Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

June 1, 2017 | Autor: E. Meyer | Categoria: Human Rights, Transitional Justice, justicia transicional y Derechos Humanos
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Descrição do Produto

Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF

Coordenadoras

Flávia Piovesan | Inês Virgínia Prado Soares

Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF

2016

Rua Mato Grosso, 175 – Pituba, CEP: 41830-151 – Salvador – Bahia Tel: (71) 3363-8617 / Fax: (71) 3363-5050 • E-mail: [email protected] Copyright: Edições JusPODIVM Conselho Editorial: Dirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robério Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha. Diagramação e Capa: Marcelo S. Brandão ([email protected])

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Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF / Coordenadoras: Flávia Piovesan, Inês Virgínia Prado Soares – Salvador: Ed. JusPodivm, 2016. 592 p. Vários autores. Bibliografia. ISBN 978-85-442-1026-0. 1. Direito internacional. 2. Direitos Humanos. 3. Corte Interamericana de Direitos Humanos. I. Piovesan, Flávia. II. Soares, Inês Virgínia Prado. III. Título. CDD 341.27

Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM. É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis.

Apresentação da obra JURISPRUDÊNCIA DE DIREITOS HUMANOS E O BRASIL: IMPACTO DAS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA E DO STF No século XXI, sob a inspiração da prevalência da dignidade humana, um novo paradigma jurí�dico emerge à luz de um sistema jurí�dico multiní�vel marcado pelos diálogos, interações, empréstimos, impactos e referências mútuas e recí�procas a envolver as ordens local, regional e global. Este novo paradigma confere unidade e sentido à obra que temos a honra de coordenar, enriquecida pela diversidade e pluralidades de vozes e de inquietudes, revelada nos tantos capí�tulos acerca da jurisprudência de direitos humanos e o Brasil, com especial destaque ao impacto das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos e do STF. Estruturada em três partes, a obra adota como ponto de partida o enfoque do STF e da jurisprudência de direitos humanos, com ênfase nos julgados emblemáticos da Corte Interamericana no processo de afirmação de direitos no Brasil. Destacam-se aqui a instigante temática dos diálogos e tensões entre a Constituição e os direitos fundamentais; a dignidade da pessoa humana na jurisprudência do STF; os desafios da biotecnologia e a pesquisa com células tronco embrionárias; a proteção à diversidade sexual e a proibição da discriminação; o impacto da Audiência pública número 4 do STF no direito à saúde, via acesso a medicamentos, a proteção aos povos indí�genas e o direito à consulta livre, prévia e informada, a justiça de transição e os impactos da decisão do STF sobre a validade da Lei de Anistia de 1979 sobre o Constitucionalismo Contemporâneo, dentre outros temas de elevada relevância na crescente jurisprudência do STF em matéria de direitos. Já nas segunda e terceira partes, transita-se para a análise da jurisprudência da Corte Interamericana, conferindo especial atenção aos casos contra o Brasil no sistema interamericano. Temas de absoluta centralidade à causa emancipatória dos direitos humanos são examinados sob a ótica da jurisprudência interamericana, como a proteção aos direitos humanos

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das mulheres; a proteção dos direitos humanos das crianças; a proteção ao meio ambiente; a proteção dos direitos humanos sob a perspectiva de gênero, diversidade sexual e étnico-racial; a justiça de transição e as leis de anistia; o papel das Defensorias do Povo da América Latina e do Ministério Público Federal na proteção dos direitos humanos e sua interlocução com a OEA, as Contribuições da Corte Interamericana de Direitos Humanos no tema da violação em massa aos direitos humanos e as reparações; dentre outros. A esta análise do chamado “corpus juris interamericano” somam-se os capí�tulos atinentes ao caso brasileiro, merecendo menção o caso Ximenes Lopes e suas implicações para as pessoas com deficiência; o caso Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos; uma análise crí�tica do caso Escher; e o histórico, o impacto, a evolução jurisprudencial e a crí�tica do caso Gomes Lund. As tantas inquietudes, reflexões e perspectivas a marcar esta obra convergem na emergência de um novo paradigma jurí�dico no século XXI em matéria de direitos humanos. E o resultado dessa reunião de dilemas e abordagens é um livro coeso, forte, harmônico que ambiciona oferecer uma contribuição qualificada ao debate público vocacionado à compreensão da proteção dos direitos humanos nas esferas local e regional, impactada pelos processos de internacionalização e regionalização de direitos, a reinventar o Direito local, regional e global, sob a força emancipatória do diálogo. Por tudo isso, aos co-autores e co-autoras deste esforço coletivo, expressamos aqui nossa profunda gratidão, por participarem deste projeto e compartilharem com os leitores instigantes reflexões reunidas um mosaico de refinadas e qualificadas contribuições, que revelam a expansão e o fortalecimento da jurisprudência de direitos no Brasil. Aos leitores, nossos sinceros votos de que esta obra contribua, de algum modo, para muitas outras reflexões sobre impacto das decisões da Corte Interamericana na jurisprudência brasileira, especialmente, para uma atuação criativa e consistente na proteção dos direitos humanos no Brasil. As coordenadoras

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Sumário PARTE I STF e a jurisprudência de direitos humanos Pesquisa com células tronco embrionárias: os argumentos e o impacto da decisão do Supremo Tribunal Federal ............................ 23 Eloísa Machado de Almeida 1. Introdução ............................................................................................................................. 23 2. A interpretação dos direitos humanos e fundamentais e o caso pesquisa com células tronco embrionárias: múltiplos conflitos ........ 24 3. Divergência de argumentos no caso pesquisa com células tronco embrionárias ........................................................................................................................ 27 4. A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o uso de células tronco embrionárias para fins de pesquisa .................................................... 35 5. Conclusão: o impacto da decisão para outros casos de direitos humanos e fundamentais ........................................................................................... 45 6. Referências bibliográficas ............................................................................................. 47

Dignidade da Pessoa Humana na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ............................................................................................... 49 Ingo Wolfgang Sarlet I – Notas introdutórias .......................................................................................................... 49 II – Notas sobre o conceito, dimensões e funções da dignidade da pessoa no Estado Constitucional .......................................................................... 50 III – A dignidade da pessoa humana na visão do STF ...................................... 59 1 – Dignidade como princípio estruturante e critério de legitimação da ordem jurídico-constitucional .......................................................................... 59 7

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2 – A dignidade da pessoa humana e a assim chamada “abertura material” do sistema constitucional dos direitos e garantias fundamentais ............................................................................................................................ 63 3 – A Dignidade da pessoa humana e a “face” negativa e positiva dos direitos fundamentais .......................................................................................... 68 4 – A dignidade como parâmetro interpretativo na aplicação dos direitos fundamentais ................................................................................................... 74

IV – Considerações finais ...................................................................................................... 77

Direitos Humanos, Orientação Sexual e Proibição de Discriminação Sexual no Supremo Tribunal Federal ......................... 79 Roger Raupp Rios Luiz Gustavo Oliveira de Souza Introdução ................................................................................................................................... 79 1. Direitos humanos e sexualidade: a compreensão de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero ...................................................... 80 2. Direitos sexuais e orientação sexual na ADPF 132 ...................................... 87 3. A proteção e a compreensão dos direitos sexuais ..................................... 97 4. Considerações finais ..................................................................................................... 100 5. Referências .......................................................................................................................... 101

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo ................................................ 105 Emilio Peluso Neder Meyer 1. Introdução .......................................................................................................................... 105 2. Legitimidade do controle jurisdicional de constitucionalidade ...... 107 3. Justiça de transição, judicialização e constitucionalismo .................... 110 4. Judicialização da justiça de transição: casos latino-americanos comparados ....................................................................................................................... 116 8

Sumário

4.1. Judicialização na Argentina ................................................................................... 116 4.2. Judicialização no Uruguai ...................................................................................... 120 4.3. Judicialização no Chile ............................................................................................. 122 4.4. Judicialização no Brasil ............................................................................................. 124

5. Judicialização e justiça de transição: em prol de um constitucionalismo democrático ................................................................................................... 126 6. Conclusões ......................................................................................................................... 130 7. Referências .......................................................................................................................... 131

Educação e cotas raciais na Jurisprudência do STF: aspectos relevantes do julgamento da ADPF 186 .............................................. 137 Clarice Seixas Duarte Luiz Ismael Pereira Introdução .......................................................................................................................... 137 1. A CF/88, o Estado Social e Democrático de Direito e a necessidade de realização do princípio da igualdade em suas diferentes vertentes ............................................................................................................................. 140 2. Ação Afirmativa como política pública de promoção da igualdade de oportunidades: fundamento, conceito, modalidades e características .................................................................................................................... 146 3. A controvérsia em torno da legitimidade da adoção do critério étnico racial para ingresso no Ensino Superior .......................................... 150 4. Desigualdade racial no Ensino Superior brasileiro, democratização da universidade e o princípio meritocrático ................................................ 152 5. A persistência do preconceito contra cotistas, mesmo após a decisão do STF ................................................................................................................. 157 O julgamento da ADPF 186 e a Lei 12.711/2012 .............................................. 160

Conclusão ............................................................................................................................ 162 9

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A Convenção 169 da OIT e o Direito à Consulta Prévia, Livre e Informada .......................................................................................... 165 Deborah Duprat I – O Estado-nação e o seu povo ................................................................................. 167 II – A consulta da Convenção 169 ............................................................................... 174 (i) Quem consultar ................................................................................................................ 174 (ii) Como consultar ............................................................................................................... 179 (iii) Os efeitos da consulta ................................................................................................ 183

III – Considerações adicionais – O Cosmopolitismo Jurídico .................... 185 IV – Conclusão .......................................................................................................................... 187 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 188

Acesso a Medicamentos: Audiência pública número 4 do Supremo Tribunal Federal, de 2009 ....................................................... 191 Thana Campos Vitor Ido 1. Introdução .......................................................................................................................... 191 2. Impacto da Audiência Pública nº 4 na jurisprudência da Corte .................... 193 2.1. Perfil dos Atores Envolvidos .................................................................................. 193 2.2. Banco de Dados: maio 2009-julho 2015 ....................................................... 199 2.3. Análise dos Julgados à Luz da Audiência .................................................... 200

3. O Conceito de Saúde na Constituição Federal e na Jurisprudência Recente do STF ................................................................................................................ 207 5. Conclusão ............................................................................................................................ 214 6. Bibliografia .......................................................................................................................... 216 ANEXO Banco de Dados ..................................................................................................................... 217 Frequência Argumentos .................................................................................................... 220 Frequência Decisões Favoráveis ................................................................................... 221 10

Sumário

A Decisão do STF no Caso das Biografias não Autorizadas .......... 223 Inês Virgínia Prado Soares Mário Ferreira de Pragmácio Telles 1. Introdução .......................................................................................................................... 223 2. Privacidade versus liberdade de expressão: o cerne da ADI 4815 .. 226 3. A ADI 4815 num contexto mais amplo: influências, rebatimentos e debates pertinentes ................................................................................................. 230 4. ADI 4815: o STF se prepara para a Ciranda ................................................... 239 5. As questões controvertidas e nebulosas da decisão ............................ 243 6. Depois da ADI 4815: um bom barulho cultural? ..................................... 248 7. Referências .......................................................................................................................... 252

PARTE II Corte interamericana e a jurisprudência de direitos humanos O Papel das Defensorias do Povo da América Latina e do Ministério Público Federal Brasileiro na Proteção dos Direitos Humanos e sua Interlocução com a OEA ............................................ 257 Aurélio Virgílio Veiga Rios Marisa Viegas e Silva 1. Introdução .......................................................................................................................... 257 2. O resgate da figura do Ombudsman e sua inserção no contexto ibero-americano .............................................................................................................. 258 2.1. As defensorias do povo latino-americanas como o Ombudsman para os direitos humanos ....................................................................................... 258 2.2. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) / MPF como Ombudsman nacional brasileiro .......................................................... 261 11

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3. A interlocução da PFDC com o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ..................................................................................................................... 265 3.1. Antecedentes da atuação do Ministério Público Federal nas violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar brasileiro ............................................................................................................. 268 3.2 A sentença da Corte Interamericana no caso Gomes Lund e o compromisso do Ministério Público Federal com a sua efetividade ...................................................................................................................................... 270

4. Conclusões ......................................................................................................................... 277 5. Biblliografia ....................................................................................................................... 277

Diversidade Étnico-Racial, Constitucionalismo Transformador e Impacto do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos ......................................................................................... 281 Flávia Piovesan Introdução .......................................................................................................................... 281 .

Direitos humanos, diversidade étnico-racial e constitucionalismo transformador latino-americano .......................................................................... 282

.

Direitos humanos, diversidade étnico-racial e impacto do sistema interamericano ............................................................................................................... 289

.

Fortalecimento da proteção dos direitos humanos sob a perspectiva étnico-racial: potencialidades e desafios .............................................. 296 1) Aplicar indicadores para promover a igualdade e combater a discriminação, fomentando dados desagregados sob a perspectiva étnico-racial, gênero, idade e outras ................................................................. 297 2) Promover a igualdade mediante ações afirmativas, fortalecendo a ótica promocional do Direito ................................................................................. 298 3) Combater e punir a discriminação, fortalecendo a ótica repressiva do Direito ............................................................................................................................. 300 4) Fomentar uma cultura jurídica orientada pela implementação dos parâmetros protetivos internacionais e pelo controle da convencionalidade das leis ............................................................................................... 301

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Sumário

5) Avançar no diálogo entre jurisdições .............................................................. 301 6) Promover o valor da diversidade, mediante programas educativos e campanhas de sensibilização ................................................................. 302 7) Assegurar a diversidade e o pluralismo nos sistemas políticos e legais ............................................................................................................................... 302

Conclusão

................................................................................................................................ 303

Direitos Fundamentais, Constituição e Direito Internacional: diálogos e fricções ........................................................................................ 307 Daniel Sarmento 1. Introdução .......................................................................................................................... 307 2. Bloco de constitucionalidade e a hierarquia dos tratados internacionais sobre direitos humanos ...................................................................... 309 3. Princípio do cosmopolitismo: o diálogo internacional na interpretação constitucional ..................................................................................................... 319 3.1 Nem provincianismo constitucional... ............................................................. 319 3.2

...nem imperialismo internacionalista ........................................................... 326

4. Conclusão ............................................................................................................................ 334

Violações em Massa e Reparações: as Contribuições da Corte Interamericana de Direitos Humanos ................................................... 335 Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos 1. Introdução .......................................................................................................................... 335 2. As contribuições da Corte Interamericana nas reparações às graves e sistemáticas violações de direitos humanos: a finalidade pedagógica ........................................................................................................................ 337 3. As Reparações na Corte Interamericana de Direitos Humanos ....... 341 3.1. Como a Corte observa a responsabilidade internacional do Estado .................................................................................................................................. 341 3.2. Direito à reparação, instrumentos internacionais e direito inter13

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no: como a lei interna não impede o processamento dos casos perante a Corte ............................................................................................................. 344 3.3. O conceito de reparações para a Corte ........................................................ 346 3.4. As vítimas para a Corte e o sentido de “família” para fins de reparações ................................................................................................................................ 347 3.5. Reparações para os danos materiais ............................................................... 350 3.6. Definição de danos morais: compensação e bases para a sua determinação ................................................................................................................. 352 3.6.1. Outros aspectos relacionados aos danos morais .....................

355

3.7. As reparações simbólicas ou satisfações .................................................... 356 3.7.1. Outras formas de reparações simbólicas ......................................... 360

4. Conclusões ......................................................................................................................... 364

A Proteção aos Direitos da Criança na Jurisprudência da Corte Interamericana ............................................................................................... 367 Alessandra Gotti 1. O reconhecimento jurídico da criança como sujeito de direito ... 368 2. Breves considerações sobre o sistema interamericano de proteção de direitos humanos e seu aparato de monitoramento ....... 370 3. A proteção aos direitos da criança na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ............................................................. 373 4. Conclusão ............................................................................................................................ 386

Proteção Internacional dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas: Avanços e desafios da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas ................... 389 Flávia Piovesan Akemi Kamimura 1. Introdução ......................................................................................................................... 389 14

Sumário

2. Proteção internacional dos direitos humanos das pessoas idosas no sistema ONU ............................................................................................................ 391 3. Proteção dos direitos humanos das pessoas idosas no sistema OEA: a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos das Pessoas Idosas ................................................................................. 406 4. Considerações Finais .................................................................................................. 409

Justiça de transição e as leis de anistia na Corte Interamericana de Direitos Humanos ................................................................................... 411 Bruno Boti Bernardi O modelo de justiça de transição do sistema interamericano .................. 413 O caso peruano e as razões do impacto da jurisprudência da Corte Interamericana ........................................................................................................................... 430 Comentários Finais ................................................................................................................ 437 Referências Bibliográficas .................................................................................................. 440

Tutela Jurídica do Meio Ambiente na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos ................................................... 445 Valerio De Oliveira Mazzuoli Gustavo de Faria Moreira Teixeira 1. Introdução ......................................................................................................................... 445 2. O sistema interamericano de direitos humanos e a temática ambiental ..................................................................................................................... 446 2.1. Proteção internacional do meio ambiente e dos direitos humanos .................................................................................................................................. 448 2.2. O greening da Comissão e Corte Interamericanas ................................ 453 3. O “escrever verde por linhas tortas” e a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos ................................................................ 457 3.1 A proteção ambiental pela via reflexa ............................................................. 459 3.2 Efeitos do greening da Corte Interamericana ............................................. 462 4. Conclusões ......................................................................................................................... 467 5. Bibliografia .......................................................................................................................... 468 15

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PARTE III O Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos O caso Ximenes Lopes e algumas implicações para as pessoas com deficiência mental no Brasil ............................................................ 475 Marcus Pinto Aguiar Introdução .......................................................................................................................... 475 1. A perpetuação de um modelo doentio .......................................................... 476 2. Da passagem de uma vida para caso judicial ............................................. 480 3. Importância e limites dos tratados internacionais de direitos humanos ...................................................................................................................... 488 4. Implicações do caso Ximenes Lopes no Brasil ........................................... 491 5. Conclusão ............................................................................................................................ 495 6. Bibliografia .......................................................................................................................... 496

Caso Escher: Uma Análise Crítica da Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos à Luz do Direito à Liberdade de Associação e Reunião e as Consequências Criminalização dos Movimentos Sociais .............................................. 501 Melina Girardi Fachin Verônica Akemi Shimoida de Carvalho 1. Introdução .......................................................................................................................... 501 2. O caso

............................................................................................................................... 503

3. Os precedentes da CIDH ........................................................................................... 507 4. Uma análise crítica à posição adotada pela CIDH .................................... 510 5. Associação e reunião: contornos e conexões ............................................. 512 6. Criminalização dos movimentos sociais ......................................................... 518 7. Conclusão: legado ......................................................................................................... 522 8. Bibliografia citada ........................................................................................................... 524 16

Sumário

Gomes Lund vs. Brasil cinco anos depois: histórico, impacto, evolução jurisprudencial e críticas ......................................................... 525 Marcelo Torelly I.

Contexto dos fatos e judicialização das violações .................................. 526

II. Tramitação do caso e medidas prévias à condenação ......................... 529 III. Exceções Preliminares e Mérito ............................................................................ 533 IV. Determinações e implementação da decisão pelo Estado brasileiro ............................................................................................................................................. 541 a) Conduzir eficazmente perante jurisdição ordinária a investigação penal dos fatos ................................................................................................................. 541 b) Realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas ....................................................................................................... 543 c) Oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram ................................................................................................... 544 d) Publicação da sentença em veículos de mídia escrita e eletrônica .............................................................................................................. 544 e) Ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional .............................................................................................................................. 544 f ) Estabelecimento de curso permanente e obrigatório sobre Diretos Humanos para as Forças Armadas .............................................................. 545 g) Tipificar o delito de desaparecimento forçado ........................................... 546 h) Continuar as iniciativas de busca, sistematização, publicação e acesso de toda a informação ................................................................................ 546 i) Pagamento de indenizações .................................................................................... 546 j) Publicação de edital para identificação e habilitação de familiares de oito vítimas não-reconhecidas internamente pelo Estado brasileiro ................................................................................................. 547 k) Reabertura de prazo de seis meses para solicitação de indenização a familiares reconhecidos pela Lei 9.140 que não pleitearam reparação econômica .................................................................................................. 547

V. Impacto da decisão para além de seu objeto específico .................... 547 17

Impacto das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos na Jurisprudência do STF

a) Impacto na visibilidade da causa e na mobilização social .................. 548 b) Mudança de postura do Ministério Público Federal ............................... 549 c) Alavancagem da política pública de reparação e saúde mental para vítimas da ditadura ............................................................................................ 551 d) Nova Lei de Acesso à Informação ....................................................................... 552 e) Comissão Nacional da Verdade ............................................................................. 553 f ) Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 320 ........... 554

VI. Evolução jurisprudencial e críticas à decisão ............................................... 555 a) “Graves violações” ou “crimes contra a humanidade”? ........................... 556 b) Revisão legal baseada na Convenção Americana? .................................. 558

Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos ..... 561 Astrid Puentes Riaño Flávia do Amaral Vieira Rodrigo José da Costa Sales Introdução .......................................................................................................................... 561 1. A Usina Hidroelétrica de Belo Monte ................................................................ 564 1.1. Apresentação da Usina ............................................................................................. 564 1.2. Belo Monte: um antigo projeto ........................................................................ 565 1.3. O licenciamento ambiental na legislação brasileira .............................. 567 1.3.1. A Licença Prévia da UHE Belo Monte ................................................. 568 1.3.2. Iminência da Licença de Instalação ................................................... 571

2. Povos indígenas e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos ... 572 3. Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos .. 574 3.1. Solicitação das Medidas Cautelares ................................................................. 574 3.2. As medidas outorgadas pela Comissão Interamericana .................... 578 3.3. Impactos da Medida Cautelar na Organização dos Estados Americanos .................................................................................................................... 581

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Sumário

4. A atual situação das comunidades afetadas por Belo Monte, na bacia do rio Xingu, Pará, Brasil ............................................................................. 583 5. Conclusão ............................................................................................................................ 587 6. Referências .......................................................................................................................... 589

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Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

Emilio Peluso Neder Meyer1 Sumário: 1. Introdução – 2. Legitimidade do Controle Jurisdicional de Constitucionalidade – 3. Justiça de Transição, Judicialização e Constitucionalismo – 4. Judicialização da Justiça de Transição: Casos Latino-Americanos Comparados – 5. Judicialização e Justiça de Transição: em prol de um Constitucionalismo Democrático – 6. Conclusões – 7. Referências.

1. INTRODUÇÃO A temática da judicialização de relações sociais perpassa boa parte das recentes pesquisas desenvolvidas nas áreas do Direito e da Ciência Polí�tica. No caso brasileiro, há uma certa imersão na temática principalmente após a Constituição de 1988.2 Lembremos que isto pode se dever ao fato de que mesmo a ditadura de 1964-1985 buscou evitar a judicialização por meio de atos de exceção: o pós-enumerado Ato Institucional (AI) nº 1/1964 restringia a judicialização da suspensão de garantias de vitaliciedade e inamovibilidade no seu art. 7o, § 4o, bem como afastava o controle da suspensão de direitos polí�ticos no art. 10; o AI nº 2/1965 aprofundou sobremaneira o afastamento do controle jurisdicional, não permitindo a discussão de qualquer ato da falsa “revolução” com base no AI nº 1/1964, no próprio AI 2 e nos atos complementares.3 1.

2.

3.

Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-Graduação – Mestrado e Doutorado). Visiting Researcher no King’s College Brazil Institute (2014-2015). Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Justiça de Transição e Internacionalização do Direito. Coordenador do CJT/UFMG – Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG. Cf., por exemplo, RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as Cortes? Para uma crítica do direito (brasileiro). São Paulo: FGV, 2013; STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica. 3a ed. São Paulo: RT, 2013; BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012. Para uma análise das contradições presentes nesse afastamento, cf. PAIXÃO, Cristiano. BARBOSA, Leonardo de Andrade, “A memória do direito na ditadura militar: a cláusula de exclusão da

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I STF e a jurisprudência de direitos humanos

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

PARTE

Emilio Peluso Neder Meyer

Mais especificamente, pode-se dizer que a judicialização da justiça de transição remete à busca por implementar medidas transicionais por meio de provimentos ou decisões do Poder Judiciário. De iní�cio, é necessário considerar que estamos diante de um caminho em que se discute a legitimidade da atividade jurisdicional: com efeito, em um grande número de casos, o que está envolvido nesse fenômeno é a consolidação e efetivação de direitos fundamentais e direitos humanos definidos em Constituições e normas de Direito Internacional dos Direitos Humanos. A temática da judicialização da justiça de transição tem cada vez mais ganhado destaque, tendo sido, por exemplo, objeto de relatório da Rede Latino-Americana de Justiça de Transição, no biênio 2014-2015.4 Katya Kozicki parte de um importante insight para recorrer metodologicamente ao conceito de backlash, próprio do constitucionalismo democrático de autores como Reva Siegel e Robert Post, visando demonstrar as reações à decisões judiciais como uma forma de dar novos contornos a conceitos inerentes ao constitucionalismo.5 O objetivo é demonstrar que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 153 provocou inúmeras reações na sociedade brasileira a respeito de como pensar o conceito constitucional de anistia. Some-se a essa decisão o efeito causado pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CteIDH) no

4.

5.

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apreciação judicial observada como um paradoxo,” Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica 6 (2008), 57-78. Relatório ainda a ser publicado na data de fechamento desse texto. OSMO, Carla. Judicialização da Justiça de Transição na América Latina: Relatório da Rede Latino-Americana de Justiça de Transição. Brasília: Comissão de Anistia, no prelo, 2015. seude exceção: o pós-enumeradoos Lund pela CteIDH – mais lo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) visando ao cumprimento no BraCf. http://www.rlajt.com; a Rede, contudo, publicou suas recomendações sobre judicialização: http://www.rlajt.com/public/arquivos/8706c1d8.pdf (acesso em 27 de fev. 2015). “O termo backlash pode ser traduzido como reação, resposta contrária, repercussão. Dentro da teoria constitucional, vem sendo concebido como a reação contrária e contundente a decisões judiciais que buscam outorgar sentido às normas constitucionais. Seriam, então, reações que acontecem desde a sociedade e questionam a interpretação da Constituição realizadas no âmbito do Poder Judiciário. No Brasil, penso ser o caso, especialmente, das reações populares às decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas em sede de controle concentrado/abstrato de constitucionalidade. O engajamento popular na discussão de questões constitucionais não apenas é legítimo dentro dessa perspectiva, mas pode contribuir, também, para o próprio fortalecimento do princípio democrático” (KOZICKI, Katya. Backlash: as “reações contrárias” à decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF Nº 153. In O Direito Achado Na Rua, Vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina, ed. José Geraldo de Souza Júnior et al. Brasília: UnB, 2015, p. 193-194.

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

O presente artigo visa, a partir dessa perspectiva, problematizar a questão da judicialização da justiça de transição em uma perspectiva mais ampla na América Latina, focando em reações que culminaram em provocações no próprio Poder Judiciário. Centralizaremos nossa análise no Brasil, na Argentina, no Chile e no Uruguai. Dessa forma, discutiremos algumas causas para o fenômeno da judicialização da justiça de transição, principalmente relacionando-a ao controle de constitucionalidade; em seguida, traremos à lume a relação entre constitucionalismo, judicialização e justiça de transição; serão apresentados também casos latino-americanos de judicialização da justiça de transição, procurando-se apresentar o emaranhado caminho pelo qual passos são dados adiante e para trás; ao cabo, retomaremos os pressupostos metodológicos do constitucionalismo democrático, procurando verificar o impacto de suas construções para a problemática especí�fica da justiça de transição. 2. LEGITIMIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL DE CONSTITUCIONALIDADE A judicialização posta-se como um fenômeno que pode validar ou invalidar polí�ticas levadas a efeito pelos Poderes Éxecutivo e Legislativo. Trata-se, sobretudo, de atividades de controle jurisdicional de constitucionalidade diante de polí�ticas legislativas, de controle de legalidade diante de polí�ticas executivas ou, em ambos os casos, do que se vem chamando de controle de convencionalidade.7 É� certo que podem haver casos em que a judicialização ocorrerá não por conta de um questionamento de polí�ticas 6.

7.

Para uma discussão detalhada dessas decisões, cf. MEYER, Emilio Peluso Neder. Ditadura e Responsabilização: Elementos para uma Justiça de Transição no Brasil. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2012. Para uma crítica da dualidade controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade, cf. PATRUS, Rafael Dilly. Articulação Constitucional e Justiça de Transição: uma releitura da ADPF nº 320 no marco do “constitucionalismo abrangente”. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.

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Caso Gomes Lund.6 Kozicki apresenta fatores como o envio ao Congresso Nacional pela Presidência da República do Projeto de Lei nº 7.376/2010, que resultaria na Lei 12.528/2011, instituidora da Comissão Nacional da Verdade; reações de escracho de apoiadores da ditadura nas ruas; iniciativas legislativas visando à exclusão da abrangência legal da anistia de autores de crimes contra a humanidade; entre outros.

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públicas; ele pode estar aliado a um atraso nesse campo (algo, em geral, possí�vel em termos de justiça de transição), por exemplo, o que faria com que a decisão judicial apenas confirmasse uma disposição constitucional ou legal. Mas mesmo essa confirmação, pura e simples, é referente a uma correção que faz imperar coercitivamente aquilo que vem sendo rechaçado ou ignorado pelo Legislativo ou pelo Executivo. Ém se tratando do exercí�cio pelo Poder Judiciário das modalidades de controle de constitucionalidade e controle de convencionalidade, já se consolidou há muito um debate de legitimidade que pode ser chamado, de um modo reducionista, de dificuldade contramajoritária: como se poderia legitimar a atuação de autoridades públicas não eleitas que invalidam decisões de autoridades públicas ungidas pelo voto? Comecemos com a advertência de que, contudo, a própria maneira de enxergar nessa questão um suposto paradoxo ou uma suposta dificuldade pode ter implicações para o fenômeno da judicialização da justiça de transição. Em uma redução drástica, podemos assumir determinados pressupostos necessários ao objeto investigado sem ter que, no momento, discutir mais profundamente a questão. Assim, a ideia de uma “dificuldade” contramajoritária apareceria em Alexander Bickel,8 refutando-se um caráter democrático para o controle de constitucionalidade.9 Além disso, há que se destacar a posição de Jeremy Waldron pela qual prevaleceria uma desconfiança altí�ssima para com a possibilidade de legitimidade de uma jurisdição constitucional insensí�vel a um incidente “desacordo razoável” das democracias pluralistas atuais. Reforçando o papel do que se poderia chamar de “majoritarianismo” no Poder Legislativo, Waldron duvida que um órgão formado por técnicos especializados seja o locus mais adequado para trabalhar com o desacordo razoável.10 8. 9. 10.

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BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics. New Haven, CT: Yale University Press, 1986. ZURN, Christopher F. Deliberative democracy and the institutions of judicial review. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 4. “Pelo contrário, nos Estados Unidos o povo ou seus representantes em legislaturas estaduais e federais podem reivindicar essas questões se preferirem, mas eles não têm nenhuma certeza de que suas decisões irão prevalecer. Se alguém que discorda com o provimento legislativo decide traze a questão perante uma corte, a visão que prevalecerá, no final, será aquela dos juízes”. Tradução livre de: “By contrast, in the United States the people or their representatives in state and federal legislatures can address these questions if they like, but they have no certainty that their decisions will prevail. If someone who disagrees with the legislative resolution decides to

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

Ésta segunda compreensão nos parece mais adequada, mas é possí�vel complementá-la. Jürgen Habermas, por exemplo, partirá de uma concepção de legitimidade procedimental baseada nos princí�pios do discurso e da democracia para enfatizar que a soberania popular deve muito mais a uma concepção de democracia deliberativa do que uma concepção meramente por agregação. Indiví�duos que queiram regular legitimamente suas relações por intermédio do direito recorrerão a uma estrutura constitucional de cinco principais direitos fundamentais: a) direitos a um maior grau possí�vel de iguais liberdades de ação; b) direitos de nacionalidade; c) garantias judiciais; d) direitos de participação como concretização da autonomia polí�tica; e) direitos sociais que proporcionem o usufruto das demais categorias.13 A partir de uma leitura que não enxerga um paradoxo entre direitos e democracia, mas uma tensão constitutiva, torna-se possí�vel justificar o exercí�cio da função jurisdicional no campo do controle de constitucionalidade como uma reconstrução que zele pela tensão, ao invés de optar por apenas um dos lados (como ocorreria em uma perspectiva liberal ou

11. 12. 13.

bring the matter before a court, the view that finally prevails will be that of the judges” (WALDRON, Jeremy, “The core of the case against judicial review,” The Yale Law Journal 115 (2006), p. 1.350). Cf. DWORKIN, Ronald. Freedom’s Law: The Moral Reading of the American Constitution. Oxford: Oxford University Press, 1996; DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Harvard University Press, 1986. ZURN. Deliberative democracy and the institutions of judicial review, p. 117. MEYER, Emilio Peluso Neder. A Decisão no Controle de Constitucionalidade. São Paulo: Método, 2008, p. 196; HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez: Sobre el Derecho y el Estado Democrático de Derecho en Términos de Teoría del Discurso. Trad. Manuel Jimenez Redondo. Madrid: Trotta, 1998.

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De outra parte, veremos em autores como Ronald Dworkin, não obstante uma forte crí�tica à atuação do Poder Judiciário, a sustentação de uma defesa das cortes como “fóruns de princí�pio”. Na medida em que devam julgar de acordo com “argumentos de princí�pio” e não “argumentos de polí�tica”, defende-se um papel proeminente na defesa de direitos fundamentais, na medida em que as decisões de maioria devem demonstrar por todos os membros da comunidade igual consideração e respeito.11 Legislaturas podem não desenvolver adequadamente debates sobre os princí�pios que governam uma comunidade, contando com decisões, no mais das vezes, influenciadas por blocos de poder e permitindo soluções de compromisso que corroem a força deontológica de normas jurí�dicas.12

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republicana).14 Na medida em que os atos estatais são legí�timos desde que resultem de procedimentos justos e imparciais, o descumprimento de tais requisitos já pode ser uma lesão dos direitos fundamentais arrolados de “a” a “e”, permitindo um resgate corretivo nestes termos, como assevera Christopher Zurn.15 É� o mesmo autor quem asseverará a importância de uma concepção da atuação do Poder Judiciário frente ao controle de constitucionalidade que coloque em voga os elementos que ele destaca como centrais para o Constitucionalismo: Estado de Direito (rule of law); supremacia constitucional; organização polí�tica; e, direitos fundamentais.16 Este reconhecimento é fulcral, pois ele terá impacto na forma como se relaciona justiça de transição, judicialização e Constitucionalismo. 3. JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO, JUDICIALIZAÇÃO E CONSTITUCIONALISMO Como destaca Ruti G. Teitel, ainda que o Constitucionalismo tenha se formado no curso da definição de variados conceitos (federalismo, separação de poderes, controle judicial de constitucionalidade, direitos fundamentais), verifica-se que, com a chamada “terceira onda” de democratização (Hutington), há uma expansão da preocupação dirigida à state action para alcançar também a “inação estatal”.17 Isto se deveria, principalmente, à uma incidência de accountability perante o Direito Internacional, tendo reflexos, principalmente, em questões de identidade individual e coletiva perante a Constituição, para colocar em voga direitos que possam lidar adequadamente com conflitos e respostas à violência estatal. Se esta preocupação era, em certo momento, com abusos monárquicos passados, 14.

15. 16. 17.

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“A tese aqui defendida é a de que a jurisdição constitucional, no exercício do controle de constitucionalidade, deve garantir o devido processo legislativo, o devido processo constitucional e os direitos fundamentais, no sentido de que constitucionalismo e democracia não são concorrentes, mas faces de uma mesma moeda: os direitos fundamentais são garantias de institucionalização de um processo legislativo democrático, fundado na autonomia jurídica, pública e privada, e realizador da pretensão jurídico-moderna segundo a qual os destinatários das normas são seus próprios autores” (CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Teoria da Constituição. Belo Horizonte: Initia Via, 2014, p. 206-207, destaques do original). ZURN. Deliberative democracy and the institutions of judicial review, p. 237. ZURN. Deliberative democracy and the institutions of judicial review, p. 84. TEITEL, Ruti G. Globalizing Transitional Justice: Contemporary Essays. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 182.

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

As diversas mudanças ocasionadas em relação à responsabilização individual demonstram o impacto sobre o Constitucionalismo. A expansão desta demanda aparece com a expansão da jurisdição de tribunais ad hoc, como aconteceu em Prosecutor v. Tadic, em que Tribunal Penal para a Ex-Iugoslávia iria abraçar também casos envolvendo conflitos internos, destoando da tradição do Direito Internacional; do mesmo modo, com a aplicação das disposições das Convenções de Genebra para os detidos em Guantánamo por meio da decisão da Suprema Corte estadunidense em Hamdan v. Rumsfeld, 548 U.S. 557 (2006);19 pode-se adicionar, a forma como a Câmara dos Representantes e o Senado uruguaios procuraram, em um primeiro momento, aderir a decisão da Corte-Interamericana de Direitos Humanos (CteIDH) no Caso Gelman v. Uruguay, com a aprovação da Lei 18.831/2011.20 Não obstante Teitel conclua superficialmente sobre o ocorrido no Brasil em relação à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153 e à decisão da CteIDH em Gomes Lund,21 ela destaca que o Constitucionalismo transicional pode se ver diante da situação em que é necessário, com o decorrer do tempo, deslocar as demandas perante o Estado para a ação dos próprios membros da comunidade polí�tica. Não é surpreendente, nesse campo, portanto, que a via judicial (interna ou internacional), só venha a agir sob 18. 19. 20.

21.

HAILBRONNER, Michaela. “Rethinking the rise of the German Constitutional Court: From anti-Nazism to value formalism.” International Journal of Constitutional Law 12, no. 3 (2014): 631. TEITEL. Globalizing Transitional Justice: Contemporary Essays, p. 184. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. “Caso Gelman v. Uruguay, Sentencia de 24 de febrero de 2011”, http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_221_esp1.pdf, access 29/2/2016. Cf. MEYER. Ditadura e Responsabilização: Elementos para uma Justiça de Transição no Brasil, p. 86. A Lei 18.831/2011 viria, contudo, ter declarados inconstitucionais dispositivos concernentes aos crimes contra a humanidade sua imprescritibilidade pela Suprema Corte Uruguaia, em 2013, como se verá adiante. Para uma análise detalhada das decisões, cf. MEYER. Ditadura e Responsabilização: Elementos para uma Justiça de Transição no Brasil.

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I STF e a jurisprudência de direitos humanos

ela passa a ser, mais adiante, com os excessos do nacional-socialismo. Limites à liberdade de expressão, na expressão do que Loewenstein chamou de “democracia militante”,18 integram o panorama de um Constitucionalismo embebido na justiça de transição; tal Constitucionalismo tem como destinatários não apenas atores estatais, mas também atores não estatais quando se fala da imposição de limites.

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provocação. Dessa forma, casos como Velasquez-Rodríguez e Barrios Altos demonstram como a CteIDH associa os direitos à proteção da integridade pessoal e às garantias judiciais da Convenção Americana de Direitos Humanos, associação esta que impacta diretamente no Constitucionalismo dos diversos paí�ses latino-americanos. Mais do que isto, no próprio caso Gomes Lund, esta associação se mantém. Apenas a tí�tulo de ilustração: a) Barrios Altos: “A Corte, de acordo com os argumentos apresentados pela Comissão e não contestados pelo Estado, considera que as leis de anistia adotadas pelo Peru evitaram que os parentes das ví�timas e os sobreviventes nesse caso pudessem ser ouvidos por um juiz, como estabelecido pelo artigo 8(1) da Convenção; elas violaram o direito à proteção judicial estabelecido no artigo 25 da Convenção; elas evitaram a investigação, prisão, persecução e condenação dos responsáveis pelos eventos que se deram em Barrios Altos, assim falhando em assegurar o artigo 1(1) da Convenção, além de obstruir o esclarecimento dos fatos do caso”;22 b) Velásquez-Rodríguez: “Ha quedado comprobada, como ya lo ha verificado la Corte anteriormente, la abstención del poder Judicial para atender los recursos introducidos ante diversos tribunales en el presente caso. Ningún recurso de exhibición personal fue tramitado. Ningún juez tuvo acceso a los lugares donde eventualmente pudiera haber estado detenido Manfredo Velásquez. La investigación criminal que se abrió concluyó en un sobreseimiento”;23 c) Gomes Lund: “O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do 22.

23.

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Tradução livre de: “The Court, in accordance with the arguments put forward by the Commission and not contested by the State, considers that the amnesty laws adopted by Peru prevented the victims’ next of kin and the surviving victims in this case from being heard by a judge, as established in Article 8(1) of the Convention; they violated the right to judicial protection embodied in Article 25 of the Convention; they prevented the investigation, capture, prosecution and conviction of those responsible for the events that occurred in Barrios Altos, thus failing to comply with Article 1(1) of the Convention, and they obstructed clarification of the facts of this case” (INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS. “Case of Barrios Altos v. Peru, Judgment of March 14, 2001.” http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_75_ing.pdf., access 26/2/2016, p. 4). CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS. “Caso Velásquez Rodríguez, Sentencia de 29 de julio de 1988.” http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/fundamentos/jseriec4.pdf, access 26/2/2016, p. 26.

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

Adicione-se que a crescente relação de decisões judiciais nacionais e internacionais com foros e normas também nacionais e internacionais impacta diretamente no modo como o Constitucionalismo se desdobra: parece haver, tomando por referência as ordens constitucionais internas, um movimento tanto centrí�peto, a partir de tribunais como Nuremberg, os Tribunais Penais Internacionais para a Ex-Iugoslávia e Ruanda e a Corte Penal Internacional, como centrí�fugo, com os exemplos de jurisdição universal a partir da Espanha, França, Bélgica e Dinamarca.25 No conceito jurí�dico de “crimes contra humanidade”, por exemplo, é possí�vel desenvolver uma narrativa que amarra normas internacionais de tratados, jus cogens e obrigações erga omnes às reivindicações normativas internas de um Constitucionalismo não ensimesmado. Como aponta Teitel, se um primeiro momento do Constitucionalismo pós-autoritário voltou-se para o claro estabelecimento de uma noção de Éstado de Direito (em ní�vel constitucional) que pudesse controlar arbitrariedades estatais, em um segundo momento, a questão primordial tornou-se estabelecer a responsabilidade estatal do regime anterior por crimes contra a humanidade – aqui, é claro, com implicações para a responsabilidade individual.26 Sem necessariamente requerer uma imposição pura 24.

25.

26.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, “Caso Gomes Lund e Outros (”Guerrilha do Araguaia”) v. Brasil, Sentença de 24 de novembro de 2010”, http://www.corteidh.or.cr/docs/ casos/articulos/seriec_219_por.pdf, access 26/2/2016, p. 114. Cf. MEYER, Emilio Peluso Neder. Crimes Contra a Humanidade Praticados pela Ditadura Brasileira de 1964-1985: Direito à Memória e à Verdade, Dever de Investigação e Inversão do Ônus da Prova. Parecer apresentado à Comissão da Verdade Rubens Paiva do Estado de São Paulo e ao GT-JK (2014): accessed 10 de setembro, 2015, http://verdadeaberta.org/relatorio/. TEITEL. Globalizing Transitional Justice: Contemporary Essays, p. 196.

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mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos responsáveis, em prejuí�zo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.”24

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e simples do Direito Internacional, mas, pretendendo destacar o aspecto interpretativo de suas normas, Ruti Teitel situa bem o problema: Ainda assim, mesmos em casos de falha polí�tica, o Direito Internacional em si não é nem uma norma universal nem uma norma absoluta; pelo contrário, o Direito Internacional contempla interpretação. Sem dúvida, o surgimento de instituições de judicialização permite uma consideração caso a caso, na qual, ao cabo, essas respostas devem ser medidas pelo objetivo da mudança em uma direção mais liberalizante, juntamente com objetivos relevantes como um instrumento de segurança humana.27

A questão é que, nesse campo, parece que o Poder Judiciário pode oferecer a linha condutora para a reconstrução do Constitucionalismo impulsionada pela justiça de transição. É� claro que inúmeras polí�ticas públicas transicionais independerão da atividade judicial. Porém, a certificação e a solução de demandas relacionadas com a temática dependerá, em último lugar, de uma decisão do Poder Judiciário. Pari passu com essas exigências localiza-se um fenômeno de redimensionamento, devido, justamente, à expansão das relações jurí�dicas permeadas pela Constituição e a tentativas de democratização. No campo dessas últimas, é preciso reconhecer que ativistas, organizações de direitos humanos e outros setores a sociedade fatalmente usarão de suas garantias judiciais de acesso para provocarem aquele poder inerte a resolver as errôneas interpretações e omissões dos demais poderes. É� possí�vel condensar o movimento de direcionamento de demandas sociais para o Poder Judiciário por meio do que se costumou chamar de “judicialização da polí�tica”. Ém um estudo especí�fico sobre a questão na América Latina, Couso, Huneeus e Sieder expõem dois aspectos da judicialização da polí�tica: a) de um lado, as cortes têm assumido um papel protagonista que pode ser descrito como o de defensor de “normas constitucionais”, direitos e árbitro de conflitos sociais e polí�ticos; b) de outro 27.

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Tradução livre de: “Yet, even in instances of political failure, international law itself is neither one universal norm nor an absolute; instead, international law contemplates interpretation. Indeed, the rise in institutions of judicialization allows for case-by-case consideration, where ultimately these responses ought to be measured by the aim of change in a more liberalizing direction together with relevant goals such as a measure of human security” (TEITEL. Globalizing Transitional Justice: Contemporary Essays, p. XIX).

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

lado, um segundo aspecto denota um crescimento no uso do direito, dos discursos jurí�dicos e demandas por uma série de atores sociais, como polí�ticos, movimentos sociais e indiví�duos.28

Outra área da vida social que tem sido judicializada apenas nos anos recentes é a luta contra legados autoritários. Na Argentina, no Brasil, no Chile, em El Salvador, no Peru e no Uruguai, entre outros paí�ses, uma parte importante do trabalho atual de juí�zes criminais e civis envolve o julgamento de crimes praticados por antigos membros dos regimes repressivos, de modo que o alcance do direito sobre o domí�nio polí�tico não é apenas maior no presente, mas se estica para o passado. A judicialização também chega mais alto na hierarquia de poder. Esforços incluem julgamentos contra chefes de Estado, talvez culminando nos julgamentos de Augusto Pinochet no Chile e Alberto Fujimori no Peru, onde o direito esteve, pela primeira vez, enredado, condenando antigos lí�deres polí�ticos na região.29

Não há, pois, como dissociar os efeitos da judicialização da justiça de transição sobre o Constitucionalismo na região latino-americana. 28. 29.

COUSO, Javier. HUNEEUS, Alexandra. SIEDER, Rachel. Cultures of Legality: Judicialization and Political Activism in Latin America. New York: Cambridge University Press, 2010, p. 9. Tradução livre de: “Another area of social life that has been judicialized only in recent years is the struggle over authoritarian legacies. In Argentina, Brazil, Chile, El Salvador, Peru, and Uruguay, among others, an important part of the current work of the criminal and civil judges involves adjudication of crimes committed by former members of repressive regimes, so that law’s reach into the political domain not only is now wider in the present but stretches further back in time. It also reaches higher into the hierarchy of power. Efforts include trials against heads of state, perhaps culminating in the trials against Augusto Pinochet in Chile and Alberto Fujimori in Peru, wherein law has, for the first time, entangled and condemned former political leaders in the region” (COUSO. HUNEEUS. SIEDER. Cultures of Legality: Judicialization and Political Activism in Latin America, p. 10).

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Além disso, não obstante uma consolidação de uma “cultura jurí�dica” colonial, três fatores destacam a judicialização atual: 1) a expansão do domí�nio da vida social e polí�tica articulado nos termos de um discurso jurí�dico; 2) a expansão do tipo e número de garantias judiciais disponí�veis; 3) um uso estratégico mais frequente de discursos e instrumentos jurí�dicos em lutas polí�ticas. Ad 1), não será surpreendente que os autores concluam, para além da expansão empurrada por lití�gios, por exemplo, relativos ao direito à saúde ou educação, que demandas transicionais se vejam presentes:

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4. JUDICIALIZAÇÃO DA JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: CASOS LATINOAMERICANOS COMPARADOS Verificada a correlação da justiça de transição com o processo de redefinição do Constitucionalismo por meio da judicialização, tomemos alguns exemplos latino-americanos como referência. Para tanto, partiremos da hipótese de que o tratamento de graves violações de direitos humanos praticadas por regimes de exceção como crimes contra a humanidade tem efetiva repercussão no modo como as práticas judiciais provocadas por atores sociais são respondidas pelo Poder Judiciário. 4.1. Judicialização na Argentina O caso argentino é paradigmático. Em um primeiro momento, a judicialização se centrou na responsabilização ao tempo inédita de chefes de Estado, permitindo, de certa forma, a edificação do Constitucionalismo sobre uma base “liberal” em que o luto é juridicamente vivenciado pela memória sobre a privação de direitos e sobre a reflexão a respeito do projeto de vida inconcluso a partir de tal restrição. “Fazendo isto, o Direito Penal contribui significativamente para a solidariedade social que é baseada em compromissos compartilhados com princí�pios liberais de mútuo respeito e consideração entre indiví�duos”.30 O julgamento das juntas teve um importante papel nesse sentido, pavimentando o caminho para que se pudesse lidar devidamente com contratempos para a justiça de transição. Com efeito, seria a Lei 23.040/1983 que revogaria a auto-anistia estabelecida na Lei 22.924/1983 e permitiria, em um primeiro momento, o processamento e a responsabilização de oficiais de alta patente, como Videla, Massera e Agosti. Tais condenações levaram à insatisfação de certos setores que propugnaram pelas chamadas leis de “ponto final” e de “obediência devida”. Com efeito, a Lei nº 23.492/1986 estabelecia um prazo de sessenta dias para a caducidade de ações em trâmite na justiça 30.

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“In doing so, criminal law contributes significantly to the social solidarity that is based on shared commitments to liberal principles of mutual respect and concern among individuals” (OSIEL, Mark. Mass Atrocity, Collective Memory, and the Law. New Brunswick and London: Transaction, 2000, p. 68).

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

argentina; já a Lei nº 23.521/1987 estabelecia uma presunção de obediência hierárquica que poderia afastar a responsabilização de agentes públicos.

Durante o Governo de Carlos Menem, diversos condenados foram beneficiados por indultos. O advento da Reforma Constitucional de 1994 iria constitucionalizar diversos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos assinados pela República argentina. A cláusula “en las condiciones de su vigencia”, presente no novo art. 75, inc. 22, do Texto Constitucional, abriria espaço para o entendimento de que tais tratados deveriam ser interpretados à luz do que estabelecem os órgãos internacionais responsáveis por sua aplicação e não o que definido pelos juí�zos argentinos.33 Outro fator que contribuiu para essa mudança paradigmática foi a forma como a Argentina havia se tornado um local seguro para 31. 32.

33.

ROHT-ARRIAZA, Naomi. The Pinochet Effect: Transnational Justice in the Age of Human Rights. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2005, p. 97. “Articulo 29o.- El Congreso no puede conceder al Ejecutivo nacional, ni las Legislaturas provinciales a los gobernadores de provincia, facultades extraordinarias, ni la suma del poder publico, ni otorgarles sumisiones o supremacias por las que la vida, el honor o las fortunas de los argentinos queden a merced de gobiernos o persona alguna. Actos de esta naturaliza llevan consigo una nulidad insanable, y sujetaran a los que los formulen, consientan o firmen, a la responsabilidad y pena de los infames traidores a la pátria”. Note-se que o art. 39, número 1, da Constituição Sul-Africana de 1996, em um claro contexto transicional, estabelece que o Judiciário daquele país, ao interpretar a declaração constitucional de direitos, deve considerar o Direito Internacional e pode considerar o direito estrangeiro.

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A CSJN confirmou a validade de tais leis no julgamento do caso Ramón Camps.31 Essa decisão fundou-se em três argumentos: a) não caberia ao Judiciário rever uma decisão polí�tica congressual; b) o legislador era livre tanto para sancionar penalmente certas condutas, como para livrá-las da punição; c) não caberia também ao Judiciário usurpar uma decisão polí�tica legislativa em dado momento histórico. Vale registrar que o Juiz Antonio Bacqué dissentiu da maioria sustentando o papel do Judiciário desenhado no precedente estadunidense de Marbury v. Madison [5 U.S. (1 Cranch) 137 (1803)]: caberia a ele dizer sobre o significado do direito em uma democracia constitucional. A presunção absoluta de que certos fatos eram verí�dicos definida pelas leis em questão violaria o disposto no art. 29 da Constituição argentina32. Além disto, a anistia estabelecida era inválida, pois tanto alcançava ações cí�veis quanto se estendia para atos não passí�veis de anistia, como a tortura.

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criminosos de guerra nazistas, sendo, no fim da década de 1980 e iní�cio de 1990, pressionada a deferir as extradições de Joseph Schwamberger e Erich Priebke. Mesmo diante da posição inicialmente refratária da Suprema Corte argentina, vários atores institucionais e sociais continuaram buscando espaços de ação no direito estabelecido. É� o caso do CÉLS – Centro de Éstudios Legales y Sociales, responsável por concretizar ações cí�veis que levariam aos “juí�zos pela verdade”. Para a Corte Suprema Argentina de la Nación argentina (CSJN), o primeiro momento em que ela semeou a normativa do Direito Internacional fora no julgamento do Caso Arancibia Clavel.34 Em sua decisão, a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina (CSJN) declarou que os Estados, incluindo a Argentina, vinham reduzindo seu âmbito de soberania pela adesão a tratados internacionais de direitos humanos, dando corpo, com isso, à institucionalização de um direito costumeiro internacional dos direitos humanos. Além disso, a paulatina incorporação de tais direitos não se daria apenas da ótica do direito local, mas sim com um interrelacionamento que congregava diversas nações em torno da proteção do gênero humano, é dizer, a aceitação de valores que alcançariam tais Estados pelo mero fato de pertencerem à comunidade internacional.35

A aprovação pelo Congresso Nacional argentino da Lei 25.779/2003 ocorreu com prévio debate parlamentar acerca da incidência da normativa de Direito Internacional. Isto foi rememorado pela Corte Suprema de la Nación no julgamento do já consagrado Caso Sí�mon.36 Para proceder ao interrogatório de Sí�mon e Del Cerro, o juiz de primeiro grau declarou a invalidade das leis de “ponto final” e “obediência devida” perante a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Declaração Americana de Direitos 34.

35. 36.

118

ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. A. 869. XXXVII. Arancibia Clavel, Enrique Lautaro s/ homicidio y associación ilícita. Causa nº 259. Fallos: 327:3312. Buenos Aires, 8 de março de 2005. http://www.csjn.gov.ar, access 12/07/2012. MEYER. Ditadura e Responsabilização: Elementos para uma Justiça de Transição no Brasil, p. 90. ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. S. 1767. XXXVIII. Símon, Julio Hector y otros s/ privación ilegítima de la libertad, etc. Causa nº 17.768. Fallos: 328:2056. Buenos Aires, 14 de junho de 2005. http://www.csjn.gov.ar, access 12/07/2012.

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

Já a CSJN entendeu que a lei de “obediência devida” visava convalidar uma decisão do Poder Executivo de declarar a impunidade de pessoas do meio militar, mas que ela estava marcada por “sérias falências”. Não se poderia considerar que normas de hierarquia pudessem desculpar ações de conteúdo ilí�cito manifesto, atos atrozes ou aberrantes totalmente contrários à Constituição. Desde a adoção da lei até o presente, o sistema jurí�dico argentino foi impactado por mudanças importantí�ssimas que exigiam uma revisão de qualquer decisão institucional em sentido contrário. O Direito Internacional dos Direitos Humanos, especialmente impulsionado pelo dispositivo do art. 25, inc. 22, da Constituição Argentina, não permitiria a manutenção de restrições como aquelas das leis de obediência devida e ponto final. Ainda que o Poder Legislativo detivesse a prerrogativa de estabelecer anistias, não poderia fazê-lo nos moldes anteriores. A base dessa mudança de entendimento estaria também na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. De modo semelhante a, CSJN agiria em relação a outro importante precedente, o Caso Mazzeo:37 Diversos autores pessoas fí�sicas, assim como a Liga Argentina por los Derechos Humanos, pleiteavam a declaração de inconstitucionalidade do Decreto nº 1.002/1989, que concedera indulto ao General Santiago Omar Riveros, entre outros agentes. O Juzgado Federal nº 2 de San Martí�n já havia declarado incidentalmente a inconstitucionalidade buscada, afastando, inclusive, quaisquer outros óbices que pudessem embaraçar a investigação e punição dos fatos nos quais estava envolvido Riveros. A Cámara Federal de Apelaciones de San Martí�n havia

37.

ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. M. 2333. XLII. Mazzeo, Julio Lilo y otros s/ recurso de casación e inconstitucionalidad. Buenos Aires, 13 de julho de 2007. http://www.csjn. gov.ar, access 12/7/2012.

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I STF e a jurisprudência de direitos humanos

Humanos, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Polí�ticos e a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes; e mais, com fundamento no art. 29 da Constituição Argentina, reconheceu a inconstitucionalidade e a nulidade daquelas normas. Isso demonstra a possibilidade de que o controle de constitucionalidade pudesse funcionar em um modelo de força centrí�peta, em que as instâncias inferiores “inspirariam” as instâncias superiores.

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revisto tal decisão de primeiro grau; já a Cámara Nacional de Casación Penal reformara esta última decisão, tendo a causa chegado à CSJN. Esta, novamente, enfatizou que tanto o Direito Internacional Humanitário como o Direito Internacional dos Direitos humanos têm exigido dos atores da comunidade internacional a persecução, investigação e sanção dos responsáveis por graves violações de direitos humanos.38

As repercussões de tais julgamentos para a judicialização da justiça de transição foram enormes. Veja-se que os números da Procuradurí�a de Crí�menes Contra La Humanidad do Ministério Público Fiscal argentino indicam 554 condenações entre 2006 e 2014.39 4.2. Judicialização no Uruguai No Uruguai, as Leis 15.737 e 15.848 de 1986 (esta última conhecida como “Ley de La Caducidad de la Pretensión Punitiva do Estado”) buscaram estabelecer auto-anistias. Na data de 16 de abril de 1989, a maioria do povo uruguaio votou pela manutenção desta última lei; mas, em 19 de outubro de 2009, a Lei 15.848/1986 foi declarada inconstitucional pela Suprema Corte de Justiça no caso Sabalsagaray.40 Na sequência, em 25 de outubro de 2009, nova maioria manifestou-se pela não revogação da lei. Em 24 de fevereiro de 2011, contudo, a CteIDH condenou o Estado do Uruguai pelos desaparecimentos forçados de Marí�a Claudia Garcí�a Iruretagoyena de Gelman e de Marí�a Macarena Gelman Garcí�a, familiares do poeta Juan Gelman.41 38. 39.

40.

41.

120

MEYER. Ditadura e Responsabilização: Elementos para uma Justiça de Transição no Brasil, p. 93. ARGENTINA. Ministério Público Fiscal. Procuraduría General de la Nación. Procuraduría de Crímenes Contra La. “Informe sobre el estado de las causas por delitos de lesa humanidad en todo el país. Los números del 2014.” http://rlajt.com/public/arquivos/cabec7c8.pdf, access 26/2/2016. URUGUAI. Suprema Corte de Justicia. Sentencia nº 365. Relator: Dr. Jorge Omar Chediak González. Sabalsagaray Curutchet, Blanca Stela. Denuncia. Excepción de Inconstitucionalidad. Arts. 1, 3 y 4 de la Ley nº 15.848, ficha 97-397/2004. http://unisinos.br/blog/ppgdireito/files/2009/10/ Suprema-Corte-Uruguay-Caso-Sabalsagaray-19-10-2009.pdf, access 11/11/2011. Gargarella (GARGARELLA, Roberto. La Sala de Máquinas de la Constitución: dos siglos de Constitucionalismo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz Editores, 2014, p. 307) apresenta fortes críticas à decisão da CteIDH em Gelman, destacando: a) que a sentença ignoraria decisões democráticas do país; b) um simplismo na justificação penal; c) a ausência de reflexão sobre a própria legitimidade democrática da CteIDH. Não podemos deixar de registrar nossa completa discordância com todos os argumentos sustentados pelo constitucionalista argentino, não

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

Contudo, em 2013, a Suprema Corte de Justicia uruguaia declarou inconstitucionais dispositivos da referida Lei 18.831/2011, exatamente, os constantes dos arts. 2o e 3o, entendendo que a caracterização dos crimes da ditadura como crimes contra humanidade implicava em violação dos princí�pios da legalidade e da proibição de retroatividade de lei penal mais gravosa. O curioso é que a Suprema Corte invocou tais normas justamente no contexto dos sistemas regional e universal de direitos humanos. Invertendo a ordem argumentativa e adotando uma perspectiva positivista do referido sistema, ela optou por fazer prevalecer uma interpretação pouco preocupada com o pano de fundo dos crimes contra a humanidade. Pior, ela questiona frontalmente a autoridade da Corte Interamericana de Direitos Humanos para fazer imperar sua leitura da Convenção Americana de Direitos Humanos: Al establecer la doctrina del control de convencionalidad, la Corte IDH sugiere una razón. Argumenta que los tribunales nacionales deben seguir su jurisprudencia, porque ella es ‘intérprete última de la Convención Americana’. Sin embargo, este es un argumento poco afortunado, porque el hecho de que la Corte IDH sea la autoridad final en el sistema interamericano (siendo sus sentencias definitivas y no revisables: artí�culo 67

obstante reconhecendo a excelência de seu trabalho sobre o Constitucionalismo Latino-Americano. Suas críticas: a) ignoram o percurso da justiça de transição na América Latina e na CteIDH; b) estão baseadas em uma concepção restrita de democracia, normalmente apenas associada à regra da maioria; c) ignoram o que o Direito Penal Internacional estabelece quando se trata de crimes contra a humanidade; d) faz uma relação discutível entre um tipo específico de democracia e a legitimidade da atuação de cortes regionais e internacionais de direitos humanos, ignorando que elas podem contribuir com aspectos fundamentais de direitos humanos do Constitucionalismo transnacional e transicional.

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I STF e a jurisprudência de direitos humanos

Dando cumprimento à decisão da CteIDH, da Câmara dos Representantes e do Senado uruguaios, com a sanção do Presidente José Mujica, aprovaram a Lei nº 18.831 de 1º de novembro de 2011, definindo que fica restabelecida a pretensão punitiva estatal para os delitos de terrorismo de Estado praticados até 1º de março de 1985, abarcados pelo art. 1º da Lei nº 15.848/198691. Além disso, a lei estabeleceu que prazo algum de caráter processual ou prazos de decadência ou prescrição poderiam ser contados de 22 de dezembro de 1986 (data da vigência da Lei nº 15.848) até 1º de novembro de 2011 (data da vigência da Lei nº 18.831). Por fim, a própria lei cuidou de caracterizar tais crimes como de lesa humanidade nos termos do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

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CADH) no apoya la conclusión de que las autoridades locales estén obligadas a seguir su jurisprudencia al aplicar la CADH en los procesos internos. En verdad, este argumento solo dice que la Corte IDH tendrá la última palabra en relación con la interpretación de la CADH en los procesos interamericanos.42

A Suprema Corte de Justicia ainda alegou que seria necessária a instituição de uma lógica de precedentes no Sistema Interamericano de Direitos Humanos para obrigar as autoridades judiciais daquele paí�s. Ou seja, uma derrogação judicial clara da integração do Estado uruguaio ao sistema. Este pode ser o perigo da dualidade controle de constitucionalidade/controle de convencionalidade, que pode acabar por ocasionar uma supressão da própria força normativa do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Éla permitiria que os próprios juí�zes pudessem, como de fato o fizeram, invocar normas constitucionais não afetas à teoria dos crimes contra a humanidade para, em uma lógica de dever de controle de constitucionalidade, colocar de lado a normativa internacional dos direitos humanos. 4.3. Judicialização no Chile No caso do Chile, a “Ley de Amnistí�a”, Decreto-lei nº 2.191/1978, autoanistiou servidores de Estado que tivessem incorrido em delitos durante a vigência do Éstado de Sí�tio (11 de setembro de 1973 a 10 de março de 1978). O chamado “efeito Pinochet” parece ter contribuí�do, ainda que a longo prazo, para uma reinterpretação dessa lei. A Corte Suprema chilena manteve-se, inicialmente, fiel aos dispositivos da mesma, para só em setembro de 1998, julgando o caso que envolvia o sequestro de Pedro Poblete Córdoba,43 determinar a reabertura de inquérito trancado pela Justiça Militar com base no decreto-lei de anistia. Ela considerou que as Convenções de Genebra impediam que o Estado do Chile, no longo perí�odo de Éstado de Sí�tio, adotasse medidas que pudessem amparar crimes praticados contra pessoas determinadas ou garantissem impunidade. É� certo que o caminho seguido pela Corte

42. 43.

122

URUGUAI. Suprema Corte de Justicia. Sentencia 152/2013. http://www.poderjudicial.gub.uy, access 6/5/2015, p. 16. CHILE. Suprema Corte. S.C.S., de 09.09.1998, Rol nº 469-98, 1998.

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

É� certo que a Corte Suprema chilena formou posteriormente uma tortuosa jurisprudência a respeito da matéria prescricional. Recorrendo ao art. 103 do Código Penal chileno, a Corte Suprema passou a considerar uma “prescrição gradual” que não seria incompatí�vel com a noção de imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade. Note-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos não se restringiu a condenar o Estado chileno no caso Almocinad Arellano por crimes da ditadura. O mesmo se daria em 2013, com o julgamento do caso Garcí�a Lucero, em Leopoldo Garcí�a Lucero, outrora preso polí�tico e sobrevivente acusara o Estado de omitir-se em deveres de justiça e reparação. O Estado chileno foi condenado e a CteIDH foi clara em estabelecer que é uma obrigação estatal a investigação de ofí�cio de casos de tortura, sem necessidade de provocação da ví�tima.47 Mais recentemente, em 8 de outubro de 2015, o Estado chileno seria também condenado no caso Maldonado y Otros v. Chile, em que um grupo de oficiais “constitucionalistas” foi submetido pela ditadura a condenações perante o Conselho de Guerra. A CteIDH determinou que reparações fossem feitas e as decisões condenatórias anuladas.48

44. 45. 46.

47.

48.

CHILE. Suprema Corte. S.C.S., de 04.08.2005, Rol nº 457-05, 2005. CHILE. Suprema Corte. S.C.S., de 13.12.2006, Rol nº 559-04, 2004. CHILE, Suprema Corte. S.C.S., de 18.01.2007, Rol nº 2666-04, 2004. Para uma verificação de todos esses casos, cf. NEIRA, Karina Fernández, “Breve análysis de la jurisprudencia chilena, en relación a las graves violaciones a los derechos humanos cometidos durante la dictadura militar,” Estudos Constitucionales 8 (2010). CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, “Caso García Lucero y Otras v. Chile, Sentencia de 28 de agosto de 2013, http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/resumen_267_esp. pdf, access 26/2/2016. CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, “Caso Omar Humberto Maldonado Vargas y Otros v. Chile, Sentencia de 2 de septiembre de 2015”, http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_300_esp.pdf, access 26/2/2015.

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I STF e a jurisprudência de direitos humanos

Suprema foi cheio de contradições: ela declarará a sujeição à prescrição dos crimes contra a humanidade de desaparecimento forçado praticados contra Ricardo Rioseco Montoya e Luis Cotal A� lvarez.44 Apenas em dezembro de 2006, ela declararia como crimes contra a humanidade execuções sumárias perpetradas por agentes de Estado,45 fundando sua decisão no julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos – caso Almocinad Arellano. Essa mesma jurisprudência se manteve firme no caso José Matí�as N� anco.46

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O Informe de Direitos Humanos do Centro de Direitos Humanos da Universidade Diego Portales de 2013 indica que, naquele ano, haviam cerca de 1.350 causas de direitos humanos em trâmite ou sob investigação, envolvendo 800 antigos agentes da repressão. A Corte Suprema chilena julgaria, naquele ano, 153 causas criminais, chegando a 140 condenações. Para além do efeito direto da judicialização, tais ações teriam impacto na justiça de transição como um todo: Se sumó así� la rendición de cuentas en tribunales a un complejo ensamblaje de polí�ticas y prácticas estatales y sociales sobre verdad, justicia, reparaciones y memoria, que ha conformado desde 1990 un trasfondo permanente, si bien muchas veces invisibilizado, del tejido social y polí�tico nacional.49

Nota-se, pois, que o Chile se situa em um momento de certo avanço da judicialização da justiça de transição. 4.4. Judicialização no Brasil No que respeita ao fator responsabilização criminal individual da justiça de transição brasileira, inúmeras são as recentes mudanças. A judicialização parece ter atravessado um boom nos últimos anos, devido a fatores, pode-se arriscar dizer, como a maior visibilidade da temática, a institucionalização ainda maior da discussão (com as inúmeras comissões da verdade regionais e setoriais, e com a própria CNV – Comissão Nacional da Verdade) e uma incansável luta de movimentos sociais. Assim, se a ADPF 153 apresentou uma leitura completamente equivocada da Constituição de 1988 e sua compreensão da anistia, o Caso Gomes Lund parece ter fomentado novos campos de batalha diante do Poder Judiciário. Adotando uma tese de diferenciação dos campos de atuação da CteIDH e do STF na temática, o Ministério Público Federal entendeu necessário iniciar uma batalha institucional pelas condenações por crimes contra a humanidade. Assim, cerca de 290 investigações criminais foram instauradas e, até a data de fechamento desse texto, 17 ações penais foram propostas,

49.

124

COLLINS, Cath et al. Capitulo “Verdad, Justicia y Memoria por violaciones de Derechos Humanos en dictadura. A 40 años del Golpe Militar”, Informe Anual de DDHH, UDP, (2013).

Judicialização da Justiça de Transição: Impactos a partir e sobre o Constitucionalismo Contemporâneo

Ao lado das ações criminais, ações declaratórias cí�veis ajuizadas visando ao esclarecimento de fatos e determinação de responsabilidade civil envolveram casos de desaparecimento forçado no Araguaia, a morte sob tortura de Vladimir Herzog e a tortura de membros da famí�lia Teles (nesse último caso, com decisão exitosa inclusive no Superior Tribunal de Justiça). Nesse campo, portanto, o sucesso parece maior. Ações judiciais de reparação foram propostas em casos como o do resistente Luiz Eduardo da Rocha Merlino; tais ações remontam a, pelo menos, a Constituição de 1988, possibilitando, inclusive, a formação de jurisprudência sobre a imprescritibilidade (apenas civil, esclareça-se) da pretensão em tais casos.51 50. 51.

Para um acompanhamento dessas ações penais, com acesso a diversos de seus documentos, cf. o website do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG (http://ctj.ufmg.br). Cf., por exemplo: “CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. DANOS MORAIS. DEMISSÃO EM DECORRÊNCIA DE PERSEGUIÇÃO POLÍTICA. DITADURA MILITAR. ART. 515, § 1º, DO CPC. INAPLICABILIDADE AO CASO EM ESPÉCIE. RETORNO DOS AUTOS À ORIGEM. 1. A autora detém a condição de anistiada política, nos termos da Portaria nº 2.423, de 21 de dezembro de 2006, expedida pelo Ministério de Estado da Justiça, e pleiteia a indenização por danos morais, alegando ter sofrido demissão de seu trabalho em decorrência de perseguição política, pela participação em movimento grevista deflagrado em julho/1983 pelo Sindicato dos Petroleiros. 2. O art. 1º, inciso V, da Lei nº 10.559/02, ao estabelecer o regime do anistiado político, expressamente contempla a reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em serviço público e em atividades essenciais de interesse da segurança nacional por motivo político. (grifado) 3. Com base na documentação acostada nos autos (em especial o documento de fl. 15) e dizeres da legislação de regência, não há dúvida de que a demandante, ora apelante, detém a condição jurídica de anistiada política. 4. In casu, merece reforma a decisão a quo, haja vista a inocorrência de prescrição, pois trata-se de pedido de indenização por danos morais decorrente de perseguição política sofrida durante o regime de ditadura militar, lembrando que a jurisprudência dos Tribunais Superiores já se pacificou no sentido da imprescritibilidade dessas ações. 5. Afastada a prescrição decretada pelo r. Juízo a quo, o Tribunal, em tese, pode pronunciar-se sobre o mérito da pretensão se a causa versar sobre

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I STF e a jurisprudência de direitos humanos

estando elas em diferentes estágios, mas todas encontrando o obstáculo de juí�zes federais pouco acostumados com o Direito Internacional dos Direitos Humanos e mais ciosos de apenas cumprir a decisão do STF na ADPF 153.50 Os procedimentos envolviam cerca de 340 ví�timas; mais 102 ví�timas não contabilizadas antes do relatório da CNV proporcionaram mais investigações. A posição do Ministério Público Federal viria ainda ser reforçada com o parecer do Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, apresentado na ADPF 320, proposta pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) visando ao cumprimento no Brasil do que decidido no Caso Gomes Lund pela CteIDH – mais um forte sinal de um backlash, ao mesmo tempo, social e institucional.

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Ações de retificação de óbito foram também propostas, com sucesso, celebrando a Comissão Estadual da Verdade de São Paulo Rubens Paiva acordo com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo para a propositura de 150 ações desse tipo. Além disso, ações civis públicas visando o reconhecimento de responsabilidade administrativa e civil de agentes públicos foram propostas na Seção Judiciária de São Paulo.52 5. JUDICIALIZAÇÃO E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO: EM PROL DE UM CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO Uma teoria do constitucionalismo democrático parte do pressuposto de que uma Constituição estabelece regras do jogo democrático por vezes de modo imediato; em outras situações, cláusulas enaltecem o papel interpretativo de dar vazão a disputas polí�ticas e, acrescentarí�amos, jurí�dicas.53 Referenciando Robert Cover, os autores lembram que tais dispositivos instituem um nomos, um espaços de atuação da identidade constitucional que, plural por excelência, é sempre um espaço de disputa.54 É� nele que se reproduz um processo de jurisgenesis em que textos podem ser compartilhados, mas narrativas dos mesmos podem entrar em disputa sobre qual seja a efetivamente dotada de autoridade. É� próprio do direito, e do constitucionalismo, que “conceitos contestados” formem um amplo leque de possibilidades – a questão é saber qual concepção apresenta um conceito em sua melhor luz.55

52. 53. 54. 55.

126

matéria exclusivamente de direito e estiver em condições de julgamento imediato, consoante dispõe o art. 515, § 1º, do CPC. 6. Entretanto, não é a hipótese dos presentes autos, pois não restou estabilizada a relação processual e tampouco realizada a instrução do feito. Portanto, de rigor a reforma da sentença que reconheceu a ocorrência de prescrição, com o retorno dos autos à Vara de origem para o julgamento da pretensão indenizatória. 7. Apelo parcialmente provido apenas para reconhecer a inocorrência da prescrição, devendo o feito baixar ao r. Juízo de origem para o seu regular processamento.(AC 00055265320144036105, JUIZ CONVOCADO PAULO SARNO, TRF3 – SEXTA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:02/02/2016 ..FONTE_REPUBLICACAO)”. As ações civis públicas estão relacionadas nesse link: http://www.prr3.mpf.mp.br/ditadura-militar/89-conteudo-estatico/ditadura/145-providias-cis, acesso 27-2-2016. POST, Robert C. SIEGEL R. B., “Democratic Constitutionalism,” in BALKIN, Jack M. SIEGEL, Reva B (eds). The Constitution in 2020. New York: Oxford University Press, 2009, p. 26. COVER, Robert M, “Foreword: Nomos and narrative,” Harv. L. Rev 97 (1983). Para a noção de “conceitos contestados”, cf. GALLIE, W. B., “Essentially Contested Concepts,” Proceedings of the Aristotelian Society 56 (1955). Para uma visão do direito em sua melhor luz, DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge: Harvard University Press, 1985.

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Papel proeminente na construção do sentido das normas constitucionais terão os movimentos sociais.58 Reva Siegel toma como exemplo o que representou a derrota, na década de 1970, da proposta de emenda constitucional de iguais direitos para homens e mulheres (Equal Rights Amendment) aprovada em 1972 no Congresso Nacional, mas que não obteve a ratificação dos órgãos legislativos estaduais. O perí�odo de ratificação teria sido capaz de difundir um espaço de debate sobre direitos das mulheres que seria fundamental para que o Poder Judiciário institucionalizasse e reconhecesse as pretensões das lutas feministas. O resultado foi um corpo normativo protetivo chamado de de facto ERA. 56.

57.

58.

No final do século XIX e início do século XX, a Suprema Corte estadunidense adotou uma postura conservadora de proteção de um laissez-faire capitalism. É o que se pode depreender de casos seminais como Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905), em que a Suprema Corte declarou inconstitucional lei do Estado de Nova York que estabelecia jornadas de trabalho de padeiros, estabelecendo uma forte concepção da liberdade de contratar baseada na noção substantiva de devido processo legal. Porém, a partir de West Coast Hotel Company v. Parrish, 300 U.S. 379 (1937), a Corte reconheceu a constitucionalidade de legislação estadual que fixara um salário mínimo para mulheres, assumindo uma posição de maior deferência para com a regulação estatal da economia. Cf. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta de intérpretes da Constituição – contribuição para a compreensão pluralista e “procedimental da Constituição, trans. MENDES, Gilmar Ferreira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997. “Em suma, como salientamos, para o Constitucionalismo Democrático de Post e Siegel, os movimentos sociais constituem uma das mais importantes fontes de mudança de sentidos constitucionais, de forma a legitimar certas práticas sociais e a deslegitimar outras que, muitas vezes, representam compreensões assimétricas de mundo.” (BUNCHAFT, Maria Eugênia, “Constitucionalismo democrático versus minimalismo judicial,” Direito, Estado e Sociedade 38 (2011), p. 168).

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A sugestão de Siegel e Post é a de que a aplicação cogente da Constituição ainda assim pode permitir um espaço de fidelidade. O fundamento estaria no fato de que o Constitucionalismo estadunidense seria aberto à persuasão mútua entre os cidadãos e em relação à Suprema Corte. A possibilidade de futuras alterações nas percepções das cortes torna o processo de definição do nomos passí�vel de cumprimento como direito que é, ainda que se possa discordar de seu conteúdo; no entanto, interpretações desarrazoadas, como as decisões da Suprema Corte sobre o New Deal, podem ser objeto de confronto direto.56 Isto nos remete a uma ideia mais aberta de uma sociedade de intérpretes de uma Constituição que, não obstante, é cogente.57

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Esse árduo campo de trabalho daria espaço para o que Siegel chama de cultura constitucional: um conjunto de compreensões sobre a prática argumentativa que guia as interações entre cidadãos e autoridades a respeito do significado da Constituição.59 Partindo de uma concepção de democracia muito mais ampla do que apenas a regra da maioria, é possí�vel verificar o engajamento e a discussão de cidadãos a respeito de decisões de outras esferas do Estado, para além da legiferante. Além de atrair a atenção dos cidadãos para o processo de judicialização da Constituição, essas disputas são também disputas sobre um passado institucional de forjará o futuro constitucional. A chamada cultura constitucional estabelece duas condições para permitir que movimentos sociais participem da disputa sobre o significado da Constituição: a) a condição do consentimento requer que os participantes da disputa apelem para a própria Constituição ao tentar fazer prevalecer suas perspectivas por meio da persuasão; e, b) a condição do valor público, que requer que os defensores apelem para uma linguagem pré-estabelecida para defender novos postulados a respeito do significado da Constituição, ou seja, é preciso estabelecer que princí�pios compartilhados já abrigavam a interpretação defendida.60 É é dentro desse contexto interpretativo democrático que a crí�tica à leitura da Constituição feita por uma corte no seio da jurisdição constitucional pode contribuir para a reconstrução interpretativa. Ao invés de comprometer sua autoridade, ela destaca os problemas de uma decisão judicial e força o Judiciário a se reinventar. É� aqui que uma decisão polêmica, embora nunca necessária, pode se gerar o efeito de um backlash, criando novas condições que empurram movimentos sociais contra as instituições, obrigando-as a guiar seu direcionamento em prol de interpretações mais democráticas.61

59.

60. 61.

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SIEGEL, Reva B, “Constitutional Culture, Social Movement Conflict and Constitutional Change: The Case of the De Facto Era. 2005-06 Brennan Center Symposium Lecture,” California Law Review (2006), p. 1.325. SIEGEL, “Constitutional Culture, Social Movement Conflict and Constitutional Change: The Case of the De Facto Era. 2005-06 Brennan Center Symposium Lecture”, p. 1.152 e ss. “Cidadão que invocam a Constituição para criticar as cortes associam a Constituição com as compreensões que eles entendem normativamente cogentes e acreditam ser vinculantes para outros. Quando cidadãos falam sobre os compromissos que detêm mais apaixonadamente na linguagem de uma tradição constitucional compartilhada, eles a fortalecem. Desse modo, mesmo a resistência à interpretação judicial pode fomentar a legitimidade democrática da

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Diante do movimento de judicialização da justiça de transição na América Latina, observa-se que o caso argentino inicia-se com a responsabilização das juntas, mas encontra reações que controlam o movimento transicional para um regresso em termos de direitos humanos – vide as leis de obediência devida e ponto final, assim como os decretos de anistia do Governo Menem. É� a pressão de movimentos sociais, como as Abuelas de Plaza de Mayo, bem como a consolidação dos juicios pela verdad, entre outros, que colocarão o Poder Judiciário, e sua cúpula, em uma situação de necessária reverberação de pretensões mais progressistas. Um impulso fundamental que seria dado no Caso Símon por meio, justamente, de uma leitura adequada do art. 75, inc. 22, da Constituição. Já na justiça de transição uruguaia, desenhou-se a sequência: a) plebiscito (1989); b) declaração de inconstitucionalidade (2009); c) plebiscito (2009); d) declaração de “inconvencionalidade” (2011); e) revogação pelo Legislativo da auto-anistia (2011); e) declaração de inconstitucionalidade do provimento legislativo revogador (2013).63 Isto teria tornado o

62. 63.

Constituição”. Tradução livre de: “Citizens who invoke the Constitution to criticize courts associate the Constitution with understandings they find normatively compelling and believe to be binding on others. When citizens speak about their most passionately held commitments in the language of a shared constitutional tradition, they invigorate that tradition. In this way, even resistance to judicial interpretation can enhance the Constitution’s democratic legitimacy.” (POST, Robert. SIEGEL, Reva, “Roe rage: democratic constitutionalism and backlash,” Harv. CR-CLL Rev. 42 (2007), p. 375) Para essa discussão, cf. MEYER, Emilio Peluso Neder, “Crimes contra a humanidade, justiça de transição e Estado de Direito: revisitando a ditadura brasileira,” Brasiliana 4, no. 1 (2015). Apenas para fins didáticos, assumimos a diferença entre “inconstitucionalidade” e “inconvencionalidade”. De fato, a oposição entre controle de constitucionalidade e controle de

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Ora, ainda que os autores tratem especificamente da tradição constitucional estadunidense, esse não pode ser um privilégio daquela cultura. Não se trata de importar conceitos colonizadores para nossa tradição; pelo contrário, o caso é de perceber nosso constitucionalismo como enredado criticamente com outras tradições, rejeitando-se o que há de opressor e abrigando o que há de emancipatório. Em um momento em que se fala amplamente de um constitucionalismo transnacional, é o caso de se pensar em um movimento que permita perceber as vantagens da incorporação do constitucionalismo estrangeiro e o que pode haver de cogente em normas supranacionais – principalmente as referentes ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.62

Emilio Peluso Neder Meyer

debate ainda mais acirrado. Mas a questão é que algumas premissas não restaram assentadas; faltaria, a nosso ver, efetivo cumprimento da condição do valor público mencionada por Siegel. É� que o constitucionalismo não comporta que questões de direitos fundamentais, como a anistia para crimes contra a humanidade, sejam passí�veis de decisões da maioria. Uma condição do próprio debate definidor da cultura constitucional seria colocado de lado. Espera-se, pois, que novos caminhos sejam percorridos pela transição uruguaia no que toca à responsabilização. Para justiça de transição chilena, verificamos que há um reconhecimento da imperiosidade de se julgar crimes contra a humanidade, ainda que crí�ticas possam ser feitas a questões como cumprimento da pena e aplicação da prescrição própria do sistema jurí�dico-penal chileno. Já para a justiça de transição brasileira, o tortuoso caminho estabelecido nesse processo de longa duração parece demonstrar que o conceito de anistia permanece em franca disputa; entretanto, as mudanças institucionais mais recentes parecem demonstrar a incorporação de um backlash contra a decisão do STF na ADPF 153, como destacado por Kozicki. Para além de alguns fatores ligados à própria sociedade civil, nota-se que instituições como a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, a Comissão Nacional da Verdade e o Ministério Público Federal parecem incorporar ao constitucionalismo brasileiro a linguagem própria para o tratamento dos crimes praticados por agentes da ditadura: crimes contra a humanidade. Esse tipo de reconhecimento normativo estabelece, ao mesmo tempo, uma narrativa para o constitucionalismo brasileiro que é tanto um tratamento “novo” quanto o reconhecimento de normas de jus cogens há muito consolidadas na normativa internacional. 6. CONCLUSÕES Dentre os três poderes de Estado, o Judiciário ganhou um foco impressionante no Brasil no pós-1988. Reivindicações corporativistas têm ganhado cada vez mais o destaque nos veí�culos de mí�dia, ao lado de modos de atuação e decisões, em uma constelação de casos, questionáveis. Ainda assim, o fenômeno da judicialização das relações sociais está convencionalidade pode acabar levando a maiores prejuízos para o Direito Internacional dos Direitos Humanos que, ao que parece, detêm maior precedência.

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posto – dentro dele, a justiça de transição não deixa de ser abarcada. São inúmeras as ações que tanto reivindicam como colocam em discussão medidas transicionais.

A tônica da legitimidade dessa atuação está no seu engajamento com os movimentos sociais. Ela aparece na forma como eles reagem a decisões equivocadas de um Judiciário, no mais das vezes, conservador (senão reacionário), que ocasiona situações de backlash contra provimentos judiciais com este perfil. Na justiça de transição brasileira, não faltaram reações e elas passaram a ganhar, recentemente, corpo institucional; as situações divergem nos casos argentino, uruguaio e chileno. Toda essa gama de respostas sociais e institucionais continua a demonstrar que o Constitucionalismo precisa dar conta de sua veia democrática. No caso do Constitucionalismo latino-americano, a premência por tal ligação é ainda maior, diante do perfil autoritário gestado nas ditaduras e ainda não reformado em boa parte dos casos. 7. REFERÊNCIAS ARGÉNTINA. Ministério Público Fiscal. Procuradurí�a General de la Nación. Procuradurí�a de Crí�menes Contra La. “Informe sobre el estado de las causas por delitos de lesa humanidad en todo el paí�s. Los números del 2014.” http://rlajt. com/public/arquivos/cabec7c8.pdf, access 26/2/2016 ARGENTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. A. 869. XXXVII. Arancibia Clavel, Énrique Lautaro s/ homicidio y associación ilí�cita. Causa nº 259. Fallos: 327:3312. Buenos Aires, 8 de março de 2005. http://www.csjn.gov.ar, access 12/07/2012. ARGÉNTINA. Corte Suprema de Justicia de la Nación. S. 1767. XXXVIII. Sí�mon, Julio Hector y otros s/ privación ilegí�tima de la libertad, etc. Causa nº 17.768.

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O número de ações judiciais tem crescido vertiginosamente. É� preciso considerar, é claro, que a própria justiça de transição de longa duração brasileira expandiu-se nos últimos anos, principalmente a partir de 2007. Na perspectiva comparada latino-americana, as situações, apesar de destoarem na forma e na substância das medidas transicionais, parecem demonstrar que a judicialização é também crescente. Talvez o que se destaque é que a Argentina ganha precedência nesse processo, seguida do Chile, do Uruguai e, finalmente, do Brasil.

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Emilio Peluso Neder Meyer

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