilmente se considerarmos a estrutura dos direitos fundamentais enquanto instrumento de limitação do poder público, maxime do poder legislativo. É que, para além da eficácia privada de tais direitos, maior ou menor consoante as circunstâncias, os direitos fundamentais representam punções específicas sobre o poder público geral, zonas de vedação de intervenção segundo o sentido da defesa dos bens constitucionalmente protegidos por seu intermédio. Uma vez “levantada” a barreira que proibia a intervenção do poder público, esse poder, principalmente o legislativo, como que se “expande”, ainda que temporariamente, para essas zonas”.

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proibição absoluta da extradição de nacional, ou se, em situações de excepção, ela poderia ser levantada 42. Ademais, em situações de excepção incontrolável, digamos, uma excepção política no sentido mais estrito, e schmittiano, da palavra 43, supondo que a República está à beira da destruição real, as autoridades, mormente o poder executivo, podem tudo fazer, e mesmo tudo, para a salvar, ficando, no entanto, responsáveis pelos actos cometidos 44. Não será, com toda a certeza, a Constituição, ou qualquer outra lei, a impedir que um Estado lute pela sua própria sobrevivência contra inimigos internos e externos 45, e tão pouco a situação seria causada isoladamente pela cláusula da proibição Sendo certo, no entanto, que, dependendo da forma como a suspensão for feita, poderá eventualmente ocorrer violação de um dever de generalidade ou até de igualdade, particularmente se a medida visar um grupo específico de pessoas que se pretenda extraditar, podendo argumentar-se que o sistema cabo-verdiano não permite a suspensão individual de direitos fundamentais. A respeito desta questão ver também Jorge Bacelar Gouveia, O estado de excepção no Direito Constitucional – Entre a eficiência e a normatividade das estruturas de defesa extraordinária da Constituição, pp. 844-846. 43 No sentido que lhe é dado por Carl Schmitt, “Teologia Política I. Cuatro capítulos sobre la teoria de la soberania” In: Héctor Orestes Aguilar (comp.), Carl Schmitt, Teólogo de la Política, México, D.F., Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 23, “É soberano quem decide o estado de excepção. Esta definição é a única que faz justiça ao conceito de soberania como conceito limite. Um conceito limite não é algo confuso, como é usual utilizar-se na terminologia imprecisa da literatura popular, mas sim um caso extremo. Por conseguinte, a sua definição não se pode basear no caso normal mas sim no caso limite. Continuando, deixar-se-á claro que se deve entender por estado de excepção um conceito geral de teoria do estado, não um decreto de emergência ou um estado de sítio qualquer. O facto de que num sentido amplo o estado de excepção seja idóneo para a definição jurídica da soberania tem um motivo lógico-jurídico sistemático. A decisão sobre a excepção é uma decisão no sentido amplo da palavra. Uma norma geral, como a representa a norma jurídica com validade consuetudinária, nunca pode abarcar a excepção absoluta e por fim tão pouco fundamentar a decisão sobre a existência de um verdadeiro caso excepcional”. 44 Cf. em sentido e contexto similar, a discussão empreendida por Jack Goldsmith, The Terror Presidency. Law and Judgment inside the Bush Administration, New York/London, W.W. Norton, 2007, passim, principalmente 141 e ss. 45 Mesmo em situações de completa e legítima submissão, nenhuma entidade deverá estar legalmente vinculada a não resistir quando a sua existência está em perigo, como o demonstra o clássico exemplo de Thomas Hobbes, Leviathan, C.B. McPherson (ed.), London, Penguin, 1985, cap. XXI, pp. 268-270, sobre os limites aos poderes do Estado em relação ao indivíduo. 42

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Aspectos Polémicos da Extradição

da extradição de nacional, mas por uma incapacidade geral da Constituição e das autoridades da República em se adaptar a novas situações e ameaças concretas. Neste sentido, não é tão relevante equiparar as situações. 3.2.

O

argumento

da

adesão

ao

Tribunal

Penal

Internacional 46 5. Um outro argumento que tem sido utilizado pelas entidades e individualidades favoráveis à revisão da cláusula da proibição da extradição de nacional é o da adesão ao Tribunal Penal Internacional 47. Por uma série de motivos, alguns dos quais aceitáveis, e que procurarei arrolar e discutir em seguida, também não me parece a melhor justificação. Primeiro, por uma questão de precedência. De facto, o país deveria estar mais preocupado com a cooperação com os dois tribunais ad hoc estabelecidos pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas do que com o Tribunal Penal Internacional 48. Cabo Verde, neste momento, Recuperamos aqui ponderações realizadas no âmbito de um outro escrito de nossa autoria, para o qual remetemos para aprofundamentos: José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, pp. 143-194; recomenda-se igualmente a leitura de Helen Duffy, “National Constitution Compatibility and the International Criminal Court”, Duke Journal of Comparative and International Law, v. 11, n. 1, 2001, pp. 5-38, e Paul Rabbat, “Aut dedere aut judicare: Constitutional Prohibitions on Extraditions and the Statute of Rome”, Revue Quebecoise de Droit International, v. 15, 2002, pp. 179-204. 47 Este argumento foi utilizado por exemplo pelo antigo Ministro da Justiça, José Manuel Andrade, sustentando que “o problema não se coloca apenas em relação à extradição ou não de nacionais cabo-verdianos. Cabo Verde precisa aderir ao Tribunal Penal Internacional e a extradição coloca-se, uma vez mais ao legislador cabo-verdiano, já que um dos pontos do TPI prevê a extradição de indivíduos acusados de crimes contra a humanidade. Portanto, mais cedo ou mais tarde, teremos que decidir o que fazer em relação a este assunto”. Citado por “A Semana põe extradição na ordem do dia: Pires desafia partidos a encontrar solução”, A Semana, p. 4. 48 Está claro tratar-se de um argumento, de certa forma, académico, pois a solução para um dos casos (do TPI) também seria necessariamente dos outros (dos tribunais 46

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não tem obrigação de cumprir qualquer pedido de cooperação judiciária proveniente do Tribunal Penal Internacional, pelo simples facto de que dele não fazemos parte, mas tem, sem sombras para quaisquer dúvidas, de cumprir pedidos no mesmo sentido provenientes de um dos tribunais ad hoc 49. Em segundo lugar, condicionar a adesão a instituições judiciárias internacionais, como o Tribunal Penal Internacional, ou no pressuposto de que, assim sendo, teria capacidade para cooperar com outras mais mandatoriais como o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia (TPIAJ) e o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (TPIR) 50, com base na concepção de que para concretizar tais fins é necessário levantar ou limitar a proibição de extradição de nacional, é uma solução, com o devido respeito, desfocada. A preocupação, é verdade, não é descabida, pois, no que diz respeito ao Tribunal Penal Internacional, o Estado de Cabo Verde poderá ter interesse em aderir e fazer parte de uma instituição que tem por objecto julgar os mais graves crimes contra a humanidade, mas qualquer adesão sempre resultará de um acto de vontade do Estado, em relação aos dois tribunais ad hoc acima mencionados, não se trata sequer de uma opção. Por terem sido criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas com base no Ad hoc). Ao fim e ao cabo, dizem respeito ao mesmo problema. De todo o modo, para benefício da precisão jurídica e da precedência de obrigações, torna-se necessário fazer esta pequena incursão. 49 Para desenvolvimentos, cf. o nosso José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, pp. 159-163, e complementarmente, Shuichi Furuya, “Legal Effect of Rules of the International Criminal Tribunals and Court upon Individuals: Emerging International Law of Direct Effect”, Netherlands International Law Review, v. 47, n. 2, 2000, pp. 111-130. 50 Para um levantamento das principais características desses tribunais, ver o nosso José Pina Delgado & Liriam Tiujo, “Tribunais penais internacionais” In: Welber Barral (org.), Tribunais internacionais: meios contemporâneos de solução de controvérsias, Florianópolis, Fundação Boiteux, 2004, pp. 60-76.

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Capítulo VII da Carta, qualquer pedido de cooperação, inclusivamente de entrega de cidadão nacional, deverá ser cumprido de imediato, sob pena de aplicação de medidas não-coercivas ou mesmo coercivas 51 (que não se pense ser uma hipótese distante e académica, pois, ainda que em contexto diferente, foi aplicada contra a Líbia, quando esta se recusou, com base em proibição constitucional, a extraditar dois nacionais suspeitos pelo atentado que vitimou uma aeronave da Pan Am que caiu sobre Lockerbie na Escócia 52- 53). Efectivamente, desde a criação do TPIAJ em 1993, está firmemente estabelecida a distinção entre duas modalidades de cooperação judiciária em matéria penal 54. Antes de tudo, a tradicional colocação de pessoa sob autoridade de outro Estado, quer seja para fins de processo criminal quer seja para cumprimento de pena, a extradição, submetida a um processo

De acordo com o artigo 39 da Carta das Nações Unidas, “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41º e 42º, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais”. 52 A respeito deste caso, cf. Christopher Joyner & Wayne Rothbaum, “Lybia and the Aerial Incident at Lockerbie: What Lessons for International Extradition Law?”, Michigan Journal of International Law, v. 14, n. 2, 1992-1993, pp. 222-261, Sami Shubber, “The Destruction of Aircraft in Flight over Scotland and Niger: The Questions of Jurisdiction and Extradition under International Law”, The British Year Book of International Law, v. 66, 1995, pp. 239-282; Michael Plachta, “The Lockerbie Case: The Role of the Security Council in Enforcing the Principle of Aut Dedere Aut Judicare”, European Journal of International Law, v. 12, n. 1, 2001, pp. 125-140. 53 Algo similar ocorreu com a extinta Federação Jugoslava que foi obrigada, sem embargo da existência de clara proibição constitucional de extradição de nacional, a entregar o antigo Chefe de Estado Slobodan Milosevic ao TPIAJ (v. Konstantinos Magliveras, “The Interplay Between the Transfer of Slobodan Milosevic to the ICTY and Yugoslav Constitutional Law”, European Journal of International Law, v. 13, n. 3, 2002, pp. 661-677). 54 Para traduções não oficiais de parte do regime jurídico do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia, vide: Maria José Rangel de Mesquita (org.), Direito Internacional Penal e Ordem Jurídica Portuguesa. Textos básicos, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2006, p. 45 e ss. 51

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solene, sujeito a prévia decisão política 55, e ao cumprimento de uma série de princípios jurídicos internos (dupla incriminação, especialidade, proporcionalidade, ne bis in idem 56) que o transformam num processo extremamente moroso, e a colocação de pessoa sob autoridade de instituição penal internacional (ou no quadro de um processo avançado de integração regional) para fins de processo criminal ou cumprimento de pena, em que por razões de confiança recíproca entre as partes, ou de controlo sobre os mecanismos de decisão da outra, existe um processo simplificado, em que se prescinde de uma série de garantias normalmente exigidas no caso da extradição, a entrega 57. Ora bem, neste sentido não existe uma única orientação, formal ou material, na Constituição da República que proíba a entrega de nacional a tribunal internacional; proíbe sim a sua extradição para outros Estados 58, sem embargo da ausência de previsão constitucional explícita 55 Veja-se paradigmaticamente o que estabelece o parágrafo 2º do artigo 99 do Decreto Legislativo nº 6/97 (Lei do Estrangeiro), de 5 de Maio, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 17, 1997, p. 328: “A fase administrativa é destinada à apreciação do pedido de extradição pelo Governo para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento por razões de ordem política, de oportunidade ou de conveniência”. 56 Cf. “Decreto Legislativo nº 6/97 (Lei do Estrangeiro)”, art. 90 e art. 107; sobre estes princípios na legislação cabo-verdiana, cf. João Pinto Semedo, “Cooperação judiciária internacional em matéria penal”, pp. 131-134; comparativamente, ver Artur Gueiros de Souza, As novas tendências do direito extradicional, pp. 17-25, para o caso do Brasil, e as conclusões de Carlos Fernandes, A Extradição e o Respectivo Sistema Português, pp. 89-90, sobre o sistema português. 57 A respeito desta distinção, ver também Michael Plachta, “European Arrest Warrant: Revolution in Extradition?”, European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice, v. 11, n. 2, 2003, pp. 190-194, e, em especial, Pedro Caeiro, “O procedimento de entrega previsto no Estatuto de Roma e a sua incorporação no direito português”, In: Vital Moreira; Maria Leonor Assunção; Pedro Caeiro & Ana Luísa Riquito (orgs.), O Tribunal Penal Internacional e a ordem jurídica portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 78, que afirma categoricamente ser esta uma “forma de cooperação em que o sujeito requerente [a instituição internacional] é o verdadeiro dominus de um procedimento onde o requerido [o Estado] tem uma função meramente ancilar”. 58 Ver a este respeito o nosso José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal

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de privação de liberdade em processos de “entrega”, como salientaram recentemente eminentes juristas cabo-verdianos provenientes tanto da prática 59 quanto da academia 60. Logo, pode-se perfeitamente aderir ao

Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, pp. 148-153, e o antigo Chefe de Governo e reputado jurista Carlos Veiga, chegou à mesma conclusão (“Há uma diferença entre extradição e entrega. No caso do TPI estamos a entregar alguém a um tribunal do qual somos parte. Eu defendo que não são situações iguais. Por isso não acho que seja necessária nenhuma revisão da CR para se entregar alguém ao TPI. Quando à extradição estamos a entregá-lo a outro país”), Numa recente entrevista (“O Debate que faz História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana, Especial Destaque, 10 de Outubro de 2008, p. 18). 59 O texto do Juiz José Luís Jesus, “Extradição de cidadãos cabo-verdianos na Constituição de Cabo Verde: como evitar que a disposição constitucional da não extradição de nacionais se transforme numa inaceitável fuga à justiça”, neste volume, tem o grande mérito de ter introduzido no debate um dispositivo constitucional até então negligenciado, o artigo 29 da Constituição da República, como impedimento à ratificação do Estatuto de Roma (“Não estamos, no entanto, convencidos de que essa diferença, ainda que exista ao nível defendido pelos seus apoiantes, lá fora como cá dentro, faz desaparecer a lógica que existe por detrás da inserção de uma disposição da não extradição de nacional. A nosso ver a proibição da extradição de nacional, que existe, aliás, como atrás ficou dito, em muitos países de diferentes quadrantes geográficos e políticos, tem a ver mais com a afirmação da soberania do Estado sobre os seus cidadãos, principalmente quando estes se encontrem no seu território e com a protecção que o Estado deve aos seus cidadãos e menos com o mecanismo através do qual o Estado se desembaraça do seu nacional acusado. No caso de Cabo Verde a não menção do termo “entrega” na disposição constitucional que impede a extradição de nacionais não quer dizer que o legislador constitucional quisesse dar um tratamento diferente à entrega de cidadãos a tribunais estrangeiros daquele que deu à extradição. A razão por que se fala de extradição na Constituição reside no facto de que a transferência de pessoas acusadas de crime até ao tratado de Roma só se fazia para Estados na medida em que não existiam tribunais penais internacionais. O espírito da disposição constitucional da não-extradição parece abranger qualquer forma de entrega de nacional a uma jurisdição estrangeira para nela ser julgado pela prática de possíveis crimes. Esta interpretação parece resultar muito reforçada em vista do disposto no artigo 29, designadamente nos números 2 e 3”). Deve-se admitir que, parcialmente, as considerações do autor introduzem um verdadeiro desafio para a tese da compatibilidade entre a Constituição da República e o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, mas parece que a um nível mais formal do que substancial. Nesta dimensão, na verdade, partem de conceitos e factos pouco consensuais. Primeiro, dizer que o legislador constitucional só falou de extradição e não de entrega porque em 1992 só se colocava indivíduo sob autoridade de um Estado e nunca de um tribunal penal internacional, é desconsiderar que em 1999, num momento em que pelo menos três deles já haviam sido criados, esse mesmo legislador promoveu uma abrangente revisão da constituição; segundo, é muito questionável apresentar-se o Tribunal Penal Internacional e os dois tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas como “tribunais estrangeiros” à luz da Constituição da

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República. Outrossim, é ela própria que prevê a existência de tribunais internacionais, instituídos através de “tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo Verde seja parte, em conformidade com as respectivas normas de competência e de processo” (art. 209.2), considerando claramente que um tribunal estabelecido em tais condições não é um “tribunal estrangeiro”, resultado da manifestação de uma soberania estranha, mas, ao invés, um “tribunal internacional”, produto da manifestação conjunta e partilhada da vontade de várias soberanias, entre as quais do próprio Estado de Cabo Verde; terceiro, por esses motivos, não me parece o mais certo considerar-se que a filosofia da proibição da extradição de nacionais, como se disse calcada no pressuposto da protecção de nacional de uma soberania estrangeira, possa ser aplicada ao caso de uma entrega a um tribunal penal internacional, do qual não se pode deixar de considerar que o próprio Estado faz parte; por outro lado, o recurso ao artigo 29. 3 da Constituição da República, introduz um problema efectivo, à medida que realmente não consagra a possibilidade de privação de liberdade em processos de entrega, somente de extradição, o que não impede uma interpretação sistemática da Constituição nesse sentido, pois evidentemente se se autoriza a privação de liberdade num processo conducente a submissão de um indivíduo a um outro Estado – extradição – seria razoável pressupor-se que se autorizaria a sua colocação sob autoridade de uma instituição judiciária que o Estado de Cabo Verde seja parte – entrega –, nos moldes descritos na nota seguinte, mas, em todo o caso, teria que ser forçosamente lida de forma muito restritiva. 60 O meu caro amigo e ilustre penalista cabo-verdiano Jorge Carlos Fonseca, “Extradição nos Países de Língua Oficial Portuguesa: o Caso de Cabo Verde”, Conferência Entrega Internacional de Pessoas: Uma Visão Intercontinental, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários/Academia de Direito Europeu, 6-7 Novembro (arquivado com o autor), a quem agradeço pelos desafios quase inultrapassáveis que me colocou, teorizando sobre a “descoberta” de José Luís Jesus, considera que tal interpretação (a da nota anterior) seria totalmente contrária a princípios basilares de Direito Penal (proibição da analogia) e particularmente regras fundamentais de interpretação. Concordo parcialmente com as observações feitas no manuscrito supra-citado, muito embora acredite que questões hermenêuticas estão longe de apresentar um carácter único e certo, existindo ainda muitas zonas de penumbra evidenciadas por teóricos e filósofos do Direito. Por exemplo, poderíamos discutir com alguma razoabilidade se o artigo 29 impediria a privação de liberdade de prisioneiros de guerra de um Estado inimigo de Cabo Verde num conflito armado numa situação de inexistência de declaração do estado de sítio. Seja como for, a ideia da interpretação sistemática esposada no comentário às teses do Juiz Jesus não está directamente relacionada à introdução de “excepções” às “excepções”. Na realidade, pressupõe que, ao permitir que a justiça seja administrada por “tribunais instituídos através de tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo Verde seja parte, em conformidade com as respectivas normas de competência e de processo” (art. 209.2), tributária da concepção de acordo com a qual um tribunal internacional também é tribunal cabo-verdiano por força do consentimento que se expressa com uma eventual vinculação, a Constituição transforma este tribunal internacional num caso concreto em verdadeiro tribunal doméstico e o procedimento em verdadeiro procedimento interno, susceptível, com a intermediação formal de autoridades judiciais cabo-verdianas, de decretação de prisão preventiva (se se justificar) enquanto se analisam os aspectos formais – e só formais – da entrega do suspeito, ou

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detenção para efeitos de entrega a autoridade internacional depois daqueles serem verificados. Por conseguinte, a privação de liberdade necessária para se efectivar um pedido de entrega já estaria coberta pelas próprias possibilidades explicitamente estabelecidas pelo artigo 29 porque o Tribunal Penal Internacional, caso Cabo Verde se vincule ao Estatuto de Roma, transforma-se em verdadeiro tribunal cabo-verdiano e as suas autoridades em verdadeiras autoridades cabo-verdianas e, por fim, como diz o artigo 209 da sua Constituição, as suas “normas de competência e processo” em verdadeiras “normas de competência e processo” da República de Cabo Verde. Aliás, a experiência constitucional portuguesa que se traz à colação, na realidade, reitera precisamente a posição defendida por este autor neste e noutro artigo. Mesmo depois da sua vinculação ao Tribunal Penal Internacional e da revisão da Constituição da República para acomodar tal enlace convencional, o artigo 27 da Lei Magna lusitana (que equivale ao artigo 29 da Constituição da República de Cabo Verde) continua a omitir qualquer referência à entrega. Ora, dessa premissa não se pode inferir que o Estado português não pode, neste momento, privar portugueses da sua liberdade para efeitos de entrega ao Tribunal Penal Internacional, ao Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia, ao Tribunal Penal Internacional para o Ruanda ou no espaço europeu. São tribunais ou procedimentos que são igualmente portugueses e, portanto, o acto de cooperação com tais instituições – Tribunal Penal Internacional – ou no quadro de tais procedimentos – o Mandado de Detenção Europeu –, não precisa de uma referência especial no texto constitucional. Ademais, o artigo 33 da Constituição da República Portuguesa, regra geral, dispõe fundamentalmente das relações tradicionais de cooperação judiciária – Estado a Estado – e, com raras excepções, das que se dão entre Estado-Instituição Internacional da qual faz parte ou no quadro de processos de integração regional. Por isso a necessidade de explicitar que “não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária em matéria penal estabelecidas no âmbito da União Europeia” (para. 5). O parágrafo 6 é neste sentido curioso, por estabelecer um limite absoluto em relação a qualquer modalidade de cooperação judiciária (extradição ou entrega): pedido fundado em motivos políticos ou procedimentos que podem resultar na aplicação de pena de morte ou lesão irreversível à integridade física. No entanto, fá-lo reconhecendo explicitamente a diferença nominal entre uma e outra, e, ademais, estabelecendo regimes jurídicos claramente distintos entre elas, portanto dando-lhe dimensão substantiva. Não se pode, com efeito, de modo algum, utilizar o dispositivo para negar o reconhecimento pela Constituição da República Portuguesa da distinção entre entrega e extradição. Tanto reconhece, nomeadamente em relação à pena aplicável, que estabelece três regimes claramente distintos: a) o primeiro para a extradição de nacional (paras. 3 e 4), sujeita a reciprocidade e limitada materialmente aos crimes de terrorismo e factos puníveis ligados à criminalidade organizada transnacional, bem como a garantia de um processo justo e equitativo e de não aplicação de pena ou medida de segurança de carácter perpétuo ou indefinido (para. 4), além da não aplicação de pena de morte ou lesão irreversível à integridade física (para. 6); b) o segundo para a extradição de estrangeiro, claro está para outro Estado, que dispensa qualquer reciprocidade estrita, não está limitada materialmente a crimes graves, mas pode abranger quase todos os tipos penais, exigindo-se, no entanto, as mesmas garantias de não aplicação de pena ou medida de segurança de carácter perpétuo ou indefinido (para. 4), além da aplicação de pena de morte ou lesão irreversível à integridade física (para. 6), e, c) a entrega, de cidadão estrangeiro ou nacional, a uma instituição internacional ou no âmbito da União Europeia, que

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Tribunal Penal Internacional e cumprir qualquer pedido de cooperação judiciária em matéria penal proveniente de um dos dois tribunais ad hoc que implique na colocação sob sua autoridade de pessoa, sem que seja necessário expurgar ou limitar o preceito constitucional que proíbe a extradição de nacional 61. 3.3. O argumento do santuário de criminosos 6. Um terceiro argumento diz respeito à concepção difundida por alguns, de que, da regra jusfundamental em análise, resultaria a impunidade de criminosos, que, tendo conhecimento da protecção do sistema constitucional 62, acabariam por se refugiar em Cabo Verde com o fito de garantirem protecção em relação a qualquer procedimento

somente limita o acto de cooperação a questões politicamente motivadas ou procedimentos que podem resultar na aplicação de pena de morte ou lesão irreversível à integridade física, portanto permitindo-a em casos de aplicação de pena de prisão perpétua. 61 José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, p. 152, onde sustentei que “a proibição constitucional de extraditar nacional para ser processado criminalmente por outro Estado não visa impedir a sua transferência para uma instituição internacional que, aliás, o próprio Estado deu a sua anuência e verificou o grau de tratamento que os seus nacionais nela teriam”. Aliás, o Grupo Parlamentar do MPD, “Projecto de Lei de Revisão Constitucional do Movimento para a Democracia (2ª Revisão Ordinária)”, Praia, 2005, intui esta distinção quando propõe um novo parágrafo para o artigo 37: “O disposto no presente artigo não prejudica o dever de colaboração na apresentação de cidadãos cabo-verdianos arguidos perante tribunais instituídos através de convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte, nos termos do artigo 209, nº 2, da Constituição”. Apesar da terminologia merecer reparos técnicos, e de não se saber ao certo quais as intenções do dispositivo, o facto é que foi feita uma distinção clara entre dois casos diferentes, num normativo que, quando muito, teria uma natureza declarativa e não constitutiva. 62 Em contexto distinto, mas com similitudes à questão ora analisada, Carlos Fernandes, A Extradição e o Respectivo Sistema Português, p. 7, disse: “Como corolário, da parte do criminoso, para evitar um julgamento ou o não cumprimento de uma pena, foge-se para o estrangeiro, procurando o país onde a extradição seja mais difícil, tentanto assim quer a impunidade (…)”.

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criminal ou execução de pena 63. De facto, fica claro, que, no nosso ordenamento jurídico, não se pode inferir da premissa da não-extradição de nacional, a impunidade de criminosos perigosos, com excepção de situações

muito

residuais.

Regra

geral,

os

sistemas

criminais,

independentemente de aceitarem ou não a extradição de nacional, possuem mecanismos de equilíbrio. Conforme já mencionámos, os países da common law permitem a extradição de nacional, mas não atribuem jurisdição aos seus tribunais para julgar crimes cometidos pelos seus nacionais fora do seu território; em sentido convergente, no sistema continental europeu, alguns países proíbem a extradição de nacional, mas garantem normalmente jurisdição aos seus tribunais para julgar nacionais por crimes cometidos no estrangeiro 64. É o caso de Cabo Verde, mesmo não podendo extraditar nacionais, os tribunais do país têm, por princípio, ainda que limitado, jurisdição sobre qualquer crime por ele cometido no estrangeiro 65. A Constituição da República já o prevê no próprio artigo 37, apesar de, neste quesito, não se tratar de um dever imposto pela Constituição ao legislador ordinário, mas de uma mera 63 Uma ideia que também decorre de intervenções oficiais. Realçando este ponto o antigo Ministro da Justiça destaca que “Nisto tudo o que não queremos é que Cabo Verde sirva de guarida para criminosos”. Vide: “A Semana põe extradição na ordem do dia: Pires desafia partidos a encontrar solução”, A Semana, p. 4. 64 Ver discussões a este respeito, incluindo actualização dos termos desta distinção, no sentido de uma interpretação progressivamente mais convergente entre os dois sistemas, Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 118, “enquanto a jurisdição, na maioria dos sistemas de justiça criminal, mantém-se desenhada de acordo com linhas territoriais, a tendência crescente para “esticar” as fronteiras territoriais para abranger eventos extra-territoriais e a inclusão flexível de crimes indubitavelmente extra-territoriais põe em causa esta distinção. Do mesmo modo, juristas de tradição continental reconheceram que interesses territoriais são a primeira consideração numa decisão de processar, mesmo quando a jurisdição sobre o caso é estabelecida com base no princípio da personalidade”. 65 Histórica e logicamente, dever-se-á entender a adopção da jurisdição com base na nacionalidade do agente (personalidade activa), como “uma consequência da proibição de entregar nacionais; em outras palavras, o Estado não tem outra opção além de processar, ele próprio, os seus cidadãos por não poder extraditá-los” (Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 119).

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faculdade que se lhe dá 66. Com efeito, contempla-se, no artigo 4º do Código Penal da República de Cabo Verde, de entre diversos mecanismos de atribuição de jurisdição – sendo o baseado no território o principal 67 – o que se funda na nacionalidade do agente, desde que, cumulativamente, ele seja “encontrado em Cabo Verde, os factos sejam igualmente puníveis pela legislação dos lugares em que tiverem sido praticados e constituírem crime que legalmente admita extradição e esta não pode em concreto ser concedida” 68. Logo, na maior parte das situações, existindo vontade das autoridades em perseguir devidamente esses crimes, a esmagadora maioria dos casos pode ser, em teoria, abrangida 69- 70. Assim, se se

Lei Constitucional nº 1/99, de 23 de Novembro, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 43, 23 de Novembro de 1999, art. 16), estabelecendo nova redacção ao dispositivo relativo à proibição de extradição de nacional: “Não é admitida a extradição de nacional, que pode responder perante os tribunais caboverdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro (Art. 37.1). 67 De modo, aliás, concordante com a prática internacional e comparada, como atesta a precisa sentença de Luís Benevides, “The Universal Jurisdiction Principle: Nature and Scope”, Anuário Mexicano de Derecho Internacional, v. 1, 2001, pp. 19-96: “a territorialidade é considerada a base principal de atribuição de jurisdição” (p. 23). 68 Veja-se “Código Penal de Cabo Verde (aprovado pelo Decreto Legislativo nº 4/2003, de 18 de Novembro)”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 38, 18 de Novembro de 2003, art. 4º (“Salvo convenção internacional em contrário, a lei penal cabo-verdiana é aplicável a factos praticados fora do território nacional nos seguintes casos: (…) d) quando forem cometidos por cabo-verdianos (…) desde que o agente seja encontrado em Cabo Verde, os factos sejam igualmente puníveis pela legislação dos lugares em que tiverem sido praticados e constituírem crime que legalmente admita extradição e esta não pode em concreto ser concedida” (p. 16)). 69 Em Cabo Verde, neste mesmo sentido, Carlos Veiga: “O julgamento que ocorreu em São Vicente é bem elucidativo de uma solução. Quer dizer, a justiça cabo-verdiana pode julgar essas pessoas, condená-las com uma pena dura” (“O Debate que faz História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana, Especial Destaque, 10 de Outubro de 2008, p. 18). 70 Diz-se em teoria, pois não deixa de ser um perigo, observado em outras paragens, o descaso e a leniência que tais situações podem gerar, principalmente quando o bem jurídico lesado, por ser estrangeiro, não suscita qualquer repugnância especial à população e aos funcionários judiciais. A este respeito, e considerando, não obstante, a existência de alguma evolução desde então, uma carta de 1938 do Secretário de Estado dos Estados Unidos da América, Cordell Hull – trecho reproduzido por 66

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considerar, embora pouco pacificamente 71, que existe uma norma costumeira internacional 72 – codificada, aliás, em diversos tratados 73 – Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 136 – dizia o seguinte: “a punição que tem sido infligida a nacionais de outros países nos seus Estados por crimes cometidos nos Estados Unidos tem, em geral, sido muito leves relativamente ao que o crime aparentemente exigiria, e em muitos casos, nenhuma punição foi infligida e os julgamentos resultaram em absolvições”. 71 Muitos autores, atribuem mero valor convencional ao princípio, e não geral, o que significa que somente seria vinculativo para as partes de um tratado que o previsse, na medida do objecto material de cada um. Ver, por todos, Edward Wise, “The Obligation to Extradite or Prosecute”, Israel Law Review, v. 27, ns. 1 e 2, 1993, pp. 268-287 (“a demanda segundo a qual a obrigação de extraditar ou julgar regra costumeira de direito internacional não ampara integralmente na prática dos Estados”) e Zsuzsanna Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity? NonExtradition of Naturalized Citizens versus Criminal Justice”, Journal of International Criminal Justice, v. 2, n. 3, 2004, p. 772 (“Não obstante, é amplamente reconhecido que não existe qualquer obrigação geral no direito internacional de processar uma pessoa por crimes comuns quando se recusa a extradição. Por outro lado, um número significativo de convenções multilaterais com a finalidade de reprimir determinados crimes internacionais estabelece uma obrigação de aut dedere aut judicare”). Sem pretender discutir esta questão neste momento, pode-se sempre adiantar que sendo verdade que não existe de forma inquestionável uma norma geral de direito internacional que obrigue os Estados a julgar quando não podem ou não querem extraditar, e que, por maioria de razão, não se trata de uma norma de jus cogens, por outro lado, também não é certo que ela não exista em relação a determinados delitos. 72 Alguns mais radicais, como Michael Kelly, “Cheating Justice by Cheating Death: The Doctrinal Collision for Prosecuting Foreign Terrorists – Passage of Aut Dedere aut Judicare into Customary International Law & Refusal to Extradite Based on the Death Penalty”, Arizona Journal of International and Comparative Law, v. 20, n. 3, 2003, pp. 491-522, chegam a sustentar que seria no “mínimo uma regra geral de direito, vinculando teoricamente todos os Estados” (p. 500). 73 São várias as convenções de que a República de Cabo Verde faz parte e que incluem uma obrigação de extraditar ou julgar. Não exaustivamente, cf. na área do terrorismo, a “Convenção para a Repressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil” (aceite para adesão pela Lei nº 55/III/89, de 13 de Julho), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº 27, Suplemento, 13 de Julho de 1989, p. 68 (art. 7º: “o Estado Contratante em cujo território o presumível autor da infracção penal é encontrado, se não proceder à extradição do mesmo, submeterá o caso sem qualquer excepção, tenha ou não sido a infracção cometida no seu território, às suas autoridades competentes para efeitos de instauração de acção penal”); “Convenção para a Repressão da Captura Ilícita de Aeronaves” (aceite para adesão pela Lei nº 56/III/89, de 13 de Julho), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº 27, Suplemento, 13 de Julho de 1989, p. 68 (art. 7º); “Convenção Internacional para a Repressão do Crime de Terrorismo”, (aprovada para ratificação pela Resolução nº 38/VI/2002, de 22 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 11, 22 de Abril de 2002, p. 279 (art.10: “Nos casos em que as disposições do artigo 7º são aplicáveis, o Estado Parte no território do qual se encontra o presumível autor da

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infracção é obrigado, se ele não o extraditar, a submeter o assunto, sem muitas delongas e sem nenhuma excepção, quer a infracção tenha ou não sido cometida no seu território, às suas autoridades para que elas desencadeiem as acções penais, segundo o procedimento previsto pela sua legislação”); “Convenção Internacional para a Repressão de Atentados Terroristas à Bomba”, (aprovada para ratificação pela Resolução nº 38/VI/2002, de 22 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 11, 22 de Abril de 2002, p. 275 (art. 8º); “Protocolo à Convenção para a Repressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil Internacional sobre a Repressão de Actos Ilícitos Violentos em Aeroportos ao Serviço da Aviação Civil”, (aprovada para ratificação pela Resolução nº 38/VI/2002, de 22 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 15, 27 de Maio de 2002, p. 176 (art. 8º); no domínio da repressão à criminalidade internacional, cf. “Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Transnacional Organizada” (aprovada para ratificação pela Resolução nº 92/VI/04, de 31 de Maio), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 16, 31 de Maio de 2004, p. 345 (art. 16.10: “Um Estado em cujo território se encontre o presumível autor de uma infracção, se não extraditar esta pessoa a título de uma infracção à qual se aplica o presente artigo pelo único motivo de se tratar de um seu cidadão, deverá, a pedido do Estado Parte requerente da extradição, submeter o caso, sem demora excessiva, às suas autoridades competentes para efeitos de procedimento judicial (…)”; no domínio da protecção dos direitos humanos, igualmente a título meramente exemplificativo, podem ser destacados a “Convenção contra a Tortura e outras Penas e Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº 14, 9 de Abril de 1992, pp. 1-67 (Art. 9º: “Se o autor presumido de uma das infracções referidas no artigo 4º for encontrado no terrritório sob jurisdição de um Estado parte que não o extradite, esse Estado submeterá o caso, nas condições previstas no artigo 5º, às suas autoridades competentes para o exercício da acção penal”), a “Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos e Doentes dos Exércitos em Campanha”, “Convenção para a Melhoria da Sorte dos Feridos Doentes e Náufragos das Forças Armadas no Mar”, “Convenção Relativa ao Tratamento de Prisioneiros de Guerra”, “Convenção Relativa à Protecção dos Civis em Tempos de Guerra” Boletim Oficial da República de Cabo Verde, nº 14, 12 de Abril de 1984, p. 9 (Respectivamente arts. 49, 50, 129, 146, com uma redacção comum: “Cada Parte Contratante terá a obrigação de procurar as pessoas acusadas de terem cometido ou dado ordem de cometer quaisquer das infracções graves, devendo fazê-las comparecer perante os seus próprios tribunais, seja qual for a sua nacionalidade. Poderá, também, se preferir, e de acordo com as condições previstas na sua própria legislação, entregar as referidas pessoas para que sejam julgadas, a uma outra Parte Contratante interessada na acção, contando que esta tenha apresentado contra ela provas suficientes”); “Protocolo Facultativo à Convenção sobre Direitos da Criança relativo à Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis” (Aprovado para ratificação pela Resolução nº 39/VI/2002, de 29 de Abril), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 12, 29 de Abril de 2002, p. 305 (Art. 5.5: “Sempre que seja apresentado um pedido de extradição relativamente a uma infracção prevista no nº 1 do artigo 3º, e caso o Estado Parte requerido não possa ou não queira extraditar com fundamento na nacionalidade do infractor, esse Estado adoptará medidas adequadas para apresentar o caso às suas autoridades competentes para efeitos de exercício da acção penal”); mesmo em acordos bilaterais de extradição o princípio já é comum, sendo utilizado como alternativa à não-extradição. Veja-se, por todos, o recente “Acordo de

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que obriga o Estado a extraditar ou julgar (aut dedere, aut judicare) 74 determinados

delicti

jura

gentium

(delitos

contra

a

ordem

internacional) 75, Cabo Verde tem condições para cumprir as suas obrigações, mesmo que o agente seja alegadamente um nacional que não possa ser extraditado 76. Por conseguinte, salvo os tais casos marginais que podem, com efeito, ocorrer em algumas situações, o facto é que o

Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde” (Aprovado para ratificação pela Resolução nº 98/VI/2004, de 7 de Junho), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, nº 17, 7 de Junho de 2004, p. 305, que, no seu artigo 54.2, estabelece, ainda que de um modo pouco vinculativo e submetido a vários pressupostos, o seguinte: “Quando o Estado requerido se recusar a extraditar uma pessoa pelo facto de ser seu nacional, deverá, caso o Estado requerente o solicite e as leis do Estado requerido o permitam, submeter o caso às autoridades competentes para que providenciem pelo procedimento criminal contra essa pessoa por todos ou alguns dos crimes que deram lugar ao pedido de extradição”. 74 Sobre este princípio, cf. Edward Wise, “The Obligation to Extradite or Prosecute”, pp. 268-287; Declan Costello, “International Terrorism and the Development of the Principle Aut Dedere Aut Judicare”, Journal of International Law & Economics, v. 10, 1975, pp. 483-501, especialmente 483-490; João Marcelo de Araújo Júnior, “Extradição – Alguns aspectos fundamentais”, pp. 62-63, , Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 123 e ss, para uma visão mais histórica, conceptual, jurisprudencial e internacional. 75 Por todos, cf. M. Cherif Bassiouni (ed.), International Criminal Law: Crimes, Dobbs Ferry, Transnational Publishers, 1986; Steven Ratner & Jason Abrams, Accountability for Human Rights Atrocities in International Law: Beyond the Nuremberg Legacy, 2. ed., Oxford, Oxford University Press, 2001; Antonio Cassese, International Criminal Law, New York, Oxford University Press, 2003; Robert Cryer; Hakan Friman; Darryl Robinson & Elizabeth Wilmshurst, An Introduction to International Criminal Law and Procedure, Cambridge, Cambridge University Press, 2007; Ilias Bantekas & Susan Nash, International Criminal Law, London, Routledge, 2007; Jorge Bacelar Gouveia, Direito Internacional Penal. Uma Perspectiva Dogmático-Crítica, Coimbra, Almedina, 2008. 76 E, neste caso, é seguramente mais pacífico que não existe uma norma de direito internacional costumeiro que obrigue o Estado a extraditar os seus nacionais. Como assevera Zsuzsanna Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity? Non-Extradition of Naturalized Citizens versus Criminal Justice”, p. 769, “pode-se concluir, com base na leitura de tratados, leis internas e jurisprudência, que, apesar de nenhuma regra de direito internacional explicitamente reconhecer aos Estados o direito de negar a extradição dos seus nacionais (…), não os proíbe de o fazer e não limita a aplicação da excepção de nacionalidade”.

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sistema jurídico cabo-verdiano consegue dar respostas adequadas aos desafios colocados neste domínio 77. Além disso, sendo a discussão deste texto prioritariamente constitucional, não se pode deixar de observar, que não estando o problema no plano da Lei Fundamental, uma vez que a Constituição permite, embora não obrigue, o legislador ordinário, a garantir jurisdição extra-territorial ao Estado cabo-verdiano sobre crimes cometidos por agentes de nacionalidade cabo-verdiana, a existir algum inconveniente neste último nível, a solução é relativamente fácil e não implicaria em alterações à Constituição, mas sim da legislação criminal infraconstitucional, neste caso do próprio Código Penal. 3.4. O argumento da realização efectiva da justiça 7. No entanto, analisando a questão de um outro prisma, não se pode deixar de chamar a atenção para alguns pormenores e motivações mais consistentes. É que, existem alguns casos em que a proibição taxativa da extradição de nacional, especialmente quando é elevada a um patamar constitucional, ultrapassando mera disposição convencional ou legal, contribui para uma incorrecta administração global da justiça, em se tratando de crimes internacionais 78. Deixando de lado os casos de O recente Caso José Barbosa foi apenas um dos últimos em que um cabo-verdiano foi julgado e condenado em Cabo Verde por crimes cometidos no estrangeiro em razão da impossibilidade de se conceder a extradição (v. “S. Vicente: José Barbosa condenado à pena máxima – 25 anos de cadeia (actualizada)”, Inforpress, 29 de Agosto de 2008 (Disponível em http://www.inforpress.cv/index.php?option=com_content&task=view&id=7430&Ite mid=59, 4 de Setembro de 2008). 78 Neste sentido, não estamos de acordo com a posição externada pelo Presidente do maior partido da oposição (Movimento para a Democracia), Jorge Santos, quando diz que “para que a Justiça seja feita, não é necessário que se extraditem cabo-verdianos, mas sim que se faça justiça. O MpD defende que se faça Justiça e que criminosos não fiquem impunes” (“Extradição de Nacional contraria Princípios Consagrados na Constituição da República”, Liberal Online, 30 de Abril de 2007, disponível em http://www.liberalcaboverde.com/index.asp?idEdicao=50&id=13209&idSeccao=442 77

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Aspectos Polémicos da Extradição

ausência

de

vontade

das

autoridades

nacionais

perseguirem

determinados delitos (como demonstra o Caso Fujimori, que, por ter dupla-nacionalidade japonesa e peruana, não foi extraditado do Japão, onde se tinha refugiado, nem foi tão pouco processado nesse país 79, ou o mais recente Caso Lugovoy, em que a Rússia recusou-se a extraditar um nacional pertencente aos seus serviços secretos pelo cometimento de crime de homicídio na Grã-Bretanha 80) – e pressupõe-se que ela exista em Cabo Verde – algumas situações podem ter respostas inadequadas num julgamento por um tribunal nacional. A razão fundamental tem a ver com o seguinte: se a pena, primordialmente, visaria a reintegração de uma norma essencial para a protecção de bens jurídicos fundamentais de uma comunidade política que foram lesionados 81, é natural que um &Action=noticia), ou com o Primeiro-Ministro José Maria Neves, que diz: “Eu também tenho sérias dúvidas se devemos extraditar cabo-verdianos. O que devemos fazer é criar as condições aqui no país para perseguir, e julgar convenientemente, todos aqueles que, eventualmente, queiram utilizar Cabo Verde como refúgio. Mas sendo Cabo Verde uma nação global, um país de diásporas, temos de considerar os cabo-verdianos que residem aqui e os que estão lá fora. E havendo o cometimento de um crime grave lá fora e o presumível assassino fuja para Cabo Verde, tem de ter condições para o perseguir e julgá-lo de acordo com as leis cabo-verdianas (“O Debate que faz História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana, Especial Destaque, 10 de Outubro de 2008, pp. 18-19). 79 Sobre este caso, cf. Kent Anderson, “An Asian Pinochet? – Not Likely: The Unfulfilled International Law Promise Japan’s Treatment of Former Peruvian President Alberto Fujimori”, Stanford Journal of International Law, v. 38, n. 2, 2002, pp. 177-206; Arnd Düker, “The Extradition of Nationals: Comments on the Extradition Request for Alberto Fujimori”, German Law Journal, v. 4, n. 11, 2003, pp. 1165-1177 (Disponível em http://www.germanlawjournal.com/article.php?id=334). 80 Veja-se o relato e a análise de Jacques Hartmann, “The Lugovoy Extradition Case”, International & Comparative Law Quarterly, v. 57, 2008, pp. 194-200, que dá conta do contencioso diplomático grave gerado pela recusa do pedido de extradição pela Rússia, envolvendo expulsão de diplomatas dos dois países. 81 Apesar de ter dúvidas se realmente os fins das penas num Estado de Direito Democrático residem exclusivamente na chamada prevenção geral, positiva, e especial e na ressocialização do agente de factos delituosos, em razão da abertura que tenho para outros, nomeadamente a mera retribuição para crimes de especial gravidade, o facto é que o legislador ordinário erigiu esses dois fins como os únicos que oficialmente justificariam as penas e as medidas de segurança, conforme resolveu verter para o artigo 47 do Código Penal: “A aplicação de penas e de medidas de

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julgamento que tenha lugar onde o crime foi cometido contribua para tais fins, muito mais do que um realizado em um lugar longínquo, do qual, muitas vezes, nem se escutam ecos a respeito do mesmo 82 (precisamente por isto, mesmo nos casos em que Estados concedem imunidades criminais a estrangeiros em razão do seu estatuto – diplomatas, pessoal consular, autoridade em visita oficial 83– ou na

segurança tem por finalidade a protecção de bens jurídicos essenciais da comunidade social e a reintegração do agente na vida comunitária”. Ver a este respeito, reflectindo a generalidade – mas não toda – da doutrina penal de influência germânica, do próprio autor material do Código Penal de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, Reformas Penais em Cabo Verde: um novo Código Penal para Cabo Verde (Estudo sobre o Anteprojecto seguido do correspondente articulado), Praia, Instituto de Promoção Cultural, 2001, pp. 32-37, e também, embora em sentido formalmente distinto, Claus Roxin, “Sentido e Limites da Pena Estatal” In: Problemas Fundamentais de Direito Penal, Tradução Portuguesa de Ana Paula Luís Natscheradetz, 3. ed., Lisboa, Veja, 2004, pp. 15-47, propugnando por uma teoria unificadora dialéctica em que a pena teria a missão de servir como “protecção subsidiária de bens jurídicos e prestações de serviços estatais, mediante prevenção geral e especial, que salvaguarda a personalidade no quadro traçado pela medida da culpa individual” (p. 43), e o, especialmente interessante, Günther Stratenwerth, “Que aporta la teoria de los fines de la pena?”, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 66, 2007, pp. 53-66. Crítico em relação a essas concepções eclécticas, Günther Jakobs, “Sobre a Teoria da Pena” In: Teoria da Pena; Suicídio e Homicídio a Pedido (dois estudos de Günther Jakobs), Tradução Brasileira de Maurício Ribeiro Lopes, São Paulo, Manole, 2003, pp. 1-27. 82 Aliás, mesmo que, por hipótese, reduzíssemos, o fim da pena à ressocialização do agente, ou lhe levássemos em tanta conta quanto a prevenção geral positiva, ainda assim, no caso de Cabo Verde, e dos problemas concretos que envolvem o país nessa esfera, não seria líquido que um nacional cabo-verdiano teria melhores condições internas de ressocialização. É que, mesmo colocando de lado a actual superlotação das penitenciárias e da ausência de programas palpáveis de ressocialização, questões que o Estado tem que resolver, o facto é que, em grande parte das vezes, os vínculos de vários nacionais são muito mais fortes no estrangeiro onde nasceram, viveram e têm os seus familiares e entes mais queridos do que em Cabo Verde. 83 Ver o artigo 31 da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, n. 25, 29 de Junho de 1990, p. 26, onde se estabelece a imunidade de jurisdição criminal do agente diplomático (Art. 31: “O agente diplomático goza de imunidade de jurisdição penal do Estado acreditador”). Para comentários, cf. G.E. do Nascimento e Silva, A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, 2. ed., Brasília, s.l., 1978, pp. 143-161; além disto, de modo mais limitado, a “Convenção de Viena sobre Relações Consulares”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, n. 25, 29 de Junho de 1990, pp. 29-53, art. 43, prevê igualmente imunidades de jurisdição para os funcionários e empregados consulares (“Os funcionários consulares e os empregados consulares não estão sujeitos à

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sequência de acordos militares – acordos sobre o estatuto de forças, conhecidos no meio militar por SOFAs 84– o Estado que tem primazia de jurisdição, pondera sempre a possibilidade dela renunciar em benefício do Estado no qual o crime foi cometido, especialmente quando este bulir de forma intensa com o ordenamento e o sentimento de justiça locais 85). À parte este factor mais fundacional, a verdade é que do ponto de vista processual, outros inconvenientes podem emergir da nãoextradição de nacional. O Estado do nacional pode estar impossibilitado de exercer a acção penal em razão de outros direitos fundamentais, como a proibição do bis in idem, nos casos em que o indivíduo já foi julgado. Ademais, mesmo que exista colaboração das autoridades do local onde o

jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor pelos actos realizados no exercício das funções consulares”). 84 Ver “Acordo entre a República de Cabo Verde e a Organização do Tratado do Atlântico Norte sobre o Estatuto das Forças para o Exercício Steadfast Jaguar 2006 (Aprovado para ratificação pela Resolução nº 156/VI/2006, de 2 de Janeiro)”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 1, 2 de Janeiro de 2006 (Art. 7.1: “É concedido ao pessoal da NATO, com a excepção dos fornecedores da NATO, o estatuto, privilégios e imunidades concedidos ao pessoal administrativo e técnico, nos termos do artigo 37.2 da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas, de 18 de Abril de 1961”); em geral, cobrindo vários desses acordos, inclusivamente a sua dimensão criminal, cf. R. R. Baxter, “Criminal Jurisdiction in the NATO Status of Forces Agreement”, International & Comparative Law Quarterly, v . 7, n. 1, 1958, pp. 72-81; Rafael A. Porrata-Doria Jr., “The Philippine Bases Agreement and Status of Forces Agreement: Lessons for the Future”, Military Law Review, v. 137, 1992, pp. 86-91; Yoon-Ho Alex Lee, “Criminal Jurisdiction under the US-Korean Status of Forces Agreement: Problems and Proposals”, Florida Journal of International Law & Policy, v. 13, n. 1, 2003, pp. 213-249. 85 A este propósito, vide, o parágrafo 1 do artigo 32 da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, prevendo a possibilidade de renúncia das imunidades pelo Estado acreditante (“O Estado acreditante pode renunciar à imunidade de jurisdição dos seus agentes diplomáticos e das pessoas que gozam de imunidade nos termos do art. 37”); em sentido similar, a previsão do Acordo entre a República de Cabo Verde e a Organização do Tratado do Atlântico Norte sobre o Estatuto das Forças para o Exercício Steadfast Jaguar 2006”, inserta no artigo 7.5: “Em casos específicos, por razões de importância vital para Cabo Verde, Cabo Verde pode solicitar aos Estados de Origem que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem relativamente ao seu pessoal militar ou civil presente em Cabo Verde nos termos deste Acordo e no contexto do “Exercício”.

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delito for cometido 86, os órgãos nacionais com competência para realizar a investigação criminal e posteriormente exercer a acção penal podem ter dificuldades de acesso aos meios de prova (é evidente que se pode recorrer às novas tecnologias para inquirir testemunhas por via de teleconferência), porém, outras ficam muito distantes e não são tão compatíveis com uma análise fria e à distância 87; pode-se igualmente solicitar auxílio judiciário, em matéria penal, para ter acesso a determinadas provas documentais, todavia, não é a mesma coisa, em se tratando de determinados crimes; finalmente, faltaria algo que os desenvolvimentos tecnológicos não respondem: a análise da própria cena do crime em tempo oportuno, particularmente quando na execução do crime são utilizados instrumentos que exigem alguma análise 88. E, saliente-se, que tal colaboração não é garantida, uma vez que o Estado requerente pode reagir patrióticamente à reacção nacionalista do Estado requerido, não prestando qualquer auxílio judiciário ao seu congénere, conforme sustenta C. Sachor-Landau, “Extra-Territorial Penal Jurisdiction and Extradition”, p. 287 (“Um Estado que não é afectado pelo crime cometido no estrangeiro é insusceptível de assumir o processo e a punição com algum entusiasmo”). De todo o modo, neste caso, se o fizer, estará, em muitos casos, a obstaculizar a única forma real de realização da justiça possível: o julgamento no país de nacionalidade. 87 Cf. Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 136, chamando a atenção para três tipos de problemas que podem ser criados na esfera processual pela não-extradição de nacional e consequente possibilidade de julgamento interno: “1. Trazer testemunhas de países distantes impõe um pesado fardo financeiro tanto às testemunhas quanto ao arguido, para não mencionar dificuldades práticas sérias; 2. Certos meios de prova não estão disponíveis, como a observação da cena do crime; 3. Se as provas foram reunidas no estrangeiro, a acusação pode ter dificuldades em utilizá-la num julgamento em razão de eventuais restrições de carácter processual”. 88 Ver também Luiz Roberto Araújo & Luiz Régis Prado, “Alguns aspectos das limitações ao direito de extraditar”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 19, n. 76, 1982, p. 75, que argumentam em sentido similar, analisando o caso brasileiro: “por não conceder a extradição do nacional, obrigava-se a puni-lo pelo facto praticado no estrangeiro, evitando desta forma a sua impunidade, caso a nossa legislação também o considerasse como delituoso. No entanto, essa não nos parece a melhor orientação na matéria, pois, além de dificultar o auxílio internacional na repressão à criminalidade, em termos práticos, torna extremamente penosa a colecta de provas e informações pormenorizadas sobre a infracção penal. A distância do local do delito e uma série de embaraços de toda a ordem fazem com que o ideal, em termos de persecutio criminis, seja a jurisdição do forum delicti commissi”; no 86

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Neste sentido, mesmo considerando, seguramente, que o sistema jurídico nacional não contribui para a impunidade de criminosos, a verdade é que, em determinadas situações, poderá prestar uma colaboração deficiente à comunidade internacional, impedindo que um suspeito seja julgado e condenado, se comprovada a sua culpa no próprio local onde cometeu os seus crimes, ou inviabilizando a construção de um caso verdadeiramente forte contra os arguidos em situações de comprovadas dificuldades de acesso às provas, ou até possibilidade de analisar a cena do crime. Neste sentido, o apelo a uma solução cosmopolita do problema e não à irracional manutenção de uma perspectiva comunitarista, faria todo o sentido. IV. Argumentos Contrários à Extradição de Nacional 89

mesmo sentido, J.-G. Castel & Sharon Williams, “Extradition of Canadian Citizens and Sections 1 and 6 (1) of Canadian Charter of Rights and Freedoms”, Canadian Year Book of International Law, v. 25, 1987, pp. 268-269. 89 Em especial, vide o clássico artigo de Martin Manton, “Extradition of Nationals”, pp. 21-24; vide também críticas a alguns argumentos da doutrina contrária à extradição de nacional em Carolina Guimarães Lisboa, A relação extradicional no Direito Brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 2001, pp. 149-151, e particularmente a conclusão de Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 85 sobre a solidez de justificações para manter uma cláusula absoluta de não extradição de nacional: “Justificar a regra de não-extradição apresenta vários problemas: primeiro e fundamentalmente, os argumentos avançados em seu favor fora no Século XIX e alguns deles estão fundados em períodos ainda mais longíquos. Na literatura contemporânea ninguém propôs uma nova fundamentação; (…) Hoje, justificações que pretendem fazer são, na melhor das hipóteses, recapitulações de argumentos antigos. A regra, é, muitas vezes, formulada num estilo algo dogmático, sem qualquer base satisfatória de arrazoamento além da sua mera existência. Algumas vezes, é declarado como um axioma político dificilmente aberto a discussões. Por os legisladores contemporâneos se terem contido na apresentação de razões, aqueles que se opõem veementemente à regra da não-extradição de nacional parecem como Don Quixotes a lutar contra fantasmas”. Actualmente, face aos desenvolvimentos internacionais e nacionais, a situação não está tão difícil para os defensores da extradição de nacional, além do que a preocupação de alguns dos subscritores do princípio com os direitos fundamentais ser legítima e atendível, o facto é que no que toca à sua base de legitimação a doutrina da não-extradição de nacional parece claramente inadequada para o contexto global de expansão da

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4.1. O argumento da soberania do Estado 8. Face aos inconvenientes referidos que podem resultar da nãoextradição de nacional, esta deve ser considerada de forma ponderada e fora de um quadro de pânico geral. É que se se for analisar os principais motivos para que tal regra tenha consagração nos ordenamentos jurídicos internos de parte considerável dos Estados, chegar-se-ia à conclusão que eles simplesmente deixaram de existir. A justificação da inserção da proibição de extradição de nacional no Direito dos Estados, resulta de argumentos hoje em dia obsoletos, para a maioria das situações 90. Tratava-se, num mundo quase hobbesiano, ou, quiçá, mais concretamente, hegeliano, em que os Estados faziam questão de manter e invocar a todo o custo a sua soberania, sendo uma indignidade permitir que parte da nação fosse julgada por uma potência exterior 91. A democracia e dos direitos fundamentais, da internacionalização da justiça e da cooperação na luta contra as formas mais perigosas e organizadas de criminalidade. 90 Apesar disso, a verdade é que os Estados Unidos da América são dos países que mais extraditam os seus nacionais, não existindo qualquer proibição constitucional neste sentido (cf. Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, pp. 96-99; diz-nos, ademais, Ivan Shearer, “Non-Extradition of Nationals – A Review and a Proposal”, p. 288, que “durante o Século XIX, negociações de tratados de extradição foram terminadas pela insistência da outra parte em incluir uma cláusula de não-extradição de nacional”). A postura dos Estados Unidos em relação ao Tribunal Penal Internacional não tem nada a ver com a sua tradição em matéria de extradição de nacional e deve ser vista como particular. Basta ver, por exemplo, os tratados de consentimento prévio que têm sido concluídos pelos Estados Unidos com vários Estados, incluindo Cabo Verde, com base no artigo 98 do Estatuto de Roma, para se ver que o efeito que pretendem evitar é o julgamento pelo Tribunal Penal Internacional, não se importando tanto com o julgamento dos seus nacionais por outros Estados, por crimes comuns ali cometidos. Para desenvolvimentos, ver o nosso José Pina Delgado, “Obstáculos constitucionais à ratificação do Estatuto de Roma e (outros) problemas de consolidação do Tribunal Internacional Penal: desenvolvimentos recentes, principalmente relativos a Cabo Verde”, pp. 187-189. 91 Paradigmaticamente, ver as conclusões de um relatório de uma comissão criada pelo Governo italiano relativa à extradição de nacional, reproduzidas em Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 93. “[A Itália] deve protecção aos seus filhos, e não os pode abandonar a sua sorte, se acusados por um crime, à mercê do direito e de juízes estrangeiros. A dignidade nacional não pode consentir que um cidadão, um membro do Estado, possa ser compelido a curvar a sua cabeça a determinação de uma autoridade estrangeira”.

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realidade, porém, é que a soberania do Estado não mantém tais contornos nos dias de hoje, nem tão pouco o julgamento de um cidadão nacional no estrangeiro seria algo indigno para a nação 92- 93, até porque, se chegarmos a este ponto, estenderíamos de forma absoluta, e absurda 94, o princípio de protecção do nacional previsto pelo Direito Internacional, da protecção diplomática 95 para a protecção bélica 96, O argumento recente avançado pelo Primeiro-Ministro Neves insere-se neste quadro (“Nestas condições temos de proteger o nosso país. Muitas das pressões que tenho visto são preconceitos em relação à capacidade de Cabo Verde perseguir e julgar aqueles que prevaricam lá fora. Existe alguma desconfiança em relação a um país africano, que é Cabo Verde. Por isso nós temos que defender o prestígio de Cabo Verde e o prestígio das suas instituições. Neste tipo de questões, complexas geralmente, a solução é a mais fácil (sic): ‘Bom, cometeu o crime lá fora, é um grande criminoso, então que vá lá fora ser julgado’. Pelo contrário, este deve ser um elemento de orgulho de Cabo Verde: perseguir, prender e julgar aqueles que estiverem nessa situação. E não é por acaso que desde a independência temos esse princípio na nossa CR”) (v. “O Debate que faz História: Carlos Veiga e José Maria Neves, Encontro Inédito”, A Semana, Especial Destaque, 10 de Outubro de 2008, p. 19). 93 Nas palavras de Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 94, “somente através do mais ténue e artificial processo de arrazoamento que se pode chegar à conclusão que entregar um criminoso nacional para julgamento por um tribunal estrangeiro chega a ser uma indignidade nacional”, ideia corroborada por um dos livros clássicos sobre a extradição no espaço lusófono de autoria de Gilda Mayer Russomano, A Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, pp. 107-108, onde à questão de saber se “terá a Inglaterra, por exemplo, perdido o respeito das demais nações do concerto universal por haver consentido, através dos tempos, na extradição dos seus nacionais?”, responde dizendo taxativamente: “É claro que não! E isso porque a honra nacional sobrepaira a essas controvérsias. Para não a ofender, ao contrário, é preciso que o Estado não contribua, directa ou indirectamente, para a impunidade de quem quer que se tenha tornado culpado de um delito”. 94 Cf. no mesmo sentido, as palavras proferidas por Martin Manton, “Extradition of Nationals”, p. 21, em 1936 (“Negar a extradição de nacional com base na teoria do dever do Estado proteger os seus cidadãos em qualquer país que ele esteja, é levar o princípio da protecção diplomática a distâncias inimagináveis”), e, mais uma vez, Gilda Mayer Russomano, A Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro, p. 107 (“Os Estados, na verdade, não só podem, como, sobretudo, devem proteger os seus nacionais. Essa protecção, no entanto, não é considerada absoluta, de modo que não chega a extremos de impedir que eles respondam a julgamento, perante tribunais estrangeiros”). 95 Recomenda-se a respeito deste instituto de Direito Internacional, as análises clássicas de Edwin M. Borchard, “Basic Elements of Diplomatic Protection of Citizens Abroad”, American Journal of International Law, v. 7, 1913, pp. 497-520, e Hersch Lauterpacht, “Allegiance, Diplomatic Protection and Criminal Jurisdiction over 92

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como os Estados Unidos da América 97 fizeram recentemente, e de forma ilegal, com a American Servicemember Protection Act, prevendo provavelmente o uso da força para proteger nacionais americanos sob custódia do Tribunal Penal Internacional ou de qualquer Estado com base no Estatuto de Roma 98. Mais: desconfiavam que o nacional não teria garantidos todos os seus direitos, inclusivamente o de um processo justo e equitativo, em julgamentos, conduzidos por autoridade e sob leis estrangeiras, as quais ele nem sequer conhecia ou compreendia 99. Bem,

Aliens”, The Cambridge Law Journal, v. 9, 1945-1947, pp. 330-348; Para discussões actualizada do princípio da protecção diplomática e dos seus fundamentos, vide Annemarieke Vermeer-Künzli, “As if: The Legal Fiction in Diplomatic Protection”, European Journal of International Law, v. 18, n. 1, 2007, pp. 37-68. 96 Esta extensão, no entanto, não é pioneira na História do Direito Internacional. Até ao início do Século XX, grades potencias ainda usavam a força para proteger os seus nacionais no estrangeiro, incluindo os seus interesses económicos. Cf. Hersch Lauterpacht, “Allegiance, Diplomatic Protection and Criminal Jurisdiction over Aliens”, p. 335 (“A Guerra Sul-Africana, a (algo nominal) guerra com a Venezuela em 1903 e várias outras surgiram da necessidade de proteger os interesses de súbditos britânicos em países estrangeiros”). 97 Por todos, vide Joanisval Brito Gonçalves, “Os EUA e o Tribunal Penal Internacional”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 40, n. 160, 2003, pp. 41-48; Mark D. Kielsgard, “War in the International Criminal Court”, New York City Law Review, v. 8, n. 1, 2005, pp. 1-52. 98 Ver “ ‘American Service-members’ Protection Act”, de 30 de Julho de 2003, Secção 2008 (Autorização para a libertação de membros das forças armadas dos Estados Unidos e outras pessoas detidas ou presas pelo ou em favor do Tribunal Penal Internacional), especialmente alínea a), “o Presidente fica autorizado a usar todos os meios necessários e apropriados para libertar qualquer pessoa descrita na sub-secção b) que esteja detida ou presa pelo, em benefício do, ou a pedido do, Tribunal Penal Internacional” (disponível, inter alia, em http://www.state.gov/t/pm/rls/othr/misc/23425.htm, acesso no dia 8 de Novembro de 2007); para desenvolvimentos, recomenda-se Colonel M. Tia Johnson, “The American Servicemembers’ Protection Act. Protecting Whom?”, Virginia Journal of International Law, v. 45, n. 2, 2002-2003, pp. 405-488, em especial p. 468; Mark D. Kielsgard, “War in the International Criminal Court”, pp. 26-27. 99 Quando o Primeiro-Ministro, na supra-citada entrevista, levanta o problema da desconfiança e menorização das nossas instituições (“Muitas das pressões que tenho visto são preconceitos em relação à capacidade de Cabo Verde perseguir e julgar aqueles que prevaricam lá fora. Existe alguma desconfiança em relação a um país africano, que é Cabo Verde”), não deixa de incorrer em comportamento similar se nega a extradição de nacional em situações em que existem garantias de due process, igualdade de tratamento e reciprocidade, pois estaria a duvidar, em abstracto, da

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Aspectos Polémicos da Extradição

hodiernamente, essas razões não subsistem em abstracto, em relação a Estados que garantem direitos semelhantes aos que estão consagrados na nossa Constituição Penal 100, sendo certo que, existindo, in concreto, qualquer suspeita nesse sentido, o Estado tem sempre o poder de recusar a extradição de nacional, desde que inclua cláusulas de salvaguarda nas convenções de extradição que concluir. 4.2. O argumento dos direitos fundamentais do cidadão cabo-verdiano 9. O artigo 37. 1. da Constituição da República pode ser interpretado no contexto descrito 101. Apesar de não ser um dispositivo pioneiro na ordem jurídica cabo-verdiana, uma vez que preceito similar já estava presente na Constituição de 1980 102, o que importa é verificar e capacidade dos sistemas judiciais estrangeiros julgarem com justiça e equidade o cidadão cabo-verdiano. 100 Para discussões sobre este conceito, ver Maria Fernanda Palma, Direito Constitucional Penal, Coimbra, Almedina, 2006, passim, no sentido de serem “os valores e critérios constitucionais que limitam e conformam o Direito Penal” bem como princípios e normas penais que desenvolvem ou colidem” com eles (p. 14). 101 O princípio aparece origináriamente no “Ante-Projecto de Constituição de Cabo Verde”, Movimento para Democracia, Praia, 1992, art. 38.1, com a seguinte redacção: “Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser extraditado ou expulso do país”. Esta mesma redacção aparece na versão originária da “Constituição da República de Cabo Verde de 1992” (Aprovado pela Lei Constitucional nº 1/IV/92, de 25 de Setembro), Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 12, 25 de Dezembro de 1992, art. 35.1: “Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser extraditado ou expulso do país” (p. 7). Com a revisão ordinária de 1999, procede-se a cisão do instituto da extradição, que passa a figurar num artigo autónomo, sob a epígrafe “Extradição”(veja-se a “Lei Constitucional nº 1/99”, de 23 de Novembro, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, I Série, n. 43, 23 de Novembro de 1999, art. 16), com a actual redacção: art. 37.1. “Não é admitida a extradição de nacional, que pode responder perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro”. 102 A versão originária da primeira “Constituição da República de Cabo Verde”, Boletim Oficial da República de Cabo Verde, n. 41, 13 de Outubro de 1980, p. 4, estabelecia, no seu artigo 37, que “em caso algum é admissível a extradição ou a expulsão do país, do cidadão nacional”, redacção esta que não chegou a ser alterada por nenhuma das revisões constitucionais subsequentes, mudando unicamente a posição do princípio, que passou a estar no artigo 33. Cf. as diversas versões da Constituição de 1980 em: Mário Pereira Silva (org.), As Constituições de Cabo Verde

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analisar a sua incorporação à primeira constituição democrática do país, a Constituição da República de 1992, tendo, neste caso, provavelmente, como fonte longínqua o art. 112 da Constituição de Weimar 103, a Lei Fundamental de Bona de 1949 104, que influencia, entre outras, a Constituição da República Portuguesa de 1976 105 e chega até Cabo Verde por esta via 106. No entanto, e ao contrário de outras disposições fundamentais de teor similar – a proibição de expulsão de cidadão do território nacional 107 e a proibição de privação de nacionalidade ao cabo-

e Textos Históricos de Direito Constitucional Cabo-Verdiano, Praia, Edição do Autor, 2007, pp. 11-138. 103 Nomeadamente, ainda que não inquestionavelmente, e de modo pioneiro no mundo lusófono, é de considerar a influência da Constituição de Weimar na Constituição Brasileira de 1934, conforme autores como Luiz Roberto Araújo & Luiz Régis Prado, “Alguns aspectos das limitações ao direito de extraditar”, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 19, n. 76, 1982, p. 74, acreditam ter sido possível. 104 A fórmula da Grundgesetz era a seguinte: “Nenhum alemão pode ser extraditado para o estrangeiro” (art. 143). Ver: “Lei Fundamental da República Federal da Alemanha” In: A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha – Com um ensaio e anotações de Nuno Rogeiro, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 143. 105 A respeito da influência da Lei Fundamental de Bona na Constituição Portuguesa de 1976, ver por todos, Nuno Piçarra, “Die Einflüsse des deutschen Verfassungsrechts auf das portugiesische Verfassungsrecht” In: Eryk Jaime (hrsg), DeutschLusitanische Rechtstage: Seminar in Heidelberg, 20-21.11.1992, Baden-Baden, Nomos Verl. - Ges., 1994, pp. 55-65. 106 Sobre a importância da Constituição Portuguesa de 1976 na estrutura básica da Constituição Cabo-verdiana de 1992 e no seu regime de direitos fundamentais, ver Jorge Carlos Fonseca, “Do Regime de Partido Único à Democracia em Cabo Verde: As Sombras e a Presença da Constituição Portuguesa de 1976”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da UNL, Edição especial: 30 Anos de Constituição Portuguesa 1976-2006, 2006, pp. 104-107, especialmente o trecho em que diz: “(…) recortado fica o espectro de aproximações entre as duas leis fundamentais. Elas vão dos princípios fundamentais (Estado unitário, República organizada num Estado de Direito, autonomia do poder local, concepção de soberania popular, tarefas do Estado e regras sobre recepção do direito internacional) ao modo de organização dos direitos fundamentais e o essencial do seu regime, incluindo a diferente força jurídica conferida às normas respeitantes, por um lado, aos direitos, liberdades e garantias individuais e, por outro, aos chamados direitos sociais, passando por um muito afim acervo de normas e princípios relativos à constituição penal, processual penal e de execução de sanções criminais (…)” (p. 106). 107 Estabelece o artigo 35.1. que “Nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser expulso do país”.

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Aspectos Polémicos da Extradição

verdiano de origem 108 – não existe qualquer justificação simbólica, histórica

ou

ontológica

para

que

exista

em

Cabo

Verde 109.

Contrariamente à proibição de expulsão de cidadão nacional e de perda de nacionalidade que gozam de tal fundamento legitimatório, uma vez que, directa ou indirectamente, foram prática corrente na I República, a némesis da actual ordem constitucional, a proibição de extradição de nacional não a possui 110. Não existe uma ligação ontológica entre o Estado e o seu cidadão, de tal sorte que ele não possa dele ser afastado, para responder por crimes graves cometidos no estrangeiro. O Estado somente tem o dever de garantir que, o seu cidadão, tenha no país de julgamento um tratamento adequado, e lhe seja garantido um due process 111, com direito a defesa, de contra-interrogar as testemunhas, de

A redacção desse princípio constitucional é a seguinte: “Nenhum cabo-verdiano de origem poderá ser privado da nacionalidade ou das prerrogativas da cidadania” (art. 39). 109 Durante a sessão que aprovou o artigo 37 (extradição e expulsão), não existiu, talvez pela não participação dos parlamentares do PAICV, qualquer discussão sobre as razões que justificariam a sua inclusão na Lei Fundamental. Depois de lida a redacção constante do projecto e tendo o Presidente perguntado se existiam objecções, ninguém se pronunciou e o artigo foi aprovado (Vide Assembleia Nacional Popular, Acta das Sessões: Apresentação e Debate da Constituição da República, 2ª Sessão Legislativa Extraordinária, IV Legislatura, Praia, 1992, p. 157 (policopiado)). 110 Não se pode deixar de notar face ao contexto político e legislativo que deu origem ao regime jurídico actual da nacionalidade, e, diga-se, face igualmente à compromissos internacionais de se evitar a apatridia que seja o Movimento para a Democracia a propor no seu “Projecto de Lei de Revisão Constitucional do Movimento para a Democracia (2ª Revisão Ordinária)”, Grupo Parlamentar do MPD, 2005, p. 8, a possibilidade de privação de nacionalidade ou das prerrogativas da cidadania em caso de condenação por crimes contra a humanidade, que reputo ser uma medida muito mais gravosa do que a extradição de cabo-verdiano. 111 Diga-se, ademais, que em relação o outro argumento utilizado, o direito a não ser afastado do juiz natural, vertido para o artigo 34.8 da Constituição da República de Cabo Verde (“Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”), não é convincente, pois juiz natural não significa juiz nacional. É mais lógico até que o juiz natural seja precisamente aquele do local do crime e não o do local de refúgio. Ver também Martin Manton, “Extradition of Nationals”, pp. 22-23; Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, pp. 89-90, e na doutrina de expressão portuguesa, José Calvet de Magalhães, “Extradição” In: José Carlos Fernandes (dir.), Dicionário Jurídico da 108

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apelar de sentença desfavorável 112, e condições de cumprimento adequado

da

pena,

que

favoreçam,

quando

possível,

a

sua

ressocialização 113- 114. O Estado do nacional fá-lo-á, com certeza, quando, em abstracto, tenha garantias de que um Estado ou um grupo de Estados partilham dos mesmos valores jurídico-políticos e criminais, o que pode acontecer tanto numa perspectiva de integração formal, como o tem demonstrado a experiência do Espaço de Segurança, Cooperação e Justiça da União Europeia 115 e o Mandado de Detenção Europeu 116, como deverá acontecer Administração Pública, Lisboa, s.e., 1991, v. IV, p. 316, e Gilda Meyer Russomano, A Extradição no Direito Internacional e no Direito Brasileiro, p. 106 (“A verdade é que o juiz natural dos indivíduos acusados de factos delituosos não é o juiz de sua pátria e, sim, o juiz do lugar onde foi cometido o delito”). 112 Ver sobre os direitos fundamentais em processos de extradição, John Dugard & Christine Van den Wyngaert, “Reconciling Extradition with Human Rights”, pp. 187212, e também Danai Azaria, “Code of Minimum Standards of Protection of Individuals Involved in Transnational Proceedings”, Strasbourg, Council of Europe, 16 de Setembro de 2005 (disponível em www.coe.int/tcj); em relação a um aspecto particular do direito interno cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, “Prazos de “detenção” ou “prisão” para extradição no direito cabo-verdiano: um rápido olhar”, Boletim da Ordem dos Advogados de Cabo Verde, n. 5, 2005, pp. 14-22. 113 Por exemplo, por motivos óbvios, não existiria qualquer dever de extraditar, quando, em concreto, existirem dúvidas se esses fins da aplicação da sanção penal pudessem estar irremediavelmente perdidos pelo mau tratamento dado ao nacional durante a execução da pena (v. “Cabo-verdianas vítimas de sevícias nas cadeias de São Paulo. Consulado de Cabo Verde demite-se de intervir pelas reclusas”, Liberal Online, 16 de Outubro de 2008, Disponível na página web http://liberal.sapo.cv/index.asp?idEdicao=64&id=20903&idSeccao=542&Action=no ticia, acesso a 28 de Outubro de 2008). 114 Recomenda-se, no mesmo sentido, Martin Manton, “Extradition of Nationals”, p. 24, que se pronuncia no seguinte sentido: “Um criminoso não tem qualquer direito de protecção do seu próprio Estado relativamente às consequências dos seus actos ilícitos. A única protecção que padrões comuns de justiça lhe estendem é de um julgamento justo e imparcial na jurisdição onde cometeu o crime”. 115 Em geral, e cobrindo diversas fases e diversas valências do sistema, ver Euclides Dâmaso Simões, “O Espaço Judiciário Europeu (Órgãos e instrumentos para a sua construção)”, Revista do Ministério Público, a. 23, n. 92, 2002, pp. 81-91; Nuno Piçarra, “O espaço de liberdade, segurança e justiça após a assinatura do Tratado que Estabelece uma Constituição para a Europa”, Polícia e Justiça, III Série, n. 4, 2004, pp. 17-64; Nuno Piçarra, “A União Europeia enquanto Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça: alguns desenvolvimentos recentes” In: Jorge Bacelar Gouveia & Rui Pereira (orgs.), Estudos de Direito e Segurança, Coimbra, Almedina, 2007, pp.

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numa perspectiva mais ampla e mesmo fora de um quadro comunitário 117 com qualquer Estado que partilhe dos mesmos valores democráticos e liberais que os nossos 118. 10. Assim, se interpretarmos o preceito constitucional que proíbe a extradição de nacional cabo-verdiano como mera garantia reforçada – no sentido de que parte de uma presunção de tratamento diferenciado e prejudicial – que o Estado dá ao seu cidadão, de se diligenciar no sentido de que ele receba um tratamento processual adequado, as razões que o

317-336, dizendo que o “grande impulso para o avanço da União Europeia tem vindo do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça” (p. 321), não obstante os problemas e disfunções que lhe aponta; Nuno Piçarra, “As garantias de cumprimento das obrigações dos Estados-Membros no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. A Avaliação Mútua” In: AAVV, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 707-729. 116 Por todos, cf. Anabela Miranda Rodrigues, “O Mandado de Detenção Europeu – Na via da Construção de um Sistema Penal Europeu: um Passo ou um Salto?”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, n. 13, 2003, pp. 27-63, com uma perspectiva parcialmente crítica; Jorge Costa, “O mandado de detenção europeu. Emissão e execução segundo a lei nacional”, Polícia e Justiça, III Série, n. 4, 2004, pp. 231-254; Michael Plachta, “European Arrest Warrant: Revolution in Extradition?”, pp. 178-194; Manuel Guedes Valente, Do Mandado de Detenção Europeu, Coimbra, Almedina, 2006. 117 Por exemplo, já é antiga a prática da extradição de nacional entre países que partilham valores e culturas similares como os Estados nórdicos, conforme desenvolve e assevera Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 100: “os factores mais importantes que contribuem para uma cooperação tranquila nessa região é a confiança mútua no, e o respeito pela, ordem social e jurídica e no sistema de justiça criminal nos outros Estados Nórdicos”. 118 O próprio Supremo Tribunal de Justiça, pronunciou-se, neste sentido no Caso dos Ucranianos – que não tem a ver, evidentemente, com a extradição de nacional –, quando sustentou que “o Reino da Espanha [o requerente], é notória e reconhecidamente um Estado de Direito Democrático, sujeito a um apertado escrutínio da comunidade internacional, e de modo muito particular de instituições da União Europeia a que se encontra vinculado, facto que constitui uma garantia suplementar da rigorosa observância não só do seu direito interno, mas também de compromissos internacionais assumidos, nomeadamente das garantias apresentadas ao Estado de Cabo Verde para conseguir a extradição de pessoas que pretende submeter à sua jurisdição” (v. “Acórdão nº 31/2004”, Rel. Maria de Fátima Coronel; Adj. Benfeito Mosso Ramos e Raul Querido Varela, 12 de Abril de 2004, p. 10).

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justificam são inexistentes 119. Neste sentido, de lege ferenda, não nos pode repugnar que a proibição da extradição de nacional deixe de estar presente no nosso ordenamento jurídico-constitucional de forma tão categórica

como

está

actualmente.

Consequentemente,

não

me

escandalizaria a existência de excepções a esta norma constitucional, ou mesmo a sua abolição total da Carta Magna da República de Cabo Verde; trata-se de um direito fundamental (meramente formal, diga-se) que francamente não faz sentido nenhum, manter como dogma absoluto nos dias de hoje. 4.3. O último bastião: o argumento da cláusula dos limites materiais à revisão constitucional 11. Dizer que se deve efectuar a mudança de modelo de extradição de nacional, não significa, no entanto, que juridicamente seja permissível. A constituição de uma comunidade política, implica que o cidadão, enquanto co-proprietário do Estado, tenha direitos e deveres, entre os quais o de respeitar o que foi pactuado e vertido para a sua Lei Fundamental, inclusivamente de não alterar por via da revisão a estrutura básica da Constituição; vale dizer: por vontade do poder constituinte, mesmo que uma determinada cláusula se torne contrária aos interesses de parte considerável da comunidade política nacional – portanto incómoda para alguns –, nem mesmo maiorias qualificadas a

Aliás, como Michael Plachta, “(Non) Extradition of Nationals: a Neverending Story?”, p. 88, sustenta – recorrendo à conclusão do Harvard Research in International Law, segundo a qual, se não devemos confiar na administração da justiça dos outros países, então não deveria existir extradição de qualquer espécie, fora de um contexto de arraigado nacionalismo –, é difícil para um Estado de Direito Democrático justificar a extradição do estrangeiro se não confia que, em abstracto, ele receberia um tratamento processual adequado no país que requer a sua extradição.

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Aspectos Polémicos da Extradição

pode alterar 120. São os limites materiais à revisão constitucional, também chamados por alguns de cláusulas pétreas 121. O problema que nos toca é o de saber se o artigo 285.2 da Constituição da República 122, que afasta do poder de revisão a restrição aos direitos, liberdades e garantias, permitiria qualquer limitação ao preceito constitucional que proíbe a extradição de nacional 123. Existem duas respostas para esta questão: se interpretarmos o supracitado dispositivo como protegendo do alcance da revisão constitucional qualquer norma inserida no título sobre direitos, liberdades e garantias, uma visão meramente formal dos direitos 120 A este respeito, devemos deixar claramente sacramentada a rejeição da ideia de que uma geração não tem legitimidade para vincular as seguintes aos seus princípios e valores fundamentais, como argumento para tornar completamente vazia a cláusula dos limites materiais à revisão e poder-se alterar qualquer dispositivo por ela protegido. A legitimidade existe e funda-se na vontade daqueles que elaboraram a Lei Magna, e que, destarte, inauguram uma determinada ordem constitucional. E, enquanto esta estiver em vigor, as condições para a sua alteração impostas por eles, não só são legalmente válidas, como são moralmente legítimas, não podendo ser alteradas por quem supostamente tem um mero poder delegado e não é fonte do seu próprio poder, o legislador da revisão constitucional. Chamamos atenção para que diz J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7. ed., Coimbra, Almedina, 2003, p. 1060: “a superioridade do poder constituinte não pode terminar na ideia de constituição ideal, alheia ao seu plebiscito quotidiano, à alteração dos mecanismos constitucionais derivados das mutações políticas e sociais e indiferente ao próprio sismógrafo das revoluções. O que o legislador constituinte pode, porém, exigir do poder de revisão, é a solidariedade entre os princípios fundamentais da constituição e as ideias constitucionais positivadas pelo poder de revisão”. 121 Expressão mais utilizada no Brasil, mas que simboliza de modo adequado a ideia de imutabilidade de determinadas normas consagradas por uma lei fundamental. Ver por todos, Carlos Ayres Brito, “As cláusulas pétreas e sua função de revelar e garantir a identidade da Constituição” In: Cármen Lúcia Antunes Rocha (coorda.), Perspectivas do Direito Público (Estudos em Homenagem a Miguel Seabra Fagundes), Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pp. 175-195; e Ives Gandra Martins, “Cláusulas Pétreas” In: Jorge Miranda (org.), Perspectivas constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, v. I, pp. 145-166. 122 Curiosamente, a cláusula dos limites materiais, também não foi discutida em plenário aquando da aprovação da Constituição de 1992 (vide: Assembleia Nacional Popular, Acta das Sessões: Apresentação e Debate da Constituição da República, p. 752). 123 De acordo com o parágrafo 2º do artigo 285 da Constituição da República de Cabo Verde, “as leis de revisão não podem, ainda, restringir ou limitar os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição”.

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fundamentais e dos limites materiais, o problema está solucionado. Por mais que quiséssemos e arguíssemos que a proibição absoluta da extradição de nacional é obsoleta, ultrapassada, e um direito fundamental que não se consegue justificar racionalmente, ter-se-ia que respeitar tais limites constitucionais 124. No entanto, perguntar-se-ia: terá sido a vontade do legislador constituinte retirar da consideração do poder de revisão, mesmo numa constituição hiper-rígida como a nossa, todas as cláusulas relativas a direitos, liberdades e garantias, mesmo nas suas mais ínfimas minúcias? Será uma interpretação razoável nos dias de hoje, considerar todo o pacote, por vezes importados acriticamente, de direitos, liberdades e garantias, alguns dos quais nem sequer gozam de um estatuto de conexão necessária com o Estado de Direito Democrático então criado, do poder

A menos que resolvêssemos seguir a doutrina da dupla-revisão, segundo a qual, e dependendo da sua variante, como a cláusula dos limites materiais não impede a sua própria revisão, seria possível fazer uma revisão dos limites materiais em duas etapas: primeiro, revendo a própria cláusula, que não se impermeabiliza a si própria de alterações, e modificando a cláusula de limites; segundo, fazendo, já sem os limites materiais, a revisão de uma norma que deixaria de estar protegida de uma revisão constitucional. Bem, no mínimo, a doutrina da dupla-revisão é, utilizando o magistério de J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1068, “sério indício de fraude à constituição”, não podendo estar de acordo com o constitucionalista de Lisboa, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, 3. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1996, t. II (Constituição e Inconstitucionalidade), p. 197 e ss, que justifica a doutrina da dupla-revisão a partir das seguintes considerações: “as cláusulas de limites realçam de novo a ideia do Direito, a estrutura fundamental, aquilo que identifica a Constituição em sentido material subjacente à Constituição em sentido formal. Mas não podem impedir futuras alterações que atinjam tais limites, porque o poder constituinte é, por definição, soberano. O que obrigam é a dois processos, em tempos sucessivos, um para eliminar o limite da revisão e o outro para substituir a norma constitucional de fundo garantida através dele (...)”; ver a propósito desta questão o interessante ensaio de Luís Virgílio Afonso da Silva, “Ulisses, as sereias e o poder constituinte derivado. Sobre a inconstitucionalidade da dupla revisão e da alteração no quorum de 3/5 para aprovação de emendas constitucionais”, Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 226, 2001, pp. 11-32, e, antes dele, o clássico brasileiro da matéria Nélson de Souza Sampaio, “Os Limites da Reforma Constitucional” In: O Poder de Reforma Constitucional, 3. ed. (1ª edição: 1954), Uadi Lamêgo Bulos (revisão e actualização), Belo Horizonte, Nova Alvorada, 1995, pp. 127-128.

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de revisão, ou terá querido meramente salvaguardar o regime de direitos, liberdades e garantias naquilo que ele tem de essencial e co-natural ao modelo de organização de comunidade política que os cabo-verdianos escolheram dar a si próprios? Obviamente, defendo a segunda solução, pois parece-nos que não se pode fazer uma interpretação tão absolutista da cláusula! 125 São os princípios e o regime que estão a ser salvaguardados, não as cláusulas particulares. 126 Neste sentido, quaisquer limitações por via de revisão, de um preceito constitucional marginal no seio dos direitos fundamentais, não deveria ser totalmente inaceitável. É o que ocorre com a cláusula que proíbe a extradição de nacional cabo-verdiano. Não se tratando de um direito fundamental essencial, e estando neste momento histórico, claramente datado, podendo o seu âmbito de protecção ser garantido por outras vias, nomeadamente pela exigência de garantia de um processo justo e equitativo ao cidadão nacional, sempre que por hipótese, ele seja extraditado para responder a processo-crime ou garantir-lhe uma situação de cumprimento de pena favorável. Não seria, todavia difícil aceitar que uma lei de revisão constitucional limitasse a cláusula da

A respeito da interpretação das cláusulas constitucionais de limites à reforma da Constituição, recomenda-se o soberbo estudo de Guilherme Soares, Os direitos, os juízes, o povo: a cláusula pétrea dos direitos e das garantias individuais e o controlo judicial de constitucionalidade de emendas à Constituição de 1988, Tese de Doutoramento, Florianópolis, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, 2006, pp. 294-324. 126 Lembra J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1069, que “os limites materiais devem considerar-se como garantias de determinados princípios, independentemente da sua concreta consagração constitucional, e não como garantias de cada princípio na formulação concreta que tem na Constituição. Por outro lado, a positivação constitucional dos limites de revisão não elimina a necessidade de selectividade dos princípios, pois bem pode acontecer que alguns destes sejam limites genuínos respeitantes a autoidentificação material da esfera jurídico-constitucional e outros sejam limites conjunturalmente justificados”. Ora bem, se o autorizado mestre nos permite acrescentar, no caso da cláusula da nãoextradição de nacional, além de não se a poder classificar como princípio, há muito deixou de ser justificada conjunturalmente. 125

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proibição da extradição de nacional. “Fossilizar” por completo um conjunto extenso de cláusulas constitucionais, não obstante ser a sua pretensão a defesa da liberdade 127, não pode ter sido a vontade do legislador constituinte num Estado de Direito, que o é plenamente, mas igualmente um Estado Democrático, onde se o pressuposto fundamental é proteger minorias da vontade opressiva das maiorias, não deixa de ser uma ordem política que se assenta igualmente na vontade livre e soberana do povo 128. Por conseguinte, deve-se ponderar e considerar esses dois pilares essenciais – que, não obstante, podem apresentar-se de forma conflitual –, da Constituição Cabo-verdiana, nomeadamente no tocante às cláusulas abrangentes e elásticas como a do artigo 285.2, resultando dessa ponderação abstracta que aqueles direitos, liberdades e garantias, realmente necessários à protecção da esfera de liberdade individual é que estão verdadeiramente a resguardo de qualquer revisão constitucional. 12. Esta medida pode ser importante para minimizar um receio francamente pertinente e legítimo para qualquer cidadão que se preocupe com o Estado de Direito Democrático: se se começar a limitar os direitos, liberdades e garantias, mormente os que não seriam essenciais, o resultado a prazo será a extinção do próprio regime dos direitos fundamentais e a abolição inclusivamente das cláusulas A expressão é do jurista brasileiro Luís Virgílio Afonso da Silva, “A Phossilised Constitution?”, Ratio Juris, v. 17, n. 4, 2004, pp. 454-473. 128 Sobre esta questão, cf. Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, pp. 3642; Miguel Nogueira Brito, A Constituição Constituinte. Ensaio sobre o Poder de Revisão na Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, e particularmente Jürgen Habermas, Direito e democracia. Entre facticidade e validade, Tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, v. I, Cap. III (I), “os direitos humanos e a soberania do povo formam as ideias em cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno” (p. 133), e Delamar Dutra, Manual de Filosofia do Direito, Caxias do Sul, Educs, 2008, pp. 147-167. 127

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Aspectos Polémicos da Extradição

essenciais que se dizem invioláveis 129. Tal como será, evidentemente, o facto de necessariamente existirem controlos prévios à revisão da Constituição, incluindo judiciais, onde seriam controlados precisamente a essencialidade desses direitos fundamentais no quadro de qualquer limitação que se lhes pretenda fazer 130. Finalmente, uma revisão da constituição que incida sobre a actual regra, que proíbe a extradição de nacional não significa que não possa existir alguma protecção constitucional

a

nacionais

alvo

de

processos

de

extradição,

nomeadamente, limitando-se as hipóteses e a circunstância em que isso poderá ocorrer, bem como a qualidade da entidade estatal que a pode requerer. E, mesmo nos casos limitados em que se a pode em abstracto permitir,

ainda

assim

tratar-se-ia

de

um

acto

submetido

à

discricionariedade do Estado de Cabo Verde, que, caso a caso, decidiria sobre a pertinência da extradição ou se, em caso concreto, invocaria o seu direito/dever de julgar o cabo-verdiano em território nacional, ressalvas que deverão estar presentes numa nova Lei de Cooperação Judiciária em Matéria Penal ou de Extradição e, acima de tudo, de todos os tratados de extradição que Cabo Verde concluir doravante.

A título comparativo vide Anabela Miranda Rodrigues, “O Mandado de Detenção Europeu – Na via da Construção de um Sistema Penal Europeu: um Passo ou um Salto?”, p. 55 e ss. 130 Nas palavras de J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1074, “a não observância, pela lei de revisão, dos limites estabelecidos na constituição, coloca-nos perante o problema da desconformidade constitucional das leis de revisão, problema esse que não é substancialmente diferente do problema da inconstitucionalidade das leis ordinárias, dado que o poder de revisão é um poder constituído e não uma novação do poder constituinte. (…). Dada a existência de limites formais e materiais, as leis de revisão que não respeitarem esses limites serão respectivamente inconstitucionais sob o ponto de vista formal e material. Assim acontecerá por exemplo nos casos de (…) b) leis de revisão constitucional que violam os limites materiais (…)”. 129

121

José Pina Delgado

V. À Guisa de Conclusão: Por que devemos estar abertos a rever a cláusula que proíbe a extradição de nacionais? 13. Tentei defender que, apesar de muitos dos argumentos utilizados pelos defensores da extradição de nacional, nomeadamente os que sustentam as suas posições na fragilidade do Estado de Cabo Verde, para fazer face a determinadas ameaças, na necessidade de permitir a adesão ao Tribunal Penal Internacional, ou como forma de evitar que a República colabore com a impunidade de criminosos, não se revelarem muito convincentes para justificar a alteração da cláusula constitucional que proíbe a extradição de nacional, existem motivos que a podem fundamentar. Refiro-me, concretamente, à necessidade de se reprimir o crime, precisamente no lugar onde ele é cometido, não só em razão da facilidade de acesso a provas e de processo penal em geral, mas igualmente porque é lá onde a norma é efectivamente violada, que se deve realizar o julgamento, a menos que exista forte probabilidade de, inclusivamente em decorrência de nacionalidade, os direitos do suspeito, do arguido ou do condenado não sejam respeitados ou tal desiderato por motivos exógenos não seja possível. De facto, desde que sejam respeitados, não faz mais sentido, no Século XXI, quando o vínculo de um indivíduo a uma nação é mais de aceitação institucional (na senda daquilo que Habermas denomina “patriotismo constitucional” 131) do que de sangue, e que as relações entre 131 Por exemplo, cf. as ilustrativas observações do filósofo político alemão no Facticidade e Validade: “A existência de sociedades multiculturais, tais como a Suíça e os Estados Unidos, revela que uma cultura política, construída sobre princípios constitucionais, não depende necessariamente de uma origem étnica, linguística e cultural comum a todos os cidadãos. Uma cultura política liberal forma apenas o denominador comum de um patriotismo constitucional capaz de agudizar, não somente o sentido para a variedade, como também a integridade das diferentes e coexistentes formas de vida de uma sociedade multicultural. Numa futura República Federal dos Estados Europeus, os mesmos princípios jurídicos terão que ser interpretados nas perspectivas de tradições e de histórias nacionais diferentes. A própria tradição tem que ser assimilada numa visão relativizada pelas perspectivas

122

Aspectos Polémicos da Extradição

Estados que partilham os mesmos valores político-públicos deixaram de estar submetidos a desconfiança mútua, tratar a extradição de nacional como um dogma inquestionável e uma indignidade para a pátria. Por outro lado, não será ainda um instituto totalmente anacrónico, na medida em que nem todas as relações bilaterais, dariam ensejo àquela fidúcia máxima, que permite ao Estado transferir o seu cidadão para efeitos de julgamento e execução da pena em território estrangeiro, sem qualquer receio de tratamento discriminatório. Neste sentido, a proibição de nacional não é uma relíquia do passado em todas as situações. Tratase, no entanto, de possibilidade razoável que pode ser seguida, nas relações entre duas nações que partilham valores estruturantes e que, por isso, têm confiança absoluta de que os seus nacionais serão tratados de modo imparcial em qualquer processo judicial ou de execução de pena, que seja realizado em território do seu congénere. Não há que ter medo da extradição de nacional; mesmo que essa possibilidade exista, Cabo Verde pode desenhar um regime que salvaguarde, caso a caso, a possibilidade de negar extradição quando, em concreto, ela não se mostrar adequada, inserindo-o numa cláusula constitucional de protecção mínima, em dispositivos de tratados de extradição ou numa lei de cooperação judiciária em matéria penal ou extradição interna.

dos outros, para que possa ser introduzida numa cultura constitucional transnacional da Europa Ocidental. E uma ancoragem particularista deste tipo não diminuiria, num só ponto, o sentido universalista dos direitos humanos e da soberania popular. Portanto, não há o que mudar: não é necessário amarrar a cidadania democrática à identidade nacional de um povo; porém, prescindindo da variedade de diferentes formas de vida culturais, ela exige a socialização de todos os cidadãos numa cultura política comum” (Jürgen Habermas, Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade, Tradução de Flávio Beno Siebeneichler, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1997, p. 289) (Anexo: “Cidadania e Identidade Nacional”).

123

EXTRADIÇÃO DE CIDADÃOS CABO-VERDIANOS NA CONSTITUIÇÃO DE CABO VERDE: Como Evitar que a Disposição Constitucional da NãoExtradição de Nacionais não se Transforme numa Inaceitável Fuga à Justiça? José Luís Jesus ∗

Sumário: I. Introdução; II. Extradição de Nacional na Constituição; III. A Extradição no Direito Internacional; IV. Extradição ou Impunidade; V. Tipos de Eventuais Pedidos de Extradição ou de Entrega de Pessoas a Jurisdições Não-Nacionais; A) Pedidos do Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Roma); B) Pedidos de entrega de cidadão nacional por crime que cai na alçada de tribunais internacionais e regionais ou extradição para países terceiros; C) Pedidos de tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas); D) Pedidos do Tribunal Especial de Serra Leoa ou dos tribunais regionais ou internacionais que venham a ser criados; E) Pedidos de extradição de nacionais para país terceiro; F) Pedidos de extradição ou entrega a tribunais criados ou reconhecidos nos tratados multilaterais de que Cabo Verde é parte; VI. Que Solução; 6.1. Da opção da interpretação; a) Argumento da diferença conceptual entre “extradição” e “entrega”; b) Compatibilidade do Tratado de Roma com as disposições da Constituição que conferem imunidade ao Chefe de Estado, membros do Parlamento e outros dignitários do Estado; c) Compatibilidade do Tratado de Roma com o dispositivo constitucional que estatui que em nenhum caso será aplicada a prisão perpétua; 6.2. Da opção de Emenda Constitucional; a) Considerações gerair; b) Âmbito da emenda; c) Conteúdi da emenda; d) Vantagens de emenda; e) Alcance da emenda. ∗

Juiz do Tribunal Internacional do Direito do Mar.

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José Luís Jesus

I. Introdução Neste apontamento, não pretendemos avaliar a questão da extradição de pessoas em geral, à luz do direito cabo-verdiano, mas tãosomente analisar a compatibilidade ou não da nossa Constituição com a extradição para outros países (ou a entrega a tribunais não-nacionais) de cidadãos cabo-verdianos. Por outro lado, não pretendemos fazer aqui uma análise exaustiva do tema. Para tanto, precisaríamos de mais tempo para uma melhor e mais profunda elaboração das ideias. Não obstante, quisemos, por esta via – e sem pretender desenvolver um trabalho de pesquisa, por dificuldades de acesso a fontes neste momento – dar uma achega ao debate político e jurídico que parece estar a animar-se à volta desta questão. O debate sobre a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais a jurisdições estrangeiras ou internacionais não é apenas uma questão teórica. As estatísticas mostram que os crimes passíveis de extradição tendem a aumentar, a nível global, devido à facilidade, hoje existente, nos transportes, à relativa facilidade na transposição de fronteiras, assim como à globalização e proliferação da actividade criminosa. Crimes contra a humanidade, o genocídio, os crimes de guerra, o tráfico de estupefacientes, de pessoas e de armas, de entre outros, são cada vez mais frequentes. Não admira, pois, que a facilidade com que se move neste mundo global permite que determinadas pessoas, com relativa facilidade, procurem fugir à justiça, muitas vezes, refugiando-se num país em que a lei não permite a sua eventual extradição ou entrega.

126

Aspectos Polémicos da Extradição

No caso do nosso país, não se pode dizer com acerto que a possibilidade de pedidos de extradição de cidadãos cabo-verdianos seja remota, pois a numerosa diáspora cabo-verdiana, espalhada por vários países, aumenta as possibilidades reais de nacionais poderem vir a cometer crimes no estrangeiro, refugiando-se de seguida em Cabo Verde, protegidos pela disposição constitucional da não-extradição de nacionais. Tal situação, a acontecer, colocaria Cabo Verde numa situação moral e politicamente difícil, além das repercussões negativas que poderia ter, nomeadamente, no plano da cooperação para o desenvolvimento do país. II. Extradição de Nacional na Constituição A Constituição de Cabo Verde estabelece que nenhum cidadão cabo-verdiano pode ser extraditado do país 1. Cabo Verde ao negar, via Constituição, a extradição de nacionais não estará em má companhia pois que muitos países, dos quatros cantos do mundo, democráticos e não-democráticos, possuem disposição similar, quer na sua Lei Fundamental, quer na sua lei ordinária, quer ainda nos tratados de extradição estabelecidos com outros países 2. A disposição do número 1 do artigo 37 da Constituição pretende ser a expressão de um dos atributos de soberania do Estado de Cabo Verde e da protecção que deve aos seus nacionais, principalmente quando estes se encontram no seu próprio território, contra eventuais arbitrariedades de jurisdições estrangeiras. No entanto, a citada disposição constitucional pode colocar o país numa situação delicada se não for alterada ou, como alternativa, se o país não adoptar mecanismos legais e outros que o habilitem a proceder ao

Ver artigo 37, número 1. É o caso, nomeadamente, da França, da Alemanha e de outros países europeus, alguns países africanos e latino-americanos.

1

2

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José Luís Jesus

julgamento efectivo, no seu território, dos cidadãos cabo-verdianos acusados de comissão de crimes fora do país. A situação requer uma avaliação cuidada, tanto por parte dos nossos políticos que, necessariamente, não quererão ver o país apodado de refúgio de criminosos, como dos juristas que, por dever de ofício, devem procurar ajudar a encontrar uma possível saída técnica para a situação. No caso específico de Cabo Verde, não haverá grandes dificuldades na extradição para o país requerente de uma pessoa de nacionalidade estrangeira, acusada de prática de crimes no estrangeiro, ressalvadas as condições e os requisitos impostos pela lei ou pelos tratados internacionais aplicáveis. O problema maior reside com os nacionais cabo-verdianos, pois que, como se disse acima, a nossa Constituição elimina a possibilidade da sua extradição (e diríamos também da sua entrega), quaisquer que sejam as circunstâncias. Qualquer pedido de extradição de um nacional esbarra com esta limitação constitucional. III. A Extradição no Direito Internacional Desde logo, há que determinar se a disposição constitucional da não-extradição do nacional estará em conformidade ou não com o direito internacional. A pergunta concreta que importa responder a este respeito é a seguinte: Haverá uma obrigação de Cabo Verde, que releva do direito internacional geral, de extraditar pessoas (seus nacionais ou não) a pedido de outros países ou jurisdições estrangeiras ou internacionais, por alegada comissão de crime? A percepção generalizada e a prática internacional é a de que os Estados não têm qualquer obrigação jurídica internacional de extraditar pessoas (mesmo tratando-se de não-nacionais) do seu território por alegada comissão de crimes no estrangeiro, a menos que assumam tal 128

Aspectos Polémicos da Extradição

obrigação através de tratados bilaterais ou multilaterais. 3 Parece, assim consensual, o entendimento segundo o qual o direito internacional geral, no seu desenvolvimento actual, não impõe qualquer obrigação aos Estados a esse respeito. Por isso é que os Estados procuram obrigar-se através de cláusulas de extradição inseridas em tratados ou através da conclusão de tratados de extradição 4. Sublinhe-se, no entanto, o caso específico das decisões do Conselho de Segurança quando age nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, tais sejam os casos dos Tribunais Ad Hoc da Jugoslávia e do Ruanda, que abordaremos mais adiante. 5 Pode-se afirmar por isso, à laia de tese geral, que não existe no direito internacional geral qualquer obrigação de Cabo Verde extraditar ou entregar seus nacionais (ou, bem entendido, qualquer pessoa, mesmo que esta detenha a nacionalidade estrangeira). 6 Haverá, no entanto (para além das situações específicas criadas pelo Conselho de Segurança, atrás mencionadas), casos em que Cabo Verde possa ter assumido a obrigação jurídica de extraditar ou de entregar pessoas (incluindo nacionais caboverdianos), através do direito internacional convencional, pela sua vinculação voluntária a tratados bilaterais ou multilaterais. Tal é o caso da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis ou Degradantes (em vigor em relação a Cabo Verde

Neste mesmo sentido ver Anton Katz, “The Incorporation of Extradition Agreements”, South African Journal of Criminal Justice, v. 16, n. 3, 2003, p. 314. 4 Embora alguns tratados de extradição sejam formulados de maneira a não criar uma obrigação jurídica de extraditar. 5 O caso do Tribunal Especial da Serra Leoa é diferente, pois não é o produto de uma decisão do Conselho de Segurança, agindo com base nos seus poderes especiais no quadro do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. 6 Os casos da entrega de pessoas (nacionais ou não) imposta pelos Estatutos dos Tribunais Ad Hoc da Jugoslávia e do Ruanda, aprovados pelo Conselho de Segurança no exercício dos seus poderes no quadro do Capítulo VII da Carta parece configurarem excepções importantes. 3

129

José Luís Jesus

desde 4 de Julho de 1992), cujo artigo 7, número 2 consagra o princípio de extraditar ou julgar. De igual modo, o Protocolo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda, Prostituição ou Pornografia de Criança, em que Cabo Verde é parte desde 10 de Maio de 2002, cujo artigo 4, número 3, também consagra o princípio de extraditar ou julgar 7. Nestes casos, não obstante as obrigações internacionais assumidas por Cabo Verde pela sua vinculação a esses tratados, poder-se-á, igualmente, levantar a questão da sua compatibilidade com a Constituição. Esta questão será discutida mais adiante. IV. Extradição ou Impunidade Assim, se o direito internacional geral, por um lado 8, não obriga o Estado de Cabo Verde a extraditar os seus nacionais (ou estrangeiros), nem, por outro lado, a nossa Constituição permite a extradição de nacionais, como então resolver a situação de um nacional que tenha cometido um crime no estrangeiro e se tenha refugiado posteriormente em Cabo Verde para fugir à justiça? Ficará o referido nacional sem ser julgado e punido por eventual crime cometido? Pensamos que a resposta a esta pergunta reside no recurso a uma das três seguintes possibilidades: a) Extraditar ou entregar o nacional acusado de comissão de crime, quando requerido por um Estado ou por um tribunal internacional que tenha jurisdição sobre o crime, apesar das disposições do número 1 do artigo 37 e do artigo 29, todos da Constituição;

Entre os demais tratados em que Cabo Verde é parte e que consagram também o princípio de extraditar ou julgar, contam-se, designadamente, a Convenção da OUA sobre a Prevenção e Combate ao Terrorismo de 1999, (ver artigo 14/2) e a Convenção da Eliminação de Mercenários em África (ver artigo 9/2). 8 Na ausência de tratados de extradição em que o país seja parte. 7

130

Aspectos Polémicos da Extradição

b) Proceder ao julgamento do presumível criminoso nos tribunais judiciais de Cabo Verde; c) Introduzir uma emenda à Constituição, reconhecendo a jurisdição de tribunais internacionais e de países terceiros em certas circunstâncias, de modo a obviar, excepcionalmente, a extradição e a entrega de nacionais, em derrogação da disposição do número 1 do artigo 37 já referido. O texto da Constituição de Cabo Verde, tal como está redigido actualmente, não nos parece garantir uma interpretação clara e inequivocamente favorável à extradição ou entrega de nacional, pois o juiz chamado a decidir a questão da extradição ou entrega do nacional teria, no nosso entender, grandes dificuldades em assumir, com base no texto constitucional actual, uma decisão – certamente grave e de consequências profundas – sem que tal decisão resultasse claramente travejada e legitimada no direito aplicável. Aqueles que, pela prática profissional, estão habituados a aplicar o direito a casos concretos, sabem que há uma grande distância entre uma interpretação abstracta e académica do direito (que é aquela que faz o jurista académico) e uma interpretação e aplicação do direito a casos concretos pelos juízes. A desenvoltura da argumentação ou a facilidade teórica com que muitas vezes a interpretação académica do direito é feita nem sempre é via mais seguida pelo aplicador do direito a casos concretos, chamado a tomar decisões que, muitas vezes, têm enormes repercussões na vida das pessoas e instituições. Assim, se não se alterar o quadro jurídico da extradição de nacional existente no país, nalgumas circunstâncias poder-se-á enfrentar o problema da impunidade de cidadãos cabo-verdianos por actos criminosos perpetrados no estrangeiro, por dificuldades que o aplicador

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José Luís Jesus

do direito cabo-verdiano poderá ter em decidir da extradição ou entrega com base no quadro jurídico existente. Apesar de não haver no direito internacional geral, como se disse atrás, uma obrigação jurídica de Cabo Verde extraditar 9 (ou entregar) os seus cidadãos (ou mesmo estrangeiros) haverá sempre uma obrigação moral do país não ser visto como refúgio de criminosos que pretendem fugir à justiça. Acresce que, como ficou sublinhado anteriormente, o país poderia vir a ser vítima de uma opinião pública desfavorável e a sofrer consequências negativas no seu esforço de cooperação para o desenvolvimento, por recusa, ainda que com base na Constituição, de extradição de nacionais acusados de perpetrar crimes no estrangeiro, ou ainda porque como medida alternativa à não-extradição ou entrega, os nacionais não foram demandados criminalmente no sistema judicial nacional. É cada vez mais aceite na comunidade dos Estados o princípio de que o Estado em cujo território se encontra uma pessoa acusada de ter cometido crimes graves 10 (a tendência actual é de se aplicar este princípio aos crimes internacionais e não aos crimes comuns 11) fora do seu território, deve extraditá-la ou julgá-la. Este princípio é a base da prática

Embora Cabo Verde, em casos pontuais, tenha assumido a obrigação de “extraditar ou julgar”, através da sua participação em alguns tratados multilaterais. Segundo os princípios constitucionais de “nullum crimen sine lege” e “nulla poena sine lege”, corporizados nos números 2 e 5 do artigo 30 da, Constituição de Cabo Verde, os tribunais de Cabo Verde não têm competência para julgar qualquer crime que não esteja como tal previsto na legislação penal do país ao tempo da sua comissão, nem impor uma pena que não tenha sido prevista na mesma legislação penal. 10 Exemplos disso é o Tratado de Roma, a Convenção de Argel, a Convenção sobre a Tomada de Reféns no Alto Mar, a Convenção da Tortura, o Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança, a Convenção para a Protecção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado e muitos outros instrumentos jurídicos multilaterais, quer de alcance global, quer de âmbito regional. 11 Ver Anton Katz, “The Incorporation of Extradition Agreements”, p. 314. 9

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Aspectos Polémicos da Extradição

generalizada, seguida hoje em dia em quase todos os tratados multilaterais relevantes. Havendo condições objectivas para o nacional ser julgado no país, a disposição constitucional da não-extradição de nacionais não levantaria muitas dificuldades. Porém, poderia haver, muito provavelmente, situações em que, pela natureza do crime, pelas circunstâncias da sua comissão, ou pela inexistência do tipo penal ou ainda pela nãocoincidência do tipo penal 12 vigente no direito cabo-verdiano com o existente no país requerente, o Estado de Cabo Verde não estivesse em condições técnicas ou materiais de proceder ao julgamento do seu nacional (objecto de pedido de extradição ou de entrega) no seu sistema judicial. Nestes casos a única maneira de se garantir o seu julgamento seria através da sua extradição ou entrega. Caso contrário ficar-se-ia pela impunidade do acusado. V. Tipos de Eventuais Pedidos de Extradição ou Entrega de Pessoas a Jurisdições Não-Nacionais As situações concretas de pedidos de extradição ou de entrega de nacionais com as quais Cabo Verde se pode deparar dependem, inter alia, da instituição que faz o pedido, dos vínculos jurídicos internacionais do país e da possibilidade interna do sistema judicial ter, ele próprio (como aliás prevê o número 1 do artigo 37 da Constituição), os meios e as condições objectivas para proceder ao julgamento da pessoa acusada da comissão do crime objecto de pedido de extradição ou de entrega. Hipoteticamente, Cabo Verde poderá ser confrontado com os seguintes pedidos de extradição ou de entrega de nacionais:

12

Ver os números 2 e 4 do Artigo 31 da Constituição.

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José Luís Jesus

a) Pedidos do Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Roma); 13 b) Pedidos de Tribunais Internacionais Ad Hoc da Jugoslávia e do Ruanda, criados por decisão do Conselho de Segurança, agindo no quadro do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas 14, por alegada comissão de crime que cai na competência dos ditos Tribunais; c) Pedidos de entrega de cidadão nacional acusado de comissão de crime que cai na alçada de outros tribunais internacionais, incluindo os regionais; d) Pedido de extradição de cidadão nacional para terceiros países; e) Pedido de extradição ou de entrega a tribunais criados ou reconhecidos nos tratados multilaterais em que Cabo Verde é parte. A) Pedidos do Tribunal Penal Internacional (Tribunal de Roma) Embora Cabo Verde ainda não tenha ratificado o Estatuto do TPI e portanto, não estar obrigado juridicamente a acatar qualquer pedido daquele tribunal, a análise da questão da entrega eventual de cidadãos cabo-verdianos ao Tribunal de Roma (na hipótese de Cabo Verde passar a ser parte no referido Estatuto) suscita aqui as mesmas preocupações e considerações gerais que foram já abundantemente formuladas por

Cabo Verde só esta obrigado juridicamente a satisfazer o pedido quando e se for parte no Tratado de Roma. 14 O Tribunal da Jugoslávia foi criado pela Resolução 827 do Conselho de Segurança, adoptada em 25 de Maio de 1993 e o Tribunal do Ruanda foi criado pela Resolução 955 do mesmo Conselho, de 8 de Novembro de 1994. 13

134

Aspectos Polémicos da Extradição

autores estrangeiros a respeito da harmonização entre o Tratado de Roma e as diferentes Constituições nacionais 15. Estas preocupações e considerações arrumam-se, no essencial, em três categorias de problemas relativos a: a) Disposição constitucional da não-extradição de nacional; b) Disposições constitucionais que conferem imunidade ao Chefe de Estado, membros do Parlamento e outros dignitários do Estado; c) Disposição da Constituição que proíbe a aplicação da pena perpétua. Tal

como

aconteceu

com

o

debate

que

se

alastrou

internacionalmente aquando da negociação e ratificação do Tratado de Roma, a questão da eventual participação de Cabo Verde no Tratado de Roma também tem suscitado da parte de juristas e políticos nacionais comentários e considerações similares, procurando uns encontrar uma solução para a harmonização do Tratado de Roma com a nossa Lei Fundamental

através

do

que

chamaríamos

de

“interpretação

construtiva”, enquanto que outros, reconhecendo embora a necessidade de se flexibilizar o regime jurídico nacional sobre a extradição e entrega de pessoas (incluindo os nacionais) acusadas de terem cometido crimes no estrangeiro, preferem fazê-lo através de emenda à Constituição para melhor coerência jurídica e mais transparente legalidade democrática. Observa-se aqui uma espécie de transposição para o plano nacional daquilo que tem sido a grande animação do debate jurídico e político ao nível internacional gerado à volta da questão das vias de harmonização do Tratado de Roma com as Leis Fundamentais dos países. Voltaremos a

15 Note-se que o Estatuto do TPI, no seu artigo 120, não permite reservas e, por isso, as eventuais incompatibilidades inconstitucionais não podem ser ultrapassadas com a formulação de reservas dos Estados.

135

José Luís Jesus

esta questão mais adiante quando abordarmos os prós e os contras das opções de interpretação e da emenda constitucional. B) Pedidos de entrega de cidadão nacional por crime que cai na alçada de tribunais internacionais e regionais ou extradição para países terceiros Poderá dar-se o caso de Cabo Verde ser solicitado, por outras jurisdições estrangeiras ou internacionais que não o TPI, a entregar um nacional por alegada comissão de crime sob sua competência ou a extraditá-lo para um país terceiro. Neste caso, há que distinguir as seguintes situações: (1)

O caso de tribunais estabelecidos pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta daquela Organização, como os Tribunais Internacionais Ad Hoc da Jugoslávia e do Ruanda;

(2)

O caso do Tribunal Especial da Serra Leoa ou de outros tribunais internacionais e regionais;

(3)

O caso de extradição para países terceiros;

(4)

O caso de extradição ou entrega a tribunais criados ou reconhecidos nos tratados multilaterais em que Cabo Verde seja parte.

Analisemos cada uma dessas situações, pois há algumas especificidades, de caso para caso: C) Pedidos de tribunais internacionais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas Em determinados casos, o Conselho de Segurança, como principal órgão das Nações Unidas responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais, teve (e eventualmente terá no futuro) a 136

Aspectos Polémicos da Extradição

necessidade de criar tribunais internacionais ad hoc como parte dos mecanismos de solução de uma crise internacional. Tal são os casos do Tribunal da Jugoslávia e do Tribunal do Ruanda. Este tipo de tribunais é criado por estatutos aprovados por resoluções 16 do Conselho de Segurança e impõe-se a todos os Estados, sejam eles membros ou não das Nações Unidas. 17 As considerações de ordem jurídica que suscita um pedido feito por um tribunal, criado pelo Conselho de Segurança, no exercício da sua autoridade de manter a paz e a segurança internacionais, no quadro do Capítulo VII da Carta, parecem ser diferentes das que resultariam de um pedido de um tribunal internacional estabelecido por tratado, como é o caso do TPI. No primeiro caso, é o Conselho de Segurança que aprova o estatuto do tribunal e ordena, com base nos poderes que lhe confere o referido Capítulo VII da Carta, aos Estados membros e não-membros a observarem determinados comportamentos, designadamente a entrega de presumíveis criminosos. 18 Os Estados estão juridicamente obrigados a colaborar com o tribunal assim criado, não porque ratificaram ou aderiram a um tratado a estabelecer o dito tribunal (pois tal tratado não existe), mas sim porque como membros (e neste caso, mesmo que não sejam membros) das Nações Unidas devem acatar as decisões tomadas pelo Conselho de

16 O Tribunal da Jugoslávia foi criado pela Resolução 827 do Conselho de Segurança, adoptada em 25 de Maio de 1993 e o Tribunal do Ruanda foi criado pela Resolução 955 do mesmo Conselho, de 8 de Novembro de 1994. 17 Na prática hoje em dia todos os Estados soberanos são membros de pleno direito da Organização das Nações Unidas. 18 No caso do Tribunal do Ruanda, o respectivo Estatuto, no seu artigo 29 impõe a todos os Estados a obrigação de entregar as pessoas requeridas pelo dito Tribunal. O mesmo acontece com o Tribunal da Jugoslávia, cujo Estatuto no seu artigo 28 também impõe a obrigação aos Estados de entregar qualquer pessoa requerida pelo Tribunal.

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José Luís Jesus

Segurança quando este age no âmbito da autoridade que lhe confere o Capítulo VII da Carta. Cabo Verde está, por isso, obrigado juridicamente a acatar as decisões do Conselho de Segurança, quando este age no quadro do Capítulo VII da Carta. Por isso, havendo um pedido de um dos já citados tribunais ad hoc a Cabo Verde para entrega de pessoa (cabo-verdiana ou estrangeira) acusada de ter cometido crime que cai na competência daqueles tribunais, não resta outra alternativa a Cabo Verde senão cumprir com a decisão daquele Conselho. De realçar que no caso destes tribunais, como se dispõe nos respectivos estatutos aprovados pelo Conselho de Segurança, os Estados são obrigados a entregar as pessoas (ainda que sejam seus nacionais) sem mesmo terem a alternativa de poder julgá-las no seu sistema judicial. Aqui há uma nítida incompatibilidade entre a obrigação de Cabo Verde que resulta da decisão do Conselho de Segurança e a disposição do número 1 do artigo 37 (e igualmente do artigo 29) da Constituição que estabelece a não-extradição do cidadão e o seu julgamento em Cabo Verde por crimes cometidos fora do país. Neste caso a incompatibilidade é mais profunda do que no caso do TPI, pois ao menos o Estatuto deste permite o julgamento em Cabo Verde do cidadão, como alternativa à sua não-entrega. 19 Assim, nestes dois exemplos acabados de citar, o Estado de Cabo Verde não pode deixar de cumprir as suas obrigações internacionais, ainda que a Constituição disponha diferentemente. Para obviar a ideia de que a Constituição não está a ser cumprida, pensamos que seria

19 O artigo 28 do Estatuto do Tribunal Internacional do Ruanda, estabelece que “ Os Estados devem cumprir sem demora com qualquer pedido de assistência feito pelo Tribunal, nomeadamente a entrega ou a transferência para o Tribunal da pessoa acusada”. A mesma disposição existe no artigo 29 do Estatuto do Tribunal da Jugoslávia.

138

Aspectos Polémicos da Extradição

conveniente proceder a uma emenda constitucional que permitisse a harmonização ou compatibilização dessas obrigações internacionais do país com a Constituição. D) Pedidos do Tribunal Especial de Serra Leoa ou dos tribunais internacionais ou regionais que venham a ser criados Pensamos que, contrariamente ao que acontece com os Tribunais Ad Hoc da Jugoslávia e do Ruanda, a entrega de pessoas acusadas a um tribunal internacional ou regional estabelecido por tratado depende da decisão de Cabo Verde de, em primeiro lugar, ser parte no tratado ou estatuto que cria o tribunal e, em segundo lugar, da possibilidade de os nossos tribunais poderem, tecnicamente, exercer efectivamente a jurisdição sobre crimes perpetrados no estrangeiro pelos nacionais de Cabo Verde. Via de regra, os tribunais estabelecidos por tratados adoptam o princípio de “extraditar ou julgar”, o que aliás acontece com o próprio TPI, conforme ficou dito atrás. No caso do Tribunal Especial para a Serra Leoa, a sua criação é fruto de um acordo entre a Serra Leoa e a Organização das Nações Unidas. Não foi estabelecido por uma decisão do Conselho de Segurança, agindo no quadro do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas e, por isso, não cria uma obrigação jurídica dos Estados na transferência ou na entrega de pessoas acusadas, contrariamente ao que acontece com os tribunais internacionais do Ruanda e da Jugoslávia. E) Pedidos de extradição de nacionais para país terceiro Relativamente a pedidos de extradição de cidadãos cabo-verdianos para países terceiros, pensamos que não haverá dificuldades, pois não há, como se viu, uma obrigação que resulte do direito internacional geral do 139

José Luís Jesus

país para extraditar seja quem for. Poderá, é claro, haver pressão política de um ou outro país sobre Cabo Verde para que um pedido de extradição de um nacional se realize. Neste caso, a resposta depende dos interesses em jogo. De todo o modo, Cabo Verde tem sempre a possibilidade de julgar a pessoa acusada no seu próprio sistema judicial. Daí a importância da inclusão na nossa legislação penal dos tipos de crimes (e penas), de natureza internacional, que usualmente estão legislados noutros países. Há situações em que Cabo Verde, independentemente do estatuído na sua Constituição sobre a extradição ou a entrega de cidadãos nacionais a jurisdições não-nacionais para julgamento ou cumprimento de penas por prática de crimes, estará sujeito ao cumprimento de obrigações jurídicas internacionais a que não se pode furtar, ainda que a Constituição não o permita. 20 Tal é o caso, como ficou dito, das decisões tomadas pelos tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança. Ou ainda, o caso da obrigação jurídica assumida por Cabo Verde de extraditar ou entregar, através da sua participação numa mão cheia de tratados, a jurisdições de determinados países, pessoas acusadas, nacionais ou estrangeiras, por prática de crimes. F) Pedidos de extradição ou entrega a tribunais criados ou reconhecidos nos tratados multilaterais de que Cabo Verde é parte O Estado de Cabo Verde ratificou já uma série de tratados multilaterais nos quais se prevê a obrigação de entregar ou transferir pessoas, incluindo os nacionais, para tribunais judiciais domésticos de determinados países previstos nos ditos tratados.

Ver os artigos 27 e 46/1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969.

20

140

Aspectos Polémicos da Extradição

Parece ser esse o caso, como já referido, da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis ou Degradantes (em vigor em relação a Cabo Verde desde 4 de Julho de 1992), cujo artigo 7, número 2 consagra o princípio de extraditar ou julgar; do Protocolo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda, Prostituição ou Pornografia de Criança, de que Cabo Verde é parte desde 10 de Maio de 2002, cujo artigo 4, número 3, também consagra o princípio de extraditar ou julgar1; da Convenção da OUA sobre a Prevenção e Combate ao Terrorismo de 1999 21; e da Convenção da Eliminação de Mercenários em África 22. O nosso país, ao vincular-se aos ditos tratados, assumiu a obrigação jurídica de extraditar ou entregar pessoas (nacionais ou não) acusadas de crimes abrangidos pelos citados instrumentos jurídicos, obrigação que deve ser cumprida independentemente da posição da Constituição ou do direito interno de Cabo Verde a respeito. VI. Que Solução Como se viu, Cabo Verde está neste momento obrigado perante o direito internacional a entregar ou a transferir pessoas – nacionais ou não, acusadas de prática de certos crimes – a determinadas jurisdições internacionais ou estrangeiras, independentemente da questão de saber se tal entrega ou transferência são permitidas pela Constituição. A obrigação jurídica de Cabo Verde de entregar ou transferir nacionais neste contexto deve ser cumprida, conforme impõe o direito internacional dos tratados, ainda que seja à revelia do espírito e da letra de disposições da Constituição. Noutros termos, a obrigação jurídica, contraída através da ratificação ou adesão do país a tratados que a 21 22

Ver artigo 14/2. Ver artigo 9/2.

141

José Luís Jesus

prevejam, pode estar em conflito com disposições constitucionais, criando assim dificuldades na decisão que deve proferir o juiz a quem tiver sido confiado o caso da entrega ou transferência de nacional para jurisdições estrangeiras ou internacionais. Perante um pedido de entrega ou transferência de nacional, proveniente de um tribunal internacional ad hoc ou criado por tratado de que Cabo Verde seja parte, o juiz provavelmente terá que seguir uma das duas seguintes orientações: (1) Ou entende, como já se viu atrás, que – através da interpretação da nossa Constituição e dos nossos compromissos internacionais assumidos pela via da vinculação do nosso país a tratados ou por força das decisões do Conselho de Segurança, quando cria tribunais internacionais ad hoc – não há incompatibilização entre o cumprimento de tais obrigações e a Constituição e, por isso, um eventual pedido de entrega de nacionais a tais tribunais, para ser satisfeito, não necessita de uma alteração da Constituição, designadamente da disposição constitucional do número 1 do artigo 37 e a do artigo 29, ambos da Constituição (Opção da interpretação); (2) Ou entende que, de facto, há divergências, entre as disposições constitucionais e as obrigações jurídicas do país e, por isso, haverá necessidade de se proceder a uma alteração da nossa Constituição para que as eventuais extradições ou entregas de cidadãos se processem com observância da legalidade interna (Opção da emenda constitucional). 6.1. Da 0pção da interpretação Tal como acontece com os argumentos avançados a propósito da harmonização do Tratado de Roma com as Constituições nacionais, entre 142

Aspectos Polémicos da Extradição

nós, os principais argumentos dos que têm defendido a compatibilidade das obrigações de Cabo Verde entregar nacionais a jurisdições estrangeiras (quer por imposição do Conselho de Segurança, quer pela nossa participação em tratados ou estatutos de tribunais internacionais) com o actual texto constitucional, têm-se escudado nos seguintes três pontos: a)

Argumento

da

diferença

conceptual

entre

“extradição” e “entrega” Os escritos académicos de autores estrangeiros favoráveis à opção da interpretação, argumentam que o Estatuto do TPI faz uma distinção entre “extradição” e “entrega” ao definir esta como “a entrega de uma pessoa por um Estado a um tribunal” enquanto que extradição será “a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado”. Os que vêem uma diferença de fundo nestes dois conceitos argumentam que a diferença não é meramente etimológica, pois no caso da entrega ao TPI de uma pessoa, está-se a lidar com uma instituição judicial que é, não apenas produto da criação dos Estados, mas que também “observa os padrões mais elevados de equidade e justiça e due process”. Por isso, entendem os que assim argumentam, que a entrega de pessoa ao TPI é diferente da sua extradição de um Estado para outro Estado. Daí, concluírem que a proibição da extradição de nacionais que existe em Leis Fundamentais de muitos países não se aplica ao caso da sua entrega ao TPI por tais Leis Fundamentais se referirem à extradição e não à entrega. Alguns

escritos

académicos

de

autores

nacionais

e

pronunciamentos orais de políticos no nosso país parece abonarem neste mesmo sentido. Defendem a ideia segundo a qual a disposição do artigo 37, número 1 da Constituição não impede a entrega ao Tribunal de Roma, 143

José Luís Jesus

ou a outros tribunais internacionais de cidadão nacional, pois, que a Lei Fundamental do país, apenas impede a sua “extradição” e não a sua “entrega”. Segundo este ponto de vista, a “entrega” de cidadão nacional a instâncias judiciais internacionais, como o Tribunal de Roma, não está proibido, nem mesmo mencionado na Constituição. Por isso, entendem que não há a necessidade de se alterar a nossa Constituição para que tal entrega se possa processar sem violação do nosso direito interno. Sem pretender expender uma argumentação exaustiva sobre esta questão neste espaço, entendemos que os argumentos avançados estabelecem de facto alguma diferença conceptual entre a entrega e a extradição, como aliás o próprio Estatuto do TPI o faz. Não estamos, no entanto, convencidos de que essa diferença, ainda que exista ao nível defendido pelos seus apoiantes, lá fora como cá dentro, faça desaparecer a lógica que explica a inserção de uma disposição constitucional da nãoextradição de nacional. A nosso ver a proibição da extradição de nacional, que existe, aliás, como atrás ficou dito, em muitos países de diferentes quadrantes geográficos e políticos, tem a ver mais com a afirmação da soberania do Estado sobre os seus cidadãos (principalmente quando estes se encontrem no seu território) e com a protecção que o Estado deve aos seus cidadãos e menos com o mecanismo através do qual o Estado se desembaraça do seu nacional acusado. No caso de Cabo Verde, a não-menção do termo “entrega” na disposição constitucional do número 1 do Artigo 37 (que impede a extradição de nacionais) não quer dizer que o legislador constitucional quisesse dar um tratamento diferente à entrega de cidadãos a tribunais internacionais daquele que deu à extradição. A razão porque se fala apenas de extradição na Constituição, poderá residir no facto de a transferência para jurisdições não-nacionais de pessoas acusadas de 144

Aspectos Polémicos da Extradição

crime até ao aparecimento do Tratado de Roma se fazer apenas para Estados, na medida em que não existiam anteriormente tribunais penais internacionais ou instâncias similares 23. O espírito da disposição constitucional da não-extradição parece abranger qualquer forma de entrega de nacional a uma jurisdição estrangeira para nela ser julgado por prática de possíveis crimes. Esta interpretação parece resultar muito reforçada em vista do disposto nos números 2 e 3 do artigo 29 da Constituição do país. O referido artigo 29, com efeito, dispõe no seu citado número 2 que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de actos puníveis por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança prevista na lei”, exceptuando-se, no seu número 3, “do princípio estabelecido no número anterior, a privação de liberdade, pelo tempo e nas condições determinadas na lei”, “nos casos de prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra quem esteja em curso processo de extradição ou de expulsão”. Isto quer dizer que qualquer medida de privação de liberdade, não contemplada neste artigo (como é o caso de medidas de privação da liberdade que precedem a entrega de nacional a tribunais internacionais) estará em violação do citado artigo da Constituição, o que equivale a dizer que se estará perante um caso de violação de uma liberdade fundamental com amparo constitucional. Por outro lado, alguns apresentam como argumento favorável à entrega de nacionais ao TPI ou a outros tribunais internacionais, sem o

23 A Constituição de Cabo Verde foi adoptada em 1992 e o Tribunal Ad Hoc da Jugoslávia, o primeiro tribunal internacional estabelecido depois da segunda guerra, foi criado em 1993.

145

José Luís Jesus

recurso a emendas à Constituição, o facto de o país assumir o compromisso através de tratado internacional, prevalecendo este sobre a norma constitucional da não-extradição. Aqui, devemos considerar o seguinte: uma coisa é a obrigação internacional assumida pelo Estado de Cabo Verde através do direito internacional convencional e outra coisa é a compatibilidade daquela obrigação internacional com a Constituição. Com efeito, na hipótese de Cabo Verde vir a ser parte no Tratado de Roma ou noutro tratado que preveja a entrega de cidadão cabo-verdiano a jurisdições não-nacionais, o país fica obrigado pelo Direito Internacional 24 a respeitar as obrigações assim assumidas, incluindo a de “entregar ou julgar”. Isto, porém, não quer dizer que, ao nível do direito interno,

deixe

de

haver

incompatibilidade

entre

a

obrigação

internacionalmente assumida e a Constituição do país. De notar ainda que a norma constitucional constante do número 4 do artigo 12 da nossa Constituição faz prevalecer o Direito Internacional Geral ou Convencional apenas sobre “todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional”. Isto quer dizer que nenhuma norma do Direito Internacional Geral ou Convencional prevalece sobre uma norma de valor constitucional. Embora, no nosso entender, a formulação de todo o artigo 12 da Constituição sob o título “Recepção de Tratados e Acordos na Ordem Jurídica”, necessite de algum melhoramento conceptual e formal 25, a disposição do seu número 4, acabada de referir, parece indicar em termos inequívocos que o facto de Ver artigos 27 e 46/1 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969. Refira-se, en passant, que o artigo da Constituição que diz que as normas e os princípios do direito internacional geral ou comum ou convencional prevalecem apenas sobre o direito ordinário e não sobre as constitucionais, não tem em conta a força das chamadas normas imperativas (ou jus cogens) a que se referem os artigos 53 e 64 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, nem as obrigações jurídicas internacionais que resultem das decisões do Conselho de Segurança quando este age no quadro dos poderes imperativos que lhe reconhece o Capítulo VII da Carta. 24 25

146

Aspectos Polémicos da Extradição

Cabo Verde poder vir a ser parte no Tratado de Roma ou em qualquer outro tratado não invalida ou paralisa uma norma constitucional que seja incompatível com tais instrumentos jurídicos convencionais. Por outro lado, não se pode encontrar fundamento para justificar aquela compatibilização com base na norma constitucional do número 2 do artigo 12, 26 pois quando tal norma autoriza a entrada em vigor do tratado na ordem jurídica interna, nas condições indicadas, não fica resolvida a questão da incompatibilidade de tal tratado com a Constituição, tendo em conta o estipulado no já citado número 4 do artigo 12. Dizer, por isso, que a incompatibilidade que possa existir entre a obrigação de extraditar, assumida via tratado por Cabo Verde, com a norma constitucional da não-extradição de nacional, desaparece por força do estatuído no número 2 do citado artigo 12, não nos parece suficientemente convincente. b) Compatibilidade do Tratado de Roma com as disposições da Constituição que conferem imunidade ao Chefe de Estado, membros do Parlamento e outros dignitários do Estado Uma área de aparente divergência entre o Tratado de Roma (e eventualmente com outros tratados relevantes) e algumas Constituições nacionais são as imunidades dos Chefes de Estado, parlamentares e outros governantes, pois que o referido Tratado estabelece que o Estatuto do TPI aplica-se a todas as pessoas, esclarecendo que a imunidade ou regras especiais de procedimento, acordadas a uma pessoa na sua O número 2 do artigo 12 diz que “Os tratados e acordos internacionais validamente aprovados ou ratificados vigoram na ordem jurídica cabo-verdiana após a sua publicação oficial e entrada em vigor na ordem jurídica internacional e enquanto vincularem internacionalmente o Estado de Cabo Verde”.

26

147

José Luís Jesus

qualidade oficial pelo direito interno ou internacional não impede o TPI de exercer a sua competência sobre tal pessoa. 27 Sem pretender saber se tais imunidades se aplicam apenas aos procedimentos internos do país ou se, igualmente, se aplicam aos procedimentos instituídos perante o TPI, parece-nos que esta questão das imunidades é também uma área que mereceria clarificar no nosso caso, através de uma emenda constitucional que deixasse bem claro que as

imunidades

de

dignitários

do

Estado,

consagradas

constitucionalmente, não impede o exercício pleno pelo TPI ou por outros tribunais não-nacionais da sua competência sobre tais pessoas quando indiciadas de crimes que caem na alçada do dito Tribunal. No caso concreto de Cabo Verde, esta não é uma área de muita divergência com o Tratado de Roma, pois que as imunidades reconhecidas aos estadistas na nossa Constituição dizem respeito mais aos procedimentos do que ao fundo da questão. No entanto, convém lembrar a este respeito que, como acontece com Leis Fundamentais de outros países, a Constituição de Cabo Verde, nos seus artigos 132 (Presidente da República), 131 e 162 (Presidente da Assembleia e membros), bem como no artigo 198 (Governo) parece conferir certas imunidades, especialmente em matéria de procedimento penal, a favor dos titulares de órgãos de soberania. Um eventual pedido do TPI ou de outro tribunal internacional de entrega de pessoa que goze de tais imunidades poderia esbarrar com alguma dificuldade prática, pois, os procedimentos internos estabelecidos relativos à imunidade, poderiam não ser accionados de modo a facilitar aquela entrega. O juiz chamado a pronunciar-se

sobre

a

entrega

de

uma

entidade

protegida

constitucionalmente com o privilégio da imunidade, poderia sentir-se de

27

Ver o artigo 27 do Estatuto do TPI.

148

Aspectos Polémicos da Extradição

mãos atadas para tomar tal decisão, se os mecanismos de levantamento da imunidade não fossem accionados pelo órgão competente. c)

Compatibilidade

do

Tratado

de

Roma

com

o

dispositivo constitucional que estatui que em nenhum caso será aplicada a prisão perpétua Os defensores da opção da interpretação que pretendem ver harmonia entre o Estatuto do TPI e as Constituições nacionais (não necessitando estas de qualquer emenda), apresentam o argumento de que apesar de o TPI contemplar a possibilidade de aplicar a pena de prisão perpétua, aquele tribunal apenas aplicá-la-ia “quando justificado pela gravidade extrema do crime e das circunstâncias individuais da pessoa incriminada”, acrescentando que, por isso, a prisão perpétua não é a regra, mas a excepção. Por outro lado, avançam o argumento de que na prática ninguém estará na prisão para sempre, porque o artigo 110 do dito Estatuto obriga o TPI a rever a sentença decorridos 25 anos após a imposição da pena perpétua para determinar se tal pena pode ser reduzida. Esses argumentos não invalidam o facto de existir, de entre as penas aplicáveis pelo TPI, a pena de prisão perpétua, apesar de ela poder ser imposta não com tanta frequência e poder ser reduzida num processo de revisão. A Constituição de Cabo Verde, seguindo, aliás, as pisadas de muitas outras constituições, imbuídas de uma filosofia penal que tem considerações humanísticas no centro das suas preocupações, segundo a qual as pessoas condenadas por crimes são recuperáveis e devem ter uma oportunidade para poderem reintegrar-se na sociedade, proíbe, em termos inequívocos, a prisão perpétua, ao declarar no seu artigo 32 que

149

José Luís Jesus

“em caso algum haverá pena privativa da liberdade ou medida de segurança com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida”. O Estatuto do TPI, por outro lado, prevê, como já se disse, a possibilidade de esse tribunal impor a pena de prisão perpétua ou, para usarmos a linguagem da nossa Constituição, a pena privativa de liberdade com carácter perpétuo. Como resolver esta pretensa incompatibilidade entre, por um lado, o Estatuto do TPI ou os estatutos relevantes de outros tribunais internacionais e, por outro lado, o dispositivo constitucional caboverdiano da não imposição de pena perpétua? A resposta a esta questão, tendo em consideração alguma fraqueza dos argumentos da opção da interpretação face ao estatuído na nossa Constituição, talvez se encontre na opção da emenda ao texto constitucional que tem a vantagem de resolver as dificuldades sem deixar dúvidas. 6.2. Da opção da Emenda Constitucional a) Considerações gerais Como já o dissemos atrás, não nos afigura muito transparente e clara a compatibilidade do Estatuto do TPI e dos tratados firmados por Cabo Verde permitindo a extradição ou entrega de nacionais a tribunais internacionais ou de certos países, bem como do Estatuto dos tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança com a nossa Constituição ao ponto de dispensar uma alteração pontual desta, de modo a que a questão de um eventual pedido de entrega de nacional se processe com base numa legalidade transparente e inequívoca. E dizemos isto pelas seguintes razões: (1) Entregar um nacional a uma entidade judicial externa ou extraditá-lo para uma jurisdição estrangeira implica privar-lhe, 150

Aspectos Polémicos da Extradição

ainda que temporariamente, da sua liberdade e segurança que, como se sabe, é um direito fundamental garantido na Constituição do país 28, e que, por isso mesmo, só pode ter lugar no quadro de uma aplicação transparente e clara do direito interno que assim o autorize ou o preveja. A este respeito, convém chamar aqui uma vez mais a atenção para o facto de a Constituição de Cabo Verde, no seu artigo 29, estatuir claramente que “todos têm direito a liberdade e segurança” e que as pessoas “só podem ser privadas parcial ou totalmente da sua liberdade, em casos de sentença judicial condenatória, aplicação de medidas de segurança” ou nos casos de “a prisão ou detenção da pessoa contra quem esteja em curso processo de extradição ou expulsão”. Como se vê, esta alínea não contempla o caso da privação da liberdade no caso de “entrega”, na acepção que este termo comporta no Estatuto do TPI ou goza junto dos defensores da opção da interpretação. Este artigo da Constituição parece dizer claramente que só se pode privar uma pessoa da sua liberdade nas situações nele configuradas. De entre essas situações não consta a da “entrega”, mas tão-somente a de “extradição” ou “expulsão”. (2) Quando a lei não é clara, presta-se a diferentes interpretações (dependendo estas sempre de quem seja o intérprete), bem como dos interesses em jogo no momento. Como se costuma dizer, o melhor legislador é aquele que vaza a regra do direito para o papel de uma forma clara e inequívoca de modo a diminuir a possibilidade do aparecimento de disputas resultantes da sua interpretação e aplicação a casos concretos. Por isso, a extradição ou a entrega de nacionais (se tiver que 28

Ver o artigo 29 da Constituição de Cabo Verde.

151

José Luís Jesus

acontecer) deveriam ser clara e inequivocamente autorizadas ou previstas na lei (neste caso, na Constituição). (3) Mesmo que a questão do TPI e dos tribunais ad hoc não se colocasse, haveria sempre a necessidade da reforma da filosofia que está por detrás da disposição do número 1 do artigo 37 da Constituição, que proíbe a extradição de nacionais, pois a realidade de hoje parece impor uma opção menos rígida, embora

caucionada

pela

protecção

do

cidadão

contra

arbitrariedades estrangeiras. A questão da compatibilidade do Estatuto de Roma, bem como dos tratados em que Cabo Verde é parte – obrigando juridicamente o país a extraditar ou a entregar cidadão cabo-verdiano – com a nossa Constituição não se colocaria se, como acontece com alguns países 29, a nossa Constituição aceitasse que o direito internacional geral ou convencional prevalecesse na ordem jurídica interna sobre quaisquer normas do direito interno, inclusive as material ou formalmente constitucionais. Neste caso ficaria claro que, havendo uma possível incompatibilidade

entre

tais

prevaleceriam aqueles sobre

tratados

esta. 30

e

a

nossa

Constituição

Tal, porém, não foi a decisão do

legislador constitucional que apenas entendeu conferir ao direito internacional geral e ao que resulta dos tratados aos quais Cabo Verde se vincula voluntariamente uma eficácia infraconstitucional, prevalecendo, por isso, apenas em relação às normas e princípios do direito ordinário, ou para usarmos as próprias palavras do artigo 12, parágrafo 4, da Constituição, “sobre todos os actos legislativos e normativos internos de valor infraconstitucional”.

Estão neste grupo o Brasil, os EUA, o Paraguai, entre outros. Dizemos isto, é claro, com base na hipótese de que Cabo Verde seria parte no Tratado de Roma. 29

30

152

Aspectos Polémicos da Extradição

Do que vem de ser dito resulta que seria conveniente reformular a disposição constitucional, introduzindo um melhor equilíbrio no tratamento jurídico desta questão, que tome em conta, por um lado, o interesse do Estado em proteger o nacional contra arbitrariedades externas e, por outro lado, permita que, de uma ou outra maneira, ele seja prosseguido criminalmente e punido pelos crimes praticados. Não há nada de sacrossanto sobre o princípio da não-extradição do nacional consagrado na nossa Constituição. Como já se disse atrás, a disposição actual do artigo 37, número 1 da Constituição, foi incluída, e muito bem, como expressão da soberania do Estado de Cabo Verde sobre os seus cidadãos – principalmente quando estes se encontrem no seu território – e, ao mesmo tempo, como garantia da protecção que o Estado de Cabo Verde deve aos seus nacionais contra eventuais arbitrariedades de sistemas judiciais estrangeiros. Se, no passado, a soberania dos Estados era absoluta, hoje ela é balizada por interesses legítimos de outros Estados e pela necessidade da cooperação internacional, desde logo em áreas do combate ao crime transfronteiras. Por isso, havendo necessidade de se reformular a Constituição, de modo a ter-se em conta a realidade do mundo em que nos inserimos, não devemos hesitar. Todavia, ao se tentar encontrar uma formulação que se pretende equilibrada, tomando em conta os vários interesses em jogo, deve-se procurar ensaiar várias soluções possíveis, todas procurando proteger os direitos fundamentais, os direitos humanos e as garantias processuais do nacional

contra

eventuais

arbitrariedades

de

sistemas

judiciais

estrangeiros e, ao mesmo tempo, assegurar o julgamento e a punição dele por crimes que tenha cometido no estrangeiro.

153

José Luís Jesus

b) Âmbito da emenda Assim sendo, pensamos que a melhor solução que poderia cobrir várias das situações aqui discutidas estaria, como aconteceu com alguns países, na emenda à Constituição, permitindo: 1.

A entrega de nacional ao TPI e aos tribunais criados ou reconhecidos por tratados em que Cabo Verde seja parte, por prática de crimes que caiam na jurisdição dos ditos tribunais;

2. A entrega de nacional aos Tribunais Internacionais Ad Hoc criados pelo Conselho de Segurança, agindo no quadro do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas; 3. Em caso excepcional, a extradição do nacional, quando também seja cidadão do Estado requerente ou até mesmo a extradição de nacionais no caso da comissão de certos crimes internacionais. 4. Ultrapassar as dificuldades levantadas a propósito das imunidades de que gozam o Chefe de Estado, o Presidente da Assembleia e os demais parlamentares, bem como os membros do Governo. 5. Proteger a opção de o nacional poder ser julgado no seu próprio país, conforme prevê o número 1 do artigo 37 da Constituição, o que aliás estará de conformidade com o princípio, hoje quase de aceitação universal, de “extraditar ou julgar”. A emenda constitucional dever-se-ia, assim, traduzir numa formulação genérica e cobrir todas as hipóteses ensaiadas neste apontamento: c) Conteúdo da emenda Assim, para animar o debate, sugerimos:

154

Aspectos Polémicos da Extradição

a) Acrescentar um número 1-bis ao artigo 37 da Constituição que poderia, seguindo, em parte, a lógica da emenda constitucional francesa 31, dizer o seguinte: “Não obstante a disposição do número anterior, o Estado de Cabo Verde poderá reconhecer a competência do Tribunal Penal Internacional, observadas as condições constantes do tratado aprovado a 18 de Julho de 1998 ou de outros tribunais previstos em tratados nos quais Cabo

Verde

seja

parte,

bem

como

a

dos

tribunais

internacionais, criados por decisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas, agindo no âmbito do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, não se aplicando nestes casos o regime de imunidades previsto na presente Constituição”; b) Acrescentar um número 1-ter ao artigo 37 da Constituição, para ter em conta a extradição extraordinária de nacionais que também sejam cidadãos do país que requereu a sua extradição ou

que

tenham

cometido

certos

crimes

de

natureza

internacional e que se leria assim: “Em casos excepcionais poderá ser extraditado, mediante acordo de reciprocidade, cidadão nacional que seja também cidadão do Estado requerente, por qualquer crime praticado no território desse Estado ou que, não sendo cidadão do Estado requerente, tenha praticado crimes de natureza internacional definidos nos termos da lei, observando-se as condições, garantias e os direitos do extraditando previstos na lei”; c) Igualmente,

seria

conveniente

acrescentar

na

alínea

correspondente do número 3 do artigo 29 da Constituição a palavra “entrega”. Assim a alínea toda (pensamos que é a sexta)

A França teve que proceder a introdução duma emenda à sua Constituição para conciliá-la com a sua obrigação de entregar cidadãos franceses ao TPI.

31

155

José Luís Jesus

ler-se-ia assim: “Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra quem esteja em curso processo de extradição ou de expulsão, ou de entrega a jurisdições estrangeiras ou internacionais”. d) Vantagens da emenda Estas emendas teriam as seguintes vantagens: 1) Resolveriam a questão da incompatibilidade da entrega ou extradição de cidadão cabo-verdiano com a Constituição de Cabo Verde, tornando mais fácil para o poder judicial ou outro aplicador do direito a análise e a decisão sobre um pedido eventual de entrega ou extradição de nacional; 2) Garantiriam a consistência das decisões do nosso poder judicial com a Constituição do país, salvaguardando a sua integridade e o seu acatamento estrito; 3) Cobririam praticamente todos os casos de pedidos de entrega, eventualmente formulados, quer pelo TPI, quer pelos Tribunais do Ruanda e da Jugoslávia, quer ainda por outros tribunais internacionais ou os previstos em tratados de que Cabo Verde seja parte; 4) Cobririam igualmente os casos excepcionais de extradição de nacionais para países de que também sejam cidadãos ou nos casos de certos crimes internacionais; 5) Salvaguardariam sempre a opção do nacional ser julgado no país por crimes perpetrados no estrangeiro, com excepção dos tribunais ad hoc criados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas;

156

Aspectos Polémicos da Extradição

6) Removeriam os obstáculos que as imunidades dos estadistas, consagradas na Constituição, levantam neste momento à questão da entrega de nacionais a tribunais estrangeiros ou internacionais. e) Alcance da emenda De notar que a emenda em a) não cria uma obrigação do Estado de Cabo Verde de entregar o nacional a qualquer jurisdição estrangeira ou internacional, sempre que esta o solicite. A palavra-chave aqui é “poderá”. Assim o Estado de Cabo Verde poderá, quando solicitado, decidir entregar o presumido criminoso. Poderá igualmente não entregálo, devendo, neste caso, julgá-lo no seu sistema judicial, como aliás prevê o próprio Tratado de Roma. De notar, a este respeito, ainda, que o Tratado de Roma e outros tratados instituindo tribunais internacionais, como se disse anteriormente, consagram o princípio de “julgar ou extraditar”. Tal princípio não obriga o Estado parte nos ditos tratados a entregar o seu cidadão aos tribunais não-nacionais, desde que, o sistema judicial nacional tome medidas efectivas para garantir o seu julgamento. A emenda abriria, outrossim, as portas para uma entrega de cidadão nacional a qualquer tribunal internacional, com base numa maior transparência da legalidade constitucional, sem, no entanto, eliminar a possibilidade de, querendo, o Estado de Cabo Verde decidir julgar o nacional, objecto do pedido de entrega nos tribunais do país. Este não será o caso, porém, com os Tribunais Internacionais Ad Hoc da Jugoslávia e do Ruanda. Aqui, o país teria mesmo que entregar a pessoa acusada (nacional ou não), pois os respectivos estatutos não dão margem para o seu julgamento em Cabo Verde. A emenda em b) pretende harmonizar a proposta de alteração do número 1 do artigo 37 com o número 3 do artigo 29, todos da 157

José Luís Jesus

Constituição, enquanto que a proposta em c) pretende abrir uma possibilidade excepcional de extradição por prática de qualquer crime, nos casos em que o cidadão requerido no pedido de extradição seja também cidadão do Estado requerente ou, não sendo ele também cidadão do Estado requerente, no caso de certos crimes internacionais. Em todos os países, as emendas constitucionais não são empresa fácil. Não o seriam também neste caso. Porém, se não se fizer nada, o país fica num beco sem saída, para usar uma expressão popular. A vida não é estática. As relações de poder ao nível internacional mudam todos os dias. O direito internacional, por isso, evolui também todos os dias. Não podemos pretender que a mudança não nos toque. O país pode enfrentar situações de pedidos de extradição ou de entrega de cidadãos (especialmente, quando se tratam de crimes internacionais) aos quais não poderá deixar de responder afirmativamente. Há muitos interesses, por vezes, em jogo (especialmente tratandose de crimes internacionais) num pedido de extradição ou de entrega, envolvendo, a um tempo, a política internacional, o direito criminal, os direitos humanos e o direito internacional e quase sempre uma dose nãonegligenciável de emoção política. Cabo Verde, como parceiro frágil e muito vulnerável nesta trama de interesses vários dos Estados, muitas vezes dominada pela lógica do mais forte, não pode ficar indiferente e deve, por isso, encontrar uma solução para, em certos casos, a questão da entrega ou extradição de nacionais. No nosso entender, a emenda da Constituição é a via mais segura e a mais consistente de se chegar a essa solução. 15 de Fevereiro de 2008

158

A NACIONALIDADE, O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PROIBIÇÃO DE EXTRADIÇÃO DE NACIONAIS, A PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DA EXTRADIÇÃO EM FUNÇÃO DA PENA APLICÁVEL E A POLÍTICA CRIMINAL *

Júlio Martins Tavares **

Sumário: I. Introdução; 1.1. Razões de ordem; 1.2. Delimitação do objecto de estudo; 1.3. Sequência; II. O Direito da Nacionalidade; 2.1. Considerações iniciais: nacionalidade ou cidadania?; 2.2. Densificação do conceito de nacionalidade; 2.3. Evolução do Direito Caboverdiano da Nacionalidade; 2.4. Caracterização do actual Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade; 2.4.1. A nacionalidade originária; 2.4.2. A nacionalidade derivada; 2.4.3. A perda da nacionalidade; 2.5. Registo, prova, contencioso e conflito de nacionalidade; III. O Princípio Constitucional da Proibição de Extradição de Nacionais e a Proibição Constitucional da Extradição em Função da Pena Aplicável; 3.1. Densificação do conceito de extradição e de política criminal; 3.1.1. Extradição; 3.1.2. Política criminal; 3.2. A cláusula constitucional da As seguintes abreviaturas serão utilizadas neste artigo: Ac – Acórdão; CRCV – Constituição da República de Cabo Verde; STJ – Supremo Tribunal de Justiça; LOPE – Lei sobre a Organização Política do Estado; LE – Lei de Estrangeiro – Decreto Legislativo nº 6/97, de 5 de Maio, alterado pelo Decreto Legislativo nº 3/2005, de 1 de Agosto – Estabelece o Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Extradição do Território Nacional; aproveito esta nota para agradecer, reconhecidamente, às pessoas amigas os comentários que tiveram a gentileza de fazer a uma versão provisória deste trabalho. ** Procurador-Geral, República de Cabo Verde; Assistente Convidado do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais. *

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Júlio Martins Tavares

proibição de extradição de nacionais; 3.3. A cláusula da proibição de extradição de nacionais na Constituição Cabo-verdiana de 1980; 3.4. A cláusula constitucional da proibição em função da pena aplicável; 3.5. A cláusula constitucional da proibição da extradição em função da pena aplicável e a política criminal; 3.5.1. O estabelecimento e o reforço da cooperação judiciária internacional em matéria penal; 3.5.2. A aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde; IV. Conclusões; V. Síntese Conclusiva.

I. Introdução 1.1. Razões de ordem Ultimamente as autoridades competentes de Cabo Verde têm vindo a confrontar-se, com alguma frequência, com pedidos de outros Estados para extraditar pessoas que se encontram no território cabo-verdiano para, no território desses Estados, serem julgadas por crimes aí cometidos e que caem sob sua jurisdição ou para cumprirem a pena em que aí foram condenadas. O aumento do número de pedidos de extradição deve-se, por um lado, ao incremento da luta contra a criminalidade transnacional e, por outro lado, à facilidade de deslocação de pessoas além fronteiras. De entre os pedidos de extradição recebidos, tem-se constatado a existência de um número considerável de casos envolvendo cidadãos cabo-verdianos. Ora, sendo Cabo Verde um país de diásporas, essa situação tem provocado no seio da opinião pública, em geral, e no da comunidade jurídica nacional, em particular, debates polémicos em torno do alcance da cláusula ou princípio constitucional de proibição da extradição de nacionais. Face à necessidade de se estabelecer mecanismos de cooperação judiciária internacional que combatam, com eficácia, a criminalidade organizada transnacional, como o terrorismo, o tráfico de drogas e de pessoas, a cláusula constitucional que estabelece a proibição absoluta de 160

Aspectos Polémicos da Extradição

extradição de nacionais tornou-se, para alguns, injustificável, sendo necessário e urgente reponderar o respectivo âmbito 1. Porém, para outros, a existência da mencionada cláusula constitucional com o actual âmbito, não constitui obstáculo à cooperação judiciária internacional, defendendo que o preceito constitucional que consagra a proibição de extradição de cidadão nacional estabelece, ele próprio, o mecanismo de superação da questão, pois prescreve que os cidadãos cabo-verdianos não extraditados podem responder, perante os tribunais cabo-verdianos, por crimes cometidos no estrangeiro. A partir da década de sessenta/setenta do séc. XX tomou-se consciência, a nível planetário, de que a eficácia da luta contra certas formas de criminalidade grave, complexa e transnacional, dependia do estabelecimento e reforço da cooperação entre os Estados, em especial, a cooperação judiciária em matéria penal. Pode-se dizer que na base dessa consciencialização política esteve o aparecimento de formas de criminalidade como o tráfico de drogas, o tráfico de pessoas, o terrorismo e o seu financiamento, bem como o branqueamento de capitais. Em decorrência dessa consciencialização, assistiu-se à completa reformulação do conceito de soberania estadual e do exercício do ius puniendi por parte dos Estados. Estes, já não se arrogam o poder

1 Franklin Furtado, “Extradição e o Tribunal Penal Internacional no Contexto da Revisão Constitucional”, neste volume, Antigo Procurador-Geral da República de Cabo Verde, defende a necessidade de, numa eventual revisão da Lei Fundamental, se reponderar a extensão do princípio da não extradição de cidadãos nacionais. Considera que razões de política criminal justificam uma alteração da Lei Fundamental no sentido de se admitir a extradição de cidadãos nacionais, quando esteja em causa criminalidade grave que crie ou suscite grande repulsa no local do seu cometimento, sugerindo, no entanto, que sejam estabelecidas exigências que permitam que o nacional extraditando seja julgado pelos tribunais do Estado que o reclama, com todas as garantias de defesa, nomeadamente através de um processo justo e equitativo. Estamos de acordo, no essencial, com esta tese.

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Júlio Martins Tavares

exclusivo de julgar os seus cidadãos ou ainda de julgar os crimes cometidos nos respectivos territórios. Os Estados têm vindo a unir esforços na luta contra certas formas de criminalidade, nomeadamente, com a celebração de convenções e tratados internacionais (bilaterais e multilaterais) em matéria penal e com o alargamento do âmbito espacial da lei penal estadual. Por outro lado, assiste-se hoje a um movimento crescente no sentido da supressão do princípio da proibição de extradição de nacionais ou da limitação do seu âmbito. Na verdade porém, a cooperação judiciária internacional em matéria penal tem limites, sendo de salientar os impostos pela Lei Fundamental à extradição. A cláusula de não extradição aparece como norma em vários ordenamentos jurídicos, o que não significa, no entanto, que, por esse facto, os Estados que a adoptam fiquem isentos de cumprir a obrigação decorrente do Direito Internacional de julgar as pessoas que não sejam extraditadas pelos crimes cometidos no estrangeiro, independentemente da nacionalidade que eventualmente possuam, ou mesmo que sejam apátridas. O número de países que admitem extraditar os seus nacionais, verificados certos condicionalismos, sobretudo, em caso de crimes graves que criem ou suscitem grande repulsa no local do seu cometimento, têm vindo a aumentar significativamente 2.

Portugal é, seguramente, exemplo elucidativo. Parece-nos acertado afirmar-se que, em Portugal, a revisão constitucional de 2001 visou, sobretudo, obviar a ratificação daquele país europeu ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (ERTPI).

2

162

Aspectos Polémicos da Extradição

Em alguns países os princípios que estabelecem a proibição de extradição

(absoluta

ou

relativa,

de

nacionais)

têm

dignidade

constitucional. Noutros, eles são objecto de legislação ordinária 3. Em Cabo Verde a matéria de extradição, bem como os seus princípios constam, antes de mais, do texto constitucional. 1.2. Delimitação do objecto de estudo A cláusula constitucional da não extradição de nacionais, seja qual for o seu âmbito, e a concepção do direito da nacionalidade como um direito fundamental suscitam a questão de saber se, no plano da legislação ordinária, o Direito Cabo-verdiano dispõe de mecanismos tendentes a evitar que a aquisição da nacionalidade cabo-verdiana seja almejada, e obtida, para prosseguir vários fins, sem traduzir a ligação efectiva do indivíduo à comunidade e cultura cabo-verdianas. Ninguém duvida que o incremento da luta contra a criminalidade transnacional por parte dos Estados, e a grande facilidade de deslocação dos indivíduos além-fronteiras propiciem a procura de Cabo Verde como destino, não só por turistas e pessoas de negócios, mas também por criminosos. É certo que, uma eventual restrição do âmbito da cláusula da não extradição de cidadãos nacionais, no sentido de a admitir quando estejam em causa crimes graves que criem alarme ou suscitem grande repulsa no local da prática dos factos, constitui, sem dúvida, um reforço do “alinhamento” do país com a comunidade internacional na luta contra a criminalidade organizada e transnacional, como o terrorismo, o tráfico de drogas e de pessoas e o branqueamento de capitais. Não é menos verdade, contudo, que a restrição do âmbito da cláusula da não extradição de cidadãos nacionais se traduz na compressão de uma

3 O que não impede, porém, que as normas que proíbam a extradição de nacionais sejam tidas como normas materialmente constitucionais.

163

Júlio Martins Tavares

garantia fundamental, qual seja, a de os cidadãos nacionais não serem extraditados, em caso algum. Por outro lado, relativamente à proibição constitucional de extradição em função da pena aplicável, a questão que se coloca é a de saber se os princípios constitucionais do Estado de Direito Democrático, da equiparação de estrangeiros e apátridas a cidadãos cabo-verdianos e o da igualdade não comportam, intrinsecamente, uma injunção para o legislador ordinário no sentido de este, na configuração da legislação penal, obviar a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos cometidos por estrangeiros contra estrangeiros fora do território cabo-verdiano, que forem encontrados em Cabo Verde e cuja extradição seja requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida. Isto porque, em situações idênticas, fosse o agente cidadão cabo-verdiano, este responderia perante os tribunais cabo-verdianos por crimes cometidos no estrangeiro. Como é evidente, este ensaio não visa esgotar a análise do Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade, mas procurará dar uma visão global acerca dos critérios adoptados em matéria de atribuição, aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade. Por outro lado, procura articular o Direito da Nacionalidade com o princípio constitucional da proibição de extradição em razão da nacionalidade e, a outro tempo, com o princípio constitucional da proibição de extradição em função da pena aplicável. Importa analisar os termos da questão. 1.3. Sequência A análise da questão reparte-se por três momentos: o primeiro aborda as formas de atribuição, aquisição, perda e reaquisição da cidadania cabo-verdiana, no Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade, articulando-as com a cláusula constitucional da não extradição de 164

Aspectos Polémicos da Extradição

nacionais, visando evidenciar que os critérios determinantes da aquisição da nacionalidade não impõem que haja uma ligação efectiva do indivíduo à comunidade e cultura cabo-verdianas, e que a mesma pode ser almejada e obtida, por indivíduos que pretendam furtar-se à acção da justiça de um outro Estado; o segundo aborda a problemática da cláusula da não extradição de cidadãos nacionais bem como da não extradição em função

da

pena

aplicável,

articulando-as

com

os

princípios

constitucionais do Estado de Direito Democrático, da equiparação de estrangeiros e apátridas a cidadãos cabo-verdianos e o da igualdade; o terceiro

momento,

para

finalizar,

apresenta

as

conclusões

e

recomendações de alterações legislativas, seguidas de uma síntese conclusiva. II. O Direito da Nacionalidade 2.1. Considerações iniciais: nacionalidade ou cidadania? A CRCV 4 começa por definir Cabo Verde como uma República soberana, unitária e democrática, que se organiza em Estado de Direito Democrático, determina a forma de exercício do poder político e explicita cada um dos elementos estruturantes do Estado, como sejam, povo, território e poder (politicamente organizado). A cidadania faz parte integrante de um elemento estruturante do Estado de Cabo Verde: o povo (a par dos outros dois elementos, o poder político e o território).

Aprovada pela Lei Constitucional nº 1/IV/92, de 25 de Setembro, a Lei Fundamental foi já objecto de duas revisões: a primeira, extraordinária e pontual, que teve como objectivo específico permitir a alteração da lei eleitoral, foi operada pela Lei da Revisão Constitucional nº 1/IV/95, de 13 de Novembro (note-se que o artigo 102º da Constituição, prevendo o princípio de estabilidade da lei eleitoral, não autorizava que a mesma fosse revista ou revogada, a menos de um ano da data da realização de eleições até ao apuramento dos resultados); a segunda, ordinária, que teve incidência particular na chamada Constituição Fiscal, foi operada pela Lei Constitucional nº 1/V/99, de 23 de Setembro.

4

165

Júlio Martins Tavares

O artigo 5º da Lei Fundamental preceitua que: «1. São cidadãos cabo-verdianos todos aqueles que, por lei ou por convenção internacional, sejam considerados como tal. 2. O Estado poderá concluir tratados de dupla nacionalidade. 3. Os Cabo-verdianos poderão adquirir a nacionalidade de outro país sem perder a sua nacionalidade de origem.»

A CRCV de 1992 constitucionalizou a nacionalidade, o que fez com que o Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade ficasse, em vários dos seus aspectos, em sintonia com os mais importantes instrumentos universais sobre a matéria. Desde logo porque, no que respeita à consagração dos direitos fundamentais, a Lei Fundamental adoptou, no nº 1 do seu artigo 17º, a chamada cláusula aberta, que significa o reconhecimento expresso de direitos, liberdades e garantias que ela não prevê, mas que constem de leis ordinárias e/ou convenções internacionais. Outrossim, no que respeita aos direitos fundamentais, a CRCV de 1992, além de estabelecer a referida cláusula aberta ou de recepção material, através da qual integrou no ordenamento jurídico caboverdiano os mais importantes instrumentos internacionais relativos aos direitos fundamentais, em algumas das suas disposições, reproduz o conteúdo de alguns preceitos da Declaração Universal dos Direitos do Homem. O disposto no artigo 39º do texto da Lei Fundamental corrobora esta afirmação. Este dispositivo constitucional estabelece que: «Nenhum cabo-verdiano de origem poderá ser privado da nacionalidade ou das prerrogativas da cidadania.»

A consagração da cláusula de recepção material no texto da CRCV tem uma outra consequência importante. É que, sendo a cidadania um direito fundamental, as normas a ela relativas devem ser interpretadas à luz da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Esta, como se sabe, no que respeita à nacionalidade, estabelece, no seu artigo 15º, que «toda 166

Aspectos Polémicos da Extradição

a pessoa tem direito a uma nacionalidade e ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de mudar de nacionalidade». Todavia, o legislador constitucional não estabelece os critérios determinantes da nacionalidade cabo-verdiana, que permitem saber quem é, ou pode ser, cidadão cabo-verdiano, remetendo para a legislação ordinária e para a convenção internacional a fixação dos mesmos. Quanto à atribuição de competência legislativa em matéria respeitante à nacionalidade, a CRCV confere à Assembleia Nacional competência legislativa exclusiva para legislar sobre «aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade», e sujeita as leis que versem sobre tais matérias à aprovação por maioria de dois terços dos Deputados presentes desde que superior à maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções 5. Considerando a importância da matéria, a Lei Fundamental atribui ainda à Assembleia Nacional competência exclusiva para aprovação, ratificação ou adesão, de tratados e acordos internacionais que versem sobre «aquisição, perda e reaquisição da nacionalidade» 6. Em Cabo Verde, diferentemente do que sucede no Brasil, a Constituição, em várias das suas disposições, apresenta os conceitos de cidadania e nacionalidade como sinónimos. Note-se, no entanto, que o legislador constitucional fez uma opção clara pelo conceito de cidadania 7, como o vínculo de carácter jurídico-

Artigos 175º, alínea a), 159º, nº 4 e 160º da CRCV. Artigos 175º, alínea a) e 178º, alínea b) da CRCV. 7 Esta opção poderá encontrar justificação na ligação ou utilização não democrática do conceito «nacionalidade» por parte de alguns regimes políticos, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, como por exemplo na Alemanha Nazi, na Itália Fascista e em Portugal, durante o chamado Estado Novo. 5

6

167

Júlio Martins Tavares

político que liga o indivíduo ao Estado, com todo o conteúdo e efeito do estatuto em que a cidadania se traduz. A Lei Fundamental faz referência específica a cidadãos ou cidadãos cabo-verdianos em várias das suas disposições, como se pode constatar de uma simples leitura dos artigos 5º, 22º, 23º, 24º, 36º, 37º, 44º, 45º, 50º, 52º, 54º, 55º, 56º, 58º, 60º, 71º, 84º, 102º, 109º, 116º, 139º, e 175º, alínea a). Assim, e por considerar que, entre nós, a utilização da expressão nacionalidade constitui já tradição, adoptámo-la, assinalando que a mesma é aqui utilizada como sinónimo de cidadania. 2.2. Densificação do conceito de nacionalidade A CRCV e a legislação ordinária sobre a nacionalidade não a definem. Como reconhece a doutrina autorizada, o legislador deve deixar para os estudiosos do Direito a tarefa de definir conceitos. Fazendo um périplo pelo Direito comparado, verificamos que a nacionalidade é geralmente definida como o vínculo jurídico que liga um indivíduo a um determinado Estado, tornando-o elemento humano deste, do qual resulta para ambos, direitos e deveres recíprocos. No Brasil, citando o seu colega PONTES DE MIRANDA, o Professor JOSÉ AFONSO DA SILVA caracteriza a nacionalidade como um vínculo jurídico-político de Direito Público interno, que faz do indivíduo um dos elementos componentes da dimensão pessoal do Estado 8. Em Portugal, acompanhando os ensinamentos do Professor A. FERRER CORREIA, o Professor ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS

8 In Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª Edição Revista, 3ª Tiragem, São Paulo, Malheiro Editores, 1992, p. 283 e ss.

168

Aspectos Polémicos da Extradição

definiu a nacionalidade como o vínculo jurídico-político que, ligando um indivíduo a um Estado, traduz a pertença daquele à comunidade de carácter pessoal que é substrato do poder estadual 9. Posto isto, podemos definir a nacionalidade cabo-verdiana como o vínculo jurídico-político de Direito Público interno que, ligando um indivíduo ao Estado de Cabo Verde, o torna parte integrante da comunidade de carácter pessoal que é substrato do poder estadual, do qual resulta para ambos direitos e deveres recíprocos. 2.3.

Evolução

do

Direito

Cabo-verdiano

da

Nacionalidade A evolução do Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade pode ser dividida em três fases: 1ª Fase: de 1975 a 1976; 2ª Fase: de 1976 a 1992; 3ª Fase: a partir de 1992. A) 1ª Fase: a fase de transição Esta fase inicia-se com a ascensão do país à independência, a 5 de Julho de 1975, e com a aprovação, nessa mesma data, da LOPE 10. Esta fase é marcada pela vigência, transitória, da antiga legislação portuguesa sobre a nacionalidade, a Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959. Como refere GERALDO ALMEIDA, a independência de Cabo Verde, em 1975, «não implicou a substituição automática de toda a legislação em vigor àquela data. Pelo contrário, quer a LOPE (…) – quer a 9 Estudos de Direito da Nacionalidade, Coimbra, Almedina, 1998, p. 257. Neste sentido, veja-se, por todos, Rui Moura Ramos, “Cidadania” In: Polis, Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, pp. 823 – 830. 10 Cf. Boletim Oficial nº 1, de 5 de Julho de 1975 e Mário Ramos Pereira Silva (org.), As Constituições de Cabo Verde e Textos Históricos de Direito Constitucional Caboverdiano, Praia, Edição do Autor, 2007.

169

Júlio Martins Tavares

Constituição da República, aprovada na IX Sessão Legislativa da Primeira Legislatura a 5 de Setembro de 1980, ressalvaram a vigência transitória de toda a legislação em vigor em Cabo Verde, à data da independência nacional “não contrária à Constituição e às restantes leis da República e aos princípios e objectivos do PAICV”, conferindo, por esta via, título legal de vigência ao essencial dessa legislação» 11. Na verdade, a LOPE estabelecia, no seu artigo 22º, que: «A legislação portuguesa em vigor nesta data mantém-se transitoriamente em vigor, em tudo o que não for contrário à soberania nacional, à presente Lei, às restantes Leis da República e aos princípios e objectivos do P.A.I.G.C.»

A Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, instituía, em sede do estabelecimento a título originário do vínculo de nacionalidade, um relevo distintivo da filiação paterna 12. A citada lei previa, nas Bases VII e IX, regras diferentes para a constituição da nacionalidade consoante se tratasse de filhos legítimos e ilegítimos. Nos termos do disposto na Base X da Lei nº 2098, o casamento com cabo-verdiano determinava a aquisição, pela mulher estrangeira, da nacionalidade cabo-verdiana, salvo se ela declarasse que a não queria adquirir e provasse que não tinha perdido a sua nacionalidade anterior. Porém, tal dispositivo não permitia, em idênticas circunstâncias, que o estrangeiro que se casasse com uma nacional cabo-verdiana adquirisse a nacionalidade cabo-verdiana. A Base XXXI da Lei nº 2098 consagrava a possibilidade de a mulher casada com indivíduo que adquirira a nacionalidade caboverdiana também a adquirir, mediante declaração de que queria ser cabo-verdiana. 11 12

In: Código da Terra, Praia, Livraria Saber, 2002, p. 16. Cf. Bases I, IV, V, VII e IX.

170

Aspectos Polémicos da Extradição

A Lei nº 2098 estabelecia uma causa especial de perda da nacionalidade, a qual atingia a mulher cabo-verdiana que se casasse com um estrangeiro. A Base XX da Lei nº 2098 permitia o Governo decretar a perda de nacionalidade aos indivíduos que, sendo cabo-verdianos: ƒ

Se comportassem como estrangeiros;

ƒ

Fossem condenados por crime doloso contra a segurança do Estado de Cabo Verde;

ƒ

Ilicitamente exercessem a favor de potência estrangeira ou de seus agentes actividades contrárias aos interesses da Nação cabo-verdiana.

A mencionada lei previa, nas Bases XXVIII e XXX, certas inibições à plena capacidade dos indivíduos que adquirissem a nacionalidade cabo-verdiana por naturalização. B) 2ª Fase: a fase de aprovação e entrada em vigor da primeira lei cabo-verdiana da nacionalidade À fase de transição, marcada pela vigência da antiga legislação portuguesa sobre a nacionalidade, segue-se a fase da aprovação e entrada em vigor da primeira lei da nacionalidade, a qual foi aprovada pelo Decreto-Lei nº 71/76, de 24 de Julho, e regulamentada pelo Decreto nº 102/76, de 20 de Novembro. Gorada a unidade entre os povos da Guiné Bissau e de Cabo Verde em 1981, na sequência dos acontecimentos que levaram João Bernardo Vieira (Nino Vieira) à Presidência da República daquele país, em 1987 foi aprovado o Decreto-Lei nº 31/87, de 28 de Março, através do qual se procedeu à revogação expressa da alínea a) do artigo 4º e artigo 6º do Decreto-Lei nº 71/76, de 24 de Julho.

171

Júlio Martins Tavares

No que respeita aos critérios determinantes da nacionalidade, o Decreto-Lei nº 71/76, de 24 de Julho, adoptou os critérios do ius soli e o critério do ius sanguinis, com forte predominância do ius soli 13. As preocupações derivadas dos fenómenos migratórios, devido ao facto de Cabo Verde ser um país de diásporas, justificaram a manutenção, por um lado, do ius soli para assegurar a integração da população residente no país e, por outro lado, do ius sanguinis, para manter o emigrante ligado à pátria, embora de uma forma muito tímida. A segunda fase da evolução do Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade pode ser dividida em dois períodos: a) 1º Período: de 1976 a 1990; b) 2º Período: de 1990 a 1992. a) Primeiro período A lei da nacionalidade de 1976 consagrava duas formas de aquisição da nacionalidade cabo-verdiana por efeito da vontade, como sejam, por casamento e por naturalização 14. A aquisição da nacionalidade por casamento dependia do preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: ƒ

Ser casado com cidadão cabo-verdiano há pelo menos três anos;

ƒ

Ter domicílio em Cabo Verde;

ƒ

Ter renunciado a nacionalidade anterior;

ƒ

Oferecer garantias políticas e morais de integração na sociedade cabo-verdiana.

A aquisição da nacionalidade por naturalização dependia do preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos: 13 14

Cfr. Artigos 1º, 2º e 3º do Decreto-Lei nº 71/76, de 24 de Julho. Cfr. Artigos 5º, 6º e 7º do Decreto-Lei nº 71/76, de 24 de Julho.

172

Aspectos Polémicos da Extradição

ƒ

Residir habitual e regularmente em Cabo Verde durante pelo menos cinco anos;

ƒ

Ser maior face à legislação cabo-verdiana e face às leis do Estado de origem;

ƒ

Oferecer garantias políticas e morais de integração na sociedade cabo-verdiana.

A lei de 1976, no seu CAPÍTULO III, previa a perda da nacionalidade, estabelecendo, no artigo 10º, as seguintes causas: ƒ

A aquisição voluntária de outra nacionalidade;

ƒ

A não cessação de prestação de qualquer serviço a um Estado estrangeiro no prazo fixado pelo Governo, por aquele que tenha aceite prestar tal serviço sem autorização do Governo de Cabo Verde;

ƒ

A declaração, após a cessação da incapacidade, de não querer ser cabo-verdiano e prova de outra nacionalidade, daquele que, quando incapaz, obteve a nacionalidade.

Nos termos do artigo 11º da citada lei, o Governo podia declarar a perda da nacionalidade aos indivíduos que, sendo cabo-verdianos: ƒ

Sejam condenados definitivamente por crime doloso contra a segurança externa do Estado;

ƒ

Ilicitamente exercessem, a favor de potência estrangeira ou de seus agentes, actividades contrárias aos interesses do país.

Face ao que se dispunha no artigo 11º do Decreto-Lei nº 71/76, de 24 de Julho, pode-se concluir que durante o tempo em que o mesmo vigorou, à semelhança do que sucedeu no período de transição, o Estado continuou a poder, unilateralmente, decretar a perda da nacionalidade a cidadãos cabo-verdianos, verificadas as causas que legalmente a determinassem.

173

Júlio Martins Tavares

b) Segundo Período Com a aprovação e entrada em vigor da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, que revogou os Decretos-Leis nºs 71/76, de 24 de Julho e 31/87, de 28 de Março, inicia-se o segundo período da segunda fase da evolução do Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade. A Lei da Nacionalidade de 1990

manteve

em

vigor,

transitoriamente,

o

regulamento

da

nacionalidade constante do Decreto nº 102/76, de 20 de Novembro. No essencial, o Direito da Nacionalidade manteve a característica que tinha no primeiro período, constituindo novidade, em sede da aquisição da nacionalidade por efeito da vontade. Por um lado, a admissão da constituição do vínculo de nacionalidade por adopção e, por outro, a preponderância do critério do ius sanguinis sobre o ius soli 15. De igual modo, a lei de 1990, inicialmente, não admitia a dupla ou múltipla nacionalidade. Com efeito, não se lhe reconhecia quaisquer sinais no sentido de evitar ou combater situações de apatridia, antes pelo contrário, previa circunstâncias que determinavam perda automática da nacionalidade cabo-verdiana. Na verdade, a lei de 1990, no seu artigo 16º, enumerava as causas que, por efeito de lei, determinavam a perda da nacionalidade caboverdiana. Nos termos do disposto nos artigos 14º e 16º da Lei nº 80/III/90, determinavam a perda da nacionalidade cabo-verdiana, por mero efeito da lei: ƒ

A obtenção da nacionalidade de outro Estado;

ƒ

A condenação definitiva por crime contra a segurança externa do Estado de Cabo Verde;

ƒ

A prestação de serviço militar não obrigatório a um Estado estrangeiro;

15

Cfr. Artigos 10º e 11º da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho.

174

Aspectos Polémicos da Extradição

ƒ

O exercício de outras funções públicas de carácter político a favor do Estado estrangeiro sem autorização do Governo de Cabo Verde se, no prazo por este fixado, essas funções não forem abandonadas, salvo acordo ou convenção internacional.

C) 3ª Fase: a fase da consagração da nacionalidade como direito fundamental A terceira fase da evolução do Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade pode ser dividida em dois períodos: a) 1º Período: de 6 de Abril a 25 de Setembro de 1992; b) 2º Período: desde 25 de Setembro de 1992. a) Primeiro período O primeiro período da terceira fase da evolução do Direito Caboverdiano da Nacionalidade inicia-se com a aprovação e entrada em vigor da Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril, que revogou os artigos 14º, 16º, 18º, 35º e 36º da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho. Foram alterados os artigos 5º, 9º, 12º, 13º e 19º da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, e com a revogação dos artigos 14º, 16º, 18º, 35º e 36º da mesma lei, operou-se uma mudança de fundo no Direito da Nacionalidade que, apesar de constar da lei ordinária, é erigida à categoria de um verdadeiro direito fundamental. Na verdade, o Estado deixou de poder decretar a perda da nacionalidade aos indivíduos. O artigo 15º da Lei da Nacionalidade, na alteração que lhe introduziu a Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril, veio sujeitar a perda da nacionalidade a dois pressupostos: em primeiro lugar, à existência de declaração expressa do indivíduo renunciando a nacionalidade cabo-verdiana; em segundo lugar, que o indivíduo que declare não querer ser cabo-verdiano tenha uma outra nacionalidade. 175

Júlio Martins Tavares

Aqui, a preocupação do legislador em impedir situações de apatridia é patente. Estabelece o artigo 15º da Lei da Nacionalidade, na alteração que lhe introduziu a Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril, que: «Perde a nacionalidade cabo-verdiana aquele que, sendo nacional de outro Estado, declare não querer ser cabo-verdiano.»

b) Segundo período O segundo período da terceira fase de evolução do Direito Caboverdiano da Nacionalidade, que ainda está em curso, inicia-se com a aprovação e entrada em vigor da CRCV de 1992, que constitucionalizou o direito da nacionalidade, reconhecendo-o, expressamente, como um direito fundamental. 2.4. Caracterização do actual Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade Em matéria de nacionalidade, as leis dos diversos países adoptam, geralmente, critérios que determinam a atribuição da nacionalidade, atendendo à nacionalidade dos progenitores (ius sanguinis), ao local do nascimento (ius soli), ou, conjuntamente, os dois critérios, com prevalência de um ou outro critério 16. Como é sabido, a nacionalidade pode ser originária ou derivada, consoante seja atribuída ao indivíduo pelo nascimento, ou a sua aquisição se faça em momento posterior.

16 Neste sentido, veja-se, por todos, José de Oliveira Ascensão, “O anteprojecto de lei da nacionalidade de Cabo Verde”, separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, v. XXXII, 1991, pp. 465-513.

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Aspectos Polémicos da Extradição

A nacionalidade originária decorre da ligação do facto natural, o nascimento, com um ou os dois critérios (conjuntamente) estabelecidos pelo Estado para a determinação da nacionalidade. A nacionalidade derivada (ou secundária) é a que se adquire, depois do nascimento, por facto voluntário. Os modos de aquisição da nacionalidade derivada dependem, em primeiro lugar, da vontade do indivíduo e, em segundo lugar, da vontade do Estado. A CRCV de 1992, como dissemos anteriormente, reconheceu e erigiu a nacionalidade à constelação de direitos fundamentais e, a outro tempo, consagrou a cláusula de proibição absoluta de extradição de cidadãos nacionais como uma verdadeira e própria garantia fundamental dos cidadãos cabo-verdianos. A nível da legislação ordinária, o regime actual da nacionalidade consta, basicamente, da Lei nº 80/III/90 17, de 29 de Junho, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril, da Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro, da Lei nº 51/VI/2004, de 13 de Setembro, do Decreto nº 114/90, de 8 de Dezembro, do Decreto-Lei nº 53/93, de 30 de Agosto, do Decreto-Lei nº 19/2000, de 24 de Abril, que fixam e regulam a forma de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade cabo-verdiana. De harmonia com o disposto nos artigos 5º, 22º, 23º, 24º e 38º da CRCV, as pessoas que se encontrem em Cabo Verde que não sejam cidadãos cabo-verdianos, podem ser estrangeiros ou apátridas. O regime jurídico dos estrangeiros e apátridas consta, em primeiro lugar, da Lei Fundamental, que os equipara a cidadãos nacionais em certos aspectos, do Código Civil (artigos 14º e 32º), e do Decreto Sem prejuízo do que dissemos no texto sobre a evolução da legislação ordinária em matéria da nacionalidade, a expressão «Lei da Nacionalidade» significa toda a legislação da nacionalidade e o respectivo regulamento vigente no momento em referência.

17

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Legislativo nº 6/97, de 5 de Maio, alterado pelo Decreto Legislativo nº 3/2005, de 1 de Agosto. Note-se que a determinação da cidadania dos indivíduos assume relevo particular, já que, de acordo com o preceituado nos artigos 25º e 31º, nº 1 do Código Civil, a respectiva lei pessoal, a da sua nacionalidade, é a lei reguladora de aspectos mais relevantes, senão mesmo mais importantes do estado dos indivíduos, como sejam a capacidade das pessoas, as relações de família e as sucessões por morte 18. 2.4.1. A nacionalidade originária A nacionalidade originária, designada atribuição da nacionalidade, acha-se regulada nos artigos 7º e 8º (inseridos no Capítulo II) da Lei da Nacionalidade. Resulta da aplicação conjunta e equilibrada dos critérios do ius sanguinis e do ius soli, com manifesta preferência pelo primeiro dos critérios 19. Dispõe o artigo 7º da Lei da Nacionalidade que são cidadãos caboverdianos originários: a) O indivíduo nascido em Cabo Verde de pai ou mãe de nacionalidade cabo-verdiana; b) O indivíduo nascido no estrangeiro de pai ou mãe de nacionalidade cabo-verdiana, que se encontre ao serviço de Estado de Cabo Verde; c) O indivíduo nascido em território cabo-verdiano quando não possua outra nacionalidade; d) O indivíduo nascido em Cabo Verde de pai e mãe apátridas ou de nacionalidade desconhecida residentes em Cabo Verde.

Artigos 49º, 52º, 55º do Código Civil. A combinação dos dois critérios, o ius sanguinis e o ius soli, visa, entre outros, evitar a situação de apatridia. 18 19

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Aspectos Polémicos da Extradição

Para efeitos de atribuição da nacionalidade cabo-verdiana, a Lei da Nacionalidade estabelece uma presunção elidível, nos termos da qual se deve considerar que o recém-nascido exposto em território caboverdiano nasceu em Cabo Verde. Face a tal presunção, a questão é a de saber o que se deve entender por território cabo-verdiano, já que a Lei da Nacionalidade não o define. Ora, parece não suscitar dúvidas de que o território cabo-verdiano é o estabelecido pelo artigo 6º da Constituição da República de Cabo Verde de 1992, que, no seu nº 1, preceitua: «O território da República de Cabo Verde é composto: a) Pelas ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Santiago, Fogo e Brava, e pelos ilhéus e ilhotas que historicamente sempre fizeram parte do arquipélago de Cabo Verde; b) Pelas águas interiores, as águas arquipelágicas e o mar territorial definidos na lei, assim como os respectivos leitos e subsolos; c) Pelo espaço aéreo suprajacente aos espaços geográficos referidos nas alíneas anteriores.»

Ainda no que respeita à nacionalidade originária, estabelece o artigo 8º da Lei da Nacionalidade que são cidadãos cabo-verdianos de origem, por opção e mediante declaração: a) b)

c)

O indivíduo nascido no estrangeiro de pai, mãe, avô ou avó de nacionalidade cabo-verdiana de nascimento 20; O indivíduo nascido em Cabo Verde de pais estrangeiros, se estes residirem habitualmente em território cabo-verdiano há pelo menos cinco anos e nenhum deles aí se encontre ao serviço do respectivo Estado; Os indivíduos que por força da versão originária da Lei da Nacionalidade perderam a nacionalidade cabo-verdiana, por efeito da aquisição voluntária de nacionalidade estrangeira.

A atribuição da nacionalidade cabo-verdiana ao indivíduo nascido no estrangeiro em virtude de ser ele neto de cidadão cabo-verdiano de origem resultou da alteração do artigo 8º, alínea a) da Lei nº 80/III/90, de 29 de Julho, operada pela Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro. 20

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Questão controversa é a da reatribuição ou da reaquisição da nacionalidade. Na verdade, estatui o artigo 17º da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, que: «Aquele que haja perdido a nacionalidade cabo-verdiana de origem por efeito de declaração prestada durante a sua incapacidade, pode readquiri-la, até dois anos após a cessação da incapacidade, mediante requerimento, desde que tenha estabelecido residência em território caboverdiano há pelo menos seis meses.»

Na situação prevista no artigo 17º da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, é claro que estamos perante o instituto de reaquisição da nacionalidade, já que a recuperação do estatuto perdido depende do requerimento do interessado, o que pressupõe, obviamente, intervenção do Estado ou dos seus órgãos para o efeito. Quanto aos pressupostos, o requerente deve residir em Cabo Verde durante pelo menos seis meses à data da petição, devendo o requerimento ser formulado dentro do prazo de dois anos após a cessação da incapacidade. A Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro, veio permitir que os indivíduos que perderam a nacionalidade cabo-verdiana por mero efeito da lei, mediante declaração, recuperem o estatuto perdido, mediante declaração. Obviamente que isso, tanto pode significar nacionalidade originária, como nacionalidade derivada. Na verdade, a intenção do legislador objectivamente expressa é claramente no sentido de permitir corrigir a situação da perda da nacionalidade decretada anteriormente em virtude de não admissão da dupla ou múltipla nacionalidade. Dispõe a Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro, no seu artigo 2º, que: «Podem readquirir a nacionalidade cabo-verdiana, mediante declaração, os que, nos termos da Lei nº 80/III/90, de 29 de Julho, e legislação precedente,

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Aspectos Polémicos da Extradição

perderam a nacionalidade cabo-verdiana por efeito de aquisição voluntária de nacionalidade estrangeira.»

Uma leitura atenta da norma contida no artigo 2º da Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro, permite concluir que a expressão, «podem readquirir a nacionalidade cabo-verdiana», utilizada pelo legislador, abrange tanto a nacionalidade originária, como a derivada. Ou seja, tanto pode significar reaquisição, como nova atribuição da nacionalidade. É claro que, se um indivíduo perder a nacionalidade originária, é esta que há-de recuperar. Pelo contrário, se for a nacionalidade derivada, logicamente recuperará esta modalidade de nacionalidade e não a outra. 2.4.2. A nacionalidade derivada A nacionalidade derivada, ou adquirida, é regulada nos artigos 9º, 10º, 11º, 12º da Lei da Nacionalidade. Ela pode resultar da naturalização ou de outros factores legalmente relevantes como o casamento com quem tenha a nacionalidade cabo-verdiana, a adopção e a filiação, e obtém-se por uma das seguintes formas: a) O filho menor ou incapaz de pai ou mãe que adquira a nacionalidade cabo-verdiana, mediante declaração nesse sentido 21; b) O estrangeiro casado com nacional cabo-verdiano, mediante declaração

nesse

sentido,

na

constância

do

casamento 22; c) Os que, tendo perdido a nacionalidade cabo-verdiana por declaração de vontade prestada tenham estabelecido residência

Artigo 10º da Lei da Nacionalidade. Artigo 9º da Lei da Nacionalidade, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril. 21

22

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em território cabo-verdiano há pelo menos três anos, queiram adquiri-la 23; d) O menor estrangeiro, ou apátrida, ou de nacionalidade desconhecida adoptado por nacional cabo-verdiano 24; e) A naturalização 25. A Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril de 1992, eliminou todos os requisitos que antes eram exigidos para que o indivíduo que case com cidadão cabo-verdiano possa, em virtude do casamento, adquirir a nacionalidade cabo-verdiana. De entre aqueles requisitos constava a exigência da manutenção do tempo de casamento, nunca inferior a três anos. Não se descortinam as razões que terão levado o legislador a tomar tal decisão. Pretenderá significar que o casamento com nacional caboverdiano constitui, por si, uma ligação efectiva com a comunidade e cultura cabo-verdianas que justifique a constituição do vínculo da nacionalidade cabo-verdiana? Relativamente à aquisição da nacionalidade por casamento, sabe-se que a exigência da manutenção do vínculo matrimonial durante um certo período de tempo pode desincentivar os chamados «casamentos em branco». Ou seja, casamentos cujo fim não é a constituição de uma família, mas sim o de permitir a aquisição da nacionalidade do indivíduo que se case com cidadão nacional de determinado país. A aquisição da nacionalidade por naturalização depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: a) Serem os naturalizandos maiores ou emancipados face à legislação cabo-verdiana; Artigo 18º da Lei da Nacionalidade. Artigo 11º da Lei da Nacionalidade. 25 Artigo 12º da Lei da Nacionalidade, com a redacção que lhe introduziu a Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril. 23

24

182

Aspectos Polémicos da Extradição

b) Residirem habitualmente em território cabo-verdiano, durante pelo menos cinco anos; c) Terem os naturalizandos idoneidade moral e civil; d) Possuírem capacidade para reger a sua pessoa e assegurar a sua subsistência; Por outro lado, a nacionalidade cabo-verdiana, por naturalização, pode ser concedida a cidadão estrangeiro que participe de programas de investimentos, realize ou ofereça garantias seguras de poder realizar investimentos que aumentem inequivocamente oportunidades de emprego e contribuam de forma significativa para o desenvolvimento do país. O Ministro da Justiça, no âmbito da competência que a lei lhe confere para conceder a nacionalidade por naturalização, pode dispensar o tempo de residência no país aos que forem considerados descendentes de cabo-verdianos que não sejam os referidos na alínea a) do artigo 8º da Lei da Nacionalidade (com a alteração introduzida pela Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro) e aos estrangeiros que tenham prestado serviços relevantes ao Estado de Cabo Verde (artigo 12º, nº 2 da mesma lei). Há aqui um poder discricionário cujos contornos carecem de alguma concretização. A nosso ver, dada a natureza do direito fundamental do vínculo da nacionalidade e a necessidade de ele corresponder a uma ligação efectiva, real, de um indivíduo ao Estado, é fundamental que se definam critérios que permitam, com alguma objectividade, determinar quando é que se pode considerar relevante um serviço que alguém tenha prestado ao Estado de Cabo Verde, para efeitos de concessão da nacionalidade caboverdiana por naturalização, ao invés do conceito impreciso «serviços relevantes» que consta da actual lei.

183

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Antes de passarmos a considerar o instituto da perda da nacionalidade cabo-verdiana, onde se reflecte com particular incidência o seu recorte constitucional como um verdadeiro e próprio direito fundamental, importa sublinhar que relativamente à aquisição da nacionalidade (nacionalidade derivada), a actual Lei da Nacionalidade é, sem dúvida, excessivamente generosa e bastante permissiva à fraude, podendo, aliás, propiciar a procura de aquisição de nacionalidade caboverdiana por indivíduos que estejam a furtar-se à acção da justiça do seu país de origem, ou mesmo a situações absurdas de premiar quem tenha residido ilegalmente em Cabo Verde durante um certo período de tempo. MOURA RAMOS escreveu, a este respeito, que «os comandos substantivos do direito da nacionalidade têm por missão definir os critérios a partir dos quais se considera existir, entre um indivíduo e um Estado, uma ligação suficientemente forte, tão forte que legitime a sua inserção na categoria dos cidadãos deste último, isto é, daqueles sobre os quais se exerce a competência pessoal de uma comunidade politicamente organizada» 26 (itálico nosso). No que respeita à aquisição da nacionalidade cabo-verdiana por naturalização, parece que o legislador cabo-verdiano privilegia a residência de facto e não de jure. Ora, sendo a residência um acto de vontade, essa opção pode levar a consequências absolutamente inaceitáveis, permitindo que um indivíduo que resida ilegalmente em Cabo Verde durante mais de cinco anos venha a obter a nacionalidade cabo-verdiana. Efectivamente, a lei não exige que a residência habitual em Cabo Verde durante o período relevante seja mediante título válido de

Do Direito Português da Nacionalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, notas de rodapé, p. 78.

26

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Aspectos Polémicos da Extradição

residência, ou seja, residência de facto e de jure, como de resto acontece em quase todos os países. Porém, no que respeita à concessão da nacionalidade económica 27 a magnanimidade do legislador ordinário vai ainda mais longe, abdicando-se, por completo, de qualquer exigência de ligação efectiva do estrangeiro com Cabo Verde. É certo que a lei restringe a nacionalidade económica, já que ela «não concede aos seus beneficiários os direitos essencialmente políticos, designadamente o direito de eleger e ser eleito para os órgãos de soberania e municipais, bem como o exercício de funções públicas com carácter permanente.» 28 No entanto, dada a natureza de direito fundamental da nacionalidade, temos sérias dúvidas quanto à constitucionalidade da disposição legal que estabelece tais restrições à nacionalidade económica. Na verdade, sendo a nacionalidade um direito fundamental, uma vez concedida, parece inadmissível e constitucionalmente ilegítima que o Estado, sem o concurso da vontade do indivíduo, possa decretar a sua perda, mesmo que seja nacionalidade económica. A perda da nacionalidade, ainda que económica, só poderá ocorrer verificados os pressupostos descritos no artigo 15º da Lei da Nacionalidade, na redacção que lhe foi fixada pela Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril. Por outro lado, o instituto da oposição da aquisição à nacionalidade não tem a possibilidade de evitar situações de aquisição da nacionalidade

27 Por nacionalidade económica, como decorre da Lei da Nacionalidade, entende-se a que é concedida ao estrangeiro que participe de programas de investimentos, realizar ou oferecer garantias seguras de poder realizar investimentos que aumentem inequivocamente oportunidades de emprego e contribuam de forma significativa para o desenvolvimento do país. 28 Artigo 12º, nº 4, da Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro.

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cabo-verdiana, mesmo nas hipóteses de manifesta inexistência de ligação efectiva, real, do indivíduo ao Estado de Cabo Verde. Efectivamente, nos termos dos artigos 19º e 20º da Lei da Nacionalidade, o Ministério Público pode deduzir, no Tribunal da Comarca da Praia, oposição à aquisição da nacionalidade por casamento, filiação e adopção, ou a sua reaquisição. A oposição deverá ser instaurada a partir da data da declaração da vontade de que depende a aquisição ou a reaquisição da nacionalidade, devendo, para o efeito, todas as autoridades participar ao Ministério Público os factos que constituem fundamentos da oposição à aquisição ou reaquisição da nacionalidade. Ora, a necessidade da efectividade do vínculo da nacionalidade, como temos vindo a defender, impõe que a comunicação da pretensão de aquisição ou reaquisição da nacionalidade cabo-verdiana ao Ministério Público, para efeitos de oposição, tenha carácter geral e não se cinja aos factos que poderão constituir fundamentos à oposição enumerados no artigo 19º da Lei da Nacionalidade. O alargamento do âmbito do dispositivo legal que obrigue a referida comunicação nestes termos, deverá ser acompanhado da fixação de um prazo de caducidade ao Ministério Público para que este possa, havendo fundamentos, intentar a competente acção, a contar da data da comunicação da declaração de vontade, da qual depende a aquisição ou reaquisição da nacionalidade cabo-verdiana. Só assim se elevará o Direito ordinário da Nacionalidade à categoria e dignidade que a CRCV de 1992 empresta à cidadania caboverdiana. É o que se passa, de resto, em quase todas as latitudes. Basta ver as exigências impostas pelo Direito dos países europeus ou mesmo dos EUA

186

Aspectos Polémicos da Extradição

para a aquisição da nacionalidade, mesmo que adoptem o princípio do ius soli como critério atributivo básico da nacionalidade originária. 2.4.3. A perda da nacionalidade A legislação anterior, a Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, e a Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, até 1991, determinavam a perda da nacionalidade por mero efeito da lei e independentemente da vontade do indivíduo, quando este praticasse certos factos legalmente tipificados como crimes. Nos termos da BASE XVIII da Lei nº 2098, de 29 de Julho de 1959, o Governo podia, por deliberação do Conselho de Ministros, decretar a perda da nacionalidade cabo-verdiana. Por seu turno, a Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, enumerava as situações em que, por mero efeito da lei, se perdia a nacionalidade cabo-verdiana. Foi a Lei nº 64/IV/92, de 6 de Abril, que veio conferir à cidadania cabo-verdiana o estatuto de verdadeiro direito fundamental, em sentido material, como é evidente! Esta lei, não só revogou os artigos 14º e 16º da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, como também retirou a possibilidade de intervenção do Estado no sentido de concorrer para a perda da nacionalidade. Ficou, assim, estabelecido no ordenamento jurídico caboverdiano que a nacionalidade apenas se perde por declaração de vontade. Efectivamente, sob a epígrafe “Perda da nacionalidade” dispõe o artigo 15º da Lei da Nacionalidade, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 64/IV/92, de 6 de Abril, que: «Perde a nacionalidade cabo-verdiana aquele que, sendo nacional de outro Estado, declare não querer ser cabo-verdiano.»

Elevada materialmente à constelação de direitos fundamentais, a cidadania foi constitucionalizada, formalmente, pela CRCV de 1992.

187

Júlio Martins Tavares

Por conseguinte, os artigos 14º e 16º da Lei da Nacionalidade, na redacção da Lei nº 80/III/90, de 29 de Junho, caso não tivessem sido expressamente revogados, os respectivos conteúdos padeceriam de inconstitucionalidade superveniente, por incompatibilidade com a Lei Fundamental, em particular com o disposto nos seus artigos 17º, nº 5 e 39º. É que, em matéria dos direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição, o nº 5 do artigo 17º da Lei Fundamental apenas permite a compressão dos mesmos, observados os requisitos que enumera. Não permite, pois, a supressão dos direitos, liberdades e garantias, como atestam as certeiras palavras de MOURA RAMOS, «cremos exigirse assim, para que um Estado que consagra a nacionalidade como um direito fundamental dela possa privar um dos seus cidadãos, ou uma expressão positiva e concordante (ainda que por via indirecta) da vontade deste ou, ao menos, a inexistência de uma manifestação em contrário dessa mesma vontade. Só desta forma se respeitaria a nacionalidade enquanto direito fundamental, apenas se permitindo que o Estado dela disponha (e tendo em conta os interesses públicos que a tanto aconselham) quando o seu titular a isso se não opuser.» 29 De facto, os direitos fundamentais são, antes de tudo, um direito dos indivíduos contra o Estado 30, que este deve apenas reconhecer e respeitar. O disposto no artigo 15º da Lei da Nacionalidade, na redacção que lhe introduziu a Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril, é corolário da consagração do vínculo da nacionalidade como direito fundamental.

29 30

Ob. cit., notas de rodapé, p. 72 (Itálico nosso). José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, cit., página 287.

188

Aspectos Polémicos da Extradição

Note-se que a citada disposição legal em apreço não distingue a nacionalidade originária da derivada, pelo que não pode o intérprete fazer tal distinção. Assim,

independentemente

da

modalidade

do

vínculo

da

nacionalidade, a sua perda depende, em primeiro lugar, da existência da declaração do titular do direito no sentido da sua renúncia e, em segundo lugar, da eficácia da declaração da renúncia. Pois, esta só será eficaz se o autor da declaração tiver outra nacionalidade. 2.5.

Registo,

prova,

contencioso

e

conflito

de

nacionalidade Finalmente, importa referir que o vínculo da nacionalidade está sujeito a registo, prova e contencioso. Por outro lado, em virtude da admissão pela lei da situação de dupla ou múltipla nacionalidade e da intenção do legislador, manifestamente expressa, no sentido de combater a apatridia, estão previstas situações de conflitos de nacionalidade 31. Estas matérias estão integradas do Capítulo VI da Lei da Nacionalidade,

que

tem

como

epígrafe

“Registo,

prova

e

contencioso da nacionalidade”, e constam dos artigos 21º a 33º. Uma vez que as disposições que regulam estas matérias têm carácter bastante descritivo, julgamos desnecessário dedicar-lhes atenção especial.

31 A problemática da efectividade da nacionalidade que temos vindo a referenciar é importante em situações em que Cabo Verde pretenda, contra um outro Estado, proteger um cidadão cabo-verdiano, que também seja cidadão de um outro Estado. Numa situação envolvendo pelo menos três Estados, aquele de que o cabo-verdiano não é também nacional, poderá, socorrendo-se aos instrumentos do Direito Internacional Público, designadamente a Convenção de Haia sobre a nacionalidade, opor-se à pretensão de Cabo Verde, alegando a falta de efectividade da nacionalidade cabo-verdiana.

189

Júlio Martins Tavares

Entendemos, aliás, que neste particular a Lei da Nacionalidade não carece de alteração. III. O Princípio Constitucional da Proibição de Extradição de Nacionais e a Proibição Constitucional da Extradição em Função da Pena Aplicável 3.1. Densificação do conceito de extradição e de política criminal Feita a caracterização sumária do Direito Cabo-verdiano da Nacionalidade, passaremos a abordar a problemática da proibição constitucional da extradição, seja em razão da nacionalidade, seja em função da pena aplicável. Importa começar por precisar dois conceitos: a extradição e a política criminal. 3.1.1. Extradição A extradição é o mais antigo e tradicional mecanismo de cooperação judiciária internacional em matéria penal, configurando-se como o mais eficaz na luta contra certas formas graves de criminalidade. Consiste na entrega de uma pessoa que se encontra no território de um Estado a outro Estado, a pedido deste, para neste ser julgado por crimes que caem sob a jurisdição dos tribunais do Estado que a reclama ou para cumprir pena em que aí fora condenado pelos tribunais desse Estado. A extradição pode ser passiva ou activa, consoante é encarada do lado do Estado requerido ou do lado do Estado requerente. A extradição passiva configura a entrega do arguido ou condenado que, tendo cometido crimes no estrangeiro, se encontra no território cabo-verdiano, ao Estado que solicita a sua entrega, para aí ser julgado

190

Aspectos Polémicos da Extradição

ou sujeito ao cumprimento da pena que lhe fora imposta pelos tribunais daquele Estado. A extradição activa traduz-se na obtenção de entrega do arguido ou condenado por parte do Estado onde ele se encontrava. A extradição é regulada pela Constituição (CRCV) e pelo Decreto Legislativo 32 nº 6/97, de 5 de Maio, alterado pelo Decreto Legislativo nº 3/2005, de 1 de Agosto. É consabido por todos que a Constituição da República de Cabo Verde de 1992 (CRCV) não admite a extradição de cidadão caboverdiano 33, mas permite que o mesmo seja julgado perante os tribunais cabo-verdianos por ilícitos criminais cometidos no estrangeiro. A CRCV dispõe, no seu artigo 37º, que: «1. Não é admitida a extradição de cidadão cabo-verdiano, o qual pode responder perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro. 2. É admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida, determinada por autoridade judicial cabo-verdiana, nos termos do Direito Internacional e da lei. 3. Não é, porém, admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida: a) Por motivos políticos ou religiosos ou por delito de opinião; b) Por crimes a que corresponda na lei do Estado requisitante pena de morte, de prisão perpétua ou de lesão irreversível de integridade física; c) Sempre que, fundadamente, se admita que o extraditando possa vir a ser sujeito a tortura, tratamento desumano, degradante ou cruel.»

Por outro lado, a Lei Fundamental, no seu artigo 39º, estabelece: «Nenhum cabo-verdiano de origem poderá ser privado da nacionalidade ou das prerrogativas da cidadania.»

32 Os artigos indicados sem indicação de proveniência pertencem ao Decreto Legislativo nº 6/97, de 5 de Maio, alterado pelo Decreto Legislativo nº 3/2005, de 1 de Agosto. 33 Deve notar-se que a Constituição Cabo-verdiana de 1980 também continha a cláusula da não extradição.

191

Júlio Martins Tavares

E ainda, o artigo 5º da Lei Fundamental determina: «1. São cidadãos cabo-verdianos todos aqueles que, por lei ou por convenção internacional, sejam considerados como tal. 2. O Estado poderá concluir tratados de dupla nacionalidade. 3. Os cabo-verdianos poderão adquirir a nacionalidade de outro país sem perder a sua nacionalidade de origem.»

O artigo 37º da CRCV contém duas cláusulas de proibição de extradição, ambas absolutas. A primeira, prevista no nº 1, reporta-se à extradição passiva de cidadãos cabo-verdianos. A segunda, no nº 3, proíbe a extradição de estrangeiros e apátridas por razões indicadas nas alíneas a), b) e c), de que se destaca a relativa à pena aplicável ao crime no Estado requerente. A extradição, nos casos em que é admitida, carece de determinação da

autoridade

judicial

cabo-verdiana,

nos

termos

do

Direito

Internacional e da lei (artigo 37º, nº 2), sendo, pois, necessário que estejam verificados os respectivos requisitos formais previstos na lei. Como resulta do seu artigo 37º, a CRCV apenas admite extradição de estrangeiro ou apátrida, mas proíbe em absoluto, a extradição nas situações previstas nas alíneas a) a c) do nº 3 do mesmo artigo. A extradição pode ser concedida quando o Governo de outro país a solicitar, invocando convenção ou tratado de que Cabo Verde seja parte, ou existência de reciprocidade no tratamento (cfr. artigo 89º da LE). Quando houver convenção ou tratado, a extradição processar-se-á de harmonia com estes e com o estatuído na CRCV. Na falta de convenção ou tratado ou, nos casos em que a convenção ou tratado seja omisso, a extradição é regulada pelo disposto nos artigos 90º e seguintes. Ora, o artigo 90º da LE, sob epígrafe “recusa de concessão de extradição”, estabelece: «1. Não se concederá a extradição, quando:

192

Aspectos Polémicos da Extradição

a) b) c) d) e) f) g)

h)

i)

O facto for punível com pena de morte, penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos ou prisão perpétua ou medida privativa de liberdade de duração indeterminada pelo Estado requerente; O facto que a motivou não for considerado crime ou susceptível de aplicação de medida privativa de liberdade pela lei cabo-verdiana ou pela do Estado requerente; Pelas regras de competência territorial os tribunais de Cabo Verde forem competentes para julgar o facto imputado ao extraditando; A lei cabo-verdiana impuser ao facto pena de prisão ou medida privativa de liberdade igual ou inferior a um ano; Estiver pendente acção crime ou de aplicação de medida privativa de liberdade contra o extraditando pelo mesmo facto em que se fundar o pedido; O extraditando houver sido julgado, condenado ou absolvido, em Cabo Verde, pelo mesmo facto em que se fundar o pedido; Tiver havido a prescrição do procedimento criminal, do processo de aplicação de medida privativa da liberdade ou da pena ou medida privativa de liberdade segundo a lei cabo-verdiana ou a do estado requerente; Se tratar de crime político; O extraditando tiver que responder, no Estado requerente, perante tribunal ou juiz de excepção.

No nº 1 do artigo 90º acima transcrito, dispõe-se, na alínea e), que a extradição não será concedida quando «estiver pendente acção crime ou de aplicação de medida privativa de liberdade contra o extraditando pelo mesmo facto em que se fundar o pedido.» O processo de extradição (passiva) vem regulado nos artigos 99º e seguintes da LE, e compreende duas fases: uma fase administrativa e uma fase judicial. A fase administrativa da extradição é da competência do Governo e destina-se à apreciação do pedido de extradição para decidir se o pedido pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido. Nesta fase, antes da decisão do Governo, o Procurador-Geral da República aprecia o pedido de extradição que deverá ser-lhe enviado pelo Ministro da Justiça e pronuncia-se, através de parecer, sobre regularidade formal do pedido

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e quanto à verificação dos requisitos formais de que depende a concessão de extradição 34. A fase administrativa termina com a decisão do Governo, que pode ser favorável ou desfavorável à extradição. Se a decisão proferida na fase administrativa for favorável, o pedido de extradição, acompanhado de elementos que o instruírem e informação sobre a decisão do Governo, é remetido ao Procurador-Geral da República para que este, através de um requerimento formal, promova o seu cumprimento junto do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. artigo 102º da LE). O requerimento, que deverá conter as razões de facto e de direito que servem de fundamento ao pedido de extradição, marca o início da fase judicial do processo de extradição, que se destina a decidir, com audiência do extraditando, sobre a procedência da extradição 35. A actuação do Procurador-Geral da República no processo de extradição, seja na fase administrativa, seja na fase judicial, deve pautarse pelo princípio da autonomia, concretamente, pela sua vinculação a critérios de legalidade, objectividade e imparcialidade 36. Por conseguinte, o Procurador-Geral da República apenas poderá impulsionar a fase judicial do processo de extradição se concluir, em concreto, estarem verificados os requisitos de que depende a concessão da extradição. Note-se que o consentimento do extraditando na decisão da concessão da sua extradição não dispensará o STJ de, no âmbito do respectivo processo, verificar se estão preenchidas as condições para que Artigo 100º, n/s 1 e 2, da LE. Artigos 99º, nº 3, 100º e 102º, da LE. 36 Artigos 222º da CRCV e 2º do Estatuto dos Magistrados do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 136/IV/95, de 3 de Julho, alterado pela Lei nº 65/V/98, de 17 de Agosto. 34 35

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Aspectos Polémicos da Extradição

a extradição possa ser concedida 37. Esta exigência justifica-se porque, de outro modo, as cláusulas de proibição de extradição previstas nos números 1 e 3 do artigo 37º da CRCV seriam contornáveis, com relativa facilidade. 3.1.2. Política criminal Por política criminal entende-se o conjunto de mecanismos e procedimentos pelos quais o Estado organiza respostas à criminalidade. 3.2. A cláusula constitucional da proibição de extradição de nacionais A CRCV de 1992, além de proibir, em absoluto, a expulsão de nacionais, no nº 1 do seu artigo 36º, consagra o princípio da proibição de extradição de nacionais, estabelecendo, no seu artigo 37º, que: «1. Não é admitida a extradição de cidadão cabo-verdiano, o qual pode responder perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro. 2. É admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida, determinada por autoridade judicial cabo-verdiana, nos termos do Direito Internacional e da lei. 3. Não é, porém, admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida: a) Por motivos políticos ou religiosos ou por delito de opinião; b) Por crimes a que corresponda na lei do Estado requisitante pena de morte, de prisão perpétua ou de lesão irreversível de integridade física; c) Sempre que, fundadamente, se admita que o extraditando possa vir a ser sujeito a tortura, tratamento desumano, degradante ou cruel.»

A disposição constitucional acima transcrita, em matéria de extradição,

estabelece,

entre

outros,

os

seguintes

princípios

fundamentais: a. O princípio da não extradição de nacionais;

37

Artigo 105º, da LE.

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b. O princípio da não extradição por motivos políticos ou religiosos ou por delito de opinião; e c. O princípio da não extradição em função da pena aplicável.

3.3. A cláusula da proibição de extradição de nacionais na Constituição Cabo-verdiana de 1980 A proibição constitucional de extradição de nacionais assenta na existência do vínculo da nacionalidade cabo-verdiana. No que respeita à cláusula da não extradição de cidadãos caboverdianos pode dizer-se, sem qualquer hesitação, que a sua consagração na CRCV de 1992, apesar de em moldes diferentes – pois, foi elevada à constelação de garantia fundamental dos cidadãos cabo-verdianos – respeitou, de certo modo, a tradição. Na verdade, a cláusula da não extradição de cidadãos caboverdianos foi introduzida no ordenamento jurídico cabo-verdiano pela Constituição de 1980 38. Dispunha a Constituição da República de Cabo Verde de 1980, no seu artigo 37º: «Em caso algum é admissível a extradição ou a expulsão do País, do cidadão nacional.»

As sucessivas revisões da Constituição cabo-verdiana de 1980 39 não removeram a cláusula de não extradição de cidadãos cabo-verdianos.

38 O que pode explicar a aprovação, sem quaisquer objecções, do artigo 37º da Lei Fundamental de 1992, que tinha por epígrafe “Extradição e expulsão”, que também consagrou o princípio da proibição absoluta de extradição de nacionais. 39 A Constituição da República de Cabo Verde de 1980 foi objecto de três revisões: a primeira em 1981, operada pela Lei nº 2/81, de 14 de Fevereiro; a segunda, em 1988, operada pela Lei Constitucional nº 1/III/88, de 17 de Dezembro; e, a terceira, em 1990, operada pela Lei Constitucional nº 2/III/90, de 24 de Setembro.

196

Aspectos Polémicos da Extradição

Note-se que a proibição de extradição de nacionais só abrange a extradição passiva, que consiste na entrega do arguido ou condenado que, tendo cometido crimes no estrangeiro, se encontra no território cabo-verdiano, ao Estado que solicita a sua entrega, para aí ser julgado ou ser sujeito ao cumprimento da pena que lhe fora imposta pelos tribunais do Estado solicitante, onde cometera o crime. A extradição activa de nacionais, que não cabe no âmbito da cláusula de proibição de extradição de nacionais, consiste na obtenção de entrega do arguido ou condenado por parte do Estado onde ele se encontrava. O princípio da não extradição de nacionais consagrado na CRCV, independentemente do seu âmbito, constitui uma garantia fundamental dos cidadãos cabo-verdianos. Mas, por razões expostas na delimitação do objecto deste estudo, apesar da estreita conexão existente entre o vínculo da nacionalidade e a extradição, não abordaremos a problemática da extradição de nacionais. 3.4. A cláusula constitucional da proibição em função da pena aplicável No domínio da extradição, deparamos ainda com um outro princípio constitucional importante que proíbe, também em absoluto, a extradição em função da pena aplicável. Ora, como é sabido, subjacente a este princípio está o princípio da humanidade 40 do Direito Penal Cabo-verdiano, que justifica a rejeição de sanções criminais atentatórias do respeito pela pessoa humana [cfr. artigos 32º e 37º, nº 3, alínea b) da CRCV].

Em sentido idêntico, relativamente ao Direito Português, veja-se, Maria Fernanda Palma, Direito Penal – Parte Geral, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1994, p. 71. 40

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Porém, diferentemente do que se passa com a cláusula da não extradição de nacional, a proibição absoluta de extradição em função da pena aplicável, cujos destinatários são essencialmente estrangeiros e apátridas, não é acompanhada da extensão do âmbito espacial da aplicação da lei penal cabo-verdiana. E, por essa razão, os estrangeiros e apátridas, cuja extradição seja recusada não podem responder perante os tribunais cabo-verdianos por factos cometidos no estrangeiro. Para ilustrar o que temos vindo a referir, atentemos no seguinte exemplo: A.., estrangeiro, acusado no seu país de origem por homicídios em série contra cidadãos estrangeiros, vem a Cabo Verde. Passando a residir na cidade da Praia, A. conhece B., uma cidadã caboverdiana, a quem oferece 5 mil contos, dizendo tratar-se de prova de amor por ela, para se casarem, o mais urgente possível. Celebrado o casamento, A. dirige-se à Conservatória dos Registos competentes e declara querer ser cidadão cabo-verdiano, e vem a adquirir a nacionalidade cabo-verdiana, por casamento. Poucos dias depois de A. ter adquirido a nacionalidade cabo-verdiana, as autoridades do país de que é cidadão originário descobrem que ele se encontra em Cabo Verde e aquele país pede ao Estado de Cabo Verde que o extradite para ali ser julgado por aqueles crimes.

Como é evidente, a extradição de A. não poderá ser concedida, em virtude agora da sua actual nacionalidade, a cabo-verdiana. É claro que se poderá objectar, dizendo que o instituto de fraude à lei, impede a relevância da nacionalidade cabo-verdiana para o efeito da extradição, já que a sua aquisição visou, fundamentalmente, impedir a extradição. De facto, o instituto de fraude à lei previsto no artigo 21º do Código Civil, sendo uma norma materialmente constitucional, pode constituir um forte obstáculo a que, com intuito fraudulento, se adquira a nacionalidade cabo-verdiana para impedir a extradição.

198

Aspectos Polémicos da Extradição

Contudo, não se ignora as dificuldades que, em concreto, o instituto enfrenta, sobretudo, no domínio da prova dos pressupostos de que depende a sua aplicação. No caso da hipótese, não obstante o disposto na parte final do nº 1 do artigo 37º da Lei Fundamental, A. não poderá ser julgado perante os tribunais cabo-verdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro, porque à data do cometimento dos factos ele não era cidadão cabo-verdiano, sendo certo que as vítimas eram também estrangeiras. A lei penal caboverdiana não se aplica àqueles factos, por faltar os respectivos pressupostos. A aquisição da nacionalidade cabo-verdiana por parte de A. só produzirá efeitos a partir da data do registo dos actos ou factos da qual depende, consoante o preceituado no artigo 5º da Lei da Nacionalidade (na redacção introduzida pela Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril). Ora, por mais repugnante que seja, a situação de impunidade de A. é óbvia, a não ser que se socorra do instituto de fraude à lei para impedir a relevância da nacionalidade para efeitos da extradição. Note-se, porém, que o êxito desta solução passa, necessariamente, por considerar a norma constante do artigo 21º do Código Civil como sendo materialmente constitucional, pois, de outro modo, não se pode adoptar qualquer solução que contrarie uma outra norma (artigo 37º, nº 1, da CRCV), esta sim, material e formalmente constitucional. O instituto da fraude à lei é ainda aplicável a casos em que, no momento do facto, o agente do crime praticado no estrangeiro seja caboverdiano e depois venha alojar-se em Cabo Verde e renuncie a nacionalidade cabo-verdiana. A questão a saber é, se poderá ser relevante, a renúncia da nacionalidade cabo-verdiana com o intuito de afastar o elemento de conexão do ilícito criminal, praticado fora do território de Cabo Verde, com o Ordenamento Jurídico Cabo-verdiano 199

Júlio Martins Tavares

que, nos termos da alínea d) do nº 1 do artigo 4º do Código Penal, determina a aplicação da lei material (lei penal) cabo-verdiana a crimes praticados por cabo-verdianos fora do território nacional. Porém, no que respeita às situações em que cidadãos caboverdianos cometem crimes no estrangeiro e conseguem furtar-se às autoridades do país do cometimento da infracção e se refugiam em Cabo Verde. Porém, adiantando já o que mais à frente desenvolveremos, notese, desde já, que a posterior renúncia à nacionalidade cabo-verdiana não constitui obstáculo à aplicação da lei penal cabo-verdiana aos crimes por eles cometidos no estrangeiro. Para obviar as dificuldades de prova dos pressupostos de que depende a aplicação do instituto da fraude à lei, entendemos que se deve presumir intuito fraudulento, sempre que se prove que o indivíduo se subtraiu às acções da Justiça do país da prática do ilícito criminal e que, depois de chegar a Cabo Verde, tenha renunciado ou adquirido a nacionalidade cabo-verdiana. Cremos que esta solução seja mais compatível com o princípio da justiça material, traduzida na expressão dedere aut punire (judicare), subjacente ao princípio do Estado de Direito Democrático 41. Porém, no caso da hipótese, no momento da prática dos crimes, o agente e as vítimas do crime serem estrangeiros. Aquele consegue furtarse às acções da Justiça do seu país de origem e vem acoitar-se em Cabo Verde. No entanto, o país onde os crimes foram praticados pede a sua extradição. Os factos praticados pelo extraditando constituem crimes que admitem extradição, mas esta não pode ser concedida, por se lhes corresponderem, no país do cometimento dos factos, pena de prisão perpétua.

41

Artigo 2º, nº 1 da CRCV.

200

Aspectos Polémicos da Extradição

Afigura-se-nos que esta situação, de facto, não se subsume na previsão do artigo 4º do Código Penal 42, por conseguinte, situações do tipo carecem de regulamentação por parte do legislador, como é evidente, há aqui uma lacuna. É que, da conjugação do princípio do Estado de Direito Democrático com o princípio da igualdade e com o princípio da equiparação de estrangeiro a cidadão cabo-verdiano resulta, ainda que implicitamente, uma injunção para o legislador ordinário no sentido de este, na configuração da legislação penal, obviar a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados no estrangeiro em todos os casos em que fosse um cidadão cabo-verdiano, este responderia perante os tribunais cabo-verdianos. 3.5. A cláusula constitucional da proibição da extradição em função da pena aplicável e a política criminal A modelação da política criminal pelo Estado, enquanto resposta da sociedade à criminalidade, em ordem a torná-la socialmente comportável, é feita pelo legislador ordinário que, na execução desta tarefa, se deve inspirar nos princípios do Direito Penal plasmados na CRCV, que constituem o que se pode designar por constituição políticocriminal cabo-verdiana 43. A resposta a certas formas da criminalidade grave, complexa e transnacional como o tráfico de drogas, o tráfico de pessoas, o terrorismo

Aprovado pelo Decreto Legislativo nº 4/2003, de 18 de Novembro, na sequência de uma autorização legislativa parlamentar, o novo Código Penal entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2004. 43 Neste sentido, veja-se, JORGE CARLOS FONSECA, citando JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, In: Reformas Penais em Cabo Verde I – Um novo Código Penal para Cabo Verde (Estudo sobre o Anteprojecto seguido do correspondente articulado, Praia, Instituto de Promoção Cultural/ Direcção do Livro, 2001, p. 31. 42

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e o seu financiamento, e bem assim o branqueamento de capitais desdobra-se em diferentes planos, que urge analisar. Por um lado, a nível do Direito Penal substantivo e, por outro lado, a nível do Direito Penal adjectivo ou processual. No domínio do Direito Penal adjectivo, em ordem a garantir a eficácia e celeridade processuais, o legislador distingue, de um lado, a pequena e média criminalidade da criminalidade grave e complexa. A consagração das formas de processos especiais, como o processo sumário, o processo de transacção e o processo abreviado pelo novo Código de Processo Penal, figuram, seguramente, como respostas, que se pretendem céleres e eficazes, ao fenómeno da pequena e média criminalidade, crimes puníveis, em regra, com prisão até cinco anos. 3.5.1. O estabelecimento e o reforço da cooperação judiciária internacional em matéria penal No domínio da luta contra certas formas de criminalidade Cabo Verde tem vindo a estabelecer e a reforçar a cooperação judiciária, em especial, a em matéria penal, merecendo destaque a celebração de acordos de cooperação judiciária internacional em matéria penal (bilateral e multilateral). Assinala-se, a título meramente exemplificativo, a existência dos seguintes instrumentos: a) No domínio da cooperação bilateral: O «Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a República de Cabo Verde», aprovado pela Resolução da Assembleia Nacional nº 98/VI/2004, que substituiu o Acordo de 1976; o Acordo de Cooperação Judiciária com a República do Senegal; acordos de cooperação já assinados com o Reino de Espanha, em matéria da

202

Aspectos Polémicos da Extradição

cooperação judiciária, abrangendo matérias como a extradição, o auxílio mútuo e a assistência judiciária; etc. b) No domínio da cooperação multilateral: A ratificação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de 19 de Dezembro de 1988; a ratificação de treze instrumentos universais contra o terrorismo; a ratificação da Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional (Resolução da A.N. nº 92/VI/04, de 31 de Maio). 3.5.2. A aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde O novo Código Penal consagra, no seu artigo 3º, como princípio basilar em matéria de aplicação da lei cabo-verdiana no espaço 44 o princípio da territorialidade. Este princípio é completado pelo princípio da defesa dos interesses nacionais, princípio da nacionalidade (activa e passiva), princípio do pavilhão e princípio do direito universal, constantes do artigo 4º do mesmo diploma. Estes

princípios,

que

são

subsidiários

do

princípio

da

territorialidade, determinam a aplicabilidade da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território nacional. Sob

epígrafe

“Factos

praticados

fora

do

território

nacional”, o artigo 4º do Código Penal concretiza a injunção constante da parte final do nº 1 do artigo 37º da CRCV, estabelecendo: «1. Salvo convenção internacional em contrário, a lei penal cabo-verdiana é aplicável a factos praticados fora do território de Cabo Verde nos seguintes casos:

44 Em sentido idêntico, relativamente ao Código Penal português, veja-se, por todos, Jorge Figueiredo Dias, Direito Penal. Parte Geral: Questões Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime, 2. ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 216.

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Júlio Martins Tavares

a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 243º a 262º e 306º

a 327º. b) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 138º, números 2 e 3, e 267º a 278º, desde que o agente seja encontrado em Cabo Verde e não possa ser extraditado; c) Quando forem praticados contra cabo-verdianos, desde que o agente viva habitualmente em Cabo Verde e aqui seja encontrado; d) Quando forem cometidos por cabo-verdianos, ou por estrangeiros contra cabo-verdianos, desde que o agente seja encontrado em Cabo Verde, os factos sejam igualmente puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados e constituírem crime que legalmente admita extradição e esta não possa em concreto ser concedida; e) Quando se trate de crimes que o Estado cabo-verdiano, por convenção internacional, se tenha obrigado a julgar. 2. O disposto no número anterior só terá aplicação, quando o agente não tenha sido julgado ou se haja subtraído ao cumprimento da sanção em que tenha sido condenado no país da prática do facto. 3. Ainda que seja aplicável, nos termos deste artigo, a lei cabo-verdiana, o facto será julgado de acordo com a lei do país em que tiver sido praticado, sempre que esta seja concretamente mais favorável ao agente. A pena aplicável é convertida naquela que lhe corresponder no sistema caboverdiano, ou, não havendo correspondência directa, naquela que a lei caboverdiana prever para o facto.»

Como resulta do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 4º acima transcrito, a nacionalidade (activa, quando o cidadão cabo-verdiano seja agente do crime e, passiva, quando ele seja vítima) estabelece a conexão entre os crimes praticados no estrangeiro e o Ordenamento Jurídico Cabo-verdiano, impondo a aplicação da lei penal cabo-verdiana àqueles. No que respeita à aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde, a interpretação da alínea d) do nº 1 do artigo 4º do Código Penal suscitam duas questões, que passamos a analisar. i) A primeira, diz respeito à interpretação desta alínea d) do nº 1 do artigo 4º do Código Penal, e consiste em saber se a renúncia à nacionalidade cabo-verdiana poderá impedir a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde. A resposta a esta questão passa por determinar, por via de interpretação, o conteúdo útil da expressão «cabo-verdianos» 204

Aspectos Polémicos da Extradição

utilizada na alínea d) do nº 1 do artigo 4º do Código Penal, seja no caso da nacionalidade activa, seja no da nacionalidade passiva. Simplesmente, pode perguntar-se: a nacionalidade a considerar para efeitos de saber se a lei penal cabo-verdiana é aplicável a crimes praticados fora do território nacional reporta-se ao momento da prática dos factos passíveis de configurarem crimes, ou a um momento posterior à prática dos mesmos? No Ac. nº 18/08 o STJ qualificou a questão assim formulada como sendo um problema de jurisdição e decidiu que «a nacionalidade a ter em conta é a do momento da decisão…» 45. 45 Este Ac. foi proferido no processo de habeas corpus nº 4/08. Nestes autos, a questão colocada ao STJ foi a seguinte: um indivíduo, de nacionalidade caboverdiana e holandesa, suspeito de ter cometido dois crimes de homicídio no estrangeiro conseguiu furtar-se às acções da Justiça do país onde os factos terão tido lugar e depois veio alojar-se em Cabo Verde. O Reino dos Países Baixos procurou, de imediato, obter a entrega do cabo-verdiano/holandês, para efeitos de procedimento criminal na Holanda. A Procuradoria-Geral da República informou as autoridades judiciárias da Holanda que dada a nacionalidade cabo-verdiana do reclamado, por imperativo constitucional, não seria possível a sua extradição, mas que o mesmo poderia responder, perante os tribunais cabo-verdianos, por crimes cometidos naquele país. Na sequência da denúncia recebida da Holanda, a Procuradoria-Geral da República determinou a abertura de instrução contra a pessoa reclamada pela Holanda visando efectivar a sua responsabilidade criminal pelos crimes cometidos naquele país europeu. No âmbito desse processo-crime, a pessoa reclamada pela Holanda veio a ser detida e, apresentada ao primeiro interrogatório judicial, foi-lhe aplicada, como medida de coacção, a prisão preventiva. Depois de acusado e pronunciado, enquanto o processo aguardava o despacho que designasse a data para a realização do julgamento, o arguido renunciou a nacionalidade cabo-verdiana e, alegando que a lei penal cabo-verdiana deixou de ser aplicável aos factos ocorridos fora do território de Cabo Verde cuja prática se lhe imputa, requereu a sua soltura imediata, intentando junto do STJ a mencionada providência de habeas corpus. Apreciando a questão que se lhe colocou, o STJ, funcionando em conferência, ponderou, por unanimidade, que «a Justiça Penal cabo-verdiana, globalmente considerada, não pode julgar (…), um cidadão holandês que cometeu um crime de homicídio na Holanda e contra um estrangeiro, sendo inviável a extradição a menos que houvesse acordo especial entre Cabo Verde e Holanda. É a solução que flúi da análise comparativa dos números 1 e 3 do art. 37º da Constituição da República e ainda do art. 4º al. d) do CP. A nacionalidade a ter em conta é a do momento da decisão. A regra geral é a do atendimento dos factos jurídicos supervenientes estabelecida no art. 663º do CPC e

205

Júlio Martins Tavares

Esta questão mereceu atenção da doutrina, nomeadamente a portuguesa. Em Portugal, face à disposição do Código Penal, em tudo idêntica, ensina JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, «o princípio da nacionalidade encontra-se consagrado, na forma normal do seu aparecimento –, e na verdade tanto na vertente activa, como na passiva – no art. 5º -1/c). De acordo com ele a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional, por portugueses (princípio da personalidade activa)

ou

por

estrangeiros

contra

portugueses

(princípio

da

personalidade passiva), sob uma tríplice condição: a de os agentes serem encontrados em Portugal; a de tais factos serem puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar se não exercer poder punitivo; e a de constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. Português para os efeitos em causa é todo aquele que como tal deva ser considerado, no momento do facto (…) e segundo as normas da lei da nacionalidade 46.» Para MANUEL ANTÓNIO LOPES ROCHA, as normas como as do artigo 4º do Código Penal de Cabo Verde regulam «somente a aplicação do direito punitivo estatal a factos que, pela pertinência territorial do lugar da comissão do crime ou pela nacionalidade do delinquente ou da vítima,

estão

relacionados

com

um

ordenamento

jurídico

estrangeiro….» 47.

acolhida expressamente na legislação comparada sobre a extradição, nomeadamente a lei portuguesa nº 144/99, sobre a Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal, art. 33º nº 6. Tendo (…) renunciado a nacionalidade cabo-verdiana nada obsta à sua extradição por motivo da nacionalidade, pois que aqui a extradição visa unicamente proteger o nacional…». 46 Ob. cit., página 217-218. 47 Cfr. “A aplicação da lei criminal no tempo e no espaço” in: Jornadas de Direito Criminal, Lisboa, Centro de Estudos Judiciários, 1983, p. 118 e ss.

206

Aspectos Polémicos da Extradição

A nosso ver, uma interpretação da norma contida na alínea d) do artigo 4º do Código Penal de Cabo Verde, ancorada no elemento sistemático que permite integrá-la no Ordenamento Jurídico Caboverdiano como um todo, permite concluir que, para efeitos da aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde, «cabo-verdianos» são todos aqueles que como tal devam ser considerados, no momento do facto e segundo as normas da lei da nacionalidade. As vicissitudes que vierem a ocorrer na nacionalidade das pessoas, depois de haverem praticado factos passíveis de configurar ilícitos criminais no estrangeiro não são relevantes. É que, de outro modo, a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde ficaria na disponibilidade do próprio agente, o que contraria, claramente, a natureza injuntiva das disposições contidas no artigo 4º do Código Penal. Deve, pois, distinguir-se a problemática da aplicação espacial da lei penal cabo-verdiana regulada no artigo 4º do Código Penal acima transcrito da competência dos tribunais cabo-verdianos para julgar alguém por crimes cometidos fora do território cabo-verdiano. A matéria relativa à jurisdição e competência dos tribunais reportase ao Direito Penal adjectivo e está regulada nos artigos 31º e seguintes do Código de Processo Penal e nos artigos 17º e seguintes da Lei da Organização Judiciária, aprovada pela Lei nº 3/81, de 2 de Março, alterada pelo Decreto-Lei nº 75/90, de 10 de Setembro, e pela Lei nº 189/91, de 30 de Dezembro. Contrariamente, a problemática da eficácia espacial da aplicação da lei penal integra o Direito Penal substantivo e encontra-se regulada nos artigos 3º e 4º do Código Penal.

207

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Tais normas não decidem a competência (internacional ou interna) dos tribunais cabo-verdianos. Esta vem regulada no artigo 38º do Código de Processo Penal, que em regra, determina ser competente, para conhecer dos crimes cometidos no estrangeiro, o tribunal da área onde o agente tiver sido encontrado ou o do seu domicílio. A competência releva de ordem pública, não sendo lícita qualquer alienação ou delegação fora do quadro legal, seja a favor dos tribunais nacionais, seja a favor de tribunais estrangeiros ou internacionais, devendo assinalar que também no processo penal vigora a proibição de desaforamento e, por conseguinte, “nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.” 48 Por outro lado, a renúncia da nacionalidade não tem efeitos retroactivos. Ela só produz efeitos a partir da data do registo 49. A renúncia da nacionalidade não é automática, pois o Conservador dos Registos Centrais tem que verificar se o autor da declaração de renúncia da nacionalidade cabo-verdiana tem outra nacionalidade para que ela possa ser eficaz. Certamente, preocupações em evitar situações de apatridia levaram o legislador a condicionar a eficácia da declaração de renúncia de nacionalidade cabo-verdiana ao facto de o declarante ter outra nacionalidade, de harmonia, aliás, com o Direito Internacional. Ex abundantias, diremos ainda que a renúncia da nacionalidade com intuito de evitar a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território de Cabo Verde por parte de quem no momento da prática dos mesmos seja cabo-verdiano constituirá fraude à lei. Assim, nos termos do disposto no artigo 21º do Código Civil, a Artigo 64º do Código de Processo Civil aplicável ex vi do art. 26º do Código de Processo Penal. 49 Artigos 5º e 15º da Lei da Nacionalidade, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 41/IV/92, de 6 de Abril. 48

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Aspectos Polémicos da Extradição

renúncia da nacionalidade cabo-verdiana por parte do requerente, embora eficaz, em concreto será irrelevante e, por isso, não impede a aplicação da lei penal cabo-verdiana. De mais a mais, não se pode confundir a problemática da aplicação espacial da lei penal cabo-verdiana regulada no artigo 4º do Código Penal acima transcrito com a questão da competência dos tribunais caboverdianos para julgar alguém por crimes cometidos fora do território cabo-verdiano. Ao invés, a problemática da eficácia espacial da aplicação da lei penal integra o Direito Penal substantivo e encontra-se regulada nos artigos 3º e 4º do Código Penal. As normas constantes do artigo 4º do Código Penal integram o chamado Direito Penal Internacional. São normas de conflitos, com alguma semelhança relativamente às normas de conflitos constantes do Código Civil. Assim, a primeira questão só pode colocar-se relativamente à renúncia da nacionalidade cabo-verdiana caso aconteça depois da prática dos factos que possam constituir crime, já que, caso tenha acontecido antes, faltaria o elemento que estabelecia a conexão entre o crime praticado no estrangeiro e o Ordenamento Jurídico Cabo-verdiano. ii) A segunda questão consiste em saber se, fora das situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 4º do Código Penal, este permite a aplicação da lei penal cabo-verdiana a crimes graves, como homicídios, praticados fora do território cabo-verdiano por estrangeiros, contra estrangeiros, quando os agentes do crime conseguem escapar-se às acções da Justiça do país do cometimento dos factos e se alojem em Cabo Verde, nas situações em que a extradição não possa ser concedida, por força do disposto no nº 3 do artigo 37º da CRCV. Note-se que nesta segunda questão, a leitura do artigo 4º do Código Penal suscita que, no momento do facto, o agente não tem nacionalidade 209

Júlio Martins Tavares

cabo-verdiana. Não há, pois, elemento que estabelece a conexão entre o(s) crime(s) praticado(s) fora do território cabo-verdiano e o Ordenamento Jurídico Cabo-verdiano. Não há dúvidas de que, com a consagração destes princípios complementares, o legislador executou a injunção constitucional constante da 2ª parte do nº 1 do artigo 37º da Lei Fundamental. Porém, o legislador ordinário, em especial o do Código Penal, não logrou executar, cabalmente, todas as injunções de política criminal decorrentes dos princípios e normas constitucionais em matéria penal. Na verdade, como dissemos anteriormente, o artigo 4º do Código Penal não permite a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos praticados fora do território nacional, por

estrangeiros contra

estrangeiros, em todos os casos em que fosse o agente da infracção um cidadão cabo-verdiano, ele responderia perante os tribunais caboverdianos. Ora, a nosso ver, essa omissão do legislador ordinário pode provocar situações político-criminalmente indesejáveis, pois discrimina cidadãos cabo-verdianos face a estrangeiros, no que tange às respostas que dá a certas formas de criminalidade grave, organizada, complexa e transnacional, quando os crimes sejam cometidos fora do território caboverdiano e os seus autores sejam posteriormente encontrados em Cabo Verde e a extradição, sendo requerida, não possa ser concedida. Senão, vejamos: i)

Um cabo-verdiano, um alemão e um holandês cometem, na Holanda, em co-autoria, vários crimes de homicídio e, no entanto, antes de serem capturados naquele país, conseguem fugir para Cabo Verde.

Na Holanda aos crimes referenciados no exemplo corresponde pena de prisão perpétua.

210

Aspectos Polémicos da Extradição

Como é evidente, se a Holanda pedir a extradição do caboverdiano, a mesma não pode ser concedida, nos termos do nº 1 do artigo 37º da CRCV. No entanto, como resulta da parte final desta disposição constitucional e da alínea d) do nº 1 do artigo 4º do Código Penal, ele responderá em Cabo Verde por aqueles crimes. Por outro lado, caso a Holanda solicite a extradição dos “coarguidos” do cabo-verdiano, a extradição deles também não poderá ser concedida, porque na Holanda aqueles crimes são puníveis com a pena de prisão perpétua, o que, nos termos do nº 3 do artigo 37º da CRCV, impede que a extradição seja concedida. Todavia, não podem responder, perante os tribunais caboverdianos, tal como o co-arguido cabo-verdiano, por aqueles crimes, porque a situação fáctica – crime cometido no estrangeiro por estrangeiro contra outro estrangeiro – não cabe no âmbito da previsão do artigo 4º do Código Penal. Ora, essa omissão é político-criminalmente indesejável e constitucionalmente ilegítima. Ela é político-criminalmente indesejável porque pode colocar o Estado de Cabo Verde em situação diplomática embaraçosa perante outros Estados. É, ainda, constitucionalmente ilegítima porque viola o princípio da justiça material, no plano internacional, que decorre do Estado de Direito Democrático constante do artigo 2º da CRCV, como contende com o princípio da equiparação de estrangeiros a cidadãos nacionais e, por via disso, com o princípio da igualdade (artigos 23º e 24º da Lei Fundamental). Na verdade, as perguntas que legitimamente se poderão formular são as seguintes: se um estrangeiro, por força de equiparação a nacionais, goza de determinados direitos, porque é que o mesmo não pode ser sujeito, pelo menos, a deveres ou encargos a que estão sujeitos os 211

Júlio Martins Tavares

cidadãos cabo-verdianos, relativamente aos factos criminosos cometidos no estrangeiro? Não estarão os cidadãos cabo-verdianos a serem discriminados em relação aos estrangeiros e apátridas, quando estes lhes são equiparados, no que respeita a factos criminosos cometidos no estrangeiro? A nosso ver, não há dúvidas de que os cidadãos cabo-verdianos estão a ser discriminados em relação a estrangeiros e apátridas. Pensamos, pois, ser urgente e necessário preencher-se a lacuna existente no Código Penal de Cabo Verde de forma a obviar a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos cometidos fora do território nacional por estrangeiros e apátridas que forem encontrados em Cabo Verde e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida. Com esta solução, eliminar-se-á a injustificada e ilegítima discriminação de cidadãos cabo-verdianos face a estrangeiros e apátridas, no que tange à aplicação espacial da lei penal cabo-verdiana a crimes cometidos no estrangeiro. Caso contrário, Cabo Verde corre o risco de se transformar num “velhacouto de criminosos estrangeiros” 50. Como refere AMÉRICO A. TAIPA DE CARVALHO 51, uma tal alteração legislativa encontrará justificação e fundamento, para além do mais, no princípio da universalidade ou da protecção dos bens jurídicos considerados como valores éticos comuns à humanidade e ainda «na máxima do direito das gentes que manda “punire aut dedere”, ou então por uma razão de reciprocidade.» 52 Do exposto, conclui-se que, relativamente à cláusula da proibição de extradição em função da pena aplicável, o princípio de equiparação de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal ...., pp. 228-229. Cfr. Direito Penal. Parte Geral: Questões Fundamentais, Porto, Edições Publicações Universidade Católica, 2006, p. 269. 52 Eduardo Correia, Direito Criminal I, Coimbra, Almedina, 1997, p.177. 50 51

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Aspectos Polémicos da Extradição

estrangeiros a cidadãos nacionais e o princípio da igualdade, ambos com dignidade constitucional, na medida em que contêm, intrinsecamente, injunções ao legislador ordinário no sentido de este, na configuração da legislação penal, não criar ou permitir situações gravemente injustas, assim impondo que, no plano da legislação ordinária, a solução seja idêntica à que consta do nº 1 do artigo 37º da Lei Fundamental. Por outro lado, tais injunções proíbem ao legislador ordinário de, na fixação da sua política criminal – nacional ou internacional – estabelecer discriminação entre cidadãos cabo-verdianos e estrangeiros. Essa discriminação é, de momento, uma realidade indesmentível, pois o Código Penal, no nº 1 do seu artigo 4º, contém uma lacuna que redunda na impunidade de estrangeiros, quando estes cometam crimes no estrangeiro contra estrangeiro e se encontrem em Cabo Verde. Como vimos, em tais situações se os crimes tivessem sido cometidos por caboverdiano este responderia perante os tribunais cabo-verdianos por crimes cometidos no estrangeiro. É certo que se poderá objectar dizendo que em tais situações a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos ocorridos no estrangeiro é imposta pelo princípio da nacionalidade. Com efeito, afigura-se-nos que a equiparação de estrangeiros a cidadãos nacionais e, por via disso, o princípio da igualdade, impõem a introdução, no Código Penal, do princípio complementar da aplicação supletiva da lei penal caboverdiana a factos cometidos no estrangeiro quando, em identidade de circunstância, fossem os mesmos cometidos por cabo-verdiano, seria aplicável a lei penal cabo-verdiana. A introdução deste princípio evitará que um estrangeiro que pratique crimes graves, no estrangeiro, se refugie em Cabo Verde, onde, por um lado, dada a ausência de conexão relevante com o Ordenamento Jurídico cabo-verdiano não poderá ser julgado por a lei penal cabo213

Júlio Martins Tavares

verdiana não ser aplicável àqueles crimes, e de onde, por outro lado, poderá não ser extraditado, em virtude das proibições constitucionais constantes no nº 3 do artigo 37º da Lei Fundamental 53. IV. Conclusões Neste pequeno estudo, procurou-se demonstrar a íntima relação que existe entre o Direito da

Nacionalidade e os princípios

constitucionais sobre a extradição, designadamente a relativa à extradição de cidadãos cabo-verdianos e a que estabelece a proibição de extradição em função da pena aplicável. O exposto permite concluir, por um lado, que o actual regime de aquisição da nacionalidade cabo-verdiana deve ser alterado no sentido de se garantir a efectividade do vínculo da nacionalidade, por outro lado, ser necessário e urgente o preenchimento da lacuna existente no Código Penal de forma a obviar a aplicação da lei penal cabo-verdiana a factos cometidos fora do território cabo-verdiano, por estrangeiros que forem encontrados em Cabo Verde e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida. Para aperfeiçoar a Lei da Nacionalidade e o Código Penal, em ordem a suprir as incongruências que apresentam, é urgente e conveniente introduzir-lhes alterações, nos seguintes termos: a) A Lei da Nacionalidade, no domínio da aquisição da nacionalidade (nacionalidade derivada), exigindo que: i. Os naturalizandos demonstrem conhecer suficientemente a língua caboverdiana e/ou portuguesa; ii. Os naturalizandos comprovem a existência de uma ligação efectiva à comunidade cabo-verdiana;

Em Portugal, referindo-se a uma situação idêntica, veja-se, por todos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal..., p. 228. 53

214

Aspectos Polémicos da Extradição

iii. Que a residência habitual em Cabo Verde, seja com título válido de autorização de residência; iv. Os naturalizandos tenham idoneidade cívica (ao invés de idoneidade moral e civil); v. Se elimine a naturalização por razões económicas, revogando-se os números 3 e 4 da Lei nº 64/IV/92, de 30 de Dezembro; vi. Se reintroduza um tempo mínimo de constância do casamento com nacional cabo-verdiano.

b) A legislação penal substantiva, aditando uma alínea ao artigo 4º, nº 1, do Código Penal, como segue: «Por estrangeiros que forem encontrados em Cabo Verde e cuja extradição haja sido requerida, quando constituírem crimes que admitam a extradição e esta não possa ser concedida.»

V. Síntese Conclusiva Em jeito de conclusão, pode afirmar-se o seguinte: a) No que respeita à aquisição da nacionalidade, a legislação caboverdiana não contém mecanismos que garantam que o vínculo da nacionalidade traduza uma ligação efectiva, real, do indivíduo com a comunidade e cultura cabo-verdianas. Aliás, a Lei da Nacionalidade potencia situações de fraude, que podem ser exploradas, com relativa facilidade, por indivíduos que estejam a furtar-se à acção da justiça do país de que é originário, ou mesmo situações

absurdas

de

premiar

quem

tenha

residido

ilegalmente no país durante um certo período de tempo. b) A existência da cláusula constitucional da não extradição em função da pena aplicável, independentemente do seu âmbito, deve ser complementada com a extensão do âmbito espacial da lei penal caboverdiana de forma a obviar que esta se aplique a factos cometidos fora do território cabo-verdiano, por estrangeiros e apátridas, em todos os casos em que fosse um cidadão cabo-verdiano agente da infracção ele responderia perante os tribunais cabo-verdianos. 215

Júlio Martins Tavares

c) Em relação à extradição de estrangeiro ou apátrida, quando se trate de certas formas de criminalidade grave, complexa e transnacional como o tráfico de drogas, o tráfico de pessoas, o terrorismo e o seu financiamento, bem como o branqueamento de capitais, Cabo Verde encontra-se numa encruzilhada: ou assumirá, na plenitude, o dever decorrente do Direito Internacional, vertida na expressão dedere aut punire (judicare), ou corre o risco de se transformar num “velhacouto de criminosos estrangeiros”.

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PARTE II

ASPECTOS POLÉMICOS DA EXTRADIÇÃO NO ESPAÇO LUSÓFONO: Portugal, Brasil e Macau

A PROIBIÇÃO CONSTITUCIONAL DE EXTRADITAR NACIONAIS EM FACE DA UNIÃO EUROPEIA

Nuno Piçarra *

Sumário: I. Introdução; II. Fraquezas e Fortalezas da Proibição Constitucional de Extraditar Nacionais; III. Avanços e Recuos no Processo de Eliminação Progressiva da Proibição Constitucional de Extraditar Nacionais entre os Estados-Membros da União Europeia; 3.1. Da Convenção Europeia de Extradição à Convenção relativa à Extradição entre os EstadosMembros da União Europeia; 3.2. A Decisão-Quadro relativa ao Mandado de Detenção Europeu; 3.3. O mandado de detenção europeu referente a nacionais na jurisprudência constitucional dos Estados-Membros: os acórdãos paradigmáticos; IV. Conclusão.

I. Introdução Foi apenas no decurso do século XX que o princípio da não extradição de nacionais encontrou consagração nas constituições de parte dos vinte e sete Estados-Membros da União Europeia (UE). À luz de critérios de estrita racionalidade jurídica, a solução é, porém, pouco defensável, tendo em conta os efeitos perversos que lhe estão associados – entre os quais avultam as situações de impunidade que ela é susceptível

*

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

219

Nuno Piçarra

de provocar 1. Isto é tanto mais perturbador, em termos de administração da justiça penal, quanto é certo que os crimes passíveis de extradição revestem-se normalmente de um determinado limiar de gravidade 2. Mesmo que o Estado constitucionalmente vinculado à proibição em causa não adopte a solução extrema de nem sequer julgar, de acordo com o seu direito, o nacional cuja extradição tenha sido requerida, ignorando assim a máxima aut dedere aut judicare 3, há uma série de princípios de boa administração da justiça criminal que podem ser postos em crise quando tal Estado opte por julgar no seu território o facto punível alegadamente

praticado

no

território

de

outro.

Isto

tornou-se

1 Efeitos perversos que resultam agravados quando a proibição de extraditar nacionais também abrange os cidadãos que adquiriram, por naturalização, a nacionalidade do Estado requerido depois de terem praticado os factos puníveis que fundamentam o pedido de extradição; sobre o tema, ver Zsuzsanna Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity? Non-extradition of Naturalized Citizens versus Criminal Justice” in Journal of International Criminal Justice, tomo 2, 2004, p. 761 ss. Tal como refere a autora (p. 766, nota 25), das constituições que proíbem a extradição de nacionais, a brasileira é a única que resolve esta questão, especificando no seu artigo 5.º, LI, que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização (…)”; ver infra, III.1. e nota de rodapé 12. 2 A título de exemplo, a Convenção Europeia de Extradição estabelece no seu artigo 2.º, n.º 1, que são determinantes da extradição os factos punidos pelas leis da Parte requerente e da Parte requerida com uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade com duração máxima de, pelo menos, um ano, ou com uma pena mais severa. Factos punidos com penas menos severas não estão, portanto, abrangidos pelo âmbito de aplicação da convenção. 3 Utiliza-se aqui o termo “máxima”, como se poderia utilizar os termos “aforismo” ou “brocardo”, por ser geralmente reconhecido que os Estados não estão sujeitos a nenhuma obrigação jurídico-internacional de perseguir por crimes comuns a pessoa cuja extradição for recusada, embora tal obrigação possa ser estabelecida por tratado, e um significativo número de convenções em matéria de luta contra a criminalidade internacional estabeleça efectivamente a obrigação de ou extraditar ou julgar/processar. Só nestes casos, portanto, e não por força do direito internacional consuetudinário, é que tal obrigação existirá, podendo ainda assim ser objecto de derrogações. Para maiores desenvolvimentos, ver Zsuzsanna Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity?”, cit., pp. 772-774; M. Cherif Bassiouni e Edward M. Wise, Aut dedere aut judicare: The Duty to Extradite or Prosecute in International Law, Dordrecht, 1995, pp. 23 ss.; cf. também Andreia Pinto Oliveira, “Extradição” in Dicionário Jurídico da Administração Pública, 3.º Suplemento, Lisboa, 2007, p. 413.

220

Aspectos Polémicos da Extradição

particularmente evidente no âmbito da UE que, como é sabido, constitui “um espaço sem fronteiras internas no qual é assegurada a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais”. Salientar liminarmente as fraquezas jurídicas e práticas da proibição constitucional em causa não equivale a defender que, em matéria de extradição, cada Estado deve abstrair em absoluto do vínculo que tem com os seus nacionais – nem mesmo no âmbito de um projecto de integração de tão longo alcance como o consubstanciado pela UE. Significa apenas dizer que há melhores soluções jurídicas, do ponto de vista da concordância prática de todos os valores e princípios relevantes neste contexto, do que a pura e simples proibição constitucional de extraditar nacionais. O presente artigo propõe-se analisar o processo, induzido pela UE, de progressivo afastamento da proibição constitucional de extraditar nacionais entre os Estados-Membros, incluindo as resistências que tal proibição tem oposto, não obstante os seus iniludíveis pontos fracos como solução jurídico-positiva. II. Fraquezas e Fortalezas da Proibição Constitucional de Extraditar Nacionais 2.1. Sem prejuízo de se fazer remontar o instituto da extradição – o mais antigo e tradicional instrumento de cooperação internacional penal – a épocas históricas tão longínquas como a Antiguidade Oriental 4, ele só adquiriu os contornos que actualmente o identificam a partir da segunda metade do século XIX, acompanhando de perto o apogeu do típico “produto europeu” que é o Estado-Nação soberano.

Ver, por exemplo, Mário Mendes Serrano, “Extradição. Regime e Praxis” in AAVV, Cooperação Internacional Penal, Volume I, Lisboa, 2000, pp. 15-17.

4

221

Nuno Piçarra

É ao longo desse período que se sedimenta, em termos de direito internacional, a obrigação de os Estados acolherem os seus nacionais, de lhes permitirem viver permanentemente no seu território e de lhes concederem sempre protecção jurídica, em nome do vínculo especial que têm com eles. Na Europa continental enraíza-se progressivamente o entendimento de que constitui corolário de tais obrigações a proibição de extraditar nacionais. E é assim que, nos tratados bilaterais de extradição celebrados em número crescente pelos Estados aí situados, com a França à cabeça, a cláusula de não extradição de nacionais passa a figurar sistematicamente 5. A atestar que a proibição em causa nunca se tornou, porém, uma convicção ocidental comum, está o facto de países como o Reino Unido e os Estados Unidos da América a desconhecerem tradicionalmente. Aqui, tal regra, longe de proclamada essencial à dignidade do Estado, como o foi em geral nos países do continente europeu 6, tem sido entendida como “produto da desconfiança nacional e relíquia de uma ordem de civilização mais primitiva”. A incontestável obrigação de direito internacional de os Estados acolherem os seus nacionais e garantirem a permanência em segurança no seu território nunca foi entendida como tendo por corolário a proibição de extradição daqueles que cometessem crimes noutros Estados 7.

O primeiro tratado em que se excluiu expressamente a extradição de nacionais foi o assinado entre a França e a Bélgica em 1834. Mas já anteriormente a essa data, as leis internas da França e da Holanda na matéria proibiam a extradição de nacionais; cf. José Calvet de Magalhães, “Extradição” in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Volume IV, Lisboa, 1991, p. 316; Mário Mendes Serrano, “Extradição. Regime e Praxis”, cit., p. 19. 6 Com excepção dos Estados escandinavos que, em termos pioneiros, admitem entre eles a extradição dos próprios nacionais. 7 Quanto ao Reino Unido, é normalmente citado como precedente o acórdão de que foi relator Lord Cockburn, In re Tivnan, de 1864, onde pode ler-se: “I do not see any loss of dignity, of national greatness, or character, where crimes are committed by our own subjects in a foreign state, if we give them up when that state requires the 5

222

Aspectos Polémicos da Extradição

2.2. Não obstante a rejeição de princípio de que sempre foi alvo no Reino Unido e nos restantes países de common law, a proibição de extraditar nacionais adquiriu generalizadamente uma forte carga emocional à medida que o nacionalismo se expandia na transição para o século XX. Tal proibição passou a assentar numa certa concepção da soberania nacional, que hiperboliza as diferenças entre os Estados na administração da justiça penal,

conducentes a um tratamento

potencialmente

não

inequitativo

dos

nacionais.

Estes

estariam

condenados a um processo injusto no Estado que requer a extradição. Para o evitar, dever-se-ia considerar sempre como juiz natural o juiz nacional e, por conseguinte, dar prevalência ao princípio da competência extraterritorial e subjectiva em relação aos nacionais. Por outras palavras, para poder ser sempre o próprio Estado a julgar os seus nacionais, onde quer que eles tenham cometido crimes, a regra deveria ser a da absoluta proibição de os extraditar 8. Ao contrário do que seria de esperar, a elevação progressiva da proibição de extraditar nacionais à dignidade constitucional, que efectivamente se veio a verificar no decurso do século XX, não foi travada surrender of them for the purpose of justice, because it can be better done there than here”. Quanto aos Estados Unidos, é de referência obrigatória o acórdão da Supreme Court, Neely v. Henkel, 180 U.S. 109, de 1900, onde se declara: “American citizenship of an offender grants him neither an immunity for offenses committed abroad, nor a right to demand all of the procedural guarantees existing under the law of the United States”. Em consonância com isso, constitui jurisprudência constante neste país que “United States citizenship does not bar extradition by the United States”. Sendo certo que o Reino Unido e os Estados Unidos da América não consagram no seu direito interno nenhuma proibição de extraditar nacionais, não é raro recusarem a respectiva extradição com base em tratado em que sejam Partes Contratantes. Salientando este ponto, cf. Zsuzsana Deen-Racsmány, “A New Passport to Impunity? Non-extradition of Naturalized Citizens versus Criminal Justice”, cit., p. 771. 8 Cf. Michael Plachta, “(Non-)Extradition of Nationals: A Neverending Story?” in Emory International Law Review, n.º 13, 1999, p. 86 e p. 90. Segundo o autor, esta doutrina, cujo ponto de partida é a afirmação de que todos os cidadãos têm o direito de viver e permanecer no território do seu Estado de nacionalidade, teve origens na Alemanha (p. 105).

223

Nuno Piçarra

pela impossibilidade de dar a tal proibição uma fundamentação jurídica plenamente racional. Com efeito, do ponto de vista da boa administração da justiça, o juiz natural é aquele que tem competência ratione materiae, em consonância, aliás, com a regra universalmente reconhecida do direito processual penal segundo a qual a competência pertence ao tribunal loci delicti commissi. Neste contexto, a instauração de procedimento criminal contra o nacional que cometeu uma infracção noutro Estado, em alternativa à sua extradição para este último, pode não constituir mais do que um mero paliativo para a total frustração da justiça criminal e a impunidade do infractor, uma vez que não garante o devido acesso ao material probatório relevante, situado noutro território 9. Para além disso, do ponto de vista da protecção dos direitos das vítimas e dos ofendidos, afigura-se geralmente mais prático e equitativo que o processo criminal decorra no Estado em que o crime foi cometido 10. Por todos estes motivos, não pode considerar-se juridicamente defensável não conceder a extradição de um nacional havendo a garantia, característica do Estado de Direito, de que o procedimento criminal a que ele será sujeito junto da competente autoridade do Estado requerente respeita os princípios indispensáveis para poder ser considerado justo e equitativo. Sob este prisma, afigura-se igualmente indefensável, por maioria de razão, não conceder a extradição, havendo a garantia de que, por força do princípio da reinserção do condenado, o Estado requerente devolverá o extraditado ao Estado de que ele é nacional, para que aí Para maiores desenvolvimentos, ver Michael Plachta, op. cit. na nota anterior, pp. 85 ss. 10 Neste sentido, ver, por exemplo, o acórdão do Tribunal Constitucional da República Checa de 3 de Maio de 2006, proferido no processo 66-04, onde se declara que, “do ponto de vista dos elementos probatórios susceptíveis de serem recolhidos no Estado em que o facto punível foi praticado, o processo criminal aí instaurado será mais célere, mais efectivo e simultaneamente mais fiável e justo, tanto para o arguido como para a vítima do acto criminal”. 9

224

Aspectos Polémicos da Extradição

cumpra, em conformidade com tal princípio, a pena a que eventualmente venha a ser condenado. III. Avanços e Recuos no Processo de Eliminação Progressiva da Proibição Constitucional de Extraditar Nacionais entre os Estados-Membros da União Europeia Por mais defensável que se afigure, de um ponto de vista jurídico, eliminar a proibição de extraditar nacionais, pelo menos, entre Estados de Direito que partilham não só as mesmas concepções fundamentais acerca do que deve ser um processo criminal justo e equitativo e se vincularam internacionalmente a torná-las efectivas, mas também o mesmo entendimento acerca da importância do princípio da reinserção social do condenado, a experiência tem, todavia, demonstrado a dificuldade de os Estados aceitarem critérios de razoabilidade em vez das motivações predominantemente emocionais que concorreram para a generalização do princípio da proibição de extraditar nacionais. A experiência europeia a este respeito, que a seguir se recorda nas suas etapas fundamentais, é bem elucidativa disso mesmo. 3.1. Da Convenção Europeia de Extradição à Convenção relativa à Extradição entre os Estados-Membros da União Europeia 3.1.1. Na Convenção Europeia de Extradição, assinada no âmbito do Conselho da Europa em Paris, em 13 de Dezembro de 1957, a não extradição dos próprios nacionais surge como uma faculdade concedida às Partes Contratantes, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, alínea a). Aí se prevê também que a qualidade de nacional seja apreciada no momento

225

Nuno Piçarra

da tomada de decisão sobre a extradição [alínea c)] 11. A alínea b) habilita as Partes Contratantes a “definir, no que lhes diz respeito, o termo «nacionais» para efeitos da presente Convenção”, “mediante declaração feita no momento da assinatura ou do depósito do respectivo instrumento de ratificação ou adesão” 12. Nos termos do artigo 6.º, n.º 2, a Parte requerida que não extraditar o seu nacional deve, “a pedido da Parte requerente, submeter o assunto às autoridades competentes, a fim de que, se for caso disso, o procedimento criminal possa ser instaurado” (ênfase acrescentada), informando esta última “do seguimento que tiver sido dado ao pedido”. A expressão “se for caso disso” inserida na última disposição citada – que contempla o chamado mecanismo da denúncia internacional – prova que a convenção em análise não estabelece em termos absolutos a obrigação aut dedere aut judicare, admitindo, por conseguinte, situações em que a Parte Contratante que não extradita o seu nacional também possa não instaurar procedimento criminal contra ele. 3.1.2. Só quase quarenta anos mais tarde é que a Convenção relativa à Extradição entre os Estados-Membros da UE, assinada em Na segunda parte do disposto nesta alínea prevê-se ainda que, se a qualidade de nacional vier a ser reconhecida ao extraditando “entre o momento da decisão e a data prevista para a entrega”, a Parte requerida poderá recusar a extradição prevalecendose da alínea a). 12 Apenas nove das mais de quarenta Partes Contratantes nesta convenção não fizeram declarações ao artigo 6.º. Entre a maioria das que o fizeram, algumas vieram precisar que apreciam a qualidade de nacional, não no momento da tomada de decisão sobre a extradição, tal como prevê a alínea c) do n.º 1 daquele artigo, mas no momento da prática dos factos que fundamentam o pedido de extradição (Andorra, Croácia, França) – o que significa que extraditam quem só tenha adquirido a respectiva nacionalidade após a prática de tais factos. Em contrapartida, só a Áustria veio precisar que “considera o momento da entrega como decisivo para a determinação da nacionalidade” – o que significa que acabará por não extraditar quem, entre o momento da tomada de uma decisão positiva de extradição e o momento previsto para a entrega do extraditando, venha a adquirir a nacionalidade austríaca. O elenco das reservas e declarações à Convenção Europeia de Extradição pode ver-se apud Anabela Miranda Rodrigues e J. L. Lopes da Mota, Para uma Política Criminal Europeia, Coimbra, 2002, pp. 399 ss. 11

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Aspectos Polémicos da Extradição

Dublin em 27 de Setembro de 1996, tendo por objectivo completar e facilitar a aplicação da Convenção Europeia de Extradição, veio prever uma disposição nos termos da qual “a extradição não pode ser recusada pelo facto de a pessoa sobre a qual recai o pedido ser nacional do EstadoMembro requerido” (artigo 7.º). Esta tendencial inversão do princípio da não extradição de nacionais era, no entanto, bem menos imperativa do que à partida poderia parecer. Com efeito, levando em conta que, em diversos EstadosMembros, tal princípio tinha consagração constitucional, a Convenção de Dublin prevê expressamente a faculdade de qualquer deles “declarar que não autorizará a extradição dos seus nacionais ou que apenas a autorizará em certas condições, que especificará”, ao notificar o cumprimento das formalidades constitucionais previstas para a sua adopção (artigo 7.º, n.º 2). Tais declarações são válidas por um período de cinco anos, renovável “por períodos sucessivos com a mesma duração” (artigo 7.º, n.º 3) 13. E isto, apesar de no preâmbulo da Convenção se salientar, por um lado, que o interesse comum em “garantir que os processos de extradição

funcionem

rápida

e

eficazmente”

se

justifica

pela

circunstância de os Estados-Membros se regerem por princípios democráticos e estarem vinculados à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, exprimindo-se, por outro lado, “confiança na estrutura e no funcionamento dos seus sistemas judiciários e na capacidade de todos os Estados-Membros para assegurarem julgamentos imparciais”. O artigo 7.º, n.º 3, determina ainda, num sentido limitativo das declarações em análise, que (1) “o Estado-Membro notificará o depositário, o mais tardar três meses antes do termo de cada período de cinco anos, de que mantém a sua reserva, de que a modifica no sentido de flexibilizar as condições de extradição, ou de que a retira”; (2) na falta de notificação, “o depositário informa o Estado-Membro interessado de que a sua reserva foi considerada automaticamente prorrogada por um prazo de seis meses, dentro do qual esse Estado-Membro deve proceder à notificação. No termo do referido prazo, a falta de notificação implica a caducidade da reserva”.

13

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Nuno Piçarra

3.1.3. A Convenção de Dublin não chegou a entrar em vigor entre todos os Estados-Membros, por falta das necessárias ratificações. Mas teve o efeito útil de desencadear, nalguns dos que estabeleciam, em termos constitucionais absolutos, a proibição de extraditar nacionais, procedimentos de revisão da Constituição que culminaram na limitação de tal princípio e, por conseguinte, na admissão de extradição pelo menos para outros Estados-Membros da UE. Foi assim que, por exemplo, na Alemanha, a 47.ª lei de revisão constitucional, de Novembro de 2000, acrescentou ao artigo 16.º, n.º 2 – que continua a consagrar o princípio de que “nenhum alemão pode ser extraditado para o estrangeiro” – uma nova disposição admitindo expressamente que uma lei derrogatória possa autorizar tal extradição para outro Estado-Membro da UE ou para um tribunal internacional, “no respeito dos princípios do Estado de Direito” 14. Em Portugal, a quarta revisão da Constituição, de 1997, revogou a proibição absoluta de extradição de nacionais que figurava no artigo 33.º, n.º 1, desde 1976 (sem antecedentes em nenhuma das anteriores constituições portuguesas 15), substituindo-a por um novo n.º 3, nos

Em 11 de Setembro de 1997, quando a Alemanha notificou o Secretário-Geral do Conselho da UE de que cumprira as formalidades previstas na sua Constituição para a entrada em vigor da Convenção de Dublin, ainda formulou a seguinte reserva ao artigo 7.º desta: “A extradição de um cidadão alemão da República Federal da Alemanha para outro país é proibida pelo artigo 16.º, n.º 2, da Constituição e, por conseguinte, deve ser sempre recusada”. Esta declaração, atestando que a Alemanha era um dos Estados-Membros da UE em que a proibição constitucional de extradição de nacionais assumia carácter absoluto, contrasta manifestamente com a declaração feita em idênticas condições pela Dinamarca (“a extradição pode ser recusada se a pessoa sobre a qual recai o pedido de extradição for cidadão dinamarquês”), ou pela Espanha (“a Espanha declara que autorizará a extradição dos seus nacionais desde que o facto seja igualmente constitutivo de uma infracção em Espanha e o Estado requerente dê garantias de que, no caso de condenação, o interessado é imediatamente transferido para Espanha para aí cumprir a pena”). 15 Isto não significa que, nos tratados bilaterais de extradição que Portugal vinha celebrando desde o final do século XIX, não figurassem sistematicamente cláusulas 14

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Aspectos Polémicos da Extradição

termos do qual “a extradição de cidadãos portugueses do território nacional só é admitida, em condições de reciprocidade estabelecidas em convenção internacional, nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada, e desde que a ordem jurídica do Estado requisitante consagre garantias de um processo justo e equitativo”. A não extradição de cidadãos portugueses deixou, assim, de constituir um direito garantido em termos absolutos. O artigo 33.º, n.º 3, passou a admitir, em casos excepcionais, a extradição de nacionais (e não apenas para os restantes Estados-Membros da UE, mas também para Estados terceiros), embora estabelecendo requisitos particularmente restritivos, a começar pela limitação a dois tipos de crimes de excepcional gravidade 16. Por conseguinte, ao ratificar a Convenção de Dublin, Portugal ainda teve que se prevalecer da faculdade prevista pelo citado artigo 7.º, n.º 2 17. Seja como for, as revisões constitucionais que ocorreram nomeadamente na Alemanha e em Portugal marcam o início do reconhecimento de que o princípio da não extradição de nacionais não tem um valor apodíctico, antes devendo ser olhado com distância crítica sobretudo em determinados contextos de partilha de valores penais e processuais-penais comuns entre Estados, a fim de não aniquilar os de não extradição de nacionais, como o atestam os tratados com a Espanha, de 25 de Junho de 1867, e com o Brasil, de 10 de Junho de 1872. 16 Assim, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, p. 532. Salientando o carácter excepcional da admissibilidade da extradição de nacionais pelo artigo 33.º, n.º 3, cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, p. 368. 17 Cf. o artigo 2.º, n.º 1, da Resolução da Assembleia da República n.º 40/98, de 5 de Setembro, em que “Portugal declara que apenas autorizará a extradição de cidadãos portugueses do território nacional nas condições previstas na Constituição da República Portuguesa (a) nos casos de terrorismo e de criminalidade internacional organizada e (b) para fins de procedimento penal e, neste caso, desde que o Estado requerente garanta a devolução da pessoa extraditada a Portugal, para cumprimento da pena ou medida que lhe tenha sido aplicada, salvo se essa pessoa a isso se opuser por declaração expressa”.

229

Nuno Piçarra

princípios fundamentais da boa administração da justiça penal, a começar pelo princípio da territorialidade. 3.2. A Decisão-Quadro relativa ao Mandado de Detenção Europeu O debate a que a questão da proibição constitucional de extraditar nacionais deu origem no decurso do procedimento legislativo que culminou na aprovação pelo Conselho da UE, em 13 de Junho de 2002, da Decisão-Quadro relativa ao mandado de detenção europeu (MDE) e aos processos de entrega entre os Estados-Membros (a seguir designada por “decisão-quadro”) 18, ilustra bem as resistências que tal proibição continua a opor às tentativas de a superar. 3.2.1. A decisão-quadro pretende-se “a primeira concretização, no domínio do direito penal, do princípio do reconhecimento mútuo”, elevado pelo Conselho Europeu de Tampere (1999) a “pedra angular da cooperação judiciária”. O seu objectivo primordial é o de “suprimir a complexidade e a eventual morosidade inerentes aos procedimentos de extradição”, totalmente deslocadas num espaço de fronteiras internas abertas como a UE desde a entrada em vigor do Tratado de Amesterdão, em 1 de Maio de 1999. Sem romper em absoluto com o instituto da extradição, a decisão-quadro exclui, no entanto, do processo de entrega por ela estabelecido as autoridades político-governamentais, qualificando como únicos interlocutores autoridades judiciárias desprovidas do poder de apreciação política inerente às primeiras 19. Pode dizer-se que com o

Publicada no Jornal Oficial da União Europeia (JO) L 190, de 18-7-2002, p. 1. Para maiores desenvolvimentos sobre a natureza jurídica do MDE e do processo de entrega em confronto com a extradição, ver Nuno Piçarra, “A transposição da decisão-quadro relativa ao mandado de detenção europeu sob escrutínio dos juízes constitucionais nacionais” in Jurisprudência Constitucional, n.º 8, 2005, pp. 80 ss., e bibliografia aí citada. 18 19

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Aspectos Polémicos da Extradição

MDE foi estabelecido um processo penal comum europeu em pequena escala 20. Na proposta que desencadeou o procedimento legislativo em que a decisão-quadro veio a ser aprovada 21, a Comissão Europeia salientou que “a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo leva a que cada autoridade judiciária nacional reconheça ipso facto, e mediante controlos mínimos, o pedido de entrega de uma pessoa formulado pela autoridade judiciária de outro Estado-Membro” (ênfase acrescentada). Em coerência com isto, a proposta da Comissão afastava decididamente a recusa de execução de um MDE com fundamento na nacionalidade da pessoa sobre que ele recai: “Todo o cidadão da União deve ser penalmente processado e condenado onde cometeu a infracção no interior da União Europeia, seja qual for a sua nacionalidade”; a pena, porém, deve ser cumprida no Estado-Membro em que as probabilidades de reinserção dessa pessoa sejam maiores. Ao tradicional princípio da recusa facultativa de extradição em razão da nacionalidade, a proposta contrapunha o princípio da reinserção: “a execução de um mandado de detenção europeu contra uma pessoa procurada pode ser recusada se essa pessoa tiver maiores probabilidades de reinserção no Estado-Membro de execução e se consentir em cumprir a pena neste Estado-Membro” (artigo 33.º). Daí o disposto no artigo 36º: a execução do MDE pode ser subordinada à condição de a pessoa sobre que ele recai ser devolvida ao EstadoMembro de execução para nele cumprir a pena, sempre que haja razões para julgar que tem aí maiores probabilidades de reinserção. Neste sentido Eugenio Selvaggi, “Euroscepticism versus Building a Common System for the Surrender of Fugitives. The Implementation of the European Arrest Warrant in Italy” in Eucrim, 1-2, 2007, p. 61. 21 Proposta de decisão-quadro do Conselho relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre Estados-Membros, COM(2001) 522 final, publicada no JO C 332 E, de 27-11-2001, p. 305. 20

231

Nuno Piçarra

Nenhuma das disposições da proposta da Comissão fazia, pois, referência à nacionalidade da pessoa sobre que recai o MDE. 3.2.2. A este respeito, a decisão-quadro aprovada pelo Conselho acabou, porém, por revelar diferenças consideráveis em relação à proposta da Comissão, atestando bem a “capacidade de resistência” do princípio da não extradição de nacionais. E isto, não obstante a circunstância de, à data, tal princípio já ter sido removido ou, pelo menos, atenuado nas constituições de diversos Estados-Membros, tal como se referiu atrás. A versão aprovada pelo Conselho reintroduziu expressamente em diversas disposições do seu articulado a categoria de “nacional” (ausente, repita-se, da proposta da Comissão), de par com a de “residente”, do Estado-Membro de execução, em substituição da categoria genérica de “pessoa sobre que recai um MDE”. Em primeiro lugar, o n.º 6 do artigo 4.º (cuja epígrafe é “Motivos de não execução facultativa do mandado de detenção europeu”) habilita a competente autoridade judiciária de um Estado-Membro a recusar a execução do MDE emitido para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade, se a pessoa sobre que ele recai for nacional (ou residente) desse Estado-Membro, e o mesmo Estado se comprometer a executar tal pena ou medida de segurança nos termos do seu direito. O nacional sobre que recai o MDE poderá até nem sequer residir no Estado-Membro que recusa a execução. Nesse caso, tal recusa fundar-se-á exclusivamente no vínculo da nacionalidade. Por outras palavras, o artigo 4.º, n.º 6, da decisão-quadro não se opõe a que um Estado-Membro se recuse a entregar um nacional apenas por causa desta qualidade, ainda que ele tenha, porventura, maiores probabilidades de reinserção no Estado-Membro de emissão do MDE, designadamente por lá residir e trabalhar ao abrigo dos direitos decorrentes do seu estatuto de cidadão da UE. 232

Aspectos Polémicos da Extradição

Em segundo lugar, o n.º 3 do artigo 5.º da decisão-quadro (cuja epígrafe é “Garantias a fornecer pelo Estado-Membro de emissão em casos especiais”) habilita os Estados-Membros a fazerem depender a execução de um MDE recaindo sobre um seu nacional (ou residente) da condição de que o mesmo, após ter sido ouvido, lhes seja devolvido para cumprir no respectivo território a pena ou medida de segurança privativa da liberdade aplicada no Estado-Membro de emissão 22. O que se disse a propósito do artigo 4.º, n.º 6, vale, por identidade de razão, para a disposição em análise: o nacional sobre que recai o MDE poderá até nem sequer residir no Estado-Membro que faz depender a execução do MDE da sua ulterior devolução ao respectivo território para nele cumprir a pena ou medida de segurança aplicada no Estado-Membro de emissão, pelo que, também neste caso, a condição em análise fundar-se-á exclusivamente no vínculo da nacionalidade e não nas “maiores probabilidades de reinserção”. Em terceiro lugar, e a confirmar a influência que o instituto da extradição exerceu sobre a decisão-quadro, constam dela disposições não incluídas na proposta da Comissão, contemplando as hipóteses de trânsito, através do território de um Estado-Membro, dos nacionais ou residentes deste em execução de um MDE. Por um lado, nos termos do n.º 1, primeiro parágrafo, do artigo 25.º (“Trânsito”), se o MDE tiver sido emitido para efeitos do cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativa da liberdade, o Estado-Membro requerido pode recusar os pedidos de trânsito que recaiam sobre os nacionais (ou 22 No sentido de que, a este respeito, a decisão-quadro revela uma lacuna por nada dispor relativamente ao mecanismo a utilizar para a devolução da pessoa ao seu Estado de nacionalidade (ou de residência) para os efeitos previstos pelo artigo 5.º, n.º 3, ver Eugenio Selvaggi, “Euroscepticism versus Building a Common System for the Surrender of Fugitives. The Implementation of the European Arrest Warrant in Italy”, cit., p. 63, que se interroga sobre se não deveria fazer-se aí uma remissão para a Convenção Europeia relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, de 21 de Março de 1983, no sentido da sua aplicabilidade in toto ou mutatis mutandis.

233

Nuno Piçarra

residentes) no seu território. Por outro lado, nos termos do segundo parágrafo do mesmo n.º 1, se o MDE tiver sido emitido para efeitos de procedimento penal e recair sobre um nacional (ou residente) do EstadoMembro a quem o pedido de trânsito é dirigido, este Estado-Membro pode sujeitar o deferimento de tal pedido à condição de o nacional (ou residente), após ter sido ouvido, lhe ser devolvido para nele cumprir a pena ou medida de segurança privativa da liberdade aplicada no EstadoMembro de emissão. Todas estas disposições, para além de demonstrativas da “capacidade de resistência” da proibição constitucional de extraditar nacionais no quadro da UE, demonstram também que, entre tal proibição e o tratamento dos nacionais com total abstracção do vínculo de nacionalidade, há soluções alternativas aptas para porem em concordância prática as especificidades deste vínculo e os princípios da boa administração da justiça penal, susceptíveis de consagração também entre Estados menos integrados do que os Estados-Membros da UE. Mas a “capacidade de resistência” da proibição constitucional de extraditar nacionais atinge a sua máxima intensidade no artigo 33.º, n.º 1, da decisão-quadro. Em derrogação singular ao princípio segundo o qual o Estado-Membro de execução não fica dispensado de entregar a pessoa sobre que recai um MDE, pelo simples facto de a mesma ser seu nacional, o artigo 33.º, n.º 1, autoriza a Áustria a recusar o cumprimento de um MDE até 31 de Dezembro de 2008, se, cumulativamente, a pessoa procurada for um cidadão austríaco e o facto que determinou a emissão do mandado não for punível nos termos do direito austríaco. Esta derrogação, de difícil justificação e, por isso mesmo, muito criticável, não foi prevista para mais nenhum Estado-Membro, apesar de alguns deles estarem em pé de igualdade com a Áustria quanto à vigência de preceito

234

Aspectos Polémicos da Extradição

formal ou materialmente constitucional que proíbe em termos absolutos a extradição de nacionais 23. 3.2.3. Tendo em conta o que precede, é de concluir que a decisãoquadro não se salda pela total supressão do tradicional princípio da não extradição de nacionais. Subsistem nela, com efeito, alguns vestígios do princípio em causa 24. Mesmo assim, a decisão-quadro levou à revisão de constituições que, como a portuguesa, limitavam a extradição de nacionais a determinados crimes especialmente graves (terrorismo e criminalidade internacional organizada). A revisão extraordinária de 2001 acrescentou ao artigo 33.º da CRP um novo n.º 5, nos termos do qual “o disposto nos números anteriores [e designadamente no n.º 3] não prejudica a aplicação das normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia”. Esta nova disposição constitucional veio permitir ao legislador ordinário transpor devidamente a decisão-quadro para o ordenamento português, especialmente na parte em que ela converte em regra geral a extradição de nacionais entre os Estados-Membros da UE, reduzindo a mero vestígio a tradicional proibição. O efeito do novo n.º 5 é o de limitar o âmbito de aplicação do n.º 3 do artigo 33.º às relações de cooperação

A Áustria notificou o Conselho de que faria uso da cláusula derrogatória do artigo 33.º; cf. Isabelle Pérignon, “The Implementation of the European Arrest Warrant into National Law. The Second Evaluation Report of the Commission” in Eucrim, 1-2, 2007, p. 58. 24 Neste sentido, Steve Peers, EU Justice and Home Affairs Law, 2.ª edição, Oxford, 2006, p. 469. Em sentido contrário, cf. Anne Weyembergh, “L’espace pénal européen” in Lucette Defalque (coord.), Actualités en droit européen et rappel de quelques principes, Bruxelas, 2006, p. 80, segundo a qual a decisão-quadro suprime totalmente o tradicional fundamento de recusa de extradição baseado na nacionalidade. 23

235

Nuno Piçarra

judiciária penal entre o Estado português e Estados terceiros, com exclusão, portanto, dos restantes Estados-Membros da UE 25. 3.3. O mandado de detenção europeu referente a nacionais na jurisprudência constitucional dos EstadosMembros: os acórdãos paradigmáticos Merece, por último, uma breve menção a jurisprudência constitucional estadual que apreciou a compatibilidade das leis de transposição

da

decisão-quadro

analisada

com

os

respectivos

dispositivos constitucionais em matéria de extradição de nacionais. Trata-se, por um lado, do acórdão do Tribunal Constitucional da Polónia (TCP), de 27 de Abril de 2005, e, por outro lado, do acórdão do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (BVerfG), de 18 de Julho de 2005, que

têm

em

comum

a

circunstância

de

a

declaração

de

inconstitucionalidade daquelas leis (em que ambos se traduziram) ter sido baseada na violação dos preceitos constitucionais relativos à proibição de extradição de nacionais 26. O teor das duas disposições constitucionais paramétricas não é, no entanto, coincidente. No caso da Polónia, o artigo 55.º, n.º 1, da Constituição proíbe em absoluto a extradição de nacionais. No caso da Alemanha, como já se referiu, o artigo 16.º, n.º 2, da Lei Fundamental de

Tal como observa Vital Moreira, “O Tribunal Penal Internacional e a Constituição” in AAVV, O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Portuguesa, Coimbra, 2004, especialmente pp. 18 e 26, o artigo 33.º, n.º 5, da CRP, ao remeter globalmente para as “normas de cooperação judiciária penal estabelecidas no âmbito da União Europeia”, constitucionaliza todas as soluções que neste domínio possam conflituar na especialidade com outras normas da CRP e constitucionaliza, concretamente, o mandado de detenção europeu enquanto derrogação às normas constitucionais em matéria de extradição. Cf. também Nuno Piçarra, “As revisões constitucionais em matéria de extradição. A influência da União Europeia” in 30 Anos da Constituição Portuguesa. 1976-2006, Themis, Edição Especial, Lisboa, 2006, p. 239 e nota 38. 26 A estes dois arrestos juntou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Chipre, de 7 de Novembro de 2005. 25

236

Aspectos Polémicos da Extradição

Bona (GG), estabelecendo embora uma proibição assimilável na sua primeira parte, admite que uma lei possa prever a extradição de nacionais para os outros Estados-Membros da UE ou para um tribunal internacional, “desde que os princípios fundamentais do Estado de Direito sejam respeitados”. Apesar disso, e por mais paradoxal que possa parecer, o acórdão do TCP acabou por se mostrar bem mais favorável à superação da proibição absoluta de extraditar nacionais do que o BVerfG – o qual interpretou de uma forma particularmente restritiva e “passadista” a autorização de extraditar nacionais, expressamente contemplada pela GG desde 2000. Pode, por isso, dizer-se que as abordagens de cada um dos acórdãos se contrapõem em termos paradigmáticos. 3.3.1. Perante a proibição absoluta do artigo 55.º, n.º 1, da Constituição da Polónia, não restava outra alternativa ao TCP senão concluir pela inconstitucionalidade do preceito legal nos termos do qual “sempre que um mandado de detenção europeu for emitido para efeitos de instauração de procedimento penal contra um cidadão de nacionalidade polaca ou que goze do direito de asilo na República da Polónia, a entrega só pode ter lugar na condição de essa pessoa ser devolvida ao território da República da Polónia após o termo do processo no Estado em que o mandado de detenção europeu tiver sido emitido” (artigo 607.º-T, n.º 1, do Código de Processo Penal). Todavia, baseando-se no artigo 9.º da Constituição – nos termos do qual a Polónia respeita as obrigações internacionais a que se encontra vinculada e, concretamente, as decorrentes da sua qualidade de EstadoMembro da UE –, o TCP decidiu aplicar ao caso concreto o artigo 190.º, n.º 3, da Constituição. Este habilita-o a limitar no tempo os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma lei por um prazo máximo de dezoito meses, ou, noutra perspectiva, a manter transitória e 237

Nuno Piçarra

excepcionalmente em vigor a disposição julgada inconstitucional. Tal implicou que, apesar de declarado inconstitucional em 27 de Abril de 2005, o citado artigo 607.º-T, n.º 1, continuou a dever ser aplicado pelos órgãos competentes e, por conseguinte, a serem executados os MDE’s recaindo sobre cidadãos polacos, nas condições legalmente previstas. O TCP justificou esta solução com o argumento de que o MDE e o processo de entrega nele baseado, constituindo “uma resposta ao direito dos cidadãos dos Estados-Membros da UE de circularem livremente e de residirem no território de outro Estado-Membro”, são de “uma importância crucial para a administração da justiça e principalmente – como forma de cooperação entre os Estados-Membros no combate ao crime – para a melhoria da segurança”. Não assumindo competência para estabelecer obrigações dirigidas ao legislador constitucional de revisão, o TCP escolheu uma fórmula flexível e “diplomática”, com vista a salvaguardar a transposição plena e constitucionalmente conforme da decisão-quadro (só possível mediante revisão constitucional 27): “não é de excluir uma adequada revisão do artigo 55.º, n.º 1, da Constituição, de modo a que este preceito preveja uma excepção à proibição de extradição de cidadãos polacos, permitindo assim a sua entrega a outros Estados-Membros com base em mandado de detenção europeu” 28.

No sentido de que a única opção viável era a revisão do artigo 55.º, n.º 1, da Constituição, ver Adam Lazowski, “Constitutional Tribunal on the Surrender of Polish Citizens under the European Arrest Warrant. Decision of 27 April 2005” in European Constitutional Law Review, vol. I, 2005, p. 579; cf. também Kazimierz Bem, “The European Arrest Warrant and the Polish Constitutional Court Decision of 27 April 2005” in Elspeth Guild (ed.), Constitutional Challenges to the European Arrest Warrant, Nijmegen, 2006, p. 134. 28 O TCP não chegou sequer a equacionar a questão de saber se uma tal alteração do artigo 55.º, n.º 1 – que redundaria na supressão ou, pelo menos, na restrição daquilo que caracterizou como o direito fundamental dos cidadãos polacos de responderem criminalmente perante um tribunal polaco – violaria os limites materiais da revisão da Constituição. 27

238

Aspectos Polémicos da Extradição

Em 7 de Novembro de 2006, o artigo 55.º da Constituição da Polónia foi efectivamente revisto em ordem a permitir a entrega de nacionais aos restantes Estados-Membros da UE em execução de um MDE e a dar cobertura às disposições legais, constantes do código de processo penal polaco, que transpuseram a decisão-quadro para o respectivo ordenamento jurídico 29. 3.3.2. O BVerfG, na linha da já referida posição tradicional na doutrina alemã, declarou que a proibição de extradição de nacionais constante do artigo 16.º, n.º 2, primeira parte, é, juntamente com a proibição de retirada da nacionalidade alemã, constante do n.º 1 do mesmo artigo, expressão da responsabilidade do Estado pelos seus próprios nacionais. Ambas as proibições correspondem, segundo o BVerfG, a direitos fundamentais que garantem o vínculo especial dos nacionais à comunidade política liberal e democrática por eles sustentada e da qual não podem, em princípio, ser excluídos. Para que o direito fundamental dos alemães à não extradição não se transformasse num salvo-conduto para a sua acção criminal no estrangeiro, o jus puniendi do Estado alemão tinha de estender-se às infracções penais por eles cometidas no estrangeiro, de modo a possibilitar a sua repressão. Só a partir de Novembro de 2000, por força da 47.ª revisão constitucional, é que esta solução constitucional conheceu a primeira derrogação. Assim interpretado o artigo 16.º, n.º 2, da GG, forçoso se torna ver a sua “substância axiológica” exclusivamente incorporada na primeira parte (“Nenhum alemão pode ser extraditado para o estrangeiro”), e o disposto na segunda parte como uma simples permissão de restringir um direito fundamental para casos muito contados. A propósito do preceito O artigo 11.º da Constituição de Chipre, revisto especificamente para permitir a entrega de nacionais, entrou em vigor em 28 de Julho de 2006. A nova disposição constitucional exige, no entanto, que tal entrega se faça apenas em execução dos MDE’s emitidos por causa de factos praticados depois de 1 de Maio de 2004, data de adesão de Chipre à UE.

29

239

Nuno Piçarra

aditado pela 47.ª revisão constitucional, o BVerfG equacionou não só a questão de saber se violaria os limites materiais da revisão constitucional estabelecidos pelo artigo 79.º, n.º 3 – entre os quais figura a intangibilidade do conteúdo essencial dos direitos fundamentais –, mas também a de saber se a obrigação de extradição de nacionais em determinados casos implicaria uma “desestadualização” da República Federal da Alemanha. Respondeu-lhes, no entanto, negativamente. O modo como o BVerfG interpretou o princípio da proibição, embora relativa, de extraditar/entregar nacionais constante do artigo 16.º, n.º 2, da GG – e que lhe serviu de ponto de partida para a declaração de inconstitucionalidade da lei de transposição da decisãoquadro, por o legislador alemão não ter explorado todas as hipóteses previstas por esta última no sentido de evitar a sujeição de um nacional a um ordenamento penal que não pôde influenciar democraticamente e não é obrigado a conhecer 30 – contrasta acentuadamente com o modo como o Tribunal Constitucional da Polónia interpretou a proibição absoluta de extradição de nacionais contida no artigo 55.º, n.º 1, da Constituição polaca. Ao passo que este último tribunal encarou tal proibição como revisível e mesmo como carecida de superação, por a Polónia se ter tornado membro da UE e por os seus nacionais, enquanto cidadãos da União, passarem a dispor do direito de circular livremente e de residir no território de outro Estado-Membro, o BVerfG começou por atribuir

à

respectiva

proibição

um

carácter

“transcendental”,

fundamentando-a num “especial vínculo do cidadão à comunidade A título de exemplo, o BVerfG censura o legislador alemão por não ter clarificado que constitui fundamento de recusa obrigatória de entrega de um nacional a existência de uma decisão do Ministério Público de não instaurar processo penal, ou de o arquivar, pelo mesmo facto que deu origem à emissão do MDE noutro EstadoMembro. Mas a verdade é que, através das habituais técnicas de interpretação jurídica e designadamente do cânone da interpretação conforme à Constituição, se chegaria a tal solução, sem necessidade de uma declaração de inconstitucionalidade da lei de transposição.

30

240

Aspectos Polémicos da Extradição

política liberal e democrática” e não apenas, como seria de esperar, na própria Constituição. Seja como for, tal como se fez notar num dos votos vencidos, é inexacta a equiparação, efectuada pelo BVerfG, da proibição de extradição de nacionais à proibição de privação da nacionalidade, que tem manifestamente outro alcance, para além do significado especial de que se reveste em face da utilização dessa privação durante o período nazi, sem qualquer paralelo com o instituto da extradição. Por outro lado, a extradição não implica a exclusão de um nacional da comunidade a que pertence, tanto mais que está normalmente sujeita à condição de devolução do extraditado para efeitos do cumprimento da pena que lhe venha a ser aplicada. Atendendo à meridiana clareza com que o declarou o homólogo checo 31 do BVerfG, não deixa de ser surpreendente que este sustente o contrário contra toda a evidência, a revelar, além do mais, uma pré-compreensão da UE e de um dos seus objectivos maiores – manutenção e desenvolvimento como Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça – que o artigo 23.º da GG parece longe de caucionar. Tal como observou um certeiro crítico do acórdão em apreço, o BVerfG desconsiderou totalmente o facto de a reserva especial de lei contemplada pelo artigo 16.º, n.º 2, da GG se distinguir das restantes por constituir um instrumento de realização dos objectivos proclamados no artigo 23.º, n.º 1, a saber, “a edificação de uma Europa unida” e “o

Lê-se no citado acórdão do Tribunal Constitucional da República Checa de 3 de Maio de 2006 que “um cidadão checo entregue a outro Estado-Membro da UE para efeitos de processo criminal mantém-se sob a protecção do Estado checo, mesmo durante o decurso desse processo. O MDE apenas permite que um nacional seja entregue, por um período de tempo limitado, para ser processado noutro EstadoMembro da UE por um acto especificamente definido. Concluído o processo, nada o impede de voltar ao território checo”.

31

241

Nuno Piçarra

desenvolvimento da União Europeia” – em que a Alemanha, nos termos da mesma disposição, deve participar 32. A

necessária

concordância

prática

entre

duas

disposições

constitucionais de igual valor deveria ter levado o BVerfG a não ver no artigo 16.º, n.º 2, segunda parte, uma mera excepção a uma regra fundamental, mas antes um instrumento importante de realização dos objectivos do próprio artigo 23.º, n.º 1. Assim como deveria tê-lo levado a ponderar

os

casos

em

que

os

fundamentos

de

recusa

da

extradição/entrega de alemães são igualmente aplicáveis aos não nacionais residentes na Alemanha – tal como de resto o exige a própria decisão-quadro, em cumprimento do princípio da proibição de discriminações em razão da nacionalidade entre cidadãos da União no âmbito de aplicação dos tratados 33. Em consequência deste acórdão, a Alemanha suspendeu a entrega de nacionais em cumprimento do MDE (e também a extradição deles) entre 18 de Julho de 2005 e 2 de Agosto de 2006, data da entrada em vigor das novas disposições legais de transposição da decisão-quadro que substituíram

as

declaradas

inconstitucionais

pelo

BVerfG.

Em

contrapartida, continuou a emitir MDE’s dirigidos aos outros EstadosMembros. Em reacção a isto, dois deles – a Espanha e a Hungria –, invocando a quebra do princípio da confiança mútua pela Alemanha e o princípio da reciprocidade, recusaram-se a reconhecer tais MDE’s. Tudo

Assim, Christian Tomuschat, “Ungereimtes / Zum Urteil des Bundesverfassungsgerichts vom 18. Juli 2005 über den Europäischen Haftbefehl” in Europäische Grundrechte Zeitschrift, n.º 17-18, 2005, p. 455, segundo o qual o BVerfG revela uma indisfarçável pré-compreensão da cooperação judiciária penal entre os Estados-Membros ao abrigo do Título VI do Tratado da União Europeia como uma degradação em termos de Estado de Direito. 33 Cf. Joachim Vogel, “Europäischer Haftbefehl und deutsches Verfassungsrecht” in Juristen Zeitung, 2005, p. 805, para quem, à luz deste princípio, não se afigura sustentável a discriminação positiva dos alemães face aos outros cidadãos da União residentes na Alemanha, operada pelo BVerfG. 32

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Aspectos Polémicos da Extradição

isto provocou uma considerável incerteza jurídica durante o período em causa.

IV. Conclusão A análise levada a cabo conduz à conclusão de que o princípio constitucional da proibição de extraditar nacionais, apesar da sua racionalidade jurídica muito claudicante, exibe uma surpreendente “viscosidade”. E isto, mesmo no quadro de uma associação sui generis de Estados fortemente integrados como a UE, em que o próprio instituto da extradição já foi substituído pelo MDE e o processo de entrega, mais rápido e mais fluido, plenamente judicializado, baseado no princípio do reconhecimento mútuo e, em consonância com ele, na supressão parcial da exigência de dupla incriminação (no Estado-Membro de emissão e no de execução) do facto que dá causa ao mandado. Com efeito, os relatórios elaborados pela Comissão Europeia sobre a aplicação da decisão-quadro analisada, com base no seu artigo 34.º, n.º 3 34, dão conta de que, apesar de a maioria dos Estados-Membros se ter bastado com a exigência de que os seus nacionais e residentes cumpram nos respectivos territórios as penas ou medidas de segurança privativas da liberdade contra eles proferidas no Estado-Membro de emissão do MDE, como condição de execução deste (permitida, como se viu, pelos artigos 4.º, n.º 6, 5.º, n.º 3, e 25.º, n.º 1, da decisão-quadro) e não ter recorrido à disposição transitória prevista pelo artigo 32.º, nem mesmo

Sobre o tema, incluindo as fortes críticas que tais relatórios suscitaram entre os Estados-Membros, ver por todos Ángeles G. Zarza, “Evaluation of Member States in the Third Pillar of the European Union. The specific case of the European Arrest Warrant” in Anne Weyembergh e Serge de Biolley (edit.) Comment évaluer le droit pénal européen?, Bruxelas, 2006, pp. 99 ss.

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Nuno Piçarra

relativamente aos seus nacionais 35, alguns deles não deixaram de consagrar, a este propósito, soluções legislativas incompatíveis com a decisão-quadro. Contam-se entre as incompatibilidades: (1) a introdução de uma cláusula de reciprocidade e da obrigação de conversão da pena aplicada a nacionais no Estado-Membro de emissão; (2) o controlo sistemático da dupla incriminação em relação aos nacionais; (3) a recusa de trânsito dos nacionais quando sobre eles recaia um MDE para efeitos de procedimento penal noutro Estado-Membro; (4) a recusa de execução de MDE’s emitidos contra nacionais por factos posteriores a 7 de Agosto de 2002. Por seu lado, entre as práticas violadoras da decisão-quadro está a recusa de execução de MDE’s emitidos contra nacionais com fundamento no artigo 4.º, n.ºs 2 e 7 da mesma decisão-quadro 36, mas sem conclusão das acções penais instauradas ao abrigo destas disposições 37. Os problemas suscitados a propósito da entrega de nacionais entre os Estados-Membros da UE não se afiguram, apesar de tudo, de molde a

De acordo com o artigo 32.º, “qualquer Estado-Membro pode, no momento da aprovação da presente decisão-quadro, fazer uma declaração indicando que, enquanto Estado-Membro de execução, continuará a tratar de acordo com o sistema de extradição aplicável antes de 1 de Janeiro de 2004 os pedidos relacionados com factos praticados antes de uma data que especificará. A data em questão não pode ser posterior a 7 de Agosto de 2002”. 36 O n.º 2 do artigo 4.º da decisão-quadro dispõe que a autoridade judiciária competente pode recusar a execução de um MDE quando, contra a pessoa sobre que ele recai, for movido procedimento penal no Estado-Membro de execução pelo mesmo facto que determinou a emissão do mandado. Por seu lado, o n.º 7 do mesmo artigo permite a não execução de um MDE sempre que ele “disser respeito a infracção que (a) segundo o direito do Estado-Membro de execução, tenha sido cometida, no todo ou em parte, no seu território ou em local considerado como tal; ou (b) tenha sido praticada fora do território do Estado-Membro de emissão, e o direito do Estado-Membro de execução não autorize o procedimento penal por uma infracção idêntica praticada fora do seu território”. 37 Ver o relatório da Comissão de 24 de Janeiro de 2006, COM(2006) 8 final, p. 5, e o anexo SEC(2006) 79, pp. 11, 13 e 28, bem como o relatório de 11 de Julho de 2007, COM(2007) 407 final, pp. 3, 8 e 9, incluindo o anexo SEC(2007) 979, pp. 12-13. 35

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Aspectos Polémicos da Extradição

tornar de imediato necessária uma reflexão específica sobre a matéria 38. A corroborá-lo é de referir a circunstância de mais de um quinto das pessoas entregues em 2005 em cumprimento de um MDE serem nacionais ou residentes dos Estados-Membros de execução, apenas tendo sido exigida a garantia de devolução aos respectivos territórios a título do artigo 5.º, n.º 3, da decisão-quadro em metade dos casos 39. Realce-se, a terminar, que a crítica à proibição constitucional de extraditar nacionais não implica – nem mesmo no quadro da UE, com todas as virtualidades integradoras que a caracterizam – a defesa da substituição pura e simples de tal proibição por uma permissão irrestrita e incondicional de extradição/entrega de nacionais e residentes, como se eles não tivessem com o respectivo Estado um vínculo qualificado. O princípio da reinserção do condenado, nos termos atrás recordados, deverá constituir sempre um limite à extradição/entrega de nacionais e residentes. Além disso, não pode esquecer-se que mesmo os não nacionais tendem a gozar actualmente nos Estados de Direito democráticos, pelo menos do direito de não serem extraditados para territórios onde falte a garantia de que não lhes será aplicada a pena de morte ou outra manifestamente desumana ou degradante. Aquilo que a boa administração da justiça penal cada vez mais impõe na era da globalização, mesmo entre Estados que não se encontrem tão profundamente integrados como os membros da UE, é a admissibilidade da extradição de nacionais pelo menos nos casos de terrorismo, criminalidade organizada, narcotráfico, tráfico de seres humanos e tráfico de armas, apenas dependente da condição de que o

Em sentido contrário, Eugenio Selvaggi, “Euroscepticism versus Building a Common System for the Surrender of Fugitives”, cit., p. 63. 39 Cf. o relatório da Comissão de 11 de Julho de 2007, cit., p. 4. 38

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Estado requisitante observe os princípios do Estado de Direito, entre os quais se inclui também o princípio da reinserção do condenado. E isto, naturalmente, sem prejuízo do estipulado no Estatuto do Tribunal Penal Internacional 40.

Para além da obra colectiva citada na nota 25, ver, por exemplo, Antonio Cassese, “The Statute of the International Criminal Court: Some Preliminary Reflections” in European Journal of International Law, 1999, pp. 144 ss. 40

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EXTRADIÇÃO DE BRASILEIROS *

Artur de Brito Gueiros Souza **

Sumário: I. Introdução; II. Breves Considerações acerca da Trajetória da Extradição de Nacionais; III. A Extradição do Brasileiro Naturalizado por Fato Anterior à Aquisição da Nacionalidade; IV. A Extradição do Naturalizado por Envolvimento no Tráfico de Drogas; V. A Entrega de Brasileiros ao Tribunal Penal Internacional.

I. Introdução A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, assegura, na parte referente aos direitos e garantias fundamentais, no inciso LI, do art. 5º, a não-extradição de brasileiros, nos seguintes termos: “Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da O presente trabalho foi escrito em conjunto com os integrantes do GPDPI - Grupo de Pesquisa em Direito Penal Internacional da Faculdade de Direito da UERJ: Bruna Laiber Monteiro, Caroline Vasconcelos Martins, Larissa Clare Pochmann da Silva, Renan Torres Fernandes, Sylvia Chaves Lima da Costa, Thamyrys Baur Tuffi Alli, Victor Conceição Ronton & Victor Pina Bastos. ** Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, República Federativa do Brasil. *

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naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.” Trata-se de uma cláusula complexa, que contempla duas subdivisões: (a) não-extradição, em absoluto, do brasileiro nato, e (b) não-extradição, em regra, do brasileiro naturalizado. Quanto ao naturalizado, é permitida a extradição, desde que o pedido se funde (b-1) em delito praticado em data anterior à aquisição da nossa nacionalidade ou (b-2) nos casos de participação no tráfico de drogas, pouco importando, nesta última vertente, a época do referido envolvimento. Segundo, ainda, o art. 12, da Constituição de 1988, consideram-se brasileiros natos, (a) os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço do seu país; e (b) os nascidos no estrangeiro, de pai ou de mãe brasileiro, desde que venham a residir no Brasil e optem, em qualquer tempo, pela nacionalidade brasileira. Por sua vez, são considerados brasileiros naturalizados (a) os que, na forma da lei, adquiram a nacionalidade brasileira, exigidas aos originários de países de língua portuguesa (v.g., Cabo Verde), apenas residência por um ano ininterrupto e idoneidade moral; e (b) os estrangeiros de qualquer nacionalidade residentes no Brasil há mais de quinze anos ininterruptos e sem condenação penal, desde que requeiram a nacionalidade brasileira 1. Em que pese a aparente clareza da sistemática constitucional, é certo que a não-extradição de nacionais do Brasil possui uma acidentada marcha evolutiva, com idas e vindas, além de suscitar polêmicas na atualidade, tendo em vista tratar-se, o Brasil, de um país freqüentemente

1 A recente Emenda Constitucional n. 54, de 20.09.07, acrescentou mais uma hipótese de brasileiro nato: os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira.

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Aspectos Polémicos da Extradição

demandado a colaborar no âmbito internacional, haja vista o grande fluxo de estrangeiros que por aqui circulam 2, além, é claro, de se constituir em lamentável ponto de passagem para algumas manifestações delitivas transnacionais, em particular o tráfico ilícito de drogas. Agregue-se a isso o fato histórico do Tratado de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional – jurisdição a qual o Brasil se submete constitucionalmente – estar em vigor, entre nós, desde setembro de 2002. Como se sabe, o art. 89, do Estatuto do TPI, prevê a obrigação do Estado Parte capturar, deter e entregar àquela Corte uma pessoa suspeita da prática de delito tipificado no Estatuto do TPI, independentemente de sua nacionalidade. Tal previsão traz reflexos na disciplina da não-extradição de nacionais, gerando, por conseguinte, mais um foco de controvérsias. Desta maneira, pretende-se discorrer sobre tais questionamentos, contribuindo, assim, para a sempre oportuna rediscussão de uma temática que interessa não só a nós, brasileiros, mas a todos os que se debruçam sobre a polêmica extradição de nacionais no Direito Comparado. Para tanto, serão feitas breves considerações históricas sobre a presente matéria. Em seguida, far-se-ão incursões sobre a extradição de nacionais naturalizados, por fato cometido antes da aquisição do selo de brasileiro naturalizado e, ainda, por envolvimento no narcotráfico internacional, após, deteremo-nos sobre o entrechoque de disposições do Tribunal Penal Internacional e de nossa Carta Constitucional.

Segundo dados do nosso Ministério do Turismo, entre os anos de 1998 e 2002, cerca de 24 milhões de turistas transitaram pelo Brasil. Embratur, Anuário Estatístico, v. 3, Brasília, 2003, p. 20.

2

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II. Breves Considerações acerca da Trajetória da Extradição de Nacionais A livre circulação de estrangeiros em solo brasileiro começou há quase duzentos anos, ou seja, em 1808, por ocasião do desembarque da Real Família Bragantina, expulsa de Portugal pelos exércitos de NAPOLEÃO BONAPARTE. Naquela ocasião, houve a abertura, por Decreto do Rei DOM JOÃO VI, do nosso imenso território ao trânsito e comércio com os cidadãos das denominadas “nações amigas”. Assim puderam, portanto, os forasteiros, ingressar, temporária ou definitivamente, em nossas terras, bem como os brasileiros “livres”, isto é, os não-escravos, ganharam a oportunidade de empreender viagem ao exterior 3. Em 1822, o Brasil separou-se de Portugal, tendo o proclamado Imperador – DOM PEDRO I – outorgada a nossa primeira Constituição em 1824. Imbuído do ideal de independência e soberania política, o incipiente Império do Brasil tratou de firmar, com as potências da época, tratados de navegação, comércio e proteção recíproca dos seus súditos. No bojo de tais tratados surgiram as primeiras cláusulas de extradição no nosso Direito. Conforme expresso por GILDA RUSSOMANO, “entre 1826 e 1836, nosso País celebrou tratados sobre extradição com a França, a Inglaterra, a Alemanha e Portugal e – em obediência ao que neles se

3 Antes de 1808 a presença de estrangeiros no Brasil era rigorosamente vedada, pois Portugal temia que, em razão dos interesses que as nossas riquezas despertavam (madeira, ouro, cana-de-açúcar etc.), pudesse vir a perder todo ou parte do nosso território. Não por outra razão ocorreram inúmeras batalhas no Brasil-Colônia, basicamente contra espanhóis, franceses e holandeses. Sobre os escravos, cumpre registrar que o regime atroz da escravatura só foi abolido tardiamente no Brasil, ou seja, em 1888. (Cf. Artur de Brito Gueiros Souza, Presos estrangeiros no Brasil. Aspectos jurídicos e criminológicos, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p. 150).

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Aspectos Polémicos da Extradição

acordara – foram concedidas algumas extradições aos três primeiros países mencionados” 4. Após a celebração dos primeiros documentos, o País seguiu firmando tratados de extradição ao longo do Século XIX. Todavia, o fluxo migratório foi crescendo exponencialmente para o Brasil e, dessa forma, sentiu-se a necessidade de também disciplinar a extradição fora dos tratados 5. Com esse objetivo, veio a lume, em 1847, a Circular do Ministério dos Negócios Estrangeiros, editada pelo BARÃO DE CAIRU. Fundada na promessa de reciprocidade, tal Circular estabeleceu as regras gerais para o trâmite da extradição de “grandes criminosos” no direito interno, ressalvando, contudo, a não-extradição de nacionais: “Está entendido que se o criminoso reclamado for cidadão brasileiro, não poderá ser entregue por não o permitir a Constituição do Império (...)” 6. Em 1889 ocorreu nova ruptura política, com a deposição da monarquia e a instituição da República. Na seqüência, em 1891 foi promulgada a (primeira) Constituição da República do Brasil. Por conta Gilda Maciel Russomano, A extradição no Direito Internacional e Brasileiro. 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1981, p. 117. A primeira referência oficial a extradição no direito brasileiro está contida no Art. VIII, do Tratado firmado com a França, em 1826, com o seguinte teor: “Os indivíduos acusados dos crimes de alta traição, falsidade, e falsificação de moeda, ou de papel que as represente, nos Estados de uma das Altas Partes Contratantes, não serão admitidos, nem receberão proteção nos Estados da outra. E para que esta estipulação possa ter a mais completa execução, cada um dos dois Soberanos se obriga a fazer com que as pessoas assim acusadas sejam expulsas dos seus respectivos Estados, logo que o outro assim o requerer.” (Carta de Lei de 6 de junho de 1826. In Actos do Poder Executivo. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Apud Artur de Brito Gueiros Souza, As novas tendências do Direito Extradicional, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, p. 55). 5 Segundo dados oficiais, entre 1820 e 1930, o Brasil recebeu entre 3.200.000 e 4.158.000 imigrantes do Continente Europeu. Sobre a imigração forçada do Continente Africano, nos quase quatros séculos de escravidão, o País recebeu entre 5 e 6.000.000 de pessoas. 6 Trecho da Circular de 1847. In Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores – Palácio Itamaraty. Rio de Janeiro. Apud Artur de Brito Gueiros Souza, As novas tendências..., cit., p. 59. Saliente-se, por curiosidade, que a Constituição do Império de 1824 nada dispunha, ao menos expressamente, sobre a não-extradição de cidadãos brasileiros. 4

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disso, todos os tratados celebrados no período imperial foram denunciados. Viveu-se um “vácuo” normativo sobre as extradições, período em que – coincidentemente ou não –sobrelevaram as expulsões administrativas e sumárias de estrangeiros, indesejados pelo Poder Político 7. Em 1911, saiu-se da inércia com a promulgação da Lei n. 2.416, que dispôs sobre o instituto da extradição, salientando-se que, após a edição deste Diploma, foram retomadas as celebrações de tratados sobre esta temática com diversos países. Ressalte-se que, como a Constituição de 1891 nada dispunha acerca da não-extradição de nacionais, a Lei n. 2.416/11 – talvez influenciada por doutrinadores como CLÓVIS BEVILÁQUA 8 – passou a prever a extradição não só de estrangeiros, mas, também, de nacionais. Conforme o art. 1º, § 1º, daquele Diploma legal, a extradição do brasileiro nato dependeria de reciprocidade de tratamento a ser assegurado pelo Estado requerente, requisito este dispensado se se tratasse de brasileiro naturalizado por conta de delito perpetrado antes da naturalização. Contudo, alguns anos depois, em 1934, veio a lume a (segunda) Constituição Republicana, impedindo, expressamente, a extradição de brasileiros, consoante a redação do art. 113, § 31: “Não será concedida a Estado estrangeiro a extradição por crime político ou de opinião, nem, em caso algum, de brasileiro.” A convulsão política que se sucedeu, com a implantação da Ditadura por GETÚLIO VARGAS, culminou, dentre outros significativos marcos jurídicos – como os ainda vigentes Códigos Penal e de Processo Sobre o surgimento do “direito de expulsão” e sua execução, quase sempre arbitrária, contra estrangeiros “nocivos” e “indesejados”, no início da República, vide Artur de Brito Gueiros Souza, Presos estrangeiros no Brasil..., cit., p. 168 e segs. 8 Este autor advogou veementemente a favor da extradição de nacionais. Todavia, mesmo ele reconhecia que “poucos são os países que se têm mostrado superiores ao preconceito do nacionalismo em matéria de extradição.” (Clóvis Beviláqua, Direito Público Internacional, t. II., Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1911, p. 135). 7

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Aspectos Polémicos da Extradição

Penal –, com a outorga, em 1937, de uma nova Constituição. O art. 122, inc. XII, da Constituição de 1937 manteve o impedimento da extradição de nacionais, embora com uma redação nitidamente defeituosa: “Nenhum brasileiro poderá ser extraditado por governo estrangeiro” 9. Frente a esse panorama político-constitucional, em 1938, o Governo Federal editou o Decreto-lei n. 394. Refletindo o deteriorado quadro das relações internacionais às vésperas da 2ª Guerra Mundial, bem como os surtos de nacionalismo e xenofobia que eclodiam na generalidade dos países, o art. 1º do Decreto-lei 394/38, fez-se enfático: “Em nenhum caso será concedida a extradição de brasileiros requisitada por Estado estrangeiro” 10. As Constituições que vieram a seguir, nos anos de 1946, 1967 e 1969, mantiveram redações idênticas no sentido da não concessão, em caso algum, da extradição de brasileiro, conforme o disposto, respectivamente, em seus arts. 141, § 33; 150, § 19; e 153, § 19. No ano de 1969, sob o influxo da Ditadura que se seguiu ao Golpe Militar de 1964, foi editado o Decreto-lei n. 941, que tratou de inserir o instituto da extradição não mais em uma específica lei, mas, sim, no bojo do chamado Estatuto do Estrangeiro – ou seja, congregaram-se num único diploma, todas as matérias atinentes aos estrangeiros, v.g., 9 Criticando a impropriedade da redação deste dispositivo, o insigne constitucionalista Pontes de Miranda verberou: “Por imperdoável erro de terminologia, o artigo 122, 12, empregou os dizeres ‘poderá ser extraditado pelo Governo estrangeiro’. Ora, quem extradita é a autoridade do Estado em que se acha o acusado, e não o Estado que pede a extradição.” (Apud Anor Butler Maciel, Extradição Internacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1957, p. 25). 10 Os ares de nacionalismo e xenofobia foram detectados por Haroldo Valladão, que escreveu: “A verdade é que após a guerra, e ainda agora, com os surtos de nacionalismo que explodem a todo momento, a regra da extradição do nacional teve que recuar, e o princípio oposto foi na Alemanha estabelecido na própria Constituição de Weimar, art. 112, alínea 3, estendido pela lei francesa de 1927 até aos ‘ressortissants français’, acolhido no art. 345 do Código Bustamante, e no art. 13 do Código Penal da Itália.” (Haroldo Valladão, Da cooperação Internacional nos Processos Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1933, p. 13).

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concessão de visto, naturalização, obtenção de trabalho lícito, extradição, expulsão, deportação etc. O art. 88, do Decreto-lei n. 941/69 dispunha: “Não se concederá a extradição: I - de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato determinante do pedido.” A Lei n. 6.815/80, promulgada nos estertores da referida Ditadura Militar, repetiu essa disciplina, conforme se constata na leitura de seu art. 77, inc. I: “Não será concedida a extradição quando: I – se tratar de brasileiro, salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido.” Fechando, pois, esse ciclo histórico, no âmbito do processo de redemocratização política, a Constituição de 1988, conforme salientado no início do texto, reafirmou a não-extradição de brasileiros natos. Cumpre registrar, por outro lado, que a cláusula da não-extradição de nacionais nunca foi sinônimo de impunidade. Isto porque, no ordenamento jurídico brasileiro, sempre houve a preocupação da efetivação da máxima do aut dedere aut judicare 11. Neste sentido, FRANCISCO REZEK esclarece que o “Brasil se habilita, nos termos do art. 7° do Código Penal, a julgar crimes praticados por brasileiros no exterior. Assim, a recusa da extradição não importa impunidade: o

11 Conforme lecionado por João Marcello de Araújo Júnior: “Quando algum delinqüente for reclamado por via de extradição e o Estado requerido, por força de sua lei interna, não puder atender à justa reivindicação estrangeira, deverá assumir a posição de guardião do interesse internacional comum, obrigando-se a proceder contra o extraditando, como se o crime tivesse sido cometido em seu território. Este é o sentido do brocardo ‘aut dedere aut judicare’. Se o Estado requerido não entrega a pessoa solicitada, deverá julgá-la. O princípio ‘ou entregar ou julgar’ deverá ser aplicado, por exemplo, quando se tratar da extradição de nacionais naqueles países que, como o Brasil, proíbem a entrega de seus filhos.” (João Marcello de Araújo Júnior, “Extradição: Alguns aspectos fundamentais”, Revista Forense, Rio de Janeiro, n. 326, p. 63.).

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Aspectos Polémicos da Extradição

acervo documental relativo ao crime permitirá que se instaure entre nós o processo” 12. III. A Extradição de Brasileiro Naturalizado por Fato Anterior à Aquisição da Nacionalidade Conforme relatado, todas as Constituições, a partir da promulgada em 1934, vedaram a extradição de nacionais, não discriminando, contudo, brasileiros natos de naturalizados, salvo, é claro, a vigente Carta Política de 1988. Não obstante, as “leis de extradição” acima pormenorizadas, bem como os tratados celebrados pelo País, sempre ressalvaram a possibilidade de entrega do naturalizado por crime perpetrado antes da aquisição da nacionalidade brasileira. Isso fez com que fosse instaurada controvérsia doutrinária, ao longo do Século XX, sobre se seria constitucional ou não a extradição de brasileiro naturalizado pelo cometimento de crime em data pretérita à aquisição da condição de brasileiro. Parte da doutrina entendia que os dispositivos

facultativos

da

extradição

de

naturalizados

eram

inconstitucionais, pois o texto constitucional, quando aludia à nãoextradição de brasileiro, não distinguia os naturalizados dos natos 13. Francisco Rezek, Direito Internacional Público, São Paulo, Saraiva, 1995, p. 206. Acerca da aplicação extraterritorial da lei penal brasileira no caso da não-extradição de nacional, o art. 7º, do nosso Código Penal dispõe: “Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro: (...) II – os crimes: (a) que por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;(b) praticados por brasileiros; (...) § 2º Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições: (a) entrar o agente no território nacional; (b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; (c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; (d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e (e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável. 13 Cf. Anor Butler Maciel, Extradição Internacional..., cit., p. 47. Na mesma linha, Gilda Maciel Russomano defendia que “essas leis e esses tratados, em nosso juízo, 12

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Todavia, a maior parte da doutrina entendia que a possibilidade de extradição de naturalizado emergia implícita do texto constitucional, por uma razão técnica, qual seja, a de que os efeitos da aquisição do certificado de nacional pressupõem, dentre outros fatores, que o interessado não esteja respondendo por nenhum delito perante a justiça estrangeira. Diante disso, entendia-se inoperante os efeitos da naturalização, tendo em vista a aquisição de má-fé do status de brasileiro. No ano de 1954, ao julgar habeas corpus interposto em favor de indivíduo preso para fins de extradição, o Supremo Tribunal Federal consagrou este entendimento, conforme se constata: “Não é permitida a extradição de brasileiros, ainda que naturalizados, se a naturalização for anterior ao crime. A naturalização posterior ao delito não impede a extradição, porque os atos praticados em fraude a lei não produzem efeito contra ela. A naturalização não tem efeito retroativo, e assim não prejudica os direitos adquiridos. A cláusula - salvo direito de terceiro - é sempre subentendida nos decretos de cidadania. A Constituição de 1946 não derrogou o § 1° do art. 1° do Decreto-lei n° 394, de 28-4-1938, que apenas consagrou, dando-lhe força legal, a doutrina uniformemente adotada sobre a matéria” 14. Chancelou-se,

portanto,

judicialmente,

a

tese

de

que

a

naturalização, naquela hipótese, fora obtida fraudulentamente, vale dizer, com o propósito de escapar da ação dos órgãos de repressão de um outro país, fraude que acarretava a nulidade absoluta do ato de concessão da nacionalidade brasileira.

podem ser inquinados de inconstitucionais, embora defendidos pela grande maioria dos autores nacionais que estudaram o problema e, inclusive, considerados consentâneos com os princípios do Direito Internacional moderno.” (Gilda Maciel Russomano, A extradição no..., cit., p. 122). 14 Habeas Corpus n° 33.091.

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Aspectos Polémicos da Extradição

O Supremo Tribunal Federal voltou a examinar, posteriormente, essa questão, abrandando o rigor de sua jurisprudência. Basicamente, continuou a considerar constitucional a regra da extradição de naturalizado que viesse a responder por ilícito praticado antes da naturalização. Contudo, considerou não ser automática a decretação da nulidade da naturalização, no bojo do processo de extradição. Dever-seia, assim, ser instaurado procedimento autônomo, que deveria tramitar em apartado ao processo de extradição feito pelo Estado requerente, situando-o como questão prejudicial ao julgamento do pedido de colaboração internacional. Em suma, no Caso Rodrigues Serrano, o Supremo Tribunal julgou que “a melhor orientação, em face da Constituição Federal e do Estatuto do Estrangeiro, é a de que não pode ser deferida a extradição do brasileiro

naturalizado,

embora

ele

tenha

sido

condenado

anteriormente no seu país de origem por crime lá praticado. Nessa hipótese a decretação da nulidade da naturalização em processo administrativo deve anteceder ao pedido de extradição. ‘Habeas corpus’ concedido para determinar que o paciente seja posto imediatamente em liberdade e, bem assim, para declarar extinto o processo de extradição” 15. Fixada a premissa da decretação prévia da nulidade do título jurídico de nacional, a questão da extradição de naturalizado seguiu sem sobressaltos no direito brasileiro. Com a sobrevinda da Constituição Federal de 1988, encerrou-se toda a polêmica que existia sobre tal tema, na medida em que explicitou a ressalva extradicional em comento, dispensando a prévia anulação da naturalização. Conforme dito pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, então integrante da Suprema Corte, por ocasião do julgamento de um pedido de extradição: “A Constituição 15

Habeas Corpus n° 60.546. In RTJ 105/997.

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Artur de Brito Gueiros Souza

vigente retrocedeu à tese que – fundada em discutível presunção de fraude na naturalização posterior ao crime – admite a extradição do naturalizado, se o fato que motivar o pedido é anterior à aquisição da nacionalidade brasileira” 16. Os julgamentos havidos posteriormente a edição da Constituição de 1988 refletem a pacificação desse debate, conforme se exemplifica no seguinte julgado: “Extradição de brasileiro naturalizado anteriormente condenado no país de origem por crimes comuns. Artigo 77, I, da Lei n° 6.815/80, em face da norma do artigo 5°, inciso LI, da Constituição de 1988. Desnecessidade de prévia anulação da naturalização, para a concessão da extradição” 17. IV. A Extradição de Naturalizado por Envolvimento no Tráfico de Drogas Como visto acima, a Constituição de 1988 dispôs expressamente sobre a possibilidade de extradição de naturalizado em caso de delito comum praticado antes da aquisição da nacionalidade brasileira. Assim agindo, a nossa Carta Política objetivou encerrar a discussão que perpassou boa parte do século anterior. Ocorre, porém, que, se de um lado, “fechou-se” uma discussão, por outro, “abriu-se” outra. Ou seja, a parte final do inc. LI, do art. 5º, da atual Constituição também facultou a extradição de naturalizado na hipótese de comprovado envolvimento no tráfico ilícito de entorpecentes 16 Extradição n° 541. Relator para o acórdão Min. Sepúlveda Pertence In RTJ 145/445. 17 Habeas Corpus n° 67.621 – Relator Min. Carlos Madeira, julgado em 19.10.89, in RTJ 135/96. No mesmo sentido, o seguinte arresto: “Constitucional. Penal. Extradição. ‘Habeas Corpus’. Brasileiro Naturalizado. CF, art. 5°, LI. Nacionalidade brasileira obtida mediante naturalização concedida após a prática do crime atribuído ao extraditando. Caso em que a extradição poderá ser concedida. CF, artigo 5°, LI.” (Habeas Corpus n° 68.198 – Relator Min. Carlos Velloso, pub. DJ, de 14.09.90).

258

Aspectos Polémicos da Extradição

e drogas afins, na forma da lei. Perante essa inovação constitucional, cabe indagar: em que consistiria a expressão comprovado envolvimento? Qual o significado da ressalva na forma da lei? Qual, afinal, a mens legis? Antes de responder a tais questionamentos, considera-se relevante conhecer a origem dessa inovação constitucional. Com efeito, em 1987, por ocasião da Assembléia Nacional Constituinte, convocada para a elaboração de nossa atual Carta Política, o parlamentar FRANCISCO ROSSI apresentou emenda aditiva ao Anteprojeto de Constituição, nos seguintes termos: “Acrescentar à alínea ‘b’ do inc. XII, do art. 12: ‘ou, ainda, se estiver comprovadamente envolvido em tráfico internacional de drogas entorpecentes, quando a forma de extradição será estabelecida em lei’” 18. A iniciativa daquele parlamentar baseou-se na idéia de que “essa redação permitirá um combate mais eficaz ao tráfico internacional de drogas, que faz do Brasil, hoje, rota importante para o escoamento e distribuição das mesmas, principalmente para a Europa e os Estados Unidos” 19. Esta sugestão foi acolhida pela respectiva Subcomissão, apesar de sofrer algumas alterações de redação, atravessando todo o processo constituinte, sem merecer maiores considerações. Porém, aquando da discussão e votação do texto constitucional definitivo, a inovação foi criticada pelo Constituinte ÁLVARO VALLE, que, advogando sua supressão, declarou em Plenário: “É importante essa compreensão para que não haja tentação, amanhã, de um intérprete imaginar que a ‘mens legis’, Sr. Presidente, seja a de que um brasileiro 18 Emenda n° 1P05024-3, de 02.07.87. In Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados. Até então, o Anteprojeto de Constituição só continha a cláusula da extradição do naturalizado, se a naturalização for posterior ao crime que houver motivado o pedido. (Cf. texto aprovado na Subcomissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, em 01.07.87). 19 Idem.

259

Artur de Brito Gueiros Souza

naturalizado, tendo cometido esse crime, possa ser extraditado, porque aí estabeleceríamos uma diferenciação entre brasileiro naturalizado e o nato, o que não poderíamos fazer. No momento em que ele tivesse cometido o crime, após a sua naturalização, evidentemente, ele terá que ser tratado tal como um brasileiro nato, ou estaríamos criando um precedente extraordinariamente grave na Constituição” 20. Em que pese a crítica daquele Constituinte, não houve a supressão da referida cláusula, que acabou aprovada nos seguintes termos: Nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum praticado antes da naturalização ou de comprovado envolvimento em tráfico internacional ilícito de drogas entorpecentes, na forma da lei. Não se podem olvidar, sob outro aspecto, as pressões surgidas a partir dos anos 80 do Século XX, capitaneadas pelos Estados Unidos da América, sobre os países latino-americanos, no sentido de reformas constitucionais que possibilitassem a extradição de nacionais envolvidos no narcotráfico internacional. Objetivava-se, dessa sorte, que os chamados “Barões das Drogas” pudessem ser levados para os EUA, onde, por certo, sofreriam duras penas de prisão 21. No caso do Brasil, não se chegou ao extremo da permissão da extradição de brasileiro nato. Entretanto, as pressões acima referidas obtiveram sucesso por ocasião da elaboração do texto da atual Constituição, basicamente diante da constatação empírica de que “empresários” do narcotráfico buscavam adquirir a nacionalidade “Diário da Assembléia Nacional Constituinte”, de 05.02.88. (grifou-se). O exemplo mais marcante desse fenômeno ocorreu na Colômbia, onde a mudança constitucional que possibilitaria a extradição no narcotraficante Pablo Escobar para os EUA gerou uma grave crise institucional, por intermédio de uma “onda” de seqüestros de políticos e personalidades daquele país. Este episódio ficou magistralmente descrito por Gabriel Garcia Marques no livro Notícia de um seqüestro.

20 21

260

Aspectos Polémicos da Extradição

brasileira com o intuito de escapar da ação dos organismos de repressão do comércio ilícito de drogas 22. Em que pesem essas considerações, verifica-se que o Supremo Tribunal Federal, nos casos de extradição de brasileiro naturalizado, por delito de tráfico de drogas praticado após o certificado de naturalização, tem dado um alcance restrito à hipótese sob consideração. De um lado, o comprovado envolvimento na forma da lei conduz ao entendimento, segundo a jurisprudência daquela Corte, no sentido de que não cabe a extradição de brasileiro naturalizado enquanto não editada a lei que tratará dessa matéria. Isso porque a lei atual de extradição (Lei n. 6.815/80), prevê, unicamente, um juízo de aferição da legalidade extrínseca do pedido, não adentrando no mérito da prova existente em desfavor do extraditando. O comprovado envolvimento significa uma mudança na sistemática vigente de processamento de extradições,

sendo,

por

via

de

conseqüência,

aquela

inovação

constitucional, uma norma de eficácia contida, sem aplicação imediata. Nesse sentido, o Supremo Tribunal decidiu: “Extradição. Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Drogas Afins. Brasileiro Naturalizado. Necessidade

de

Comprovação

de

seu

Envolvimento.

Inovação

Constitucional do Modelo Extradicional Brasileiro. Possibilidade Excepcional de Extradição pelo Brasil: Tratando-se de extradição requerida contra brasileiro naturalizado, fundada em suposta prática de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, impõe-se ao Estado requerente a comprovação do envolvimento da pessoa reclamada na

22 O Jornal “O Globo” de 13.07.97, em matéria intitulada “Máfia italiana finca raízes no Rio”, afirmou que “desde 1993, pelo menos 66 mafiosos se esconderam no país, especialmente no Rio de Janeiro, sendo que 16 já foram presos.” Segundo, ainda, esta mesma reportagem, “os mafiosos italianos comandam, a partir do Rio de Janeiro, um complexo esquema de distribuição e exportação de cocaína produzida na Colômbia e na Bolívia, além de terem envolvimento no contrabando de armas para traficantes brasileiros, na lavagem de dinheiro e em redes de prostituição.”

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Artur de Brito Gueiros Souza

realização do episódio delituoso. A inovação jurídica introduzida pela norma inscrita no art. 5°, LI, in fine, da Constituição – além de representar, em favor do brasileiro naturalizado, clara derrogação do sistema de contenciosidade limitada – instituiu procedimento, a ser disciplinado em lei, destinado a ensejar cognição judicial mais abrangente do conteúdo da acusação penal estrangeira, em ordem a permitir ao Supremo Tribunal Federal, na ação de extradição passiva, o exame do próprio mérito da ‘persecutio criminis’ instaurada perante autoridades do Estado requerente” 23. Ressalte-se que o rigor de não permitir a extradição de naturalizado envolvido no tráfico de drogas, enquanto não sobrevier lei específica tratando do procedimento de análise probatória, só foi mitigado para os casos de extradição executória, isto é, para aqueles pedidos baseados em sentença condenatória transitada em julgado. Esta assertiva pode ser ilustrada com o seguinte acórdão: “Brasileiro naturalizado. Certificado de naturalização expedido. Art. 5º, inc. LI, da CF/88. Tráfico ilícito de entorpecentes. Ausência de provas. Inextradibilidade: Esta Corte firmou entendimento no sentido de impossibilitar o pleito de extradição após a solene entrega do certificado de naturalização pelo Juiz, salvo comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei. A norma inserta no art. 5º, inc. LI, da Constituição do Brasil não é regra de eficácia plena, nem de aplicabilidade imediata. Afigura-se imprescindível a implementação de legislação ordinária regulamentar. Precedente. Ausência de prova cabal de que o extraditando esteja envolvido em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Possibilidade de renovação, no futuro, do

23

Extradição n° 688. – Relator Min. Celso de Mello. Pub. no DJ, de 22.08.97.

262

Aspectos Polémicos da Extradição

pedido de extradição, com base em sentença definitiva, se apurado e comprovado o efetivo envolvimento na prática do referido delito” 24. Em síntese, apesar da intenção do Constituinte de aprofundar laços de cooperação penal internacional frente ao “flagelo das drogas”, extraditando portadores de nacionalidade derivada brasileira, em detrimento de tradicional cláusula protetiva de não-extradição, o Supremo Tribunal tem dispensado uma interpretação restrita aos casos que lhe são submetidos. A Corte exige, pois, a sobrevinda de lei específica sobre essa nova modalidade de extradição, excepcionando tal exigência nas hipóteses de extradição executória do naturalizado envolto no tráfico de drogas. V. A Entrega de Brasileiros ao Tribunal Penal Internacional O Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi aprovado na Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas, em Roma, na data de 17.07.98, em escrutínio secreto, com 120 votos a favor, 7 contrários e 21 abstenções. Os Estados que votaram contra foram, presumivelmente, os Estados Unidos, China, Israel, Índia, Líbia, Iraque, Qatar ou Iêmen. O Estatuto de Roma entrou em vigor em 1o de julho de 2002, quando completou o quorum exigido de 60 ratificações. O Brasil assinou aquele documento em 07.02.00 e depositou o instrumento de ratificação em 20.06.00. Em seguida, o Estatuto foi promulgado pelo Presidente da República, através do Decreto n. 4388, de 25.09.02. O Capítulo IX do Estatuto, ao dispor sobre a Cooperação Internacional dos Estados para com o Tribunal, trouxe um detalhado sistema de auxílio para o exercício daquela jurisdição internacional, contemplando uma nova figura, denominada entrega. Este instrumento de colaboração em matéria penal internacional demonstrou-se crucial na 24

Extradição n. 934-QO. Relator Min. Eros Grau, Pub. no DJ, de 12.11.04.

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Artur de Brito Gueiros Souza

captura de foragidos dos Tribunais ad hoc da ex-Iugoslávia e de Ruanda 25. A entrega de suspeitos encontra-se regulada no art. 89 do Estatuto, sendo certo que se trata de uma das obrigações aceitas pelos Estados ao aderirem ao TPI, qual seja, o dever de colaborar de forma ampla e irrestrita para com a jurisdição da Corte. Por não ser dotada de força policial, a atuação do TPI depende, fundamentalmente, da colaboração dos Estados Partes, em especial naquela relevante missão de captura, detenção e entrega do acusado pela violação dos crimes da sua competência. Todavia, a polêmica que envolve esse instrumento de colaboração penal está em saber se o Estado Parte ficará obrigado a efetuar a entrega de um nacional para a Corte Penal Internacional, mormente quando o seu ordenamento jurídico veda a extradição de nacionais. É este, enfim, o caso do Brasil, que, como visto, proíbe a extradição de nacionais, só abrindo

exceção

para

o

naturalizado

nas

hipóteses

analisadas

precedentemente. Caso se entenda que a entrega possua a mesma natureza de uma extradição, dever-se-á concluir pela inconstitucionalidade dessa regra do TPI. É esse o posicionamento de parte da doutrina brasileira, calcado no argumento de que, em termos práticos, extradição e entrega não se distinguem, pois têm o mesmo efeito, qual seja, de retirar um súdito brasileiro do nosso solo, conduzindo-o, contra a sua vontade, para uma jurisdição penal no estrangeiro. Frente a isso, considerar a entrega como uma figura distinta da extradição seria uma forma de “driblar” a vedação constitucional de não-extradição/entrega de nacionais. 25 Cf. Artur de Brito Gueiros Souza, O Tribunal Penal Internacional e a proteção aos direitos humanos: uma análise do Estatuto de Roma à luz dos princípios do direito internacional da pessoa humana. In Boletim Científico da ESMPU, n. 12, jul.-set., 2004, Brasília, p. 26.

264

Aspectos Polémicos da Extradição

Nesse sentido, LUÍS FERNANDO SGARBOSSA e GEZIELA JENSEN sustentam que “proceder à prisão de um indivíduo e proceder à sua entrega a Estado estrangeiro era extradição e extradição continua sendo, antes e depois do Estatuto de Roma, não importa o nome que selhe dê. O fato de a entrega ser feita a um organismo internacional não transmuda a natureza jurídica do instituto (e nem poderia fazê-lo, haja vista a existência de norma constitucional proibitiva da extradição do nacional que não pode ser simplesmente burlada)” 26. Apesar deste ponto de vista, a doutrina brasileira, em sua maioria, tem se inclinado no sentido da compatibilidade entre a regra do Estatuto e a nossa Carta Magna, em razão da convicção de que aqueles dois institutos se difeririam em conteúdo e forma. A extradição, regulada em tratado ou promessa de reciprocidade de tratamento, significa a ação de um Estado colocar fisicamente o indivíduo à disposição de outro Estado, para que seja julgado ou para que cumpra determinada quantidade e espécie de pena. Haveria, portanto, na extradição, um ato de colaboração horizontal. Por outro lado, a entrega, regulada no Estatuto de Roma, significa o ato pelo qual um Estado transfere determinada pessoa para uma Corte supranacional da qual faz parte. A cooperação, no caso, manifestar-se-ia verticalmente. Em outras palavras, conforme lecionado por CARLOS EDUARDO JAPIASSÚ, a “hipótese de entrega de nacional para julgamento pela Corte Criminal Internacional significa a entrega de nacional para julgamento por um tribunal supranacional, do qual o Brasil seria membro. O conceito de extradição diz respeito à entrega de um indivíduo por um

Luís Fernando Sgarbossa & Geziela Jenses, “As opções políticas do Estatuto de Roma e seu impacto em relação ao regime jurídico-constitucional dos direitos fundamentais no Brasil”, Jus Navigandi, disponível em , acessado em 01.10.07.

26

265

Artur de Brito Gueiros Souza

Estado a outro. Nesse caso, ocorre a entrega pelo Estado a outro órgão julgador, que, se não é nacional, engloba a jurisdição nacional” 27. Com o propósito de dirimir as dúvidas que foram colocadas, não só pelo Brasil mas, igualmente, por outros Estados participantes da Conferência de Plenipotenciários, o próprio Estatuto tratou de manifestar, no seu art. 102, uma interpretação autêntica, no sentido de que para “os fins do presente Estatuto: (a) por entrega, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal nos termos do presente Estatuto; (b) por extradição, entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado conforme previsto em um tratado, em uma convenção ou no direito interno.” Muito embora a maior parte dos autores brasileiros advogue a favor da constitucionalidade da hipotética entrega de brasileiros, é certo que há outros pontos de atrito entre a nossa Carta Magna e o Estatuto daquele Tribunal, tais como: a previsão da prisão perpétua, a imprescritibilidade dos crimes sob a jurisdição do TPI; a previsão da conversão da pena de multa não paga em pena privativa de liberdade; e a não aceitação da imunidade parlamentar do direito interno em face de delitos, como “incitação ao genocídio”, passíveis de punição no TPI 28. 27 Carlos Eduardo A. Japiassú, “A Corte Criminal Internacional. Possibilidade de adequação do Estatuto de Roma à ordem constitucional brasileira” In: Ester Kosovski & Eugenio Raúl Zaffaroni (orgs.), Estudos jurídicos em homenagem ao Professor João Marcello de Araújo Júnior, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 96. 28 Conquanto extravase o propósito do presente texto, deve-se dizer, relativamente à pena de prisão perpétua, que ela representou, na Conferência de Roma, uma “solução de consenso” entre duas posições extremadas, isto é, entre os Estados que pugnavam pela adoção da pena de morte e outros que lutavam para que a pena máxima do TPI fosse a prisão por tempo determinado (como desejam os representantes do Brasil). Ocorre que a Constituição de 1988 veda, dentre outras, sanção penal de caráter perpétuo, havendo, portanto, séria discussão sobre a constitucionalidade da cominação de pena perpétua, feita no art. 77, § 1º, al. “a” do Estatuto do TPI. A doutrina brasileira, contudo, tem sustentado a compatibilidade entre as duas disposições. Conforme expresso por António Cachapuz de Medeiros, o conflito entre o Estatuto e a Constituição brasileira seria apenas aparente, “não só porque aquele visa reforçar o princípio da dignidade da pessoa humana, mas

266

Aspectos Polémicos da Extradição

Considera-se, assim, que todas estas questões somente restarão devidamente definidas quando da apreciação, pelo Supremo Tribunal Federal, da constitucionalidade, abstrata ou concreta, das disposições do Estatuto frente à Constituição de 1988. A recente Emenda Constitucional 45, de 2004, que buscou “reformar” o Poder Judiciário brasileiro, objetivou, no particular, contribuir com o aclaramento dessa questão, introduzindo o § 4º, ao art. 5º, do texto constitucional, o seguinte: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.” Saliente-se, contudo, que, apesar de vigorar entre nós, brasileiros, desde o ano de 2002, não temos uma lei que reproduza os delitos tipificados no Estatuto do TPI, com exceção do genocídio que já é norma de direito interno pela Lei n. 2.889/56 e pelo Código Penal Militar. Tratase de uma lacuna preocupante, pois, caso ocorra, presentemente, um delito da alçada do TPI, haverá – com exceção do genocídio – a incidência direta de seus tipos penais, obrigando-se, o Brasil, a entregar, eventualmente, um nacional para aquela Corte. Esta circunstância poderá ocasionar sério incidente internacional, caso o Supremo Tribunal entenda ser o Estatuto incompatível com a Constituição Federal de 1988. Seja como for, espera-se que o legislador brasileiro promulgue o quanto antes um diploma legal sancionando condutas definidas como porque a proibição prescrita pela Lei Maior é dirigida ao legislador interno para os crimes reprimidos pela ordem jurídica pátria, e não aos crimes contra o Direito das Gentes, reprimidos por jurisdição internacional.” (António Cachapuz de Medeiros, O Tribunal Penal Internacional e a Constituição Brasileira. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 2000, p. 14). Na mesma linha, Carlos Eduardo A. Japiassú assinala que não haveria “qualquer incompatibilidade entre a Constituição e o Estatuto de Roma. Reforçando essa idéia, assegura-se que o princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos no plano internacional e que a pretensão em criar um Tribunal internacional de direitos humanos somente demonstram que não haveria nenhuma necessidade de ser feita qualquer alteração no texto constitucional para que o Brasil ratificasse o Estatuto.” (Carlos Eduardo A. Japiassú, O Tribunal Penal Internacional. A internacionalização do Direito Penal, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2004, p. 208).

267

Artur de Brito Gueiros Souza

genocídio,

crimes

contra

a

humanidade

e

crimes

de

guerra,

possibilitando que a justiça brasileira possa julgar imediatamente os autores, brasileiros ou não, de tais fatos, afastando, assim, a incidência da jurisdição complementar do Tribunal Penal Internacional. Dispondo o Brasil das ferramentas legais necessárias ao exercício de seu magistério punitivo, ficarão, em termos práticos, prejudicadas as questões acima referidas – em especial a constitucionalidade da entrega de nacionais – repelindo-se a impunidade dos autores de graves atrocidades contra os direitos humanos, que é, numa palavra, o objeto e o fim do Estatuto de Roma, bem como o anseio da Comunidade Internacional.

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BREVES NOTAS SOBRE O INSTITUTO DA “ENTREGA DE INFRACTORES EM FUGA” NA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU

Ilda Cristina Ferreira *

Sumário: I. Intróito; II. Breve Contextualização do Estatuto Jurídico-Político de Macau; III. Principais Características do Ordenamento Jurídico da RAEM; IV. Aspectos Fundamentais do Regime da Cooperação Judiciária em Matéria Penal da RAEM; V. Aspectos Fundamentais do Instituto da “Entrega de Infractores em Fuga”; VI. O Sistema de Notificação ao Governo Popular Central; VII. Conclusões.

I. Intróito O presente artigo é uma breve exposição do instituto da “Entrega de Infractores em Fuga” criado no quadro da Lei de Cooperação Judiciária em Matéria Penal da Região Administrativa Especial de Macau. Este instituto similar ao da extradição, permite oferecer e

Jurista do Gabinete para os Assuntos do Direito Internacional da RAEM. O presente texto é da exclusiva responsabilidade da autora, não podendo as opiniões nele expressas ser imputadas a qualquer pessoa ou entidade.

*

269

Ilda Cristina Ferreira

solicitar cooperação a outros Estados ou Regiões em termos análogos aos da extradição (aut dedere aut iudicare). Em virtude de a extradição, ser um instituto de direito internacional público tradicionalmente reservado a Estados soberanos e, sendo Macau uma parte integrante e inalienável da República Popular da China, não obstante o seu alto grau de autonomia, houve que dotar Macau de um instrumento que permitisse a cooperação na esfera judiciária com outras jurisdições, moldando-o às suas especificidades jurídico-políticas. Convém dizer que este é um parco contributo que tem por objectivo dar a conhecer os princípios basilares, os principais dispositivos legais e procedimentos que regem a cooperação judiciária em matéria penal em Macau, tendo como figura central o instituto da “Entrega de infractores em fuga”, não pretendo, pois, fazer uma análise exaustiva do mesmo. II. Breve Contextualização do Estatuto Jurídico-Político de Macau A reassumpção da soberania de Macau pela RPC ocorreu no dia 20 de Dezembro de 1999, de acordo com o artigo 31.º e o parágrafo 13 do artigo 62.º da Constituição da República Popular da China (RPC) por Decisão adoptada, em 31 de Março de 1993, pela I Sessão da VIII Legislatura da Assembleia Popular Nacional (APN) da RPC, de harmonia com o princípio “Um país, dois sistemas” e de acordo com a Declaração Conjunta sobre a Questão de Macau (DC) 1, assinada em 13 de Abril de 1987, entre o Governo da RPC e o Governo Português.

1 A DC é um tratado internacional bilateral entre dois Estados soberanos, depositado junto do Secretário-Geral das Nações Unidas ao abrigo do artigo 102.º da Carta das Nações Unidas.

270

Aspectos Polémicos da Extradição

Nessa data, Macau deixou de ser território sob administração Portuguesa e passou a ser uma parte integrante e inalienável da RPC, sob o nome: Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), tendo entrado igualmente em vigor a Lei Básica da RAEM (LB) 2- 3. Esta Lei, de reconhecido valor constitucional, prevalece sobre as demais leis ordinárias da RAEM 4. A LB estabelece a estrutura política e a moldura institucional da Região, os seus princípios gerais, os direitos e deveres fundamentais dos residentes, as normas sobre o relacionamento entre as autoridades centrais e a RAEM, as normas atinentes à economia, cultura e assuntos sociais, assuntos externos, assim como à interpretação e revisão da própria LB. A RAEM é dotada de um elevado grau de autonomia e goza de poderes executivo, legislativo e judicial independentes, incluindo o de julgamento em última instância (artigo 2.º da LB) 5. Acresce o facto de, em conformidade com o princípio “Um país, dois sistemas”, durante 50 anos 6, os sistemas económico e social previamente existentes, bem como o respectivo modus vivendi manterem-se inalterados (artigo 5.º da LB).

Aprovada a 31 de Março de 1993, de acordo com o artigo 31.º da CRP da RPC, na I Sessão da VIII Legislatura da APN. 3 A LB tem fontes de direito internacional – a DC – e fontes de direito interno – a CRP da RPC e outras leis nacionais. 4 Vide Jorge Oliveira, “O ordenamento jurídico de Macau no contexto da Lei Básica”, paper apresentado no Colóquio realizado pela AAM (13 e 20 de Novembro de 1991), p. 37; Eduardo Cabrita, “Limites de natureza internacional e constitucional à autonomia da R.A.E.M.”, p. 177, Yash Gai, “A transferência de soberania e a democratização de Hong Kong e Macau” p. 239 e Francisco Gonçalves Pereira, “Lei Básica: o modelo convencional e a prática constituinte”, p. 248, in Revista Jurídica de Macau, 1999; Fong Man Chong, “Alguns aspectos em torno da vigência da Lei Básica na fase inicial (II) – reflexões sobre a aplicação do Direito internacional na RAEM” in Revista Administração, n. 62, vol. XVI, 2003, p. 1262. 5 Vide igualmente, entre outros, artigos 3.º, 11.º, 12.º, 19.º e 21.º da LB. 6 Este é igualmente o prazo de vigência da DC, que cessa em 19 de Dezembro de 2049. 2

271

Ilda Cristina Ferreira

A RAEM mantém uma política financeira, monetária e fiscal própria e independente (artigos 104.º, 106.º, 107.º e 109.º da LB), mantém a emissão de moeda própria (artigo 109.º da LB), mantém-se como porto franco e território aduaneiro separado (artigos 110.º e 112.º da LB), mantém um controlo fronteiriço independente (artigo 139.º da LB) e prossegue as suas próprias políticas económicas, sociais e culturais, a par de outros poderes que adiante enunciaremos. Na realidade, e conforme o estipulado nos artigos 13.º e 14.º da LB, a RAEM apenas não tem, respectivamente, autonomia em assuntos externos 7 e de defesa, que são da responsabilidade do Governo Popular Central (GPC) - corolários últimos do exercício do poder de soberania de um Estado. Mesmo assim, em determinadas circunstâncias, a RAEM pode ser sujeito pleno de direito internacional (parágrafo 3 do artigo 13.° e artigo 136.° da LB). Estas circunstâncias dependem da natureza e do objecto do tratado em causa, i.e., não ser reservado a Estados soberanos e que o objecto se enquadre no âmbito dos poderes autonómicos das relações externas que são conferidos pelo GPC à RAEM – assuntos externos concernentes à Região. Nestes termos, não obstante o seu estatuto nãosoberano, a RAEM pode por si própria ser sujeito de direito internacional, com a denominação “Macau, China”, em determinados domínios, mormente nos da economia, comércio, finanças, transportes marítimos, comunicações, turismo, cultura, ciência, tecnologia e

7 A aplicação na RAEM dos acordos internacionais em que a RPC é parte é decidida pelo GPC, conforme as circunstâncias e segundo as necessidades da Região e depois de ouvir o parecer do Governo da RAEM (parágrafo 1 do artigo 138.º da LB). A RAEM pode estar vinculada a acordos internacionais mesmo que a RPC não seja parte dos mesmos, mas assuma a responsabilidade internacional pela sua vigência na RAEM.

272

Aspectos Polémicos da Extradição

desporto (artigo 136.° e última parte do parágrafo 2 do artigo 138.° da LB) 8. A

RAEM

pode

ainda

participar

em

certas

organizações

internacionais, estabelecer missões económicas e comerciais oficiais ou semi-oficiais da Região em países estrangeiros, bem como emitir passaportes e outros documentos de viagem (artigos 137.°, 139.° e 141.° da LB). Em suma, estas e outras especificidades caracterizam o estatuto jurídico-político sui generis de Macau 9, materialmente atípico dos paradigmas existentes na ordem internacional relativos a regiões com poderes autonómicos 10, porquanto ao ser-lhe concedido um alto grau de autonomia são-lhe igualmente conferidos uma “panóplia” de poderes característicos de um Estado. Tal consubstancia um modelo sui generis quer na ordem internacional quer na ordem interna – i.e. nas relações inter-Estados, nas relações de outros Estados ou Regiões vis a vis a RAEM e nas relações inter-regionais, i.e. RPC, Hong Kong e Macau 11.

Filipa Delgado, “Algumas notas sobre o estatuto jurídico internacional da RAEM”, Repertório do Direito de Macau, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2007. 9 Tal raciocínio aplica-se mutatis mutandis em relação a Hong Kong – Região Administrativa Especial de Hong Kong (RAEHK). 10 Marco Olivetti, “The Special Administrative Regions of the PRC in comparison with autonomous region models”, paper apresentado na Conferência Internacional One Country, Two Systems, Three Legal Orders – Perspectives of Evolution, Macau, 2007 ou Paulo Cardinal, “Fragmentos em torno da Constituição Processual Penal de Macau – do Princípio da Continuidade ao Princípio da Dignidade Humana”, paper apresentado nas Primeiras Jornadas de Direito e Cidadania da Assembleia Legislativa de Macau – Direito Processual Penal – Estado presente e perspectivas de evolução, Macau, Janeiro de 2007, p. 4. 11 De notar que se trata de uma só China com duas Regiões Administrativas Especiais ambas com sistemas capitalistas versus o sistema comunista da RPC, mas trata-se também de uma só China e de três jurisdições com sistemas jurídicos diferentes: socialista, anglo-saxónico e romano-germânico. 8

273

Ilda Cristina Ferreira

III. Principais Características do Ordenamento Jurídico da RAEM São postulados fundamentais da RAEM, de harmonia com o princípio “Um país, dois sistemas” e com os princípios consagrados na DC, o princípio da autonomia e o princípio da continuidade. Estes princípios estão consubstanciados no artigo 5.º da LB ao dispor que não se aplicam em Macau o sistema e as políticas socialistas e ao afirmar que se mantêm inalterados, por um período de 50 anos, os sistemas económico e social previamente existentes, bem como o respectivo modus vivendi, que inclui, obviamente, o acervo jurídico-normativo previamente vigente. Porém, quis o legislador da LB tornar tal postulado claro e inequívoco, ao plasmar de forma expressa no artigo 8.º da LB o princípio da continuidade do ordenamento jurídico de Macau. Estes dois pilares do edifício jurídico-institucional da RAEM, encontram-se explanados ao longo de outros preceitos da Lei Fundamental, como já tivemos oportunidade de referir. Reza o artigo 8.º da LB que: “As leis locais e outros actos normativos previamente em vigor em Macau manter-se-ão, excepto no que contrariar a Lei Básica ou no que for sujeito a emendas em conformidade com os procedimentos legais, pelo órgão legislativo ou por outros órgãos competentes da Região Administrativa Especial de Macau.” 12 A ratio deste princípio é assegurar a continuidade do ordenamento jurídico de Macau, estribada no primado da certeza e da segurança jurídica 13.

Este princípio é reiterado em lei ordinária, vide artigo 3.º, nº 1, da Lei da Reunificação, Lei n.º 1/1999, de 20 de Dezembro. 13 Jorge Costa Oliveira, “A Continuidade do Ordenamento Jurídico de Macau na Lei Básica da Futura Região Administrativa Especial”, Revista Administração, n.º 19/20, 1993, pp. 22 e 23. 12

274

Aspectos Polémicos da Extradição

Este princípio é interpretado pela maioria da doutrina em sentido lato 14,

ou seja, decorre de uma leitura teleológico-sistemática deste e de

outros artigos da LB (vide preâmbulo, artigo 4.º, parágrafo 1 do artigo 11.º, parágrafo 1 do artigo 18.º e 145.º) e da própria DC, que este princípio não se reconduz apenas à manutenção das leis (em sentido formal) salvo no que contrariar a LB, mas sim a todo um alicerce jurídico-normativo (em sentido material) enformado em valores e princípios gerais (ex: os direitos fundamentais) 15 que não podem ser desvirtuados sob pena de descaracterizar a identidade jurídiconormativa de Macau 16. Outro

princípio

fundamental,

corolário

do

princípio

da

autonomia da RAEM, é o da não aplicação das leis nacionais da RPC, excepto as indicadas no Anexo III da LB. 17 Contudo, o Comité António Katchi, As Fontes do Direito em Macau, Universidade de Macau e Instituto de Estudos Avançados da Faculdade de Direito, 2006, pp. 13-15 ou Armando Isaac, “The constitutional framework for legal-cooperation between the ‘Two Systems” of the “One Country”: The case of Macau”, paper apresentado na Conferência sobre Assistência Judiciária Recíproca “One Country, Two Systems”, Faculty of Law of the University of Hong Kong, 1999, pp. 2-5, 13-15. 15 Sobre a questão da salvaguarda dos direitos fundamentais em Macau, vide Paulo Cardinal, “Permanent’ Fundamental Rights in a Legal System in Transition – The case of Macau”, paper delivered at LAWASIA, 1997, ou Jorge Bacelar Gouveia, “The Fundamental Rights in Macao”, ou Paulo Cardinal “The Judicial Guaranteed of Fundamental Rights in the Macau Legal System – a Parcours under the focus of Continuity and of Autonomy,”, papers apresentados na Conferência Internacional One Country, Two Systems, Three Legal Orders – Perspectives of Evolution, Macau, 2007. 16 Paulo Cardinal, “Reflexões em torno dos Direitos Fundamentais em Macau numa Perspectiva da Transição”, Daxiyangguo, n. 7, 2005, pp. 62-63 ou do mesmo autor op.cit. nota. 10, pg. 9 ou Olivetti. 17 São onze as leis nacionais aplicáveis da RAEM, a saber: Resolução sobre a Capital, o Calendário, o Hino Nacional e a Bandeira Nacional da República Popular da China, Resolução sobre o Dia Nacional da República Popular da China, Lei da Nacionalidade da República Popular da China, Regulamentos da República Popular da China relativos a Privilégios e Imunidades Diplomáticos, Regulamentos da República Popular da China relativos a Privilégios e Imunidades Consulares, Lei da Bandeira Nacional da República Popular da China, Lei do Emblema Nacional da República Popular da China, Lei sobre as Águas Territoriais e Zonas Adjacentes, Lei sobre a Zona Económica Exclusiva e a Plataforma Continental da República Popular da 14

275

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Permanente da APN pode aumentar ou reduzir o elenco das leis referidas no Anexo III, depois de consultar a Comissão da LB da RAEM e o Governo da Região (parágrafo 3 do artigo 18.º da LB). Em qualquer dos casos, estas leis limitar-se-ão a assuntos de defesa nacional e relações externas (conjugar com artigos 13.º e 14.º da LB), e a outras matérias não compreendidas no âmbito da autonomia da RAEM, nos termos da LB 18. Por último, importa ainda realçar outro princípio geral da RAEM, o da salvaguarda dos direitos fundamentais, consagrado no artigo 4.º da LB, corolário do ordenamento jurídico de Macau e que advém da sua matriz de origem portuguesa. Este princípio é corroborado no parágrafo 1 do artigo 11.º da LB ao reconhecer a existência de um “sistema de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos residentes” em Macau. A LB consagra um Capítulo específico dedicado aos direitos fundamentais (Capítulo III) e estatui no seu artigo 40.º que o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais e as Convenções da OIT continuarão a vigorar em Macau, sendo aplicadas mediante legislação local. Os direitos e liberdades dos residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei e têm de ter em atenção as disposições daqueles instrumentos internacionais que são aplicáveis na RAEM.

China, Lei do Estacionamento de Tropas na Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China e Lei da República Popular da China sobre a imunidade relativa à aplicação de medidas judiciais coercivas ao património de bancos centrais estrangeiros. 18 Vide parágrafo 4 do artigo 18.º da LB. No caso de o Comité Permanente da APN decidir declarar o estado de guerra ou, por motivo de distúrbios na Região que ponham em perigo a unidade ou segurança nacionais e não possam ser controlados pelo Governo da Região, decidir a entrada da Região no estado de emergência, o GPC pode ordenar, por decreto, a aplicação das respectivas leis nacionais na Região.

276

Aspectos Polémicos da Extradição

Tendo como premissa o princípio da continuidade do ordenamento jurídico da RAEM e razões de ordem histórico-políticas 19, a RAEM detém um conjunto de traços característicos que a integra na família romanogermânica (direito continental ou de direito civil). De matriz portuguesa (esta fundada no direito romano), a RAEM tem por principal fonte de direito imediata a lei escrita (artigo 1.º do Código Civil de Macau) 20, encontrando-se grande parte da legislação concentrada em “cinco grandes códigos”, existindo, por seu turno, uma clara distinção entre direito privado e direito público (e respectivos ramos do direito). Pedra angular do sistema legal de Macau é o princípio da publicidade das leis no Boletim Oficial da RAEM (artigo 4.º do Código Civil de Macau e Lei nº 3/1999, de 20 de Dezembro). Acordos internacionais ratificados ou aprovados pela RPC, ou nos casos em que a RAEM tem autonomia externa necessitam igualmente de ser publicados no Boletim Oficial para vigorarem na ordem interna 21. Uma vez publicados estes integram imediata e automaticamente a ordem jurídica da RAEM. Na RAEM, o direito internacional e o direito interno fazem parte da mesma ordem jurídica operando simultaneamente quanto às mesmas

Macau viveu mais de quatro séculos sob administração Portuguesa – como colónia, e posteriormente como território Chinês sob administração Portuguesa, período que decorreu entre 1987 e 19 de Dezembro de 1999. 20 Paula Correia, “O Sistema Jurídico de Macau: Uma Perspectiva de Direito Comparado”, Repertório do Direito de Macau, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 2007, p. 29 et seq, Eduardo Nascimento Cabrita, “International and Constitutional Limitations on the Autonomy of the Macao Special Administrative Region”, The Basic Laws: Problems and Perspectives, Macao Law Journal, 2002, p. 190. 21 A publicação de convenções internacionais e acordos é condição de eficácia na RAEM e deve respeitar o estipulado na Lei n.º 3/1999, de 20 de Dezembro, Lei sobre a publicação e formulário dos diplomas (vide artigos 3.º, n º 6, e do artigo 5º, nºs 1 e 2). 19

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matérias 22, característica de um sistema monista. Na eventualidade de conflito entre o direito internacional convencional e o direito ordinário prevalece o primeiro (primado do direito internacional convencional sobre o direito ordinário (artigo 3.º, nº 1, do Código Civil) 23. A hierarquia das fontes também segue a tradição civilista, no topo da hierarquia a lei constitucional, seguido do direito internacional convencional e por último o direito ordinário. O costume e a jurisprudência são fontes mediatas de Direito 24. No que concerne à organização judiciária 25, esta compreende três instâncias: Tribunais de Primeira Instância, um Tribunal de Segunda Instância e um Tribunal de Última Instância, este último com poder de julgamento em última instância 26. Os Tribunais da RAEM não têm jurisdição sobre actos de Estado, tais como os relativos à defesa nacional e às relações externas 27.

IV. Aspectos Fundamentais do Regime da Cooperação Judiciária Externa em Matéria Penal da RAEM O regime da cooperação judiciária em matéria penal da RAEM é um regime novo, complexo e politicamente delicado, atenta a situação da RAEM. Este assenta num corpus de disposições legais de natureza Patrícia Ferreira, “Algumas Questões acerca da Aplicação do Direito Internacional na Região Administrativa Especial de Macau”, In: Curso de Produção Legislativa, Macau, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2002, pp. 18 e 19. 23 Cristina Ferreira, “The Macau Special Administrative Region Legal System – is EU Law a source of inspiration for the Macau Lawmaker?”, pp. 6-12, a ser publicado em Jorge Godinho (ed.), The Legal System of Macau and Its European Roots, Macau, e op.cit. nota 14, pg. 447. 24 Op.cit. note 20, pg. 33. 25 Vide artigos 82.º a 94. º da LB e a Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau (Lei nº 9/1999, de 20 de Dezembro). 26 Vide artigos 2.º, 19.º, parágrafo 1 do artigo 84.º da LB. Os Tribunais podem interpretar a LB (parágrafo 3 do artigo 143.º da LB). 27 Parágrafo 3 do artigo 19.º da LB. 22

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Aspectos Polémicos da Extradição

diversa – constitucionais, internacionais e de direito ordinário, bem como de procedimentos específicos. Na primeira linha, temos de ter em conta as disposições de natureza constitucional. Dispõe o artigo 94.º da LB, que a RAEM pode, “com o apoio e a autorização do GPC, desenvolver as diligências adequadas à obtenção de assistência jurídica com outros países, em regime de reciprocidade”. Tal significa que Macau pode celebrar acordos bilaterais na área da cooperação judiciária em matéria penal com outros Estados ou Regiões, tendo apenas como requisito prévio a necessária autorização do GPC 28. Esta condição, derivada do seu estatuto jurídicopolítico, é reiterada na lei que regula a cooperação judiciária em matéria penal entre a RAEM e outros Estados ou Territórios 29. Na segunda linha, há que ter em conta o direito internacional convencional. O princípio da prevalência das convenções internacionais e de acordos é um princípio geral do ordenamento jurídico de Macau, com consagração expressa na área da cooperação judiciária 30. Nestes termos, todas as convenções e acordos internacionais a que a RAEM está vinculada, quer enquanto sujeito próprio de direito internacional quer por virtude da aplicação de convenções internacionais a que a RPC está vinculada e que são igualmente aplicáveis na RAEM 31 têm prevalência na ordem interna. Daqui decorre que todas as disposições sobre a Até à data, Macau já assinou dois acordos de transferência de pessoas condenadas, um com o Governo Português e outro com o Governo da Região Administrativa Especial de Hong Kong, respectivamente em 7 de Dezembro de 1999 e em 25 de Maio de 2005. 29 Artigo 1.º da LCJMP. 30 Princípio reiterado no artigo 4.º da LCJMP e artigo 213.º do CPP. 31 Ex: Convenção das NU contra a Criminalidade Organizada Transnacional (Convenção de Palermo), publicada através do Aviso do Chefe do Executivo nº 36/2004, Boletim Oficial da RAEM nº 36, II Série, de 8 de Setembro, e Convenção das NU contra a Corrupção (Convenção de Mérida), publicada através do Aviso do Chefe do Executivo nº 5/2006, Boletim Oficial da RAEM nº 7, II Série, de 21 de Fevereiro. 28

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cooperação judiciária em matéria penal contidas nesses instrumentos prevalecem e regem as relações da RAEM com os respectivos Estados ou Regiões. As convenções internacionais e acordos bilaterais de assistência judiciária, em regime de reciprocidade, a celebrar com outros Países ou Regiões, ou a celebrar com órgãos judiciais de outras regiões do País (Interior da China ou Hong Kong) 32- 33, a fim de vigorarem na ordem interna da RAEM são, como já referido, objecto de publicação no Boletim Oficial da RAEM 34. Em terceira linha, em sede de direito ordinário, releva prima facie, com carácter de subsidiariedade neste quadro normativo, a Lei de Cooperação Judiciária em Matéria Penal (LCJMP), Lei n.º 6/2006, de 24 de Julho 35, que entrou em vigor em Novembro de 2006. É na sua falta ainda subsidiariamente aplicável a legislação processual penal. A LCMP veio colmatar uma lacuna do ordenamento jurídico da RAEM até então com parcos dispositivos – cartas rogatórias e a consagração do princípio geral da prevalência do direito internacional convencional – expressos no Código de Processo Penal 36.

Vide artigo 93.º da LB. Jorge Costa de Oliveira, “Inter-regional Mutual Legal Assistance in criminal matters within the P.R.of China”, paper apresentado na Conferência Internacional One Country, Two Systems, Three Legal Orders – Perspectives of Evolution, Macau, 2007. 34 Vide artigo 5.º, alínea 2) e 3) da Lei n.º 3/1999. Compete ao Chefe do Executivo mandar proceder à publicação (artigo 6.º da mesma Lei). 35 Boletim Oficial da RAEM n.º 30, I Série, de 24 de Julho de 2006. 36 Artigo 213.º(Prevalência das convenções internacionais e acordos), artigo 214.º (Rogatórias), artigo 215.º (Recepção e cumprimento de rogatórias), artigo 216.º (Recusa do cumprimento de rogatórias) e artigo 217.º (Entrega de delinquentes) do Código de Processo Penal. 32 33

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Aspectos Polémicos da Extradição

Esta LCJMP reflecte uma concepção humanista assente nos valores e princípios gerais que enformam o ordenamento jurídico de Macau 37 e nos modelos contemporâneos que regulam esta matéria 38. Assim, à semelhança de outros ordenamentos jurídicos, a LCJMP regula, como o seu nome indica, a cooperação judiciária em matéria penal com outras jurisdições (Estados ou Territórios), abrangendo: a entrega de infractores em fuga, a transmissão de processos penais, a execução de sentenças penais, a transferência de pessoas condenadas, a vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente e outras formas de colaboração judiciária em matéria penal 39. A aplicação da LCJMP está subordinada à protecção da defesa nacional, das relações externas, da soberania, da segurança ou ordem pública da RPC, bem como aos interesses da segurança e da ordem pública e a outros interesses da RAEM, consagrados no seu ordenamento jurídico (artigo 2.º, nº 1, da LCJMP). Qualquer pedido de cooperação deve

observar

determinados

procedimentos,

em

particular

o

procedimento de notificação ao GPC previsto na Lei n.º 3/2002, de 4 de Março (n º 2 do mesmo artigo). A cooperação judiciária obedece assim a uma hierarquia de fontes, atentas as disposições de natureza constitucional, prevalece, em primeiro lugar, o direito internacional convencional, ou seja, eventuais acordos bilaterais ou multilaterais sobre a matéria, sendo na sua ausência

Refira-se neste contexto o respeito pelo princípio da dignidade humana. Leonor Assunção, “O modelo estrutural do processo penal de Macau – princípios que o fundamentam”, Repertório de Direito de Macau, 2007, p. 279. 38 Como refere a nota justificativa da LCJMP, o legislador inspirou-se em princípios e normas de diversos acordos internacionais em vigor de modo a assegurar a aplicação de convenções internacionais na RAEM, designadamente em postulados da moderna política criminal que se dirige tanto a uma eficaz aplicação da lei penal como a facilitar a reinserção do agente. O legislador teve por principal fonte a Lei Portuguesa, a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (www.al.gov.mo). 39 Artigo 1.º. 37

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aplicável a Lei n.º 6/2006 e, subsidiariamente a esta, as disposições do Código de Processo Penal. A LCJMP contém um corpo de disposições gerais que são aplicáveis a todas as formas de cooperação e disposições específicas para cada forma de cooperação, mormente no que concerne à entrega de infractores em fuga. A Lei acolhe princípios gerais fundamentais internacionalmente reconhecidos na esfera da cooperação internacional em matéria penal; o já mencionado, princípio da prevalência do direito internacional convencional (artigo 4.º), assim como da reciprocidade (artigo 5.º) 40, da especialidade (artigo 17.º) 41 e non bis in idem (artigo 20.º). Especificidade na LCJMP, é o princípio da dupla punibilidade previsto no seu artigo 6.º. Este princípio comum a todas as formas de cooperação previstas na Lei é um princípio mais lato que o da duplaincriminação, porquanto permite a cooperação desde que a infracção que

40 Princípio plasmado no artigo 94.º da LB. A falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação desde que essa cooperação: 1) se mostre aconselhável em razão da natureza do facto ou da necessidade de lutar contra certas formas graves de criminalidade (onde se incluem, inter alia, o tráfico ilícito de droga, o crime organizado, o terrorismo, o tráfico de pessoas); 2) possa contribuir para melhorar a situação do arguido ou do condenado ou para a reinserção social do condenado; ou 3) sirva para esclarecer factos imputados a um residente da RAEM (estatuto pessoal ou critério da residência). 41 Não é excluída a possibilidade de ser solicitada a extensão da cooperação a factos diferentes dos que fundamentaram o pedido, mediante novo pedido apresentado e instruído nos termos da LCJMP. Neste caso, é obrigatória a apresentação de auto donde constem as declarações da pessoa que beneficia da regra da especialidade. O artigo 18.º da LCJMP estipula quais os casos da não aplicação da regra da especialidade, mormente quando a pessoa renuncia a beneficiar da regra da especialidade ou quando, por convenção internacional aplicável em Macau, não haja lugar ao benefício da regra da especialidade. Quando a cessação da imunidade decorra por renúncia da pessoa que beneficia da regra da especialidade, deve essa renúncia resultar de declaração pessoal, prestada perante juiz, que demonstre que a pessoa a exprimiu voluntariamente e em plena consciência das consequências do seu acto, com assistência de advogado constituído ou, na sua falta, com assistência de defensor nomeado. As declarações são prestadas perante o Tribunal de Segunda Instância.

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Aspectos Polémicos da Extradição

motiva o pedido de cooperação seja punível com uma reacção criminal pela legislação da parte requerente e pela legislação da parte requerida. Entende-se por reacção criminal qualquer pena ou medida de segurança privativa de liberdade, sanção patrimonial ou outra sanção não detentiva, incluindo sanções acessórias 42. Está subjacente à ratio deste artigo a possibilidade de cooperar mesmo que uma determinada conduta seja objecto de diferentes reacções criminais entre a parte requerente e a parte requerida, por exemplo: ser considerada crime numa jurisdição e noutra ser considerada uma infracção administrativa (sendo caso paradigmático as infracções de natureza económica) 43. A não-punibilidade do facto na RAEM não obsta, porém, à satisfação de um pedido de cooperação, se este se destinar à prova de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa da pessoa contra quem o procedimento penal foi instaurado (artigo 6.º, nº 2). A par dos princípios gerais, existem também condições gerais para a recusa de um pedido de cooperação, designadamente de entrega de infractores em fuga, e que são as seguintes: - se o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências de convenções internacionais aplicáveis em Macau (artigo 7.º, nº 1, alínea 1)); - se houver fundadas razões para crer que a cooperação é solicitada com o fim de perseguir ou punir uma pessoa em virtude da sua nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou pertença a um grupo social determinado (artigo 7.º, nº 1, alínea 2)); Artigo 3.º da LCJMP. Conjugar com o artigo 148.ºda LCJMP. Vide Parecer 2/III/2006, da Primeira Comissão Permanente da Assembleia Legislativa de Macau sobre o projecto de lei da LCJMP (www.al.gov.mo). 42 43

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- se existir risco de agravamento da situação processual de uma pessoa por qualquer das razões indicadas na alínea anterior (artigo 7.º, nº 1, alínea 3)); - se puder conduzir a julgamento por um tribunal de excepção ou respeitar a execução de sentença proferida por um tribunal dessa natureza (artigo 7.º, nº 1, alínea 4)); - se o facto a que respeita for punível com pena que possa causar lesão irreversível da integridade da pessoa (artigo 7.º, nº 1, alínea 5)); - se o facto a que respeita for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida (artigo 7.º, nº 1, alínea 6)); - se o facto a que respeita for punível com a pena de morte (artigo 7.º, nº 1, alínea 7)). As condições expressas nos três últimos sub-parágrafos não prejudicam a cooperação, inter alia, se a parte requerente oferecer garantias de que as penas ou medidas de segurança aí referidas não serão executadas ou aplicadas 44. Para efeitos de apreciação da suficiência das garantias, tem-se em conta, nomeadamente, a legislação e a praxis da parte requerente, a possibilidade de não aplicação da pena ou medida de segurança, a reapreciação da situação da pessoa reclamada e a concessão de liberdade condicional, bem como a possibilidade de indulto, perdão, comutação de pena ou medida análoga 45. É ainda recusada a cooperação e, consequentemente, um pedido de entrega de infractores em fuga, quando estes digam respeito a crimes 44 Princípio da proibição da entrega de infractor quando se aplique a pena de morte ou pena de prisão perpétua, penas que não encontram expressão no ordenamento jurídico-penal da RAEM. A pena máxima prevista no artigo 41.º, nº 1, do Código Penal de Macau, é de 25 anos. Excepcionalmente, este limite pode atingir os 30 anos, mas em caso algum pode exceder tal limite (nº 2 do mesmo artigo). 45 Artigo 7.º, nºs 2 e 3.

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Aspectos Polémicos da Extradição

puramente militares, políticos ou leves. Dispõe, neste sentido, o artigo 8.º da LCJMP, que um pedido de cooperação pode ser recusado em razão da natureza da infracção, quando se trate de infracção de natureza política ou infracção conexa a infracção política segundo as concepções do direito da RAEM (nº 1, alínea 1)) e quando se trate de crime militar que não seja simultaneamente previsto na lei penal comum (nº 1, alínea 2)). À semelhança de outros regimes extradicionais, excluem-se do conceito de crimes políticos certos crimes particularmente graves que nenhuma jurisdição nas suas relações com outra jurisdição qualifica como crimes políticos, a saber: i) o genocídio, os crimes contra a Humanidade, os crimes de guerra e infracções graves segundo as Convenções de Genebra de 1949; ii) os actos referidos na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 17 de Dezembro de 1984; iii) quaisquer outros crimes a que seja retirada natureza política por convenção internacional aplicável em Macau (artigo 8.º, nº 2). V. Aspectos Fundamentais do Instituto da “Entrega de Infractores em Fuga” Expostas as condições gerais para um pedido de cooperação, passamos a enumerar as condições de admissibilidade de um pedido de entrega de infractores em fuga, em particular. Como referido sub judice, o instituto da extradição constitui o mais antigo e tradicional instrumento de cooperação internacional entre Estados soberanos, pelo que sendo Macau uma Região Administrativa Especial, com um alto grau de autonomia, inclusive com um poder judicial autónomo e independente e um ordenamento jurídico próprio, 285

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houve que a dotar de um instrumento que permitisse a cooperação na esfera

judiciária

com

outras

jurisdições,

moldando-o

às

suas

especificidades jurídico-políticas. Assim, foi criado o instituto da “Entrega de Infractores em Fuga” no quadro da LCJMP da RAEM. Este instituto similar ao da extradição, permite oferecer e solicitar cooperação a outros Estados ou Regiões em termos análogos aos da extradição (aut dedere aut iudicare) 46. O instituto da entrega de infractores em fuga visa a entrega de infractor “para efeitos de procedimento penal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais da parte requerente” (artigo 32.º, nº 1 da LCJMP). Um pedido desta natureza, a solicitar a transferência para a parte requerente de pessoa que se encontra na parte requerida, a pedido daquela, por nela se encontrar arguido ou condenado pela prática de um crime, está limitada a condicionalismos específicos. Com efeito, a entrega só é admissível no caso de o crime, ainda que sob a forma tentada, seja punível pela lei da RAEM e pela lei da parte requerente com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a um ano (nº 2 do mesmo artigo). Encontramos aqui a consagração expressa de um corolário da extradição – a exigência do princípio da dupla-incriminação e a sua conexão com a exigência da certa gravidade do crime praticado para que a extradição seja admitida 47. O Edward M.Wise, “Aut dedere aut iudicare: The duty to prosecute or extradite” In: M. Cherif Bassiouni (ed.), International Criminal Law II (Procedural and Enforcement Mechanisms), 2. ed., Aldersley, New York, Transnational Publishers, 1999. 47 Se a entrega de infractor em fuga tiver por fundamento vários factos distintos, cada um deles punível pela lei da parte requerente e pela lei da RAEM com uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade mas algum ou alguns deles não preencherem a condição referida no número anterior, pode também conceder-se a entrega de infractor em fuga (artigo 32.º, nº 3)). 46

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Aspectos Polémicos da Extradição

princípio da dupla-incriminação previsto para a entrega de infractores em fuga constitui uma excepção ao princípio geral da dupla-punibilidade da LCJMP. Caso o pedido seja efectuado para dar cumprimento a uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade, a entrega do infractor em fuga só pode ser concedida se o tempo por cumprir não for inferior a seis meses (artigo 32.º, nº 4). Sem prejuízo das condições de admissibilidade expressas no artigo 32.º da LCJMP, são ainda condições específicas de recusa de um pedido de entrega de infractores em fuga as seguintes: - o crime tiver sido cometido na RAEM (artigo 33.º, nº 1, alínea 1)), ou seja, a RAEM também é jurisdição competente para apreciar o caso (princípio da territorialidade); - a pessoa reclamada for nacional chinês não residente da RAEM (artigo 33.º, nº 1, alínea 2)), (princípio geral que não se extraditam nacionais, o legislador tentou aqui “acomodar’ o conceito de residência consolidado no ordenamento de Macau com o critério da nacionalidade) ou - a pessoa reclamada for residente da RAEM (adaptação do princípio geral que não se extraditam nacionais ao critério da residência da RAEM – o estatuto pessoal de residente estabelece um vínculo especial entre a pessoa e a Região, de um acervo de direitos e deveres específicos, originando um tratamento especial a quem tenha este estatuto) 48, salvo se o pedido for formulado pelo Estado da sua nacionalidade 49 ou quando a obrigação de entrega

Diferentemente das outras formas de cooperação pretendeu-se, para este instituto proteger quer o residente permanente quer o não-permanente da RAEM. 49 A qualidade de residente da RAEM e a nacionalidade da pessoa reclamada são apreciadas pelas autoridades da RAEM no momento em que procedem ao exame do pedido de entrega de infractor em fuga (artigo 33.º, nº 4)). 48

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decorra de norma por si mesma exequível constante de convenção internacional aplicável em Macau (artigo 33.º, n.º 1, alínea 3)). Em termos gerais, o instituto da entrega de infractores segue o modelo da extradição no que concerne aos seus princípios fundamentais. Pelo que as disposições relativas à extradição contidas nas convenções internacionais aplicáveis na RAEM devem ser aplicáveis com as devidas adaptações ao instituto da entrega de infractores em fuga previstas na LCJMP. Importa assinalar, neste contexto, o regime legal relativo à aplicação da lei penal no espaço, por meio do qual se consagra um modelo ampliado de competência originária para julgamento de crimes cometidos no estrangeiro. Assim, dispõe o artigo 5.º do Código Penal de Macau, sob a epígrafe “Factos praticados fora de Macau”, que: “Salvo disposição em contrário constante de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária, a lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau: a) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 252.º a 261.º e 297.º a 305.º; b) Quando constituírem os crimes previstos no n.º 2 do artigo 152.º e nos artigos 153.º a 155.º, 229.º, 230.º e 236.º, desde que o agente seja encontrado em Macau e não possa ser entregue a outro Território ou Estado; c) Por residente de Macau contra não-residente, ou por não-residente contra residente, sempre que: (1) O agente for encontrado em Macau; (2) Os factos forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e (3) Constituírem crime que admita entrega do agente e esta não possa ser concedida; ou d) Contra residente de Macau, por residente, sempre que o agente for encontrado em Macau. 2. A lei penal de Macau é ainda aplicável a factos praticados fora de Macau sempre que a obrigação de os julgar resulte de convenção internacional aplicável em Macau ou de acordo no domínio da cooperação judiciária.

O alargamento da competência extra-territorial está previsto em legislação penal avulsa, como é o caso da Lei n.º 3/2006, de 10 de Abril, sobre a Prevenção e a Repressão de Crimes de Terrorismo, onde, 288

Aspectos Polémicos da Extradição

por exemplo, para os crimes de terrorismo internacional e de financiamento ao terrorismo praticados fora da RAEM, é esta competente para os julgar desde que o agente seja encontrado na Região (artigo 3.º ) 50. Em termos de direito adjectivo, o pedido de entrega de infractor em fuga é composto por duas fases: uma fase administrativa e uma fase judicial 51. A fase administrativa é da competência do Chefe do Executivo e destina-se à apreciação do pedido de entrega de infractor em fuga, nomeadamente tendo em conta as garantias a que haja lugar, decidindo se ele pode ter seguimento ou se deve ser declarado inadmissível por razões de ordem política ou de oportunidade ou conveniência. A fase judicial é da competência do Tribunal de Segunda Instância e destina-se a decidir, com audiência do interessado, sobre a concessão da entrega do infractor em fuga por procedência das suas condições de forma e de fundo, não sendo admitida prova alguma sobre os factos imputados à pessoa reclamada. Em termos práticos, devido ao recém criado quadro normativo de cooperação judiciária em matéria penal ainda não existem dados sobre pedidos de entrega de infractores em fuga nem acordos bilaterais sobre esta matéria. A única jurisprudência disponível diz respeito a dois pedidos de habeas corpus junto do Tribunal de Última Instância (TUI) relativos a entrega de infractor em fuga com o Interior da China. Tendo em conta que a entrega de infractores em fuga às autoridades do exterior da RAEM (onde se incluem as autoridades do Interior da China) sujeita-se a disposição de lei especial (artigo 217.º do CPP) e o facto de actualmente não existirem normas ou acordos inter50 Esta excepção também será aplicável ao crime internacional de tráfico de pessoas, vide a proposta de Lei sobre o crime de tráfico de pessoas na Assembleia Legislativa (www.al.gov.mo). 51 Artigo 48.º da LCJMP.

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Ilda Cristina Ferreira

regionais que regulem a entrega de infractores em fuga entre o Interior da China e a RAEM 52, não podem as autoridades públicas da RAEM (seja o Ministério Público, a Polícia Judiciária, ou outras) deter um indivíduo que tenha um mandato de captura da Interpol para efeitos de entrega ao Interior da China como parte requerente (Acordão n.º 12/2007, de 20 de Março) 53. VI. O Sistema de Notificação ao Governo Popular Central Como referido supra qualquer pedido de cooperação judiciária deve obedecer a determinados procedimentos, em particular o procedimento de notificação prévia ao GPC 54. Assim, para efeitos de admissibilidade de qualquer pedido de cooperação é condição sine qua non a consulta junto do GPC. A Lei n.º 3/2002 regula o procedimento relativo à notificação de pedido no âmbito da cooperação judiciária 55. Dispõe o seu artigo 2.º que o GPC deve ser notificado de qualquer pedido, dirigido às autoridades competentes da RAEM 56 no âmbito da cooperação judiciária em matéria penal, designadamente pedido de entrega de infractor em fuga e do seu trânsito, nos termos da lei ou de acordos bilaterais ou tratados multilaterais aplicáveis. Para o efeito, é necessária a análise prévia das autoridades locais que concluam liminarmente pela viabilidade do pedido.

Vide artigo 93.º da LB. Vide também Acordão n.º 3/2008 de 12 de Fevereiro. 54 Subjaz a este requisito, a ratio do artigo 94.º da LB ao submeter para (apoio e) autorização do GPC os acordos destinados à obtenção de cooperação judiciária. 55 Boletim Oficial da RAEM n.º 9/2002, I Série, de 4 de Março. 56 Para os efeitos da presente lei, entendem-se por autoridades competentes da RAEM os órgãos judiciais e administrativos da RAEM responsáveis pela apreciação do pedido de cooperação judiciária envolvido na notificação, nos termos da lei ou de acordos bilaterais ou tratados multilaterais aplicáveis. 52 53

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Aspectos Polémicos da Extradição

A notificação é da responsabilidade do Chefe do Executivo, enquanto representante e dirigente máximo da RAEM, responsável perante o GPC 57 (artigo 3.º da Lei n.º 3/2002). Da notificação escrita devem constar os seguintes elementos: - cópia do pedido e dos documentos anexos (artigo 7.º, nº 1, alínea 1)); - matéria em relação à qual é solicitada a cooperação e o sumário dos respectivos factos relevantes, incluindo as designações das entidades requerente e requerida, o nome e outros elementos de identificação das partes e o sumário do caso (artigo 7.º, nº 1, alínea 2)); - parecer fundamentado sobre a aceitação do pedido, no caso de a RAEM tratar de pedido dirigido por autoridades estrangeiras (artigo 7.º, nº 1, alínea 3)); - objectos a entregar e data do trânsito referido no pedido de trânsito, conforme o caso, quando se trate de pedido de entrega de infractor em fuga e do seu trânsito, dirigido por autoridades estrangeiras (artigo 7.º, nº 1, alínea 4)); - indicação dos países ou territórios, tempo e percurso, envolvidos no pedido de trânsito, no caso de as autoridades competentes da RAEM dirigirem pedido de entrega de infractor em fuga e do seu trânsito às autoridades estrangeiras (artigo 7.º, nº 1, alínea 5)). Em princípio, poder-se-ia entender este dever de notificação junto do GPC como uma mera formalidade; todavia, não se trata apenas de uma mera formalidade porquanto em determinadas circunstâncias o GPC pode emitir instruções. Dispõe o artigo 4.º, nº 1, que, com fundamento em assuntos de defesa nacional, relações externas,

57

Artigo 45.º da LB.

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Ilda Cristina Ferreira

soberania, segurança ou ordem pública do Estado 58, ou seja quando estão em causa o interesse e a integridade nacional, pode o GPC emitir instruções quanto à aceitação de um determinado pedido de cooperação judiciária, inter alia, entrega de infractor em fuga. Estas instruções devem ser comunicadas por escrito ao Chefe do Executivo, que por sua vez emite um despacho 59, em conformidade, para as autoridades competentes da RAEM (nº 2 do mesmo artigo) 60. Se no prazo de 15 dias 61, o GPC nada disser, o Chefe do Executivo comunicará tal facto às autoridades competentes da RAEM, que, depois de informadas, tratam, por si mesmas, em conformidade com a lei, do pedido de entrega de infractor em fuga (artigo 5.º). VII. Conclusões 1) O instituto da extradição constitui o mais antigo e tradicional instrumento de cooperação internacional entre Estados soberanos; 2) A RAEM goza de um estatuto jurídico-político sui generis e de uma autonomia externa mitigada que lhe permite inter alia, ser parte em tratados de direito internacional não reservados a Estados soberanos, designadamente, a celebrar acordos de cooperação judiciária em matéria penal, desde que com o apoio e autorização do GPC;

Articular com artigos 13.º, 14.º e 18.º da LB. O despacho do Chefe do Executivo referido no artigo 4.º não é susceptível de impugnação, nem cabe recurso da decisão tomada pelas autoridades competentes nos termos daquele despacho (artigo 8.º). 60 Por exemplo, para a Convenção de Palermo, a autoridade competente é a Secretária para a Administração e Justiça que posteriormente encaminhará o processo para as autoridades locais competentes. 61 Aviso do Chefe do Executivo n.º 19/2002, Boletim Oficial da RAEM n.º 9, de 5 de Março. 58 59

292

Aspectos Polémicos da Extradição

3) Dado o seu estatuto não-soberano, houve que dotar a RAEM de um instituto análogo ao da extradição; 4) A Lei da Cooperação Judiciária em Matéria Penal criou, assim, o instituto da “Entrega de infractores em fuga”; 5) A Lei da Cooperação e o instituto da entrega de infractores em fuga

adoptaram

os

princípios

gerais

fundamentais

internacionalmente reconhecidos na esfera da cooperação judiciária em matéria penal e no âmbito da extradição; 6) Tal significa, em termos de convenções internacionais aplicáveis na RAEM que as disposições relativas à extradição devem

ser

aplicáveis

com

as

devidas

adaptações

ao

ordenamento jurídico da RAEM, ou seja, ao regime previsto para o instituto da entrega de infractores em fuga; 7) A execução de um pedido de entrega de infractores em fuga, na ausência de convenção internacional ou acordo bilateral obedece a uma série de princípios, dispositivos legais e procedimentos, alguns específicos dada a natureza jurídicopolítica da RAEM outros de clara inspiração internacional.

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PARTE III

DOCUMENTOS RELEVANTES: Extradição

I. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE CABO VERDE (EXTRACTO)

Artigo 37º (Extradição) 1. Não é admitida a extradição de cidadão cabo-verdiano, o qual pode responder perante os tribunais caboverdianos pelos crimes cometidos no estrangeiro. 2. É admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida, determinada por autoridade judicial caboverdiana, nos termos do Direito Internacional e da lei. 3. Não é, porém, admitida a extradição de estrangeiro ou apátrida:

a) Por motivos políticos ou religiosos ou por delito de opinião; b) Por crimes a que corresponda na lei do Estado requisitante pena de morte, de prisão perpétua ou de lesão irreversível de integridade física; c) Sempre que, fundadamente, se admita que o extraditando possa vir a ser sujeito a tortura, tratamento desumano, degradante ou cruel.

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II. CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE ÂMBITO UNIVERSAL QUE VINCULAM CABO VERDE

A) CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA O TRÁFICO ILÍCITO DE ESTUPEFACIENTES E SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS (Resolução n.º 71/IV/94, de 19 de Outubro, I Série, Boletim Oficial n.º 34, Suplemento) [...]

Artigo 2.º Âmbito da Convenção 1. O objectivo da presente Convenção é o de promover a cooperação entre as Partes a fim de que possam fazer face, de forma mais eficaz, aos diversos aspectos do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas de âmbito internacional. No cumprimento das obrigações decorrentes da presente Convenção, as Partes adoptam todas as medidas necessárias, incluindo medidas legislativas e administrativas, em conformidade

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com os princípios fundamentais dos respectivos sistemas jurídicos internos. 2. As Partes cumprem as obrigações decorrentes da presente Convenção de forma compatível com os princípios de igualdade, de soberania e de integridade territorial dos Estados e de não ingerência nos assuntos internos de outros Estados. 3. As Partes não exercem no território de uma outra Parte competência ou funções exclusivamente reservadas às autoridades dessa Parte de acordo com o respectivo direito interno. […]

Artigo 6.º Extradição 1. O presente artigo aplica-se às infracções estabelecidas pelas Partes de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º. 2. As infracções a que o presente artigo se aplica consideram-se incluídas de pleno direito em todos os tratados de extradição em vigor entre as Partes como infracções que dão lugar a extradição. As Partes

Aspectos Polémicos da Extradição

comprometem-se a incluir tais infracções como infracções que dão lugar a extradição em todos os tratados de extradição que venham a celebrar entre si. 3. Se uma Parte, que subordina a extradição à existência de um tratado, receber um pedido de extradição de uma outra Parte à qual não se encontra vinculada por nenhum tratado de extradição, pode considerar a presente Convenção como a base jurídica da extradição em relação às infracções a que o presente artigo se aplica. As Partes que careçam de legislação detalhada para poderem utilizar a presente Convenção como a base jurídica da extradição devem considerar a promulgação da legislação necessária. 4. As Partes que não subordinam a extradição à existência de um tratado reconhecem as infracções a que o presente artigo se aplica como infracções que dão lugar a extradição entre si. 5. A extradição está subordinada às condições previstas na lei da Parte requerida ou nos tratados de extradição aplicáveis, incluindo os motivos pelos quais a Parte requerida pode recusar a extradição. 6. Ao examinar os pedidos recebidos em conformidade com o presente artigo, o Estado requerido pode recusar dar-lhes cumprimento quando existam fundadas razões que levem as suas autoridades judiciárias ou outras autoridades competentes a concluir que a extradição facilitaria a perseguição ou a punição de uma pessoa em virtude da sua raça, religião, nacionalidade ou convicções políticas, ou que a situação dessa pessoa poderia ser prejudicada por qualquer dessas razões.

7. As Partes devem esforçar-se por acelerar os processos de extradição e simplificar os requisitos em matéria de prova relativos a esses processos no que se refere às infracções a que o presente artigo se aplica. 8. Sob reserva das disposições do seu direito interno e dos tratados de extradição que tiver celebrado, a Parte requerida pode, depois de se certificar de que as circunstâncias o justificam e existe urgência, e a pedido da Parte requerente, proceder à detenção da pessoa cuja extradição é solicitada e que se encontre no seu território ou adoptar outras medidas adequadas para assegurar a sua comparência no processo de extradição. 9. Sem prejuízo do exercício de qualquer competência penal estabelecida de acordo com o seu direito interno, a Parte no território da qual se encontre o presumível agente deve: a) Se não o extraditar por uma infracção estabelecida de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º, por se verificar algum dos fundamentos previstos na alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º, submeter o caso às suas autoridades competentes para promover o processo penal, a menos que haja acordado de outro modo com a Parte requerente; b) Se não o extraditar por essa infracção e se tiver estabelecido competência em relação a essa infracção de acordo com a alínea b) do n.º 2 do artigo 4.º, submeter o caso às suas autoridades competentes para o exercício da acção penal, salvo se a Parte requerente solicitar coisa diversa a fim de preservar a respectiva competência.

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10. Se a extradição, pedida para fins de cumprimento de uma pena, for recusada pelo facto de a pessoa reclamada ser um nacional da Parte requerida, esta, se a sua lei o permitir e de acordo com os requisitos dessa lei, a pedido da Parte requerente, considera a possibilidade de dar execução à pena imposta ao abrigo da lei da Parte requerente ou da parte da pena ainda por cumprir. 11. As Partes devem procurar celebrar acordos bilaterais e multilaterais, a fim de permitir a extradição ou aumentar a sua eficácia. 12. As Partes podem considerar a possibilidade de celebrar acordos bilaterais ou multilaterais sobre pontos específicos ou de carácter geral, relativos à transferência para o seu país de pessoas condenadas a penas de prisão ou a outras penas privativas de liberdade por infracções a que o presente artigo se aplica, a fim de que elas aí possam cumprir o resto das suas penas. […] Feita em Viena, a 20 de Dezembro de 1988, num exemplar único.

B) CONVENÇÃO CONTRA A TORTURA E OUTRAS PENAS OU TRATAMENTOS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES (Lei n.º 44/IV/92, de 9 de Abril, I Série, Boletim Oficial n.º 14, 3.º Suplemento) 300

[…]

Artigo 3.º 1. Nenhum Estado parte expulsará, entregará ou extraditará uma pessoa para um outro Estado quando existam motivos sérios para crer que possa ser submetida a tortura. 2. A fim de determinar da existência de tais motivos, as autoridades competentes terão em conta todas as considerações pertinentes, incluindo, eventualmente, a existência no referido Estado de um conjunto de violações sistemáticas, graves, flagrantes ou massivas dos direitos do homem. […]

Artigo 8.º 1. As infracções previstas no artigo 4.º serão consideradas incluídas em qualquer tratado de extradição existente entre os Estados partes. Estes comprometem-se a incluir essas infracções em qualquer tratado de extradição que venha a ser concluído entre eles. 2. Sempre que a um Estado parte que condiciona a extradição à existência de um tratado for apresentado um pedido de extradição por um outro Estado parte com o qual não tenha celebrado qualquer tratado de extradição, esse Estado pode considerar a presente Convenção como base jurídica da extradição relativamente a essas infracções. A extradição ficará sujeita às demais condições previstas pela legislação do Estado requerido. 3. Os Estados partes que não condicionam a extradição à existência de um tratado deverão reconhecer essas infracções como casos de extradição entre eles nas condições

Aspectos Polémicos da Extradição

previstas pela legislação do Estado requerido.

presença dessa pessoa para fins de procedimento criminal ou extradição.

4. Para fins de extradição entre os Estados partes, tais infracções serão consideradas como tendo sido cometidas tanto no local da sua perpetração como no território sob jurisdição dos Estados cuja competência deve ser estabelecida ao abrigo do n.º 1 do artigo 5.º

3. Qualquer pessoa relativamente à qual as medidas referidas no n.º 2 forem tomadas terá o direito de:

C) CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A SUPRESSÃO DO FINANCIAMENTO DO TERRORISMO (Resolução n.º 38/VI/2002, de 22 de Abril, I Série, Boletim Oficial n.º 11) […]

Artigo 9.º 1. Ao receber a informação de que o autor ou o presumível autor de uma infracção prevista no artigo 2.º, se encontra no seu território, o Estado Contratante em causa tomará as medidas que entender necessárias, nos termos do seu direito interno, para proceder à investigação dos factos constantes da informação. 2. Se considerar que as circunstâncias o justificam, o Estado Contratante em cujo território o autor ou o presumível autor da infracção se encontra tomará medidas apropriadas, nos termos do seu direito interno, de modo a garantir a

a) Comunicar, sem demora, com o mais próximo representante qualificado do Estado de que seja nacional ou que, por outro motivo, deva proteger os direitos dessa pessoa ou, tratando-se de um apátrida, do Estado em cujo território resida habitualmente; b) Receber a visita de representante desse Estado;

um

c) Ser informada dos direitos que lhe assistem nos termos das alíneas a) e b). 4. Os direitos referidos no n.º 3 serão exercidos em conformidade com as leis e regulamentos do Estado em cujo território o autor ou presumível autor da infracção se encontrar, considerando-se, no entanto, que as referidas disposições deverão permitir a prossecução plena dos objectivos relativamente aos quais os direitos são concedidos nos termos do n.º 3. 5. O disposto nos n.ºs 3 e 4 do presente artigo não prejudicará o direito de qualquer Estado que reclame a sua competência em conformidade com o artigo 7.º, n.º 1, alínea b), ou n.º 2, alínea b), de solicitar ao Comité Internacional da Cruz Vermelha que entre em contacto com o presumível autor do crime e o visite. 6. Sempre que um Estado Contratante tiver detido uma pessoa nos termos do presente artigo, deverá dar imediatamente conhecimento da detenção e das circunstâncias que a justificam, directamente ou através do

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Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, aos Estados Contratantes que tenham estabelecido a sua competência em conformidade com o artigo 17.º, n.ºs 1 ou 2, e, se assim o entender, a quaisquer outros Estados Contratantes interessados. O Estado que procede à investigação referida no n.º 1 informará, sem demora, os Estados Contratantes das suas conclusões e indicará se pretende exercer a sua jurisdição.

Artigo 10.º 1. Nos casos em que o disposto no artigo 7.º for aplicável, o Estado Contratante em cujo território o presumível autor se encontra ficará obrigado, se não o extraditar, a submeter o caso, sem atraso injustificado e independentemente do crime ter sido cometido ou não no seu território, às suas autoridades competentes para fins de exercício da acção penal, segundo o processo previsto nas leis desse Estado. Tais autoridades tomarão a sua decisão nas mesmas condições que para qualquer outro crime grave, nos termos do direito interno desse Estado. 2. Se o direito interno de um Estado Contratante só lhe permitir extraditar ou entregar um dos seus nacionais na condição de a pessoa em causa lhe ser restituída para fins de cumprimento da pena imposta em consequência do julgamento ou do processo relativamente ao qual a extradição ou a entrega era solicitada, e se este Estado e o Estado requerente consentirem nesta fórmula e noutros termos que entendam apropriados, a extradição ou a entrega condicional será condição suficiente para a

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dispensa da obrigação consignada no n.º 1.

Artigo 11.º 1. Os crimes previstos no artigo 2.º serão considerados como crimes passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição celebrado entre Estados Contratantes antes da entrada em vigor da presente Convenção. Os Estados Contratantes comprometemse a considerar tais crimes como passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição a ser subsequentemente celebrado entre eles. 2. Se um Estado Contratante, que condiciona a extradição à existência de um tratado, receber um pedido de extradição formulado por outro Estado Contratante com o qual não tenha qualquer tratado de extradição, o Estado Contratante requerido poderá, se assim o entender, considerar a presente Convenção como a base jurídica para a extradição relativamente aos crimes previstos no artigo 2.º A extradição ficará sujeita às restantes condições previstas pelo direito interno do Estado requerido. 3. Os Estados Contratantes que não condicionem a extradição à existência de um tratado reconhecerão os crimes previstos no artigo 2.º como passíveis de extradição nas condições previstas pelo direito interno do Estado requerido. 4. Se for caso disso, os crimes previstos no artigo 2.º serão considerados, para fins de extradição entre Estados Contratantes, como se tivessem sido cometidos tanto no local em que ocorreram como no território dos Estados que tenham estabelecido a sua competência, em conformidade com o artigo 7.º, n.ºs 1 e 2.

Aspectos Polémicos da Extradição

5. As disposições contidas em todos os tratados e acordos de extradição celebrados entre Estados Contratantes, relativamente a crimes previstos no artigo 2.º, serão consideradas como modificadas nas relações entre os Estados Contratantes na medida em que se mostrem incompatíveis com a presente Convenção.

Artigo 12.º 1. Os Estados Contratantes concederse-ão a mais ampla cooperação no tocante a investigações ou procedimentos criminais ou de extradição instaurados relativamente a crimes previstos no artigo 2.º, incluindo a disponibilização de meios probatórios necessários para o processo. 2. Os Estados Contratantes não podem invocar o sigilo bancário para recusar um pedido de auxílio judiciário mútuo. 3. A Parte requerente não comunica nem utiliza sem o consentimento prévio da Parte requerida as informações ou as provas que esta lhe tiver fornecido para qualquer outra investigação, procedimento criminal ou processo diferentes dos indicados no pedido. 4. Cada Estado Contratante poderá considerar a possibilidade de estabelecer mecanismos de partilha com os outros Estados Contratantes das informações ou das provas necessárias à determinação da responsabilidade penal, civil ou administrativa, nos termos do artigo 5.º. 5. Os Estados Contratantes cumprirão as respectivas obrigações decorrentes dos n.ºs 1 e 2, em conformidade com quaisquer

tratados ou outros convénios sobre auxílio judiciário mútuo ou sobre troca de informações que possam existir entre si. Na falta de tais tratados ou convénios, os Estados Contratantes cooperarão entre si em conformidade com os respectivos direitos internos.

Artigo 13.º Nenhuma das infracções previstas no artigo 2.º será considerada, para fins de extradição ou de auxílio judiciário mútuo, como infracção fiscal. Consequentemente, os Estados Contratantes não poderão recusar um pedido de extradição ou de auxílio judiciário mútuo com o exclusivo fundamento de que se reporta a uma infracção fiscal.

Artigo 14.º Nenhuma das infracções previstas no artigo 2.º será considerada, para fins de extradição ou de auxílio judiciário mútuo, como crime político ou crime conexo a crime político, ou ainda como crime inspirado em motivos políticos. Consequentemente, nenhum pedido de extradição ou de auxílio judiciário mútuo baseado em tal crime poderá ser recusado com o exclusivo fundamento de que se reporta a um crime político ou a um crime conexo a um crime político, ou ainda a um crime inspirado por motivos políticos.

Artigo 15.º Nada na presente Convenção poderá ser interpretado como impondo uma obrigação de extraditar ou de conceder auxílio judiciário mútuo se o Estado Contratante requerido tiver sérios motivos para crer que o pedido de extradição por crimes previstos no artigo 2.º, ou o pedido de auxílio judiciário mútuo relativo a tais crimes, foi formulado com o propósito de

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exercer a acção penal ou punir qualquer pessoa com base na raça, religião, nacionalidade, origem étnica ou opinião política, ou tiver razões para crer que a satisfação do pedido poderá prejudicar a situação da pessoa em causa por qualquer destas razões.

Artigo 16.º 1. Qualquer pessoa que se encontre detida ou a cumprir pena no território de um Estado Contratante cuja presença noutro Estado Contratante for solicitada para fins de prestação de depoimento, identificação ou para, de outro modo, auxiliar na obtenção de meios probatórios necessários à investigação ou a procedimentos instaurados em relação a infracções previstas no artigo 2.º poderá ser transferida se forem observadas as seguintes condições: a) A pessoa der livremente o seu consentimento com conhecimento de causa; e b) As autoridades competentes de ambos os Estados nela consentirem, sob reserva das condições que considerem apropriadas. 2. Para os fins do presente artigo: a) O Estado para o qual a pessoa for transferida terá o poder e a obrigação de manter a pessoa em causa sob custódia, salvo solicitação ou autorização em contrário do Estado do qual a pessoa foi transferida; b) O Estado para o qual a pessoa for transferida deverá, sem demora, executar a sua obrigação de reentregar a pessoa à guarda do Estado a partir do qual a transferência foi efectuada, segundo acordo prévio ou conforme acordado

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de outro modo pelas autoridades competentes de ambos os Estados; c) O Estado para o qual a pessoa for transferida não requererá ao Estado que a transferiu que desencadeie o processo de extradição da pessoa em causa; d) Será tido em consideração o período em que a pessoa em causa permaneceu sob detenção no Estado para onde foi transferida, para fins de liquidação da pena ainda a cumprir no Estado de onde fora transferida. 3. Excepto se o Estado Contratante do qual a pessoa for transferida, em conformidade com o presente artigo, nisso consentir, tal pessoa, independentemente da sua nacionalidade, não será sujeita a procedimento ou detenção nem será sujeita a qualquer outra privação da sua liberdade no território do Estado para o qual for transferida relativamente a actos ou condenações anteriores à sua saída do território do Estado do qual for transferida.

Artigo 17.º Será garantido tratamento justo a qualquer pessoa detida, ou contra a qual foram tomadas quaisquer outras medidas ou instaurados processos em conformidade com a presente Convenção, incluindo o reconhecimento de todos os direitos e garantias conformes com o direito interno do Estado em cujo território se encontre, bem como das disposições aplicáveis no âmbito do direito internacional, incluindo o direito internacional em matéria de direitos humanos.

Aspectos Polémicos da Extradição

D) CONVENÇÃO INTERNACIONAL PARA A REPRESSÃO DE ATENTADOS TERRORISTAS À BOMBA (Resolução n.º 36/VI/2002, de 22 de Abril, I Série, Boletim Oficial n.º 11) […]

Artigo 3.º A presente Convenção não será aplicável nos casos em que o crime for cometido no território de um só Estado, o presumível autor e as vítimas forem nacionais desse Estado, o presumível autor for encontrado no território desse Estado e nenhum outro Estado tiver motivos para, nos termos do artigo 6.º, n.ºs 1 ou 2, da presente Convenção, exercer a sua competência; contudo, os artigos 10.º a 15.º serão aplicáveis a tais casos, conforme se mostrar apropriado. […]

Artigo 8.º 1. Nos casos em que o disposto no artigo 6.º for aplicável, o Estado Parte em cujo território o presumível autor se encontra ficará obrigado, se o não extraditar, a submeter o caso, sem atraso injustificado e independentemente do crime ter sido cometido, ou não, no seu território, às suas autoridades competentes para fins de exercício da acção penal, segundo o processo previsto nas leis desse Estado. Tais autoridades tomarão a sua decisão nas mesmas condições que para qualquer outro

crime grave, nos termos do direito interno desse Estado. 2. Se o direito interno de um Estado Parte só lhe permitir extraditar ou entregar um dos seus nacionais, na condição de a pessoa em causa lhe ser restituída para fins de cumprimento da pena imposta em consequência do julgamento ou do processo relativamente ao qual a extradição ou a entrega era solicitada, e se este Estado e o Estado requerente consentirem nesta fórmula e noutros termos que entendam apropriados, a extradição ou a entrega condicional será condição suficiente para a dispensa da obrigação consignada no n.º 1.

Artigo 9.º 1. Os crimes previstos no artigo 2.º serão considerados como crimes passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição celebrado entre Estados Partes antes da entrada em vigor da presente Convenção. Os Estados Partes comprometem-se a considerar tais crimes como passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição a ser subsequentemente celebrado entre eles. 2. Se um Estado Parte, que condiciona a extradição à existência de um tratado, receber um pedido de extradição formulado por outro Estado Parte com o qual não tenha qualquer tratado de extradição, o Estado Parte requerido poderá, se assim o entender, considerar a presente Convenção como a base jurídica para a extradição relativamente aos crimes previstos no artigo 2.º A extradição ficará sujeita às restantes condições previstas pelo direito interno do Estado requerido.

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3. Os Estados Partes que não condicionem a extradição à existência de um tratado reconhecerão os crimes previstos no artigo 2.º como passíveis de extradição nas condições previstas pelo direito interno do Estado requerido. 4. Se for caso disso, os crimes previstos no artigo 2.º serão considerados, para fins de extradição entre Estados Partes, como se tivessem sido cometidos tanto no local em que ocorreram como no território dos Estados que tenham estabelecido a sua competência, em conformidade com o artigo 6.º, n.os 1 e 2. 5. As disposições contidas em todos os tratados e acordos de extradição celebrados entre Estados Partes relativamente a crimes previstos no artigo 2.º serão consideradas como modificadas nas relações entre os Estados Partes, na medida em que se mostrem incompatíveis com a presente Convenção.

Artigo 10.º 1. Os Estados Partes conceder-se-ão a mais ampla cooperação no tocante a investigações ou procedimentos criminais ou de extradição instaurados relativamente a crimes previstos no artigo 2.º, incluindo a disponibilização de meios probatórios necessários para o processo. 2. Os Estados Partes cumprirão as respectivas obrigações decorrentes do n.º 1, em conformidade com quaisquer tratados ou outros convénios sobre cooperação judiciária que possam existir entre si. Na falta de tais tratados ou convénios, os Estados Partes cooperarão entre si em conformidade com os respectivos direitos internos.

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Artigo 11.º Nenhum dos crimes previstos no artigo 2.º será considerado, para fins de extradição ou de cooperação judiciária mútua, como crime político ou crime conexo a crime político, ou ainda como crime inspirado em motivos políticos. Consequentemente, nenhum pedido de extradição ou de cooperação judiciária mútua baseado em tal crime poderá ser recusado com o fundamento de que se reporta a um crime político ou a um crime conexo a um crime político, ou ainda a um crime inspirado por motivos políticos.

Artigo 12.º Nada na presente Convenção poderá ser interpretado como impondo uma obrigação de extraditar ou de conceder cooperação judiciária mútua, se o Estado Parte requerido tiver sérios motivos para crer que o pedido de extradição por crimes previstos no artigo 2.º, ou o pedido de cooperação judiciária mútua relativa a tais crimes, foi formulado com o propósito de exercer a acção penal ou punir qualquer pessoa com base na raça, religião, nacionalidade, origem étnica ou opinião política, ou tiver razões para crer que a satisfação do pedido poderá prejudicar a situação da pessoa em causa por qualquer uma destas razões. […] Em fé do que os abaixo assinados, devidamente autorizados para o efeito pelos respectivos Governos, assinaram a presente Convenção, aberta à assinatura em Nova Iorque, em 12 de Janeiro de 1998.

Aspectos Polémicos da Extradição

E) CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL (Resolução n.º 92/VI/2004, de 31 de Maio, I Série, Boletim Oficial n.º 16) Artigo 1º Objecto A presente Convenção tem como objecto promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional.

[...] Artigo 16º Extradição 1. O presente artigo aplica-se às infracções abrangidas pela presente Convenção ou nos casos em que um grupo criminoso organizado esteja implicado numa infracção prevista nas alíneas a) ou b) do nº 1 do artigo 3º e em que a pessoa que é objecto do pedido de extradição se encontre no Estado Parte requerido, desde que a infracção pela qual é pedida a extradição seja punível pelo direito interno do Estado Parte requerente e do Estado Parte requerido. 2. Se o pedido de extradição for motivado por várias infracções graves distintas, algumas das quais não se encontrem previstas no presente artigo, o Estado Parte requerido pode igualmente aplicar o presente artigo às referidas infracções. 3. Cada uma das infracções às quais se aplica o presente artigo será

considerada incluída, de pleno direito, entre as infracções que dão lugar a extradição em qualquer tratado de extradição em vigor entre os Estados Partes. Os Estados Partes comprometem-se a incluir estas infracções entre aquelas cujo autor pode ser extraditado em qualquer tratado de extradição que celebrem entre si. 4. Se um Estado Parte que condicione a extradição à existência de um tratado receber um pedido de extradição de um Estado Parte com o qual não celebrou tal tratado, poderá considerar a presente Convenção como fundamento jurídico da extradição quanto às infracções a que se aplique o presente artigo. 5. Os Estados Partes que condicionem a extradição à existência de um tratado: a) No momento do depósito do seu instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão à presente Convenção, indicarão ao Secretário Geral da Organização das Nações Unidas se consideram a presente Convenção como fundamento jurídico para a cooperação com outros Estados Partes em matéria de extradição; e b) Se não considerarem a presente Convenção como fundamento jurídico para cooperar em matéria de extradição, diligenciarão, se necessário, pela celebração de tratados de extradição com outros Estados Partes, a fim de darem aplicação ao presente artigo. 6. Os Estados Partes que não condicionem a extradição à existência de um tratado reconhecerão entre si, às infracções às quais se aplica o

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presente artigo, o carácter de infracção cujo autor pode ser extraditado. 7. A extradição estará sujeita às condições previstas no direito interno do Estado Parte requerido ou em tratados de extradição aplicáveis, incluindo, nomeadamente, condições relativas à pena mínima requerida para uma extradição e aos motivos pelos quais o Estado Parte requerido pode recusar a extradição. 8. Os Estados Partes procurarão, sem prejuízo do seu direito interno, acelerar os processos de extradição e simplificar os requisitos em matéria de prova com eles relacionados, no que se refere às infracções a que se aplica o presente artigo. 9. Sem prejuízo do disposto no seu direito interno e nos tratados de extradição que tenha celebrado, o Estado Parte requerido poderá, a pedido do Estado Parte requerente, se considerar que as circunstâncias o justificam e que existe urgência, ordenar a detenção de uma pessoa, presente no seu território, cuja extradição é pedida, ou tomar quaisquer outras medidas apropriadas para assegurar a sua presença no processo de extradição. 10. Se um Estado Parte em cujo território se encontre o presumível autor de uma infracção, à qual se aplica o presente artigo, o não extraditar, tendo como único motivo o facto de se tratar de um seu cidadão, deverá, a pedido do Estado Parte requerente da extradição, submeter o caso, sem demora excessiva, às suas autoridades competentes para efeitos de procedimento judicial. Estas autoridades tomarão a sua decisão e seguirão os trâmites do processo da

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mesma forma que o fariam em relação a qualquer outra infracção considerada grave, à luz do direito interno deste Estado Parte. Os Estados Partes interessados cooperarão entre si, nomeadamente em matéria processual e probatória, para assegurar a eficácia dos referidos actos judiciais. 11. Quando um Estado Parte, por força do seu direito interno, apenas estiver autorizado a extraditar ou, por qualquer outra forma, entregar um dos seus cidadãos na condição de que essa pessoa seja restituída ao mesmo Estado Parte para cumprir a pena a que tenha sido condenada na sequência do processo ou do procedimento que originou o pedido de extradição ou de entrega, e quando este Estado Parte e o Estado Parte requerente concordarem em relação a essa opção e a outras condições que considerem apropriadas, a extradição ou entrega condicional será suficiente para dar cumprimento à obrigação contida no nº 10 do presente artigo. 12. Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa objecto deste pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir e em conformidade com as prescrições deste direito e a pedido do Estado Parte requerente, considerará a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao tempo que dessa pena faltar cumprir. 13. A qualquer pessoa que seja objecto de um processo respeitante a uma das infracções às quais se aplica o presente artigo será garantido um tratamento equitativo em todas as fases do processo, incluindo o gozo de todos os

Aspectos Polémicos da Extradição

direitos e garantias previstos no direito interno do Estado Parte em cujo território se encontra. 14. Nenhuma disposição da presente Convenção deverá ser interpretada no sentido de que impõe uma obrigação de extraditar a um Estado Parte requerido, se existirem sérias razões para supor que o pedido foi apresentado com a finalidade de perseguir ou punir uma pessoa em razão do seu sexo, raça, religião, nacionalidade, origem étnica ou opiniões políticas, ou que a satisfação daquele pedido provocaria um prejuízo a essa pessoa por alguma destas razões. 15. Os Estados Partes não poderão recusar um pedido de extradição tendo por único motivo o facto de a infracção envolver também questões fiscais. 16. Antes de recusar a extradição, o Estado Parte requerido consultará, se for caso disso, o Estado Parte requerente, a fim de lhe dar a mais ampla possibilidade de apresentar os motivos e de fornecer as informações em que estes se baseiam. 17. Os Estados Partes procurarão celebrar acordos bilaterais ou multilaterais com o objectivo de permitir a extradição ou de aumentar a sua eficácia. [....]

F) CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO (Resolução n.º 31/VII/2007, de 23 de Março, I Série, Boletim Oficial n.º 11, 4.º Suplemento) [....]

Capítulo I Disposições gerais Artigo 1º Objecto A presente objecto:

Convenção

tem

por

(a) Promover e reforçar as medidas que visam prevenir e combater de forma mais eficaz a corrupção; (b) Promover, facilitar e apoiar a cooperação internacional e a assistência técnica em matéria de prevenção e de luta contra a corrupção, incluindo a recuperação de activos; (c) Promover a integridade, a responsabilidade e a boa gestão dos assuntos e bens públicos.

[...] Artigo 3º Âmbito de aplicação 1. A presente Convenção aplica-se, em conformidade com as suas disposições, à prevenção, à investigação e à repressão da corrupção bem como ao congelamento, à apreensão, à perda e à restituição do produto das infracções estabelecidas na presente Convenção. 2. Salvo disposição em contrário, para efeitos da aplicação da presente

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Convenção, não é necessário que as infracções nela previstas causem danos ou prejuízos aos bens públicos.

[...] Capítulo IV Cooperação internacional Artigo 43º Cooperação internacional 1. Os Estados Partes deverão cooperar em matéria penal de acordo com o disposto nos artigos 44º a 50º da presente Convenção. Quando apropriado e em conformidade com o seu sistema jurídico interno, os Estados Partes deverão considerar a concessão de assistência mútua na investigação e em procedimentos relativos a assuntos civis e administrativos relacionados com a corrupção. 2. Em matéria de cooperação internacional, sempre que a dupla incriminação é considerada um requisito, este deverá considerar-se cumprido, independentemente do direito interno do Estado Parte requerido e do Estado Parte requerente subsumir a infracção na mesma categoria de infracções ou a tipificar com a mesma terminologia, se o comportamento que constitui a infracção relativamente à qual foi efectuado o pedido de auxílio, for qualificado como infracção penal pelo direito interno dos dois Estados Partes.

Artigo 44º Extradição 1. O presente artigo deverá aplicar-se às infracções estabelecidas em conformidade com a presente Convenção no caso em que a pessoa que é objecto do pedido de extradição se encontre no Estado Parte

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requerido, desde que a infracção pela qual é pedida a extradição seja punível pelo direito interno do Estado Parte requerente e pelo do Estado Parte requerido. 2. Não obstante o disposto no n.° 1 do presente artigo, um Estado Parte cuja lei o permita, poderá conceder a extradição de uma pessoa por qualquer uma das infracções previstas na presente Convenção que não sejam puníveis pelo seu direito interno. 3. Se o pedido de extradição for motivado por várias infracções distintas, das quais pelo menos uma é passível de extradição em virtude do presente artigo e algumas não o são, devido ao tempo de prisão que acarretam, mas estão relacionadas com infracções estabelecidas de acordo com a presente Convenção, o Estado Parte requerido poderá igualmente aplicar o presente artigo às referidas infracções. 4. Cada uma das infracções às quais se aplica o presente artigo deverá ser considerada como uma das infracções passíveis de extradição a ser incluída em qualquer tratado de extradição em vigor entre os Estados Partes. Os Estados Partes comprometem-se a incluir essas infracções como infracções passíveis de extradição em qualquer tratado de extradição que possam vir a celebrar entre si. Um Estado Parte cuja lei o permita e que utilize a presente Convenção como base para a extradição, não deverá considerar nenhuma das infracções estabelecidas de acordo com a presente Convenção como uma infracção política. 5. Se um Estado Parte, que condicione a extradição à existência de um tratado, receber um pedido de extradição de um Estado Parte com o

Aspectos Polémicos da Extradição

qual não celebrou nenhum tratado de extradição, poderá considerar a presente Convenção como fundamento jurídico da extradição quanto às infracções a que se aplique o presente artigo. 6. O Estado Parte que condicione a extradição à existência de um tratado: (a) Deverá no momento do depósito do seu instrumento de ratificação, de aceitação, de aprovação ou de adesão à presente Convenção, informar o Secretário-Geral das Nações Unidas se considera a presente Convenção como fundamento jurídico para a cooperação com outros Estados Partes em matéria de extradição; e (b) Se não considerar a presente Convenção como fundamento jurídico para a cooperação em matéria de extradição, procurar, se necessário, celebrar tratados de extradição com outros Estados Partes, a fim de aplicar o presente artigo. 7. Os Estados Partes que não condicionem a extradição à existência de um tratado deverão, entre si, considerar as infracções às quais se aplica o presente artigo, como infracções passíveis de extradição. 8. A extradição deverá estar sujeita às condições previstas no direito interno do Estado Parte requerido ou em tratados de extradição aplicáveis, incluindo, nomeadamente, condições relativas à pena mínima requerida para uma extradição e aos motivos pelos quais o Estado Parte requerido pode recusar a extradição. 9. Os Estados Partes deverão, sem prejuízo do seu direito interno, esforçar-se no sentido de acelerar os processos de extradição e simplificar os requisitos com eles relacionados

em matéria de produção de provas, no que se refere às infracções a que se aplica o presente artigo. 10. Sem prejuízo do disposto no seu direito interno e nos tratados de extradição que tenha celebrado, o Estado Parte requerido poderá, a pedido do Estado Parte requerente, se considerar que as circunstâncias o justificam e que existe urgência, ordenar a detenção de uma pessoa, presente no seu território e cuja extradição é pedida, ou adoptar quaisquer outras medidas apropriadas para assegurar a sua presença no processo de extradição. 11. Se um Estado Parte em cujo território se encontre o presumível autor de uma infracção, à qual se aplica o presente artigo, o não extraditar, tendo como único motivo o facto de se tratar de um seu cidadão, deverá, a pedido do Estado Parte requerente, submeter o caso, sem demora excessiva, às suas autoridades competentes para efeitos de procedimento judicial. Essas autoridades deverão tomar a sua decisão e seguir os trâmites do processo da mesma forma que o fariam em relação a qualquer outra infracção considerada grave, à luz do direito interno desse Estado Parte. Os Estados Partes interessados deverão cooperar entre si, nomeadamente em matéria processual e probatória, para assegurar a eficácia dos referidos actos judiciais. 12. Sempre que um Estado Parte, por força do seu direito interno, apenas estiver autorizado a extraditar ou, por qualquer outra forma, entregar um dos seus cidadãos na condição de que essa pessoa seja restituída ao mesmo Estado Parte para cumprir a pena a que tenha sido condenada na

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sequência do processo ou do procedimento que originou o pedido de extradição ou de entrega, e quando este Estado Parte e o Estado Parte requerente concordarem em relação a essa opção e a outras condições que considerem apropriadas, a extradição ou entrega condicional será suficiente para dar cumprimento à obrigação contida no n.º 11 do presente artigo. 13. Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa objecto desse pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir e em conformidade com o estipulado nesse direito, deverá, a pedido do Estado Parte requerente, considerar a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao tempo que dessa pena faltar cumprir. 14. A qualquer pessoa que seja objecto de um processo respeitante a uma das infracções às quais se aplica o presente artigo deverá ser garantido um tratamento equitativo em todas as fases do processo, incluindo o gozo de todos os direitos e garantias previstos no direito interno do Estado Parte em cujo território se encontra. 15. Nenhuma disposição da presente Convenção deverá ser interpretada no sentido de que impõe uma obrigação de extraditar, se o Estado Parte requerido tiver fortes razões para supor que o pedido foi apresentado com o fim de iniciar um procedimento criminal contra ou punir uma pessoa em razão do seu sexo, raça, religião, nacionalidade, origem étnica ou opiniões políticas, ou que a satisfação daquele pedido

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provocaria um prejuízo a essa pessoa por alguma destas razões. 16. Os Estados Partes não poderão recusar um pedido de extradição tendo por único motivo o facto de a infracção envolver também questões fiscais. 17. Antes de recusar a extradição, o Estado Parte requerido deverá, se for caso disso, consultar o Estado Parte requerente, a fim de lhe dar a mais ampla oportunidade de apresentar os motivos e fornecer as informações em que estes se baseiam. 18. Os Estados Partes deverão procurar celebrar acordos ou outros instrumentos jurídicos, bilaterais ou multilaterais, com o objectivo de permitir a extradição ou de aumentar a sua eficácia. [...]

III. CONVENÇÕES INTERNACIONAIS DE ÂMBITO REGIONAL E EQUIPARADO ASSINADAS POR CABO VERDE

A) CONVENÇÃO SOBRE

Artigo 1.º Aprovação

EXTRADIÇÃO ENTRE OS GOVERNOS DOS ESTADOS MEMBROS DA COMUNIDADE ECONÓMICA DOS ESTADOS DA ÁFRICA OCIDENTAL, CEDEAO (Resolução n.º 160/V/2000, de 4 de Setembro, I Série, Boletim Oficial n.º 27)

É aprovada, para efeitos de ratificação, a Convenção sobre a Extradição, assinada entre os Governos dos Estados da África Ocidental em Abuja, aos 06 de Agosto de 1994, cujos textos em línguas portuguesa e francesa acompanham a presente Resolução.

Artigo 2.º Entrada em vigor O presente diploma imediatamente em vigor.

entra

Aprovada em 28 de Março de 2000. Convindo aprovar, para efeitos de ratificação, a Convenção sobre a Extradição assinada entre os Governos dos Estados Membros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental; A Assembleia Nacional vota, nos termos da alínea b) do artigo 178.º do n.º 1 do artigo 260 da Constituição, a seguinte resolução:

Publique-se. O Presidente, António do Espírito Santo Fonseca.

CONVENÇÃO N.º A/P1/8/94 SOBRE A EXTRADIÇÃO PREÂMBULO Os Governos dos Estados Membros da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental,

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Considerando que a busca e a preservação no seio da Comunidade duma atmosfera livre de qualquer ameaça contra a segurança das populações são indispensáveis à realização acelerada da integração em todos os domínios de actividade entre os Estados Membros; Convencidos de que a segurança só pode ser garantida da melhor forma se for possível impedir os malfeitores de encontrar um refúgio que os subtraia à acção da justiça ou à execução de uma pena; Desejosos de concorrer, lado a lado, para a repressão de crimes e delitos sobre o conjunto do território da Comunidade; Decididos, em consequência, a dotar os tribunais nacionais dum instrumento eficaz que permita a prisão, o julgamento e a execução das penas dos delinquentes que fujam do território dum Estado Membro para o território dum outro; Convencionaram o seguinte:

Artigo 1.º Definições Para efeitos de aplicação da presente Convenção, entende-se por: «Comunidade»: a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental visada no artigo 2.º do Tratado. «Estado não membro»: um Estado não-membro da Comunidade que adira à presente Convenção. «Estado Membro»: um Membro da Comunidade.

Estado

«Estado requerente»: um Estado que propôs um pedido de extradição nos termos da presente Convenção.

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«Estado requerido»: um Estado ao qual é endereçado o pedido de extradição nos termos da presente Convenção. «Infracção» ou «Infracções»: o facto ou os factos penalmente puníveis segundo a legislação dos Estados Membros. «Penal»: sanção merecida ou pronunciada em virtude duma infracção penal, incluindo uma pena de prisão. «Secretário Executivo»: o Secretário Executivo da Comunidade nomeado em virtude do artigo 18.º, número 1 do Tratado. «Tratado»: o Tratado Revisto da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental assinado em Cotonou, a 24 de Julho de 1993.

Artigo 2.º Princípio de Extradição 1. Os Estados Membros e as outras partes aderentes comprometem-se a entregar reciprocamente segundo as regras e nas condições determinadas pela presente Convenção os indivíduos que, encontrando-se no território do estado requerido, são processados por uma infracção ou procurados para efeitos de execução duma pena, pelas autoridades judiciárias do Estado requerente. 2. As autoridades competentes do Estado requerente e as do Estado requerido tomarão em consideração o interesse dos menores de dezoito anos de idade no momento do pedido da extradição a estes referente, concertando entre si as medidas mais apropriadas, sempre que estimem que a extradição é de molde a entravar a reintegração social deles.

Aspectos Polémicos da Extradição

Artigo 3.º Condições da Extradição 1. Darão lugar a extradição, sob certas condições, os factos puníveis pelas leis do Estado requerente e do Estado requerido com pena privativa da liberdade mínima de dois anos. Quando uma condenação numa pena tenha sido decretada no território do Estado requerente a extradição só será acordada se a duração da pena restante a purgar for de, pelo menos, seis meses. 2. Se o pedido de extradição respeitar a vários factos distintos puníveis, cada um, pelas leis do Estado requerente e do Estado requerido com uma pena privativa da liberdade, dos quais alguns não preenchem, todavia, as condições da pena estipulada no número 1 do presente artigo, o Estado requerido terá a faculdade de acordar a extradição por estes últimos desde que o indivíduo visado seja extraditado por, pelo menos, um facto que dê lugar a extradição.

Artigo 4.º Infracções Políticas 1. A extradição não será acordada se a infracção pela qual é solicitada for considerada como infracção política ou como infracção em conexão a uma tal infracção. 2. A mesma regra se aplicará se houver razões sérias para recear que o pedido de extradição, motivado muito embora por uma infracção de direito comum, foi apresentado com a finalidade de perseguir ou de punir um indivíduo por considerações de raça, tribo, religião, nacionalidade, opiniões políticas, sexo ou estatuto.

3. A aplicação do presente artigo não afectará as obrigações que os Estados hajam anteriormente assumido ou venham a assumir nos termos da Convenção de Genebra de 12 de Agosto de 1949 e seus protocolos adicionais, assim como de qualquer outra convenção internacional de carácter multilateral.

Artigo 5.º Penas e tratamentos inumanos ou degradantes A extradição não será acordada se o indivíduo cuja extradição é solicitada tiver sido ou seria submetido no Estado requerente a torturas e outras penas ou tratamentos cruéis, inumanos ou degradantes. O mesmo princípio aplica-se quando o indivíduo não beneficiou ou for susceptível de não beneficiar, no decurso de processos penais, das garantias mínimas previstas pelo artigo 7.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos.

Artigo 6.º Considerações humanitárias O Estado requerido poderá recusar a extradição se esta for incompatível com considerações humanitárias relativas à idade ou ao estado de saúde do indivíduo cuja extradição é requerida.

Artigo 7.º Infracções militares A extradição em razão de infracções militares que não constituam infracções de direito comum está excluída do campo de aplicação da presente convenção.

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Artigo 8.º Jurisdição de excepção

informado do destino que for dado ao seu pedido.

A extradição poderá ser recusada se o indivíduo cuja extradição é solicitada foi julgado ou corre o risco de ser julgado ou condenado no Estado requerente por uma jurisdição de excepção.

Artigo 11.º Local da Comissão

Artigo 9º Infracções fiscais Em matéria de taxas, impostos e alfândegas, a extradição será acordada entre os Estados, de conformidade com as disposições da presente Convenção, pelos factos que correspondam, segundo a lei da parte requerida, a uma infracção da mesma natureza, mesmo se a legislação desse Estado não contém o mesmo tipo de regulamentação em matéria de taxas, impostos e alfândegas.

Artigo 10.º Nacionais 1. A extradição dum nacional do estado requerido será deixada à discrição desse Estado. A qualidade de nacional aprecia-se com referência à época da comissão da infracção pela qual a extradição é solicitada. 2. O Estado requerido que não extradite nacional seu deverá, a pedido do estado requerente, submeter a questão às autoridades competentes, a fim de que acções judiciárias possam ser exercidas, se for o caso. Para tanto, os dossiês, informações e objectos relativos à infracção serão transmitidos gratuitamente, seja por via diplomática, seja por qualquer outra via convencionada entre os Estados envolvidos. O Estado requerente será

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1. O Estado requerido pode recusar extraditar o indivíduo reclamado em razão duma infracção que, segundo sua legislação, foi cometida na totalidade ou em parte dentro do seu território ou em local equiparado a seu território. 2. Quando a infracção motivadora do pedido de extradição tiver sido cometida fora do território do Estado requerente a extradição só pode ser recusada se a legislação do Estado requerido não autoriza o processamento por uma infracção do mesmo género cometida fora do seu território, ou não autoriza a extradição pela infracção que constitui o objecto desse pedido.

Artigo 12.º Processo em curso pelos mesmos factos Um Estado requerido pode recusar extraditar um indivíduo reclamado se este indivíduo estiver sujeito, da sua parte, a processos por facto ou factos em razão dos quais a extradição é solicitada.

Artigo 13.º Infracções definitivamente julgadas 1. A extradição não será acordada quando o indivíduo reclamado tenha sido definitivamente julgado pelas autoridades competentes do Estado requerido, por facto ou factos em razão dos quais a extradição é requerida. A extradição poderá ser recusada se as autoridades competentes do Estado Membro requerido decidirem não processar ou

Aspectos Polémicos da Extradição

pôr fim a processos intentados por elas, pelo mesmo facto ou pelos mesmos factos. 2. No caso de novos processos instaurados pelo Estado requerente contra o indivíduo a respeito do qual o Estado requerido tenha posto fim aos respectivos processos em razão de infracção que dá lugar a extradição, qualquer período de detenção preventiva sofrida no Estado requerido será tomado em consideração quando da execução da pena privativa da liberdade a sofrer eventualmente no Estado requerente.

Artigo 14.º Julgamento à Revel 1. Quando um Estado solicitar a outro Estado, a extradição duma pessoa para fins de execução duma pena pronunciada em julgamento à revelia contra esta, o Estado requerido pode recusar extraditá-la para esse efeito, se a seu ver, o processo judicial não tiver satisfeito os direitos mínimos e defesa reconhecidos a qualquer pessoa acusada de uma infracção. Todavia, a extradição será acordada se o Estado requerente der garantias julgadas suficientes para assegurar à pessoa cuja extradição é solicitada o direito a novo processo judicial que salvaguarde os direitos de defesa. Essa decisão autoriza o Estado requerente, seja a executar o julgamento em questão se o condenado não fizer oposição, seja a processar o extraditado no caso contrário. 2. Quando o Estado requerido comunicar à pessoa cuja extradição é solicitada a decisão judicial pronunciada à revelia contra ela, o Estado requerente não considerará essa comunicação como uma notificação que produza efeitos em

relação ao Estado.

processo

penal

neste

Artigo 15.º Prescrição 1. A extradição não será acordada se a prescrição da acção ou da pena está adquirida segundo a legislação seja do Estado requerente seja do Estado requerido, quando da recepção do pedido pelo Estado requerido. 2. Para apreciar se a prescrição da acção ou da pena está legalmente adquirida o Estado requerido tomará em consideração os actos interruptivos e os factos suspensivos de prescrição que hajam intervido no Estado requerente, na medida em que actos e factos da mesma natureza produzem efeitos idênticos no Estado requerido.

Artigo 16.º Amnistia A extradição não será acordada por uma infracção coberta por amnistia no Estado requerido, se este tiver competência para intentar acção por essa infracção segundo sua própria lei penal.

Artigo 17.º Pena capital Se o facto em razão do qual a extradição for solicitada é punível com pena capital pela lei do Estado requerente e que, neste caso, essa pena não é prevista pela legislação do Estado requerido, a extradição não poderá ser acordada.

Artigo 18.º Requerimento e peças de apoio 1. O requerimento será formulado por escrito e endereçado pelo Ministro da Justiça do Estado requerente ao Ministério da Justiça do Estado

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requerido; todavia, a via diplomática não é excluída. Qualquer outra via poderá ser convencionada por acordo directo entre dois ou mais Estados. 2. Será produzido requerimento: a)

em

apoio

ao

O original ou cópia autenticada seja duma decisão de condenação executória, seja dum mandado de prisão ou de qualquer outro acto da mesma força, emitido segundo as formas prescritas pela lei do Estado requerente.

b) Uma exposição dos factos pelos quais a extradição é solicitada. O tempo e o lugar da sua comissão, sua qualificação jurídica e as referências às disposições legais que lhes são aplicáveis serão indicadas o mais exactamente possível; e c)

Uma cópia certificada conforme das disposições legais aplicáveis com a indicação da pena merecida pela infracção, assim como a sinalética tanto quanto possível precisa do indivíduo reclamado e quaisquer outras informações de natureza a determinar a sua identidade, a sua nacionalidade e o local onde ele se encontra.

Artigo 19.º Informações complementares Se as informações comunicadas pelo Estado requerente se revelarem insuficientes para permitir ao Estado requerido tomar uma decisão nos termos da presente Convenção, esta última Parte solicitará informações complementares necessárias e poderá fixar um prazo razoável para à obtenção dessas informações.

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Artigo 20.º Regra da especialidade 1. O indivíduo que tiver sido entregue não será nem processado, nem julgado, nem detido para efeitos de execução duma pena, nem submetido a qualquer outra restrição da sua liberdade individual, por um qualquer facto anterior à entrega, diferente daquele que motivou a extradição, salvo nos casos seguintes: a)

Quando o Estado que o entregou o consentir. Um pedido será apresentado para o efeito, acompanhado das peças previstas no artigo 18.º e dum processo verbal judicial consignando as declarações do extraditado. Esse consentimento será dado quando a infracção pela qual ele é solicitado acarrete, em si a obrigação de extraditar nos termos da presente Convenção.

b) Quando, tendo tido a possibilidade de o fazer, o indivíduo extraditado não tenha abandonado, nos quarenta e cinco dias que se seguirem à sua soltura definitiva, o território do Estado ao qual ele foi entregue ou se ele ali regressar depois de o ter deixado. 2. Quando a qualificação dada ao facto incriminado for modificada no decurso do processo, o indivíduo extraditado só será processado judicialmente ou julgado se os elementos constitutivos da infracção novamente qualificada permitirem a extradição.

Artigo 21.º Reextradição para um terceiro Estado Salvo no caso previsto na alínea b) do número 1 do artigo 20.º, o

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consentimento do Estado requerido será necessário para permitir ao Estado requerente entregar a um outro Estado ou a um terceiro Estado o indivíduo que lhe tiver sido remetido e que era procurado pelo outro Estado ou pelo terceiro Estado por infracções anteriores à sua remessa. O Estado requerido poderá exigir a produção das peças previstas no número 2 do artigo 18.º.

Artigo 22.º Prisão provisória 1. Em caso de urgência, as autoridades competentes do Estado requerente poderão solicitar a prisão provisória do indivíduo procurado, enquanto aguardar a apresentação dum pedido de extradição; as autoridades competentes do Estado requerido estatuirão sobre o pedido de prisão provisória de conformidade com a lei desse Estado. 2. O pedido de prisão provisória indicará a existência duma das peças previstas na alínea a) do número 2 do artigo 18.º e atestará a intenção de enviar um pedido de extradição; ele mencionará a infracção pela qual a extradição será solicitada, o tempo e o lugar onde ela foi cometida, a pena que é ou pode ser aplicada ou que foi pronunciada; o pedido de prisão provisória mencionará igualmente, se for conhecido, o lugar onde se encontra o indivíduo procurado, assim como, na medida do possível, a sinalética deste. 3. O pedido de prisão provisória será transmitido às autoridades competentes do Estado requerido seja por via diplomática, seja directamente por via postal ou telegráfica, seja através da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol), seja por qualquer

outro meio que deixe um registo escrito ou admitido pelo Estado requerido. O Estado requerente será informado sem demora do andamento dado ao seu pedido. 4. Deverá ser posto termo à prisão provisória se, no prazo de vinte (20) dias após a prisão, o Estado requerido não tiver recebido o pedido de extradição e as peças mencionadas no artigo 18.º. Todavia, a soltura provisória é possível a todo o tempo, cabendo ao Estado requerido tomar qualquer medida que julgar necessária com vista a evitar a fuga do indivíduo reclamado. 5. A soltura não impedirá nem nova prisão, nem a extradição, se o pedido de extradição chegar ulteriormente. 6. O período de detenção sofrido por um indivíduo no território do Estado requerido ou dum Estado de trânsito, exclusivamente para fins de extradição, será tomado em consideração quando da execução da pena privativa da liberdade que ele tiver eventualmente de sofrer em razão da infracção que fundamenta a extradição.

Artigo 23.º Concorrência de pedidos Se a extradição é solicitada concorrentemente por vários Estados, seja pelo mesmo facto, seja por factos diferentes, o Estado requerido estatuirá, tendo em conta todas as circunstâncias e, especialmente, a gravidade e o lugar das infracções, as datas dos respectivos pedidos, a nacionalidade do indivíduo reclamado e a possibilidade duma extradição ulterior para um outro Estado.

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Artigo 24.º Entrega do extraditado 1. O Estado requerido dará a conhecer expeditamente ao Estado requerente pela via prevista no número 1 do artigo 18.º, a sua decisão sobre a extradição. 2. Qualquer rejeição total ou parcial será justificada. 3. Se concordar, o Estado requerente será informado do local e da data da entrega, assim como da duração da detenção sofrida pelo indivíduo reclamado, por efeito da extradição. 4. Sob reserva do caso previsto no número 5 do presente artigo, se o indivíduo reclamado não for recebido na data fixada, ele poderá ser posto em liberdade à expiração do prazo de quinze (15) dias contados dessa data e será, em todo o caso, posto em liberdade à expiração do prazo de trinta (30) dias; o Estado requerido poderá recusar extraditá-lo pelo mesmo facto. 5. Em caso de força maior que impeça a entrega ou a recepção do indivíduo a extraditar, o Estado interessado informará disso o outro Estado. Os dois Estados concertarão uma nova data de entrega e as disposições do número 4 do presente artigo serão aplicáveis.

Artigo 25.º Entrega adiada ou condicional 1. O Estado requerido poderá, depois de ter estatuído sobre o pedido de extradição, adiar a entrega do indivíduo reclamado para que ele possa ser processado por si ou, se ele tiver já sido condenado, para que possa purgar no seu território, uma pena aplicada em razão dum facto

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diferente daquele pelo extradição é solicitada.

qual

a

2. Em vez de adiar a entrega, o Estado requerido poderá remeter temporariamente ao Estado requerente o indivíduo reclamado, em condições a concertar entre os dois Estados.

Artigo 26.º Entrega de objectos 1. A pedido do Estado requerente, o Estado requerido apreenderá e remeterá, na medida permitida pela sua legislação, os objectos: a)

Que podem servir de meios de prova, ou;

b) Que, provenientes da infracção, tiverem sido encontrados no momento da prisão na posse do indivíduo reclamado ou forem descobertos ulteriormente. 2. A entrega dos objectos referidos no número 1 do presente artigo será efectuada mesmo no caso de a extradição já acordada não poder ter lugar em virtude de morte ou evasão do indivíduo reclamado. 3. Quando os ditos objectos forem susceptíveis de apreensão ou de confisco no território do Estado requerido, este último poderá, para fins de processo penal aí em curso, guardá-los temporariamente ou remetê-los sob condição de restituição. 4. Serão todavia salvaguardados os direitos que o Estado requerido ou terceiros teria, adquirido sobre esses objectos. Se tais direitos existirem os objectos serão, terminado o processo, restituídos sem demora nem encargos ao Estado requerido.

Aspectos Polémicos da Extradição

Artigo 27.º Trânsito 1. O trânsito através do território dum dos Estados será autorizado sobre pedido endereçado pela via prevista no número 1 do artigo 18.º, à condição de se não tratar duma infracção considerada como revestindo carácter político ou militar pelo Estado Membro requerido para fins de trânsito, tendo em vista os artigos 4.º e 7.º da presente Convenção. 2. O trânsito dum nacional do Estado requerido para efeitos de trânsito poderá ser recusado. 3. Sob reserva do disposto no número 4 do presente artigo, a produção das peças previstas no número 2 do artigo 18.º será necessária. 4. Se a via aérea for utilizada, aplicarse-ão as disposições seguintes: a)

Quando nenhuma aterragem estiver prevista, o Estado requerente informará o Estado cujo território será sobrevoado, e atestará a existência duma das peças previstas na alínea a) do número 2 do artigo 18.º. Em caso de aterragem fortuita, essa notificação produzirá os efeitos do pedido de prisão provisória visado no artigo 22.º e o Estado requerente expedirá um pedido regular de trânsito.

b) Quando a aterragem estiver prevista, o Estado requerente expedirá um pedido regular de trânsito. 5. Um Estado poderá todavia declarar o momento da assinatura da presente Convenção ou do depósito do respectivo instrumento de ratificação, que só admitirá o trânsito dum

indivíduo nas mesmas condições da extradição ou nas de algumas de entre elas. Nestes casos, a regra da reciprocidade poderá ser aplicada. 6. O trânsito do indivíduo extraditado não será efectuado através dum território onde poder-se-ia recear que a sua vida ou a sua liberdade poderiam ser ameaçadas em razão de sua raça, sua tribo, sua religião, sua nacionalidade, suas opiniões políticas ou seu sexo.

Artigo 28.º Processo 1. Salvo disposição contrária da presente Convenção, a lei do Estado requerido é a única aplicável não só ao processo de extradição mas também à prisão provisória. 2. Os Estados não só assegurarão à pessoa cuja extradição for solicitada, o direito de ser ouvido por uma autoridade judicial e de constituir um advogado da sua escolha, mas também submeterão à apreciação duma autoridade judicial o controle da sua detenção para efeitos de extradição, bem como das condições da extradição.

Artigo 29.º Línguas a empregar Os documentos a produzir serão redigidos seja na língua do Estado requerente, seja na do Estado requerido. Este último pode exigir a respectiva tradução numa língua oficial da CEDEAO à sua escolha.

Artigo 30.º Encargos 1. As despesas ocasionadas pela extradição no território requerido ficarão a cargo deste Estado.

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2. As despesas ocasionadas com o transporte a partir do território do Estado requerido ficarão a cargo do Estado requerente.

presente Convenção, com o fim de completar ou reforçar as disposições desta ou para facilitar a aplicação dos princípios que ela consagra.

3. As despesas ocasionadas pelo trânsito através do território do Estado requerido para efeitos de trânsito ficarão a cargo do Estado requerente.

Artigo 33.º Adesão

Artigo 31.º Reservas 1. Qualquer Estado poderá, no momento da assinatura da presente Convenção ou do depósito do respectivo instrumento de ratificação, formular uma reserva a respeito de uma ou mais disposições determinadas desta Convenção. 2. Qualquer Estado que tiver formulado uma reserva retirá-la-á tão cedo quanto as circunstâncias o permitirem. O levantamento de reservas será feito por notificação endereçada ao Secretário Executivo da CEDEAO. 3. O Estado que tiver formulado uma reserva a respeito duma disposição desta Convenção só pode exigir a aplicação dessa disposição por um outro Estado na medida em que ele mesmo o aceite.

Artigo 32.º Relações entre a presente convenção e os outros acordos 1. A presente Convenção ab-roga as disposições dos Tratados, Convenções ou Acordos que, entre dois ou mais Estados, rejam a matéria da extradição, salvo o disposto no número 3 do artigo 4.º 2. Os Estados poderão concluir entre si acordos bilaterais ou multilaterais relativos a questões reguladas pela

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1. Após a entrada em vigor da presente Convenção, o Conselho dos Ministros, por decisão unânime, poderá convidar qualquer Estado não membro da Comunidade a aderir à presente Convenção. 2. Quando um Estado não membro da Comunidade solicite o seu pedido de adesão à presente Convenção, para o efeito, endereçará o respectivo pedido ao Secretariado Executivo que o notificará imediatamente a todos os outros Estados. 3. Esta Convenção entrará em vigor, em relação a qualquer Estado aderente, no primeiro dia do mês seguinte ao da expiração dum período de três (3) meses, contado da data de depósito do respectivo instrumento de adesão junto do Secretário Executivo.

Artigo 34.º Emenda e revisão 1. Qualquer Estado pode submeter propostas sobre a alteração ou a revisão da presente Convenção. 2. Todas as propostas são transmitidas ao Secretariado Executivo que as comunica aos Estados nos trinta (30) dias seguintes à sua recepção. As propostas de emenda ou de revisão são examinadas pela Conferência à expiração do prazo de pré-aviso de trinta (30) dias acordado aos Estados.

Aspectos Polémicos da Extradição

Artigo 35.º Denúncia Qualquer Estado poderá, no que lhe disser respeito, denunciar a presente Convenção endereçando uma notificação ao Secretário Executivo da Comunidade. Esta denúncia surtirá efeitos seis (6) meses após a data da recepção da respectiva notificação pelo Secretário Executivo da Comunidade.

Artigo 36.º Depósito e entrada em vigor 1. A presente Convenção entra em vigor após a sua ratificação por, pelo menos nove (9) Estados signatários, de conformidade com os procedimentos constitucionais de cada Estado signatário. 2. A presente Convenção e todos os seus instrumentos de ratificação são depositados junto do Secretariado Executivo que dela transmitirá cópias certificadas conformes a todos os Estados Membros, notifica-os das datas de depósito dos instrumentos de ratificação e registará a mesma junto da Organização da Unidade Africana, da Organização das Nações Unidas e de qualquer outra organização designada pelo Conselho dos Ministros da Comunidade. Em fé do que, nós, Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental. Assinámos a Presente Convenção. Feito em Abuja, aos 6 de Agosto de 1994 num único original em francês, inglês e português, todos os textos fazendo igualmente fé.

B) CONVENÇÃO DE EXTRADIÇÃO ENTRE OS ESTADOS MEMBROS DA COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, CPLP

Os Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, doravante denominados “Estados Contratantes”; Desejosos de incrementar a cooperação judiciária internacional em matéria penal e convencidos da necessidade de a simplificar e agilizar; Reconhecendo a extradição no cooperação;

importância da domínio desta

Animados do propósito de combater de forma eficaz a criminalidade; Acordam o seguinte:

Artigo 1.º Obrigação de extraditar Os Estados Contratantes obrigam-se a entregar, reciprocamente, segundo as regras e as condições estabelecidas na presente Convenção, as pessoas que se encontrem nos seus respectivos territórios e que sejam procuradas pelas autoridades competentes de outro Estado Contratante, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena privativa da liberdade por crime cujo julgamento seja da competência dos tribunais do Estado requerente.

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Artigo 2.º Factos determinantes da extradição

simultaneamente uma infracção de direito comum.

1. Dão causa à extradição os factos especificados como crime segundo as leis do Estado requerente e do Estado requerido, independentemente da denominação dada ao crime, os quais sejam puníveis em ambos os Estados com pena privativa de liberdade de duração máxima não inferior a um ano.

d) Quando a pessoa reclamada tiver sido definitivamente julgada, indultada, beneficiada por amnistia ou objecto de perdão no Estado requerida com respeito ao facto ou aos factos que fundamentam o pedido de extradição.

2. Se a extradição for requerida para o cumprimento de uma pena privativa da liberdade exige-se, ainda, que a parte da pena por cumprir não seja inferior a seis meses. 3. Se a extradição requerida por um dos Estados Contratantes se referir a diversos crimes, respeitado o princípio da dupla incriminação para cada um deles, basta que apenas um satisfaça as exigências previstas no presente artigo para que a extradição possa ser concedida, inclusive com respeito a todos eles.

e)

Quando a pessoa reclamada tiver sido condenada ou dever ser julgada no Estado requerente por um tribunal de excepção.

f)

Quando se encontrarem prescritos o procedimento criminal ou a pena em conformidade com a legislação do Estado requerente ou do Estado requerido.

2. Para efeitos do disposto na línea b) do n.º 1 não se consideram crimes de natureza política ou com eles conexos: a)

Artigo 3.º Inadmissibilidade de extradição 1. Não haverá lugar a extradição nos seguintes casos: a)

Quando se tratar de crime punível com pena de morte ou outra de que resulte lesão irreversível da integridade física.

b) Quando se tratar de crime que o Estado requerido considere ser político ou com ele conexo. A mera alegação de um fim ou motivo político não implicará que o crime deva necessariamente ser qualificado como tal. c)

Quando se tratar de crime militar que não constitua

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Os crimes contra a vida de titulares de órgãos de soberania ou de altos cargos públicos ou de pessoas a quem for devida especial protecção segundo o direito internacional;

b) Os actos de pirataria aérea e marítima; c)

Os actos a que seja retirada natureza de infracção política por convenções internacionais de que seja parte o estado requerido;

d) O genocídio, os crimes contra a Humanidade, os crimes de guerra e infracções graves segundo as Convenções de Genebra de 1949; e)

Os actos referidos na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adoptada pela Assembleia Geral

Aspectos Polémicos da Extradição

das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1984.

Artigo 4.º Recusa facultativa de extradição A extradição poderá ser recusada se: a)

A pessoa reclamada for nacional do Estado requerido;

b) O crime que deu lugar ao pedido de extradição for punível com pena ou medida de segurança privativa ou restritiva da liberdade com carácter perpétuo ou de duração indefinida; c)

A pessoa reclamada estiver a ser julgada no território do Estado requerido pelos factos que fundamentam o pedido;

d) A pessoa reclamada não puder ser objecto de procedimento criminal em razão da idade; e)

A pessoa reclamada tiver sido condenada à revelia pela infracção que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se as leis do Estado requerente lhe assegurarem a possibilidade de interposição de recurso, a realização de novo julgamento ou outra garantia de natureza equivalente.

Artigo 5.º Julgamento pelo Estado requerido 1. Quando a extradição não puder ter lugar ou for recusada por se verificar algum dos fundamentos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º ou nas alíneas a) e b) do artigo 4.º, o Estado requerido deverá, caso o Estado requerente o solicite e as leis do Estado requerido o permitam, submeter o caso às autoridades competentes para que providenciem

pelo procedimento criminal contra essa pessoa por todos ou alguns dos crimes que deram lugar ao pedido de extradição. 2. Para os efeitos previstos no número anterior, o Estado requerido poderá solicitar ao Estado requerente, quando este não lhos tenha enviado espontaneamente, os elementos necessários à instauração do respectivo procedimento criminal, designadamente os meios de prova utilizáveis. 3. Quando a extradição não se verificar com o fundamento previsto na alínea d) do artigo 4.º, o Estado requerido tomará as medidas que, de acordo com o seu ordenamento jurídico, seriam aplicáveis caso os factos tivessem sido praticados no seu território.

Artigo 6.º Princípio da especialidade 1. A pessoa entregue não será detida julgada ou condenada, no território do Estado requerente, por outros crimes cometidos em data anterior à solicitação de extradição, e não constantes do pedido, salvo nos seguintes casos: a)

quando a pessoa extraditada, podendo abandonar o território do Estado Contratante ao qual foi entregue, nele permanecer voluntariamente por mais de quarenta e cinco dias seguidos após a sua libertação definitiva ou a ele voluntariamente regressar depois de tê-lo abandonado;

b) quando as autoridades competentes do Estado requerido consentirem na extensão da extradição para fins de detenção, julgamento ou condenação da

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referida pessoa em função de qualquer outro crime. 2. Para os efeitos da alínea b) do número anterior, o Estado requerente deverá encaminhar ao Estado requerido pedido formal de extensão da extradição, cabendo ao Estado requerido decidir se a concede. O referido pedido deverá ser acompanhado dos documentos previstos no n.º 3 do artigo 10.º e de declarações do extraditado prestadas em juízo ou perante autoridade judiciária, com a devida assistência jurídica. 3. Se a qualificação do facto constitutivo do crime que motivou a extradição for posteriormente modificada no decurso do processo no Estado requerente, a acção não poderá prosseguir, a não ser que a nova qualificação permita a extradição.

Artigo 7.º Reextradição para um Terceiro Estado 1. O Estado requerente não pode reextraditar para terceiro Estado a pessoa que o Estado requerido lhe entregou no seguimento de um pedido de extradição. 2. Cessa a proibição constante do número anterior: a)

Se, nos termos estabelecidos para o pedido de extradição, for solicitada ao Estado requerido e dele obtida a correspondente autorização judicial para a reextradição, ouvido previamente o extraditado;

b) Se o extraditado, tendo o direito e possibilidade de sair do território do Estado requerente, nele permanecer por mais de

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quarenta e cinco dias ou aí voluntariamente regressar.

Artigo 8.º Direito de defesa A pessoa reclamada gozará, no Estado requerido, de todos os direitos e garantias que conceda a legislação desse Estado. Deverá ser assistida por um defensor e, se necessário, por intérprete.

Artigo 9.º Transmissão do pedido 1. O pedido de extradição é transmitido entre autoridades centrais, sem prejuízo do seu encaminhamento por via diplomática. 2. No momento em que procederem, em conformidade com o disposto no artigo 24.º, ao depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação da presente Convenção, os Estados Contratantes indicarão a autoridade central para efeitos de transmissão e recepção dos pedidos de extradição.

Artigo 10.º Forma e instrução do pedido 1. Quando se tratar de pedido para procedimento criminal, o pedido de extradição deverá ser acompanhado de original ou cópia certificada do mandado de prisão ou de acto processual equivalente. 2. Quando se tratar de pedido para cumprimento de pena, o pedido de extradição deverá ser acompanhado de original ou cópia certificada da sentença condenatória e de certidão ou mandado de prisão dos quais conste qual a pena que resta cumprir.

Aspectos Polémicos da Extradição

3. Nas hipóteses referidas nos números 1 e 3, deverão ainda acompanhar o pedido:

recebimento da comunicação, para corrigir tais insuficiências ou irregularidades.

a)

2. Se por circunstâncias devidamente fundamentadas, o Estado requerente não puder cumprir com o disposto no número anterior dentro do prazo consignado, poderá solicitar ao Estado requerido a prorrogação do referido prazo por mais vinte dias seguidos.

Descrição dos factos pelos quais se requer a extradição, indicando-se o lugar e a data de sua ocorrência, sua qualificação legal e fazendo-se referência às disposições legais aplicáveis;

b) Todos os dados conhecidos quanto à identidade, nacionalidade, domicílio, residência ou localização da pessoa reclamada e, se possível, fotografia, impressões digitais e outros meios que permitam a sua identificação; e, c)

Cópia dos textos legais que tipifiquem e sancionam o crime, identificando a pena aplicável, bem como os que estabelecem o respectivo regime prescricional.

Artigo 11.º Dispensa de legalização 1. O pedido de extradição, assim como os documentos que o acompanhem estarão isentos de legalização, autenticação ou formalidade semelhante. 2. Tratando-se de cópias de documentos estas deverão estar certificadas por autoridade competente.

Artigo 12.º Informações complementares 1. Se os dados ou documentos enviados com o pedido de extradição forem insuficientes ou irregulares, o Estado requerido comunicará esse facto sem demora ao Estado requerente, que terá o prazo de quarenta e cinco dias seguidos, contados a partir da data do

3. O Estado requerido poderá solicitar ao Estado requerente uma redução do prazo previsto no n.º e, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto. 4. O não envio das informações solicitadas nos termos do n.º 1 não obsta a que o pedido de extradição seja decidido à luz das informações disponíveis.

Artigo 13.º Decisão e entrega 1. O Estado requerido comunicará sem demora, ao Estado requerente, a sua decisão com respeito à extradição. 2. A recusa total ou parcial do pedido de extradição deverá ser fundamentada. 3. Quando a extradição for concedida, os Estados Contratantes acordarão a data e o lugar da entrega a efectuar pelas autoridades competentes para a sua execução. 4. Se no prazo de quarenta e cinco dias seguidos, contados a partir da data de notificação, o Estado requerente não retirar a pessoa reclamada, esta será posta em liberdade, podendo o Estado requerido recusar posteriormente a extradição pelos mesmos factos. 5. Em caso de força maior ou de enfermidade grave, devidamente comprovadas, que impeçam ou sejam

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obstáculo à entrega da pessoa reclamada, tal circunstância será informada ao outro Estado Contratante, antes do vencimento do prazo previsto no número anterior, podendo acordar-se uma nova data. 6. O Estado requerente poderá enviar ao Estado requerido, com a anuência deste último, agentes devidamente autorizados que auxiliarão no reconhecimento do extraditando e na condução deste ao território do Estado requerente os quais estarão subordinados às autoridades do Estado requerido.

Artigo 14.º Imputação da detenção 1. O período de detenção cumprido pela pessoa extraditada no Estado requerido, em virtude do processo de extradição, será computado na pena a ser cumprida no Estado requerente. 2. Para os fins do disposto no número anterior, o Estado requerido informará o Estado requerente da duração da detenção cumprida pela pessoa reclamada para efeitos de extradição.

Artigo 15.º Diferimento da entrega 1. Não obsta à extradição a existência em tribunal do Estado requerido de processo penal contra a pessoa reclamada ou a circunstância de esta se encontrar a cumprir pena privativa da liberdade por crimes diversos dos que fundamentaram o pedido. 2. Nos casos do número anterior, poderá diferir-se a entrega da pessoa reclamada para quando o processo ou o cumprimento das penas terminarem.

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3. A responsabilidade civil a que esteja sujeita a pessoa reclamada não poderá servir de motivo para impedir ou retardar a entrega.

Artigo 16.º Entrega dos bens 1. Caso se conceda a extradição, os bens que se encontrem no Estado requerido e que sejam produto do crime ou que possam servir de prova, serão entregues ao Estado requerente, se este o solicitar, sem prejuízo dos direitos de terceiros de boa fé. A entrega dos referidos bens estará sujeita à lei do Estado requerido. 2. Sem prejuízo do disposto no n.º 1, tais bens serão entregues ao Estado requerente, se este o solicitar, mesmo no caso de não se poder levar a efeito a extradição em consequência da morte ou fuga da pessoa reclamada. 3. Quando tais bens forem susceptíveis de medidas cautelares no território do Estado requerido, este poderá, por efeito de um processo penal em curso, conservá-los temporariamente ou entregá-los sob condição da sua restituição futura. 4. Quando a lei do Estado requerido ou o direito de terceiros assim o exigirem, os bens serão devolvidos sem encargos, ao Estado requerido. 5. Quando da entrega da pessoa reclamada, ou tão logo isso seja possível, entregar-se-á ao Estado requerente a documentação, os bens e os demais pertences que igualmente lhe devam ser colocados à disposição, conforme o previsto na presente Convenção.

Aspectos Polémicos da Extradição

Artigo 17.º Pedidos concorrentes 1. No caso de pedidos de extradição concorrentes, o Estado requerido determinará a qual dos Estados se concederá a extradição, e notificará a sua decisão aos Estados requerentes. 2. Quando os pedidos se referirem a um mesmo crime, o Estado requerido deverá dar preferência pela seguinte ordem: a)

Ao Estado em cujo território tenha sido cometido o crime;

b) Ao Estado em cujo território tenha residência habitual a pessoa reclamada; c)

Ao Estado que apresentou o pedido.

primeiro

3. Quando os pedidos se referirem a crimes distintos, o Estado requerido dará preferência ao Estado requerente que seja competente relativamente ao crime mais grave. Havendo igual gravidade, dar-se-á preferência ao Estado que primeiro tenha apresentado o pedido.

Artigo 18.º Trânsito 1. Os Estados Contratantes cooperarão entre si visando facilitar o trânsito pelo seu território de pessoas extraditadas, sempre que não se oponham motivos de ordem pública e se trate de crime justificativo da extradição nos termos da presente Convenção. 2. O pedido de trânsito deve ser instruído com cópia do pedido de extradição e da comunicação que a autoriza.

3. Cabe às autoridades do Estado de trânsito a guarda do extraditado e as despesas que dela resultem. 4. Não será necessário solicitar o trânsito quando forem utilizados meios de transporte aéreo sem previsão de aterragem no território do Estado de trânsito.

Artigo 19.º Extradição simplificada ou voluntária O Estado requerido pode conceder a extradição se a pessoa reclamada, com a devida assistência jurídica e perante a autoridade judicial do Estado requerido, declarar a sua expressa anuência em ser entregue ao Estado requerente, depois de ter sido informada de seu direito a um procedimento formal de extradição e da protecção que tal direito encerra.

Artigo 20.º Despesas 1. O Estado requerido suporta as despesas ocasionadas no seu território em consequência da detenção do extraditado. As despesas relativas à remoção do extraditando para fora do território do Estado requerido ficarão a cargo do Estado requerente. 2. O Estado requerente suporta as despesas de transporte de retorno ao Estado requerido da pessoa extraditada que tenha sido absolvida.

Artigo 21.º Detenção provisória 1. As autoridades competentes do Estado requerente podem solicitar a detenção provisória para assegurar o procedimento de extradição da pessoa reclamada, a qual será cumprida com a máxima urgência pelo Estado requerido de acordo com a sua legislação.

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2. O pedido de detenção provisória deve indicar que tal pessoa é objecto de procedimento criminal, de uma sentença condenatória ou de ordem de detenção judicial, devendo consignar a data e os factos que motivem o pedido, o tempo e o local da sua ocorrência, além dos dados que permitam a identificação da pessoa cuja detenção se requer. Também deverá constar do pedido a intenção de se proceder a um pedido formal de extradição. 3. O pedido de detenção provisória poderá ser apresentado pelas autoridades competentes do Estado requerente pelas vias estabelecidas na presente Convenção, bem como pela Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), devendo ser transmitido por correio, fax ou qualquer outro meio que permita a comunicação por escrito. 4. A pessoa detida em virtude do referido pedido de detenção provisória é imediatamente posta em liberdade se, ao cabo de quarenta dias seguidos, a contar da data de notificação da sua detenção ao Estado requerente, este não tiver formalizado um pedido de extradição. 5. O disposto no número anterior não prejudica nova detenção da pessoa reclamada caso venha a ser apresentado o pedido de extradição.

Artigo 22.º Segurança, ordem pública e outros interesses fundamentais O Estado requerido pode recusar, com a devida fundamentação, o pedido de extradição quando o seu cumprimento for contrário à segurança, à ordem pública ou a outros seus interesses fundamentais.

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Artigo 23.º Resolução de dúvidas Os Estados Contratantes procederão a consultas mútuas para a resolução de dúvidas resultantes da aplicação da presente Convenção.

Artigo 24.º Assinatura e entrada em vigor 1. A presente Convenção estará aberta à assinatura dos Estados membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP. Será submetida a ratificação, aceitação ou aprovação, sendo os respectivos instrumentos depositados junto do Secretariado Executivo da CPLP. 2. A presente Convenção entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte à data em que três Estados membros da CPLP tenham expressado o seu consentimento em ficar vinculados à Convenção em conformidade com o disposto no n.º 1. 3. Para qualquer Estado signatário que vier a expressar posteriormente o seu consentimento em ficar vinculado à Convenção, esta entrará em vigor no primeiro dia do mês seguinte à data do depósito do instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação.

Artigo 25.º Conexão com outras convenções e acordos 1. A presente Convenção substitui, no que respeita aos Estados aos quais se aplica, as disposições de tratados, convenções ou acordos bilaterais que, entre dois Estados Contratantes, regulem a matéria da extradição. 2. Os Estados Contratantes poderão concluir entre si tratados, convenções ou acordos bilaterais ou multilaterais

Aspectos Polémicos da Extradição

para completar as disposições da presente Convenção ou para facilitar a aplicação dos princípios nela contidos.

Artigo 26.º Denúncia 1. Qualquer Estado Contratante pode, em qualquer momento, denunciar a presente Convenção, mediante notificação dirigida ao Secretariado Executivo da CPLP. 2. A denúncia produzirá efeitos no 1.º dia do mês seguinte ao termo do prazo de três meses após a data da recepção da notificação. 3. Contudo, a presente Convenção continuará a aplicar-se à execução dos pedidos de extradição entretanto efectuados.

Artigo 27.º Notificações O Secretariado Executivo da CPLP notificará aos Estados Contratantes, qualquer assinatura, o depósito de qualquer instrumento de ratificação, aceitação ou aprovação, as datas de entrada em vigor da Convenção nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 24.º e qualquer outro acto, declaração, notificação ou comunicação relativos à presente Convenção.

C) DECLARAÇÃO DE RABAT E CONVENÇÃO DE AUXÍLIO JUDICIÁRIO MÚTUO E DE EXTRADIÇÃO CONTRA O TERRORISMO

5a Conferência dos Ministros da Justiça dos países francófonos da África para a implementação dos instrumentos universais contra o terrorismo 1. Rabat, Reino de Marrocos 12 a 16 de Maio de 2008

Declaração de Rabat Nós, Ministros da Justiça e Chefes de delegações dos países abaixo designados: Benim, Burkina Faso, Cabo Verde, Chade, Camarões, Congo, Costa do Marfim, Djibuti, Egipto, Gabão, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Madagáscar, Mali, Marrocos, Mauritânia, Níger, República Centro-Africana, República Democrática do Congo, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal, Togo, Tunísia.

Em fé do que os abaixo assinados, devidamente autorizados para o efeito, assinaram a presente Convenção.

Reunidos por ocasião da 5a Conferência dos Ministros da Justiça dos países francófonos da África para

Feita na Cidade da Praia, a 23 de Novembro de 2005, num único exemplar, que ficará depositado junto da CPLP. O Secretário Executivo da CPLP enviará uma cópia autenticada a cada um dos Estados Contratantes.

1 Tradução não-oficial da «Déclaration de Rabat» e anexa «Convention d’entraide judiciaire et d’extradition contre le terrorisme», adoptadas pela «Conférence des Ministres de la Justice des pays francophones d’Afrique pour la mise en oeuvre des instruments universels contre le terrorisme». Não substitui a consulta ao texto original.

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a ratificação e implementação dos instrumentos universais contra o terrorismo, realizada de 12 a 16 de Maio de 2008 em Rabat, Reino de Marrocos; E em presença da Organização das Nações Unidas, representada pelo Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACDH), das seguintes organizações internacionais e regionais: a Comunidade Económica e Monetária da África Central (CEMAC), a Organização Internacional da Francofonia (OIF) e a Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), bem como o Centro Internacional para a Prevenção da Criminalidade (CIPC); Reiterando a enérgica condenação de todos os actos terroristas e de todos os métodos e práticas do terrorismo em todas as suas manifestações, considerados criminosos, qualquer que seja o lugar e o objectivo, e quaisquer que sejam seus autores; Recordando que a Estratégia antiterrorista mundial da Organização das Nações Unidas, em todos os seus aspectos, adoptada aos 8 de Setembro de 2006, reforça o quadro geral da acção conduzida pelos países francófonos da África para combater eficazmente o flagelo do terrorismo em todas as suas manifestações; Reconhecendo que a cooperação internacional constitui elemento indispensável para prevenir e combater o terrorismo conforme as obrigações impostas pelo direito internacional, notadamente a Carta das Nações Unidas e as convenções e protocolos internacionais pertinentes,

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em particular os instrumentos relativos aos direitos humanos, ao direito dos refugiados e ao direito internacional humanitário; Congratulando-nos pelos trabalhos realizados durante o primeiro segmento desta Conferência, que consistiu em um “Grupo de Trabalho de especialistas para a elaboração de um projecto de instrumento internacional para os países francófonos da África em matéria de extradição e auxílio judiciário mútuo no contexto da luta contra o terrorismo”, em que os referidos especialistas dos países francófonos da África representados elaboraram um projecto de Convenção de auxílio judiciário mútuo e extradição contra o terrorismo, conforme previsto na Declaração de Ouagadougou; Notando com satisfação os termos da resolução 62/71 de 6 de Dezembro de 2007 da Assembleia Geral das Nações Unidas, que “requer ao Serviço de prevenção ao terrorismo do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime em Viena que envide esforços para reforçar, no quadro de suas atribuições, as capacidades do sistema das Nações Unidas em matéria de prevenção ao terrorismo e aprecia, no contexto da Estratégia antiterrorista mundial da Organização das Nações Unidas e da resolução 13734 (2001) do Conselho de Segurança, considerando que sua actuação consiste em assistir os Estados a tornar-se partes às convenções e protocolos internacionais relativos ao terrorismo, e a aplicá-los, notadamente os mais recentes, e de reforçar os mecanismos de cooperação internacional em matéria penal referentes ao terrorismo, notadamente mediante o fortalecimento das capacidades nacionais”;

Aspectos Polémicos da Extradição

Congratulando-nos igualmente pela publicação como documentos A/C.3/58/4, A/59/811, A/60/845 e A/61/992-S/2007/416 da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, das Declarações do Cairo, de Port-Louis, de Sharm ElSheikh e de Ouagadougou, adoptadas respectivamente aos 4 de Setembro de 2003, 27 de Outubro de 2004, 9 de Fevereiro de 2006 e 22 de Março de 2007, por ocasião das Conferências dos Ministros da Justiça dos países francófonos da África para a implementação dos instrumentos universais contra o terrorismo; 1. Felicitamos vivamente os países francófonos da África que, desde a Declaração de Ouagadougou, ratificaram os instrumentos universais contra o terrorismo e incorporaram-nos em seu ordenamento interno, e submeteram suas respostas aos Comités do Conselho de Segurança relativos à luta contra o terrorismo; 2. Recomendamos aos países francófonos da África que ainda não se tornaram Estados Partes aos instrumentos universais contra o terrorismo, que os ratifiquem ou apresentem instrumento de adesão o mais prontamente possível, em particular em relação aos instrumentos de 2005 contra o terrorismo nuclear, e que adoptem em seu ordenamento interno as disposições legislativas e regulamentares necessárias para sua efectiva aplicação; 3. Encorajamos os países francófonos da África a submeter suas respostas aos Comités do Conselho de Segurança relativos à luta contra o terrorismo;

4. Solicitamos ao Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, em cooperação com a Organização Internacional da Francofonia, e as demais organizações internacionais, regionais e subregionais competentes, que continue a fornecer aos países francófonos da África a assistência técnica necessária para a ratificação e implementação legislativa dos instrumentos universais contra o terrorismo, e para a capacitação e formação dos servidores dos sistemas de justiça penal em cooperação internacional em matéria penal contra o terrorismo, bem como para a preparação de suas respostas aos Comités do Conselho de Segurança relativos à luta contra o terrorismo; 5. Adoptamos o projecto de Convenção de auxílio judiciário mútuo e de extradição contra o terrorismo, anexo à presente Declaração, elaborado por ocasião do primeiro segmento desta Conferência em conformidade com a Declaração de Ouagadougou; 6. Recomendamos aos países francófonos da África assinar e ratificar esta Convenção o mais prontamente possível; e solicitamos ao Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, em cooperação com a Organização Internacional da Francofonia, toda assistência técnica para a implementação desta Convenção, bem como para o estabelecimento da Conferência de Estados Partes, e o acompanhamento de suas actividades; 7. Convidamos os países francófonos da África a anualmente avaliar os progressos realizados na ratificação, adesão e célere implementação dos instrumentos universais contra o terrorismo, e a enviar as respostas aos

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Documentos Relevantes

Comités do Conselho de Segurança relativos à luta contra o terrorismo; 8. Convidamos o Estado depositário a levar a presente Declaração à atenção da 62ª Sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, e a registrar a Convenção de auxílio judiciário mútuo e de extradição contra o terrorismo junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas em Nova York, em conformidade com o artigo 102 da Carta das Nações Unidas, com o auxílio técnico do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime; 9. Tomamos nota e agradecemos a oferta do Governo da República de Madagáscar para abrigar a 6ª Conferência dos Ministros da Justiça dos países francófonos da África; 10. Decidimos estender a ordem do dia das próximas Conferências à criminalidade transnacional organizada; 11. Felicitamos o UNODC e a OIF por sua implicação na perenização da Conferência dos Ministros da Justiça dos países francófonos da África; 12. Expressamos nossa sincera gratidão ao Governo do Reino de Marrocos por ter acolhido e coorganizado, em Rabat de 12 a 16 de Maio de 2008, a 5ª Conferência dos Ministros da Justiça dos países francófonos da África para a implementação dos instrumentos universais contra o terrorismo, e pedimos ao Presidente da Conferência que transmita nossos agradecimentos a Sua Excelência Senhor Abbas El Fassi, Primeiro Ministro do Reino de Marrocos, e nossas respeitosas saudações a Sua Majestade o Rei Mohammed VI.

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Feita em Rabat aos 16 de Maio de 2008

ANEXO CONVENÇÃO DE AUXÍLIO JUDICIÁRIO MÚTUO E DE EXTRADIÇÃO CONTRA O TERRORISMO Preâmbulo Os Estados Africanos Partes presente Convenção, membros Organização das Nações Unidas e Organização Internacional Francofonia;

na da da da

Reafirmando sua adesão à Estratégia mundial antiterrorista adoptada pelos Estados membros da Organização das Nações Unidas (A/RES/60/288); Reafirmando a Declaração de Ouagadougou (A/61/992S/2007/416), as disposições da Carta da Francofonia, bem como os princípios decorrentes das Declarações de Bamako e de Saint Boniface; Tendo em consideração que os princípios gerais do direito internacional se aplicam nas situações não previstas pela presente Convenção; Destacando o carácter universal e indissociável de todos os direitos, civis, políticos, económicos, sociais e culturais, tal como reconhecido pela Declaração de Viena de 25 de Junho de 1993, inclusive o direito ao desenvolvimento e à determinação de nossos Estados e governos, Partes na presente Convenção, a assegurar sua plena fruição para todos os cidadãos; Reafirmando sua decisão solene de aplicar todas as resoluções da Assembleia Geral relativas às medidas

Aspectos Polémicos da Extradição

para eliminar o terrorismo internacional e as resoluções pertinentes da Assembleia referentes à protecção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais na luta antiterrorista; de aplicar todas as resoluções do Conselho de Segurança relativas a ameaças contra a paz e a segurança internacionais resultantes de actos de terrorismo; Reiterando energicamente a condenação do terrorismo sob todas as suas formas e em todas as suas manifestações, quaisquer que sejam os autores, os lugares e os objectivos, por constituir uma das mais graves ameaças à paz e segurança internacionais, em conformidade com os objectivos e princípios enunciados na Carta das Nações Unidas; Reconhecendo que a cooperação internacional constitui um elemento indispensável para prevenir e combater o terrorismo em conformidade com as obrigações impostas pelo direito internacional, notadamente a Carta das Nações Unidas e as convenções e protocolos internacionais pertinentes, em particular os instrumentos relativos aos direitos humanos, ao direito dos refugiados e ao direito internacional humanitário; Determinados a cooperar plenamente na luta contra o terrorismo, em conformidade com suas obrigações em virtude do direito internacional, para encontrar, privar de asilo e trazer à justiça, pela via da extradição ou da acção penal, quaisquer pessoas que ajudem ou facilitem o financiamento, o planeamento, a preparação ou a comissão de actos de terrorismo, ou que tentem fazê-lo ou que ofereçam asilo a tais indivíduos;

Determinados a assegurar que os responsáveis por actos de terrorismo sejam detidos e processados judicialmente ou extraditados, em conformidade com as disposições pertinentes do direito nacional e internacional, no respeito aos direitos humanos, ao direito dos refugiados e ao direito internacional humanitário; Acordaram no seguinte:

PARTE 1: Disposições Gerais sobre o Auxílio Judiciário Mútuo e Extradição Artigo 1º: Definições Para os fins de execução da presente Convenção, a expressão: 1. “Matéria penal” compreende toda investigação, processo ou procedimento judiciário relativo a um acto de terrorismo previsto notadamente em um dos instrumentos universais contra o terrorismo arrolados no parágrafo 5 do presente artigo. 2. “Extradição” designa a entrega de uma pessoa procurada por um Estado Parte requerente em vista da subsequente acção penal por uma infracção prevista notadamente num dos instrumentos universais contra o terrorismo arrolados no parágrafo 5 do presente artigo, ou para cumprir a pena infligida por uma tal infracção. 3. “Estado Parte requerente” designa um Estado que solicita ao Estado Parte requerido auxílio judiciário em matéria penal e/ou a extradição de uma pessoa ou a detenção provisória de uma pessoa em vista de sua extradição. 4. “Estado Parte requerido” designa um Estado que recebe o pedido do Estado Parte requerente em vista da prestação de auxílio judiciário em

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matéria penal e/ou da extradição de uma pessoa ou da detenção provisória de uma pessoa em vista de sua extradição.

navegação marítima (concluída em Roma aos 10 de Março de 1988);

5. “Instrumentos universais contra o terrorismo” designa notadamente os seguintes instrumentos universais:

i) Protocolo adicional para a supressão de actos ilícitos contra a segurança das plataformas fixas localizadas na plataforma continental (concluído em Roma aos 10 de Março de 1988);

a) Convenção relativa às infracções e a certos outros actos cometidos a bordo de aeronaves (assinada em Tóquio aos 14 de Setembro de 1963);

j) Convenção relativa à marcação dos explosivos plásticos para fins de detecção (concluída em Montreal a 1 de Março de 1991);

b) Convenção para a repressão da captura ilícita de aeronaves (assinada em Haia aos 16 de Dezembro de 1970);

k) Convenção internacional para a repressão de atentados terroristas à bomba (adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas aos 15 de Dezembro de 1997);

c) Convenção para a repressão de actos ilegais contra a segurança da aviação civil (concluída em Montreal aos 23 de Setembro de 1971); d) Convenção sobre a prevenção e repressão de crimes contra pessoas gozando de protecção internacional, incluindo os agentes diplomáticos (adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, aos 14 de Dezembro de 1973);

l) Convenção internacional para a eliminação do financiamento do terrorismo (adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas aos 9 de Dezembro de 1999); m) Convenção internacional para a repressão de actos de terrorismo nuclear (adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas aos 13 de Abril de 2005);

e) Convenção internacional contra a tomada de reféns (adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas aos 17 de Dezembro de 1979);

n) Emenda à Convenção sobre a protecção física dos materiais nucleares (feita em Viena aos 8 de Julho de 2005);

f) Convenção sobre a protecção física dos materiais nucleares (adoptada em Viena aos 3 de Março de 1980);

o) Protocolo relativo à Convenção para a repressão de actos ilícitos contra a segurança da navegação marítima (feito em Londres aos 14 de Outubro de 2005);

g) Protocolo para a repressão de actos ilícitos de violência nos aeroportos ao serviço de aviação civil internacional, complementar à Convenção para a repressão de actos ilícitos contra a segurança da aviação civil de 1971 (concluído em Montreal, aos 24 de Fevereiro de 1988); h) Convenção para a repressão de actos ilícitos contra a segurança da

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p) Protocolo relativo ao Protocolo para a supressão de actos ilícitos contra a segurança das plataformas fixas localizadas na plataforma continental (feito em Londres aos 14 de Outubro de 2005). 6. “Autoridade central” designa a instância estabelecida por cada Estado

Aspectos Polémicos da Extradição

Parte para a execução da presente Convenção.

Artigo 2º: Designação das autoridades centrais competentes Cada Estado Parte designará e indicará ao Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, que transmitirá ao depositário da presente Convenção, uma autoridade central ou autoridades centrais pelas quais, ou por intermédio das quais, serão feitos e recebidos os pedidos de auxílio judiciário e/ou de extradição para os fins da presente Convenção.

Artigo 3º: Papel das autoridades centrais competentes À autoridade central caberá: a) Formular e receber pedidos de auxílio e de extradição, executar e/ou fazer executar os mencionados pedidos; b) Se necessário, certificar, autenticar, fazer certificar ou fazer autenticar todos os documentos ou outros elementos entregues em resposta a um pedido de auxílio e/ou de extradição; c) Tomar as medidas concretas necessárias para facilitar a retransmissão rápida e ordenada dos pedidos de auxílio e de extradição; d) Negociar e aceitar as condições referentes aos pedidos de auxílio e de extradição, e fazer com que essas condições sejam observadas; e) Tomar todas as disposições consideradas necessárias para transmitir as provas documentais reunidas em resposta a um pedido de auxílio ou de extradição à autoridade competente do Estado Parte

requerente ou autorizar outra instância a fazê-lo;

qualquer

f) Levar a efeito as demais atribuições previstas na presente Convenção, ou que serão eventualmente necessárias para que um auxílio eficaz e de qualidade e/ou uma extradição sejam levados a efeito ou recebidos.

Artigo 4º: Protecção da soberania 1. Os Estados Partes cumprem suas obrigações decorrentes da presente Convenção de maneira compatível com os princípios da igualdade soberana, da integridade territorial dos Estados, e da não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados. 2. Nada na presente Convenção habilita um Estado Parte a exercer no território de outro Estado competência e funções exclusivamente reservadas às autoridades deste outro Estado por seu ordenamento jurídico interno. 3. Nada na presente Convenção obriga um Estado Parte a conceder o auxílio e/ou extradição se ele não ratificou o instrumento universal contra o terrorismo sobre o qual se fundamenta o pedido de auxílio judiciário e/ou de extradição.

Artigo 5º: Exclusão da cláusula de excepção política ou fiscal 1. Para as exigências do auxílio judiciário e da extradição entre Estados Partes, nenhuma infracção prevista nos instrumentos universais contra o terrorismo será considerada como crime político, como crime conexo a um crime político, ou como crime inspirado em motivos políticos. Consequentemente, nenhum pedido de auxílio judiciário ou de extradição baseado sobre uma tal infracção poderá ser recusado com o exclusivo fundamento de que se reporta a um

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crime político, a um crime conexo a um crime político, ou ainda a um crime inspirado em motivos políticos. 2. Para as exigências do auxílio judiciário e da extradição entre Estados Partes, nenhuma infracção prevista na Convenção internacional para a eliminação do financiamento do terrorismo será considerada como infracção fiscal ou como infracção conexa a uma infracção fiscal. Consequentemente, nenhum pedido de auxílio judiciário ou de extradição baseado sobre uma tal infracção poderá ser recusado com o exclusivo fundamento de que se reporta a uma infracção fiscal ou infracção conexa a uma infracção fiscal.

Artigo 6º: Cláusula de nãodiscriminação Nada na presente Convenção poderá ser interpretado como a impor uma obrigação de conceder auxílio judiciário em matéria penal ou de extraditar se há sérios motivos para crer que o pedido de auxílio judiciário em matéria penal ou de extradição relativo a uma das infracções previstas nos instrumentos universais contra o terrorismo, foi formulado com o propósito de exercer a acção penal ou punir qualquer pessoa com base em raça, religião, nacionalidade, origem ética ou opinião política, ou tiver razões para crer que a satisfação do pedido poderá prejudicar a situação da pessoa em causa por qualquer destas razões.

Artigo 7º: Motivação da recusa 1. Qualquer recusa parcial ou total em conceder um pedido de auxílio judiciário em matéria penal ou de extradição deve ser fundamentada, e as razões comunicadas pelo Estado

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Parte requerido requerente.

ao

Estado

Parte

2. Antes de recusar a extradição ou auxílio judiciário, o Estado Parte requerido deverá, eventualmente, consultar o Estado Parte requerente para oferecer-lhe a possibilidade de apresentar sua opinião e de fornecer informações em suporte de suas alegações. 3. Tratando-se de auxílio judiciário e se possível, é permitido à autoridade central do Estado Parte requerido não rejeitar um pedido e oferecer o auxílio requerido sob reserva das condições que considere necessárias, tais como, a título indicativo e não exaustivo, restrições a limitar sua utilização. Uma vez aceitas essas condições pelo Estado Parte requerente, à satisfação da autoridade central do Estado Parte requerido, esta poderá transmitir os resultados da execução do pedido. 4. A presente Convenção não impede que o Estado requerido invoque os motivos de recusa de auxílio e de extradição previstos em tratado bilateral de auxílio judiciário mútuo e/ou de extradição, ou, em ausência de tratado, os princípios aplicáveis de seu direito interno, inclusive quando execução do pedido seja susceptível de prejudicar a sua soberania, a sua segurança, a sua ordem pública ou outros interesses essenciais.

PARTE 2 : Do Auxílio Judiciário Mútuo TÍTULO 1: Disposições Gerais Artigo 8º:Objecto As Partes comprometem-se a prestar reciprocamente, em conformidade com as disposições da presente Convenção, todo o auxílio judiciário possível no âmbito de procedimento relativo às infracções previstas nos instrumentos universais contra o

Aspectos Polémicos da Extradição

terrorismo e cuja repressão seja, no momento em que o pedido é formulado, de competência das autoridades judiciais da parte requerente.

Artigo 9º: Âmbito de aplicação O auxílio judiciário em matéria penal a ser prestado em aplicação da presente Convenção pode ser solicitado para os seguintes efeitos: a) Recolha de testemunhos ou de depoimentos; b) Notificação de actos judiciais; c) Realização de buscas, apreensões, e congelamentos; d) Exame de objectos e de locais; e) Fornecimento de informações, de elementos de prova e de pareceres de peritos; f) Fornecimento de originais ou de cópias certificadas de documentos e de processos pertinentes, inclusive documentos administrativos, bancários, financeiros ou comerciais e documentos de empresas; g) Identificação ou localização dos produtos do crime, bens, instrumentos ou outros elementos para fins probatórios; h) Facilitação da comparência voluntária de pessoas no Estado Parte requerente; i) Prestação de qualquer outro tipo de assistência compatível com o direito interno do Estado Parte requerido.

Artigo 10: Proibição de invocar o sigilo bancário Os Estados Partes não poderão invocar o sigilo bancário para recusar

o auxílio judiciário em matéria penal previsto na presente Convenção.

Artigo 11 : Dupla criminalização 1. Os Estados Partes poderão invocar a ausência de dupla criminalização para recusar seguimento a um pedido de auxílio judiciário previsto na presente Convenção. 2. O Estado Parte requerido poderá, não obstante, quando o considerar apropriado, prestar essa assistência, na medida em que o decida por si próprio, independentemente de o acto estar ou não tipificado como uma infracção no direito interno do Estado Parte requerido.

Artigo 12 : Formas de pedido 1. A autoridade central do Estado Parte requerido admitirá um pedido de auxílio proveniente de um Estado Parte requerente por qualquer meio que possa produzir um documento escrito, em condições que lhe permitam verificar a sua autenticidade. 2. Em caso de urgência, a autoridade central do Estado Parte requerido admitirá um pedido feito oralmente, sob reserva de que este seja confirmado por qualquer meio que possa produzir um documento escrito, o mais prontamente possível.

Artigo 13: Transmissão de pedidos de auxílio judiciário em matéria penal Em caso de urgência, os pedidos de auxílio serão transmitidos directamente de autoridade judiciária a autoridade judiciária. A autoridade central da Parte requerente transmitirá, o mais prontamente possível, o original do pedido à autoridade central da Parte requerida. Todo pedido de auxílio judiciário

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poderá ser transmitido por meio da Organização Internacional de Polícia Criminal (OIPC)-Interpol à autoridade central da Parte requerida.

Artigo 14 : Conteúdo do pedido 1. Um pedido de auxílio judiciário em matéria penal deverá conter os seguintes elementos: a) A designação oficial da autoridade requerente encarregada da investigação, processos ou procedimento judicial sobre o qual ou sobre os quais trata o pedido, e sobretudo seu nome, suas funções e/ou títulos, suas coordenadas completas assim como as da pessoa habilitada para responder a questões relativas ao pedido, a língua ou línguas nas quais a autoridade requerente pode ser contactada e eventualmente as referências do processo;

salvo para os pedidos voltados à notificação de actos judiciários, e se for o caso, das infracções e sanções envolvidas; g) A identificação da pessoa a ser ouvida como testemunha ou suspeita, inclusive seu prenome, seu nome e, eventualmente, o nome de solteira e seu pseudónimo se aplicável, seu género, sua nacionalidade, sua data e local de nascimento, sua residência ou morada conhecida, a língua ou as línguas compreendidas pela pessoa procurada, os traços distintivos e as fotos e impressões digitais da pessoa procurada; h) A descrição dos objectos a apreender e/ou a devolver e, eventualmente, os locais em que se encontrem; i) Qualquer outra informação necessária para a correcta execução do pedido;

b) A base jurídica sobre a qual se fundamenta o pedido;

j) O prazo previsto de execução e, em caso de urgência, os seus motivos;

c) A descrição da assistência pretendida e eventualmente pormenores de qualquer procedimento específico que o Estado Parte requerente deseje ver aplicado;

k) Eventualmente, reciprocidade;

d) A natureza e qualificação jurídica dos factos no Estado Parte requerente assim como as disposições legais aplicáveis 2;

m) Eventualmente, os anexos, incluindo os documentos relevantes juntados ao pedido.

a

garantia

de

l) A assinatura e o selo oficial da autoridade requerente, a data de emissão do pedido;

f) Uma descrição do processo penal, e sobretudo um resumo dos factos,

2. Na hipótese de as informações referidas no parágrafo 1 do presente artigo serem insuficientes, o Estado Parte requerido poderá solicitar um complemento de informação ao Estado Parte requerente.

Cópias dos textos legais contendo a incriminação deverão ser enviadas em anexo ao pedido.

3. A falta de informações referidas no parágrafo 1 do presente artigo não altera a validade deste pedido, e este

e) A finalidade do pedido;

2

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Aspectos Polémicos da Extradição

defeito de informação não dispensará a execução do pedido.

auxílio judiciário possa ser prestado ao abrigo da presente Convenção.

Artigo 15 : Direito aplicável

Artigo 18 : Fornecimento de documentos acessíveis ao público e outros processos

Qualquer pedido será executado em conformidade com o direito interno do Estado Parte requerido e, na medida em que não contrarie este direito e seja possível, em conformidade com os procedimentos especificados no pedido.

Artigo 16 : Confidencialidade O Estado Parte envidará todos os esforços para manter o carácter confidencial de um pedido e de seu conteúdo se isso for solicitado pelo Estado Parte requerente. Se for impossível executar o pedido sem violar a confidencialidade solicitada, a autoridade central do Estado Parte requerido disso informará o Estado Parte requerente, que então decidirá sobre a conveniência de, não obstante, executar o pedido.

Artigo 17 : Regra da especialidade 1. O Estado Parte requerente não poderá, sem o consentimento prévio do Estado Parte requerido, utilizar ou comunicar as informações ou elementos de prova fornecidos pelo Estado Parte requerido para efeitos de investigações, processos ou procedimentos judiciais diferentes dos mencionados no pedido. Contudo, a autoridade central do Estado Parte requerente poderá autorizar sua utilização ou comunicação para tais outros fins. 2. Não obstante o princípio mencionado no parágrafo 1 do presente artigo, quando a acusação for modificada, os documentos fornecidos poderão ser utilizados na medida em que a infracção imputada seja uma infracção para a qual o

1. O Estado Parte requerido fornecerá cópias dos documentos e processos acessíveis como autos públicos ou outras peças, ou a outro título, ou que estejam acessíveis ao público por força do seu direito interno. 2. O Estado Parte requerido fornecerá cópias de quaisquer outros documentos ou processos oficiais nas mesmas condições em que poderiam ser fornecidos às suas próprias autoridades repressivas ou judiciárias. 3. O Estado Parte requerido poderá, por si próprio, fornecer ao Estado Parte requerente, de modo integral, parcial ou sujeito às condições que considerar necessárias, cópias de todos os processos, documentos ou informações administrativas em seu poder e que, por força de seu direito interno, não sejam acessíveis ao público.

Artigo 19 : Presença na execução do pedido de auxílio 1. Com o consentimento prévio do Estado Parte requerido, as autoridades competentes do Estado Parte requerente poderão designar pessoas qualificadas para assistir à execução do pedido de auxílio. Nessa hipótese, o Estado Parte requerido informará o Estado Parte requerente sobre a data e o local da execução do pedido de auxílio. 2. Quando houverem assistido a execução do pedido de auxílio, as pessoas qualificadas designadas pelo

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Estado Parte requerido poderão receber cópia das peças de execução.

Artigo 20 : Legalização e autenticação Salvo disposição em contrário na presente Convenção, o pedido de auxílio judiciário em matéria penal e as peças de suporte produzidas, assim como os documentos e outras peças fornecidas em resposta a esse pedido, serão dispensados de qualquer formalidade de legalização ou de autenticação.

Artigo 21 : Prazo de execução do pedido 1. O Estado Parte requerido executará o pedido de auxílio judiciário tão prontamente quanto possível, e terá em conta, na medida do possível, todos os prazos sugeridos pelo Estado Parte requerente para os quais sejam dadas justificações, de preferência, no pedido. O Estado Parte requerido responderá aos pedidos razoáveis do Estado Parte requerente em relação ao andamento das diligências solicitadas. Quando a assistência pedida deixar de ser necessária, o Estado Parte requerente informará o Estado Parte requerido desse facto, sem demora. 2. O auxílio judiciário poderá ser adiado pelo Estado Parte requerido por interferir com uma investigação, processos ou outros actos judiciais em curso. Contudo, antes de adiar a execução por força do parágrafo 1 do presente artigo, o Estado Parte requerido estudará com o Estado Parte requerente a possibilidade de prestar o auxílio sob reserva das condições que considere necessárias. Se o Estado Parte requerente aceitar o auxílio com essas condições, deverá respeitá-las.

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Artigo 22 : Restituição de objectos, processos ou documentos ao Estado Parte requerido Os objectos, processos ou documentos originais fornecidos ao Estado Parte requerente em aplicação da presente Convenção serão devolvidos tão logo seja possível ao Estado Parte requerido, a menos que este renuncie a tal direito.

Artigo 23 : Despesas do auxílio judiciário Salvo se as Partes envolvidas tiverem acordado de forma diferente, as despesas ordinárias relacionadas com a execução de um pedido constituirão encargo do Estado Parte requerido. Quando venham a revelar-se necessárias despesas significativas ou extraordinárias, as Partes consultarse-ão previamente para fixar os termos e as condições segundo as quais o pedido deverá ser executado.

Artigo 24 : Transmissão espontânea de informações 1. Sem prejuízo do seu direito interno, as autoridades competentes de um Estado Parte poderão, sem pedido prévio, comunicar informações relativas a questões penais a uma autoridade competente de outro Estado Parte, se considerarem que estas informações poderão contribuir para que ela proceda ou conclua com êxito investigações e processos penais, ou permitir a este último Estado Parte formular um pedido ao abrigo da presente Convenção. 2. A autoridade que fornecer informações poderá, em conformidade com seu direito interno, submeter sua utilização a determinadas condições

Aspectos Polémicos da Extradição

pela autoridade destinatária. Esta deverá respeitar tais condições.

TÍTULO 2: Disposições Especiais Relativas a Certas Modalidades de Auxílio Judiciário em Matéria Penal Artigo 25 : Devolução de actos processuais e de decisões judiciais 1. Sem prejuízo do disposto no artigo 15 da presente Convenção, o Estado Parte requerido procederá à entrega dos actos processuais e decisões judiciais que lhe terão sido enviados para esse fim pelo Estado Parte requerente. Essa entrega poderá efectuar-se por simples transmissão do acto ou da decisão ao destinatário. Quando o Estado Parte requerente solicitar expressamente, o Estado Parte requerido procederá à entrega numa das formas previstas pela legislação do Estado Parte requerente para actos de carácter análogo ou em forma especial compatível com essa legislação. 2. A prova da entrega far-se-á por meio de recibo datado e assinado pelo destinatário, ou por declaração do Estado Parte requerido que certifique o facto, a forma e a data da entrega. Quaisquer um desses documentos será transmitido imediatamente ao Estado Parte requerente. Sob solicitação deste último, o Estado Parte requerido especificará se a entrega foi feita em conformidade com a sua lei interna. Se a entrega não se houver efectuado, o Estado Parte requerido imediatamente comunicará o motivo ao Estado Parte requerente. 3. O Estado Parte requerido poderá adiar a entrega de objectos, processos ou documentos cuja comunicação é solicitada, se forem necessários para um processo penal em curso.

4. Os objectos e originais dos processos e documentos, que terão sido comunicados na execução de um pedido de auxílio judiciário em matéria penal, serão devolvidos assim que possível pelo Estado Parte requerente à autoridade requerida, a menos que esta renuncie a tal direito.

Artigo 26 : Recolha de testemunhos e declarações 1. Quando o Estado Parte requerente considerar que a comparência pessoal de uma testemunha ou de um perito diante de suas autoridades judiciárias, ou que o facto de intervir numa investigação relativa a um processo penal sejam particularmente necessários, deverá fazer menção expressa no pedido de entrega da citação, e a autoridade requerida convidará essa testemunha ou esse perito a comparecer num procedimento penal, ou a intervir numa investigação relativa a um processo penal. A autoridade central requerida levará a resposta da testemunha ou do perito ao conhecimento da autoridade requerente. Eventualmente, o Estado Parte requerente explicará as medidas necessárias levadas a efeito para garantir a segurança da pessoa em questão. 2. A entrega de um documento a solicitar a comparência de uma pessoa deverá ser feita ao Estado Parte requerido ao menos 30 dias antes dessa comparência. Em caso de urgência, o Estado Parte requerido deverá aceitar a redução desse prazo. 3. As indemnizações, bem como despesas de viagem e de diárias a reembolsar à testemunha ou ao perito pelo Estado Parte requerente deverão ser calculadas em função do lugar da sua residência e ser-lhe-ão concedidas

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conforme tarifas não inferiores às tarifas e regulamentos em vigor no Estado em que a audição deva ocorrer. Quando lhe for apresentado pedido para este efeito, a autoridade central requerida poderá consentir em abonar um adiantamento à testemunha ou ao perito. Tal adiantamento será mencionado na citação e reembolsado pelo Estado Parte requerente.

solicitada noutro Estado Parte para fins de identificação, de depoimento, ou para, de outro modo, auxiliar na obtenção de meios probatórios necessários à investigação, processos ou procedimentos judiciais instaurados em relação a infracções previstas nos instrumentos universais contra o terrorismo, poderá ser transferida se forem observadas as seguintes condições:

4. Uma pessoa convidada a testemunhar no Estado Parte requerido ou no Estado Parte requerente poderá recusar-se nas seguintes hipóteses:

a) A pessoa der livremente seu consentimento com conhecimento de causa; e

a) A legislação do Estado Parte requerido assegura o direito, ou impõe a essa pessoa a obrigação, de recusar testemunhar em circunstâncias análogas num procedimento movido no Estado Parte requerido; ou b) A legislação do Estado Parte requerente assegura o direito, ou impõe a essa pessoa a obrigação, de recusar testemunhar em circunstâncias análogas num procedimento movido no Estado Parte requerente. 5. Quando uma pessoa declarar que a legislação do Estado Parte requerido ou do Estado Parte requerente assegura-lhe o direito ou impõe-lhe a obrigação de recusar testemunhar, o Estado em que ela se encontre deverá decidir com base em atestado que emane da autoridade competente do outro Estado.

Artigo 27 : Comparência de pessoas detidas 1. Qualquer pessoa detida ou a cumprir pena no território de um Estado Parte, cuja presença for

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b) O Estado Parte requerido der seu consentimento. 2. Para os fins do parágrafo 1 do presente artigo: a) O Estado Parte para o qual a pessoa for transferida terá o poder e a obrigação de manter a pessoa em causa sob custódia, salvo solicitação ou autorização em contrário do Estado Parte do qual a pessoa foi transferida; b) O Estado Parte para o qual a pessoa for transferida deverá, sem demora, executar a sua obrigação de entregar a pessoa à custódia do Estado Parte a partir do qual a transferência foi efectuada, segundo acordo prévio ou conforme acordado de outro modo pelas autoridades competentes de ambos os Estados; c) O Estado Parte para o qual a pessoa for transferida não requererá ao Estado Parte que a transferiu que desencadeie o processo de extradição da pessoa em causa; d) Será tido em consideração o período em que a pessoa em causa permaneceu sob detenção no Estado Parte para onde foi transferida, para fins de liquidação da pena ainda a

Aspectos Polémicos da Extradição

cumprir no Estado Parte de onde foi transferida. 3. Excepto com o consentimento do Estado Parte do qual a pessoa for transferida, em conformidade com os parágrafos 1 e 2 do presente artigo, tal pessoa, independentemente da sua nacionalidade, não poderá ser objecto de processo, nem será detida ou sujeita a qualquer outra restrição à sua liberdade pessoal no território do Estado Parte para o qual for transferida relativamente a actos, omissões ou condenações anteriores à sua saída do território do Estado Parte do qual for transferida. 4. O trânsito da pessoa detida por território de outro Estado, Parte à presente Convenção, será acordado em vista de pedido instruído com todos os documentos úteis e endereçado pela autoridade central do Estado Parte requerente à autoridade central do Estado Parte requerido de trânsito ou ainda pelo Ministério encarregado da Justiça do Estado Parte requerente ao Ministério encarregado da Justiça do Estado Parte requerido de trânsito.

Artigo 28 : Salvo-conduto 1. Nenhuma testemunha, detida ou não, ou perito, de qualquer nacionalidade, que, em consequência de uma citação, comparecer diante das autoridades judiciais do Estado Parte requerente, ou intervir em investigação relativa a processo penal, poderá em hipótese alguma ser objecto de processo, nem será detida, ou sujeita a qualquer outra restrição à sua liberdade pessoal no território desse Estado, por factos ou condenações anteriores à sua saída do território da Parte requerida e não mencionadas na citação.

2. A imunidade prevista no presente artigo cessa quando a testemunha ou o perito, tendo a possibilidade de deixar o território da Parte requerente durante quinze dias consecutivos, a contar da data em que sua presença não é mais exigida pelas autoridades judiciais, permanecer nesse território ou, tendo-o deixado, a ele tenha regressado. 3. Uma pessoa que não aquiesce a um pedido feito em aplicação dos artigos 26 e 27 da presente Convenção não incorrerá em qualquer sanção ou medida coercitiva em razão dessa recusa, não obstante qualquer afirmação em contrário.

Artigo 29 : Testemunhos e declarações por videoconferência 1. A autoridade competente do Estado Parte requerente poderá solicitar que o testemunho ou a declaração sejam recolhidos, que uma pessoa ou um objecto sejam identificados, ou que qualquer outra forma de auxílio seja prestado por meio da utilização das técnicas de transmissão por vídeo ou telefónica. 2. As despesas pelo estabelecimento e manutenção de uma conexão por vídeo ou por telefone no Estado Parte requerido deverão ser cobertas pelo Estado Parte requerente, salvo acordo em contrário.

Artigo 30 : Buscas e apreensões Observando sua própria legislação, e salvaguardados os direitos de terceiros de boa-fé, as autoridades competentes do Estado Parte requerido deverão proceder às buscas, apreensões e entrega de objectos que o Estado Parte requerente lhe tenha pedido para efectuar com a finalidade de recolher peças de convicção.

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Artigo 31 : Congelamento, apreensão e perda de bens, instrumentos do crime e produtos do crime 1. Para os fins do presente artigo: a) “Congelamento” ou “apreensão” refere-se à proibição temporária de transferir, converter, dispor ou movimentar bens, ou a assunção do controlo temporário de bens, por decisão de um tribunal ou de outra autoridade competente; b) “Perda de bens” refere-se à perda definitiva de bens, por decisão, segundo as disposições internas de cada Estado, de um tribunal ou outra autoridade competente; c) “Bens” referem-se aos activos de qualquer tipo, corpóreos ou incorpóreos, móveis ou imóveis, tangíveis ou intangíveis, e os documentos ou instrumentos jurídicos que atestem a propriedade ou outros direitos sobre os referidos activos, quando utilizados ou destinados a serem utilizados, total ou parcialmente, para a prática de qualquer acto que constitua uma infracção prevista nos instrumentos universais contra o terrorismo, ou em conexão com tal acto; d) “Instrumentos do crime” designa qualquer bem: i) utilizado quando da prática de uma infracção ou de uma actividade ilícita, ou em conexão com tal acto; ou ii) destinado a ser utilizado quando da prática de uma infracção ou de uma actividade ilícita, ou em conexão com tal acto; quer o bem se encontre, ou que a infracção seja

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praticada, no interior ou no exterior do Estado Parte requerido; e) “Produtos do crime” refere-se a todos os fundos resultantes, directa ou indirectamente, da prática de uma infracção prevista nos instrumentos universais contra o terrorismo, ou obtidos, directa ou indirectamente, graças à prática de uma tal infracção, quer o bem se encontre, ou que a infracção seja praticada, no interior ou no exterior do Estado Parte requerido. 2. A partir do pedido de um Estado, a autoridade competente do Estado Parte requerido determinará o congelamento ou a apreensão de um bem, do produto ou do instrumento de um crime, ou ainda de um bem destinado para fins terroristas, após ter-se assegurado da existência de fundamentos suficientes para obter a decisão a conceder tal medida em aplicação do direito interno do Estado Parte requerente, que será aplicado como se a infracção, objecto da decisão, tivesse sido praticada no território do Estado Parte requerido. 3. O Estado Parte requerido deverá, na medida em que seu direito interno o permita e se tal lhe for solicitado, considerar prioritariamente a restituição do produto do crime ou dos bens perdidos ao Estado Parte requerente, para que este último possa indemnizar as vítimas da infracção ou restituir este produto do crime ou estes bens aos seus legítimos proprietários.

Artigo 32 : Denúncia oficial para fins de exercer a acção penal Qualquer denúncia endereçada por um Estado Parte em vista de promover acções penais diante de tribunais de outro Estado Parte será objecto de comunicações entre autoridades

Aspectos Polémicos da Extradição

centrais, ou entre Ministérios encarregados da Justiça. O Estado Parte requerido fará conhecer as diligências efectuadas em razão da denúncia, e transmitirá cópia da decisão resultante, se for o caso.

PARTE 3 : Da Extradição Artigo 33 : Obrigação de extraditar ou promover a acção penal 1. Os Estados Partes comprometemse a entregar reciprocamente, sob pedido e em conformidade com as disposições da presente Convenção, as pessoas procuradas em razão de investigações, processo ou procedimento penal no Estado Parte requerente por qualquer infracção prevista nos instrumentos universais contra o terrorismo, ou para infligir ou executar uma pena relativa a uma tal infracção. 2. Quando o Estado Parte requerido responder negativamente ao pedido de extradição, deverá submeter o caso, sem qualquer excepção, independente do lugar de prática do acto ou da nacionalidade de seu autor e sem demora excessiva, às suas autoridades competentes para o exercício da acção penal. O Estado Parte requerente, na medida do possível, apresentará denúncia oficial para os fins do processo. 3. Cada Estado Parte adoptará as medidas que se revelarem necessárias para estabelecer sua jurisdição, em conformidade com a presente Convenção, nos casos em que o presumido autor da infracção se encontra em seu território, e em que ele não é extraditado para um Estado Parte cuja jurisdição para promover a acção penal se fundamenta em uma regra jurisdicional igualmente

existente na legislação do Estado Parte requerido. A presente Convenção não exclui qualquer jurisdição penal exercida em conformidade com as leis nacionais.

Artigo 34 : Infracções que dão lugar à extradição 1. Para os fins da presente Convenção, as infracções que dão lugar à extradição são aquelas previstas nos instrumentos universais contra o terrorismo. Quando o pedido de extradição refere-se a um indivíduo procurado para cumprir pena de prisão ou outra forma de restrição da liberdade impostas por uma tal infracção, a extradição será concedida apenas se a duração da pena restante a cumprir for de ao menos 6 meses. 2. Para determinar se uma infracção também é infracção na legislação de cada um dos Estados Partes, não se considera: a) O facto de as legislações dos Estados Partes classificarem ou não os actos ou omissões que constituam a infracção sob a mesma categoria de infracções, ou de designarem as infracções com o mesmo nome; b) O facto de os elementos constitutivos da infracção serem ou não os mesmos na legislação de cada um dos Estados Partes, entendendo-se que a totalidade dos actos ou omissões será tomada em consideração, tal como apresentados pelo Estado Parte requerente.

Artigo 35 : Motivos obrigatórios de recusa Não obstante o disposto no artigo 5 da presente Convenção, a extradição deverá ser recusada pelos seguintes motivos:

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1. Tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes: Nada na presente Convenção deve ser interpretado como a implicar uma obrigação de extraditar quando a pessoa objecto do pedido de extradição sofre o risco de ser exposta à tortura ou a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, no sentido atribuído pelo direito internacional; 2. Nacionalidade: Quando o indivíduo objecto do pedido de extradição é originário do Estado Parte requerido, caso a lei interna deste Estado proíba a extradição de nacionais; 3. Garantias do devido processo legal: Quando o indivíduo cuja extradição é solicitada não recebeu ou não receberá as garantias mínimas previstas, no curso dos procedimentos penais, pelo artigo 14 do Pacto internacional sobre os direitos civis e políticos 3;

3 Artigo 14 do Pacto internacional sobre os direitos civis e políticos: “1. Todos são iguais perante os tribunais de justiça. Todas as pessoas têm direito a que a sua causa seja ouvida equitativa e publicamente por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido pela lei, que decidirá quer do bem fundado de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra elas, quer das contestações sobre os seus direitos e obrigações de carácter civil. As audições à porta fechada podem ser determinadas durante a totalidade ou uma parte do processo, seja no interesse dos bons costumes, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, seja quando o interesse da vida privada das partes em causa o exija, seja ainda na medida em que o tribunal o considerar

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absolutamente necessário, quando, por motivo das circunstâncias particulares do caso, a publicidade prejudicasse os interesses da justiça; todavia qualquer sentença pronunciada em matéria penal ou civil será publicada, salvo se o interesse de menores exigir que se proceda de outra forma ou se o processo respeita a diferendos matrimoniais ou à tutela de crianças. 2. Qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida. 3. Qualquer pessoa acusada de uma infracção penal terá direito, em plena igualdade, pelo menos às seguintes garantias: a) A ser prontamente informada, numa língua que ela compreenda, de modo detalhado, acerca da natureza e dos motivos da acusação apresentada contra ela; b) A dispor do tempo e das facilidades necessárias para a preparação da defesa e a comunicar com um advogado da sua escolha; c) A ser julgada sem demora excessiva; d) A estar presente no processo e a defender-se a si própria ou a ter a assistência de um defensor da sua escolha; se não tiver defensor, a ser informada do seu direito de ter um e, sempre que o interesse da justiça o exigir, a ser-lhe atribuído um defensor oficioso, a título gratuito no caso de não ter meios para o remunerar; e) A interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e a obter a comparência e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições das testemunhas de acusação;

Aspectos Polémicos da Extradição

4. Julgamento à revelia do interessado: Quando o julgamento no Estado Parte requerente produziuse na ausência do interessado, este não foi prevenido com suficiente antecedência em relação ao julgamento, não teve a possibilidade de adoptar medidas para assegurar sua defesa, e ainda não pôde ou não

f) A fazer-se assistir gratuitamente de um intérprete, se não compreender ou não falar a língua utilizada no tribunal; g) A não ser forçada a testemunhar contra si própria ou a confessar-se culpada. 4. No processo aplicável às pessoas jovens a lei penal terá em conta a sua idade e o interesse que apresenta a sua reabilitação. 5. Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei. 6. Quando uma condenação penal definitiva é ulteriormente anulada ou quando é concedido o indulto, porque um facto novo ou recentemente revelado prova concludentemente que se produziu um erro judiciário, a pessoa que cumpriu uma pena em virtude dessa condenação será indemnizada, em conformidade com a lei, a menos que se prove que a não revelação em tempo útil do facto desconhecido lhe é imputável no todo ou em parte. 7. Ninguém pode ser julgado ou punido novamente por motivo de uma infracção da qual já foi absolvido ou pela qual já foi condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal de cada país.”

poderá submeter o caso a novo julgamento em sua presença.

Artigo 36 : Motivos facultativos de recusa A extradição poderá ser recusada pelos seguintes motivos: 1. Julgamento definitivo pronunciado: Quando um julgamento definitivo foi pronunciado no Estado Parte requerido, em razão dos mesmos factos incriminadores nos quais se baseia o pedido de extradição; 2. Procedimento pendente no Estado Parte requerido: Quando a infracção que motiva o pedido de extradição seja objecto de procedimento, contra o indivíduo cuja extradição é solicitada, da competência do Estado Parte requerido; 3. Prazos de prescrição: Se os procedimentos criminais ou a pena em face da pessoa procurada encontramse prescritos nos termos do direito do Estado Parte requerido ou do Estado Parte requerente, em razão do decurso do tempo ou do vencimento de um prazo de prescrição quando da recepção do pedido de extradição; 4. Considerações humanitárias: Se o Estado Parte requerido, tendo em conta a natureza da infracção, e os interesses do Estado requerente, considerar que a extradição do indivíduo seja incompatível com considerações humanitárias, em razão da idade, do estado de saúde, ou de outras circunstâncias pessoais do indivíduo em questão.

Artigo 37 : Penas a cumprir Quando a pena cominada na legislação do Estado Parte requerente, pelos factos que deram causa ao pedido de

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extradição, não for prevista na legislação do Estado Parte requerido, essa pena é substituída, por acordo entre os dois Estados Partes, pela pena cominada para os mesmos factos na legislação do Estado Parte requerido.

Artigo 38 : Forma e conteúdo do pedido

de solteira e seu pseudónimo se aplicável, seu género, sua nacionalidade, sua data e local de nascimento, sua residência ou morada conhecida, a língua ou as línguas compreendidas pela pessoa procurada, os traços distintivos e as fotos e impressões digitais da pessoa procurada;

1. Os pedidos de extradição deverão ser feitos por escrito.

e) Qualquer outra informação necessária para a correcta execução do pedido;

2. Um pedido de extradição deverá conter os seguintes elementos:

f) Eventualmente, reciprocidade;

a) A designação oficial da autoridade requerente encarregada da investigação, processos ou procedimento judicial sobre o qual ou sobre os quais trata o pedido, e sobretudo seu nome, suas funções e/ou títulos, suas coordenadas completas assim como as da pessoa habilitada para responder a questões relativas ao pedido, a língua ou línguas nas quais a autoridade requerente pode ser contactada e eventualmente as referências do processo;

g) A assinatura e o selo oficial da autoridade requerente, a data de emissão do pedido;

b) A natureza e qualificação jurídica dos factos no Estado Parte requerente, ou eventualmente uma exposição do direito aplicável à infracção e a indicação da pena cominada para a infracção, assim como as disposições legais aplicáveis 4; c) Uma descrição do processo penal, e sobretudo um resumo dos factos; d) A identificação da pessoa a ser extraditada, inclusive seu prenome, seu nome e, eventualmente, o nome Cópias dos textos legais contendo a incriminação deverão ser enviadas em anexo ao pedido.

4

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a

garantia

de

h) Os anexos, incluindo os documentos relevantes juntados ao pedido. 3. O pedido será acompanhado: a) Quando o indivíduo é acusado de uma infracção, de mandado emitido por um tribunal ou outra autoridade judicial competente, ou de cópia autenticada do mandado, de certidão relativa à infracção que motivou o pedido de extradição, e de exposição dos actos ou omissões determinados como a caracterizar a infracção, inclusive indicação do lugar e da data em que ela foi praticada; b) Quando o indivíduo foi julgado culpado de uma infracção, de certidão relativa à infracção que motivou o pedido de extradição, de exposição dos actos ou omissões determinados como a caracterizar a infracção, bem como do julgamento ou de cópia autenticada do julgamento ou de qualquer outro documento a reconhecer a culpabilidade do interessado e a indicar a pena imposta, o facto de o

Aspectos Polémicos da Extradição

julgamento ser exequível e a medida de pena que resta a cumprir;

Artigo 41 : Legalização e autenticação

c) Quando o indivíduo foi julgado culpado de uma infracção à revelia, além dos documentos exigidos pela alínea b) deste parágrafo, de certidão a expor os meios jurídicos à disposição do indivíduo para preparar sua defesa ou para lograr novo julgamento do processo em sua presença;

Salvo disposição em contrário na presente Convenção, o pedido de extradição e as peças produzidas em seu suporte, bem como os documentos e outras peças prestados em resposta a este pedido, serão dispensados de qualquer formalidade de legalização ou de autenticação.

d) Quando o indivíduo foi julgado culpado de uma infracção, embora a condenação ainda se encontre pendente, da decisão judicial ou de documento a estabelecer a culpabilidade do interessado, e de certidão a indicar que uma sanção será determinada.

Artigo 42 : Complemento de informação

4. Quando as informações previstas no parágrafo 2 do presente artigo não estiverem contidas no pedido, deverse-á proceder à regularização do procedimento.

Artigo 39 : Tramitação do pedido O pedido de extradição, as peças justificativas e as ulteriores comunicações serão transmitidas pelas autoridades centrais designadas em conformidade com o artigo 2 da presente Convenção ou por via diplomática.

Artigo 40 : Processo simplificado de extradição Quando permitido pela legislação interna, o Estado Parte requerido poderá conceder a extradição após recepção de pedido de detenção provisória, desde que o indivíduo reclamado consinta expressamente diante da autoridade competente em ser extraditado.

Quando o Estado Parte requerido considerar que as informações prestadas em suporte de pedido de extradição não forem suficientes, ele poderá solicitar que um complemento de informação lhe seja prestado dentro de prazo razoável determinado em sua solicitação.

Artigo 43 : Detenção provisória 1. Em caso de urgência, o Estado Parte requerente poderá pedir a detenção provisória do indivíduo, na pendência da formulação de pedido de extradição. O pedido de detenção provisória deverá ser transmitido por meio da Organização Internacional de Polícia Criminal (OIPC)-Interpol, por via postal ou por qualquer outro meio que possa produzir um documento escrito. 2. O pedido de detenção provisória deverá conter a descrição do indivíduo procurado, uma certidão a indicar que a extradição será solicitada, uma certidão a atestar a existência de um dos documentos previstos no artigo 38 da presente Convenção, a autorizar a interpelação do interessado, uma indicação da pena cominada ou imposta pela infracção, inclusive a medida de pena que resta a cumprir, uma breve exposição dos factos, e uma

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indicação do lugar, se conhecido, em que se encontra o indivíduo procurado. 3. O Estado Parte requerido decidirá sobre o pedido em conformidade com sua legislação interna, e comunicará sua decisão ao Estado Parte requerente o mais prontamente possível. 4. A pessoa detida em consequência de um pedido de detenção provisória será colocada em liberdade após a expiração de um prazo de 40 dias, a contar da data da detenção, em caso de não recepção de um pedido de extradição, acompanhado dos documentos previstos no artigo 38 da presente Convenção. O presente parágrafo não exclui a possibilidade de libertação provisória da pessoa antes da expiração do prazo de 40 dias. 5. A libertação ao abrigo do parágrafo 4 do presente artigo não constituirá obstáculo a uma nova detenção, nem à iniciação de processo de extradição do interessado quando o pedido de extradição acompanhado dos documentos necessários for recebido ulteriormente.

Artigo 44 : Direito aplicável O Estado Parte requerido tratará do pedido de extradição em obediência aos procedimentos previstos em sua legislação interna.

Artigo 45 : Decisão sobre o pedido O Estado Parte requerido comunicará com celeridade sua decisão ao Estado Parte requerente.

Artigo 46 : Entrega do indivíduo 1. Uma vez concedida a extradição, os Estados Partes deverão prontamente adoptar as medidas necessárias para

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a entrega do indivíduo reclamado, e o Estado Parte requerido deverá informar o Estado Parte requerente do tempo em que aquele indivíduo esteve detido em função da entrega. 2. O indivíduo deverá ser conduzido do território do Estado Parte requerido dentro do prazo razoável determinado por este Estado; quando o indivíduo não tiver sido conduzido ao término deste prazo, o Estado Parte requerido poderá colocá-lo novamente em liberdade e recusar sua extradição pela mesma infracção. 3. Quando circunstâncias independentes à sua vontade impedirem que um Estado Parte entregue ou conduza o extraditando, deverá informar a outra Parte. Os dois Estados Partes determinarão conjuntamente uma nova data para a entrega, e as disposições do parágrafo 2 do presente artigo serão aplicáveis.

Artigo 47 : Entrega condicional ou diferida do indivíduo 1. Após decidir sobre o pedido de extradição, o Estado Parte requerido poderá diferir a entrega do indivíduo reclamado para que inicie processo contra ele, ou quando o indivíduo tiver sido condenado previamente, para que cumpra a pena imposta por infracção diferente daquela objecto do pedido de extradição. Neste caso, o Estado Parte requerido informará o Estado Parte requerente a este respeito. 2. O Estado Parte requerido poderá, ao invés de diferir a entrega, entregar temporariamente o indivíduo reclamado ao Estado Parte requerente mediante condições a serem conjuntamente determinadas pelos Estados Partes.

Aspectos Polémicos da Extradição

Artigo 48 : Entrega de objectos 1. Respeitada a legislação interna do Estado Parte requerido, e respeitados os direitos de terceiros, todos os bens encontrados no território do Estado Parte requerido cuja aquisição for resultado da infracção praticada, ou que possam ser requeridos como meios de prova, serão entregues ao Estado Parte requerente, quando este solicitá-lo e a extradição for concedida. 2. Quando solicitado pelo Estado Parte requerente, os bens em questão poderão ser entregues a este Estado mesmo se a extradição não se puder realizar. 3. Quando os bens mencionados forem susceptíveis de apreensão ou de perda no território do Estado Parte requerido, este último poderá mantêlos ou entregá-los temporariamente. 4. Quando exigido pela legislação do Estado Parte requerido ou para garantir direitos de terceiros, os bens assim entregues serão restituídos ao Estado Parte requerido sem despesas, uma vez terminado o procedimento, se o Estado assim o solicitar.

Artigo 49 : Regra da especialidade 1. Um indivíduo extraditado em conformidade com esta Convenção não poderá, no território do Estado Parte requerente, ser objecto de processo, ser condenado, detido, reextraditado para terceiro Estado, nem ser sujeito a qualquer outra restrição de sua liberdade pessoal por infracção praticada antes de sua entrega, salvo: a) Quando se tratar de uma infracção pela qual a extradição foi concedida;

b) Quando se tratar de outra infracção pela qual o Estado Parte requerido der seu consentimento. O consentimento será oferecido quando a infracção pela qual for solicitado der, ela própria, lugar à extradição nos termos da presente Convenção. 2. O pedido visando a obtenção do consentimento do Estado Parte requerido para os efeitos do presente artigo deverá ser acompanhado dos documentos previstos no artigo 38 da presente Convenção, e da acta judicial a conter as declarações prestadas pelo indivíduo extraditado em relação à infracção. 3. O parágrafo 1 do presente artigo não se aplica quando o indivíduo extraditado, tendo a possibilidade de deixar o território do Estado Parte requerente, não o faz durante 45 dias a contar da data de sua libertação definitiva em relação à infracção pela qual foi extraditado ou quando, tendo deixado este território, para ele tenha voluntariamente regressado.

Artigo 50 : Trânsito 1. Em caso de trânsito a impor a travessia de um terceiro Estado, Parte à presente Convenção, o Estado Parte requerente solicitará ao terceiro Estado que autorize a passagem em trânsito do interessado sobre seu território. A presente disposição não se aplica ao transporte aéreo sem previsão de aterragem no território da outra Parte. 2. Quando receber tal pedido, a conter as informações pertinentes, o Estado Parte requerido tratá-lo-á em conformidade com os procedimentos previstos em sua legislação interna. O Estado Parte requerido aquiescerá prontamente ao pedido, salvo se este

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puder causar prejuízo interesses fundamentais.

a

seus

3. O Estado de trânsito deverá assegurar-se de que sua legislação o autoriza a manter o indivíduo em detenção durante o trânsito. 4. Em caso de aterragem imprevista, o Estado Parte ao qual a autorização de trânsito deverá ser dirigida poderá, a pedido do oficial de polícia a acompanhar o indivíduo, detê-lo durante 72 horas, à espera da recepção do pedido de trânsito que deverá ser formulado em conformidade com as disposições do parágrafo 1 do presente artigo. 5. Os Estados Partes poderão considerar a conclusão de acordos bilaterais ou multilaterais relativos à aplicação do presente artigo.

Artigo 51 : Pedidos concorrentes Quando a extradição for objecto de pedidos concorrentes por vários Estados, seja pelos mesmos factos, seja por factos distintos, o Estado Parte requerido deverá decidir livremente, tendo em conta todas as circunstâncias, e sobretudo a nacionalidade do indivíduo, a possibilidade de uma extradição ulterior entre os Estados requerentes, as respectivas datas dos pedidos, a gravidade relativa e o lugar das infracções.

Artigo 52 : Despesas da extradição 1. O Estado Parte requerido deverá encarregar-se das despesas de qualquer procedimento decorrente de pedido de extradição levado a efeito em sua jurisdição, bem como das despesas relativas à apreensão em seu território e à entrega dos bens em questão ou à prisão e detenção do

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indivíduo objecto extradição.

do

pedido

de

2. O Estado Parte requerente deverá encarregar-se das despesas de transporte do indivíduo extraditado fora do território do Estado Parte requerido, inclusive as despesas de trânsito e outras despesas extraordinárias relativas à extradição.

Disposições Finais Artigo 53 : Relação com as outras Convenções, Tratados e Acordos A presente Convenção aplica-se sem prejuízo das demais normas internacionais e/ou regionais que sejam mais favoráveis ao auxílio judiciário mútuo e/ou à extradição.

Artigo 54 : Consultas diplomáticas Os Estados Partes consultar-se-ão prontamente por iniciativa de uma ou de outra Parte, em relação à interpretação, à aplicação ou à execução da presente Convenção, seja em abstracto seja em relação a um caso específico.

Artigo 55: Aplicação da Convenção 1. Conferência dos Estados Partes à Convenção: Uma Conferência dos Estados Partes à Convenção é instituída para melhorar a capacidade dos Estados Partes em assegurar o cumprimento das obrigações decorrentes da presente Convenção. 2. Secretariado: O Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, em cooperação com a Organização internacional da Francofonia, prestará serviços de secretariado necessários à Conferência dos Estados Partes à Convenção. 3. Assinatura, ratificação, aceitação e aprovação: A presente

Aspectos Polémicos da Extradição

Convenção está aberta à assinatura de todos os Estados até 31 de Dezembro de 2009. Ela está sujeita a ratificação, a aceitação ou a aprovação. Os instrumentos de ratificação, de aceitação ou de aprovação serão depositados junto ao Reino de Marrocos. 4. Entrada em vigor: A presente Convenção entrará em vigor no vigésimo dia seguinte à data de depósito do décimo instrumento de ratificação, de aceitação ou de aprovação. 5. Alterações: Cinco anos após a entrada em vigor da presente Convenção, um Estado Parte poderá propor uma alteração e comunicá-la ao Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime para transmissão ao Reino de Marrocos. Este último, em cooperação com o Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime, comunicará a proposta de alteração aos Estados Partes e à Conferência dos Estados Partes para análise da proposta e tomada de decisão. A Conferência dos Estados Partes fará todos os esforços para chegar a um consenso sobre qualquer alteração. Se todos os esforços para alcançar um consenso se esgotarem sem que se chegue a um acordo, a alteração será aprovada por maioria de dois terços dos Estados Partes que estejam presentes na Conferência dos Estados Partes e expressem seus votos. Uma alteração assim adoptada sujeita-se a ratificação, a aceitação ou a aprovação dos Estados Partes. Uma alteração assim adoptada entrará em vigor em relação a um Estado Parte vinte dias após a data do depósito pelo mesmo Estado Parte junto ao Reino de Marrocos. A entrada em vigor de uma alteração vincula os

Estados Partes que expressaram seu consentimento. Os outros Estados permanecerão vinculados pelas disposições da presente Convenção bem como por qualquer alteração anterior que tenham ratificado, aceite ou aprovado. 6. Denúncia: Um Estado Parte pode denunciar a presente Convenção mediante notificação por escrito dirigida ao depositário da presente Convenção. A denúncia tornar-se-á efectiva um ano após a data da recepção da notificação pelo depositário da presente Convenção. 7. Depositário: O Reino de Marrocos é depositário da presente Convenção. 8. Registo: Em conformidade com o artigo 102 da Carta das Nações Unidas, a presente Convenção será registada junto ao Secretário-Geral das Nações Unidas em Nova York, por iniciativa do depositário, e com assistência técnica do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime. EM FÉ DO QUE os abaixo assinados, devidamente mandatados para o efeito pelos respectivos Governos, assinaram a presente Convenção.

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IV. ACORDOS BILATERAIS

A) ACORDO DE COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA ENTRE A REPÚBLICA DE CABO VERDE E A REPÚBLICA DO SENEGAL (Decreto n.º 7/2000, de 2 de Maio, I Série, Boletim Oficial n.º 13)

[…] CAPÍTULO IX Extradição Artigo 34 Legislação Aplicável As partes contratantes comprometem-se a entregar reciprocamente, de acordo com as suas leis sobre extradição ou qualquer instrumento jurídico internacional tratando a mesma matéria e aplicável às duas partes, sejam acusados ou condenados pelas autoridades judiciárias da outra.

Artigo 35 Despesas A parte requerente suportará:

356

a)

as despesas de extradição desde o território da parte requerida;

b) As despesas de trânsito pelo território da parte na qual este foi solicitado.

[…] Artigo 37 Entrada em vigor O presente Acordo entra em vigor após notificação recíproca do cumprimento das formalidades constitucionais próprias de cada Parte

[…] Artigo 40 Revogação O presente Acordo revoga e substitui a Convenção de Cooperação em Matéria Judiciária, assinado em Dakar a 17 de Abril de 1980 entre a República do Senegal e a República de Cabo Verde. Feito na Praia, a 14 de Outubro de 1999. Em línguas portuguesa e francesa, os dois textos fazendo fé. Pelo Governo da República do Senegal, Serigne Diop –Ministro da Justiça.

Aspectos Polémicos da Extradição

Pelo Governo da República de Cabo Verde, Simão Gomes Monteiro, Ministro da Justiça e da Administração Interna.

Artigo 32º Requisitos negativos da cooperação 1. O pedido de cooperação poderá ser recusado quando: a)

B) ACORDO DE COOPERAÇÃO JURÍDICA E JUDICIÁRIA ENTRE A REPÚBLICA DE CABO VERDE E A REPÚBLICA PORTUGUESA (Resolução nº 98/VI/2004, de 7 de Junho, I Série, Boletim Oficial nº. 17)

[…] TÍTULO III Cooperação Judiciária em Matéria Penal SUBTÍTULO I Disposições gerais Artigo 31º Objecto O presente Acordo aplica-se às seguintes formas de cooperação judiciária em matéria penal: a)

auxílio judiciário matéria penal;

mútuo

b) houver fundadas razões para crer que a cooperação é solicitada com o fim de perseguir ou punir uma pessoa em virtude da sua raça, religião, sexo, nacionalidade, língua, das suas convicções políticas ou ideológicas ou da sua pertença a um grupo social determinado; c)

e)

em

transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade.

existir risco de agravamento da situação processual de uma pessoa por qualquer das razões indicadas na alínea anterior;

d) puder conduzir a julgamento por um tribunal de excepção ou respeitar a execução de sentença proferida por um tribunal dessa natureza; o Estado requerido considerar que a execução do pedido ofende a soberania, a segurança, a ordem pública ou outros seus interesses essenciais.

Artigo 33.º Recusa relativa à natureza da infracção

b) extradição; c)

o processo não satisfizer ou não respeitar as exigências dos instrumentos internacionais em matéria de direitos humanos ratificados por qualquer dos Estados Contratantes;

1. O pedido poderá ser também recusado quando o processo respeitar a facto que constituir: a)

infracção de natureza política ou infracção conexa a infracção política;

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b) crime militar que não seja simultaneamente previsto na lei penal comum. 2. Não se consideram de natureza política: a)

o genocídio, os crimes contra a Humanidade, os crimes de guerra e infracções graves segundo as Convenções de Genebra de 1949;

b) os actos referidos na Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 17 de Dezembro de 1984; c)

quaisquer outros crimes a que seja retirada natureza política por tratado, convenção ou acordo internacional de que os Estados Contratantes sejam partes.

Artigo 34.º Extinção do procedimento penal

obstando à cooperação por parte do Estado requerido. 2. O disposto nas alíneas a) e b) do número anterior não se aplica se o Estado Contratante que formula o pedido o justificar para fins de revisão da sentença e os fundamentos desta forem idênticos aos admitidos no direito do Estado requerido. 3. O disposto na alínea a) do n.º 1 não obsta à cooperação com fundamento na reabertura de processo arquivado previsto na lei.

Artigo 35.º Requisitos do pedido 1. O pedido de cooperação deve indicar: a)

a autoridade de que emana e a autoridade a quem se dirige;

b) o objecto e motivos do pedido; c)

a qualificação jurídica dos factos que motivam o procedimento;

1. A cooperação não é admissível se, no Estado Contratante requerido ou noutro Estado em que tenha sido instaurado procedimento pelo mesmo facto:

d) a identificação do suspeito, arguido ou condenado, da pessoa cuja extradição ou transferência se requer e a da testemunha ou perito a quem devam pedir-se declarações;

a)

e)

a narração dos factos, incluindo o lugar e o tempo da sua prática;

f)

o texto das disposições legais aplicáveis no Estado que o formula;

g)

quaisquer documentos relativos ao facto.

o processo tiver terminado com sentença absolutória transitada em julgado ou com decisão de arquivamento;

b) a sentença condenatória se encontrar cumprida ou não puder ser cumprida segundo o direito do Estado em que foi proferida; c)

o procedimento se encontrar extinto por qualquer outro motivo, salvo se este se encontrar previsto, em convenção internacional, como não

358

2. Os documentos não carecem de legalização. 3. A autoridade competente requerida pode solicitar que um pedido formalmente irregular ou incompleto seja modificado ou completado, sem

Aspectos Polémicos da Extradição

prejuízo da adopção de medidas provisórias quando estas não possam esperar pela regularização. 4. O requisito a que se refere a alínea f) do n.º 1 pode ser dispensado quando se tratar da forma de cooperação referida na alínea a) do artigo 31.º

Artigo 36º Despesas 1. O Estado Contratante requerido suporta as despesas decorrentes do pedido de cooperação. 2. Constituem, porém, encargo do Estado Contratante requerente: a)

as indemnizações e remunerações de testemunhas e peritos, bem como as despesas de viagem e estadia;

b) as despesas decorrentes do envio ou entrega de coisas; c)

as despesas relacionadas com o transporte de qualquer pessoa a pedido do Estado requerente, de ou para o território do Estado requerido, e quaisquer subsídios ou despesas devidos a essa pessoa durante a sua permanência no Estado requerente;

d) as despesas efectuadas com o recurso à teleconferência, em cumprimento de um pedido de cooperação; e)

outras despesas consideradas relevantes pelo Estado requerido, em função dos meios humanos e tecnológicos envolvidos no cumprimento do pedido.

os Estados Contratantes consultar-seão previamente para acordarem nos termos e condições dentro dos quais a cooperação pode ser concedida. 4. Os Estados Contratantes podem, mediante acordo, derrogar o disposto no n.º 2.

Artigo 37.º Medidas provisórias urgentes 1. Em caso de urgência, as autoridades judiciárias dos Estados Contratantes podem comunicar directamente entre si, ou por intermédio da Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), para solicitarem a adopção de uma medida cautelar ou para a prática de um acto que não admita demora. 2. O pedido é transmitido nos termos do artigo 7.º ou por qualquer outro meio que permita o seu registo escrito e que seja admitido pela lei do Estado requerido.

Artigo 38.º Destino do pedido 1. A decisão definitiva da autoridade judiciária que não atender o pedido de cooperação é comunicada à autoridade que o formulou. 2. Satisfeito um pedido de cooperação, a autoridade judiciária do Estado Contratante requerido envia, quando for caso disso, os respectivos autos à autoridade do Estado Contratante requerente. […]

3. Se for manifesto que o cumprimento do pedido envolverá despesas de natureza extraordinária,

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irrelevante a circunstância de serem ou não diferentes os elementos constitutivos do crime, segundo as leis dos Estados Contratantes.

SUBTÍTULO III Extradição Artigo 51.º Fim e fundamento da extradição Os Estados Contratantes acordam na extradição recíproca de pessoas, de acordo com as disposições do presente Acordo, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade, em virtude de um crime que dê lugar a extradição.

Artigo 52.º Crimes que dão lugar a extradição 1. Para os fins do presente Acordo, entende-se por crimes que dão lugar a extradição os crimes que, de acordo com as leis dos dois Estados Contratantes, sejam puníveis com pena ou medida privativas da liberdade cuja duração máxima seja superior a um ano. Quando o pedido de extradição diga respeito a uma pessoa condenada pela prática de um crime dessa natureza e procurada com vista ao cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade, a extradição apenas será concedida se a duração da pena ou medida ainda por cumprir for superior a nove meses. 2. Para os fins do presente artigo, na determinação dos crimes segundo a lei de ambos os Estados Contratantes: a)

não releva que as leis dos Estados Contratantes qualifiquem diferentemente os elementos constitutivos do crime ou utilizem a mesma ou diferente terminologia legal;

b) todos os factos imputados à pessoa cuja extradição é pedida serão considerados, sendo

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3. Quando o crime que deu lugar ao pedido de extradição tenha sido cometido fora do território do Estado requerente, a extradição será concedida, de acordo com as disposições do presente Acordo, desde que: a)

a pessoa cuja extradição é pedida seja nacional do Estado requerente; ou

b) a lei do Estado requerido preveja a punição de um crime cometido fora do seu território, em condições semelhantes. 4. A extradição pode ser concedida, em conformidade com as disposições do presente Acordo, independentemente da data em que foi cometido o crime com base no qual é pedida a extradição, desde que: a)

se tratasse de um crime no Estado requerente à data da prática dos factos que constituem o crime; e

b) os factos imputados, caso tivessem ocorrido no Estado requerido à data da formulação do pedido de extradição, constituíssem um crime segundo a lei em vigor nesse Estado.

Artigo 53.º Crimes em matéria de taxas e impostos, alfândegas e câmbios 1. Em matéria de taxas e impostos, alfândegas e câmbios, são igualmente determinantes de extradição, nas condições previstas no presente Acordo, os factos que correspondam a

Aspectos Polémicos da Extradição

infracções da mesma natureza na legislação do Estado requerido. 2. A extradição não pode ser recusada pelo facto de a legislação do Estado Contratante requerido não impor o mesmo tipo de taxas e impostos ou não prever o mesmo tipo de regulamentação em matéria de taxas e impostos, alfândegas e câmbios que a legislação do Estado Contratante requerente.

Artigo 54.º Nacionais 1. O Estado requerido tem o direito de recusar a extradição dos seus nacionais e recusá-la-á sempre que a sua Constituição ou a sua lei o determine. 2. Quando o Estado requerido se recusar a extraditar uma pessoa pelo facto de ser seu nacional, deverá, caso o Estado requerente o solicite e as leis do Estado requerido o permitam, submeter o caso às autoridades competentes para que providenciem pelo procedimento criminal contra essa pessoa por todos ou alguns dos crimes que deram lugar ao pedido de extradição.

Artigo 55.º Excepções à extradição 1. Para além dos casos referidos nos artigos 32.º a 34.º, o Estado requerido tem o direito de recusar a extradição se: a)

as autoridades competentes do Estado requerido tiverem decidido abster-se de instaurar procedimento criminal contra a pessoa em relação à qual é pedida a extradição pelo crime que deu lugar ao pedido de extradição;

b) o crime que deu lugar ao pedido de extradição for considerado, de acordo com a lei do Estado requerido, como tendo sido cometido, no todo ou em parte, no território desse Estado; c)

estiver pendente no Estado requerido procedimento criminal contra a pessoa em relação à qual é pedida a extradição pelo crime que deu lugar ao pedido de extradição; ou

d) a pessoa cuja entrega é solicitada tiver sido condenada à revelia pelo crime que deu lugar ao pedido de extradição, excepto se o Estado requerente prestar uma garantia, considerada suficiente pelo Estado requerido, de que essa pessoa, após a entrega, terá o direito de recorrer da sentença ou de qualquer novo julgamento. 2. O Estado requerido pode sugerir ao Estado requerente que retire um pedido de extradição, especificando as razões da sua atitude, quando considere que, em atenção à idade, saúde ou outras circunstâncias particulares da pessoa cuja entrega é solicitada, essa extradição não deveria ser pedida.

Artigo 56.º Regra de especialidade 1. Sem prejuízo do n.º 3 deste artigo, uma pessoa extraditada ao abrigo do presente Acordo não poderá ser detida ou julgada, ou ser sujeita a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal, no Estado requerente em virtude de qualquer crime cometido antes da extradição que não seja: a)

um crime pelo qual a extradição foi concedida; ou

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b) qualquer outro crime susceptível de extradição em relação ao qual o Estado requerido dê o seu consentimento. 2. O pedido para obter o consentimento do Estado requerido em conformidade com o disposto neste artigo deverá ser acompanhado dos documentos referidos no n.º 2 do artigo 59.º. 3. O n.º 1 deste artigo não se aplica caso a pessoa, tendo tido a possibilidade de sair do território do Estado requerente, não o tenha feito no prazo de 45 dias a contar da sua libertação definitiva em relação ao crime pelo qual foi extraditada ou caso a pessoa tenha regressado ao Estado requerente depois de o ter deixado. 4. Se os elementos constitutivos do crime forem alterados no Estado requerente na pendência do processo, contra a pessoa extraditada só prosseguirá o procedimento criminal se os novos elementos constitutivos do crime permitirem a extradição de acordo com as disposições do presente Acordo.

Artigo 57.º Reextradição para um terceiro Estado 1. Quando uma pessoa tenha sido entregue pelo Estado requerido ao Estado requerente, este não poderá extraditar essa pessoa para um terceiro Estado em virtude de um crime cometido antes da sua entrega, excepto se: a)

o Estado requerido consentir nessa reextradição; ou

b) a pessoa, tendo tido a possibilidade de sair do Estado requerente, não o tenha feito no

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prazo de 45 dias a contar da sua libertação definitiva em relação ao crime pelo qual foi entregue pelo Estado requerido, ou tenha regressado ao Estado requerente depois de o ter deixado. 2. Relativamente a qualquer consentimento em aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 deste artigo, o Estado requerido pode solicitar a apresentação dos documentos referidos no artigo 59.º, bem como uma declaração da pessoa extraditada relativamente à sua reextradição.

Artigo 58.º Pedidos concorrentes Se a extradição for pedida, simultaneamente, por um dos Estados Contratantes e por outro ou outros Estados, pelos mesmos ou por diferentes factos, o Estado requerido decidirá para qual desses Estados a pessoa será extraditada, tendo em consideração as circunstâncias e, em particular, a existência de outros Acordos vinculando o Estado requerido, a gravidade relativa dos crimes e o local onde foram cometidos, as datas respectivas dos pedidos, a nacionalidade da pessoa e a possibilidade da sua subsequente reextradição.

Artigo 59.º Processo de extradição e documentos necessários 1. O pedido de extradição deverá ser feito por escrito e comunicado directamente à Autoridade Central do Estado requerido. 2. O pedido de extradição deverá ser acompanhado por:

Aspectos Polémicos da Extradição

a)

demonstração de que, no caso concreto, a pessoa a extraditar está sujeita à jurisdição penal do Estado requerente;

b) prova, no caso de infracção cometida em terceiro Estado, de que este não reclama o extraditando por causa dessa infracção; c)

garantia formal de que a pessoa reclamada não será extraditada para terceiro Estado, nem detida para procedimento penal, para cumprimento de pena ou para outro fim, por factos diversos dos que fundamentarem o pedido e lhe sejam anteriores ou contemporâneos.

3. Ao pedido de extradição devem ser juntos os elementos seguintes: a)

mandado de detenção da pessoa reclamada, emitido pela autoridade competente;

b) certidão ou cópia autenticada da decisão que ordenou a expedição do mandado de detenção, no caso de extradição para procedimento penal; c)

certidão ou cópia autenticada da decisão condenatória, no caso de extradição para cumprimento da pena, bem como documento comprovativo da pena a cumprir, se esta não corresponder à duração da pena imposta na decisão condenatória;

d) cópia dos textos legais relativos à prescrição do procedimento penal ou da pena, conforme o caso; e)

declaração da autoridade competente relativa a motivos de suspensão ou interrupção do prazo da prescrição, segundo a lei

do Estado requerente, se for caso disso; f)

cópia dos textos legais relativos à possibilidade de recurso da decisão ou de efectivação do novo julgamento, no caso de condenação em processo cuja audiência de julgamento tenha decorrido na ausência da pessoa reclamada.

Artigo 60.º Informações complementares 1. Sempre que o Estado requerido considere que os elementos apresentados, com base nos quais é pedida a extradição de uma pessoa, não são suficientes, de acordo com o presente Acordo, para permitir que a extradição seja concedida, esse Estado poderá solicitar que lhe sejam fornecidas informações complementares no prazo que estipular. 2. O facto de as informações complementares fornecidas não serem suficientes, de acordo com o presente Acordo, ou não serem recebidas dentro do prazo inicialmente fixado ou dentro do prazo que o Estado requerido especifique, não obsta a que o Estado requerente apresente um novo pedido de extradição relativamente a essa pessoa. 3. Se uma pessoa que se encontra detida em virtude de um pedido de extradição for libertada pelo facto de o Estado requerente não conseguir apresentar as informações complementares nos termos do n.º 1 deste artigo, o Estado requerido deverá notificar o Estado requerente, logo que possível, da decisão tomada.

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Artigo 61.º Detenção provisória 1. Em caso de urgência, qualquer Estado Contratante poderá solicitar, através da Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL), ou por qualquer outra via, a detenção provisória da pessoa procurada até à apresentação do pedido de extradição. 2. O pedido indica a existência do mandado de detenção ou decisão condenatória contra a pessoa reclamada, contém um resumo dos factos constitutivos da infracção, com indicação do momento e do lugar da sua prática, e refere os preceitos legais aplicáveis e os dados disponíveis acerca da identidade, nacionalidade e localização daquela pessoa. 3. Após receber um pedido de detenção provisória, o Estado requerido tomará as medidas necessárias para garantir a detenção da pessoa procurada e o Estado requerente será prontamente notificado do resultado do seu pedido. 4. A detenção provisória cessa se o pedido de extradição não for recebido no prazo de 18 dias a contar da mesma, podendo, no entanto, prolongar-se até 40 dias se razões atendíveis, invocadas pelo Estado requerente, o justificarem. 5. A libertação de uma pessoa nos termos do n.º 4 deste artigo não obsta à instauração do processo de extradição da pessoa procurada, se o pedido vier a ser posteriormente recebido.

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Artigo 62.º Extradição com consentimento do extraditando 1. A pessoa detida para efeito de extradição pode declarar que consente na sua entrega imediata ao Estado requerente e que renuncia ao processo judicial de extradição, depois de advertida de que tem direito a esse processo. 2. A declaração é assinada pelo extraditando e pelo seu defensor ou advogado constituído. 3. O juiz verifica se estão preenchidas as condições para que a extradição possa ser concedida, ouve o declarante para se certificar de que a declaração resulta da sua livre determinação e, em caso afirmativo, homologa-a, ordenando a sua entrega ao Estado requerente, de tudo se lavrando auto. 4. A declaração homologada nos termos do número anterior, é irrevogável. 5. O acto judicial de homologação equivale, para todos os efeitos, à decisão final do processo de extradição.

Artigo 63.º Entrega 1. O Estado requerido deverá, logo que tenha tomado uma decisão relativamente a um pedido de extradição, comunicar essa decisão ao Estado requerente. Se não der satisfação ao pedido, no todo ou em parte, deverá informar os motivos de tal recusa. 2. Sempre que a extradição seja concedida, a pessoa deverá ser removida do Estado requerido, escolhendo-se um ponto de partida

Aspectos Polémicos da Extradição

nesse Estado que seja conveniente para os Estados Contratantes.

Artigo 65.º Entrega de coisas

3. O Estado requerente deverá remover a pessoa do Estado requerido dentro de um prazo razoável fixado por este último e, caso a pessoa não seja removida dentro desse prazo, pode ser libertada e o Estado requerido pode recusar-se a extraditá-la pelo mesmo crime.

1. Na medida em que a lei do Estado requerido o permita e sem prejuízo dos direitos de terceiros, que deverão ser devidamente respeitados, todas as coisas encontradas no Estado requerido que tenham sido adquiridas em resultado do crime ou que possam ser necessárias como prova devem, se o Estado requerente o solicitar, ser-lhe entregues, caso a extradição seja concedida.

4. Sempre que um dos Estados Contratantes, por circunstâncias alheias à sua vontade, estiver impossibilitado de proceder à entrega ou à remoção da pessoa a ser extraditada, deverá notificar a outro Estado Contratante. Os dois Estados Contratantes deverão acordar mutuamente uma nova data de entrega, aplicando-se as disposições do n.º 3 deste artigo.

Artigo 64.º Diferimento da entrega e entrega temporária 1. O Estado requerido pode adiar a entrega de uma pessoa a fim de proceder judicialmente contra ela, ou para que essa pessoa possa cumprir uma pena pela prática de um crime diferente do crime que deu lugar ao pedido de extradição. Sempre que tal se verifique, o Estado requerido deve informar do facto o Estado requerente. 2. Sempre que a sua lei o permita, o Estado requerido pode entregar temporariamente a pessoa, cuja entrega é solicitada, ao Estado requerente, mediante condições a estabelecer entre os Estados Contratantes.

2. As coisas referidas no n.º 1 deste artigo devem, se o Estado requerente o solicitar, ser-lhe entregues mesmo que a extradição, tendo sido concedida, não possa ser efectivada. 3. Quando a legislação do Estado requerido ou os direitos de terceiros o exijam, os bens entregues devem ser devolvidos ao Estado requerido sem encargos, uma vez concluído o processo, se esse Estado o solicitar.

Artigo 66.º Trânsito 1. O trânsito pelo território de qualquer dos Estados Contratantes, de pessoa que não seja nacional desse Estado e tenha sido extraditada para o outro Estado Contratante por um terceiro Estado, será facultado desde que não se oponham motivos de ordem pública e se trate de infracção justificativa de extradição nos termos deste Acordo. 2. A autorização para o trânsito de uma pessoa deve, sem prejuízo da lei do Estado Contratante requerido, incluir a autorização para que a pessoa seja mantida sob prisão durante o trânsito.

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3. Sempre que uma pessoa seja mantida sob prisão, de acordo com o disposto no n.º 2 deste artigo, o Estado Contratante em cujo território essa pessoa se encontra pode ordenar a sua libertação caso o transporte não prossiga num prazo razoável. 4. O Estado Contratante para a qual a pessoa é extraditada deve reembolsar a outro Estado Contratante por quaisquer despesas por ele efectuadas em virtude do trânsito.

2. Após a sua entrada em vigor, o presente Acordo revoga e substitui o Acordo Judiciário entre a República de Cabo Verde e a República Portuguesa, celebrado em 16 de Fevereiro de 1976, e os seus Protocolos Adicionais de 4 de Novembro de 1976 e 3 de Março de 1982. Feito na Praia, em 2 de Dezembro de 2003, em dois exemplares em língua portuguesa, fazendo ambos os textos igualmente fé.

[…] TÍTULO V

Pela República de Cabo Verde, Maria Cristina Fontes Lima – Ministra da Justiça e da Administração Interna.

Disposições Finais

Pela República Portuguesa, Maria Celeste Cardona, Ministra da Justiça.

Artigo 84.º Aplicação no tempo 1. O presente Acordo aplicar-se-á aos pedidos de cooperação iniciados após a data da sua entrada em vigor. 2. Para efeitos do disposto no número anterior, é irrelevante a data em que tenham ocorrido os factos que estão na origem do pedido de cooperação.

C) ACORDO SOBRE EXTRADIÇÃO

Artigo 85.º Resolução de dúvidas

(Resolução n.º 69/VII/2008, de 14

Quaisquer dúvidas ou dificuldades resultantes da aplicação ou interpretação do presente Acordo, serão resolvidas mediante consultas entre os Estados Contratantes.

Artigo 86.º Entrada em vigor 1. O presente acordo entrará em vigor 30 dias após a data de recepção da última comunicação, por escrito e por via diplomática, de que foram cumpridos todos os formalismos constitucionais ou legais exigíveis para cada um dos Estados para a sua entrada em vigor.

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ENTRE A REPÚBLICA DE CABO VERDE E O REINO DE ESPANHA

de Abril, I Série, Boletim Oficial n.º 15)

A República de Cabo Verde e o Reino de Espanha, adiante denominados “Partes”. Desejando manter e reforçar os laços que unem os dois países; Desejando estabelecer uma cooperação mais eficaz entre os dois Estados na perseguição de crimes e na execução das condenações, especialmente na luta contra o crime organizado e o terrorismo;

Aspectos Polémicos da Extradição

Desejando melhorar os procedimentos de extradição entre os dois Estados, em conformidade com as suas leis e procedimentos nacionais, para efeitos da entrega recíproca de delinquentes; Acordaram o seguinte:

Artigo 1º Obrigação de extraditar As Partes obrigam-se a entregar reciprocamente, de acordo com as disposições do presente Acordo, e a pedido da outra Parte, as pessoas que se encontrem no seu território e que sejam procuradas, para fins de procedimento criminal ou para cumprimento de pena ou medida de segurança privativa de liberdade imposta pelo tribunal do Estado requerente por um crime que dê lugar a extradição.

Artigo 2° Crimes que dão lugar à extradição 1. A extradição só é concedida por crimes tipificados pela legislação penal de ambas as Partes quando ocorra alguma das seguintes condições: a)

Se a extradição for requerida para procedimento criminal que o crime seja punido pela legislação de ambas Partes com pena de prisão de duração superior a um ano; ou

b) Se a extradição for requerida para cumprimento de pena ou medida de segurança privativa de liberdade, para além do disposto na alínea anterior, o período de condenação por cumprir pela pessoa procurada deve ser de pelo menos seis meses no

momento pedido.

da

formulação

do

2. No momento de determinar se os factos constituem crime na legislação de ambas as Partes, de acordo com o disposto no número anterior, não releva o facto das respectivas legislações não incluírem o acto dentro da mesma categoria de crimes, ou que o crime não receba a mesma denominação. 3. Se o pedido de extradição tiver por objecto dois ou mais factos, cada um dos quais constituir crime tipificado na legislação de ambas as Partes, e pelo menos um deles cumprir os requisitos de duração da pena, previstos no número 1 deste artigo, a Parte requerida pode conceder a extradição para todos eles.

Artigo 3º Motivos de recusa obrigatórios A extradição é recusada se: a)

O pedido tiver por objecto uma infracção de natureza política ou com ela conexa. Não são consideradas infracções políticas os crimes de terrorismo nem quaisquer outros delitos que a arte requerida considere excluídos desta categoria em virtude de qualquer Acordo internacional do que seja Parte;

b) Existirem fundados motivos para crer que o pedido de extradição foi apresentado para perseguir a pessoa procurada em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, origem étnica, convicções políticas, sexo ou qualquer outra forma de discriminação ou que a situação dessa pessoa pode ser agravada por qualquer dessas razões;

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c)

O pedido tiver por objecto crimes considerados pelo Estado requerido como exclusivamente militares;

a)

A Parte requerida tiver jurisdição relativamente ao crime a que se refere a extradição, de acordo com a sua legislação interna;

d) A pessoa procurada for um nacional da Parte requerida ou lhe tenha sido por esta concedido asilo político, no momento da prática dos factos, nos termos admitidos pela Constituição e pela lei da Parte requerida;

b) O crime pelo qual a extradição for solicitada tiver sido cometido fora do território das duas Partes, e a Parte requerida careça de jurisdição para o seu conhecimento nessas circunstâncias;

e)

O procedimento criminal ou a pena tiverem prescrito nos termos da lei da Parte requerente;

c)

f)

Os tribunais da Parte requerida tiverem proferido sentença transitada em julgado ou concluído procedimento criminal contra a pessoa cuja extradição tiver sido requerida pelo mesmo crime pelo qual tiver sido solicitada a extradição, ou que a pessoa cuja extradição é requerida tenha sido julgada num terceiro Estado pelo mesmo crime e tenha sido absolvida ou tenha cumprido a pena correspondente;

g)

O pedido de extradição for feito com base numa sentença à revelia, e a Parte requerente não oferece garantias de voltar a julgar o caso depois da extradição;

h) Se o crime pelo qual se solicita a extradição puder ser punido com a pena de morte ou pena de prisão perpétua ou pena de duração indeterminada segundo as leis da Parte requerente.

Artigo 4º Motivos de recusa facultativos A extradição pode ser recusada se:

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Se tratar de menor de dezoito anos e a extradição puder prejudicar a sua reinserção social ou reabilitação.

Artigo 5° Obrigação de iniciar procedimentos penais na Parte requerida 1. Se a extradição tiver sido recusada nos termos previstos na alínea d) do artigo 3º e alínea a) do artigo 4° do presente Acordo, a Parte requerida deve, a pedido da Parte requerente, submeter o caso às suas autoridades competentes a fim de iniciar o procedimento criminal, de acordo com a sua legislação interna, pelos factos que deram lugar ao pedido de extradição. Para esse efeito, a Parte requerente deve transmitir à Parte requerida os documentos e provas relacionados com o caso. 2. As partes podem convencionar, nestes casos, na medida em que seja permitido ou venha a ser permitido pelos respectivos ordenamentos jurídicos a entrega temporária da pessoa reclamada para efeitos de julgamento na Parte requerente.

Artigo 6º Autoridades Centrais 1. Para efeitos do presente Acordo as Partes comunicarão entre si através

Aspectos Polémicos da Extradição

das respectivas autoridades designadas no número seguinte, sem prejuízo de comunicação por via diplomática quando se considere conveniente. 2. Por parte de Espanha a Autoridade Central é o Ministério de Justiça. Por parte de Cabo Verde a Autoridade Central é a Procuradoria-Geral da República. Qualquer das Partes pode modificar a designação da Autoridade Central através de comunicação por via diplomática à outra Parte. 3. Para efeitos do presente Acordo, as Autoridades Centrais devem comunicar directamente entre si, procurando fazer uso das novas tecnologias, com vista à resolução das questões que surgirem durante a tramitação dos pedidos de extradição. 4. As Partes, sem prejuízo do disposto no número anterior, podem recorrer à via diplomática para o envio ou recepção de pedidos de extradição ou de informação relativa à mesma, quando o considerarem necessário pelas especiais circunstâncias que concorrem no caso.

Artigo 7º Pedido de extradição e documentos necessários 1. O pedido de extradição deve ser formulado por escrito e deve incluir ou ser acompanhado de: a)

Nome da autoridade requerente;

b) O nome, sexo e nacionalidade, da pessoa procurada e qualquer outra informação que possa ajudar a determinar a sua identidade e o seu possível paradeiro; assim como, quando possível, uma descrição da aparência física, fotografias e impressões digitais da pessoa;

c)

Descrição do caso, com um resumo dos factos criminosos;

d) Texto das disposições legais relevantes para o estabelecimento da jurisdição penal, a determinação do crime e a pena aplicável; e e)

Texto das disposições legais relevantes que estabelecem os limites temporais da acção penal ou da execução da condenação.

2. Além dos documentos previstos no número anterior. a)

O pedido de extradição destinado à persecução penal da pessoa procurada deve também ser acompanhado de cópia da ordem de detenção emitida pela autoridade competente da Parte requerente; ou

b) O pedido de extradição destinado à execução de uma condenação aplicada à pessoa procurada deve ser acompanhado de cópia da decisão judicial e de documento do qual conste o período de condenação cumprido. 3. O pedido de extradição e os documentos que o acompanhem devem ser assinados e carimbados e acompanhados de tradução na língua da Parte requerida.

Artigo 8º Informação adicional 1. Se a Parte requerida considera que a informação facultada no âmbito de um pedido de extradição não é suficiente pode solicitar que lhe seja enviada informação adicional, no prazo de 45 dias. Esse prazo pode ser prorrogado mediante pedido devidamente fundamentado pela Parte requerente.

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2. Se a Parte requerente não enviar a informação adicional nos prazos mencionados, presume-se que renunciou voluntariamente ao pedido. Isto não impede a Parte requerente de apresentar um novo pedido de extradição pelo mesmo delito.

Artigo 9° Detenção provisória 1. Em caso de urgência, uma Parte pode pedir à outra a detenção e prisão preventiva da pessoa procurada, até à apresentação do pedido de extradição. O pedido pode ser dirigido por escrito através dos canais previstos no artigo 6° do presente Acordo, através da Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL) ou por qualquer outro canal acordado por ambas Partes. 2. O pedido de detenção e prisão preventiva deve conter os elementos indicados no número 1 do artigo 7° do presente Acordo, uma declaração sobre a existência dos documentos indicados no número 2 do mesmo artigo, e uma declaração de que o pedido de extradição será enviado em seguida. 3. A Parte requerida deve informar com prontidão a Parte requerente do tratamento dado ao seu pedido. 4. A detenção provisória cessa se, no prazo de 40 dias a contar da detenção da pessoa procurada, a autoridade competente da Parte requerida não receber o pedido formal de extradição. Este prazo pode ser ampliado por mais 15 dias, por pedido da Parte requerente, devidamente justificado.

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5. A libertação de uma pessoa nos termos do número anterior não obsta à instauração do processo de extradição da pessoa procurada, se o pedido vier a ser posteriormente recebido.

Artigo 10° Decisão sobre o pedido de extradição 1. A Parte requerida deve decidir o pedido de extradição em conformidade com os procedimentos previstos na sua legislação interna, e deve informar com prontidão a Parte requerente de sua decisão. 2. Se a Parte requerida recusar total ou parcialmente o pedido, ela deve informar a Parte requerente dos motivos da recusa. 3. A recusa da extradição por motivos de fundo impede a Parte requerente de apresentar um novo pedido de extradição contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos.

Artigo 11º Extradição com consentimento 1. A pessoa detida para efeitos de extradição pode consentir na sua entrega ao Estado requerente, com carácter irrevogável. Neste caso, o juiz decide a entrega da pessoa ao Estado requerente sem necessidade de receber os documentos previstos no artigo 7º do presente Acordo. 2. A pessoa procurada, o seu advogado e o representante do Ministério Público devem assinar a declaração de consentimento. 3. O juiz deve verificar se estão preenchidas as condições para que a extradição possa ser concedida e deve ouvir o declarante para se certificar que a declaração resulta da sua livre determinação e com conhecimento das

Aspectos Polémicos da Extradição

suas consequências e em particular do seu carácter irrevogável, e em caso afirmativo, homologa-a, ordenando a sua entrega ao Estado requerente. 4. A declaração assim ratificada equivale, para todos os efeitos, à decisão que põe fim ao procedimento de extradição.

Artigo 12º Entrega da pessoa 1. Se a Parte requerida conceder a extradição, ambas Partes acordarão o lugar, a hora e qualquer outra circunstância relativa à execução da extradição. Entretanto, a Parte requerida informa a Parte requerente do período de tempo durante o qual a pessoa permaneceu detida antes da entrega. 2. Se a Parte requerente não retirar a pessoa procurada num prazo de 30 dias após a data acordada para a execução da extradição, a Parte requerida põe a pessoa em liberdade imediatamente e pode recusar um novo pedido de extradição da Parte requerente contra a mesma pessoa e pelos mesmos factos, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 3. Se uma das Partes não entregar ou não retirar a pessoa procurada dentro do prazo acordado por razões alheias à sua vontade, a outra Parte deve ser notificada com prontidão. As Partes acordarão novamente os termos da execução da extradição, sendo aplicável o previsto no número 2 deste artigo.

Artigo 13º Diferimento da entrega e entrega provisória 1. Se a pessoa procurada estiver a ser processada ou estiver a cumprir uma

condenação na Parte requerida por um crime distinto daquele pelo qual a extradição tiver sido solicitada, a Parte requerida pode, depois de ter decidido conceder a extradição, diferir a entrega enquanto não se concluir o procedimento penal ou o cumprimento da pena. A Parte requerida deve informar a Parte requerente do diferimento da entrega. 2. Se o diferimento da entrega a que se refere o número anterior puder provocar o decurso do prazo de prescrição da acção, ou dificultar as investigações do crime na Parte requerente, a Parte requerida pode, na medida que o permita a sua legislação, entregar provisoriamente a pessoa procurada à Parte requerente, nos termos e condições acordadas por ambas as Partes. A Parte requerente deve devolver imediatamente a pessoa à Parte requerida, uma vez concluído o procedimento.

Artigo 14º Pedidos de extradição formulados por vários países 1. Quando a extradição da mesma pessoa for solicitada por uma das Partes e um ou mais terceiros países, a Parte requerida deve decidir a qual destes entrega a pessoa procurada, e notifica a Parte requerente da sua decisão. 2. Quando os pedidos são referentes ao mesmo crime, a Parte requerida deve dar preferência ao pedido do Estado em cujo território se cometeu o crime, salvo se existirem circunstâncias particulares que aconselham outra decisão, como a nacionalidade, o domicílio habitual da pessoa, ou a data dos pedidos. 3. Quando os pedidos se referem a crimes distintos, a Parte requerida dá

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preferência ao pedido referente ao crime considerado mais grave conforme as suas leis, salvo se circunstâncias particulares aconselharem outra decisão.

Artigo 15º Princípio da especialidade A pessoa extraditada, nos termos do presente Acordo, não será processada ou sujeita à execução de uma condenação na Parte requerente, por crimes cometidos antes da sua entrega, diferentes daquele pelo qual se concedeu a extradição, nem pode ser re-extraditada para um terceiro país, a menos que: a)

A Parte requerida tenha prestado o seu consentimento prévio. Para esse efeito, a Parte requerida pode exigir o envio da documentação e das informações mencionadas no artigo 7º, fazendo acompanhar declarações da pessoa extraditada relativamente aos crimes em questão;

b) A pessoa extraditada não tiver abandonado o território da Parte requerente no prazo de 30 dias depois de ter sido posta em liberdade. Este prazo não inclui o período durante o qual a pessoa não conseguiu abandonar o território da referida Parte por razões alheias a sua vontade; ou c)

A pessoa extraditada tiver regressado voluntariamente ao território da Parte requerente depois de tê-lo abandonado.

Artigo 16º Entrega de objectos 1. Quando solicitado pela Parte requerente, a Parte requerida deve,

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na medida em que tal for permitido pela sua legislação interna, apreender os produtos e instrumentos do crime e quaisquer outros bens que se encontram no seu território, que possam ser como prova, e se for concedida a extradição, deve entregálos à Parte requerente. 2. Concedida a extradição, os objectos mencionados no número anterior podem ser entregues, mesmo quando não se possa efectuar a extradição devido ao falecimento, desaparecimento ou fuga da pessoa procurada. 3. A Parte requerida pode, a fim de levar a cabo outro procedimento penal pendente, diferir a entrega dos objectos mencionados até à conclusão do mesmo, ou entregar temporariamente os referidos objectos com a condição de que sejam devolvidos pela Parte requerente. 4. A entrega de objectos é realizada sem prejuízo dos legítimos direitos da Parte requerida ou de terceiros sobre os mesmos. Quando existirem tais direitos, a Parte requerente deve, a pedido da Parte requerida, devolver os objectos entregues, sem quaisquer custos para a Parte requerida e com a maior brevidade possível após a conclusão do procedimento.

Artigo 17º Trânsito 1. Se uma das Partes extraditar uma pessoa de um terceiro Estado através do território da outra Parte, deve solicitar a autorização para o trânsito. Não é necessária a autorização quando o trânsito é realizado por via aérea e não esteja prevista aterragem no território da Parte.

Aspectos Polémicos da Extradição

2. A Parte requerida autoriza o trânsito solicitado pela Parte requerente, na medida em que tal não resulte contrário à sua legislação.

Artigo 18° Notificação do resultado A Parte requerente deve facultar com prontidão à Parte requerida informação relativa ao procedimento ou à execução da condenação contra a pessoa extraditada, ou informação relativa à re-extradição da mesma pessoa para um terceiro país.

Artigo 19° Despesas As despesas decorrentes dos procedimentos de extradição na Parte requerida são assumidas pela mesma. As despesas de transporte e de trânsito relacionadas com a entrega ou recolha da pessoa extraditada são assumidas pela Parte requerente.

Artigo 20º Resolução de controvérsias

Artigo 22º Duração e termo do Acordo 1. O presente Acordo é celebrado por tempo indeterminado. 2. Cada uma das Partes pode denunciar o presente Acordo mediante notificação escrita, por via diplomática. A denúncia terá efeito 6 meses após da data da sua notificação. Em fé do que, os abaixo assinados, devidamente autorizados pelos respectivos Governos, assinaram o presente Acordo. Feito em Madrid, no dia 20 de Março de 2007, em dois exemplares, nas línguas portuguesa e espanhola, ambos os textos fazendo igualmente fé. Pela República de Cabo Verde, José Manuel Gomes Andrade, Ministro da Justiça. Pelo Reino de Espanha “A.R.”, Mariano Fernández Bermejo, Ministro da Justiça.

Qualquer controvérsia que surja entre as Partes, relacionada com a interpretação ou aplicação deste acordo, deve ser resolvida mediante consulta entre as Autoridades Centrais. Em caso de não se chegar a um acordo, deve recorrer-se à via diplomática.

Artigo 21° Entrada em vigor O presente Acordo entra em vigor no primeiro dia do segundo mês após a data da última notificação por via diplomática em que uma das partes informa a outra do cumprimento das formalidades constitucionais exigidas pela respectiva ordem jurídica interna.

373

V. REGIME JURÍDICO INTERNO

DECRETO LEGISLATIVO N.º 6/97,

expulsão e a extradição, bem como as taxas, as infracções e sanções.

DE 5 DE MARÇO,

Artigo 2º (Definições)

(Regula a situação jurídica do estrangeiro no território nacional, alterado pelo Decreto Legislativo n.º 3/2005, de 1 de Agosto, I Série, Boletim Oficial n.º 31, Suplemento, Altera os artigos 30.º, 31.º, 54.º e 112.º do Decreto Legislativo n.º 6/97, de 5 de Março) (Excertos)

CAPÍTULO I Disposições gerais Artigo 1º (Objecto) O presente diploma regula a situação jurídica do estrangeiro no território nacional, estabelecendo os direitos, garantias e deveres, o regime de entrada, permanência e saída, a

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Para os efeitos de aplicação deste diploma considera-se: a)

Estrangeiro - aquele que não possui a nacionalidade caboverdiana;

b) Residente - o estrangeiro que seja titular de autorização válida de residência em Cabo Verde.

Artigo 3º (Exclusão do âmbito de aplicação do diploma) Não estão abrangidos no âmbito da aplicação deste diploma os agentes diplomáticos e consulares acreditados em Cabo Verde e equiparados, os membros das missões diplomáticas ou permanentes especiais e dos postos consulares, bem como os respectivos familiares que, em virtude das normas de direito internacional, estão isentos de obrigações relativas a inscrição como estrangeiros e a obtenção de autorização de residência.

Aspectos Polémicos da Extradição

Artigo 4º (Regime jurídico) O disposto no presente diploma constitui o regime jurídico geral dos estrangeiros, sem prejuízo do estabelecido em leis especiais ou convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte.

[…] CAPÍTULO VI Extradição SECÇÃO I Extradição activa Artigo 84º (Finalidades) A extradição activa pode ter lugar para os mesmos fins previstos no artigo 88º.

Artigo 85º (Competência e pedido) 1. O membro do Governo responsável pela área da justiça é a entidade competente, que poderá delegar no Procurador-Geral da República, para formular o pedido de extradição de um suspeito, arguido, réu ou de um condenado em processo pendente ou findo em tribunal cabo-verdiano ao Estado estrangeiro em cujo território ele se encontra. 2. O pedido, depois de devidamente instruído, deve ser transmitido ao membro do Governo responsável pela área da justiça do Estado estrangeiro, por via diplomática ou directamente, se aquela via não for exigida.

Artigo 86º (Admissibilidade) 1. A extradição activa só é admissível no caso de cometimento de factos que

constituem crime ou sejam aplicáveis medidas privativas de liberdade, ainda que na forma tentada, puníveis pela lei penal cabo-verdiana com pena ou medida privativa da liberdade de duração máxima não inferior a um ano. 2. A extradição activa regula-se pelo disposto em tratados ou convenções internacionais de que seja parte o Estado de Cabo Verde ou que venha a subscrever ou aderir e, na falta deles, pela lei do Estado requerido.

Artigo 87º (Comunicação) Concedida a extradição, o departamento governamental responsável pela área da justiça comunica o facto à autoridade judiciária que a solicitou.

SECÇÃO II Extradição passiva Artigo 88º (Finalidades da extradição) 1. A extradição pode ter lugar para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de pena por crime cujo julgamento seja da competência do Estado requerente. 2. A extradição pode, ainda, ter lugar para efeitos de instauração de processo de aplicação de medidas privativas de liberdade ou para cumprimento dessas medidas por factos que as fundamentam cujo julgamento seja da competência do Estado requerente. 3. Para qualquer dos efeitos previstos nos números anteriores, só é admissível a entrega da pessoa reclamada no caso de cometimento de factos que constituem crime ou sejam aplicáveis medidas privativas de

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liberdade, ainda que na forma tentada, puníveis pela lei do Estado requerente com pena ou medida privativa da liberdade de duração máxima não inferior a um ano.

privativa de liberdade igual ou inferior a um ano; e)

Estiver pendente acção crime ou de aplicação de medida privativa de liberdade contra o extraditando pelo mesmo facto em que se fundar o pedido;

1. A extradição poderá ser concedida quando o Governo de outro país a solicitar, invocando convenção ou tratado de que Cabo Verde seja parte.

f)

O extraditando houver sido julgado, condenado ou absolvido, em Cabo Verde pelo mesmo facto em que se fundar o pedido;

2. Na falta de tratado ou convenção a extradição do estrangeiro é regulada pelos artigos seguintes e com base na existência de reciprocidade, no tratamento.

g)

Tiver havido a prescrição do procedimento criminal, do processo de aplicação de medida privativa da liberdade ou da pena ou medida privativa de liberdade segundo a lei cabo-verdiana ou a do Estado requerente;

Artigo 89º (Concessão da extradição)

Artigo 90º (Recusa de concessão de extradição) 1. Não se concederá a extradição, quando: a)

O facto for punível com a pena de morte, penas ou tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos ou prisão perpétua ou prisão ou medida privativa de liberdade de duração indeterminada pelo Estado requerente;

b) O facto que a motivou não for considerado crime ou susceptível de aplicação de medida privativa de liberdade pela lei caboverdiana ou pela do Estado requerente; c)

Pelas regras de competência territorial os tribunais de Cabo Verde forem competentes para julgar o facto imputado ao extraditando;

d) A lei cabo-verdiana impuser ao facto pena de prisão ou medida

376

h) Se tratar de crime político; i)

O extraditando tiver que responder, no Estado requerente, perante tribunal ou juiz de excepção.

2. Nos casos previstos nas alíneas c), e) e f) do número 1, a extradição pode ser concedida quando houver conveniência em que o estrangeiro seja julgado ou cumpra a pena ou medida privativa de liberdade no Estado requerente. 3. A excepção da alínea h) não impedirá a extradição, quando o facto constituir, a título principal, infracção da lei penal comum, ou quando o crime comum conexo ao crime político, constituir facto principal.

Artigo 91º (Crimes que não são políticos) Não se consideram crimes políticos: a)

Os atentados contra a vida ou a integridade física de titulares ou membros de órgãos de soberania,

Aspectos Polémicos da Extradição

ou de seus familiares, ou de pessoas a quem for, devida especial protecção segundo o direito internacional;

internacional modo.

Os actos a que seja retirada essa natureza por convenções internacionais de que Cabo Verde seja parte ou a que adira;

d) O genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e infracções graves segundo as Convenções de Genebra de 1949; e)

Os actos praticados sobre quaisquer detidos que visem obter a confissão de crimes através de tortura, coacção física ou moral ou de métodos conducentes a destruição da personalidade do detido.

Artigo 92º (Condições de concessão da extradição) 1. São condições de concessão da extradição: a)

Ter sido o facto cometido no território do Estado requerente, ou serem aplicáveis ao extraditando as leis penais desse Estado;

b) Estar a prisão ou medida privativa de liberdade do extraditando autorizada ou ordenada por juiz, tribunal, representante da acusação pública ou qualquer autoridade competente do Estado requerente. 2. O disposto na alínea b) do número anterior é aplicável à extradição, ainda que tratado ou convenção

de

outro

Artigo 94º (Crimes cometidos em terceiro Estado)

b) Os actos de pirataria aérea e marítima; c)

disponha

No caso de factos cometidos em outro Estado que não o requerente, pode ser concedida a extradição quando a lei cabo-verdiana der competência à sua jurisdição em identidade de circunstâncias ou quando o Estado requerente comprovar que aquele Estado não reclama o agente da infracção.

Artigo 95º (Reextradição) 1. O Estado requerente não pode reextraditar para terceiro Estado a pessoa que lhe foi entregue por efeito de extradição. 2. Cessa a proibição do número anterior se houver consentimento de Cabo Verde ou se o extraditado, tendo a possibilidade de abandonar o território do Estado requerente o não fizer dentro de quarenta e cinco dias ou, tendo-o abandonado aí voluntariamente regressar.

Artigo 96º (Pluralidade dos pedidos de extradição) 1. Quando mais de um Estado requerer a extradição de uma pessoa pelo mesmo facto, terá preferência o pedido daquele em cujo território a infracção for cometida ou for praticado o facto principal. 2. Tratando-se de factos diversos, terão preferência sucessivamente: a)

O Estado requerente em cujo território haja sido cometido o

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facto mais grave, segundo a lei cabo-verdiana; b) O que em primeiro lugar houver solicitado a entrega, sendo igual a gravidade do facto; c)

O Estado de origem, ou na sua falta, o de domicílio do extraditando, se os pedidos forem simultâneos.

3. Se não for possível decidir com base nos critérios referidos no número 2 a preferência fica à discrição do Governo. 4. Havendo tratado ou convenção com alguns dos Estados requerentes, prevalecerão as disposições desses tratados ou convenções referentes aos critérios de preferência.

Artigo 97º (Modo de solicitação da extradição)

c)

2. Do pedido de extradição deve constar: a)

c)

A demonstração de que, no caso concreto, a pessoa a extraditar está sujeita a jurisdição penal do Estado requerente;

b) A prova, no caso de infracção cometida em terceiro Estado, de que não reclama o extraditando por causa dessa infracção;

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O mandado de captura, ordem de prisão ou documento equivalente, em triplicado, da pessoa reclamada emitida pela autoridade competente;

d) A certidão ou cópia autenticada da decisão que ordenou a expedição do mandado de captura, ordem de prisão ou documento equivalente, no caso de extradição para procedimento criminal; e)

A certidão ou cópia autenticada da decisão condenatória, no caso de extradição para cumprimento de pena ou medida privativa da liberdade, bem como documento comprovativo da pena ou medida privativa de liberdade a cumprir, se esta não corresponder à duração da pena imposta na decisão condenatória;

f)

Uma descrição dos factos, a sua localização no tempo e espaço e sua qualificação jurídica, se isso não resultar de outros documentos;

g)

O texto das disposições legais aplicáveis ao caso, nomeadamente os relativos à unificação do facto, punição e prescrição.

1. O pedido de extradição deve incluir: a)

A autoridade do Estado requerente que formula o pedido;

b) A identificação da pessoa cuja extradição se requer;

A extradição será solicitada pelo Estado requerente, por via diplomática ou, na falta de agente diplomático do Estado requerente, pelo Governo, ao membro do Governo de Cabo Verde responsável pela área da justiça.

Artigo 98º (Requisitos do pedido de extradição)

A obrigação de respeito pelas garantias referidas no artigo 107º.

3. O pedido de extradição e os documentos que o instruírem para serem aceites devem ser emitidos na forma prescrita pelo Estado requerente e a sua autenticidade,

Aspectos Polémicos da Extradição

garantida pelo Governo, membro do Governo ou autoridade competente.

Artigo 99º (Natureza do processo de extradição) 1. O processo de extradição tem carácter urgente e compreende:

Procuradoria-Geral da República promove, através do membro do Governo responsável pela área da justiça, a regularização do processo e, quando o considere devidamente instruído, emite um parecer no prazo máximo de dez dias.

b) A fase judicial.

3. Nos dez dias subsequentes, o membro do Governo responsável pela área da justiça submete o pedido, com o seu parecer, à decisão do Governo.

2. A fase administrativa é destinada a apreciação do pedido de extradição pelo Governo para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento ou se deve ser liminarmente indeferido por razões de ordem política, de oportunidade ou de conveniência.

4. No caso de indeferimento do pedido, a decisão é comunicada ao Estado requerente, pela mesma via por que aquele foi recebido e o processo é arquivado sem mais formalidades e da decisão não há recurso.

3. A fase judicial é da exclusiva competência do Supremo Tribunal de Justiça e destina-se a decidir, com a audiência do interessado, sobre a concessão da extradição por procedência das suas condições de forma e de fundo.

5. A decisão favorável do Governo quanto ao pedido de extradição que deva prosseguir não vincula de qualquer forma o tribunal.

4. Na fase judicial do processo de extradição não é admitida prova alguma sobre os factos imputados ao extraditando.

1. Em caso de urgência e como acto prévio de um pedido formal de extradição, o Estado requerente pode solicitar a detenção provisória da pessoa a extraditar.

a)

A fase administrativa;

Artigo 100º (Processo administrativo) 1. Logo que receba o pedido de extradição, directamente ou por intermédio do departamento governamental responsável pela área das relações exteriores, o membro do Governo responsável pela área da justiça submete-o à apreciação do Procurador-Geral da República para verificar da sua regularidade formal e ordenar diligências necessárias à vigilância da pessoa reclamada. 2. Se o pedido estiver incompleto ou faltarem elementos reputados, a

Artigo 101º (Detenção provisória)

2. O pedido é transmitido ao membro do Governo responsável pela área da justiça por via postal ou telegráfica ou por qualquer outro meio que permita o seu registo escrito ou que seja admitido pela lei cabo-verdiana. 3. O pedido é instruído com os seguintes elementos: a)

O mandado ou ordem de detenção provisória ou documento equivalente contra a pessoa reclamada;

b) A indicação da autoridade que ordenou a detenção provisória;

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c)

Uma cópia da decisão que ordenou a detenção provisória ou da sentença condenatória;

d) Um resumo dos factos constitutivos da infracção, com indicação precisa do momento e o lugar da sua prática, referindo os preceitos legais aplicáveis; e)

Uma cópia de legislação do Estado requerente que fixa as condições de prisão preventiva;

f)

Os dados disponíveis acerca da identidade, nacionalidade e localização da pessoa.

4. O processo de detenção provisória é distribuído como processo de extradição e a decisão sobre a detenção provisória compete ao juizrelator, sendo pronunciada no prazo máximo de três dias a contar da distribuição do processo, com audiência prévia da pessoa reclamada, assistida por defensor nomeado ou advogado constituído. 5. A decisão sobre a detenção provisória e a sua manutenção é tomada em conformidade com a lei cabo-verdiana e quando não for mantida, por não ser admissível a prisão preventiva, o juiz ordenará a vigilância do extraditando e ou a aplicação de quaisquer das medidas de liberdade provisória que julgar pertinente. 6. A detenção provisória ordenada cessa se o pedido de extradição não for recebido no prazo de 30 dias a contar da formulação do respectivo pedido. 7. A detenção provisória não poderá exceder o prazo de prisão preventiva previsto na legislação cabo-verdiana para o crime pelo qual se pretende a extradição.

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Artigo 102º (Processo judicial) 1. O pedido de extradição que deva prosseguir é remetido conjuntamente com os elementos que o instruírem e informação sobre a decisão favorável do Governo ao Procurador-Geral da República. 2. Dentro das quarenta e oito horas subsequentes o Procurador-Geral da República promoverá o cumprimento do pedido junto do Supremo Tribunal de Justiça.

Artigo 103º (Despacho liminar e captura do extraditando) 1. Efectuada a distribuição, o processo é imediatamente concluso ao juizrelator para, no prazo de três dias, proferir despacho liminar sobre a suficiência dos elementos que instruírem o pedido e a viabilidade deste. 2. Se entender que o processo deve ser logo arquivado, o relator faz submeter os autos, com o seu parecer escrito, a visto de cada um dos juízesconselheiros por três dias, a fim de se decidir na sessão extraordinária expressamente convocado para o efeito. 3. Quando o processo deva prosseguir, é ordenada a entrega ao ProcuradorGeral da República do mandado de captura do extraditando, a fim de providenciar pela sua execução. 4. No caso de serem necessárias informações complementares, é ordenada a vigilância do extraditando pelas autoridades competentes e fixada a obrigação de comparecer perante qualquer autoridade policial, podendo, porém, efectuar-se desde

Aspectos Polémicos da Extradição

logo a sita captura se se mostrar necessária e houver sérios indícios de que o pedido de extradição deverá proceder.

Artigo 104º (Apresentação do detido e actos subsequentes) 1. Efectuada a prisão do extraditando, o Procurador-Geral da República promove imediatamente a sua audiência pessoal junto ao Supremo Tribunal de Justiça. 2. A prisão perdurará até o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não sendo admitida a liberdade provisória. 3. O juiz relator designará o dia para interrogatório do extraditando, nomeando-lhe defensor oficioso, se não tiver advogado constituído, e conceder-lhe-á prazo de cinco dias para defesa. 4. A defesa do extraditando só poderá consistir em não ser ele a pessoa reclamada e ilegalidade da extradição. 5. Não estando o processo devidamente instruído, o tribunal oficiosamente ou a requerimento do Procurador-Geral da República, ordenará diligências, para que o pedido seja corrigido ou completado no prazo de 45 dias, prorrogável uma única vez por igual período, decorridos os quais o processo será julgado definitivo ou não realizada a diligência. 6. O prazo referido no número anterior começa a contar a partir da data em que o departamento, governamental responsável pela área das relações exteriores transmitir a notificação à autoridade do Estado

requerente do acto de ordenação das diligências a cumprir. 7. Terminada a produção da prova, o defensor oficioso ou o advogado constituído do extraditando e o Procurador-Geral da República terão, sucessivamente, vista do processo por três dias, para alegações. 8. Depois do decurso do prazo para a apresentação das alegações nos termos do número anterior, o processo é feito concluso ao juiz-relator, por cinco dias, para exame do processo e elaborar o projecto do acórdão e, em seguida, é mandada dar vista a cada um dos juízes conselheiros por dois dias. 9. Após o último visto, o processo é apresentado na sessão imediata, independentemente da inscrição em tabela e com preferência sobre os outros para a decisão final. 10. Nos casos omissos é aplicável a lei do processo penal comum. 11. Recusada a extradição, não poderá o pedido ser renovado com base no mesmo facto. 12. Ao processo de extradição aplicamse as regras das custas relativas ao processo penal mais solene e corre nas férias. 13. As custas do processo correm por conta do Estado requerente e a execução do pedido de extradição não depende do pagamento prévio.

Artigo 105º (Extradição com o consentimento do extraditando) 1. A pessoa detida para o efeito de extradição pode declarar, quando for ouvido pelo juiz-relator ou até à decisão final, que consente na sua entrega imediata ao Estado requerente

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e que renuncia ao processo judicial de extradição, depois de advertida de que tem direito a este processo. 2. A declaração é assinada pelo extraditando e pelo seu defensor ou advogado constituído. 3. O juiz-relator verifica se estão preenchidas as condições para que a extradição possa ser concedida, ouve o declarante para se certificar se a declaração resulta de sua livre determinação e, em caso afirmativo, homologada, ordenando a entrega do extraditando ao Estado requerente, de tudo se lavrando auto. 4. A declaração, homologada nos termos no número anterior, é irrevogável. 5. O acto judicial de homologação equivale, para todos os efeitos, a decisão final do processo de extradição.

Artigo 106º (Adiamento da extradição) 1. No caso de o extraditando estiver a ser processado ou tiver sido condenado em Cabo Verde, por facto punível com pena ou medida privativa de liberdade, a extradição só se efectuará após a conclusão do processo ou o cumprimento da pena ou medida. 2. A extradição, no entanto, pode ser concedida antes da conclusão do processo ou do cumprimento da pena se, apreciados o processo ou a sentença e o pedido do Estado requerente, houver conveniência do Estado na concessão da extradição, nomeadamente para a comparência do extraditando a actos processuais inadiáveis.

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3. A entrega ficará igualmente adiada, se a sua efectivarão puser em risco a vida do extraditando, em virtude de doença ou enfermidade grave, comprovada por documento oficial. 4. O Governo poderá fazer a entrega do extraditando, ainda que submetido ou condenado, em processo por contra-ordenação.

Artigo 107º (Garantias para a concessão da extradição) Não será efectivada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente se responsabilize pelas despesas de extradição e assuma o compromisso: a)

De não ser o extraditando preso, nem processado por outros factos anteriores ao pedido de extradição;

b) De computar o tempo da prisão que em Cabo Verde foi imposta ao extraditando por causa do processo de extradição; c)

De não ser o extraditando entregue a outro Estado, que o reclame sem consentimento do Estado de Cabo Verde;

d) De não considerar o fim ou motivo político para agravar a pena.

Artigo 108º (Entrega de objectos) 1. A entrega do extraditando, de acordo com a lei cabo-verdiana e respeitados os direitos de terceiros, será feita com todos os objectos encontrados em seu poder que sejam produto da infracção ou adquiridos em resultado da infracção ou possam servir para prová-la, salvo se tratado

Aspectos Polémicos da Extradição

ou convenção internacional dispuser de outro modo.

documentos comprovativos concessão da medida.

2. A entrega dos objectos a que se refere o número anterior poderá fazer-se se for pedido pelo Estado requerente, ainda que a extradição não se efective por fuga ou morte do extraditando.

2. Compete ao membro do Governo responsável pela área da justiça verificar a regularidade formal do pedido de trânsito e submetê-lo a decisão do Governo, devendo esta ser tomada no mais curto prazo e comunicado ao Estado requerente pela mesma via que o pedido tenha sido feito.

Artigo 109º (Prazo de retirada)

da

1. Comunicado pelo departamento governamental responsável pela área das relações exteriores a concessão da extradição ao agente diplomático do Estado requerente, deverá este, no prazo máximo de quarenta e cinco dias retirar o extraditando do território nacional.

3. As condições em que o trânsito se processará e a autoridade que nela superintenderá devem constar da decisão que o autorizar.

2. No caso de o extraditando não ser retirado do território nacional no prazo estipulado, será posto em liberdade, sem prejuízo de poder ser sujeito a processo de expulsão, se o motivo da extradição o recomendar.

Carlos Veiga

Artigo 110º (Devolução do extraditando)

Publique-se.

O estrangeiro que, depois de entregue ao Estado requerente e durante o processo ou julgamento conseguir fugir à acção da justiça e regressar a Cabo Verde, será detido mediante pedido directo ou por via diplomática, e novamente entregue, sem outras formalidades.

[...] Visto e aprovado em Conselho de Ministros. Amilcar Fernandes Spencer Lopes Simão Monteiro Promulgado em 22 de Abril de 1997 O Presidente da República, António Manuel Mascarenhas Gomes Monteiro Referendado em 23 de Abril de 1997. O Primeiro Ministro Carlos Alberto Wahnon de Carvalho Veiga

Artigo 111º (Trânsito) 1. Salvo motivo de segurança e ordem públicas, poderá o Governo permitir o trânsito em território nacional, de pessoas cuja extradição se processou entre Estados estrangeiros, bem como o da respectiva guarda, mediante a apresentação de

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VI. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM MATÉRIA DE EXTRADIÇÃO

A) CASO FISCHER Acórdão n.º 01/2002 Acordam, em conferência, Supremo Tribunal de Justiça:

no

O Exmo. Procurador-Geral da República junto desta instância, após prévio processo administrativo, requereu, nos termos do n.º 2 do artigo 102.º, do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio, a extradição de Michel Fischer, comercitante, nascido em 27 de Abril de 1962 em Wiesbaden e esposa Jutta Inês Fischer, comerciante, nascida em 22 de Março em Berlim, alegando que, conhecido que foi o paradeiro dos requeridos em Cabo Verde, logo as autoridades alemãs demonstraram interesse na sua extradição, como se vê do processo administrativo junto.

processo de extradição dos requeridos para a Alemanha, para efeitos do procedimento criminal por vários crimes de burla por defraudação, cometidos entre Abril de 1996 e Junho de 2000, cujo julgamento é da competência dos tribunais do Estado requerente. Na sequência do despacho liminar, os extraditandos foram presos e imediatamente ouvidos. Advertidos de que lhes assiste o direito de se oporem à extradição ou de consentir nela declararam que se opõem ao pedido, pelas razões que avançariam na sua oposição escrita. Facultado o processo, por cinco dias, aos reclamados, concluíram pela ilegalidade do pedido de extradição.

Feito e apresentado o respectivo pedido, deliberou o Governo de Cabo Verde autorizar o prosseguimento do processo de extradição dos requeridos para Alemanha.

Dando-se cumprimento ao n.º 7 do artigo 104.º do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio, o Exmo. Procurador-Geral da República apresentou as suas alegações, concluindo pelo deferimento do pedido de extradição dos cidadãos alemães reclamados.

Esta deliberação tem em vista autorizar o prosseguimento do

Os extraditandos alegaram também, concluindo assim as suas alegações:

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Aspectos Polémicos da Extradição

a)

Relativamente à ordem de prisão e os factos em que se estriba, descritos a fls. 24 e seguintes, a haver crime, o local da comissão é Tenerife, em Espanha, e não na Alemanha.

b) Assim sendo, deve ser demonstrado que, também nesses casos, é aplicável a lei penal alemã – é o que resulta da interpretação útil do preceituado no artigo 92.º, n.º a, al. a), parte final, do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio. Essa demonstração não foi feita. c)

Quanto aos factos alegadamente praticados em Alemanha a extradição dos AA é ilegal. Na verdade, os factos que estão na sua base, em Cabo Verde, não constituem qualquer crime, razão pela qual a extradição dos AA não poderá ser concedida, nos termos do artigo 90º, n.º 1, al. b) do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio.

d) Em tais termos, deve ser julgado improcedente o pedido de extradição dos AA MICHAEL FISCHER E JUTTA INÊS CLÁUDIA FISCHER, por não estarem verificados os pressupostos e as condições fixados na lei, para a concessão da extradição. Cumpre agora apreciar e decidir. Nos termos do n.º 3 do artigo 99.º do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio é este o tribunal competente. Mostram os autos que contra os requeridos Michael Fischer e Jutta Fischer foram passados mandados de captura, aos 04 de Fevereiro de 1999 (cfr.fls.24), para efeitos de procedimento criminal por crimes de

burla por defraudação constantes dos autos de fls. 25 a 34 e, apenas contra o primeiro, aos 13 de Julho de 2001 (cfr.fls.14), também por crimes de burla por defraudação constantes dos autos de fls. 14 a 18, aqui dados por reproduzidos para todos os efeitos legais. Nas suas alegações, salientam os extranditandos, quanto aos factos descritos a fls. 14 e seguintes, que a haver crime, o local da comissão é Tenerife, em Espanha, e não em Alemanha. Assim, impunha-se demonstrar que, também nesses casos, é aplicável a lei penal alemã, por força do disposto no artigo 92.º, n.º 1, al. a), parte final, do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio, o que não foi feito. Têm razão. Com efeito, constam dos autos indícios suficientes de que os extraditandos, entre 1996 e 1998, em diversas cidades da República Federal Alemã, de comum acordo «em 98 casos e com o objectivo de organizar ilícita vantagem financeira a si mesmos ou a terceiros, terem danificado os bens de outrem enquanto tivessem provocado ou mantido um erro por falsidade ou falsificação ou supressão de factos reais; Baseados no projecto feito em comum e no procedimento de divisão de trabalho e com falsificação de solvência e de boa vontade de pagamento nos limites de negócios aquisitivos, concluíram contratos e receberam serviços da parte contratante sem dar a contra prestação, sic». Mais concretamente, entre outros factos, referem tais autos que

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encomendaram e receberam mercadorias de diversas empresas, concluíram contratos de trabalho e de locação, retiveram, como empresários, as contribuições dos trabalhadores ao seguro social e ao Instituto Nacional para o seguro social dos empregados. Tais factos consubstanciam infracções, face ao Código Penal Cabo-verdiano, subsumíveis ao tipo previsto no artigo 451.º, n.º 3 e puníveis com pena maior, nos termos do artigo 421.º, ambos do referido diploma legal. O procedimento criminal dos crimes em referência não se encontra prescrito à sombra do Direito Penal Cabo-verdiano (§ 2.º do artigo 125.º do Código Penal), pelo que não se ofende a alínea g) do artigo 90º do Decreto Legislativo n.º 6/97, de 05 de Maio. Ao abrigo do disposto n.º 3 do artigo 88.º do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio, os aludidos crimes permitem a extradição. Finalmente, existem garantias dos princípios da reciprocidade e da especialidade. Procede, pois, nesta parte o pedido de extradição. Nestes termos, uma vez que os extraditandos são as pessoas reclamadas pelo Estado requerente, se verificam as condições para se conceder a extradição, que seja, no entanto, restrita aos crimes constantes dos autos de fls. 25 a 34, nada existindo que a ela se oponha, concede-se o pedido de extradição dos extraditandos Michael Fischer e Jutta Inês Fischer para Alemanha, ordenando-se em consequência, pela

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Procuradoria-Geral da República, a sua entrega ao Estado requerente. Custas pelo Estado requerente, com taxa de Justiça que se fixa em 60.000$00 (sessenta mil escudos). Passe mandados de entrega. Praia, 18/01/02.

B) CASO ANA ALVES Acórdão n.º76/04 Acordam, em conferência, Supremo Tribunal de Justiça:

no

O Procurador-Geral da República, vem ao abrigo do disposto no art. 102 do Decreto Legislativo n.º6/97 de 5 de Maio, requerer a extradição de Ana da Conceição Alves, cidadã portuguesa detida no Estabelecimento Prisional de Santa Catarina. Alega para o efeito. Por delegação do Ministro da Justiça do seu País, o Procurador-Geral da República portuguesa formula o pedido de extradição da cidadã portuguesa Ana da Conceição Alves, detida no Estabelecimento Prisional de Santa Catarina. Tal extradição visa o cumprimento do remanescente da pena de prisão a que ela foi condenada no âmbito de vários processos que correram termos em tribunais portugueses. Ela cumpriu parte da pena em que foi condenada e saiu em liberdade condicional.

Aspectos Polémicos da Extradição

Tal liberdade condicional foi revogada por infracção dos deveres que estava sujeito. Decorre o art. 15 n.º 1 do Acordo Judiciário vigente entre a República Portuguesa e Cabo Verde a obrigação de extraditar pessoas com vista ao cumprimento de pena, desde que esta seja de pelo menos 8 meses de prisão. O pedido de extradição satisfaz aos requisitos do art. 19.º do Acordo Judiciário. Por decisão do Tribunal de Execução de Pena de Coimbra de 15 de Julho de 1998, foi-lhe concedida a liberdade condicional que o Tribunal de Execução de Pena de Lisboa revogou por decisão de 28 de Fevereiro com base em infracção grosseira ou repetida dos deveres a que estava sujeito, tendo ainda por cumprir mais de 1(um) ano de prisão. Encontra-se ainda detida no Estabelecimento Prisional de Santa Catarina aguardando a decisão do recurso de sentença que a condenou na pena de 4 (quatro) anos de prisão. O Acordo Judiciário estabelecido entre Cabo Verde e Portugal (art. 15.º, n.º 1) assinado em 16 de Fevereiro de 1976 e implementado pelo Protocolo Adicional de 4 de Novembro do mesmo ano, aprovou a extradição para cumprimento de pena. Tem ainda a cumprir nesse País a pena de pelo menos 1 ano, 7 meses e 16 dias de prisão. Verificam-se todos os requisitos de forma e de fundo previstos no Acordo Judiciário, (o Direito Convencional tem prevalência sobre a lei infraconstitucional nos termos do art. 12.º, n.º 4, da Constituição), pelo que,

em tais termos, se decide conceder a extradição solicitada, devendo a Procuradoria-Geral da República fazer a entrega da extraditanda às autoridades portuguesas no prazo legal a contar da data da soltura dela. R e N. Praia, 16 de Dezembro de 2004. Ass. Drs. Raul Querido Varela – relator, João da Cruz Gonçalves e Benfeito Mosso Ramos – adjuntos.

C) CASO DOS UCRANIANOS Acórdão n.º 31/2004 Acordam, em conferência, Supremo Tribunal de Justiça:

no

O Exmo. Procurador-Geral Adjunto apresentou nesta Instância um pedido de detenção provisória nos termos do disposto no art. 101.º do Decreto Legislativo n.º 6/97, de 05 de Maio, de: Kutepov Roman, Gurievcky Vasyl, Osadchy Oleksiy, Kalinin Volodymyry, Maslennikov Sergiy Eduard Orudzev, todos de nacionalidade ucraniana e Evencio Gonzalez Gomez, de nacionalidade espanhola, conforme solicitação das competentes autoridades judiciárias espanhola, como acto prévio do pedido de extradição, por existirem indícios de comparticipação dos mesmos no tráfico de, aproximadamente 7000 quilogramas de Cocaína, apreendidos no dia 11 de Outubro de 2003, em Espanha. O Mmo Juiz relator, atendendo a que os factos imputados aos reclamados são previstos como crimes quer pela legislação do Estado requerente, quer

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pela legislação nacional, e de as autoridades judiciárias do Estado requerente terem já ordenado a aplicação de medida privativa de liberdade contra os reclamados, conforme resulta dos mandados de captura internacionais constantes dos autos, ordenou a captura dos reclamados a fim de serem apresentados para interrogatório.

válido de extradição, pedido cuja decisão ficou prejudicada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 04/04 proferido no recurso de Amparo entretanto interposto pelos reclamados, que foi negado provimento e que decidiu que foi observado o prazo legal para a introdução em prejuízo do pedido de extradição.

O reclamado Maslennikov Sergiy não foi capturado.

Foi concedido novo prazo ao MP para completar os documentos em falta. Juntos tais documentos, foi proferido e designado data para audição dos reclamados, que declararam que se opõem ao pedido de extradição.

No auto de interrogatório o reclamado Evencio Gonzalez Gomez declarou que consentia em ser entregue às autoridades espanholas, renunciando às garantias decorrentes do processo formal de extradição, declaração que foi homologada pelo Ex.mo Conselheiro relator, o qual ordenou a sua entrega às autoridades espanholas. Os cinco primeiros reclamados declararam no auto de interrogatório que preferiam optar pelo processo de extradição. Findo o interrogatório, foi ordenada a recolha dos reclamados à Cadeia Civil, sem admissão de caução, para aguardarem a decisão do processo de extradição, ou então, pelo decurso do prazo fixado no art. 101.º n.º 6 da Lei de Extradição se entretanto o pedido de extradição não fosse formulado. Tendo o pedido de extradição dado entrada em 24 de Novembro de 2003, foi mandado seguir o processo com a concessão do prazo previsto no art. 104.º n.º 5 da do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio. Entretanto, vieram os reclamados requerer a sua soltura, com o fundamento de que decorridos 30 (trinta) dias sobre a data da detenção provisória não deu entrada no Tribunal um pedido

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A fls. 287 e seguintes os extraditandos apresentaram a sua defesa, no prazo para o efeito estabelecido no art. 104.º, n.º 3, do supra citado diploma legal. O MP apresentou doutas alegações, o mesmo tendo feito os extraditandos, que concluíram pela ilegalidade da extradição. Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir. Nas suas doutas alegações, os extraditandos apontaram ao processo as seguintes ilegalidades: Forma do acto do Governo; Ilegalidade viabilidade;

do

despacho

de

Alteração das fases processuais; Ilegalidade da concessão de prazo para apresentação de documentos; Interrogatório com violação de direitos fundamentais e das garantias processuais; Tempo e lugar da ocorrência dos factos; Não ocorrência de factos no Estado requerente;

Aspectos Polémicos da Extradição

Ocorrência de factos em Cabo Verde; Ausência de textos legais; Ausência de factos integrantes de organização criminosa; Nulidade das provas; Ausência de compromisso relativamente às obrigações do art. 107 da Lei de Extradição; Parcialidade de dois dos Juízes que estão a julgar o processo Concluem pela inexistência de base para a concessão da extradição, devendo o processo ser declarado inexistente, ineficaz ou nulo, consoante as ilegalidades identificadas. Apreciando: Dizem os extraditandos que do processo de extradição não se vislumbra a existência de qualquer decisão do Governo, constando apenas que deu parecer favorável, quando o que a lei exige é que tome uma decisão sobre o pedido de extradição. E que por outro lado, os actos do Governo, com eficácia externa, como é o caso, devem revestir a forma prevista na Constituição, no caso, a resolução; e que não há qualquer resolução publicada a autorizar a extradição ou qualquer outro despacho da Ministra da Justiça com fundamento em qualquer acto do Governo a autorizar a extradição; e ainda que houvesse qualquer resolução do Governo ou despacho da Ministra da Justiça, seriam de publicação obrigatória. Concluem pela inexistência jurídica do acto do Governo por o parecer não ser o acto próprio e por esse acto, a existir, não ter assumido a forma que devem assumir os actos do Governo.

No caso de se considerar que o acto é válido, a absoluta ineficácia do acto do Governo por falta de publicação obrigatória. Cremos porém que não tem razão. Na verdade, conforme dá conta o documento de fls. 197 do processo, o assunto (isto é o pedido de extradição) foi exposto ao Conselho de Ministros reunido na sua sessão de 20 do corrente e o Governo, mediante parecer favorável do MJAI, decidiu favoravelmente à extradição. Resulta assim de forma inequívoca que houve uma decisão, (e não um parecer) do Governo no sentido de se dar seguimento ao pedido de extradição. Aliás o próprio contexto dessa declaração não autoriza outra interpretação que não seja a de que se tratou de uma decisão e não de um parecer, pois que, pela natureza das coisas, sobre um parecer não recai outro parecer, mas sim uma decisão, e não é o facto de nessa informação transmitida ao Procurador-Geral da República se ter designado essa decisão por parecer que altera a sua natureza e o seu sentido. Pretendem igualmente os extraditandos que esse acto do Governo devia assumir a forma de resolução, de publicação obrigatória no jornal oficial. Ora, é certo que, como alegam os extraditandos, a Constituição da República dispõe que assumem a forma de resolução os actos do Governo não abrangidos pelo disposto nos artigos 257.º e 259.º da Constituição e, bem assim, os actos para os quais a lei não determina outra forma. Mas é preciso não perder de vista que a própria disposição acabada de citar permite que a lei autorize forma diversa a actos do

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governo que não seja a própria resolução. No que à decisão de extradição se refere, é certo que não há uma disposição expressa quanto à forma que esse acto do Governo deve assumir. A verdade porém é que resulta implicitamente do texto da lei que não é de se exigir a forma de resolução. Com efeito a Lei de Extradição apenas impõe que haja uma informação sobre a decisão favorável do Governo. É que o requisito cuja verificação, no plano processual, a lei exige. Caso fosse de exigir para a existência e eficácia do acto de autorização da extradição a forma de resolução, e a sua subsequente publicação no jornal oficial, não só não faria sentido essa simples informação da decisão do governo, como o mais certo seria que se fizesse a concomitante exigência de que o processo fosse ab inicio ineficaz. A congruência interna do sistema impõe por isso entendimento diverso daquele que pretendem os extraditandos. Na verdade, ao se satisfazer com a simples informação da existência do acto, a Lei da Extradição vem autorizar implicitamente que esse acto tenha a forma geral dos actos dos órgãos colegiais da administração que é a sua consignação na acta da reunião em que foi praticado com o que se respeita os requisitos da sua validade e eficácia nos termos do artigo 9.º e 10.º do Decreto Legislativo n.º 15/97, de 10 de Novembro. Não parece ainda despiciendo referir que a jurisprudência tem ido mais longe defendendo que se está perante

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um acto da Administração 5 para cuja eficácia não é exigível a publicação, sendo certo ainda que não falta doutrina, corroborada também pela jurisprudência, que perante regime idêntico da legislação portuguesa, sustenta a insusceptibilidade de impugnação contenciosa desse acto do governo 6. 5

“Não se trata em rigor de um acto administrativo mas de uma acto do Governo, no exercício das suas funções e competências, actuando face a motivos de ordem política, de oportunidade e de conveniência… Mas se, todavia, se entender que se trata na verdade de um acto administrativo será um acto meramente permissivo, preparatório e condicionante da segunda fase processual, não genérico, sem eficácia externa, e ao qual o extraditando” – Acórdão da Relação de Évora de 25 de Março de 1983, in Colectânea da Jurisprudência tomo II, pág. 329. “A eficácia da deliberação Governamental não fica dependente da sua publicação nem da sua notificação ao extraditando. Trata-se de um acto da Administração, mas não de um acto administrativo, sendo que a extradição é concedida pelo Governo no exercício do seu poder político. De qualquer modo, não se tratando de uma resolução de conteúdo genérico a sua eficácia não depende da sua publicação no Diário da República” – Acórdão do STJ de Portugal de 07 de Julho de 1983. 6 “A decisão do Governo que declarar admissível ou inadmissível o pedido de cooperação internacional é fundamentada, mas da mesma não há recurso… é problema exclusivo da soberania, da competência também exclusiva do Governo…” Carlos Fernandes, a Extradição e o Respectivo Sistema Português, Coimbra Editora, 1996, pág. 54. No mesmo sentido acórdão do Supremo Tribunal

Aspectos Polémicos da Extradição

Com os fundamentos acima expostos julga-se improcedente a alegada inexistência ou ineficácia da decisão do Governo. Ilegalidade do despacho de viabilidade e alteração das fases do processo Alegam os extraditandos que o despacho de viabilidade, proferido em 24 de Fevereiro, é ilegal, porquanto proferido muitos meses após a distribuição, depois de se ter concedido prazo por duas vezes ao MP, afectando os direitos de defesa dos extraditandos e a interposição de recurso do despacho de viabilidade, bem com do próprio acto do Governo. Ora decorre da tramitação imposta pela lei de extradição que, uma vez introduzindo o pedido em juízo, de duas uma: ou há indeferimento liminar, por manifesta inviabilidade, ou há prosseguimento do processo, ainda que com o convite ao requerente para completar o seu pedido ou juntar documentos em falta. A decisão que não indefere o processo e, ao contrário, manda prosseguir, com a prática de actos destinados a completar a sua instrução, contém em si, ainda que implicitamente um juízo de viabilidade sujeito ou não a confirmação posterior consoante se dê cumprimento ou não ao despacho de aperfeiçoamento. Daí que, uma vez no caso em apreço se deu cumprimento ao que fora ordenado pela juíza relatora no seu despacho inicial, o despacho de viabilidade implícita inicialmente admitida no primeiro despacho. Por Administrativo de Portugal de 04 de Dezembro de 1986.”

conseguinte não se pode em rigor dizer que o juízo de viabilidade deixou de ser formulado no momento próprio exigido por lei. Com isso fica igualmente respondida a questão sobre a alteração das fases processuais. Ilegalidade do despacho que concedeu prazo Dizem os extraditandos que por não terem sido ouvidos previamente pelo juiz sobre a concessão de prazo ao MP sem observância do princípio do contraditório violou os seus direitos de defesa e determinaram a prolongação arbitrária da sua detenção provisória e que as garantias processuais em processo criminal constituem direitos individuais cuja violação acarreta a nulidade de todos os actos praticados na sequência dessa violação. A concessão do prazo para o Estado requerente completar o pedido, tanto pode ser da iniciativa do Juiz como a pedido do MP, como prescreve o art. 104.º n.º 5 da LE. O processo de extradição é um processo especial, cuja regulamentação foi deferida à lei ordinária, embora o processo penal comum seja de aplicação subsidiária. Sendo o princípio do contraditório um dos princípios basilares do processo penal comum, deve naturalmente ser aplicável à fase judicial do processo especial de extradição. No entanto, mesmo em relação ao processo penal comum, tal princípio não está garantido em relação a todos os actos processuais, pelo que também em relação ao processo especial, o legislador ordinário tem liberdade para determinar os actos em relação aos quais o extraditando deve ser previamente ouvido. Quando aplicado ao processo espacial de extradição, o princípio do

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contraditório implica que ao extraditado seja dada a possibilidade de contrair e contradizer os argumentos do Ministério Público, o que sucede na fase de apresentação das alegações. Por isso, foi desaplicada a norma que estatui que alega em primeiro lugar o extraditando, invertendo-se a ordem de apresentação das alegações, em respeito ao referido princípio. No caso em análise, nada na lei impõe a audição dos extraditandos antes da concessão do prazo oficiosamente decidido pelo juiz, não tendo assim sido, neste particular, violado o referido princípio, tanto mais que não se ouviu igualmente o Ministério Público, nem prejudicada a defesa dos extraditandos, apresentada no momento legalmente estabelecido. Interrogatório com violação dos direitos fundamentais e garantias processuais Alegam os extraditandos que o interrogatório efectuado no dia 21 de Março não foram informados dos factos pelos quais o Estado requerente solicitava a extradição e nem foram perguntados pelos factos imputados, pelo que o interrogatório é nulo e de nenhum efeito. Em 28 de Outubro de 2003 os extraditandos tomaram conhecimento dos factos imputados pelo Estado requerente e que motivaram a sua detenção. No interrogatório efectuado em 21 de Março continuavam detidos pelos mesmos factos pelo que não havia que fazer nova exposição dos mesmos. Daí que não tenha sido violado o direito de defesa pois que desde o primeiro interrogatório efectuado aquando da detenção provisória foi-lhes exposto pelo juiz

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relatos dos factos de que cuja prática o Estado requerente lhes imputava. Daí que não tenha sido violado o direito de defesa dos extraditandos, pois que estes desde o primeiro interrogatório estiveram ao corrente dos factos que motivaram a sua detenção, por outro lado, contrariamente ao que afirmam, o Supremo Tribunal de Justiça não tem que se pronunciar sobre a prova apresentada e a sua validade substancial em termos de poder concluir se praticaram ou não os crimes imputados, porquanto no processo de extradição o Tribunal do Estado requerido não julga os extraditandos, apenas avalia a regularidade da extradição do ponto de vista do direito aplicável, nacional e estrangeiro e por isso, o juiz relator não tem que formular quaisquer perguntas sobre os factos. “O país requerido controla a qualificação jurídico-penal dada aos factos pelo país requerente, a fim de se assegurar de que a infracção pertence ao universo daqueles que dão lugar à extradição. Verifica se os mesmos factos são incriminados pela lei do país requerido, sem no entanto se preocupar com verificar a sua culpabilidade” – Filomena Delgado, BMJ 367. Como ensina Eduardo Correia (Direito Criminal, 1963, vol. I, pág. 187), em matéria de extradição, existem dois sistemas: o judiciário e o administrativo, sendo que o primeiro pode revestir duas modalidades: o judiciário material ou o formal. «Segundo o sistema judiciário material que é o sistema angloamericano, é necessário previamente fixar com possibilidade de contradição

Aspectos Polémicos da Extradição

a existência de razões sérias de culpabilidade do extraditando. Segundo o sistema judiciário formal que é o sistema francês…, o tribunal limita-se a verificar a regularidade do pedido de extradição». No sistema administrativo, a extradição é um puro acto políticoadministrativo do governo, sem qualquer garantia jurisdicional para o extraditando.

a prova indiciária existente no processo de extradição. E os extraditandos foram oportunamente ouvidos e tiveram oportunidade de se defenderem, como resulta abundantemente dos autos, quer durante o interrogatório quer no prazo que foi concedido para o efeito, pelo que não foram violados os preceitos constitucionais que referem, nem o interrogatório padece da alegada nulidade.

Para além destes sistemas, os autores costumam mencionar um sistema misto. A extradição, embora seja sempre um acto do governo, está subordinada a uma garantia jurisdicional a favor do extraditando – Ver Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal Português, parte geral, vol. I, Pág. 154.

Falta de localização espaço – temporal dos factos

Foi este o sistema seguido pelo legislador cabo-verdiano. Com efeito, o processo de extradição regulado pelo Decreto Legislativo citado, compreende duas fases: a fase administrativa, que «é destinada a apreciação do pedido de extradição pelo Governo para o efeito de decidir se ele pode ter seguimento ou se dever ser liminarmente indeferido por razões de ordem política, de oportunidade ou de conveniência» (art. 99.º n.º 2 do citado diploma); e a fase judicial que «é da exclusiva competência do Supremo Tribunal de Justiça e destina-se a decidir, com audiência do interessado, sobre a concessão da extradição por procedência das suas condições de forma e de fundo, (n.º 3), não sendo nesta fase admitida prova alguma sobre os factos imputados ao extraditando (n.º 4). Assim, não vigorando o sistema judiciário material em Cabo Verde , não há que emitir qualquer juízo de mérito sobre

Não tem porém razão. É que quer do documento de fls. 167 quer dos autos de detenção subscritos pelo juiz espanhol quer ainda de outros documentos dos autos resulta com clareza que aos extraditandos são imputados factos que de acordo com a lei cabo-verdiana integram um crime de associação criminosa para a prática de crime de tráfico de estupefacientes e que terão introduzido em território espanhol cerca de 07 toneladas de estupefacientes, que foram aprendidos naquele território.

Alegam os extraditandos que os factos que lhe são imputados não têm qualquer localização espacial determinada, por forma a que se consiga saber se ocorreram no território do Estado requerido ou no do Estado requerente.

Quanto ao local da infracção, seguramente que a mesma não ocorreu em território cabo-verdiano, mas em território espanhol e nem resulta dos autos que os extraditandos tenham praticado em Cabo Verde qualquer facto punível, nomeadamente transbordo de estupefacientes, porquanto a esse respeito referem os autos que (pg. 130) «após ter efectuado o

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carregamento e transbordo, ambos os barcos regressam ao amparo das ilhas de Cabo Verde, isto porque Zudar Sexto é obrigado a repor combustível...» O que revela efectivamente é o local onde a associação realiza as suas actividades, como critério de determinação do lugar do delito, para efeito de competência para o julgamento dos extraditandos, no caso, o território de Espanha, mesmo que não tenha ali a sua sede. É fora de dúvida que os extraditandos estão sujeitos à jurisdição do Estado requerente, pois que lhes é imputado um crime ocorrido no Estado espanhol, não sendo os tribunais cabo-verdianos competentes para o conhecimento e julgamento do mesmo. Ausência de factos integrantes de associação criminosa Dispõe o art. 98.º n.º 2 al. e) do Decreto Legislativo n.º 06/97, que “do pedido deve constar uma descrição dos factos, a sua localização no tempo e no espaço e a sua qualificação jurídica, se isso não resultar de outros documentos”. Isto significa que estes elementos podem constar de um documento autónomo e de outros que constem dos autos. Para além do documento de fls. 167, a fls. 177 e seguintes consta a descrição dos factos que integram a associação criminosa à luz da lei cabo-verdiana, desde a constituição das sociedades marítimas à aquisição de meios materiais entre os meses de Fevereiro e Março, nomeadamente os navios Nautillus e o rebocador Zudar Sexto, até à apreensão do produto estupefaciente em 11.10.2003 em território espanhol. Ausência de textos legais

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Na verdade, a fls. 163 e seguintes, bem como dos mandados de captura constam a transcrição dos preceitos incriminadores da conduta dos extraditandos, enquadráveis nos arts. 368.º e seguintes do Código Penal espanhol, não tendo que haver uma identidade de denominação do crime entre o Estado requerido e o requerente, mas apenas a qualificação dos factos como crime nos dois países. E os factos descritos são suficientes para concluir que lhe são imputados a autoria de um crime punido pela lei cabo-verdiana com a pena de prisão de 10 a 20 anos (arts. 11.º e 3.º da Lei n.º 78/93, de 12 de Julho, e pela lei espanhola com a pena de 03 a nove anos de prisão, agravada “…quando o culpado pertença a uma organização ou associação…”, nos termos previstos nos arts. 368.º e 369.º n.º 6 do respectivo Código Penal. Pelo que improcede esta alegação dos extraditandos. Nulidade das provas Alegam que as provas obtidas através de escutas telefónicas são nulas por falta de autorização judicial (de juiz cabo-verdiano) relativamente às comunicações operadas a partir de e no território cabo-verdiano. Na sequência do que foi dito supra, não compete ao Tribunal do Estado requerido (Cabo Verde) apreciar e emitir juízos de mérito sobre a prova indiciária. De qualquer modo, sempre se dirá que não existem nos autos quaisquer factos demonstrativos de que tenham sido realizadas escutas telefónicas a partir de Cabo Verde ou que os telefones usados pelos extraditandos a partir do território nacional tenham sido objecto de escutas (ilegais ou legais), sendo certo, que o que consta dos autos é que o telefone de um indivíduo

Aspectos Polémicos da Extradição

conhecimento por Manuel Mejuto, residente em Espanha e de seu filho Alberto estavam sob escuta e eram eles quem estabeleciam contacto com o extraditandos. Ausência de compromisso exigido pelo art. 107.º da LE Alegam os extraditandos que o estado requerente limitou-se a juntar uma informação sobre a legislação espanhola, subscrita por uma subdirectora geral sem que a autoridade do Estado requerente tenha dado qualquer garantia de cumprimento dessas obrigações ou tenha assumido qualquer compromisso que o obrigue ao respeito do disposto no art. 107 por parte do Estado requerente e que a subdirectora geral do Ministério da Justiça é uma funcionária administrativa sem qualquer competência para vincular internacionalmente o Estado requerente perante o Estado de Cabo Verde. A fls. 147 e 148 dos autos constam documentos do Ministério da Justiça, recebidos por via diplomática autenticado com o carimbo do Ministério dos Negócios Estrangeiros, nos quais o Estado requerente informa que “face à sua legislação interna – Lei reguladora da extradição passiva e Código de Processo Penal – as pessoas extraditadas não serão processadas por outros factos anteriores ao pedido de extradição, nos termos do princípio da especialidade, salvo se posteriormente for solicitada de novo uma ampliação da extradição ao país requerido. Por outro lado, computar-se-á o tempo de prisão decorrido em Cabo Verde em virtude deste processo.

Igualmente não serão extraditados a um terceiro Estado no caso de serem reclamados sem o consentimento do Estado de Cabo Verde. Finalmente, nenhum motivo político poderá ser tido em conta para agravar a pena que possa vir a ser aplicada, nos termos dos princípios estabelecidos na nossa ordem jurídica bem como nos tratados internacionais dos quais Espanha faz parte”. Não há qualquer razão para pôr em crise a informação acima transcrita, sendo ainda certo que não compete ao Estado de Cabo Verde definir quem na ordem interna espanhola tem competência para fornecer tal informação, a qual foi canalizada através dos competentes canais diplomáticos, nada permitindo inferir que a mesma esteja em desconformidade com a realidade, pois que essa suposição seria contrária ao princípio da boa fé que deve reger as relações entre Estados. Importa acrescentar ainda que o Estado requerente, o Reino da Espanha, é notória e reconhecidamente um Estado de Direito Democrático, sujeito a um apertado escrutínio da comunidade internacional, e de modo muito particular das instituições judiciárias da União Europeia a que se encontra vinculado, facto que constitui uma garantia suplementar da rigorosa observância não só do seu direito interno, mas também dos compromissos internacionais assumidos, nomeadamente das garantias apresentadas ao Estado de Cabo Verde para conseguir a extradição de pessoas que pretende submeter à sua jurisdição. Tal documento, que dá conta da legislação espanhola sobre a matéria,

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constitui garantia suficiente de cumprimento da exigência formulada pela LE. Com efeito, é a própria lei interna espanhola que constitui essa garantia, uma vez que expressamente as prevêem. E nem se diga que uma subdirectora geral não tem competência para vincular o Estado espanhol, pois que o que fez foi informar sobre os dispositivos da lei espanhola existentes sobre esta matéria. De qualquer modo, improcede assim esta alegação. Parcialidade dos juízes Os fundamentos invocados pelos extraditandos para questionar a imparcialidade de dois dos juízes deste processo foram já analisados, em parte, em decisão anterior, sendo ainda certo que não se está perante qualquer situação que, à luz dos princípios que comandam o devido processo legal, ou à luz da legislação vigente, nomeadamente o Código de Processo Penal, justifica de forma objectiva o afastamento dos dois juízes do processo. Na verdade, não foi apontada uma única causa que, por força da lei ou dos princípios gerais do processo, possa justificar o afastamento dos juízes, sendo certo e seguro que a mera invocação da alegada parcialidade é manifestamente insuficiente para conseguir esse desiderato. A conduta imputada aos extraditandos é enquadrável nos arts. 368.º e 369.º do Código Penal espanhol, sendo punida com a pena de 03 a 09 anos de prisão, pena que pode ser agravada, enquanto que segundo a lei cabo-verdiana, é punida com a pena de 10 a 20 anos de prisão. Assim, tal conduta é punível pela lei dos dois Estados, com pena superior a um ano de prisão, pelo que a

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extradição é admissível. O procedimento criminal não se encontra prescrito face ao Direito Penal Cabo-verdiano (art. 125.º do C.P), nem face à lei espanhola, pelo que não se ofende os arts. 90.º al. g) e 88.º n.º 3 do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio. Finalmente, quer o Estado de Cabo Verde quer o Estado Espanhol são signatários da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de 19 de Dezembro de 1988, vigorando no direito interno de ambos, sendo aceite por ambos os Estados como base jurídica para a extradição, à luz do previsto no art. 6.º. Os extraditandos são as pessoas reclamadas, nada existindo que se oponha à extradição. Nestes termos, uma vez que os extraditandos são as pessoas reclamadas pelo Estado requerente, se verificam as condições para a concessão da extradição, nada existindo que a ela se oponham acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, reunidos em conferência, em conceder a solicitada extradição dos extraditandos Eduar Rudzev, Kutepov Roman, Guvievsky Vasyl, Osadehey Oleksiy e Kalinin Volodymry para a Espanha, ordenando-se a sua entrega, pela Procuradoria-Geral da República, ao Estado requerente, bem como os navios apreendidos. (Art. 108.º do Decreto Legislativo n.º 06/97, de 05 de Maio). Custas pelo Estado requerente, com taxa de justiça que se fixa em 65.000$00 (Sessenta e cinco mil escudos). Praia, 07 de Abril de 2004.

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Assinados: Maria de Fátima Coronel (Relatora), Benfeito Mosso Ramos e Raul Querido Varela (Adjuntos).

D) CASO JEAN CHARLES DA SILVA Autos de pedido de detenção provisória n.º 04/2007 Autos de Arguido

Interrogatório

do

Data: 12/03/2007 Local: Supremo Tribunal de Justiça – Praia. Magistrados: Dr. Manuel Alfredo Monteiro Semedo, Juiz Conselheiro Relator do Supremo Tribunal de Justiça, bem como o Exmo.º Sr. Dr. Júlio Martins, Procurador-Geral adjunto, em representação do Ministério Público. Oficial de Justiça: José Delgado Vaz, Ajte Escrivão de Direito. Presentes: as pessoas previamente convocadas para este acto, o capturado Jean Charles da Silva, acompanhado do patrono por ele constituído Sr. Dr. José Manuel Pinto Monteiro, advogado e membro da OACV, com escritório e residência na Praia. Perguntado disse que o seu nome completo é: Jean Charles Moreira da Silva, solteiro, nascido a 17 de Dezembro de 1972, natural de França – Paris e residente em Cidade Velha. Relativamente a naturalidade disse que é filho de pais cabo-verdianos e protesta pela apresentação de

documentação necessária para atestar a sua nacionalidade. A matéria dos autos perguntado disse que por ora não quer responder. E mais não disse. Lidas as suas declarações, as achou conforme e vai assinar, na companhia do seu advogado. *** O Estado Francês solicitou, por via diplomática, ao Estado Cabo-verdiano a detenção provisória, com vista à extradição, do cidadão, JeanCharles da Silva, de nacionalidade francesa e com os demais sinais dos autos. Formulado o pedido pela entidade legalmente competente, e em face dos elementos probatórios, necessariamente indiciários, foi ordenada a respectiva detenção. O referido cidadão foi então localizado na Cidade de S.Tiago de Cabo Verde, detido e apresentado ao STJ, juntamente com documento de identificação do mesmo, (passaporte) mas usando o nome de Bilal Abdallah Youssouf e ostentando a cidadania Tchadiana. Ouvido em primeiro interrogatório, o custodiado, identificando-se como Jean Charles Moreira da Silva, solicitou, desde logo, o benefício da garantia que o processo de extradição confere aos extraditando estrangeiro ou apátrida. Ainda, solicitou o custodiado que lhe seja reconhecida a sua nacionalidade caboverdiana, juntando fotocópias de alguns documentos relativos ao seu nascimento e sua filiação, enquanto descendente de pais cabo-verdianos, ciente de que tais documentos não são

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suficientes para atestar a pretensa nacionalidade cabo-verdiana. Entretanto, enquanto aguardava a notificação do presente despacho, o custodiado fez juntar uma certidão de assento de nascimento n.º 72/79, lavrado junto do Consulado de Cabo Verde em Roterdão, em 10/08/1979, atestando o averbamento da nacionalidade cabo-verdiana, por opção, nos serviços de Registos Centrais. Em face desse circunstancialismo, e visto o preceituado no art. 37.º/1 da Constituição da República de Cabo Verde, que não a extradição de cidadão cabo-verdiano, o qual pode responder perante os tribunais caboveridanos pelos crimes cometidos no estrangeiro, somos a concluir que o pedido de extradição não deve ser deferido. Assim sendo, ordeno a soltura imediata do arguido, bem assim a remessa ao MP dos documentos de identificação do ora reclamado, enquanto cidadão Tchadiano, para os devidos efeitos. Passe mandado de soltura.

E) CASO ADILSON JÚLIO LUBRANO MONTEIRO Acórdão n.º 18/08 Registo: Do acórdão proferido nos autos de providência de habeas corpus em que é requerente, Adilson Júlio Lubrano

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Monteiro e requerido, 2º Juízo Criminal do Tribunal da Comarca da Praia. Acórdão N.º 18/08 Acordam, em conferência, Supremo Tribunal de Justiça.

no

Adilson Júlio Lubrano Monteiro, de nacionalidade holandesa, recluso na Cadeia Central de São Martinho, veio requerer a providência de habeas corpus alegando em síntese o seguinte: O requerente está preso desde 2 de Fevereiro de 2007, em regime de prisão preventiva e no âmbito do processo CD 312/2007, que corre os seus trâmites no 2º Juízo Criminal da Praia. Pois que se encontra indiciado por dois crimes de homicídio, um deles consumado na pessoa de um seu parente e amigo e outro na forma tentada, na pessoa de um empregado da discoteca, ocorrido na Holanda, na sequência de uma briga que teve lugar à porta de uma discoteca. Por iniciativa das autoridades holandesas foi o arguido preso preventivamente, por ordem de autoridade judicial cabo-verdiana competente, em processo de validação da captura. As autoridades holandesas quiseram requerer a extradição do requerente mas bem cedo receberam informação segundo a qual tal não era possível, face à proibição constitucional expressa no nº1 do artigo 37º da Constituição da República de Cabo Verde e no artigo 30º da Lei nº nº 80/III/90, de 29 de Junho. O requerente encontra-se já pronunciado pelos dois crimes referidos.

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A proibição de extradição é uma medida estabelecida a favor de nacionais cabo-verdianos, garantindo que não serão expulsos do território nacional, especialmente para responderem perante jurisdições estrangeiras. Tratando-se, portanto, de uma protecção dos nacionais contra o interesse de um Estado estrangeiro que pretende exercer o seu direito de punir as infracções cometidas em seu território, pediu ao Sr. ProcuradorGeral da República que fosse apresentar-se voluntariamente perante autoridade holandesa para responder perante factos que indiciariamente lhe eram imputados, naturalmente com as medidas policiais cautelares que se mostrassem adequadas ao caso, pedido que lhe foi indeferido. Dizia o requerente que estava convencido que responder perante as autoridades cabo-verdianas por alegado crime cometido em Holanda, diminuirá sensivelmente as suas garantias de defesa, pois que não sendo ele requerente Estado, não possui recursos que lhe permitam, na audiência de discussão e julgamento, produzir provas e contraprovas. Tendo o requerente renunciado a nacionalidade cabo-verdiana, nenhuma razão válida existe para o Estado cabo-verdiano continuar a dar protecção a quem não é o seu nacional. O requerente não procura a impunidade mas a extradição. A única dúvida razoável que pode ser levantada é que a Holanda admite a prisão perpétua, mas tal sanção só é aplicável aos casos mais graves de homicídio e não a uma alegada troca de tiros numa discoteca.

Os autos não dão conta de qualquer agravação pelos meios, motivos ou qualidade da vítima. Renunciou a nacionalidade caboverdiana e fez constar tal facto do processo crime requerido à sua extradição ou liberdade imediata. Com a renúncia da nacionalidade cabo-verdiana nenhum obstáculo existe à sua extradição. Remetido o duplicado do requerimento à entidade responsável pela prisão, não respondeu no prazo máximo que a lei lhe confere. Designado dia para a sessão a que se refere o art. 20º do CPP, nela fizeram uso da palavra, o Digno Magistrado do Ministério Público e o douto defensor constituído do requerente; aquele Magistrado opôs-se ao deferimento do pedido alegando no essencial, que não é possível a extradição e estando pendente o processo crime contra o requerente, é proibido o desaforamento. Alegou mais que ao crime de homicídio, na Holanda não corresponde apenas a prisão perpétua aplicáveis nos casos mais graves. O douto defensor do requerente sustentou a tese defendida no pedido de habeas corpus. Os factos essenciais são estes: O requerente está preso desde o2.02.07, em regime de prisão preventiva no âmbito do processo crime CD 312/2007, que corre os seus trâmites no 2º Juízo Criminal da Praia. O requerente está indiciado por dois crimes de homicídio, um deles consumado e outro na forma tentada contra cidadãos estrangeiros, ocorridos na Holanda.

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De seguida veio para Cabo Verde. Porque tinha nacionalidade caboverdiana não foi deferido o pedido de extradição. Posteriormente renunciou a nacionalidade cabo-verdiana, ficando apenas com a holandesa. Cumpre agora apreciar e decidir. A questão que se coloca em primeira linha é a da jurisdição. Não havendo jurisdição não se pode falar da competência, pois esta é uma parcela daquela. A Justiça Penal cabo-verdiana, globalmente considerada, não pode julgar o requerente, um cidadão holandês que cometeu um crime de homicídio na Holanda e contra um estrangeiro, sendo inviável a extradição a menos que houvesse acordo especial entre Cabo Verde e Holanda. É a solução que flúi da análise comparativa dos números 1 e 3 do art. 37º da Constituição da República e ainda do art. 4º al. d) do CP. A nacionalidade a ter em conta é a do momento da decisão. A regra geral é a do atendimento dos factos jurídicos supervenientes estabelecida no art. 663º do CPC e acolhida expressamente na legislação comparada sobre a extradição, nomeadamente a lei portuguesa nº 144/99, sobre a Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal, art. 33º nº6. Tendo o requerente renunciado a nacionalidade cabo-verdiana nada obsta à sua extradição por motivo da nacionalidade, pois que aqui a extradição visa unicamente proteger o nacional. Subsiste porém outra proibição constitucional de extradição, sendo

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esta irrenunciável porque se baseia em outra ordem de razões, (art. 37º, nº3, b) da CRCV): Em 1º lugar a pena de morte e a prisão perpétua, repugnam à cultura e sensibilidade do homem caboverdiano. Em 2º lugar repugnam igualmente à nossa Ordem Jurídica que acredita e aposta na recuperação de delinquentes, enquanto que a pena capital e a prisão perpétua tem uma finalidade exclusivamente retributiva, configurando-se como uma vingança da sociedade. Em 3º lugar, Cabo Verde quis marcar o seu alinhamento com os países que há séculos vem lutando pela abolição da pena de morte e da prisão perpétua. Ao crime de homicídio pode corresponder na legislação penal Holandesa a pena de prisão perpétua, o que é suficiente, para inviabilizar a extradição, a menos que o Estado holandês desse garantia que tal pena não seria aplicada ao requerente, como acontece em vários acordos de cooperação judiciária estabelecidos entre os Estados. É certo que o requerente pode beneficiar de uma pena de prisão temporária ou mesmo ser absolvido, consoante os factos que forem dados como provado no Tribunal do julgamento. Não cabe porém a este STJ no processo de habeas corpus dar como provados factos que constituam circunstâncias modificativas, até porque não foram sequer alegados e o Tribunal desconhece o circunstancialismo de que se rodeou o crime e que só o Tribunal do

Aspectos Polémicos da Extradição

julgamento pode dar ou não como provados. Assim sendo, chega-se a conclusão que a renúncia da nacionalidade cabo-verdiana pelo requerente tornou a prisão ilegal e a situação se enquadra na previsão do art. 18º c) do CPP, que abrange as ilegalidades resultantes de erro notório na aplicação do direito, de falta de competência e ainda o que é mais grave, de falta de jurisdição que decorre da manutenção de prisão após a renúncia da nacionalidade. “Acórdãos do STJ português de 06.02.97 e de 20.02.97, in BMJ 464,338 e 420 respectivamente. Julgar um cidadão holandês por crime cometido na Holanda contra estrangeiro, sem que haja acordo especial com aquele país, a permiti-lo inexistindo já qualquer conexão com Cabo Verde pode beliscar a soberania holandesa, pois que o Estado caboverdiano não tem jurisdição sobre os factos praticados pelo requerente. Face ao exposto e nos termos referidos decide-se, deferir o pedido de habeas corpus e ordenar a imediata soltura do requerente. Praia, 03 de Março de 2008. Ass., Drs.: Raul Querido Varela – relator, Maria de Fátima Coronel e João da Cruz Gonçalves – adjuntos

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Autores e Organizadores

Artur de Brito Gueiros Souza Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro; Mestre em Ciências Jurídicas pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Actualmente é professor adjunto de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e Procurador Regional da República na 2.ª Região – Ministério Público Federal. Tem experiência vasta na área do Direito Penal, actuando principalmente nos seguintes temas: direito penal, direito penal econômico, execução penal, transferência de presos entre países, extradição, tribunal penal internacional, tratados e globalização, tendo proferido diversas conferências nesse domínio; é autor, entre vários artigos, das seguintes obras As Novas Tendências do Direito Extradicional (Rio de Janeiro, Renovar, 1998) e Presos estrangeiros no Brasil (Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007). Franklin Furtado Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; formado pelo Centro de Estudos Judiciários de Portugal; exerceu recentemente funções como Procurador-Geral da República de Cabo Verde; proferiu diversas conferências no domínio do direito penal e cooperação judiciária e tem publicado nesta mesma área diversos artigos e comentários. Ilda Cristina Ferreira Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa e Mestre em Estudos Europeus pelo Instituto de Estudos Europeus de Macau e pela Universidade de Macau, com tese em Direito Comunitário, sob o titulo Indirect Legal Integration – Towards an European Iuris Corpus. Técnica Superior do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, actualmente, a exercer funcões como jurista no Gabinete para os Assuntos do Direito Internacional da Região Administrativa Especial de Macau; assistente convidada na disciplina de International Public Law, do curso de Mestrado de International Business Law, da Universidade de Macau, e formadora do Centro de Formação Jurídica e Judiciária. Tem dedicado especial atenção ao Direito Internacional, em particular ao Direito Europeu, Direiro Internacional Penal e 402

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Direitos Humanos, e neste quadro tem feito intervenções em wokshops e seminários e publicado em obras científicas. Jorge Carlos Fonseca Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; é advogado, jurisconsulto e Professor do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, onde também exerce as funções de Presidente; é Director da Revista Direito e Cidadania; é Presidente do Conselho de Administração da Fundação Direito e Justiça; autor material dos Projectos do novo Código Penal, do novo Código de Processo Penal e da revisão da Lei de Execução das Sanções Criminais em Cabo Verde; autor de obras diversas (como, A execução das sanções criminais em Cabo Verde, Praia, Universal Frontier, 2004; Reformas Penais em Cabo Verde , Praia, IPC, 2001; Um novo Processo Penal para Cabo Verde, AAFDL, Lisboa, 2003; Crimes de empreendimento e tentativa, Almedina, Coimbra, 1986); foi Assistente Graduado da Faculdade de Direito de Lisboa, Professor Convidado no Instituto de Medicina Legal de Lisboa e Professor Associado Convidado e Director (residente) na Universidade da Ásia Oriental (Macau), Curso de Direito e Administração Pública; foi Ministro dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde (1991-1993). José Luís Jesus Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Diplomado em Direito Internacional e Diplomacia pela Saint John’ s, Nova Iorque e Mestre em Government and Politics por esta mesma instituição; Diplomata de carreira da República de Cabo Verde, foi Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação e Ministro dos Negócios Estrangeiros e Comunidades de Cabo Verde; actualmente exerce funções como JuizPresidente do Tribunal Internacional do Direito do Mar; tem palestrado e publicado diversos artigos sobre Direito das Nações Unidas e Direito Internacional do Mar. José Pina Delgado Licenciado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá – Paraná – Brasil; Pós-Graduado em Filosofia Política e Moral pela Universidade Estadual de Londrina – Paraná – Brasil; e Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina; neste momento, prepara dissertação de doutoramento em Direito Público na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; foi assessor jurídico para questões de direito público e cooperação judiciária em matéria penal do Ministério da Justiça de 403

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Cabo Verde e assessor jurídico para questões de direito internacional e direito militar do Ministério da Defesa Nacional de Cabo Verde, tendo participado das negociações de vários acordos de cooperação judiciária concluídos por este país entre 2003 e 2006; actualmente é Professor Assistente Graduado do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, encarregado das regências das disciplinas de História das Instituições Jurídicas e Políticas, Direitos Fundamentais e Direito Internacional Público; tem publicado regularmente artigos sobre o tema objecto desta colectânea e proferido conferências em Cabo Verde, Portugal e Brasil sobre esse domínio. Júlio Martins Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e formado pelo Centro de Estudos Judiciários de Portugal; procurador de carreira, foi Director do Centro Jurídico do Governo e actualmente desempenha as funções de Procurador-Geral da República de Cabo Verde e assistente de Direito Penal no Curso de Direito do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais; tem auxiliado o Governo da República de Cabo Verde na negociação de alguns acordos de cooperação judiciária internacional em matéria penal. Liriam Tiujo Delgado Licenciada em Direito pela Universidade Estadual de Maringá – Paraná – Brasil e Mestre em Direito das Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil; actualmente é Professora Assistente Graduada do Instituto Superior de Ciências Jurídicas e Sociais, leccionando as disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito, Direito Internacional Público e Direitos Fundamentais; tem coordenado os cursos de pós-graduação ministrados pela Fundação Direito e Justiça; dedica-se especialmente ao estudo do Direito Internacional Penal, Direito Internacional Humanitário, Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional Económico. Assessora a Comissão Nacional para os Direitos Humanos e a Cidadania em temas diversos ligados ao Direito Internacional; e tem realizado consultorias e estudos no âmbito desta mesma temática. Nuno Piçarra Licenciado e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; foi assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, professor convidado do Instituto de Estudos Europeus da Universidade do 404

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Sarre (Alemanha), assessor jurídico do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias e Coordenador Nacional para os Assuntos da Livre Circulação de Pessoas no Espaço Europeu (Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Portuguesa). É, actualmente, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (onde tem leccionado as disciplinas de Direito do Urbanismo, Direito Constitucional e Direito da União Europeia), do Centro de Estudos Judiciários e do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna. É autor das monografias A Separação de Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional. Um Contributo para o Estudo das suas Origens e Evolução (Coimbra, Coimbra Editora, 1989) e O Inquérito Parlamentar e os seus Modelos Constitucionais: o Caso Português (Coimbra, Almedina, 2004) e de vários artigos nas suas áreas de especialidade.

Wladimir Brito Licenciado, Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; é advogado, consultor jurídico e Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho, onde tem leccionado as disciplinas de Relações Internacionais, Direito Internacional e Processo Administrativo, sobre estas mesmas matérias as quais tem proferido conferências em vários países; tem obras diversas, entre monografias (A Convenção-Quadro Europeia sobre a Cooperação Transfronteiriça entre as Colectividades ou Autoridades Territoriais, Coimbra, Coimbra Editora, 2000), manuais (Direito Consular, Coimbra, Coimbra Editora, 2004; Direito Diplomático, Lisboa, Instituto Diplomático, 2008; Direito Internacional Público, Coimbra, Coimbra Editora, 2008 e Lições de Direito Processual Administrativo, Coimbra, Coimbra Editora, 2008) e artigos; foi o redactor da versão originária da actual Constituição da República de Cabo Verde.

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