JUÍZES PARA O MERCADO? OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO MUNDIAL PARA O JUDICIÁRIO EM UM MUNDO GLOBALIZADO

June 4, 2017 | Autor: Ana Candeas | Categoria: Judicial Reform, Sociologie Du Droit, Análise Jurídica da Política Econômica
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PRODUÇÃO ACADÊMICA JUÍZES PARA O MERCADO? OS VALORES RECOMENDADOS PELO BANCO MUNDIAL PARA O JUDICIÁRIO EM UM MUNDO GLOBALIZADO Ana Paula Lucena Silva Candeas * Dissertação de mestrado apresentada junto ao Departamento de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), em junho de 2003. Orientadora: Maria das Graças Rua.

Em sua tese de mestrado, Ana Paula Lucena Silva Candeas analisa o Judiciário como objeto de estudo das Relações Internacionais – abordagem inovadora, visto ser muito rara a literatura sobre o papel dos sistemas judiciais no plano da governança mundial e da globalização. Seu objetivo é examinar, no contexto da globalização, as relações entre os valores propostos pelo Banco Mundial, em seu esforço de formação de consensos sobre a reforma do Judiciário como parte da reforma do Estado, e os valores defendidos pelos juízes brasileiros. O primeiro capítulo, de fundo teórico, sustenta-se em autores como David Held e James Rosenau para discutir temas de: ordem mundial, globalização, governança, governo e o papel do Banco Mundial em “atividade paranormativa” (Pierre Marie Dupuy). Problematizar o Judiciário nacional no campo das Relações Internacionais exige transpor as barreiras disciplinares e adotar conceitos, categorias e métodos de campos epistemológicos de Direito e Sociologia Jurídica. Isso se torna claro quando a autora analisa o Judiciário e o papel do juiz no caso do leasing e da variação cambial (quarto capítulo). Em seguida, constrói-se uma tipologia de valores propostos pelo Banco Mundial, baseados em seus documentos, que poderiam ser agrupados em duas categorias: os valores ligados ao funcionamento do sistema Judiciário (acesso à Justiça, eficiência, transparência, credibilidade) e os subjacentes à produção de sentenças (proteção à propriedade privada, respeito aos contratos, previsibilidade e independência). Especial destaque é dado aos dois últimos valores, conforme as concepções divergentes do mundo econômico e do mundo jurídico. No terceiro capítulo, a dissertação examina a absorção e rejeição desses valores pelos magistrados brasileiros no processo decisório, especialmente em matéria de

revisão de contrato. A questão é situada no âmbito mais amplo da discussão sobre a reforma do Judiciário. Nota-se uma relativa convergência entre propostas do Banco Mundial e do Judiciário. Alguns valores recomendados pelo organismo internacional – independência, eficiência, transparência, acessibilidade – já estão incorporados nos discursos e na prática dos magistrados, em sua busca de aprimoramento institucional. Por outro lado, entretanto, os juízes parecem refratários ao valor “previsibilidade” das decisões judiciais. Na visão de economistas e investidores, refletida pelo Banco, o Judiciário deve ser previsível e eficiente, reduzindo a margem de risco, garantindo o cumprimento dos contratos, proferindo decisões nãopolitizadas nem desestabilizadoras da confiança dos investidores. Por seu turno, os magistrados estão impregnados dos valores do Estado, valores democráticos sob uma perspectiva de Justiça: no processo de formação de seu convencimento, a partir de uma posição de independência e soberania, o juiz busca restabelecer o equilíbrio das partes, em particular usando o princípio da eqüidade no julgamento sobre contratos. Por isso, a discussão das influências valorativas no processo decisório do Judiciário exigiu reflexão em três níveis: o que se decide; como se decide; onde se exercem os efeitos do que se decide. A tese examina o contrato (o que se decide), o embate entre independência e previsibilidade (como se decide) e o mercado, onde recai grande parte dos efeitos da decisão – tomando, como exemplo, o caso do leasing e da variação cambial. As publicações do Banco Mundial e o processo decisório no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre revisão contratual (caso do leasing e da variação cambial) conformam o material mais importante da pesquisa. Delimitou-se o universo de investigação aos Ministros da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça incumbidos de julgar processos relativos ao Direito Privado. A tais magistrados foi encaminhado um questionário. O quarto capítulo trata do caso do leasing e da variação cambial: imprevisibilidade, segundo o mercado, e justiça, segundo os magistrados. Tal é um exemplo de decisão considerada de impacto tanto para o mercado interno quanto para os fluxos internacionais de recursos financeiros (empréstimos captados no exterior). A decisão proferida pela Terceira Turma do STJ foi considerada pela imprensa desrespeitosa dos termos do contrato, podendo prejudicar o mercado. A possibilidade de discussão do mesmo tema em novos processos trouxe a preocupação, no STJ, de remediar os efeitos das decisões no mercado, unificando seu entendimento pela divisão dos custos da variação cambial entre os contratantes. Nos julgamentos posteriores, o

Tribunal buscou uma solução eqüitativa, diminuindo os impactos negativos sobre os mercados. A segunda Seção do STJ usou de sua independência para favorecer a previsibilidade das decisões relativas ao cumprimento dos contratos. O Banco Mundial reconhece que os Judiciários nacionais podem exercer o papel de facilitadores ou representar óbices ao bom clima para negócio (good business climate). O organismo sublinha a importância dos seguintes instrumentos: leis, regulamentos e agências governamentais que garantam investimentos privados; capacitação de governos; redução dos riscos políticos do investimento; estímulo à maior eficiência e competição; e menor vulnerabilidade à corrupção. Com essa visão, o Banco passa a impulsionar a reforma do Estado – e, em particular, do Judiciário – para aumentar o nível de previsibilidade e estabilidade institucional, sobretudo em matéria contratual. A modernização requer uma reforma dos Judiciários nacionais que, conforme o Banco Mundial, demanda mudanças em várias frentes – capacitação, seleção dos magistrados, administração de tribunais (orçamento, instalações) e administração de casos e códigos de procedimento. A introdução de mecanismos alternativos para a resolução de disputas serviria, na ótica do Banco, para facilitar a acessibilidade e incentivar a competição das fontes de juris dictio, incentivando maior eficiência do poder Judicial. A reforma do Judiciário é objeto de consenso internacional, promovido pelo Banco Mundial, e de dissenso interno, no plano dos magistrados e dos outros Poderes da República – Executivo e Legislativo. Um dos aspectos mais importantes do dissenso diz respeito a mecanismos de “previsibilidade sistêmica” (súmula vinculante, repercussão geral). Os órgãos de cúpula (STJ) parecem favoráveis à “previsibilidade sistêmica”, enquanto a base do sistema judicial seria defensora da “soberania do juiz”. Como já dito, esse dissenso, contudo, não exclui a convergência em torno de outros consensos propostos pelo Banco Mundial em relação aos valores de um Judiciário moderno. Sobre a questão central – a relação entre os valores propostos pelo Banco Mundial para o Judiciário e os dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça responsáveis por decidir matérias relativas a “revisão de contrato”, em especial, o valor da previsibilidade no processo decisório judicial – a tese não identifica relação direta entre a atividade paranormativa do Banco Mundial e o ativismo do Judiciário brasileiro, em especial do STJ, em aprimorar seu desempenho institucional. Não é por influência do Banco Mundial que os magistrados adotam valores de modernidade que devem reger o Judiciário em um sistema de governança global.

Por seu turno, representantes dos segmentos da base do referido Poder (Ajufe, AMB) consideram que a adoção de alguns aspectos convergentes com as recomendações do Banco Mundial caracterizariam “ingerência interna” desse organismo internacional. Outro aspecto é que o Estado deteria, segundo o Banco, funções ativistas (coordenação da atividade privada), funções intermediárias (educação, proteção ambiental, regulação dos serviços públicos, proteção ao consumidor dentre outros) e funções mínimas (defesa, lei e ordem, direitos de propriedade, gestão macroeconômica, saúde pública). O Judiciário preencheria uma das funções mínimas, relacionadas com a lei, a ordem e a proteção de direitos de propriedade – sendo, portanto, indispensável ao Mercado. Entretanto, para esse fim, o Banco deseja um Judiciário eficiente e moderno. Os documentos estudados do Banco Mundial não mencionam a necessidade de reformas e modernização institucionais para o aprimoramento da democracia, mas para a expansão do mercado enquanto vetor do desenvolvimento econômico. Estariam os magistrados enfrentando o dilema (ou falso dilema) entre democracia e mercado em seu processo decisório? Caso se implementasse o modelo de sistema judicial proposto pelo Banco, os cidadãos, usuários potenciais do Judiciário, muito provavelmente, pouco se importariam se os magistrados fossem considerados “juízes para mercados”. Os indivíduos contariam com uma instituição mais próxima de suas demandas, de suas realidades, de suas necessidades. Contudo, em um contexto de desigualdades nacionais, sob a influência das forças de mercado que podem trazer desenvolvimento como também exclusão, se não corrigidas, é importante aos cidadãos um Judiciário moderno, garantidor do império da lei, acessível, credível, independente, previsível, transparente, eficiente, garantidor dos contratos e da propriedade, não simplesmente para o desenvolvimento da economia de mercado, mas, sobretudo para a democracia.

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