Judiciário e Ministério Público: acima de tudo, uma questão constitucional

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Judiciário e Ministério Público: acima de tudo, uma questão constitucional - JOTA

09/03/16 17:06

Judiciário e Ministério Público: acima de tudo, uma questão constitucional Publicado 5 horas atrás

Por Emilio Peluso Neder Meyer

Professor Adjunto de Direito Constitucional da UFMG, mestre doutor em Direito pela UFMG e coordenador do Centro de Estudos sobre Justiça de Transição da UFMG

Por Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

Mestre e Doutor em Direito (UFMG), pós-doutorado em Teoria do Direito (Roma TRE), bolsista de Produtividade do CNPq (1D)

Por Thomas Bustamante

Mestre Doutor em Direito (UERJ e PUC/RJ), professor Adjunto de Filosofia do Direito da UFMG, bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPQ (2)

N

inguém está acima das leis e da Constituição. Nem mesmo o Poder Judiciário. Porém, em poucas semanas, entidades de classe, juízes e tribunais brasileiros deram mostras

de como podem rasgar a Constituição da República de 1988 e dar os contornos que pretendem à política brasileira. Por mais que se saiba da importância e necessidade premente de investigar, processar e punir responsáveis por crimes de corrupção, um problema grave, mas não um privilégio tupiniquim, parece que, novamente na história brasileira, essa espantalho pode servir para a violação de direitos e tentativas de quebra institucional. A corrupção não vem de ontem e não é só nossa, nem muito menos de um só governo. Até pouco tempo atrás, na Europa, a legislação tributária de países como Alemanha e Suíça, entre vários outros, chegava ao cúmulo de permitir aos corruptores deduzir o valor pago de propina no estrangeiro de seu imposto de renda, o que gerou recentemente uma recomendação da OCDE.[1] No Brasil, porém, a toada geral é de uma verdadeira “operação limpeza”, bem aos moldes da que serviu de argumento para o golpe de 1964 e sua radicalização maior, o AI5/1968 – uma operação que pressupunha ser possível e objetivava acabar com comunismo, subversão e corrupção.[2] E não se diga que a conexão é descabida: o Poder Judiciário brasileiro, na transição da ditadura de 1964-1985 para o regime democrático de 1988, permaneceu intocado, tal qual seu correlato alemão do pós-guerra. Nenhuma reforma institucional foi levada adiante com efetividade. Basta notar que a Comissão Nacional da Verdade, em seu relatório final, dedica todo um capítulo para demonstrar de que, se houve decisões de reafirmação de direitos entre 1964 e 1969, as mudanças perpetradas pelo regime levariam a que crimes contra a humanidade fossem varridos para debaixo do tapete a partir de então.[3] Mesmo com todo o

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rol de direitos fundamentais trazido pela Constituição de 1988, nenhuma mudança efetiva se deu na “sala de máquinas” de modo a criar uma cultura e um sistema de vinculação que pudesse, de fato, pautar a atuação dos magistrados no pós-1988.[4] Vê-se isso agora a olhos nus. A operação lava jato permitiu que o sistema cautelar do processo penal brasileiro fosse instrumentalizado em prol de uma busca desenfreada por acordos de colaboração premiada – prisão temporária ou preventiva até a delação, com a concordância de tribunais, de segunda ou superior instâncias. A resistência e crítica de advogados foi tratada pela Associação Nacional dos Procuradores da República como “direito de espernear”.[5] Por mais que benefícios tenham sido trazidos, com ressarcimento de altíssimos valores ao erário, ainda se mantêm questionável a extensão do impacto sobre o sistema jurídico de várias decisões judiciais. Não seria de outro modo que a chamada “condução coercitiva” do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva traria, sob amplos holofotes, mais discussão e questionamentos. Como assinalaram imediatamente os ex-integrantes do governo FHC José Gregori e Walter Maierovitch,[6] o ministro do STF Marco Aurélio de Mello,[7] o advogado e constitucionalista Lenio Luiz Streck,[8] a medida não encontra respaldo na ordem jurídica e constitucional. Os arts. 218 e 260 do Código de Processo Penal mostram-se claramente inaplicáveis à espécie, pois têm como destinatários testemunhas e acusados – situações nas quais não se encontra o investigado, que, aliás, nem fora previamente intimado a depor. É claro que o “clamor público”, curiosamente tantas vezes criticado pelos tribunais superiores, serviu de base para essa inconstitucional medida de espetacularização do processo penal. E não se diga que a condução coercitiva estaria assentada em razões de segurança.[9] Diante de um aparato de 200 policiais federais, qual outra segurança a medida poderia prover? Mesma crítica deve ser direcionada para o argumento de que a condução coercitiva não implica em juízo antecipatório de culpa. Como não? Diante de uma mídia dominada pela mesma necessidade de uma “operação limpeza”, há algum modo de se evitar tal julgamento precipitado? Pior: como se tolerar que uma autoridade judicial se manifeste reiterada e ostensivamente sobre dados, investigados, acusados, denunciados, testemunhas, entre outros, todas partes do processo judicial que está julgando?[10] Viola-se o art. 36, inc. III, da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, mas ninguém se indigna. Some-se a essa enxurrada de violações da ordem jurídica as decisões recentes tomadas pelo Supremo Tribunal Federal. No dia 17 de fevereiro último, no julgamento do HC 126.292, o STF passou por cima do texto constitucional estabelecido no art. 5o, inc. LVII, para entender possível a execução provisória da pena privativa de liberdade definida em decisão de tribunais, violando não só a ordem jurídica interna, como a Convenção Americana de Direitos Humanos.[11] Além dela, pode-se ainda mencionar o acórdão de 24 de fevereiro de 2016 em que o STF entendeu ser constitucional a possibilidade dos órgãos de arrecadação tributária quebrarem o sigilo fiscal de contribuintes sem autorização judicial.[12] Desde a Constituição de 1988, não obstante alguns avanços, o Poder Judiciário brasileiro tem dado munição sem fim para críticas da academia e de outros atores sociais. Em meio a uma crise econômica de proporções imensas, as contribuições desse poder e do próprio Ministério Público se restringem ao aumento desenfreado de novas modalidade de auxílios indenizatórios e a reivindicações corporativistas, ainda que isto custe a extrapolação do teto constitucionalmente estabelecido. E quando críticas são apontadas, entidades de classe se organizam para se opor com restrições às liberdades de expressão e de cátedra, como recentemente o fez a Anamatra – Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho.[13] Recente reportagem de O Estado de S. Paulo apontou que o cumprimento do teto constitucional economizaria R$ 10 bilhões por ano, justamente o que pretende o governo federal arrecadar com a recriação da CPMF. O texto ainda indica que mais de 50% dos procuradores e subprocuradores da República recebem acima do teto constitucional.[14] Ora, quem está acima da lei e da Constituição? Nos debates sobre o advento da Lei Fundamental de Bonn de 1949, uma das instituições que menos despertava confiança para a garantia de direitos e o exercício de uma função contramajoritária seria o Judiciário. Juristas tiveram um papel fulcral nas injustiças cometidas pelo regime nazista, tanto da perspectiva judicial, acadêmica como profissional. Pensadores como Carl Schmitt e Karl Larenz contribuiriam para que mudanças na ordem jurídica fossem feitas sem alterações legislativas.[15] É conhecida também a desconfiança dos revolucionários franceses em relação a juízes que cooperaram diretamente com a manutenção do regime de privilégios do ancien regime. Poucos se lembram, contudo, de como magistrados de dez das treze colônias apoiaram George III e a metrópole inglesa no período revolucionário estadunidense.[16]

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Ainda assim, instituições judiciárias se fortaleceram em todo o mundo, principalmente por conta do advento do judicial review e sua ampla extensão no período do pós Segunda Guerra. Isto não significa, contudo, que o exercício desta função possa estar sujeito ao alvedrio e à discricionariedade de atores que agem muito mais como membros de castas intocáveis do que como agentes públicos – uma verdadeira juristocracia.[17] Lembremos com Ronald Dworkin que juízes são dotados de responsabilidade política perante uma história que é institucional, não individual.[18] Para além do quadro de golpismo e instabilidade institucional proporcionado pelo pedido de impeachment,[19] o que se assiste hoje no Brasil é uma clara ação política de alguns juízes e membros do Ministério Público que pretende, inclusive, fazer sucumbir a própria ordem jurídico-política. É preciso que os membros da comunidade jurídica se organizem e resistam. O bacharelismo já deu talvez alguns dos piores contributos para o autoritarismo no Brasil, [20] com a participação de personagens como Francisco Campos e Gama e Silva em ocasiões de franca arbitrariedade. Por outro lado, personagens como Edgar da Mata Machado se apresentaram como intransigentes defensores de uma democracia social e política. A questão, então, para os juristas, é: qual tradição seguir, a autoritária ou a democrático-social? A democrática, claro. É o momento de se assumir uma defesa irrestrita, senão radical, da ordem jurídico-constitucional de 1988. _______________________________________ [1]Cf.: OECD Recommendation on the Tax Deductibility of Bribes to Foreign Public Officials, http://www.oecd.org/tax/crime/oecdrecommendationonthetaxdeductibilityofbribestoforeignpublicofficials.htm. Sobre a Alemanha, cf.: http://www.bloomberg.com/bw/stories/1995-08-06/germany-wherebribery-is-tax-deductible-intl-edition, acesso 7/3/2016. Sobre a Suíça, cf: http://www.reuters.com/article/us-swiss-bribes-deductions-idUSKBN0U124820151218, acesso 7/3/2016. [2] FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História, vol. 24, nº 47, 2004, p. 34. [3] “Dessa forma, não há dúvidas de que as notícias das graves violações de direitos humanos praticadas pela ditadura militar contra perseguidos políticos chegaram ao conhecimento do STF. Em alguns dos acórdãos acima mencionados, a prática de tortura por agentes do Estado foi expressamente admitida por ministros no contexto dos debates a respeito das provas admissíveis para a condenação de pessoas pela prática de crimes contra a segurança nacional, sem que se determinasse que fossem investigadas as denúncias de tortura” (BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório final. Volume I, tomo II. Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2014, p. 947). [4] Para uma visao geral da questão na América Latina, cf. GARGARELLA, Roberto. La Sala de Máquinas de la Constitución: Dos Siglos de Constitucionalismo en América Latina (1810-2010). Buenos Aires: Katz Editores, 2014. [5] CONJUR. Carta de advogados acusa “lava jato” de desrespeitar garantias fundamentais. http://www.conjur.com.br/2016-jan-15/advogados-acusam-lava-jato-desrespeitar-garantiasfundamentais, acesso 5/3/2016. [6] SCHREIBER, Mariana. Ministro da Justiça de FHC vê ‘exagero’ em ação da PF contra Lula. http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160303_gregori_lula_pf_ms, acesso 5/3/2016. [7] SOUZA, André. Ministro do STF critica autorização para condução coercitiva de Lula, http://oglobo.globo.com/brasil/ministro-do-stf-critica-autorizacao-para-conducao-coercitivade-lula-18808285#ixzz422afVNmn, acesso 5/3/2016. [8] STRECK, Lenio Luiz. Condução coercitiva de ex-presidente Lula foi ilegal e inconstitucional, http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/streck-conducao-coercitiva-lula-foi-ilegalinconstitucional, acesso 5/2/2016; YAROCHEVSKY, Leonardo. O Estado penal não tem limites, http://emporiododireito.com.br/tag/leonardo-isaac-yarochewsky/, acesso 7/7/2016. [9] BRANDT, Ricardo. MATAIS, Andreza. Moro avaliou que coercitiva de Lula reduziria risco de tumultos, http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/moro-avaliou-que-coercitiva-delula-reduziria-risco-de-tumultos/, acesso 5/3/2016. [10] CARVALHO, Cleide. Moro defende condução coercitiva e diz ‘que não significa antecipação de culpa’, http://oglobo.globo.com/brasil/moro-defende-conducao-coercitiva-diz-que-nao-significaantecipacao-de-culpa-18812929#ixzz4255Uakkv, acesso 5/32016. [11] A decisão gerou questionamentos de todos os lados da comunidade jurídica: MEYER, Emilio Peluso Neder. Presunção de inocência até a condenação em segunda instância? http://jota.uol.com.br/judiciario-e-ministerio-publico-acima-de-tudo-uma-questao-constitucional

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http://jota.uol.com.br/presuncao-de-inocencia-ate-a-condenacao-em-segunda-instancia, acesso 5/3/2016; CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade et al. Presunção de Inocência: uma contribuição crítica à controvérsia em torno do julgamento do Habeas Corpus n.º 126.292 pelo Supremo Tribunal Federal, http://emporiododireito.com.br/presuncao-de-inocencia-umacontribuicao-critica_/, acesso 5/3/2016; SALDANHA, Jânia. O dever do STF de controlar a convencionalidade, http://justificando.com/2016/02/29/o-dever-do-stf-de-controlar-aconvencionalidade/, acesso 5/3/2016; BOTTINO, Thiago. Os problemas da decisão do STF sobre a execução provisória da pena. Disponível em http://jota.uol.com.br/os-problemas-da-decisao-dostf-sobre-execucao-provisoria-da-pena. Acesso em 18 fev. 2016; entre outros. [12] CONJUR. Supremo libera quebra de sigilo bancário pelo Fisco sem autorização judicial, http://www.conjur.com.br/2016-fev-24/lei-quebra-sigilo-autorizacao-constitucional-stf, acesso 5/2/2016. [13] Para o episódio, cf. BUSTAMANTE, Thomas. O Corporativismo nas Prerrogativas do Poder Judiciário e a Anamatra: de Ronald Dworkin a Ray Charles e Miles Davis, http://jota.uol.com.br/o-corporativismo-nas-prerrogativas-do-poder-judiciario-e-a-anamatrade-ronald-dworkin-a-ray-charles-e-miles-davis, acesso 6/2/2016. [14] GAMARSKI, Rachel. ARAÚJO, Carla. Corte de salaries economizaria 10 bilhões, http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,corte-de-salarios-economizaria-r-10-bilhoes, acesso 6/2/2016. [15] HAILBRONNER, Michaela. “Rethinking the rise of the German Constitutional Court: From anti-Nazism to value formalism.” International Journal of Constitutional Law 12, no. 3 (2014): p. 629. [16] AMAR, Akhil Reed. America’s Constitution: a biography. New York: Random House, 2010, p. 202.

[17] HIRSCHL, Ran. Towards Juristocracy: The Origins and Consequences of New Constitutionalism. Cambridge, Mass.: 2004. [18] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. London, New York: 1997. [19] Para uma associação entre impeachment e instabilidade política na América Latina, cf. PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Presidential impeachment and the new political instability in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. Para uma discussão sobre a legitimidade do pedido de impeachment e sua tramitação, cf. BAHIA, Alexandre. CATTONI, Marcelo. SILVA, Diogo Bacha e. O Impeachment e o Supremo, http://emporiododireito.com.br/o-impeachment-eo-supremo-por-alexandre-gustavo-melo-franco-bahia-diogo-bacha-e-silva-e-marcelo-andradecattoni-de-oliveira/, acesso 6/3/2016; e BAHIA, Alexandre. CATTONI, Marcelo. SILVA, Diogo Bacha e. Impeachment: apontamentos à decisão do STF na ADPF 378, http://emporiododireito.com.br/impeachment-apontamentos-a-decisao-do-stf-na-adpf-n-378por-alexandre-gustavo-melo-franco-bahia-diogo-bacha-e-silva-e-marcelo-andrade-cattoni-deoliveira/, acesso 6/3/2016. [20] Para uma origem da expressão, cf. SCHWARTZ, Lilia. STARLING, Heloisa. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 281.

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