Jovens, cultura e ressignificação dos espaços rurais no Sul do Brasil

July 7, 2017 | Autor: Hélène Chauveau | Categoria: Rural Sociology, Human Geography, Cultural Geography, Youth Studies, Rural Development, Southern Brazil
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JOVENS, CULTURA E REQUALIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS RURAIS NO SUL DO BRASIL Temática : Desarrollo local, territorio y actores locales Hélène Chauveau - Doutoranda em cotutela em Geografia Rural e Agroecosistemas Université Lyon 2 Lumière, Laboratoire d'Études Rurales (França) & Universidade Federal de Santa Catarina, Laboratório de Agricultura Familiar (Brasil) [email protected] A migração seletiva de jovens rurais no Sul do Brasil ainda é uma realidade segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2006), com uma tendência de envelhecimento e masculinização dos territórios rurais. Esse fenômeno estável e continuo tem vários fatores já analisados (falta de renda e oportunidades, dificuldade nos acesso a educação, dentre outros) e um fator não negligenciável mas desconhecido: a falta de acesso à cultura e ao lazer. Observando a mobilização dos próprios jovens rurais através de entrevistas semi-dirigidas e da observação participante das práticas de aproximadamente cinquenta jovens entre 15 e 25 anos de 3 territórios rurais de Santa Catarina, tentamos entender como eles estão requalificando seus territórios rurais. Com efeito, a frente à falta de infra-estrutura, ao enfraquecimento do tecido social e à desconstrução do padrão cultural rural, jovens filhos e filhas de agricultores familiares inovam para reivindicar o seu direito ao lazer e à expressão cultural. No contexto sul-brasileiro, isso se traduz numa hibridização das práticas (rural/urbano, tradicional/digital, regional/global), uma reinvenção das raízes (gaúcha, italiana, alemã, açoriana, indígena) e a união das forças individuais. Essas ações, adicionadas às políticas públicas e aos movimentos sociais e religiosos que promovem a criação de uma cultura própria do campo estão mudando a realidade geográfica rural. Com o olhar espacializado que propomos desse processo, é possível reconsiderar o campo não só como um lugar de produção agrícola, mas também como um lugar de vida, propondo um alternativa à vida urbana, que possa também disponibilizar espaços e ferramentas para desenvolver atividades culturais e de lazer dos jovens. 4 palavra chaves : juventude / rural / cultura / lazer Introdução I / Três realidades territoriais diferenciadas mas sofrendo da mesma dupla fragilidade A/ Um êxodo seletivo com conseqüências além da demografia B/ Um contexto que limita as possibilidades : os ângulos mortes das políticas públicas II / As respostas dos jovens A/ A hibridização das práticas culturais B/ Agir de uma maneira comunitária Conclusão Bibliografia

Introdução Não se pode iniciar uma reflexão sobre o desenvolvimento local dos territórios rurais do Brasil sem falar de êxodo rural (Théry, 1999; Claval, 2000). Com efeito, mesmo que a palavra possa parecer forte demais1, esse fenômeno, mesmo sendo refreado nesses últimos anos, foi tão forte depois da Revolução Verde que chegou a comprometer a sobrevivência dos territórios rurais, esvaziando-se nas cidades, mandando famílias ou cada vez mais só os seus componentes mais jovens, alimentar a urbanização desorganizada do país. Mesmo o Sul do país, conhecido por ser a região mais favorecida em termos de desenvolvimento, sofre desse desequilíbrio demográfico que mata a agricultura familiar para fazer nascer centros urbanos precários. É justamente na região Sul onde essa cultura familiar é a mais forte e, então, a mais ameaçada, que escolhemos 3 territórios rurais para entender as expectativas do seus jovens moradores: Santa Catarina. Lá, a saída dos jovens rurais tem vários fatores implicados e já analisados por diversos autores, entre os quais, a falta de renda e de oportunidades, as dificuldades de acesso a níveis educacionais mais elevados, a crise do modelo econômico da agricultura familiar, etc. Mas um fator fundamental e muito pouco abordado na literatura surgiu de nosso trabalho de campo e da revisão bibliográfica: a debilidade no acesso à cultura e ao lazer para os jovens. A partir das representações e dos discursos dos próprios sujeitos - oportunizados através de entrevistas semi-dirigidas e da observação participante feita com cinquenta jovens na faixa etária de 15 a 25 anos – procuramos conhecer melhor as práticas culturais e de lazer dos jovens que ficam e/ou voltam para o campo. Buscou-se ter uma idéia mais precisa do que é a realidade deles em relação a esses temas e se essas práticas teriam a ver com a sua vontade de sair do campo ou, pelo contrário, sua vontade de manter / mudar / construir o rural onde eles gostariam para morar. Isso nos permite analisar como esses jovens estão vivendo a cultura nos seus territórios rurais, chamado de sua requalificação. Diante de um contexto de falta de infra-estrutura, de enfraquecimento do tecido social e de redefinição de padrões culturais no mundo rural, os filhos e filhas de agricultores familiares questionam, inovam e reivindicam o seu direito ao lazer e à expressão cultural, mobilizando as ferramentas públicas, privadas e associativas à sua disposição. No contexto sul-brasileiro, isso vem se traduzindo numa hibridização das práticas e dos sistemas culturais, muitas vezes rompendo dicotomias como rural/urbano, tradicional/moderno, local/regional/global, e num processo de reinvenção das suas raízes e identidades socioculturais (gaúcha, italiana, alemã, açoriana, indígena, cabocla, etc). Nesse artigo, vamos primeiramente apresentar os territórios estudados, mostrando como, apesar de suas diferenças, eles são todos enfraquecidos pelo êxodo e a falta de infra-estrutura. Num segundo momento, vamos analisar as respostas dos jovens a essa situação, como eles “hibridizam” suas práticas culturais e encontram apoio na mobilização comunitária. A conclusão nos permite abertura para a questão alvo: em qual medida o enfraquecimento do tecido social nos espaços rurais sul-brasileiros pode ser resolvido com a dinamização cultural dos jovens, provocando uma requalificação dos territórios? Com o olhar espacializado que propomos desse processo, objetivamos neste trabalho abordar, a partir do ponto de vista da juventude, a noção de campo não só como um lugar de produção agrícola, mas também como um lugar de vida e sociabilidade, indicando alternativas que procurem disponibilizar espaços e equipamentos sociais orientados para o desenvolvimento de atividades culturais e de lazer para os jovens rurais. I / Três realidades territoriais diferenciadas mas sofrendo da mesma dupla fragilidade Quando se vem de outro continente, como foi o meu caso, é marcante a realidade muito dual da oposição rural/urbano no contexto brasileiro. Morar nas zonas rurais de Santa Catarina não significa só ter um ambiente natural e morar em núcleos populacionais menores. Significa também, na maioria das vezes, não ter outra escolha de trabalho senão a agricultura, não ter acesso a uma rede de mobilidade e de comunicação eficiente, morar em casas muito distantes umas das outras e 1

ROSENTAL Paul-Andre. L'exode rural. Mise à l'epreuve d'un modele. In: Politix. Vol. 7, N°25. 1994. pp. 59-72.

ainda mais distantes de qualquer centro urbano, além de ter dificuldades de acesso a qualquer serviço ou infra-estrutura. Desde a Revolução Verde duas realidades ainda se adicionaram para dificultar a vida quotidiana: o modelo escolhido não favoreceu a reprodução econômica da agricultura familiar e a saída de muitos moradores que resultou disso enfraqueceu duramente o tecido social rural. É esse tecido social que chamou minha atenção, por ser menos estudado do que a agricultura em si e por me lembrar as pesquisas europeias sobre o “Novo rural”, realizadas também na América Latina (Graziano da Silva, 1999). Para ser forte, esse tecido social precisa de uma comunidade local e, se necessário, das políticas públicas. Por isso vamos observar porque, nos três territórios estudados, a comunidade foi enfraquecida pelo êxodo rural e porque são “o ângulos mortes” das políticas públicas, apresentando ao final territórios favoráveis a um sentimento de vazio cultural pelos jovens rurais. A/ Um êxodo seletivo com conseqüências além da demografia As regiões escolhidas são territórios rurais com características diferenciadas do ponto de vista das culturas presentes, das dinâmicas econômicas, políticas, sociais e históricas variadas, das tradições de mobilização e de reação diferentes, etc. No mapa abaixo, eles são apresentados rapidamente. A escala escolhida foi a dos SDR's, as Secretarias de Desenvolvimento Regional que nasceram da vontade de descentralização do estado catarinense, e que nos pareciam um compromisso interessante entre o município, pequeno demais; e o estado, grande demais; e as regiões do IBGE, que não tem dimensão política. São voluntariamente três realidades muito diferentes, mas onde o êxodo rural levou a grandes perturbações sociais.

Illustração 1: Mapa dos três territórios rurais de nosso estudo (Chauveau, 2013)

A SDR de Xanxerê representa a região Oeste, onde se encontram movimentos sociais, um mosaico cultural, o peso da agricultura familiar, as problemáticas indígenas e caboclas e uma colonização relativamente recente. Lá se nota uma densidade rural importante, com agricultores familiares de cultura italiana ou cabocla trabalhando em parte em parceria com a indústria agroalimentar, e com um histórico de lutas e organização social ligada ao MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra), por exemplo. A serra ou planalto catarinense, com no a SDR de Lages em seu centro, tem uma tradição mais ligada às grandes propriedades rurais, com uma agricultura familiar mais ameaçada, com menor mobilização comunitária e um gauchismo fortemente presente. O contexto cultural e social faz deste o território mais pobre dos três escolhidos, com mais servidão, devido à presença de uma agricultura mais latifundiária (mesmo de forma bastante relativa, porque estamos no Sul do Brasil) e um povoamento pouco denso do rural, com muita de sua população migrando para o litoral próximo ou estados vizinhos. Enfim, os espaços rurais da Grande Florianópolis, povoados de descendentes de alemães e açorianos, representam um rural mais “europeu” e tem em alguns lugares aspectos do “novo rural” (urbanos que vão morar no campo, preocupação pela agricultura orgânica, percepção do rural como um lugar de lazer e descanso, acesso mais fácil às infra-estruturas, casos de agro-turismo), e também sofrendo com o êxodo dos jovens que saem muito em direção das cidades próxima ou dos estados vizinhos para estudar ou trabalhar e nunca mais voltam. Nesses três casos o êxodo, que começou com a Revolução Verde e ainda ocorre hoje, preocupa os atores locais e estaduais, teve não só conseqüências demográficas mas também humanas. Com efeito, que eles sejam de cultura italiana, gaúcha, açoriana, cabocla ou alemã, evidencia-se a existência de um enorme e crescente isolamento social dos jovens que vivem nas comunidades rurais, devido, em parte a essa queda demográfica. Valmir Stropasolas trabalhou muito sobre essas questões e aqui vem um testemunho que reflete bem essa mudança na paisagem social dos jovens rurais : “Tinha um potreiro, e tinha um campinho, nós tinha feito um campinho lá caprichado, e nós jogava bola todo dia à tarde. Aí no verão, tinha um poção grande, um rio, e tomava banho todo mundo lá. Pescar no domingo nós ia, era divertido, tinha uma turma! Olha só: nós era em quatro irmãos, aí tinha uma família vizinha que tinha mais quatro, tinha outro que tinha mais três, e tinha os vizinhos ao redor. [...] Hoje, não tem mais ninguém morando lá, todo mundo saiu.” (testemunho de um rapaz de Linha Pinheiro Baixo, em STROPASOLAS, 2006, p.153). “Todo mundo saiu” subentendido não tem mas ninguém para «animar» a vida social local, compartilhar suas práticas culturais, seus desejos de lazer, para efetivar o “ser juntos” tão importante na formação da juventude. Os jovens que nós encontramos nos três territórios escolhidos falaram disso também, nas entrelinhas, assim como os adultos que trabalham e/ou convivem com eles. Esses três territórios, e seus moradores, têm ainda em comum, devido a sua ruralidade, sofrem com a falta de infra-estrutura e de políticas públicas, que acentua a aflição dos jovens que lá vivem. B/ Um contexto que limita as possibilidades : os ângulos mortes das políticas públicas A rede de infra-estrutura no Brasil pode ser qualificada de lacunar, ainda mas quando se fala da infra-estrutura de acesso em geral (físico ou mediatico) e de lazer, o que prejudica muito os jovens rurais nas suas possibilidades sociais e culturais. Tanto do ponto de vista geográfico quanto setorial, a distribuição da infra-estrutura é muita fraca no territórios encontrados. Primeiramente, faltam os acessos: estradas, transportes, inclusão digital. Andersom, um jovem entrevistado no oeste catarinense resumiu assim: “Se tu quer sair, é complicado, sempre pode furar o pneu porque a estrada é muito ruim, e se você fura num lugar onde o celular não pega, sua noite acabou.”. Se fala bastante no Brasil da exclusão digital, até de guetização e, no século onde a internet se torna um vínculo essencial entre as pessoas, os territórios e pela difusão cultural; os jovens rurais são lesados. Segundo, faltam também os equipamentos culturais e de lazer mesmos. Os dados do IBGE sobre a distribuição dos equipamentos culturais nos permite perceber as desigualdades espaciais. O mapa

abaixo, da pesquisa IBGE 2009, mostra que são sempre as sedes urbanas das SDR que são a mais dotadas com mais de 10 equipamentos culturais e de comunicação. Todos os outros municípios são majoritariamente idenficados na cor amarela, o que significa que tem mínima infra-estrutura, geralmente situada nas sedes “urbanos” desses pequenos municípios, como pudemos ver. Assim, os jovens rurais nunca tem acesso a mais do que o campo de bocha ou à bodega da comunidade, o que nem sempre corresponde às suas expectativas.

Illustração 2 : Número de equipamentos e meios de comunicação por cada municipio, Brasil e Santa Catarina (IBGE 2009 / H.Chauveau, 2013) Com essa tela de fundo, o assunto do acesso a cultura pelos jovens rurais sofre de uma tripla deficiência do ponto de vista da ação da esfera pública para melhorá-lo. Não só se fala de cultura, que é um setor no qual a ação política brasileira não é acostumada lidar, mas também de juventude, que por muito tempo foi um público invisível para o Estado, e que, para piorar, mora no campo, território à margem das políticas quando não se fala de agricultura. Assim, no campo das políticas públicas, é muito nova a preocupação de cuidar dos jovens moradores das áreas rurais do país, e ainda mais de cuidar de seu tempo livre ou de seu acesso à cultura. Desde o governo Lula, há vários programas que, ocasionalmente, podem atuar na área da cultura e do lazer para os jovens rurais (Microbacias, SC Rural, Pronera, Programa Territórios da Cidadania), mas que não o fazem ou fazem bem pouco justamente porque a cultura é desconsiderada. Para nós, o programa mais significativo foi o dos Pontos de Cultura, criado por Gilberto Gil, quando Ministro da Cultura. Há 60 dessas entidades em Santa Catarina, encontramos 10 que trabalham mais ou menos diretamente nas áreas rurais dos três territórios. Entre eles, alguns realizam um trabalho muito interessante de difusão de teatro profissional, de oficinas de dança ou música, de registro da cultura rural, de atividades intergeracionais. Mas, muitas vezes, esses Pontos sofrem das disfunções próprias ao setor público brasileiro: falta de rigor nos editais, atraso nos prazos de pagamento, qualidade dos projetos, visão limitada do que é a “cultura”. Essas “disfunções sistêmicas” são também as que impedem as SDR's ou secretarias municipais de fazer um verdadeiro trabalho cultural nos seus territórios, onde não somente há corrupção verdadeira, não somente há troca de favores e clientelismo político, mas ainda há muita incompetência, uma descentralização mal feita. Além desses fatores, há as conseqüências de um país onde não há preocupação com uma cultura que participe do desenvolvimento dos territórios e onde a ausência de infra-estrutura para isso não é problema exclusivo das zonas rurais, mas é uma mazela nacional. Esse caminho, os jovens tentam fazê-lo sozinhos, às vezes de um jeito inédito, às vezes acompanhados de atores específicos.

II / As respostas dos jovens É nesses contextos rurais do Sul do país, onde um desenvolvimento maior à média nacional encontra uma crise do modelo da sucessão familiar, que nascem respostas originais vindas das práticas dos próprios jovens. A/ A hibridização das práticas culturais Para os jovens, não há duvida, contrariamente aos políticos, aos cientistas, ou mesmo aos adultos rurais das comunidades, que dentre os argumentos mais clássicos para a saída do campo (falta de renda, dificuldades do trabalho agrícola, vontade de estudar, desejo de “ser alguém na vida”, necessidade de ficar mais independente em relação aos pais), há também, às vezes formulado, às vezes de maneira quase inconsciente, a questão da “inveja” do “modo de vida urbano”. Nessa “inveja” podem estar vários aspectos (o papel da mulher, os horários de trabalho e o direito a férias, por exemplo), mas muitas vezes aparece o direito ao lazer e ao acesso a uma oferta cultural diversificada. “Poder sair no sábado à noite”. “Ir ao cinema”. “Assistir um espetáculo”. “Ir a um bar com amigos”. “Ver coisas novas”. “Viajar de vez em quando”. “Ter um lugar onde encontrar outros jovens”. “Ter acesso à aprendizagem de uma prática artística original”. “Ver uma banda tocar ao vivo”. “Poder ir e voltar da cidade para passar noite”. “Ter acesso à internet”. “Poder me divertir com os amigos”. Esses são alguns dos desejos dos jovens que eu entrevistei tanto no Oeste Catarinense quanto no Planalto e na área rural do litoral de Santa Catarina. Esses são direitos fundamentais que esses jovens têm, e eles estão cada vez mais conscientes disso. Ainda mais porque esses mesmos jovens são muito ligados à vida e a cultura rural, a apreciam e gostariam de seguir vivendo no meio rural: “Não gosto do barulho da cidade”, “Eu tenho toda minha família, meus amigos na comunidade”, “É difícil encontrar as pessoas no contexto urbano”, “Gosto da tranqüilidade e convivência que existe no campo”, “Eu preferiria ficar, mas quero estudar também”, “Fora de um baile por ano não tem nada aqui, mas são bailes bem melhores que lá na loucura da cidade”. O peso da cultura é assim muito importante nas problemáticas dos jovens rurais do Sul do Brasil, e a hibridização da práticas culturais se constitui como uma resposta para a crise do modelo de sucessão familiar, do tecido social rural e das pertenças culturais desses jovens. Essas práticas são mais amplas do que as da “cultura institucional”, seja da palavra “cultura” no seu sentido mais restrito, mais usado nas pesquisas francesas por exemplo. Quer dizer, para entender essas questões de práticas culturais dos jovens rurais, não basta considerar a freqüência de sua ida ao museu, cinema, show, e teatros, porque geralmente eles não tem acesso à esses equipamentos. É preciso considerar que a cultura inclui também as práticas nomeadas na Europa de “folclore” ou “tradicionais”, e até marcas identitárias e práticas próprias à juventude. Maria José Carneiro, que analisa os jovens desde muitos anos, considera que existem dois elementos que participam da mutação dos espaços rurais: o crescimento da mobilidade individual, estimulada pela expansão dos meios de transporte, e o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação (Carneiro, 1998). Estas propagam elementos culturais “urbanos”, valores e práticas que os jovens rurais, geralmente, agregam com as suas. No rural sul-brasileiro, já encontramos um mosaico muito grande e diverso, devido à história colonial, resultando no convívio de descendentes de cultura açoriana, alemã, italiana, cabocla, gaúcha, interiorana, serrana, etc. Essas culturas sobrevivem de um jeito muito forte nos territórios onde fomos, mas a mobilidade espacial da população brasileira hoje, especialmente dos jovens, não permite pensar num isolamento delas. Como Stropasolas ou Abramovay comprovam, a revitalização do meio rural brasileiro passa, ao contrário, pela abertura, pela intensificação dos contatos econômicos, sociais e culturais com as cidades. A dimensão cultural dessa intensificação atinge fortemente os jovens que acabam por misturar, “hibridizar”, casar as diferentes coisas. Como podemos ver nos retratos abaixo de alguns jovens que encontramos nas nossas pesquisas.

Illustração 3: Fotos de alguns jovens com práticas culturais “hibridizadas”. Se vê uma jovem brasileira fã de funk mas com indumentária germânica, um jovem da PJR com as roupas de uma universidade, um jovem tocando numa banda de Rock tirolês, um jovem sem terra com camiseta da Legião Urbana, um jovem que queria morar na cidade mas toca música numa rádio rural, um jovem da cidade que pratica dança gaúcha (Chauveau, 2012-2013) Para viver essa práticas, os “quadros” das políticas públicas ou das atividades tradicionalmente propostas nas comunidades não são sempre apropriados, e muitas vezes fica difícil encontrar pares, colegas, para se divertir quando se tratam de jovens que moram em comunidades afastadas, de onde os outros saíram para estudar ou trabalhar na cidade. Assim, as ações mais relevantes que encontramos para facilitar esse acesso à cultura e ao lazer são as ações das organizações sociais que trabalham de uma maneira comunitária ou então os próprios jovens que formam grupos. B/ Agir de uma maneira comunitária A chamada “sociedade civil”, que incluí as organizações sociais, se torna às vezes a fonte mais vanguardista de soluções para as problemáticas, especialmente quando se tratam de problemáticas “invisíveis” aos olhos dos setores das políticas públicas e também do privado. É exatamente a situação das práticas culturais dos jovens rurais. Ao longo de nosso trabalho de campo e segundo os territórios, encontramos diversas organizações que desenvolvem atividades originais com os jovens. Pode ser a PJR – Pastoral da Juventude Rural –, que aproveita a presença ainda forte da Igreja Católica nos espaços rurais, da sua capacidade a formar grupos de jovens, nem sempre apenas para rezar. Poder ser o MST, Movimento dos trabalhadores Sem Terra, que sempre teve a juventude no centro de suas lutas e usa desde os anos 1980 a cultura como ferramenta essencial da “emancipação rural”. Através das propostas diferenciadas desses movimentos, trabalhando mais sobre o coletivo, tomando em conta a hibridização das práticas, eles se tornam mais próximos dos próprios jovens do que as políticas públicas ou as ações privadas, as quais parecem distantes ou ineficazes.

Illustração 4 : Foto de um grupo de jovens “sem terra” do Oeste Catarinense. O movimento permitiu que eles se encontrassem (eles não moram no mesmo lugar) e desenvolvessem atividades culturais juntos, assim como um vínculo forte de amizade e uma série de iniciativas próprias em torno das atividades de lazer e de produção de recursos culturais. (Chauveau, 2012) Assim se observa como um movimento com objetivos políticos e sociais pode ser um lugar de experimentação interessante, apesar de sua concepção da cultura, onde se prima muito pela criação sobre o acesso ou mesmo a difusão, e onde a cultura urbana é muitas vezes vista como desvirtuada. Ainda assim, é um dos poucos lugares onde a importância da cultura e do lazer para reter ou atrair os jovens ao campo é considerada. Assim, eles desenvolvem muitas atividades de oficinas diversas, de reflexão sobre a cultura de massa quem levam os jovens a pensar sua singularidade rural e o direito à cultura e à infra-estrutura, geralmente injustamente reservadas às cidades, influindo na inserção deles nas suas comunidades, e na representação positiva que eles têm que ter do campo para terem o desejo de construir suas vidas lá. Outros casos de organização mais espontânea dos jovens, retomando a forma tradicional no campo dos “mutirões”, existem também como as que criaram os “jogos rurais” no centro do Rio Grande do Sul. A existência e o dinamismo desse tipo de iniciativa depende também do contexto geográfico dos territórios. No nossos três territórios catarinenses, as ações culturais coletivas de jovens rurais são mais presentes no Oeste, por causa da presença da agricultura familiar e de uma tradição forte de mobilização política. Na Serra, pelo contrário, a estrutura mais latifundiária do campo e a densidade menor desses territórios leva a uma realidade mais individualista, onde o hábito de reunir-se não é tão presente. No litoral, a presença cada vez mais forte do turismo rural, de um “novo rural”, ligado às novas expectativas da cidade, provoca também uma tendência maior às formas cooperativas de ação, inclusive em meio aos jovens e para suas próprias atividades de lazer. Assim se esboça uma geografia dos tipos de iniciativas encontradas, mesmo cada uma sendo sem fronteiras. Conclusão : uma requalificação desses espaços está em progresso O acesso ao lazer e à cultura constitui um direito importante dos jovens rurais, que pode influenciar o movimento de desinteresse deles quanto aos territórios rurais. Assim, o acesso ao lazer e à cultura, podem dar início a um movimento de requalificação do campo no Brasil, com o objetivo

de reequilibrar as relações, dentre outras, demográficas, entre rural e urbano na América Latina. Com efeito, os elementos que acabamos de apresentar fazem parte de uma ampla visão do desenvolvimento local, incluindo todos os aspectos da vida, até os que parecem à muitas pessoas “superficiais”. A evolução das ruralidades latino-americanas e os debates sobre suas orientações não podem mais ignorar as questões de cultura e de juventude, centrais na qualificação do desenvolvimento. Hoje os espaços rurais estão mudando, entre “enraizamento”, “esvaziamento” e “contraurbanização”, vivendo uma redefinição do seu papel na sociedade através, dentre outros, da dimensão cultural. Essa dimensão será central para dar uma qualidade e uma identidade a esses territórios nos quais a sociedade, especialmente a sociedade urbana, projeta expectativas. Na Europa já se nota desde os anos 1980 um processo que nasceu após um período de uma estagnação do êxodo rural: o “renascimento rural” ou “recampesinação”, que faz emergir um “novo rural” (que tem várias definições, segundo os autores 2). Nesse processo, que se acentua hoje com a crise (particularmente em Portugal, por exemplo, onde muito jovens escolhem mudar de vida, indo por isso para as zonas mais rurais do país, consideradas como “lugar dos possíveis”) o desequilíbrio entre a oferta cultural farta do meio urbano e as possibilidades diferentes do rural se faz sentir cada vez mais. Essa reflexão é necessária, para que o campo permaneça um lugar singular, com suas qualidades e propriedades, mas que seja adaptado a um mundo que muda e a jovens que pedem cada vez mais para que ele seja mesmo um motor e um lugar das alternativas possíveis nessa sociedade. Bibliografia ABRAMO, Helena Wendel; BRANCO, Pedro Paulo Martoni. Retratos da juventude brasileira: análises de uma pesquisa nacional. São Paulo (SP): Instituto Cidadania: Fundação Perseu Abramo, 2005. 446 p. ABRAMOVAY, Ricardo et al. Juventude e agricultura familiar: Desafios dos novos padrões sucessórios. Unesco, Brasília, 1998 BERNIÉ-BOISSARD C., CHASTAGNER C., CROZAT D., FOURNIER L.-S (dir.), 2011 Développement culturel et territoires, Coll. Conférences universitaires de Nîmes, Ed. L'Harmattan CARNEIRO, Maria José; CASTRO, Elisa Guaraná de (Orgs). Juventude rural em perspectiva, Rio de Janeiro : Mauad X, 2007, 311 p. CARNEIRO, Maria José; O Ideal Rurbano: a relação campo-cidade no imaginário dos jovens rurais. XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 1998. CASTRO, Elisa Guaraná; Entre Ficar e Sair: uma etnografia da construção social da categoria jovem rural. Rio de Janeiro: UFRJ/PPGAS, 2005. Tese de Doutorado. CASTRO, Mary Garcia, Cultivando vida, desarmando violências : experiências em educação, cultura, lazer, esporte e cidadania com jovens em situação de pobreza. Brasília: UNESCO, 2001. 583p. CHAUVEAU Hélène, « O lugar do acesso (ou não - acesso) ao lazer e à cultura1 na relação que os jovens rurais tem com os territórios do interior catarinense » dans DORIGON et RENK (sdd), Juventude rural, Cultura e Mudança social, Argos, Unochapeco, 2014 DELFOSSE C., 2003, Géographie rurale, culture et patrimoine, HDR, Université de Lille I, 2 vol. : vol. de synthèse (312 p.) et volume de públications (443 p.) DELFOSSE Claire, 2011, « Culture et inégalités spatiales en milieu rural », in Dir, Frédéric Chauveau, Yves Jean, Laurent Willemez, Justice et sociétés rurales, Rennes, PUR, pp.103117. GRAZIANO DA SILVA, José. O Novo rurál brasileiro. Campinas, SP: UNICAMP. IE, 2

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