Júlia Sebba Ramalho - O conceito hegeliano de vontade e o problema da finitude e infinitude

June 13, 2017 | Autor: Revista Inquietude | Categoria: Finitude, Liberdade, Vontade. Filosofia, Infinitude
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conceito hegeliano de vontade e o problema da finitude e infinitude

Júlia Sebba Ramalho1

Resumo: o presente trabalho aborda o conceito de vontade na Filosofia do espírito de Hegel. Segundo Hegel, a vontade possui um desenvolvimento que abrange três figuras: a vontade natural, o livre arbítrio e a vontade livre em si e para si. Os dois primeiros momentos do conceito encerram o querer como finito, pois o objeto desejado permanece, nestes casos, um limite, uma barreira para a realização da liberdade plena da vontade. Analisarei, portanto, com base nos conceitos de “finito” e “limite”, considerados por Hegel na Ciência da lógica, as duas primeiras figuras finitas do conceito de vontade e sua necessária passagem para a infinitude da realização da liberdade. Palavras-chave: vontade; liberdade; finitude; infinitude.

 Júlia Sebba Ramalho é Bacharel em Filosofia (UFG, 2008) e atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás.

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momentos do conceito da vontade e a determinação da

particularidade

O conceito de vontade aparece na filosofia de Hegel no final da filosofia do Espírito Subjetivo e no início do Espírito Objetivo. Isso significa que Hegel considera a vontade como a mediação essencial entre a subjetividade humana e a objetividade, ou seja, entre o espírito e o mundo humano. Esta relação pode, entretanto, assumir mais de um aspecto. Assim é que conforme os conteúdos e a postura que a vontade assume frente à objetividade, a relação entre a vontade e seu mundo pode caracterizar-se por um aspecto de subordinação, finitude e contingência ou de liberdade, infinitude e necessidade. Neste trabalho pretendo mostrar, portanto, em linhas gerais, em quê consiste o conceito de vontade para Hegel, procurando problematizar este conceito no que tange às suas relações de finitude e infinitude para com a objetividade. O conceito de vontade no interior da filosofia hegeliana assume três determinações conceituais e, como todo conceito verdadeiramente especulativo, desenvolve a partir de si sua própria realidade. Assim como os momentos do conceito enquanto tal, o conceito de vontade possui as determinações de universalidade, particularidade e singularidade. O primeiro momento, o momento da universalidade, corresponde à pura abstração da vontade e à ausência de toda e qualquer determinidade; é a universalidade indeterminada da vontade, a possibilidade universal e livre de se autodeterminar sem nenhuma restrição. Segundo Allen Wood, o momento da universalidade da vontade em Hegel diz respeito à liberdade como pura possibilidade, à liberdade em seu sentido formal e liga-se de maneira crítica ao modo ordinário de se compreender a liberdade, que “frequentemente significa quase a mesma coisa que ‘ausência’ (without)”2. Por isso, segundo Wood, Hegel não permanece na consideração deste momento como aquele que poderia encerrar e definir a liberdade da vontade, mas mostra a necessária colocação de uma determinação e de WODD, A. Hegel’s Ethical Thought. 3ª edição. Cambridge University Press, 1995. p. 37. A tradução é minha.

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um conteúdo no interior desta pura forma da liberdade do querer3. O segundo momento, portanto, o momento da particularidade, corresponde à determinação do eu que dá para si, por meio de sua vontade, um conteúdo particular, uma especificidade que ele deseja. Por fim, o último momento da vontade é o momento da singularidade, da individualização. A singularidade corresponde então à unidade das duas determinações anteriores; é o conteúdo particular que se reflete sobre si refletindo sobre sua universalidade; é, desse modo, a totalidade concreta do conceito de vontade: a vontade que age e decide. A singularidade do conceito de vontade é, assim, a vontade propriamente dita. O que há de novidade nesta caracterização hegeliana do conceito de vontade, além do modo especulativo de conceber o conceito como constituído de três determinações que se interligam, é o fato de Hegel estabelecer como seu momento necessário aquele da particularização do eu, o momento da determinação da vontade, da colocação de seu conteúdo. Este segundo momento do conceito de vontade tem por tarefa pôr uma diferença no interior do querer, retirar o eu de sua unidade abstrata consigo mesmo e colocá-lo em relação com o conteúdo agora desejado. O momento da particularidade é, portanto, o momento da mediação, o momento em que a vontade encontra-se, por meio de seu conteúdo volitivo, em uma relação mediada com um Outro – Outro este que pode configurar-se como o próprio mundo, ou mesmo como outra vontade. Assim, é por esta determinação que a vontade sai de sua simples forma, de sua liberdade meramente abstrata – que constitui o seu primeiro momento – e então se particulariza e quer efetivamente algo. Este momento da particularização, descrito no parágrafo 6º da introdução à Filosofia do Direito, é, antes de tudo, acompanhado de uma crítica àquelas filosofias que Hegel chama de “filosofias da reflexão”, que são as filosofias kantiana e fichteana. Ele afirma: “apreender a negatividade imanente no universal ou no idêntico, como no eu, era o segundo passo que a filosofia

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Cf. WOOD, 1995, p. 47.

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especulativa deveria dar”4. Para Hegel, a simples universalidade da vontade, a capacidade de abstrair-se de toda e qualquer determinação, de toda e qualquer possibilidade e permanecer desse modo livre, não encerra completamente sua significação. O momento da forma, o momento da universalidade, que é o momento, que segundo Hegel, Kant e Fichte elevam como o momento por excelência da vontade, corresponde, para Hegel, apenas à sua primeira determinação, que deve, entretanto, ser suspendida5; a vontade deve, pois, particularizar-se, negar sua abstração completa para ser vontade. “Eu não quero simplesmente, senão que quero alguma coisa. Uma vontade que quer apenas a universalidade abstrata não quer nada e não é portanto uma vontade. O particular que quer a vontade é uma limitação, porque a vontade deve absolutamente se limitar para ser vontade”6.

esta razão que a particularidade é o que em regra geral se chama finitude”7. Hegel afirma que se considera em regra geral a particularização da vontade, o estabelecimento de conteúdos volitivos, como sintoma da finitude da vontade. No entanto, o momento da diferença e da particularização não toma necessariamente a forma da finitude. O que ocorre é que esta determinidade assume em um primeiro momento o aspecto da finitude sem, contudo, permanecer efetivamente nele, ou seja, a particularização da vontade e o seu conteúdo, como veremos, transforma-se em infinitude. No inicio do parágrafo 6º Hegel afirma: “O eu é, além disso, a passagem da indeterminação indiferenciada para a diferenciação, para a determinação, para a instauração de uma determinação que seja um conteúdo e um objeto” e, atentemo-nos para o final da frase: “quer este conteúdo seja dado pela natureza ou produzido a partir do conceito do espírito”8.

Ocorre, entretanto, que o momento da particularização, o momento pelo qual a vontade se dá um conteúdo determinado, pode assumir, e assume, a forma da finitude. Na continuação da citação acima, lemos: “O fato de a vontade querer alguma coisa é uma limitação, uma negação. É por

Desse modo, no decorrer do desenvolvimento do conceito da vontade, temos primeiramente determinações e conteúdos finitos, mas que se desenvolvem de modo a estabelecerem a diferença no interior da vontade como uma diferença munida de conteúdos mais elevados, infinitos, produzidos “a partir do conceito do espírito”. Assim, a vontade, no decorrer de seu desenvolvimento conceitual, assume, em um primeiro momento, o aspecto da finitude, contingência e limitação. Estas características, provindas da determinação da particularidade correspondem aos graus menos complexos, ou mais imediatos. Entretanto, pelo auto-desenvolvimento mesmo do conceito da vontade a determinação da particularidade perde a sua predominância e seu aspecto finito e os conteúdos da vontade vão se complexificando, deixando, portanto, de serem finitos e estabelecendo a vontade como infinita.

4  HEGEL, G.W.F, Principes de la philosophie du droit ou Droit naturel et science de l’état en abrégé. 4ª edição. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 1993, pág. 74; § 6. Daqui por diante citarei esta obra conforme traduções de minha autoria do francês para o português. Para esta obra, além da numeração da página, para efeitos de citação, acrescentarei ainda o número do parágrafo correspondente, a fim de situar melhor a passagem na obra de Hegel. 5   Traduzo o termo alemão “aufheben” por “suspender”, em desacordo com a tradução tradicional do termo para o português, que o traduz por “suprassumir”. Esta última tradução tornou-se “lugar-comum” na literatura brasileira sobre Hegel, tendo como pano de fundo a tradução feita por Paulo Menezes da Fenomenologia do espírito (Cf. HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Menezes. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2000). Baseio-me, entretanto, na proposta de Pertille; ver PERTILLE, J. P. Faculdade do espírito e riqueza material: face e verso do conceito “Vermögen” na filosofia de Hegel. 2005. 275 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Pertille propõe a tradução de “aufheben” para “suspender” baseando-se, segundo ele, em seminários proferidos por Denis Rosenfield e pela tradução de Ernest Bloch para o espanhol (“suspension”). O termo “aufheben” possui o sentido especulativo ao mesmo tempo de negação, conservação e elevação. 6   Hegel, 1993, p. 74; § 6, adendo.

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O que me interessa no presente trabalho é mostrar a caracterização geral do momento da particularidade da vontade e como tal determinação nega seu aspecto de finitude, de modo que a vontade passe a ter por objeto a própria liberdade, a si mesma, e torne-se, portanto, verdadeiramente 7  8 

Idem. Idem; o grifo é meu.

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livre e infinita. A finitude da vontade Hegel trata do problema da finitude na “Doutrina do ser” na Ciência da lógica9. Nesta parte do sistema Hegel considera os temas do ser e, no que se refere à finitude, mais especificamente, os temas da “coisa” ou de “alguma coisa”. Ele diz: “Alguma coisa é o que é em seu limite e por seu limite. Não se deve considerar o limite como puramente exterior à existência, mas, antes, como envolvendo a existência inteira”. E continua: “O limite, com efeito, constitui de uma parte a realidade da existência e, de outra, é sua negação. Mas, enquanto negação de alguma coisa não é o não ser abstrato em geral, mas um não ser que é o que chamamos o outro”10. Portanto, primeiro, pensar a finitude de algo é pensar o limite deste algo, pois o limite é aquilo que o encerra, que o diferencia de outra coisa, limitando-o e caracterizando sua determinidade. E em segundo lugar o limite, além de caracterizar a coisa, determinando-a como finita, é também a negação desta mesma coisa, aquilo que a faz relacionar-se com seu ser outro de um modo contraditório. No que diz respeito ao objeto do presente trabalho, ao conceito de vontade, o limite (ou o caráter da finitude) caracteriza-se propriamente pela contraposição que se dá entre a subjetividade da vontade e a objetividade exterior como seu outro que lhe é oposto. Assim, a vontade é finita porque é limitada por uma exterioridade que, por ser por ela pressuposta como dada, lhe é oposta e possibilita-a a realizar-se apenas de modo incompleto como vontade livre. Tal contraposição acarreta na vontade, A fim de elucidar minha consideração acerca da finitude do conceito de vontade, me remeterei ao tratamento de Hegel sobre a finitude na “Doutrina do ser” da Ciência da Lógica. Na “grande” Lógica a tematização da finitude e do limite encontra-se no segundo capítulo, intitulado “O ser determinado ou a existência” e na “pequena” Lógica, ou na Lógica da Enciclopédia, o problema da finitude e infinitude encontram-se, precisamente estabelecidos, do parágrafo 92 ao 95. 10  HEGEL, G.W.F. Lógica. 2ª edición. Madrid: Editorial Ricardo Aguilera, 1973, pág. 149; § 92. As traduções do espanhol, daqui por diante, são de minha autoria. Citarei a “pequena” Lógica também me remetendo aos parágrafos correspondentes. 9 

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por conseguinte, uma incompletude, uma insuficiência e carência dado que o querer assume no interior de si conteúdos volitivos meramente retirados da exterioridade, e que se configuram, pois, como contingentes. Mas, por que ocorre uma ausência de realização da vontade caracterizando e encerrando, pois, sua finitude, sua incompletude? O motivo desta finitude se encontra justamente no fato de a vontade estabelecer para si conteúdos volitivos particulares e arbitrários, conteúdos que são meramente retirados de sua relação oposta e contraditória com o mundo objetivo e que, consequentemente, contradizem a forma de sua universalidade livre. Desse modo, o aspecto da finitude da vontade caracteriza-se pelo momento da contradição, no qual sua forma livre de autodeterminação universal e seu conteúdo não coincidem, não são adequados, mas são opostos um ao outro. Lembremos: a forma da vontade corresponde à sua primeira determinação conceitual, que é seu aspecto de universalidade livre abstrata. O conteúdo, por sua vez, que corresponde à determinação da particularidade, assume, como dissemos, em um primeiro momento o aspecto da finitude. Portanto, a caracterização que temos da contradição entre forma e conteúdo na vontade finita se traduz da seguinte maneira: a vontade possui sua livre universalidade ou capacidade de autodeterminarse, mas, ao mesmo tempo, possui conteúdos particulares, limitados, meramente retirados do mundo objetivo que lhe é oposto. Daí seu aspecto de finitude. Mas o fato é que este limite da vontade de não conseguir realizarse na exterioridade ocasiona um processo incessante de mudança que faz a vontade entrar no círculo da má infinitude. Vejamos. Ora, as coisas finitas possuem a peculiaridade de mudarem, de se transformarem. Esta mudança provém justamente do fato de serem limitadas e assim, necessitarem superar seu limite, de modo que são determinadas a transgredir sua limitação. Atentemo-nos para o que Hegel afirma na Lógica: “Enquanto alguma coisa, o finito não é indiferente a respeito do outro, senão que é em si o outro que si mesmo e, portanto, muda. Na mudança se manifesta a contradição interna inerente à existência e que www.inquietude.org

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a estimula a ir mais além de si mesma”11. O limite, afirma Hegel, se produz, desse modo, como momento dialético, pois ao mesmo tempo em que ele constitui e encerra a realidade e a caracterização de algo finito, de outra parte, é a negação desse algo e a passagem para outro. Assim, o limite não só constitui-se como negação, mas possui também um aspecto positivo, de maneira que estimula a coisa limitada a ir além de si mesma, se ultrapassar e se realizar em direção ao seu outro. Em relação ao conceito de vontade, esta caracterização dialética do limite se dá do seguinte modo: 1º) a vontade finita, como vimos, encontra-se em oposição à exterioridade objetiva, que a limita, de modo que se encontra então carente desta objetividade o que a faz 2º) estabelecer conteúdos volitivos particulares tomados de empréstimo desta exterioridade mesma como seus fins desejados, de modo que, 3º) por conseguinte, a vontade deseja realizar estes conteúdos, ou seja, deseja ultrapassar aquilo que a limita, que são propriamente estes conteúdos que lhe faltam e que ela tomou de empréstimo da objetividade. O problema de todo este processo e o que ocorre neste movimento de ultrapassagem da vontade finita rumo à objetividade é o jogo incessante da vontade que, não satisfeita, passa à outra determinação volitiva particular e assim ad infinitum. Mas, por que a vontade finita, que tende a realizar-se na objetividade, nunca se encontra satisfeita e inicia ininterruptamente novos ciclos desejosos? Ora, o fato de esta vontade tomar de empréstimo da exterioridade seus conteúdos desejados demonstra precisamente sua carência. E esta se dá a tal ponto que a vontade não consegue retirar de si mesma aquilo que quer, mas torna-se dependente da exterioridade, torna-se serva do objeto desejado. A vontade finita mergulha, pois, na má infinitude, no progresso incessante de busca pelo objeto e cai, pois, na contingência cega, em um círculo vicioso que, como “progresso indefinido se limita apenas a repetir a contradição que contém o finito”12.

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Com base nesta descrição geral da finitude, passemos a analisar agora as duas figuras (Gestalt) da vontade finita: a figura da vontade natural imediata e o livre arbítrio. A finitude da vontade natural A primeira figura correspondente à vontade finita e limitada é a figura da vontade natural, que caracteriza o momento mais imediato do conceito da vontade. Nesta figura é a particularidade do conteúdo que domina a relação inteira da vontade com a objetividade, da vontade com a sua realização. Este conteúdo particular, ou as determinações das diferenças no interior do conceito da vontade, são as tendências, os desejos, as inclinações, que em alemão é Trieb, “por meio das quais a vontade se encontra determinada pela natureza”13. Estes conteúdos do querer são então dados pela objetividade para a vontade, que toma, neste caso, a forma da passividade; são conteúdos produzidos não pelo conceito do espírito, mas pelo conceito da natureza. Na Enciclopédia das ciências filosóficas, Hegel afirma: “a conformidade imediata, apenas préencontrada, da determinidade essente é [em relação] à necessidade [Berdurfnis], uma negação para a autodeterminação da vontade e não está conforme a ela”14. Isto significa que, como vontade natural, a vontade contradiz o momento de sua autodeterminação livre, uma vez que encontra na natureza o conteúdo particular e limitado de sua decisão. Desse modo, a contradição que ocorre na vontade natural é que, apesar de o homem agir e querer pelos instintos, ele, diferentemente dos animais, obedece àqueles apenas quando quer, quando lhe apetece e quando sua forma universal de autodeterminação o determina. Ora, como algo de abstratamente indeterminado e de universal, o homem existe além dos instintos e das tendências naturais. Assim, na figura da vontade natural a determinação da universalidade engloba os conteúdos particulares dos instintos naturais   Hegel, 1993, p. 79; § 11. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compendio: 1830. v. III. “A Filosofia do Espírito”. São Paulo: Loyola, 1995, pág. 269; § 473. A referência a esta obra é feita com alusão ao parágrafo correspondente à passagem citada.

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Hegel, 1973, p. 149; §92, o grifo é meu.   Hegel, 1973, p. 151; § 94.

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como as minhas determinações, os meus conteúdos instintivos, assumindo assim uma contradição entre sua forma abstratamente universal de decidir por um impulso e a particularidade destes conteúdos que são dados pela natureza15. Temos, portanto, a marca da finitude na figura da vontade natural; 1º) porque nela não há uma livre produção dos conteúdos do querer, mas eles são pré-encontrados no conceito da natureza; 2º) porque estes conteúdos dados naturalmente são particulares, contingentes e imediatos e 3º) porque há, desse modo uma contradição entre os momentos da vontade, entre a presença de seu momento formal de autodeterminação universal e o momento de seu conteúdo, em outras palavras, entre sua capacidade livre de decidir e seus conteúdos produzidos pelo conceito da natureza. Por conseguinte, a vontade natural ou imediata é finita, pois, por chegar apenas a conseguir intercalar entre este ou aquele conteúdo instintivo, nunca se encontra plenamente satisfeita em suas realizações objetivas e acaba por mergulhar-se no jogo do círculo vicioso. A má infinitude que encontramos no círculo vicioso da vontade natural tem, entretanto, seu acabamento mais completo em outra figura da finitude da vontade. A finitude do livre arbítrio como contradição

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O refletir se encontra já em um grau mais elevado e complexo que o âmbito da decisão, como tínhamos na esfera da vontade natural. Nesta, o eu se decidia firmemente por seguir ou não um impulso, entregava, portanto, sua vontade finita a um conteúdo particular da natureza. Aqui, na esfera do arbítrio, temos mais do que isso, temos um cálculo racional do entendimento, que reflete sobre seguir esta ou aquela particularidade, sobre ter por fim este ou aquele conteúdo. O livre arbítrio é, portanto, o grau da pura possibilidade da vontade de entregar-se a este ou a outro conteúdo e, por conseguinte, é o grau da contingência da vontade. O tratamento de Hegel da categoria da possibilidade e da contingência é feito na “Doutrina da Essência” da Ciência da lógica16. Aí, quando Hegel trata das determinidades da “realidade essencial”, considera a possibilidade e a contingência como determinações que devem ser suspendidas, pois regem apenas as coisas finitas e longe estão da verdadeira necessidade em si e para si da infinitude. “Por conseguinte, visto mais de perto, a finitude do contingente e do possível procede de que a forma difere do conteúdo; e o conteúdo é o que faz que tal coisa seja contingente e possível”17. Na figura do livre arbítrio, portanto, também temos a contradição entre forma e conteúdo que encerra a determinidade de uma coisa ser finita. Nesta figura, a contradição se dá da seguinte forma: O livre arbítrio contém este duplo aspecto, em ser de uma parte reflexão livre se abstraindo de tudo e, de outra parte, dependência em relação a um conteúdo e a uma matéria, quer eles provenham do interior ou do exterior. Uma vez que este conteúdo, necessário em si como fim, é ao mesmo tempo determinado como um simples possível em relação à reflexão, o livre arbítrio é a contingência se manifestando como vontade.18

O ápice do processo contraditório da finitude se encontra na figura do livre arbítrio. Este, pelo lado da forma, se manifesta como reflexão. 15  Segundo Ramos, a vontade natural em Hegel, mesmo que caracterizada pelos instintos não constitui, entretanto, “um atributo isolado e autônomo do instinto” (RAMOS, C. A. Liberdade subjetiva e estado na filosofia do direito de Hegel. 1989. 336 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 62.) Isso significa, segundo ele, que as determinações naturais do ser humano são investidas pelo conceito do espírito, que abrange as tendências (Trieb) pelo elemento da universalidade da vontade livre. É, pois, nesta “mistura” de natureza e liberdade que devemos entender a vontade natural em Hegel (Cf. RAMOS, 1989, p. 62). Por conseguinte, podemos ponderar e afirmar que, apesar de mergulhada na naturalidade, a vontade natural constitui, todavia, uma forma de liberdade, mesmo que incipiente, pois nela já está presente – marcada pela finitude, devemos ressaltar – a forma da livre autodeterminação.

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Tentemos caracterizar esta contradição do arbítrio por dois aspectos essenciais: 1º) O arbítrio é, antes de tudo, a pura possibilidade da   Cf. HEGEL, 1973, 2ª parte “Doutrina da Essência”: “Realidade Essencial”; o tratamento do problema da possibilidade e da contingência se dá do § 142 ao §149. 17   Hegel, 1973, p. 240; § 145. 18  Hegel, 1993, p. 81; § 15, o grifo é meu. 16

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vontade e, portanto, é dominado pela primeira determinação da vontade, que é aquela da universalidade. Esta determinação da livre possibilidade de escolha pelo lado da reflexão é, entretanto, seguida pela contingência de seu conteúdo, que diz respeito à determinação de sua particularidade – particularidade esta que contradiz a forma de sua reflexão universal. E, 2º) esta contradição se desenvolve ao extremo de modo que a livre escolha de um conteúdo particular é acompanhada de uma dependência da vontade em relação a este mesmo conteúdo. O primeiro aspecto da finitude então, o aspecto da contradição entre a livre possibilidade da reflexão e a contingência do conteúdo, desencadeia um círculo vicioso, no qual o arbítrio, justamente pelo fato de seus conteúdos serem apenas possíveis e não necessários, substitui aleatoriamente um conteúdo por outro, de modo que nenhum destes conteúdos lhe é verdadeiramente adequado e ele está sempre, portanto, no jogo da escolha. Além disso, para Hegel, o arbítrio constitui uma ilusão, uma falsa liberdade, porque, ao escolher deliberada e conscientemente certo conteúdo, possuo, aparentemente, a liberdade em minha escolha, mas se segue daí, entretanto, segundo Hegel, a dependência e a ligação subordinada de minha vontade com este conteúdo aleatório. Isso ocorre porque este conteúdo não é produzido pela natureza da vontade e não é determinado por ela a ser meu, ele então se põe frente à vontade como um estranho, ao qual a vontade arbitrária se sujeita. A liberdade no arbítrio é, desse modo, desvirtuada. Disso se segue que as formas finitas da vontade, por estarem mergulhadas na insatisfação, no jogo do círculo vicioso e da dependência externa, estão, antes de tudo, em contradição com a liberdade enquanto vontade em si e para si infinita. Somente agora, depois de mostrar toda a caracterização destas figuras finitas da vontade é que estamos em vias de mostrar como esta finitude é, em seu aspecto mais profundo, a contradição com o conceito da vontade livre e infinita. Esta contradição se dá, entretanto, não como uma rígida oposição dos aspectos finitos da vontade em relação à sua infinitude. Antes, ocorre que a determinação da finitude se dá como idealidade (Idealität), isto é, como um momento compreendido no interior do conceito especulativo infinito da vontade. Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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Assim, a limitação das figuras da vontade natural e do livre arbítrio está em contradição com o conceito da vontade livre, mas esta contradição é suspendida e não permanece tal como é, pois o que sobressai de todo o desenvolvimento do conceito da vontade é de fato a vontade livre em si e para si – que constitui o momento especulativo, aquele momento que engloba no interior de si todas as determinações particulares e finitas integrando-as na universalidade livre do querer19. A vontade infinita especulativa, para Hegel, portanto, não exclui a finitude da particularidade da vontade como uma caracterização a si alheia, mas engloba este momento finito como sua determinação que é, entretanto, suspendida (ou seja, negada, conservada e elevada a uma determinação superior). Ora, Hegel não poderia conceber o conceito da infinitude como separado e ao lado do conceito da finitude, pois desse modo a infinitude seria, também, finita. “Mas um infinito que só é um ser particular, que só é ao lado do finito e que, por isso, tem no finito seu limite, não é o que deve ser, não é infinito, mas finito”20. Considerar o infinito como ao lado do conceito de finito, segundo Hegel, é o modo de tratar do entendimento, que põe todas as categorias, todos os pares de opostos, como subsistindo um ao lado do outro e sem relação. A filosofia deve, de outro modo, afirma Hegel, tratar não só a categoria da infinitude, mas toda a realidade, à maneira do método especulativo, que põe em uma unidade negativa todas as determinações opostas e assim, estabelece o conceito verdadeiramente como concreto e unitário, que não rechaça para fora de si nenhuma determinação que seja. Desse modo, a verdadeira infinitude é, antes de tudo, uma unidade consigo mesma que tem no interior de si sua negação, ou seja, o momento do finito. “Esta relação que consiste em passar a seu contrário e, passando O momento especulativo, segundo Hegel, corresponde à síntese de toda realidade lógica e pode ser compreendido como aquele momento “da razão positiva, que apreende a unidade das determinações em sua oposição” (Hegel, 1973, p. 128; § 82). Isso significa que a unidade especulativa não é dominada pela contradição de duas realidades ou termos opostos, mas, sim, pela ligação íntima entre estes mesmos termos, que formam, então, um todo concreto e orgânico, uma unicidade totalizante que os engloba. 20   Hegel, 1973, p. 153; § 95. 19 

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a seu contrário, não passar senão a si mesmo, é isto de fato o que constitui a verdadeira infinitude”21. Vejamos então como este último grau do desenvolvimento do conceito da vontade, que engloba negativamente todos os graus anteriores, se manifesta como a verdadeira infinitude. A infinitude da vontade livre A vontade livre é infinita porque ela é em si e para si livre, ou seja, porque em seu manifestar ela não demonstra uma oposição entre sua forma (que constitui o seu em si) e o seu conteúdo (que é precisamente o seu para si). Assim, diferentemente das outras figuras da vontade, a figura da vontade livre infinita não possui apenas a liberdade da universalidade formal – em contraposição a conteúdos particulares e não completamente livres –, mas possui a forma e também o conteúdo da liberdade. Esta superação da oposição entre forma e conteúdo constitui, de fato, um grande e, quiçá, o derradeiro passo dado pelo conceito da vontade livre. Para Hegel, a relação absoluta – aquela que pode abranger e compreender a verdade –, é somente aquela que se baseia na reciprocidade circular entre forma e conteúdo. Assim, temos uma forma que não é outra coisa que a transformação do conteúdo e um conteúdo que não é outra coisa que a transformação da forma22. Como vimos em nossa consideração sobre as figuras (Gestalt) finitas da vontade, a caracterização da limitação da vontade natural e do livre arbítrio é precisamente o fato de estas figuras comportarem a contradição entre a forma de auto-determinação universal e o conteúdo do querer, em outras palavras, pelo fato de retirarem seus conteúdos volitivos de um mundo exterior que configura um limite para a liberdade da vontade, fornecendo-lhe, portanto, apenas conteúdos naturais e contingentes. Somente no momento da vontade livre infinita, portanto, é que temos uma vontade que em si e para si comporta a liberdade, pois que possui tanto sua forma, quanto seu conteúdo como livres, de modo que seus objetos volitivos são produzidos não por uma exterioridade alheia, mas pela própria autodeterminação universal do   Idem.   Cf. HEGEL, 1973, p. 220; § 133.

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querer, não se encontrando, por conseguinte, em contradição com sua forma. Observemos então a afirmação hegeliana que melhor expressa seu entendimento da vontade livre: “Pelo fato de a vontade ter por conteúdo, objeto e fim ela mesma enquanto forma infinita, ela não é somente a vontade livre em si, mas a vontade livre para si – a Idéia em toda sua verdade”23. Desta afirmação podemos retirar as seguintes consequências: 1°) a vontade livre tem por conteúdo e fim ela mesma enquanto forma infinita, ou seja, enquanto liberdade efetiva e há, portanto, nesta relação, uma reciprocidade circular harmônica entre sua forma e seu conteúdo, de modo que 2º) a vontade livre é, para Hegel, Idéia, ou seja, possui uma realidade, ou uma manifestação empírica, conforme ao seu conceito. Sendo assim, a vontade livre só é livre porque não tem por conteúdos determinações particulares – o que desencadearia uma contradição com sua forma livre – e desse modo, não permanece incompleta e insatisfeita em sua realização objetiva, sendo limitada pela exterioridade, mas, ao dar para si como conteúdo a sua própria universalidade livre, engloba toda a objetividade como um momento e uma determinação sua e não como uma diferença exterior e alheia que a limita. Isto significa, por conseguinte, que a vontade livre é Idéia, pois a Idéia, em termos hegelianos é a conformação e a adequação do conceito subjetivo de algo com sua realização empírica na exterioridade24. O momento da vontade livre infinita é então aquele em que não há contradição entre a sua manifestação na existência empírica e o seu lado subjetivo, mas, sim, uma perfeita conformação entre sua autodeterminação universal e o mundo exterior, que realiza seus conteúdos livres sem limitá-la. Mas, uma pergunta nos cabe: como pudemos passar daquele   Hegel, 1993, p. 84, § 21. “A idéia é o verdadeiro em si e para si, a unidade absoluta do conceito e da objetividade. Seu conteúdo ideal não é outra coisa que o conceito em suas determinações. Seu conteúdo real não é senão a representação de si mesma, representação que se dá a si mesma sob a forma da existência exterior e é envolvido nesta forma em sua idealidade, em seu poder, como se conserva” (Hegel, 1973, p. 347; § 213). 23

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O conceito hegeliano de vontade e o problema da finitude e infinitude

momento da finitude, em que a vontade se determinava com conteúdos particulares, para um momento de determinação universal, que coloca a vontade em sua manifestação para si na exterioridade como infinita? A resposta é clara: a vontade só consegue se pôr como a relação infinita de si para si, como um círculo de infinidade real, só consegue se tomar como o verdadeiro objeto livre e, assim, realizar-se livremente na exterioridade porque transforma, pela atividade livre do pensar, toda a determinação particular de seus conteúdos em uma determinação universal: “Mas esta supressão [suspensão] e esta elevação ao universal são precisamente o que se denomina a atividade do pensamento. A consciência de si, que purifica seu objeto, seu conteúdo ou seu fim para elevá-lo até esta universalidade, o faz enquanto atividade do pensamento se exercendo na vontade”25. Ocorre, desse modo, que aquela simples decisão da vontade em se entregar a uma determinação natural – determinação esta que se constituía como tendência (Trieb) ou impulso – e ainda, que aquela reflexão abstrata pela qual a vontade cedia-se a um conteúdo particular pelo arbítrio, são suspendidas pela atividade mais abrangente e concreta, que é a do pensar. Para Alan Patten, o que caracteriza, propriamente, a concepção e definição hegelianas acerca do conceito da liberdade da vontade é o pensamento racional, como a pura e efetiva autodeterminação do querer, e não a reflexão ou a mera decisão ponderada, que, de outro modo, referem-se à atividades não livres da vontade26. Desse modo, é pelo pensamento que o eu, a vontade, se eleva da simples existência empírica, da simples particularidade, para a universalidade, que constitui, propriamente, o terreno de existência do espírito. Somente por esta atividade se poderia, desse modo, ser negado e ao mesmo tempo conservado o momento da finitude. Unicamente pela atividade pensante da vontade esta poderia pôr no mundo o seu ideal e constituir-se assim como Idéia, que é precisamente o infinito se apoderando do finito. Vimos, desse modo, a consideração de Hegel sobre o problema Hegel, 1993, p. 84-85; § 21, o colchete é meu.   Cf. PATTEN , A. Hegel’s idea of freedom. New York: Oxford University Press, 1999, p. 51.

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Inquietude, Goiânia, vol. 1, n° 1, jan/jul - 2010.

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da finitude da vontade e como tal aspecto se configura por uma relação de contradição. O que há de peculiar em tal consideração hegeliana, entretanto, é o fato de Hegel considerar que a infinitude da vontade engendra-se do próprio movimento finito da mesma, ou seja, a vontade vai cada vez mais tornando complexos seus processos de decisão de modo a passar da reflexão deliberada do arbítrio para o modo do pensar absolutamente livre e, assim, torna-se infinita.

Referências HEGEL, G.W.F. Ciencia de la logica. 2ª edición. Buenos Aires: Solar S.A, 1968. ___. Enciclopédia das ciências filosóficas em compendio: 1830. v. III. “Filosofia do Espírito”. São Paulo: Loyola, 1995. ____. Fenomenologia do espírito. Tradução de Paulo Menezes. 5ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. ___. Lógica. 2ª edición. Madrid: Editorial Ricardo Aguilera, 1973. ___. Principes de la philosophie du droit ou Droit natural et science de l’état en abrégé. 4ª edição. Paris : Librairie Philosophique J. Vrin, 1993. PATTEN , A. Hegel’s idea of freedom. New York: Oxford University Press, 1999 PERTILLE, J. P. Faculdade do Espírito e Riqueza Material: face e verso do conceito “Vermögen” na Filosofia de Hegel. 2005. 275 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. RAMOS, C. A. Liberdade subjetiva e estado na filosofia do direito de Hegel. 1989. 336 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. WOOD, A. Hegel’s Ethical Thought. 3ª edição. Cambridge University Press, 1995. www.inquietude.org

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