JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: a importância da judicial review para a democratização da atividade administrativa

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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS (UNISINOS) CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO – 2016/1 ESTADO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

GUILHERME RODRIGUES CARVALHO BARCELOS

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: a importância da judicial review para a democratização da atividade administrativa

Linha de Pesquisa: Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos

SÃO LEOPOLDO 2016

GUILHERME RODRIGUES CARVALHO BARCELOS

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: a importância da judicial review para a democratização da atividade administrativa

Artigo apresentado como requisito parcial para aprovação na disciplina “Estado e Administração Pública” do curso de mestrado em Direito do Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Linha de Pesquisa: Hermenêutica, Constituição e Concretização de Direitos. Orientador: Prof. Dr. Miguel Tedesco Wedy

SÃO LEOPOLDO 2016

JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO: a importância da judicial review para a democratização da atividade administrativa

Guilherme Rodrigues Carvalho Barcelos*

RESUMO Uma das principais características do constitucionalismo contemporâneo (considerado aquele oriundo do pós-segunda Guerra) é o deslocamento do polo de tensão dos demais Poderes (Legislativo e Executivo) em direção à Jurisdição Constitucional. Nesse sentido, o presente trabalho busca(rá) questionar em que medida a jurisdição constitucional poderia ser um mecanismo destinado à democratização da atividade administrativa em terrae brasilis, sem que isso viesse a representar, por oportuno, uma interferência indevida nos demais poderes da República. Partindo-se, pois, da premissa de que o constitucionalismo proveniente do Estado Democrático de Direito tem por baliza um aprofundamento democrático cada vez maior, procurar-se-á, então, lançar luzes sobre o controle das ações/inações da administração pública no cenário brasileiro, de modo que a jurisdição constitucional seja enfrentada, efetivamente, como um mecanismo não só de controle, mas de democratização da atividade administrativa, desde que, no entanto, seja exercida de acordo com os preceitos democráticos, na esteira da Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck. Palavras-chave: Constitucionalismo Contemporâneo. Administração Pública. Controle dos Atos Administrativos. Jurisdição Constitucional.

_______________________ * Advogado. Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Email: [email protected]

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1 CONSIDERAÇÕES INAUGURAIS

A questão-chave deste artigo é: qual o papel da Jurisdição Constitucional em um Estado Democrático de Direito? Afinal, “[...] como compreender a atuação do Poder Judiciário a partir de uma concepção de constitucionalismo que tem como elemento base um aprofundamento democrático cada vez maior?”1. Com efeito, o constitucionalismo proveniente do Estado Democrático de Direito trouxe como uma das suas características “[...] certo deslocamento do centro das decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional”2. Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo passam a poder – em determinadas circunstâncias – ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.3 Nos últimos anos o debate acerca do papel desempenhado pelos tribunais – notadamente no exercício daquilo que se convencionou a chamar jurisdição constitucional – na concretização dos direitos fundamentais foi, acentuadamente, acirrado. Um fato interessante pode ilustrar essa afirmação. No dia 25.04.2011 o jornal Folha de S. Paulo, no caderno “Poder”, divulgou a seguinte nota: “STF julga a quem pertence vaga de suplente”. Trata-se, no caso, da resolução de imbróglio jurídico para o preenchimento de 24 vagas de suplentes para a Câmara dos Deputados. Segundo a notícia, a resolução do problema dependerá de decisão do STF na qual se discutirá se as vagas pertencem às coligações ou aos partidos. Frise-se: algo que depende do cumprimento regular das eleições e do escrutínio popular para ter sua composição configurada (no caso, as vagas da Câmara dos Deputados) acaba por ser discutida no âmbito da nossa Corte Constitucional numa discussão que envolve a interpretação adequada do sistema político-eleitoral previsto pela Constituição, bem como o cumprimento dos direitos políticos daqueles que foram eleitos, em condições de normalidade,

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TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 32. 2 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 64. 3 Ibid., p. 65.

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no pleito democrático4. Não é preciso muito esforço para perceber que, num caso como esse, a discussão – por sua íntima natureza, política – acabou por ser juridicializada. E não é apenas em casos envolvendo o processo político que acontece a judicialização de matérias classicamente tidas como exteriores à esfera de atuação do Poder Judiciário. No julgamento da citada ADI n. 3510, por exemplo, o tribunal foi chamado a atuar num campo no interior do qual se discutiam as “verdades da ciência” sobre a vida e a pesquisa biológica. Discutia-se a constitucionalidade do dispositivo da Lei n. 11.105/2005 que permitia, em seu art. 5º, a possibilidade, para fins terapêuticos e de pesquisa, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas através de fertilização in vitro. A afronta à Constituição estava balizada no potencial desrespeito à garantia constitucional do direito à vida (art. 5º, Caput) e, nos diversos votos, os ministros da Corte discutiram o conceito de vida; quando ela se inicia; qual o estatuto jurídico do embrião (se deve ou não ser protegido pelo direito, etc.), entre outras coisas. De forma solene, por ocasião do julgamento desta mesma ação, o Min. Carlos Aires Britto afirmou que o STF havia se tornado uma “casa de fazer destinos”. Neste caso, o debate acerca das “verdades da ciência” (houve, inclusive, quem ressuscitasse o debate medieval ciência v.s. religião) e das (in)certezas a respeito das pesquisas científicas, judicializou-se5. Os casos acima denotam a judicialização de temas que antes ficavam adstritos ao parlamento e ao executivo, ou à relação entre povo e poder constituído pelo próprio povo. E em questões diametralmente opostas, representação nas casas parlamentares e bioética. Os exemplos não param por aí, contudo: fetos anencéfalos, uniões homoafetivas, transexuais, demarcação de terras indígenas, anistia, fidelidade partidária, cláusulas de barreira, moralidade eleitoral, impeachment, afastamento de parlamentares no exercício pleno do mandato eletivo (!) etc. Nessa medida, tal e qual fazem Oliveira et. al., cabe perguntar: “[...] de onde vem esse fenômeno que se insere, cada vez mais, em nosso espaço público de discussões? Em que ele está enraizado? É algo recente? Se não, porque demoramos tanto para sentir os seus efeitos?”6. Ou, noutras palavras, de acordo com Tassinari:

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OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 5 Ibid. 6 Ibid., p. 269.

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Qual o papel do Judiciário?7 Ora: como deve agir o Judiciário de acordo com os preceitos relativos ao Estado Democrático de Direito? O que é jurisdição constitucional? Como exercêla? Quais as diretrizes? Em que medida? E os respectivos limites? Ou ainda, especificamente: em que passo a jurisdição constitucional poderia se constituir em um efetivo mecanismo de democratização da atividade administrativa, sem que isso, também, representasse uma interferência indevida do Judiciário nos demais Poderes? Com efeito, a função jurisdicional e a sua limitação (especialmente em relação ao exercício do controle de constitucionalidade – judicial review) “[...] já vêm sendo problematizadas ao longo dos anos, tanto na experiência continental, como na anglo-saxã, antes mesmo de no Brasil”8,9. Isso ocorreu, evidentemente, por razões históricas, tendo em vista que a existência de um efetivo controle de constitucionalidade no direito brasileiro somente se consolidou depois do período ditatorial, com a redemocratização (na década de 1980), quando Europa, e especialmente os Estados Unidos, apresentava certa maturidade democrática e constitucional, que impulsionava intensos debates entre Parlamento e Judiciário. Apesar desta ser uma discussão problematizada há algum tempo, tal abordagem tem se renovado mesmo nesses locais e, portanto, se revelado cada vez mais pertinente, não apenas porque as diferentes tradições têm procurado analisar a onda crescente de judicialização que afeta seu próprio sistema jurídico, mas também porque a América Latina (que faz parte das assim chamadas “novas democracias”, junto com a África, o Canadá e a Nova Zelândia, para referenciar os mais mencionados) tem sido objeto de estudo de autores nos Estados Unidos e no Canadá especialmente no que diz respeito ao modo de articular a

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TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 32. 8 Ibid., p. 32-33. 9 Veja-se que, por exemplo, a tradição norte-americana produziu literatura sobre o tema anos antes do que o Brasil, basta que se observem os anos de publicação das obras de John Hart Ely (Democracy and distrust, 1980), de Charles Beard (The Supreme Court and the Constitution, 1912, na versão sem a introdução de Alan Westin, edição de 1962), de Alexander Bickel (The Last Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics, 1962), de Raoul Berger (Government by Judiciary, 1977) e de Laurence Tribe (Constitutional Choices, 1986), para mencionar apenas alguns. Ainda, a própria obra Direito e Democracia, de Jürgen Habermas, criticando a jurisprudência dos valores, é datada de 1992 (TASSINARI, op. cit., p. 32).

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relação democracia e Judiciário10,11. Por sua vez, seguindo essa tendência mundial, o constitucionalismo brasileiro traz, de igual maneira, como uma das suas principais características, “[...] a relevância atribuída ao Poder Judiciário”12. E tal matéria, vale frisar, também é, por aqui, objeto de intensas discussões, de tal maneira que o tema da intervenção do Judiciário na arena política não resta adstrito apenas ao campo jurídico, mas, também, por exemplo, ao campo da ciência política e da sociologia. Ocorre que é evidente que o constitucionalismo do pós-segunda guerra fez modificar a atuação do Poder Judiciário. Noutras palavras, o direito se transformou. Ou seja, conforme Tassinari:

Por muito tempo, havia, no âmbito das funções jurisdicionais, uma resistência à aplicação da Constituição, tornando a decisão judicial uma atividade mecânica, de pretensa reprodução legislativa. Esse imaginário se transformou no Brasil a partir da Constituição de 1988, que potencializou o papel do Judiciário, ao reforçar o compromisso do Direito com o cumprimento do que estava previsto no texto constitucional. Ou seja, é sabido que uma das marcas da passagem da concepção de Estado Social para a de Estado Democrático de Direito justamente se caracteriza pelo deslocamento do polo de tensão do Executivo para o Judiciário.13

Desse modo, a presente pesquisa pretenderá questionar se o exercício da jurisdição constitucional, à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito, poderia ser um mecanismo destinado à democratização da atividade administrativa tupiniquim e, se positivo for, em que medida isso poderia se dar, sem que esse “papel interventivo” do Poder Judiciário, ao final e ao cabo, pudesse representar, enfim, uma interferência indevida nos demais Poderes da República (Legislativo e Executivo), a ponto de nos transformarmos em

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TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. 11 Nesse mesmo sentido: TATE, Chester Neal; VALLINDER, Torbjörn. The global expansion of Judicial Power: the judicialization of politics. In: ______ (Orgs.). The global expansion of Judicial Power. New York: New York University Press, 1995; SHAPIRO, Martin; SWEET, Alec Stone. On law, politics & judicialization. New York: Oxford University Press, 2002; HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007. Há também textos traduzidos para o português e publicados recentemente na Revista de Direito Administrativo da Fundação Getúlio Vargas: HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no mundo. Revista de Direito Administrativo, n. 251, p. 139-175, maio/ago. 2009; numa outra perspectiva, mas apontando também para a incisividade do poder judiciário na condução da vida política Cf. DAHL, Robert A. Tomada de Decisões em uma democracia: a Suprema Corte como uma entidade formuladora de políticas nacionais. Revista de Direito Administrativo, n. 252, p. 25-43, set./dez. 2009 apud OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 269. 12 TASSINARI, op. cit., p. 33. 13 Ibid., p. 39.

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uma espécie de juristocracia (juristocracy), para utilizar as palavras de Ran Hirschl14 ou, como prefere Lenio Streck, em uma de judiciariocracia15.

2 COLOCANDO O PROBLEMA: CONSTITUIÇÃO, CONSTITUCIONALISMO E JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL – A REVOLUÇÃO COPERNICANA DO DIREITO CONSTITUCIONAL NA E DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX: A RELAÇÃO ENTRE O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO E A ASCENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO O constitucionalismo moderno16, iniciado no final do século XVIII, passou por duas fases marcantes, a fase liberal, com o surgimento das primeiras constituições escritas, - a americana (1787) e a francesa (1791) – formais, rígidas, dotadas de supremacia e controle de constitucionalidade, fase assim caracterizada porque positivou direitos de liberdade e por buscar conter a atuação de um Estado absolutista, vertical e impeditivo do exercício dos direitos do indivíduo; e a fase social, iniciada no século XX para atender às demandas sociais e as desigualdades agravadas com o fim da primeira guerra e com a crise do liberalismo, é marcada pelo Estado Social de Direito, sob as premissas da limitação da propriedade privada, da exaltação de direitos trabalhistas e um forte intervencionismo estatal na economia, sendo representado pelas constituições mexicana (1917) e de Weimar (Alemanha, 1919)17. Nestes estágios, é importante frisar, sempre imperou uma espécie de apego ao paradigma da legalidade (legalismo) ou, noutras palavras, uma tradição fortemente arraigada aos textos legais. Dito de outra forma, até então, a tradição jurídica sempre se pautou pela crença no sistema de regras, não conhecendo (ou concebendo), pois, uma Constituição dirigente ou compromissória, tampouco com força normativa para além da suficiência das regras. Contudo, como frisam Serraglio e Zambam, 14

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HIRSCHL, Ran. O novo constitucionalismo e a judicialização da política pura no Mundo. Fordham Law Review, [S.l.], v. 75, n. 2, 2006. Publicado originalmente como “The new constitutionalism and the judicialization of pure politics worldwide”. Traduzido por Diego Werneck Arguelhes e Pedro Jimenez Cantisano. Nesse sentido, p. ex., ver: STRECK, Lenio Luiz. O ativismo existe ou é imaginação de alguns? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 13 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2016. Sobre a história do constitucionalismo, sugerimos a leitura das seguintes obras: FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bologna: il Mulino, 1999; e MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y liberdad: Historia del constitucionalismo moderno. Traducción de Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 1998. SERRAGLIO, Priscila Zilli; ZAMBAM, Neuro José. Hermenêutica e constitucionalismo contemporâneo. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 10, n. 2, p. 1025-1052, jan./abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2016. p. 5-6.

7 [...] a crença numa razão instrumental e nas promessas da modernidade não deram conta da realidade vivenciada pelas comunidades políticas dos Estados Europeus naquele período histórico, acarretando no fim do constitucionalismo moderno e no advento de um novo modelo de constitucionalismo com o segundo pós-guerra.18

Logo, a partir de então, vive-se uma nova era na história do constitucionalismo, em que as Constituições ou os respectivos conteúdos acabam, definitivamente, por invadir a legalidade. Daí que, a tal fenômeno, cuja pedra angular reside no segundo pós-guerra e no advento

do

chamado

Estado

Democrático

de Direito,

se atribui

o

nome de

“neoconstitucionalismo” (como todos os problemas que tal termo tem acarretado)19, ou, conforme preferimos, Constitucionalismo Contemporâneo20. A noção de Estado de Direito está intimamente vinculada ao advento da Modernidade, como o resultado dos levantes iluministas havidos na transição do século XVIII para o século XIX, em especial na França (1789) e nos Estados Unidos da América (1776). O Estado de Direito é, assim, uma invenção, uma construção, um resultado histórico, uma conquista lenta e gradual, forjada por movimentos e indivíduos, setores sociais, que, diante de poderes despóticos locais ou estrangeiros, buscavam segurança para suas pessoas, seus bens e 18

SERRAGLIO, Priscila Zilli; ZAMBAM, Neuro José. Hermenêutica e constitucionalismo contemporâneo. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v. 10, n. 2, p. 1025-1052, jan./abr. 2015. Disponível em: . Acesso em: 12 jun. 2016. p. 5. 19 Vejamos a oportuna crítica de Clarissa Tassinari (2012, pp. 38-39): “[...]. A identificação do neoconstitucionalismo com esses elementos acabou conduzindo a uma concepção de constitucionalismo que, especialmente no Brasil, gerou a defesa do ativismo judicial. Ou seja, a transformação do perfil da jurisdição, como responsável também pela concretização de direitos constitucionalmente assegurados, acabou sendo levada a extremos, a ponto de conceder espaço para uma atuação jurisdicional para além dos limites definidos pela Constituição e pela legislação democraticamente produzida. É por esse motivo que Lenio Streck passou a nomear o constitucionalismo do segundo pós-guerra de modo diferenciado: ‘Constitucionalismo Contemporâneo’. A utilização dessa expressão pelo autor objetiva realizar dois enfrentamentos: por um lado, refutar o(s) neoconstitucionalismo(s) (especialmente surgidos no âmbito do constitucionalismo espanhol); e, por outro, buscar a superação do positivismo jurídico. Trata-se, portanto, de uma nomenclatura que passou a ser utilizada a partir da quarta edição da obra ‘Verdade e Consenso’ (em 2011), em substituição à terminologia anteriormente empregada para tratar do constitucionalismo insurgente do segundo pós-guerra (neoconstitucionalismo), constituindo, portanto, um modo específico de abordagem, que, em linhas gerais, se opõe ao estabelecimento de uma relação de causalidade existente no trinômio moral-princípiosdiscricionariedade, própria das posturas neoconstitucionalistas, porque favorecem o ativismo judicial [...]”. 20 O termo “constitucionalismo contemporâneo” é extraído das obras de Lenio Streck como um contraponto aos chamados “neoconstitucionalismos”, movimentos que, apesar de se afigurarem como pós-positivistas, mantém-se, no entanto, arraigados ao paradigma epistemológico da subjetividade. Para melhor explicar o enredo, citemos, então, o próprio STRECK, para quem “o neoconstitucionalismo representa, apenas, a superação – no plano teórico-interpretativo – do paleojuspositivismo (Ferrajoli), na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da Escola do Direito Livre, da Jurisprudência dos Interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta ultima, ou seja, da Jurisprudência dos Valores. Portanto, é possível dizer que, nos termos em que o neoconstitucionalismo vem sendo utilizado, ele representa uma clara contradição, isto é, se ele expressa um movimento teórico para lidar com um direito ‘novo’ (poder-se-ia dizer, um direito ‘pós-Auschwitz’ ou “pós-bélico”, como quer Mario Losano), fica sem sentido depositar todas as esperanças de realização desse direito na loteria do protagonismo judicial (mormente levando em conta a prevalência, no campo jurídico, do paradigma epistemológico da filosofia da consciência)”. (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 36).

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propriedades e que, por sua vez, ampliando tal espectro, exigiam garantias e proteção efetiva para outras manifestações da sua liberdade21. Noutras palavras, o Estado de Direito emerge umbilicalmente como uma manifestação jurídica da democracia liberal. Assim, na esteira das lições de Elías Díaz22, as principais características deste macro-modelo de Estado restariam plasmadas em quatro circunstâncias muito bem delineadas: a) império da lei (hoje, das Constituições, na esteira de uma legalidade constitucional); b) divisão de poderes entre legislativo, executivo e judiciário; c) fiscalização/controle da administração pública ou do poder constituído; d) proteção dos direitos e liberdades fundamentais, requisito que constitui a verdadeira razão de ser do Estado de Direito. Logo, citando Streck e Morais,

Este Estado que se juridiciza/legaliza é, todavia, mais e não apenas um Estado jurídico/legal. Não basta, para ele, assumir-se a apresentar-se sob uma roupagem institucional normativa. Para além da legalidade estatal, o Estado de Direito representa e referenda um algo mais que irá se explicitar em seu conteúdo. Ou seja: não é apenas a forma jurídica que caracteriza o Estado, mas, e sobretudo, a ela agregam-se conteúdos.23

E mais, ainda na esteira dos mesmos autores, conclua-se: O século XX irá demonstrar claramente esta assertiva. A dimensão de conteúdo do Estado de Direito aproxima os modelos alemão e francês de seu vizinho insular, o modelo britânico do rule of Law. Assim, o Estado de Direito não se apresenta apenas sob uma forma jurídica calcada na hierarquia das leis, ou seja, ele não está limitado apenas a uma concepção de ordem jurídica, mas, também, a um conjunto de direitos fundamentais próprios de uma determinada tradição. [...]. Ou, ainda, o Estado de Direito não é mais considerado somente como um dispositivo técnico de limitação de poder, resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas; é também uma concepção que funda liberdades públicas, de democracia, e o Estado de Direito não é mais considerado apenas como um dispositivo técnico de limitação de poder resultante do enquadramento do processo de produção de normas jurídicas. O Estado de Direito é, também, uma concepção de fundo das liberdades públicas, da democracia e do papel do Estado, o que constitui o fundamento subjacente da ordem jurídica. (grifo do autor)24

Assim, nesse prisma, é que se pode(rá) dizer das três evoluções ou dos três grandes paradigmas que forjaram o curso da nossa história: o Estado Liberal, o Estado Social (Welfare State) e, por fim, o Estado Democrático de Direito. Noutras palavras, “[...] o Estado de Direito 21

Sobre o tema e sobre as afirmativas acima, ver: DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Democracia. [20--?]. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 22 DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Democracia. [20--?]. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 23 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 87. 24 Ibid., p. 88.

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irá se apresentar ora como liberal em sentido estrito, ora como social e, por fim, como democrático [...]”25, sendo que, cada um deles, “molda o Direito com seu conteúdo”. Considerando, pois, que a digressão amiúde acerca de cada um destes paradigmas não é o objeto deste artigo, tratemos, por oportuno, apenas deste último (o qual, de fato, mais nos interessa), ou seja, do paradigma do Estado Democrático de Direito26. Segundo o magistério de Streck e Morais, o Estado Democrático de Direito:

[...] desenvolve um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal democrático ao Estado de Direito, não como uma aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas democráticas, as garantias jurídico-legais e a preocupação social. Tudo constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica é a transformação do status quo. (grifo do autor)27

A configuração do Estado democrático de Direito não significa apenas unir formalmente os conceitos de Estado democrático e Estado de Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leve em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supere na medida em que incorpora um componente revolucionário de transformação do status quo. E aí se entremostra a extrema importância do art. 1° da Constituição de 1988, quando afirma que a República Federativa do Brasil se constitui em Estado democrático de Direito, não como mera promessa de organizar tal Estado, pois a Constituição aí já o está proclamando e fundando28. O conteúdo da legalidade – princípio ao qual permanece vinculado – assume a forma de busca efetiva da concretização da igualdade, não pela generalidade do comando normativo, mas pela realização, através dele, de intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade29. O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os PRINCÍPIOS da democracia sobre todos os 25

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 89. 26 Acerca da história do constitucionalismo antigo e moderno, ver: FIORAVANTI, Maurizio. Costituzione. Bologna: il Mulino, 1999; MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y liberdad. Historia del constitucionalismo moderno. Traducción Francisco Javier Ansuátegui Roig y Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 1998. 27 STRECK; MORAIS, op. cit., p. 92. 28 Id. Estado Democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. P. 21. 29 STRECK; MORAIS, op. cit., p. 93.

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seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica30. E mais, a ideia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência31. Assim, segundo Streck “[...] o Estado Democrático de Direito supera as noções anteriores de Estado Liberal e Estado Social de Direito”32. E essa questão, ao final e ao cabo, é bem definida por Elías Díaz: o Estado Liberal de Direito é a institucionalização do triunfo da burguesia ascendente sobre as classes privilegiadas do Antigo Regime, em que se produz uma clara distinção entre o político e o econômico, com um Estado formalmente abstencionista, que deixa livres as forças econômicas, adotando uma posição de (mero) policial da sociedade civil que se considera mais beneficiada para o desenvolvimento do capitalismo em sua fase de acumulação inicial e que aproximadamente até o final da primeira grande guerra; já o Estado Social de Direito pode ser caracterizado como a institucionalização do capitalismo maduro, no qual o Estado abandona a sua postura abstencionista tomada inicialmente para proteger os interesses da vitoriosa classe burguesa, passando não somente a intervir nas relações econômicas da sociedade civil, como também se converte em fator decisivo nas fases de produção e distribuição de bens; finalmente, o Estado Democrático de Direito é o novo modelo que remete a um tipo de Estado em que se pretende precisamente a transformação em profundidade do modo de produção capitalista e sua substituição progressiva por uma organização social de características flexivamente sociais, para dar passagem, por vias pacíficas e de liberdade formal e real, a uma sociedade no qual se possam implantar superiores níveis reais de igualdade e liberdades33. Assim, para Díaz, o qualificativo “democrático” vai muito além de uma simples reduplicação das exigências e valores do Estado Social de Direito e permite uma práxis política e uma atuação dos Poderes Públicos que, mantendo as exigências garantísticas e os direitos e liberdades fundamentais, sirva para uma modificação em profundidade da estrutura econômica e social e uma mudança no atual sistema de produção e distribuição dos bens34. Agora, então, na assertiva de Streck, o Estado Democrático de Direito é transformador da realidade. E é exatamente por isso que aumenta 30

Cfe. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 68 apud STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 93. (Com modificação: modificamos a palavra “valores” por “princípios”). 31 Ibid. 32 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 53. 33 DÍAZ, Elías. Estado de Derecho y Democracia. [20--?]. Disponível em: apud STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 34 Ibid., 53-54.

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sensivelmente o polo de tensão em direção da grande invenção contramajoritária: a jurisdição constitucional, que, no Estado Democrático de Direito, vai se transformar na garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da própria democracia. Em suma, a noção de Estado Democrático de Direito está, pois,

[...] indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissociável que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tal como igualdade, justiça social e garantia dos direitos humanos fundamentais.35

A essa noção de Estado se acopla o conteúdo das Constituições, através do ideal de vida consubstanciado nos princípios que apontam para uma mudança no status quo da sociedade36. Assim, a Constituição de um Estado democrático tem por missão:

[...] veicular consensos mínimos, essenciais para a dignidade das pessoas e para o funcionamento do regime democrático, e que não devem poder ser afetados por maiorias políticas ocasionais. Esses consensos elementares, embora possam variar em função das circunstâncias políticas, sociais e históricas de cada país, envolvem a garantia de direitos fundamentais, a separação e a organização dos poderes constituídos e a fixação de determinados fins de natureza política.37

Por isso, conseguintemente, no Estado Democrático de Direito, “[...] a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigenteprincipiológico”38. E, desse modo, “[...] a noção de Estado Democrático de Direito – normatizada no art. 1º da Constituição do Brasil – demanda a existência de um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias assentadas no binômio democracia e direitos humanos fundamentais-sociais.”39 Esse núcleo derivado do Estado Democrático de Direito faz parte, hoje, de um núcleo básico geral-universal que comporta elementos que poderiam confortar uma teoria (geral) da Constituição e do constitucionalismo do Ocidente. Já os demais substratos constitucionais aptos a confortar uma compreensão adequada do conceito

35

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 54. 36 Ibid. 37 BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 90. 38 STRECK, op. cit., p. 54. 39 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Estado Democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. p. 236-237.

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derivam das especificidades regionais e da identidade nacional de cada Estado40. Dito de outro modo, afora o núcleo mínimo universal, que pode ser considerado comum a todos os países que adotaram formas democrático-constitucionais de governo, há um núcleo específico de cada Constituição, que, inexoravelmente, será diferenciado de Estado para Estado. É o que se pode denominar núcleo de direitos sociais-fundamentais plasmados em cada texto que atendam ao cumprimento das promessas da modernidade. É nesse contexto que deve ser compreendido o plus normativo representado pelo Estado Democrático de Direito41. Daí, ao final e ao cabo, que a compreensão acerca do significado do constitucionalismo contemporâneo, entendido como o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, a toda evidência, “[...] implica a necessária compreensão da relação existente entre Constituição e jurisdição constitucional.”42 Isto significa afirmar que, enquanto a Constituição é o fundamento de validade (superior) do ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito43. É possível sustentar, dessa maneira, que no Estado Democrático de Direito, em face do caráter compromissório dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, “[...] ocorre, por vezes, um deslocamento do polo de tensão dos demais poderes de Estado em direção da justiça constitucional.”44 Com efeito, se no Estado Liberal a tensão se focava na vontade geral (Legislativo) e no Estado Social no Executivo, pela necessidade de resolver problemas sociais a partir de políticas públicas, no Estado Democrático de Direito engendra-se uma nova formulação nessa relação, na medida em que aumentam sensivelmente as demandas pela ação do Poder Judiciário, a ponto de, no limite, por vezes, admitir-se que inércias do Poder Executivo e falta de atuação do Poder Legislativo podem ser “supridas” pela atuação do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. Essa questão, entretanto, pode acender – como já dito – a luz amarela da democracia45. Porém, o alerta é necessário (e é aqui que queremos chegar): o Direito, neste estágio, deve sim ser visto como “[...] um campo necessário de luta para implantação das promessas

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STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Estado Democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. 41 Ibid. 42 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 37. 43 Ibid. 44 Ibid., p. 44. 45 Ibid.

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modernas.”46 No entanto, no afã de realizar pretensas reivindicações, não se pode colocar em xeque a própria autonomia do direito e a democracia. No modelo advindo do Estado Democrático de Direito, ocorreu “[...] certo deslocamento do centro das decisões do Legislativo e do Executivo para o plano da justiça constitucional.”47 Dito de outro modo, se com o advento do Estado Social e o papel fortemente intervencionista do Estado, o foco de poder/tensão passou para o Poder Executivo, no Estado Democrático de Direito há uma modificação desse perfil. Inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo passam a poder – em determinadas circunstâncias – ser supridas pelo Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito.48 Isso, enfim, a toda evidência, na dicção de Streck:

[...] exigirá um rigoroso controle das decisões judiciais e dos julgadores. Afinal, se é inexorável que alguém tenha que decidir e se é inexorável o crescimento das demandas por direitos (fundamentais-sociais, principalmente) e com isso aumente o poder da justiça constitucional, parece evidente que isso não pode vir a comprometer um dos pilares sustentadores do paradigma Constitucionalista: a democracia.49

Cada vez mais se torna necessário discutir as condições de possibilidade da validade do direito em um contexto em que os discursos predatórios dessa validade, advindos do campo da política, da economia e da moral, buscam fragilizá-la.50 Nesse sentido, penso que o direito deve ser preservado naquilo que é a sua principal conquista a partir do segundo pósguerra: o seu elevado grau de autonomia.51 Com efeito, o direito constitucional brasileiro contemporâneo traz como um das suas principais características a relevância atribuída ao Poder Judiciário. Cada vez mais, questões que anteriormente eram demandas políticas transformam-se em contendas judiciais, consolidando o fenômeno que ficou conhecido como judicialização da política. Na medida em que aumenta a interferência judicial, maior também deveria ser o comprometimento de juízes e tribunais em respeitar a tradição jurídica (legislação, Constituições e entendimentos jurisprudenciais anteriores) que, ao longo dos

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STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 48. 47 Ibid., p. 64. 48 Ibid. 49 Ibid., p. 65. 50 Id. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul/dez. 2011a. 51 Ibid.

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anos, possibilitou conquistas importantes.52 Dito de outro modo, o “deslocamento” – digamos assim, tectônico – da esfera de tensão deve ser visto com muita cautela, mormente porque não se pode esperar que a justiça constitucional (ou o Poder Judiciário) seja a solução (mágica) dos problemas sociais.53 3 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA54 E ATIVISMO JUDICIAL: DE COMO ESSA QUESTÃO NÃO TEM SIDO BEM COMPREENDIDA NO BRASIL

De acordo com o escólio de Tassinari, é evidente que “[...] o novo modo de pensar o constitucionalismo a partir do século XX modificou a atuação do Poder Judiciário”55. Por muito tempo, havia, no âmbito das funções jurisdicionais, uma resistência à aplicação da Constituição, tornando a decisão judicial uma atividade mecânica, de pretensa reprodução legislativa. Esse imaginário se transformou no Brasil a partir da Constituição de 1988, que potencializou o papel do Judiciário, ao reforçar o compromisso do Direito com o cumprimento do que estava previsto no texto constitucional. Ou seja, é sabido que uma das marcas da passagem da concepção de Estado Social para a de Estado Democrático de Direito justamente se caracteriza pelo deslocamento do polo de tensão do Executivo para o Judiciário56. Essa realidade gera, por sua vez, um contexto no qual mais e mais matérias acabam por ser judicializadas, ou, noutras palavras, cresce a busca pela solução de conflitos ou insuficiências em direção ao Poder Judiciário. Com efeito, para Oliveira et. al., essa tendência judicializante que se verifica nas sociedades atuais (e não é diferente quanto ao contexto brasileiro) “[...] é típica das democracias de massa e tem seu paroxismo apresentado no contexto atual. Sua manifestação não obedece, diretamente, aos desejos do órgão judicante. Pelo contrário, ela se apresenta

52

TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. 53 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 54 Como o intuito deste artigo não recai sobre o esgotamento do tema “judicialização das relações sociais”, remetemos o leitor à obra de Werneck Vianna: VIANNA , Luis Werneck. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro, Revan,1999; e/ou VIANNA, Luis Werneck et. al. Dezessete anos de judicialização da política. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ts/v19n2/a02v19n2. Ainda: VIANNA, Luis Werneck. Não há limites para a judicialização da política. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-03/luiz-werneck-vianna-nao-limites-judicializacao-politica. 55 TASSINARI, op. cit., p. 39. 56 Ibid.

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como fruto de contingências político-sociais.”57 No âmbito político, fenômenos como o dirigismo constitucional e a inflação legislativa contribuem para aumentar o espaço de interferência (possível) do judiciário no âmbito de regulamentação projetado pelo texto da Constituição e do manancial legislativo, lato senso (Leis, Medidas Provisórias, Regulamentos, Portarias, etc.). Vale dizer, com Lenio Streck, há um aumento da dimensão hermenêutica do direito: quanto mais direitos são constitucionalizados ou mais leis são editadas para regulamentar toda uma plêiade de matérias, maior será o espaço – possível – de concreção dessa normatividade, atividade que se realiza no âmbito da jurisdição, no enfrentamento das questões concretas e das demandas apresentadas pela sociedade58. Por outro lado, as razões sociais para a aglutinação cada vez maior de matérias judicializadas, deve-se ao aumento da litigiosidade e de uma peculiaridade que pode ser observada, em maior ou menor medida, na maioria dos países (pelo menos no que tange aos países ocidentais). Esta particularidade diz respeito a um imaginário difuso que tende a enxergar no judiciário o lugar legítimo para se discutir questões que, antes, eram debatidas no âmbito político (legislativo e executivo). Muitos fatores contribuem para isso, desde o desprestígio dos agentes públicos (que cada vez mais aparecem como protagonistas de casos de corrupção), passando pelo discurso retumbante da eficácia dos direitos fundamentais e desaguando no fato de que, de forma cada vez mais evidente, “[...] o juiz (melhor seria dizer: o judiciário – acrescentamos) passa a ser uma referência da ação política.”59 Para que fique mais claro, devemos recorrer à obra de Lenio Streck: é por demais evidente, diz o autor, “[...] que se pode caracterizar a Constituição brasileira de 1988 como uma ‘Constituição social, dirigente e compromissória’, alinhando-se com as Constituições europeias do segundo pós-guerra”60. De qualquer maneira, a indagação seguinte é necessária: isso é suficiente? A Constituição é algo em si? E se basta? Ou deve ser efetivada dia após dia? Noutras palavras: os textos constitucionais não são “plenipotenciários, ‘produzindo’ eficacialidades”61. Parece que esse é o espaço que deve ser ocupado pelo Estado (e consequentemente pela Teoria do Estado, que deve estar lado a lado com a Teoria da

57

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 58 Ibid. 59 GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 41. 60 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 39. 61 Ibid., p. 39.

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Constituição). Não há Constituição sem Estado. Do mesmo modo, não há Teoria da Constituição sem Teoria do Estado62. Dito de outro modo, a eficácia das normas (princípios e regras) constitucionais:

[...] exige um redimensionamento do papel do jurista e do Poder Judiciário (em especial da justiça constitucional) nesse complexo jogo de forças, na medida em que se coloca o seguinte paradoxo: uma Constituição rica em direitos (individuais, coletivos e sociais) e uma prática jurídico-judiciária que, reiteradamente, (só) nega a aplicação de tais direitos, mormente no plano dos direitos prestacionais e dos direitos de liberdade.63

Sendo a Constituição brasileira, pois, uma Constituição social, dirigente e compromissória – conforme o conceito que a tradição (autêntica) nos legou -, é absolutamente possível afirmar que o seu conteúdo está voltado/dirigido para o resgate das promessas (incumpridas) da modernidade (“promessas” entendidas como “direitos insculpidos em textos jurídicos produzidos democraticamente”)64. Daí que o direito, enquanto legado da modernidade – até porque temos (formalmente) uma Constituição democrática -, deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas (igualdade, justiça social, respeito aos direitos fundamentais etc.)65. Parece-nos claro, de tudo, que temos uma Constituição dirigente e compromissória, uma Carta com plena densidade normativa e que, assim sendo, acaba por constituir-a-açãodo-Estado. Uma Lei Maior com um extenso rol de direitos e garantias individuais, direitos sociais e coletivos como é a nossa acaba, de igual maneira, por expandir a dimensão hermenêutica do Direito (Streck). Assim, parece-nos clarividente, pois bem, que uma Constituição rica em direitos fundamentais como a brasileira requer(erá), inexoravelmente, mecanismos que garantam a sua plena eficácia. Eis, logo, a relevância do Poder Judiciário ou da Jurisdição Constitucional nesta quadra da história. Vale dizer: se a Constituição é o fundamento (superior) de validade do jurídico e do político, a jurisdição constitucional é a sua condição de possibilidade. Porém, essa maior participação do judiciário no espectro social não deve ser confundida com uma supremacia judicial. Reside aí, portanto, o busílis da questão. Ocorre, de acordo com Tassinari, que:

62

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 63 Ibid., p. 39. 64 Ibid. 65 Ibid.

17 [...] essa maior participação do Judiciário resultou confundida com uma atividade ilimitada. Em outras palavras, se a partir do Constitucionalismo Contemporâneo duas principais expressões passaram a estar diretamente vinculadas à atividade jurisdicional (judicialização política e ativismo judicial), um dos problemas que surge é a inexistência de uma diferenciação. Em um contexto em que frequentemente o Judiciário é acionado para resolver conflitos, a distinção entre ativismo e judicialização da política apresenta-se como indispensável, evitando que o Direito seja resumido tão somente a um produto das decisões judiciais, o que afeta as bases democráticas que fundam o Estado brasileiro.66

Com efeito, o fenômeno da judicialização da política (da vida e/ou do social) decorre situações diversas, consubstanciando-se num fenômeno que independe dos desígnios dos membros do Poder Judiciário. Trata-se, pois, de um fenômeno que encontra em sua gênese fatores de natureza contingencial. Como fatores contingenciais deste fenômeno da judicialização da política, no sentido de uma maior interferência do Poder Judiciário na cena sócio-política, citamos: a) o constitucionalismo dirigente (constituição dirigente, compromissória e normativa, com extenso catálogo de direitos fundamentais individuais e sociais)67,68; b) a inflação legislativa; c) as crises políticas e insuficiências da política no sentido da implementação dos direitos sociais e coletivos; d) a crise da democracia, que tende a produzir um número cada vez maior e complexo de regulações; e) o maior acesso à justiça; f) a expansão da sociedade, que cada vez mais se torna marcada por uma profunda complexidade69. Trata-se, então, a judicialização da política (e do social), de um movimento que denota uma faceta do protagonismo judicial nosso de cada dia70, consubstanciando-se em um fenômeno “[...] migratório do poder decisório próprio do Legislativo para o Judiciário [...]”71, cuja gênese encontra assento em fatores de natureza contingencial, como dito. Dentre eles, os acima. Aprofundando a temática, Tassinari sustenta que a judicialização da política deveria ser compreendida também como um fenômeno circunstancial, porquanto decorrente de um contexto de fortalecimento da jurisdição no pós-Segunda Guerra Mundial, e, ao mesmo tempo, contingencial, “[...] no sentido de que o Judiciário é chamado a intervir pela inércia de

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TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 39. 67 “Ontem os Códigos, hoje as Constituições!”, rememorando as célebres palavras de Paulo Bonavides. 68 Vide capítulo 2. 69 Para tanto, ver: OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. 70 Lenio Streck considera o protagonismo judicial como gênero, enquanto a judicialização da política e o ativismo judicial são as respectivas espécies. 71 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 47.

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algum dos outros Poderes do Estado, apresentando-se, portanto, muito mais como fruto de uma conjuntura político-social.”72 Nesse sentido, Valle73 acertadamente afirma que a constitucionalização do direito após a Segunda Guerra Mundial, a legitimação dos direitos humanos e as influências dos sistemas norte-americano e europeu são fatores que contribuíram fortemente para a concretização do fenômeno da judicialização do sistema político,

inclusive

o

brasileiro.

Tais

acontecimentos

provocaram

uma

maior

participação/interferência do Estado na sociedade, o que, em face da inércia dos demais Poderes, abriu espaço para a jurisdição, que veio a suprimir as lacunas deixadas pelos demais braços do Estado. Desse modo, o Judiciário passou a exercer um papel determinante na definição de certos padrões a serem respeitados. É praticável, portanto, como dizemos, identificar o fenômeno da judicialização da política como fruto do caráter dirigente e compromissório das Constituições, do surgimento e da consolidação dos Tribunais Constitucionais (na Europa e no Brasil), do aumento da litigiosidade e da inflação legislativa, do maior acesso à justiça e, ao fim e ao cabo, da crise da democracia. Desse modo, torna-se perfeitamente possível (e correto) identificar o fenômeno da judicialização como decorrente de situações diversas, como o caráter compromissório e dirigente das Constituições, o aumento da litigiosidade e do acesso à justiça, a inflação legislativa em determinadas matérias, a crise da democracia com um “sem-número” de regulações das mais diversas etc. Sem contar, ademais, neste percurso, certo descontentamento com a classe política, que acaba, por meio de um perigoso imaginário desencadeado pela opinião pública, por conferir ao Judiciário um papel protetor (ou pai) da sociedade contra as mazelas da política e dos políticos. Por tudo, sobremodo, resta evidenciado que a judicialização da política, como espécie do gênero protagonismo judicial, é um fenômeno que independe dos desígnios dos membros do Poder Judiciário. A judicialização, definitivamente, é um fenômeno que exsurge da relação entre os Poderes do Estado, representando um fenômeno político-jurídico gerado pelas democracias hodiernas. A judicialização de questões políticas e sociais não depende de um ato volitivo do poder judiciário, mas, sim,

72

TASSINARI, Clarissa. A atuação do Judiciário em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, Pouso Alegre, v. 28, n. 2, p. 31-46, jul./dez. 2012. p. 41. 73 VALLE, Vanice Regina Lírio do (Org.). Ativismo jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal: laboratório de análise jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 32.

19 [...] decorre da expansão da sociedade (que se torna cada vez mais complexa) e da própria crise da democracia, que tende a produzir um número gigantesco de regulações (seja através de leis, medidas provisórias, decretos, portarias, etc.) e que encontram seu ponto de capilarização no judiciário e, principalmente, nas questões cujo deslinde envolve um ato de jurisdição constitucional.74

A judicialização da política, conseguintemente, não é um mal em si, mas algo de natureza contingencial e circunstancial, fruto de fatores múltiplos, e em especial no contexto das democracias modernas. Já o ativismo judicial representa fenômeno diametralmente oposto ao fenômeno da judicialização da política. Em verdade, ambos são espécies do gênero protagonismo judicial. Porém, suas características se afiguram como profundamente distintas, de tal maneira que não podemos, assim sendo, confundir a ambos. Segundo Oliveira et al., embora sem mencionar expressamente, Antoine Garapon, no seu O Guardador de Promessas, “[...] intui de forma correta o elemento que marca a linha divisória que separa a judicialização do ativismo.”75 Com efeito, depois de uma análise minuciosa do modo como a sociedade contemporânea encara temas como a política e a democracia, demonstrando como a democracia contemporânea acabou por produzir esse espaço de judicialização76, Garapon assevera o seguinte: “O ativismo começa quando, entre várias soluções possíveis, a escolha do juiz é dependente do desejo de acelerar a mudança social ou, pelo contrário, de a travar.”77 Já de acordo com o jusfilósofo gaúcho Lenio Luiz Streck, para quem a questão do ativismo no Brasil é extremamente mal compreendida, um juiz ou tribunal pratica ativismo

[...] quando decide a partir de argumentos de política, de moral, enfim, quando o direito é substituído pelas convicções pessoais de cada magistrado (ou de um conjunto de magistrados; já a judicialização é um fenômeno que exsurge a partir da relação entre os poderes do Estado (pensemos, aqui, no deslocamento do polo de tensão dos Poderes Executivo e Legislativo em direção da justiça constitucional) [...].78

74

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2012, Curitiba. Anais... Curitiba: ABDConst., 2013. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2016. p. 302. 75 Ibid., p. 283. 76 Ibid. 77 GARAPON, Antoine. O guardador de promessas: justiça e democracia. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 54 apud OLIVEIRA, op. cit., p. 283. 78 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 589.

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Com efeito, uma Constituição nova exige novos modos de análise; no mínimo, uma nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma e uma nova teoria hermenêutica79. Em 1988 o Brasil recebeu uma nova Constituição, rica em direitos fundamentais, com a agregação de um vasto catálogo de direitos sociais. A pergunta que se colocava era: de que modo poderíamos olhar o novo com os olhos do novo? Afinal, nossa tradição jurídica estava assentada num modelo liberal-individualista (que opera com os conceitos oriundos das experiências da formação do direito privado germânico e francês), em que não havia lugar para direitos de segunda e terceira dimensões80. Do mesmo modo,

[...] não havia uma teoria constitucional adequada às demandas de um novo paradigma jurídico. Essas carências jogaram os juristas brasileiros nos braços das teorias alienígenas. Consequentemente, as recepções dessas teorias foram realizadas, no mais das vezes, de modo acrítico, sendo a aposta no protagonismo dos juízes o ponto comum da maior parte das teorias.81

Logo, para Streck,

[...] as recepções das teorias voluntaristas – em especial as que colocam a Constituição como ‘ordem concreta de valores’ (portanto, com filiação na jurisprudência dos valores e com tendências à incorporação das teses do realismo jurídico), ultrapassaram esse ‘modelo de aplicação do Direito’.82

Na verdade ocorreu uma troca: do modelo que apostava na estrutura do Direito (objetivismo), passou-se a adotar uma postura de perfil subjetivista, que deu - e dá - azo não somente ao decisionismo stricto sensu, mas também ao instrumentalismo (processo civil) e ao inquisitivismo (processo penal)83. Enfrentar, então, esse “novo” protagonismo, na dicção de Streck, “será o papel de uma hermenêutica preocupada com a democracia” (grifo nosso)84. Eis aí, conseguintemente, a principal diferenciação entre judicialização e ativismo, ou seja: enquanto a judicialização é um problema das democracias contemporâneas, e tem por gênese uma pecha contingencial/circunstancial, o ativismo judicial é um fenômeno marcado por fatores de caráter comportamental, dependendo de um ato volitivo (ou de vontade) do órgão judicante. Noutras palavras, o ativismo ocorre quando o juiz ou o Tribunal decide por argumentos de moral ou de política e afins, de onde exsurge que o Direito (ou a sua 79

Neste exato sentido: STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011. 80 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. 81 Ibid., p. 83-84. 82 Ibid., p. 83-84. 83 Ibid. 84 Ibid., p. 84.

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autonomia) acaba sendo substituído pelas convicções pessoais do julgador. Não é distinto, por oportuno, o escólio de Oliveira et al., segundo o qual “[...] a judicialização é um fenômeno político gerado pelas democracias contemporâneas; ao passo que o ativismo é um problema interpretativo, um capítulo da teoria do direito (e da Constituição)” 85. Portanto, judicialização e ativismo são espécies do gênero protagonismo judicial. Porém, enquanto aquela é notabilizada por fatores de natureza contingencial/circunstancial, este se caracteriza por um problema derivado de fatores de caráter comportamental, de onde exsurge que os juízes ou tribunais, ao decidirem, substituem, pois, o direito ou a sua autonomia, por suas convicções pessoais ou, de outro modo, por argumentos de moral e de política, tudo em detrimento dos argumentos de princípio. Um bom exemplo do tipo corriqueiro de ativismo judicial que permeia o imaginário dos juristas brasileiros pode ser extraído da questão levada a julgamento na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 178. Com efeito, tal medida foi interposta em 2009 pelo Ministério Público Federal, objetivando o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo e a garantia dos mesmos direitos reconhecidos às uniões entre heterossexuais. A ação pretendia, inicialmente, que fosse reconhecida e colmatada a pretensa omissão do Poder Legislativo em regulamentar os direitos dos casais homossexuais, muito embora a própria Constituição, no seu art. 226, §3º, aponte para outra direção, ao afirmar que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Indeferida

liminarmente,

a

petição

foi

reapresentada,

agora

buscando

uma

verfassungskonforme Auslegung do art. 1.723 do Código Civil, no sentido de oferecer proteção integral às uniões homoafetivas. A perplexidade que surge deve-se à seguinte questão: de que modo poderia haver a referida omissão se a própria Constituição determina que é dever do Estado proteger a união entre o homem e a mulher? Onde estaria a omissão, já que é um comando constitucional que determina que a ação do Estado seja no sentido de proteger a união entre homem e mulher? Note-se: não podemos falar em hierarquia entre normas constitucionais, caso contrário, estaríamos aceitando a tese de Otto Bachof a respeito da possibilidade de existência de normas constitucionais inconstitucionais. O mais incrível é que a referida ADPF também pretende anular as várias decisões que cumpriram literalmente o referido comando constitucional. Trata-se, pois, de um hiper-ativismo. De plano, salta aos 85

OLIVEIRA, Rafael Tomaz de et al. A jurisdição constitucional entre a judicialização e o ativismo: percursos para uma necessária diferenciação. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE DIREITO CONSTITUCIONAL, 10. 2011. Anais... Disponível em: Acesso em: 13 set. 2015. p. 271.

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olhos a seguinte questão: a efetivação de uma medida desse jaez importa(ria) transformar o Tribunal em um com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie caduca de Verfassungswandlung, que funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de Verfassungsänderung, reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do processo de emenda constitucional. O risco que surge desse tipo de ação é que uma intervenção desta monta do Poder Judiciário no seio da sociedade produz graves efeitos colaterais. Quer dizer: há problemas que simplesmente não podem ser resolvidos pela via de uma ideia errônea de ativismo judicial. O Judiciário não pode substituir o legislador (não esqueçamos, aqui, a diferença entre ativismo e judicialização: o primeiro, fragilizador da autonomia do direito; o segundo, contingencial)86. Desnecessário referir as inúmeras decisões judiciais que obrigam os governos a custearem tratamentos médicos experimentais (até mesmo fora do Brasil), fornecimento de remédios para ereção masculina e tratamento da calvície...!87 E o que dizer, então, do recente julgamento do HC n°. 126992 no âmbito do STF, no qual, por maioria de sete votos a quatro, ficou decidido que a possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau não ofende o princípio constitucional da presunção da inocência. Para o relator do caso, ministro Teori Zavascki, a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas que assentaram a culpa do condenado, o que autoriza o início da execução da pena. Ocorre, no entanto, que o artigo 5°, inciso LVII, da Constituição Federal (CF), é categórico ao dizer ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (!). No caso, o STF reescreveu a Constituição, tornando-se, basicamente, um “terceiro-turno” constituinte. E as razões de fundo, quais foram? A pretensa sensação de impunidade que permeia o imaginário social, o necessário combate à corrupção público-administrativa, e etc. Isto é: com lastro em argumentos de política (e não de princípio), o Judiciário venceu a CF. Trata-se, assim, de um caso de descarado (mega)ativismo, afinal, por argumentos de moral e de política, reescreveuse diretamente o texto constitucional88. E exemplos outros não falta(ria)m89.

86

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 87 Ibid., p. 15. 88 Ver artigo de Aury Lopes Jr. sobre o tema. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-mar-04/limitepenal-fim-presuncao-inocencia-stf-nosso-juridico. Acesso em 10 jul. 2016. 89 A judicialização da saúde, que acaba por se transmudar em um manancial de decisões ativistas, é um bom exemplo, a partir do qual, em muitas hipóteses, direitos fundamentais do todo são sacrificados em prol das pretensões de um, apenas; também, por oportuno, não são raros os casos nos quais o Judiciário se arvora na promoção de políticas públicas, algo que compete aos demais Poderes (na discussão e na execução); etc.

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Logo, em conclusão, para que fique demasiado claro, ativismo e judicialização “[...] são temas que frequentam as grandes discussões da teoria jurídica brasileira.”90 Ocorre que judicializar a política “[...] pode não ser exatamente o mesmo que praticar ativismos.”91 Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é contingencial. Ela não é um mal em si. O problema é o ativismo (que é comportamental, espécie de behaviorismo cognitivointerpretativo)92.

4 JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA EM TEMPOS DE CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO – A JUDICIAL REVIEW COMO IMPORTANTE INSTRUMENTO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA ATIVIDADE ADMINISTRATIVA: O CONTRIBUTO DA CRÍTICA HERMENÊUTICA DO DIREITO DE LENIO STRECK E O NECESSÁRIO CONTROLE DAS DECISÕES JUDICIAIS NO CAMPO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

A renovada supremacia da Constituição vai além do controle de constitucionalidade e da tutela mais eficaz da esfera individual de liberdade. Com as Constituições democráticas do século XX assume um lugar de destaque outro aspecto, qual seja o da Constituição como norma diretiva fundamental, que se dirige aos poderes públicos e condiciona os particulares de tal maneira que assegura a realização dos direitos fundamentais-sociais (direitos sociais lato sensu, direito à educação, à subsistência ou ao trabalho). A nova concepção de constitucionalismo une precisamente a ideia de Constituição como norma fundamental de garantia com a noção de Constituição como norma diretiva fundamental93. No paradigma instituído pelo Estado Democrático de Direito, parece não restar dúvida de que houve uma alteração substancial no papel a ser desempenhado pelas Constituições. Seus textos possuem determinações de agir; suas normas possuem eficácia, já não sendo mais lícito desclassificar os sentidos exsurgentes desse plus normativo representado pela ideia de que a Constituição constitui-a-ação do Estado94. Ou seja, a noção de Estado Democrático de Direito está, pois, 90

STRECK, Lenio Luiz. O ativismo existe ou é imaginação de alguns? Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 13 jun. 2013. Disponível em: . Acesso em: 16 jul. 2016. online. 91 Ibid., online. 92 Ibid. 93 Id. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 94 Ibid.

24 [...] indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissociável que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito. Mais do que uma classificação de Estado ou de uma variante de sua evolução histórica, o Estado Democrático de Direito faz uma síntese das fases anteriores, agregando a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das etapas anteriores, representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tal como igualdade, justiça social e garantia dos direitos humanos fundamentais.95

A essa noção de Estado se acopla o conteúdo das Constituições, através do ideal de vida consubstanciado nos princípios que apontam para uma mudança no status quo da sociedade96. Por isso, conseguintemente, no Estado Democrático de Direito, “[...] a lei (Constituição) passa a ser uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigenteprincipiológico.”97 E, desse modo, “a noção de Estado Democrático de Direito – normatizada no art. 1º da Constituição do Brasil – demanda a existência de um núcleo (básico) que albergue as conquistas civilizatórias assentadas no binômio democracia e direitos humanos fundamentais-sociais. Esse núcleo derivado do Estado Democrático de Direito faz parte, hoje, de um núcleo básico geral-universal que comporta elementos que poderiam confortar uma teoria (geral) da Constituição e do constitucionalismo do Ocidente. Já os demais substratos constitucionais aptos a confortar uma compreensão adequada do conceito derivam das especificidades regionais e da identidade nacional de cada Estado98. Dito de outro modo, afora o núcleo mínimo universal, que pode ser considerado comum a todos os países que adotaram formas democrático-constitucionais de governo, há um núcleo específico de cada Constituição, que, inexoravelmente, será diferenciado de Estado para Estado. É o que se pode denominar núcleo de direitos sociais-fundamentais plasmados em cada texto que atendam ao cumprimento das promessas da modernidade. É nesse contexto que deve ser compreendido o plus normativo representado pelo Estado Democrático de Direito99. Em face disso, segundo Streck, a pergunta inevitável é “[...] como é possível que juízes (constitucionais ou não), não eleitos pelo voto popular, possam controlar e anular leis elaboradas por um poder eleito para tal e aplicadas por um Poder Executivo também

95

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 54. 96 Ibid. 97 Ibid., p. 54. 98 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Estado Democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. 99 Ibid.

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eleito?”100 O princípio da maioria pode ceder espaço para a supremacia da Constituição que estabelece, em seu texto, formas de controle sobre a assim denominada “[...] liberdade de conformação do legislador”?101 E, no mais, poderia o princípio da maioria ceder espaço para formas de controle na ação/execução do projeto nacional, a despeito da assim chamada “discricionariedade do administrador”? A resposta a essas indagações tem provocado aprofundados debates102. O que importa ressaltar, desde logo, é que a experiência de inúmeras nações tem apontado para o fato de que o Estado Democrático de Direito não pode funcionar sem uma justiça constitucional. Guardadas as especificidades dos vários países, a justiça constitucional é condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, questão que vem à tona desde o momento em que se passa a entender que as normas constitucionais são normas dotadas de eficácia, quando se abandona o conceito de Constituição no seu sentido meramente formal e programático103. Daí, ao final e ao cabo, que a compreensão acerca do significado do constitucionalismo contemporâneo, entendido como o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito, a toda evidência, “[...] implica a necessária compreensão da relação existente entre Constituição e jurisdição constitucional.”104 Isto significa afirmar que, enquanto a Constituição é o fundamento de validade (superior) do ordenamento e consubstanciadora da própria atividade político-estatal, a jurisdição constitucional passa a ser a condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito105. Esse reconhecimento do papel da justiça constitucional torna indispensável reconhecer a necessidade da intervenção de um poder (no caso, o Judiciário ou os Tribunais Constitucionais não pertencentes – stricto sensu – ao Judiciário), mediante o instrumento do controle de constitucionalidade106. É possível sustentar, dessa maneira, que no Estado Democrático de Direito, em face do caráter compromissório dos textos constitucionais e da noção de força normativa da Constituição, “[...] ocorre, por vezes, um deslocamento do polo de tensão dos demais poderes de Estado em direção da justiça constitucional”107. Com efeito, 100

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolzan de. Estado Democrático de Direito. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva: Almedina, 2013. p. 115. 101 Ibid., p. 115. 102 Neste exato sentido: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 103 Ibid. 104 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 37. 105 Ibid. 106 Ibid. 107 Ibid., p. 44.

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se no Estado Liberal a tensão se focava na vontade geral (Legislativo) e no Estado Social no Executivo, pela necessidade de resolver problemas sociais a partir de políticas públicas, no Estado Democrático de Direito engendra-se uma nova formulação nessa relação, na medida em que aumentam sensivelmente as demandas pela ação do Poder Judiciário, a ponto de, no limite, por vezes, admitir-se que inércias do Poder Executivo e falta de atuação do Poder Legislativo podem ser “supridas” pela atuação do Poder Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos previstos na Constituição que estabeleceu o Estado Democrático de Direito. Essa questão, entretanto, pode acender – como já dito – a luz amarela da democracia108. Nesse sentido, a advertência é de Streck, “[...] é preciso analisar e compreender o papel destinado à Justiça Constitucional no confronto com e entre os poderes do Estado, seus limites através da jurisdição constitucional, bem como as condições de possibilidade do exercício da assim denominada ‘liberdade de conformação do legislador’”109. Desde logo, parece razoável afirmar que a liberdade do legislador é mais restrita quando se trata de direitos de liberdade. Já quando se trata de liberdades econômicas, de mercado, ou de prestações sociais (políticas públicas), o leque de opções legislativas (e do Poder Executivo) é nitidamente maior, o que não significa que atos legislativos e de governo não tenham de estar indissociavelmente conformados com o texto da Constituição e sua materialidade110. Vale dizer, noutras palavras, que a liberdade de conformação do legislador, de uma forma ou de outra, é mais restrita neste estágio do constitucionalismo contemporâneo. A razão é evidente: uma Constituição que constitui, ou seja, uma Constituição dirigente e compromissória cujo conteúdo adquire status normativo e, com isso, passa a invadir a legalidade. Por oportuno, quanto à “liberdade de ação/inação do administrador/gestor”, ou quanto à assim denominada “discricionariedade administrativa”, restrições há, de igual maneira, tudo levando em conta que qualquer ação/inação do poder público deve(ria) estar, necessariamente, conforme para com o texto constitucional. De outro modo, para que fique claro, importa referir que a discricionariedade, tanto do legislador, quanto do gestor público, ou é reduzida ou não é admitida, porquanto ambos se encontram vinculados à Constituição. É evidente que ao dizer isso não estamos, pois, a sustentar que legislador e administrador não possam fazer escolhas. Trata-se, aqui, de prerrogativas inerentes à respectiva legitimidade política, cada qual no seu campo de ação. Ambos, no entanto, não podem agir a seu bel-prazer, até mesmo porque, 108

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 109 Ibid., p. 117. 110 Ibid.

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como condição de possibilidade (e existência) do Estado, há uma Constituição (e a Constituição precede ao governo, assim como o governo é criatura da Constituição, na dicção de Thomas Paine111), considerada em seu todo dirigente-principiológico (lembremo-nos de Canotilho e a tese da Constituição dirigente, e do mesmo Canotilho, quando o português acaba por conceituar a Constituição como estatuto mor do jurídico e do político112)113. É nesse contexto, logo, que assume relevância a jurisdição constitucional neste estágio do Estado Democrático de Direito e do constitucionalismo contemporâneo, conforme referido acima, seja no controle constitucional da atividade legislativa, seja quanto aos atos provenientes do poder executivo, seja na afirmação da força normativa da Constituição, da proteção dos direitos fundamentais-individuais e da realização dos direitos fundamentais-sociais, mormente em países como o Brasil (periféricos e de constitucionalismo e democracia tardios). Assim, por tudo, reitere-se: se a Constituição, no Estado Democrático de Direito, passa a ser o fundamento de validade superior do jurídico e do político, a jurisdição constitucional é, verdadeiramente, a condição de possibilidade da democracia. Isso gera tensões, no entanto. E a discussão que devemos travar é acerca de como essa intervenção do judiciário ou da jurisdição constitucional poderá se dar no âmbito da democracia, sem que, com isso, se venha a afrontar os próprios pilares do regime democrático. Essa nova conformação da relação entre os Poderes e órgãos do Estado – e me refiro especialmente à justiça constitucional – tem provocado acirrados debates acerca dos perigos que representa aquilo que vem sendo denominado de “ativismo judicial”. É evidente que a preocupação tem fundamento114. Dizendo de outro modo, “[...] a democracia corre perigo se a aplicação do direito pelos Tribunais (mormente os Constitucionais) é feita sem uma adequada teoria da decisão judicial”115. O afastamento do ativismo, do decisionismo e da

111

PAINE, Thomas. Rights of man: being an answer to Mr. Burke's attack on the French Revolution. The project Gutenberg etext of the writings of Thomas Paine.[S.l.:s.n.], 2003. v. II. 112 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina, 1999. 113 Daí a diferença entre o juiz, o legislador e o gestor. Juiz não faz escolhas. Não escolhe dentre uma ou outra opção. Juiz não legisla. Juiz não promove políticas públicas. Logo, vai dizer Streck: “[...]. Daí a diferença entre o legislador e o juiz. O juiz sempre terá ‘dúvidas’, que podemos chamar de ‘ontológicas’, mas, ao contrário do legislador, ele está vinculado a uma espécie de DNA do direito, formado pela doutrina lato sensu e a jurisprudência, o que faz com que seja obrigado a obedecer a coerência e a integridade do direito (reconstrução da história institucional). Por isso, o juiz não pode julgar conforme sua ‘vontade’ [...]”. (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. p. 117). 114 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 115 Ibid., p. 121.

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discricionariedade judicial passa a condição de possibilidade de sobrevivência do paradigma do Estado Constitucional e Democrático116. Com efeito, a Constituição brasileira possui “[...] um leque de direitos fundamentaissociais”117. Consequentemente, a judicialização se tornou inevitável (o problema, na verdade, foi a confusão feita em terrae brasilis entre judicialização, que é contingente, e ativismo, que é uma forma antidemocrática de substituição dos juízos morais, políticos e econômicos – que devem ser feitos pelos Poderes Executivo e Legislativo – pelo Judiciário). Mas, insisto: se a judicialização é inevitável – e a história recente do Brasil aponta para essa realidade -, foi pela falta de um efetivo controle hermenêutico das decisões judiciais que esta, a judicialização, foi transformada na vulgata do ativismo118,119. De tudo, enfim, que foi colocado, é possível extrair que o constitucionalismo – na versão instituidora do Estado Democrático de Direito – é o legado mais importante do século XX e do século XXI. Uma Constituição normativa, dirigente e principiológica, com um extenso rol de direitos e garantias individuais e de direitos sociais e coletivos, pode-se dizer, é a grande conquista do segundo pós-guerra. Ocorre que a Constituição, sobretudo uma Constituição como a brasileira, depende de mecanismos que assegurem as condições de possibilidade para a implementação do seu texto. Como diz Lenio Streck, “[...] o Estado Democrático de Direito não é algo separado de nós [...]” (!)120. Como ente disponível, é alcançado pré-ontologicamente. Ele se dá como um acontecer. Nesse sentido, é possível dizer que o agir jurídico-político dos atores sociais encarregados institucionalmente de efetivar políticas públicas (lato sensu) acontece nessa manifestação prévia, em que já existe um processo de compreensão. É nesse contexto que se assenta a legitimidade da justiça constitucional no quadro do Estado Democrático de Direito, não somente na especificidade própria dos tribunais ad hoc, mas na existencialidade (no sentido hermenêutico) dos pilares que fundamentam essa mesma noção. Disso se pode concluir que, enquanto existencial, o Estado Democrático de Direito fundamenta, antecipadamente (círculo hermenêutico), a legitimidade de um órgão estatal que tem a função de resguardar os fundamentos (direitos sociais-fundamentais e democracia) desse modelo de Estado. O caráter existencial do Estado Democrático de Direito passa a ser, nessa espiral hermenêutica, a condição de possibilidade do agir legítimo de uma instância encarregada até mesmo – no limite – de viabilizar (não realizar!) decorrentes de inconstitucionalidades por omissão, 116

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 117 Ibid., p. 121. 118 Ibid. 119 Vide capítulo terceiro. 120 STRECK, op. cit., p. 125.

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constituindo-se em remédio (por vezes amargo, mas necessário) contra a atuação das maiorias121. Por isso, quando perguntamos pela legitimidade desse agir da justiça constitucional, “[...] a resposta já encontrou guarida, desde há muito tempo, no caráter existencial do Estado Democrático de Direito, fulcrado no modo-de-ser próprio das democracias engendradas pela tradição do segundo pós-guerra.”122 Noutras palavras, se a função mor do Estado Democrático de Direito é a realização dos direitos fundamentais (individuais e sociais) e a preservação da democracia, a instrumentalização dos direitos constitucionais e a aferição da conformidade das leis ou atos administrativos para com os textos constitucionais se estabelece através da jurisdição constitucional. Daí que a validade dos atos legislativos e administrativos não só pode, como deve ser realizada pela intervenção da jurisdição constitucional. Também, por oportuno, considerando o estágio hodierno, é inexorável que haja um tensionamento entre os poderes da República, de modo que, com todas as reservas e cuidados, pode-se admitir, por vezes, que inércias dos demais Poderes sejam supridas pelo judiciário, desde que mediante os mecanismos próprios e constitucionalmente estatuídos. Porém, o alerta final é impositivo: o Direito, neste estágio, deve sim ser visto como “[...] um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas.”123 No afã de realizar pretensas reivindicações, não se pode, no entanto, pôr em xeque a própria autonomia do direito e a democracia. Há que se ter, então, um paradigma hermenêutico condizente com o Estado Democrático de Direito ou com o constitucionalismo emergente deste paradigma, até mesmo para possibilitar, no âmbito de um Estado assim designado, uma interpretação que permita ao texto constitucional (e legal, desde que condizente com a CF) acontecer de maneira “fidedigna” ou, para outros, “autêntica”, valendo, enfim, dizer: sem discricionariedades e decisionismos. Nesse campo, a Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck se afigura como condição de possibilidade de um agir constitucional(izado). Desse modo, é que, de maneira a assegurar a autonomia do Direito e a força normativa da Constituição neste estágio do Estado Democrático de Direito, bem assim a estrutura da legalidade (entendida hoje como uma legalidade constitucional, para além da legalidade típica do positivismo exegético), e com inspiração na filosofia hermenêutica de Heidegger, na hermenêutica filosófica de Gadamer e nas teses de Ronald Dworkin (moralidade pública, responsabilidade política dos juízes, 121

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. 122 Ibid., p. 126. 123 Id. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014b. p. 48.

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coerência e integridade do Direito), a crítica hermenêutica de Lenio Streck vem propor um conjunto mínimo de princípios hermenêuticos, todos a serem seguidos pelo intérpreteaplicador. Tais princípios, sustentados na historicidade da compreensão e na sedimentação dessa principiologia, somente se manifestam quando colocados em um âmbito de reflexão que é radicalmente prático-concreto, pois representam um contexto de significações históricas compartilhadas por uma determinada comunidade política. A interpretação do direito somente tem sentido se implicar um rigoroso controle das decisões judiciais, porque se trata, fundamentalmente, de uma questão que atinge o cerne desse novo paradigma: a democracia. E sobre isso parece não haver desacordo.124 Os princípios são os seguintes:

a) Princípio Um: a preservação da autonomia do direito: a Constituição é norma e vincula. Trata-se, também, de uma garantia contra o poder majoritário, no sentido de que sustentar uma legalidade na jurisdição e a partir dela. Assim, a partir daí, nesse novo paradigma, o direito deve ser compreendido no contexto de uma crescente autonomização, alcançada diante dos fracassos da falta de controle da e sobre a política. Logo, a Constituição, dessa maneira, é a manifestação deste (acentuado) grau de autonomia do direito, [...] devendo este ser entendido na sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele intercambiáveis, como, por exemplo, a política, a economia e a moral (e aqui há que se ter especial atenção, uma vez que a moral tem sido utilizada como a “porta de entrada” dos discursos adjudicadores com pretensões corretivas do direito, trazendo consigo a política e a análise econômica do direito)125;

b) Princípio Dois: o controle hermenêutico da interpretação constitucional, a superação da discricionariedade (tipicamente positivista) e o papel de “constrangimento

epistemológico”

destinado

à

doutrina:

A

partir

do

“encurtamento” do espaço de manobra e conformação do legislador e do consequente aumento da proteção contra maiorias (eventuais ou não) – cerne do contramajoritarismo –, parece evidente que, para a preservação do nível de autonomia conquistado pelo direito, é absolutamente necessário implementar mecanismos de controle daquilo que é o repositório do deslocamento do polo de tensão da legislação para a jurisdição: as decisões judiciais. Em outras palavras, a autonomia 124

do

direito

e

a

sua

umbilical

ligação

com

a

dicotomia

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 27-28. 125 Ibid., p. 28-29.

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“democracia/constitucionalismo” exigem da teoria constitucional uma reflexão de cunho hermenêutico126. Importa referir, ademais, que a defesa de um efetivo controle hermenêutico das decisões judiciais, a partir do dever fundamental de justificação e do respeito à autonomia do direito, não quer dizer que, por vezes, não seja aconselhável e necessário uma atuação propositiva do Poder Judiciário (justiça constitucional), mormente se pensarmos no indispensável controle de constitucionalidade que deve ser feito até mesmo, no limite, nas políticas públicas. Entretanto, a defesa de posturas substancialistas e concretistas acerca da utilização da jurisdição constitucional – que implica inexorável avanço em relação às tradicionais posturas self restraining – não pode ser confundida com decisionismos e atitudes pragmati(ci)stas, em que o Judiciário se substitui ao legislador, com o aumento desmesurado de protagonismos judiciais, problemática bem presente e facilmente detectável no direito de terrae brasilis. Deve-se evitar aquilo que se denomina de “ativismo”. Ou seja, deve-se ter bem clara a distinção entre judicialização, que é contingencial e produto de (in)competências na relação entre os Poderes, e ativismo, que é sempre decorrente de um problema solipsistacomportamental127. Por fim, quanto ao “constrangimento epistemológico destinado à doutrina”, tal pressuposto resume-se ao seguinte verbete: “a doutrina deve voltar a doutrinar” (Streck). Ou seja: o papel da doutrina de hoje é basicamente de mero espectador do protagonismo judicial, Daí que Streck irá clamar por uma “accontability hermenêutica”, no sentido de que, para ser efetivamente doutrina, “[...] esta deve constranger epistemologicamente a operacionalidade do direito. Trata-se de ‘hermeneutizar’ a doutrina do direito, fazendo com que a teoria do direito seja alçada à condição de possibilidade de qualquer interpretação-aplicação”128; c) Princípio Três: o respeito à integridade e à coerência do direito: o respeito à integridade e à coerência engloba princípios (que, por vezes, se confundem com “métodos” de interpretação) construídos ao longo dos anos pela teoria constitucional, tais como o princípio da unidade da Constituição, o princípio da concordância prática entre as normas ou da harmonização, o princípio da eficácia integradora ou do efeito integrador, e até mesmo o princípio da proporcionalidade 126

STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 127 Ibid., p. 30. 128 Ibid., p. 31.

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(embora seu uso descriterioso o tenha desgastado entre nós), entendido como fairness (equanimidade), além da exigência do tratamento igualitário (equal concern and respect), como diria Dworkin. Seja o nome que a eles se dê, trata-se de padrões interpretativos relevantes para a consolidação da força normativa da Constituição. A integridade está umbilicalmente ligada à democracia, exigindo que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do direito129. Trata-se, pois, de “consistência articulada”. Com isso, afasta-se, de pronto, tanto o ponto de vista objetivista, pelo qual “o texto carrega consigo a sua própria norma” (lei é lei em si), como o ponto de vista subjetivista-pragmatista, para o qual a norma pode fazer soçobrar o texto. Ou seja, esse respeito à tradição, ínsito à integridade e à coerência (que é consistência “em princípio”, ou seja, a decisão deve expressar uma expressão unitária – e não ad hoc – de justiça), é substancialmente antirrelativista e deve servir de blindagem contra subjetivismos e objetivismos130. Em suma: haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada a integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário. Isso somente pode ser alcançado através de um holismo interpretativo, constituído a partir de uma circularidade hermenêutica. Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma coerente ao conjunto

do

direito,

constituindo

uma

garantia

contra

arbitrariedades

interpretativas; coloca efetivos freios às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Dito de outro modo, enquanto a coerência significa dizer que, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonomia dos princípios subjacentes nesta cadeia, a integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma a manifestar um direito íntegro, e não algo fragmentado, como um aglomerado de

129 130

DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 176. STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a.

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decisões que refletem apenas perspectivas individuais. Trata-se de uma garantia contra arbitrariedades interpretativas. A integridade é uma forma de virtude política que significa rechaçar a tentação da arbitrariedade131,132; d) Princípio Quatro: o dever fundamental de justificar as decisões (a fundamentação da fundamentação): Se nos colocamos de acordo que a hermenêutica a ser praticada no Estado Democrático de Direito não pode deslegitimar o texto jurídico-constitucional produzido democraticamente, parece evidente que há uma forte responsabilidade política dos juízes e tribunais, circunstância que foi albergada no texto da Constituição, na especificidade do art. 93, IX, que determina, embora com outras palavras, que o juiz explicite as condições pelas quais compreendeu. Isso é o que se pode chamar de “o espaço epistemológico da decisão”133. O dever de fundamentar as decisões (e não somente a decisão final, mas todas as do iter) está assentado em um novo patamar de participação das partes no processo decisório. A fundamentação está ligada ao controle das decisões, e o controle depende dessa alteração paradigmática no papel das partes da relação jurídico-processual. Por isso, o protagonismo judicial-processual deve soçobrar diante de uma adequada garantia ao contraditório e dos princípios já delineados. Decisões de caráter “cognitivista”, de ofício ou que, serodiamente, ainda buscam a “verdade real” se pretendem “imunes” ao controle intersubjetivo e, por tais razões, são incompatíveis com o paradigma do Estado Democrático134,135;

131

STRECK, Lenio Luiz. A crítica hermenêutica do Direito e o Novo Código de Processo Civil: apontamentos sobre a coerência e a integridade. In: CONSTITUIÇÃO, sistemas sociais e hermenêutica jurídica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos. Mestrado e Doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014a. n. 11. p. 157-168. 132 O NCPC/2015, em seu artigo 926, contemplou, a partir daquilo que se convencionou chamar de emenda dworkiniana/streckiana, a integridade e a coerência do direito, tudo ao professar o seguinte: Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. 133 STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. p. 32. 134 Ibid. 135 O §1° do artigo 489 do NCPC contemplou, pode-se dizer, esse dever de accontability da decisões judiciais, tudo ao disciplinar o seguinte: Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

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e) Princípio Cinco: o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada: Há, pois, um direito fundamental ao cumprimento da Constituição. Mais do que isso, trata-se de um direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição ou, se assim se quiser, uma resposta constitucionalmente adequada (ou, ainda, uma resposta hermeneuticamente correta em relação à Constituição). Antes de qualquer outra análise, deve-se sempre perquirir a compatibilidade constitucional da norma jurídica com a Constituição e a existência de eventual contradição. Deve-se sempre perguntar se, à luz dos princípios e dos preceitos constitucionais, a norma é aplicável ao caso. Mais ainda, há de se indagar em que sentido aponta a pré-compreensão (Vorverständnis), condição para a compreensão do fenômeno. Para interpretar, é necessário compreender (verstehen) o que se quer interpretar. Este “estar diante” de algo (verstehen) é condição de possibilidade do agir dos juristas: a Constituição136. O direito fundamental a uma resposta adequada à Constituição, mais do que o assentamento de uma perspectiva democrática (portanto, de tratamento equânime, respeito ao contraditório e à produção democrática legislativa), é um “produto” filosófico, porque caudatário de um novo paradigma que ultrapassa o esquema sujeito-objeto predominante nas duas metafísicas (clássica e moderna)137,138.

De igual forma, de mais a mais, o advento e a plenitude do Estado Democrático de Direito, e todas as respectivas (e indissociáveis) características, oportuno frisar, no mais, que a legislação democraticamente construída deve ser preservada e resguarda de eventuais

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STRECK, Lenio Luiz. As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis. Revista Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 10, n. 10, p. 2-37, jul./dez. 2011a. 137 Ibid., p. 34. 138 Decisão adequada constitucionalmente, quanto à matéria que envolve a questão administrativa e a realização dos direitos fundamentais-sociais no Brasil, é a decisão originária da Comarca de Joinville (SC), na qual o juiz Alexandre Morais da Rosa, atendendo ação civil pública proposta pelo Ministério Público, “determinou à municipalidade a criação de 2.948 vagas de ensino fundamental na rede pública de ensino. No caso, a municipalidade havia preferido colocar determinada verba em favor de um clube de futebol (Joinvile Esporte Clube, que disputava a terceira divisão do Campeonato Brasileiro” (STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011b. p. 178). Tratase, aqui, de uma resposta constitucionalmente adequada, algo que só poderá despontar, diga-se de passagem, perante a situação concreta, que acabará por servir de parâmetro. A justificação desta afirmativa reside no fato de o Município ter recursos disponíveis em caixa. Mesmo tendo recursos, preferiu, a Municipalidade, aportá-los junto a um clube de futebol da terceira divisão do campeonato brasileiro, em detrimento do atendimento dos direitos fundamentais-sociais da comunidade local. Ora, a CF demarca horizonte segundo o qual o Brasil é uma República que visa erradicar a pobreza e etc. O mesmo texto constitucional, por sua vez, traz extenso rol de direitos fundamentais-sociais, dentre eles a educação. Nada mais correto, portanto, do que fazer valer o texto constitucional. Registre-se, no mais, mais uma vez: o Município tinha o recurso em caixa. Ciente dessa realidade, e por meio do exercício da jurisdição constitucional, andou bem a decisão em voga.

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investidas (antidemocráticas) por parte dos juízes e Tribunais, de modo que a (in)aplicação do arcabouço normativo infraconstitucional (leis, decretos, regulamentos, portarias e afins) deverá restar sempre condicionada ao exercício da jurisdição constitucional. Logo, finalmente, à luz da crítica hermenêutica do Direito de Lenio Streck, seriam apenas seis as hipóteses pelas quais o juiz ou o tribunal não estaria obrigado a aplicar determinada lei ou dispositivo legal, hipóteses estas, reitere-se, inexoravelmente vinculadas ao chamamento da jurisdição constitucional. Senão vejamos: a) o ato normativo é inconstitucional, assim declarado via controle difuso ou controle concentrado de constitucionalidade; b) aplicação dos critérios de resolução de antinomias (Lex posteiori derogat legi priori; Lex specialis derogat legi generalis; Lex superior derogat legi inferior); c) interpretação conforme à Constituição; d) nulidade parcial sem redução de texto; e) nulidade parcial com redução de texto; f) a regra jurídica viola um princípio constitucional139. Por derradeiro, atrelado a isso, cumpre trazer a baila alguns critérios específicos de “intervenção judicial” no cenário das políticas públicas, os quais se encontram muito bem assentados em artigo140 por Temis Limberger, e, diga-se de passagem, foram erguidos intimamente vinculados a preceitos e princípios constitucionais. Nesse caminhar, parece-nos claro que é cabível “[...] a intervenção judicial dentro da perspectiva da busca da escolha adequada.”141 Partindo-se dessa premissa, passa-se, finalmente, “[...] a busca dos critérios para nortear a interpretação jurisprudencial [...]”142, critérios estes que deverão, necessariamente, estar vinculados ao que acima foi exposto quando de eventual intervenção do judiciário, até mesmo porque, se a jurisdição constitucional passa a ser, neste estágio, verdadeira condição de possibilidade da democracia, parece-nos evidente que ela ou o respectivo exercício não podem atacar o próprio regime. Logo: primeiro, a formulação de políticas públicas cabe aos poderes Legislativo e Executivo, uma vez que essas opções são uma decorrência da democracia representativa e, por vezes, da participativa. Não cabe aí uma manifestação jurisprudencial, portanto143. Segundo, nos casos de ineficiência ou omissão na execução das políticas públicas, cabe a intervenção judicial. Aí podem aparecer algumas situações. O Judiciário está autorizado a intervir, quando o poder público não fizer o aporte 139

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014c. cap. V e VI. 140 LIMBERGER, Têmis. Direito à saúde e políticas públicas: a necessidade de critérios judiciais, a partir dos preceitos constitucionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 251, p. 180-199, 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2016. 141 Ibid., p. 195. 142 Ibid., p. 195. 143 Ibid.

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exigido na Constituição144. As atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos. O termo público denota dois fenômenos intimamente correlatos, mas não perfeitamente idênticos. Significa, em primeiro lugar, que tudo o que vem a público pode ser visto e ouvido por todos e tem a maior divulgação possível. Torna-se aparente aquilo que é visualizado e ouvido pelos outros e nós mesmos, constituindo-se na realidade. Segundo, público significa o próprio mundo, na medida em que é comum a todos nós e diferente do lugar que nos cabe dentro dele. Se o mundo deve conter um espaço público, não pode ser construído apenas para uma geração e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender a vida de homens mortais145. Dentro dessa perspectiva, é de se concluir que as decisões judiciais envoltas à questão do implemento das políticas públicas, seja na saúde ou em qualquer outra prestação de caráter social negada pelo Estado-executivo ou pelo Estadolegislativo,

[...] não devem ser pautadas pelo casuísmo, ou no dizer de Streck (2008:99), de modo solipsista, mas dentro de uma perspectiva de cumprimento do texto constitucional, em busca da resposta adequada dentro dos parâmetros preceituados pela Constituição Federal, sob pena de não haver avanços para as próximas gerações.146

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O escopo central deste artigo residiu em demonstrar a importância da jurisdição constitucional para a democratização da atividade administrativa, sobretudo neste estágio do constitucionalismo contemporâneo que assentou o Estado Democrático de Direito. Com efeito, o Estado Democrático de Direito adquire um caráter de transformação da realidade. A noção de Estado Democrático de Direito se encontra, pois, vinculada estritamente à relação dos direitos fundamentais (individuais, sociais e coletivos). Desse liame, por sua vez, exsurge aquilo que Lenio Streck costuma chamada de plus normativo do Estado Democrático de Direito. E é exatamente por isso que aumenta sensivelmente o polo de tensão em direção da grande invenção contramajoritária: a jurisdição constitucional, que, no Estado Democrático de

144

LIMBERGER, Têmis. Direito à saúde e políticas públicas: a necessidade de critérios judiciais, a partir dos preceitos constitucionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 251, p. 180-199, 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2016. 145 Ibid. 146 STRECK, Lenio Luiz. Decisionismo e discricionariedade judicial em tempos pós-positivistas: o solipsismo hermenêutico e os obstáculos à concretização da Constituição no Brasil. Separata: o Direito e o Futuro do Direito. Coimbra: Almedina, 2008 apud LIMBERGER, op. cit., p. 18.

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Direito, vai se transformar na garantidora dos direitos fundamentais-sociais e da própria democracia. A Constituição brasileira (que constitui o Estado Democrático de Direito brasileiro), definitivamente, é uma Carta dirigente e compromissória, com plena densidade normativa e que, assim sendo, acaba por constituir-a-ação-do-Estado (Streck). De igual maneira, trata-se de uma Lei Maior com um extenso rol de direitos e garantias individuais, direitos sociais e coletivos, e que, com isso, acaba por expandir a dimensão hermenêutica do Direito, para utilizar expressão de Lenio Streck. Assim sendo, uma Constituição rica em direitos fundamentais como a brasileira requer(erá), inexoravelmente, mecanismos que garantam a sua plena eficácia. Eis, logo, a relevância do Poder Judiciário ou da Jurisdição Constitucional nesta quadra da história. Vale dizer: se a Constituição é o fundamento (superior) de validade do jurídico e do político, a jurisdição constitucional é a sua condição de possibilidade. Em que pese à forte carga normativa da Constituição brasileira de 1988, bem assim este rico rol de direitos e garantias fundamentais individuais e sociais, cuja razão de ser do Estado Democrático de Direito é justamente a respectiva proteção e realização, além de um aprofundamento democrático cada vez maior, não é novidade que o Executivo e o Legislativo têm falhado no adimplemento desses direitos, cada qual naquilo que lhe compete. Com relação à perfectibilização das políticas públicas, até mesmo aquelas mais básicas, temos muito a caminhar, sobretudo em uma realidade que denota um país (ainda hoje) periférico, no qual o próprio Estado-Social não passou de uma mera caricatura. Nesse contexto, uma pergunta é salutar: o constitucionalismo morreu? Ou, de outro modo, a tese da Constituição dirigente e compromissória (Canotilho/Streck) se exauriu? Parece-nos evidente que não. Ao contrário, à luz da realidade brasileira, a Constituição deve ainda ser efetivada na sua plenitude, ao que, passamos quase 28 anos da instituição do Estado Democrático de Direito brasileiro, não ocorreu. Daí que a jurisdição constitucional, nesta atual quadra da história, se afigura como importante instrumento de realização dos direitos fundamentais do cidadão, como demonstrado. Trata-se, pois, de relevante mecanismo destinado à plena realização do texto constitucional. No entanto, é equivocado (e ingênuo) pensar que o judiciário poderia ser o locus de solução dos problemas sociais brasileiros. De igual forma, se assume relevância a jurisdição constitucional neste estágio do Estado Democrático de Direito e do constitucionalismo contemporâneo, seja no controle constitucional da atividade legislativa, seja quanto aos atos provenientes do poder executivo, seja na afirmação da força normativa da Constituição, da proteção dos direitos fundamentais-individuais e da realização dos direitos

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fundamentais-sociais, mormente em países como o Brasil (periféricos e de constitucionalismo e democracia tardios), afigurando-se a jurisdição constitucional como importante instrumento de realização do texto constitucional, e, logo, de otimização e democratização da administração pública, é inexorável perquirir acerca de como essa intervenção do judiciário ou da jurisdição constitucional poderá se dar no âmbito da democracia, sem que, com isso, se venha a afrontar os próprios pilares do regime democrático. Ou seja: no afã de realizar pretensas reivindicações, não se pode, no entanto, pôr em xeque a própria autonomia do direito e a democracia. Há que se ter, então, um paradigma hermenêutico condizente com o Estado Democrático de Direito ou com o constitucionalismo emergente deste paradigma, até mesmo para possibilitar, no âmbito de um Estado assim designado, uma interpretação que permita ao texto constitucional (e legal, desde que condizente com a CF) acontecer de maneira

“fidedigna”

ou,

para

outros,

“autêntica”,

valendo,

enfim,

dizer:

sem

discricionariedades e decisionismos. Nesse campo, procurou-se sustentar a Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck como condição de possibilidade de um agir constitucional(izado) da jurisdição, em especial no que tange à democratização da atividade administrativa, seja quanto aos respectivos atos, seja na consecução dos direitos fundamentais encartados no texto constitucional. Desse modo, é que, de maneira a assegurar a autonomia do Direito e a força normativa da Constituição neste estágio do Estado Democrático de Direito, bem assim a estrutura da legalidade lato sensu (entendida hoje como uma legalidade constitucional), e o princípio da igualdade, exsurgiram cinco princípios hermenêuticos tendentes a resguardar a autonomia do direito nesta quadra do constitucionalismo emergente do Estado Democrático de Direito: a preservação da autonomia do direito; o controle hermenêutico da interpretação constitucional, a superação da discricionariedade (tipicamente positivista) e o papel de “constrangimento epistemológico” destinado à doutrina; o respeito à integridade e à coerência do direito; o dever fundamental de justificar as decisões; o direito fundamental a uma resposta constitucionalmente adequada. Também, por oportuno, considerando o advento e a plenitude do Estado Democrático de Direito, e todas as suas (indissociáveis), conclui-se no sentido de que se deve louvar a legislação democraticamente construída, de modo que a (in)aplicação do arcabouço normativo infraconstitucional restará sempre condicionado ao exercício da jurisdição constitucional. Assim, teríamos apenas seis hipóteses pelas quais o juiz ou o tribunal não estaria obrigado a aplicar determinada lei ou dispositivo legal, quais sejam: a) o ato normativo é inconstitucional, assim declarado via controle difuso ou controle concentrado de constitucionalidade; b) aplicação dos critérios de resolução de antinomias (Lex posteiori

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derogat legi priori; Lex specialis derogat legi generalis; Lex superior derogat legi inferior); c) interpretação conforme à Constituição; d) nulidade parcial sem redução de texto; e) nulidade parcial com redução de texto; f) a regra jurídica viola um princípio constitucional. De mais a mais, em específico, a intervenção jurisdicional neste campo só poderia restar efetivada se alinhada para com tais princípios. E com outros, diga-se de passagem, como que em um condicionamento recíproco. Nesse caminhar, se a jurisdição constitucional passa a ser, neste estágio, verdadeira condição de possibilidade da democracia, parece-nos evidente que ela ou o respectivo exercício não podem atacar o próprio regime. Logo: a formulação de políticas públicas cabe aos poderes Legislativo e Executivo, uma vez que essas opções são uma decorrência da democracia representativa e, por vezes, da participativa. Não cabe aí uma manifestação jurisprudencial, portanto147. Já “[...] nos casos de ineficiência ou omissão na execução das políticas públicas, cabe(ria) a intervenção judicial.”148 Aí podem aparecer algumas situações. O Judiciário está autorizado a intervir, quando o poder público não fizer o aporte exigido na Constituição149. Dentro dessa perspectiva, é de se concluir que as decisões judiciais envoltas à questão do implemento das políticas públicas, seja na saúde ou em qualquer outra prestação de caráter social negada pelo Estado-executivo ou pelo Estadolegislativo, [...] não devem ser pautadas pelo casuísmo, ou no dizer de Streck (2008:99), de modo solipsista, mas dentro de uma perspectiva de cumprimento do texto constitucional, em busca da resposta adequada dentro dos parâmetros preceituados pela Constituição Federal, sob pena de não haver avanços para as próximas gerações.150

A judicialização da política, por fatores de natureza contingencial (e circunstancial)151, é marcante no espaço público brasileiro. A jurisdição constitucional vez mais tem sido chamada a se manifestar sobre os temas mais variados e, em muito, para garantir os direitos fundamentais-sociais do cidadão. Porém, não pode, o Judiciário, utilizar a judicialização dessas matérias como álibi à prática de ativismos (decisionismos e discricionariedades). O ativismo judicial, como demonstrado, é um fenômeno que deriva de um elemento volitivo do 147

LIMBERGER, Têmis. Direito à saúde e políticas públicas: a necessidade de critérios judiciais, a partir dos preceitos constitucionais. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 251, p. 180-199, 2009. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2016. 148 Ibid., 195. 149 Ibid. 150 STRECK, Lenio Luiz. Decisionismo e discricionariedade judicial em tempos pós-positivistas: o solipsismo hermenêutico e os obstáculos à concretização da Constituição no Brasil. Separata: o Direito e o Futuro do Direito. Coimbra: Almedina, 2008 apud LIMBERGER, op. cit., p. 18. 151 Vide capítulo 3.

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intérprete-aplicador, a partir do qual o direito ou a sua autonomia estaria (e assim o é!) a ser substituído pela vontade do próprio, materializada, ao final e ao cabo, por argumentos de moral e de política (e/ou de economia, não raro) em detrimento dos argumentos de princípio. A judicialização da política (da vida ou do social), assim sendo, não é um mal em si. O ativismo, por outro lado, é sempre nocivo, representando, sobremaneira, o soçobrar do Direito em prol das convicções pessoais do intérprete, e dos seus consectários.

The judicialization of politics and public administration in times of contemporary constitutionalism: the importance of judicial review for the democratization of administrative activity

ABSTRACT One of the main features of contemporary constitutionalism (considered originated after the Second World War) is the displacement of tension pole of other Powers (legislative and executive) towards the Constitutional Jurisdiction. In this sense, this paper aims to question to what extent the constitutional jurisdiction could be a mechanism for the democratization of administrative activity in terrae brasilis, without the constitutional jurisdiction would pose an undue interference in the other powers of the Republic. Starting from the premise that constitutionalism from the Democratic State of Law aims to deepen democracy. Therefore, this paper seeks to shed light on the control of the actions / inactions of public administration in the Brazilian scene, so that the constitutional jurisdiction is effectively perceived as a mechanism not only to control, but also to democratize the administrative activity, provided, however, in accordance with democratic principles, in the wake of Hermeneutics Critical of Law developed by Lenio Streck. Keywords: Constitutionalism Contemporary. Administrative Acts. Constitutional jurisdiction.

Public

administration.

Control

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