Justiça comunitária em sociedades multiculturais – avanços e obstáculos do perspectivismo na América Latina

October 10, 2017 | Autor: R. Alberti da Rosa | Categoria: Ética, América Latina, Justiça, Indígenas, Constituição
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Justiça comunitária em sociedades multiculturais – avanços e obstáculos do perspectivismo na América Latina Prof. Dr. Ronel Alberti da Rosa A esfera pública na América Latina prima historicamente pela reduzida participação que sempre concedeu aos representantes dos povos originários daquele continente. Nos últimos anos, alguns países da cordilheira dos Andes iniciaram um processo de reformas constitucionais que abre a possibilidade não apenas de inclusão das comunidades indígenas nas estâncias decisórias nacionais, mas propõe o avanço até a equiparação da justiça tradicional de seus povos com as modernas constituições positivadas desses estados. É o caso de Equador, Perú, e especialmente Bolívia, onde a Nova Constituição Política do Estado, aprovada em janeiro de 2009, concede direitos especiais como grupo às etnias indígenas. De agora em diante, dependendo da situação, esses grupos poderão aplicar sua própria justiça comunitária, caracterizando uma acomodação de dois tipos de direito, o positivado de tradição iluminista e o autóctone. A experiência latino-americana não é a primeira: também países como o Canadá e a Malásia tradicionalmente acolhem mais de uma possibilidade jurídica para seus nacionais. Nas novas constituições de Bolívia, Equador e Perú, contudo, as terras indígenas passaram a ser reconhecidas como circunscrições legais onde, além de existir a possibilidade de aplicação de mecanismos judiciais próprios, exige-se que leis que porventura afetem seus territórios e recursos nacionais precisem passar por um referendo nas comarcas em questão. A inclusão do provérbio quíchua Ama quilla, ama llulla, ama hua! (Não ser preguiçoso, não mentir, não roubar!) no artigo 97/20 da constituição equatoriana de 1998 é um indicativo de que a Assembléia Constituinte desse país pretendeu experimentar um caminho diferente: em vez de apenas permitir às comunidades quíchuas e aymarás o emprego de seus costumes ancestrais, ela trouxe valores desses povos para o texto da nova constituição, invertendo o sentido tradicional da arquitetura jurídica, que agora passa a apontar também do comunitário para o geral, formalizando dessa forma um perspectivismo jurisdicional inédito no continente. Os muitos ataques que essas novas propostas vêm sofrendo por parte da mídia norte-americana, sem esquecer a revista brasileira VEJA, não devem nos desestimular a investigar suas possibilidades de aplicação em sociedades multiculturais, as quais parecem indicar uma renovação do conceito de participação cidadã e um novo patamar - baseado na perspectiva, em vez da hierarquia - para organizar as relações infraconstitucionais. O primeiro conceito que gostaríamos de examinar neste trabalho é o de multiculturalidade, e por analogia, o de multirracialidade. Consideremos como cenário político mundial o fato de que, em 1976, entrava em vigor o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, firmado no âmbito das Nações Unidas dez anos antes, portanto em 1966. No artigo 26, lemos textualmente: “Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou lingüísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas

2 do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.”

Aprovado pela comunidade das nações, esse documento ingressou na ordem jurídica de meu país, o Brasil, em 1992, depois de aprovado pelo congresso. Não é preciso pensar muito para darmo-nos conta de que, sem a definição do que sejam os critérios para determinar uma etnia, a carta da ONU permanece letra morta. É comum às ciências humanas o esforço de superar as dificuldades biológicas de diferenciação, ao fazer com que o conceito de ‘etnia’ seja transferido a valores culturais. O próprio artigo da convenção da ONU reconhece isso implicitamente. O mesmo acontece com o conceito de multirracialidade, que pretende abranger a convivência de várias etnias em um mesmo espaço nacional. Se consultarmos, seguindo a sugestão de Will Kimlicka, em seu livro Cidadania multicultural, o Dicionário Oxford de língua inglesa, encontraremos no verbete ‘cultura’ a explicação que esta –a cultura – etária nos costumes, ou na civilização de um grupo. O que, por sua vez, parece nos enviar, como um argumento tautológico, de volta ao ponto de partida: dessa forma, mesmo a sociedade mais uniforme e indiferenciada existiria em um estado de latente multiculturalidade. As chamadas ‘tribos’ da pós modernidade, com seu afã de diferenciação, se fazem presentes em todos os espaços da vida, e atestam a possibilidade de convivência de culturas paralelas em um mesmo locus. Essa multiculturalidade, contudo, mantém – e faz questão de manter laços de reconhecimento intraculturais, que é sua base contratual e que, por um lado, fornece garantias para sua prática, legitimando as suas diferenças, enquanto, por outro, faz com que a convivência se dê no interior de um grupo maior, a que talvez possamos chamar de nacional. E, quando coabitam vários subgrupos nacionais dentro de linhas de fronteira, podemos falar de multinacionalidade, ou plurinacionalidade. Em 2009, a República da Bolívia aprovou sua Nova Constituição Política do Estado, e trocou o nome do país para Estado Plurinacional da Bolívia. Esta troca não assinala um momento sintético final de transformação naquele país andino, e sim parece apontar para um processo de transição que está ainda em andamento. Ao ler seus extensos 411 artigos, o que fica evidente é a intenção dos constituintes em marcar a transição de um estado unitário e social a um estado plurinacional. O caso boliviano é apenas um entre muitos na América do Sul: o continente, depois de passar a segunda metade do século XX mergulhado em ditaduras militares de direita, inaugurou uma era democrática a partir de meados dos anos 1980. Na esteira dessa transformação, a interrogação acerca da personalidade própria de cada nação propiciou reformas constitucionais preocupadas em conceder voz e participação a parcelas da sociedade que, até então, viviam marginalizadas. Para fazermos uma idéia mais exata do alcance dessas preocupações, examinemos o preâmbulo da nova constituição do Equador. As duas primeiras palavras, NOSOTRAS Y NOSOTROS, (...el pueblo soberano de Ecuador...): servindo-se da 1ª. pessoa do plural, o nós no idioma espanhol, a introdução é feita não apenas na forma masculina; o espanhol possui também um nós feminino, que é o nosotras com que se inicia o preâmbulo. Uma formulação no mínimo inédita, em um continente considerado machista, onde as mulheres formam um grupo com representação restrita. Na seqüência, vem uma alusão

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às raízes imemoriais dos povos pré-colombianos daquela região, e o reconhecimento de que estes constituem uma matriz plurirracial: RECONOCIENDO nuestras raíces milenarias, forjadas por mujeres y hombres de distintos pueblos... Não se trata apenas de homens e mulheres, portanto, mas de homens e mulheres de povos diferentes. Note-se que o preâmbulo está construído de forma a ampliar sucessivamente o espaço de proteção do estado a novos atores, que vão ingressando a cada alínea. No primeiro degrau, a comunidade moral sob a guarda da nova constituição inclui os gêneros, na segunda, as populações. A seguir, a esfera moral será decisivamente ampliada, com a inclusão do cosmos, o espaço ambiente que não apenas envolve, mas também é, ele mesmo, o ator central na concepção ecobiótica indígena que perpassa o espírito do documento. Assim, na 3ª. alínea, a ampliação fica por conta da inclusão da Pachamama: este vocábulo, oriundo do antigo idioma kolla falado durante o império inca, designa a “mãe natureza”. O texto diz o seguinte: CELEBRANDO a la naturaleza, la Pacha Mama, de la que somos parte y que es vital para nuestra existência... Etimologicamente, Pachamama não se refere nem a terra nem a mãe. O ciclo do tempo, o espaço e a terra formam o grupo semântico a que Pacha remete, enquanto Mama, que expressa uma autoridade, não é, necessariamente, feminina. A recuperação do conceito de Pachamama – que tinha quase desaparecido entre as populações andinas - coincide com o interesse dos ecologistas – mas também das grandes potências industriais – pelo chamado “desenvolvimento sustentável”, que reintegra a relação homemnatureza em seus discursos. 1 O Equador não é o único país latino-americano a resgatar a idéia de mãe natureza: também na Bolívia, o presidente Evo Morales, ele mesmo descendente da etnia aymará, criou um Ministério da Mãe Terra e aprovou uma Lei da Mãe Terra, a qual reconhece à natureza onze direitos que a equiparam aos seres humanos. Aqui estão alguns deles: el derecho a la vida y a la existencia; el derecho a continuar ciclos vitales y procesos libre de la alteración humana; el derecho a no tener su estructura celular contaminada o alterada genéticamente; el derecho “a no ser afectada por mega infraestructuras y proyectos de desarrollo que afecten el balance de los ecosistemas y las comunidades de los pobladores locales”; el derecho al aire limpio y al agua pura; el derecho al equilibrio; el derecho a no ser contaminada.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão foi o monumento da Revolução Francesa que, em 1789, oficializou o ideal iluminista de racionalidade e antropocentrismo, foi uma espécie de atestado de maioridade da burguesia. Legitimado por ele, o homem burguês aprofundou o ciclo de dominação da natureza autorizado no Antigo Testamento, até chegar ao delicado momento em que o planeta hoje se encontra. O que se observa nas novas constituições da América Latina da virada do milênio é uma translação da garantia exclusiva dos direitos do homo economicus para a garantia dos direitos de uma comunidade moral de caráter inclusivista, onde 1

Ver LAMBERT, Renaud, 28.

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são equiparados o valor da existência de animais racionais com o de animais não racionais e com o de uma entidade, a Pachamama, que permeia a convivência do cultural – ou civilizatório - com o natural sem privilegiar nenhuma das partes. Em última análise, essa proposta recorda o estágio inicial dos utilitaristas ingleses do século XVIII, mas de forma ainda mais radical. Jeremy Bentham, em seu An Introduction to the Principles of Morals and Legislation, amplia as dimensões da então estreita comunidade moral, quando argumenta que “a pergunta não é ‘Eles pensam?’, nem ‘Eles falam?’, e sim ‘Eles sentem?’”. A senciência, capacidade de sentir prazer ou dor, toma o lugar da racionalidade iluminista, porém ainda com alguma primazia aos humanos, já que estes seriam animais racionais que dispõe de mecanismos mentais – como memória e fantasia – que lhes permitiriam projetar-se no passado ou no futuro, aumentando sua capacidade de alegrar-se e de sofrer. Doravante, a lei boliviana da Mãe Terra, com seu Ministério da Mãe Terra, e o preâmbulo da nova carta equatoriana incluirão e protegerão na comunidade moral todos os seres que existem no contexto da Pachamama, sencientes ou não, vivos ou não, já que conta-se aí os rios, as pedras, os vales e assim por diante. O último conceito que examinaremos do preâmbulo da constituição equatoriana é o de sumak kawsay. Pablo Dávalos, ex-vice-ministro da economia do Equador explica como entendê-lo: Não é apenas um modo de vida pueril e harmônica entre o ser humano e a natureza: a ética indígena do Bem Viver é alternativa ao modo capitalista de produção, distribuição e consumo. É, acima de tudo, parte do “discurso das resistências e das mobilizações”. Por isso, o Bem Viver é “uma forma diferente de relação entre a sociedade e a natureza, e a sociedade e suas diferenças”, na qual “a individualidade egoísta deve se submeter a um princípio de responsabilidade social e compromisso ético”. Nesse contexto, a natureza é reconhecida como parte fundamental da socialidade humana.2

O conceito ético clássico da vida boa, que busca, pela reflexão sobre o agir humano no mundo, a melhor vida possível a ser vivida, não é exclusividade dos descendentes dos incas equatorianos: ele aparece como Sumak Kawsay em quíchua, como Suma Qamaña entre os aymarás e na forma de Teko Porã no idioma guarani. Este último povo, que habita as terras baixas de Paraguai, Argentina e Brasil, é particularmente ligado a uma tradição de utopia entre homem e natureza, no seu Mito da Terra sem Males. Como vemos, as novas cartas de Equador e Bolívia têm nos seus parágrafos iniciais a fundamentação filosófica que as anima. O que podemos perguntar é: conceitos como o de Mãe Natureza e o de Bem Viver, emprestados de um sistema de vida pré-capitalista, servem para viabilizar uma forma híbrida de capitalismo neo-indígena, ou representam um passo na transição para outro sistema? As duas possibilidades podem ser problematizadas, as duas interpretações do significado das reformas enfrentam críticas e resistência nos seus países. No primeiro caso, esses valores teriam apenas a função instrumental de manter em funcionamento uma engrenagem desgastada: o capitalismo, que teve historicamente um caráter espoliativo na América Latina, receberia uma ‘nova chance’, com a inclusão de conceitos 2

http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3436&secao =340

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ligados a valores holísticos e ecológicos universalmente reconhecidos. A instauração de um capitalismo ecobiótico, aliás, parece ser um anseio antigo dos países da região. O Pacto de Cooperação Amazônico, proposto em 1978 pelo Brasil e assinado e ratificado por todos os países da região, foi uma resposta ao Relatório The Limits to Growth, Os Limites do Crescimento, da Conferência de Estocolomo de 1972, na Suécia, que criticava o modelo de desenvolvimento dos países pobres, copiado do hemisfério norte. Junto com o pensamento neomalthusiano do Clube de Roma, o documento da ONU sugeria que se freasse o desenvolvimento nos países periféricos, caso ele fosse feito à custa do meio-ambiente. Algumas iniciativas anteriores já tinham alertado os países da região para o risco de internacionalização da área: o Instituto Internacional da Hiléia Amazônica (1948), patrocinado pela UNESCO, e o projeto de criação de grandes lagos artificiais por Herman Kahn, do Hudson Institute (EUA), que pretendia, com uma série de lagos, facilitar o transporte e a geração de energia. Para responder a isso, o Pacto Amazônico criou uma aliança para que o Desenvolvimento econômico da região pudesse ser feito com respeito ao ecossistema da floresta. Em última análise, a cooperação entre os países deve servir – e vem servindo - para ocupar racionalmente a área, entendo-se aqui termo ‘racionalmente’ em seu significado dialético como o apresentado por ORNO E Horckheimer na Dialética do Esclarecimento. Para responder a isso, a nova constituição da Bolívia recupera estruturas regulatórias da vida na polis que remontam à tradição indígena. Em primeiro lugar, lemos no Artigo 167: El Estado no reconoce el latifundio. Se garantiza la existencia de las propiedades comunarias, cooperativas privadas.

Apresentam-se aqui conceitos como o dos aillus e das tentas, originalmente pequenas extensões de terra administradas por famílias incas. Atualmente, é uma das formas de organização territorial de base, de caráter indígena. Há também espaço para as challas, uma cerimônia aymará que mescla festa, ritos da tradição inca e carnaval. Nesses costumes se aninha o simbolismo coletivo, e abrigá-lo na carta constitucional significa que os direitos dos grupos e aqueles que dizem respeito ao meio ambiente não estão em uma posição diferenciada hierarquicamente em relação aos direitos individuais. Aqui vigora um sistema de equivalência e perspectivismo, em lugar da primazia, destacando-se o valor dos direitos humanos de segunda, terceira e quarta geração. Se a regulamentação da posse da terra já é uma questão que provoca muita discussão, por justificar-se com base no costume, vamos agora subir mais um degrau em nossa problematização, e abordar o problema da justiça e sua aplicação. Várias novas constituições latino-americanas – não apenas as de países andinos – abrem espaço para a aplicação do direito consuetudinário por parte das comunidades reconhecidamente indígenas. É o caso de Bolívia, Colômbia, Equador, México, Nicarágua, Perú e Venezuela. Em alguns deles, além do direito costumeiro, alude-se a uma organização econômica própria e ao emprego de seu idioma autóctone, mesmo quando diante de uma autoridade do estado. Alguns breves exemplos: Colômbia, artigo 246:

6 Las autoridades de los pueblos indígenas podrán ejercer funciones jurisdiccionales dentro de su ámbito territorial, de conformidad con sus propias normas y procedimientos, siempre que no sean contrarios a la Constitución.

Artículo 330: De conformidad con la Constitución y las leyes, los territorios indígenas estarán gobernados por concejos conformados y reglamentados según los usos y costumbres de sus comunidades.

Equador, artigo 84: El Estado reconocerá y garantizará a los pueblos indígenas los seguientes derechos: 7) Conservar y desarrollar sus formas tradicionales de convivencia y organización social, de generación y ejercicio de la autoridad; 12): A sus sistemas, conocimientos y prácticas de medicina tradicional.

Mas também uma constituição antiga, como a do México, de 1917, recebeu emendas como a que segue, no Artigo 2/II: Esta Constitución reconoce y garantiza el derecho de los pueblos y las comunidades indígenas a la libre determinación y, en consecuencia, a la autonomía para aplicar sus propios sistemas normativos en la regulación y solución de sus conflictos internos.

Nicarágua, Artigo 5: El Estado reconoce la existencia de los pueblos indígenas, que gozan de los derechos, [...] tener sus propias formas de organización social y administrar sus asuntos locales; así como mantener las formas comunales de propiedad de sus tierras [...].

Paraguai, artigo 63: Tienen derecho, asimismo, a aplicar libremente sus sistemas de organización política, social, económica, cultural y religiosa, al igual que la voluntaria sujeción a sus normas consuetudinarias para la regulación de la convivencia interior siempre que ellas no atenten contra los derechos fundamentales establecidos en esta Constitución. En los conflictos jurisdiccionales se tendrá en cuenta el derecho consuetudinario indígena.

Bolívia, Artigo 171/III: Las autoridades naturales de las comunidades indígenas y campesinas podrán ejercer funciones de administración y aplicación de normas propias como solución alternativa de conflictos, en conformidad a sus costumbres y procedimientos, siempre que no sean contrarias a esta Constitución y las leyes. La Ley compatibilizará estas funciones con las atribuciones de los poderes del Estado.

Venezuela, artigo 260: Las autoridades legítimas de los pueblos indígenas podrán aplicar en su hábitat instancias de justicia con base en sus tradiciones ancestrales y que sólo afecten a sus integrantes, según sus propias normas y

7 procedimientos, siempre que no sean contrarios a esta Constitución, a la ley y al orden público.

É difícil resolver a equação entre federalismo e identidade cultural em países onde a desigualdade social ainda é a tônica. Para equilibrar as disparidades sociais, seria necessária uma federação que agisse de forma contracíclica à balança do poder, em prol de um federalismo não igualitário. A busca desse federalismo assimétrico3 torna-se tanto mais problemática em um continente onde o presidencialismo centralizado expressou historicamente as tendências existentes na sociedade criolla4 de excluir as minorias indígenas das instâncias decisórias. O cerne da questão é saber que reivindicações concretas podem ser atendidas nesses países. Considerando-se que o direito é uma ciência que se expressa pela palavra, a possibilidade de reivindicar em seus próprios idiomas, como assegurado no Perú, por exemplo, é um passo importante. No Equador e no Paraguai, há uma equiparação dos idiomas: também são considerados oficiais, junto com o espanhol, o guarani, o quíchua o shuar e “demais idiomas ancestrais 5”. Porém só no Perú é assegurado que “todo peruano tiene derecho a usar su propio idioma ante cualquier autoridad mediante un intérprete.” 6 O Supremo Tribunal do Canadá definiu desta forma a assimetria federalista, em uma sentença de 1991: “A acomodação das diferenças constitui a essência da verdadeira igualdade” 7. As críticas à jurisdição indígena têm sido numerosas. No Brasil, o semanário VEJA se derramou em indignação contra o que chamou de “farsa da nação indígena 8”. A revista, que é uma das principais vozes da centro-direita brasileira, é uma das publicações mais vendidas e lidas naquele país. Encarnando o mesmo papel de profeta do Apocalipse com o qual tentou, no Brasil, influenciar as eleições que foram vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, a VEJA faz o clássico lamento pelo abandono da justiça unitária, branca e civilizada: Ao valorizar a Justiça comunitária, o nacionalismo indígena enfraqueceu a Justiça ordinária, "eurocêntrica", e deu o aval para que militantes do Movimento ao Socialismo (MAS), o partido do presidente, investissem contra seus desafetos impunemente. Com isso, a Bolívia 9 tornou-se uma terra sem lei.

A publicação brasileira centra sua crítica na problemática questão da pertença aos grupos étnicos, insistindo, porém, no critério biológico sangüíneo para a determinação dos grupos, sem fazer menção ao critério cultural. Na Bolívia, 62% da população declaram ser descendentes de índios, e o critério declaratório é o mesmo adotado no Brasil, por exemplo, para o reconhecimento dos negros descendentes de escravos. Tanto no Brasil como na Bolívia, o indivíduo que se declara pertencente a uma etnia ou grupo social, assim será considerado pela oficialidade. 3

Ver Kimlicka, 48-9. Considerado aqui o vocábulo criollo como a denominação dada, na época da América colonial, ao espanhol nascido no novo mundo e comprometido com os valores da metrópole. 5 Constitución de Ecuador, artículo 1. 6 Constitución Política de Perú, artículo 2. 7 Apud Kimlicka, 152. 8 VEJA. Edição 2.164. 9 Idem. 4

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A campanha da VEJA passeia ainda pelas penalidades que podem ser aplicadas nas comunidades bolivianas reconhecidas culturalmente como autóctones, Na prática, a inclusão dos julgamentos comunitários na Lei Magna do país teve duas repercussões. A primeira foi propagar linchamentos entre a população, que agora acredita estar livre para fazer justiça com as próprias mãos [...]. A segunda conseqüência foi ter criado uma brutal arma contra a oposição e ex-aliados de Morales.

entrevista alguns ex-companheiros de militância arrependidos do partido MAS, Movimiento al Socialismo, do presidente Evo Morales, e culmina com a bombástica declaração do líder da oposição, Víctor Hugo Cárdenas, sobre o apoio que os agricultores cocaleros recebem agora do governo de La Paz: “Ao defender a folha de coca e eliminar mecanismos de controle, Morales dá espaço para que os narcotraficantes possam atuar com liberdade. São eles que se beneficiam quando o país mergulha no 10 caos. "

A guerra midiática é ainda mais encarniçada quando se trata de publicações e páginas da internet hospedadas nos Estados Unidos. Uma dessas, a Bolívia Watch resume as reformas de La Paz de forma sucinta: The Stalinist "reforms" proposed by a violent minority will cripple the economy!11

Registre-se que a economia da Bolívia em 2009 teve o maior crescimento da America do Sul, 3,7%, superando o Brasil, e seu PIB duplicou nos últimos quatro anos, tendo deixado de ser o país mais pobre do continente. Para encerrar, gostaríamos de apontar alguns questionamentos pertinentes ao futuro da constituição boliviana, sem deixarmo-nos envolver em uma discussão polarizada por correntes políticas, como infelizmente parece ser o caso da imprensa brasileira e norte-americana. A justiça comunitária na Bolívia e na América Latina poderá evoluir ainda mais, se forem discutidos e buscadas soluções conciliatórias para os seguintes problemas: 1. A dificuldade de um país dividido em várias perspectivas jurídicas na resistência às multinacionais, um problema histórico na América Latina. 2. A questão de como falar de inclusão social de grupos anteriormente excluídos sem estigmatizar a herança colonial espanhola, o que poderá provocar uma cisão política nas populações. 3. A questão dos privilégios concedidos às populações indígenas, em detrimento da submissão das populações das cidades, que não parecem estar conseguindo expressar seus desejos de autonomia sem incorrer na acusação de separatismo por parte do governo de La Paz (no caso da Bolívia). 4. Uma resposta convincente à crítica da oposição, de que a equiparação de todas as 36 etnias bolivianas poderia levar à desagregação do estado, um processo cuja reversão poderia ser muito difícil, da mesma forma como sucedeu com a União Soviética, ao tentar, ao longo da sua história, reverter a declaração de 1917 na Rússia, que estabelecia a igualdade e soberania de

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VEJA. Edição 2.107. Bolivia Watch, acessado 16/5/2011.

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todos os povos, sua autodeterminação e livre desenvolvimento das minorias nacionais e raciais. De todo modo, o direito comunitário precisa estar a serviço da inclusão, e não da secessão, e o futuro da América Latina dependerá da arte do equilíbrio entre a contemplação da diversidade e uma justiça baseada em igualdade. Para os brasileiros – mas para todos os latino-americanos, por extensão - que recordam as tristes cenas do ano 2000, quando a comemoração dos 500 anos da descoberta em Porto Seguro, na Bahia, resultaram em agressão pela polícia do exército a uma pacífica manifestação dos índios pataxós, a pluralidade social só pode prometer dias mais justos e melhores. Bibliografia Bolivia Watch. http://boliviawatchenglish.blogspot.com/ CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LA REPÚBLICA DE ECUADOR http://www.ecuanex.net.ec/constitucion/ CONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL PERÚ http://www2.congreso.gob.pe/sicr/RelatAgenda/constitucion.nsf/constitucion Indigenous Peoples, Democracy and Political Participation, in Political Database of the Americas. http://pdba.georgetown.edu/IndigenousPeoples/introduction.html KIMLICKA, Will: Ciudadanía multicultural. Barcelona, Paidós, 1996. LAMBERT, Renaud: O espírito de Pachamama, em Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo: Instituto Pólis, Nr. 43, fevereiro de 2001 NUEVA CONSTITUCIÓN POLÍTICA DEL ESTADO. http://www.patrianueva.bo/constitucion/ PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS. http://www2.mre.gov.br/dai/m_592_1992.htm SBARDELOTTO, Moisés: Sumak Kawsay: uma forma alternativa de resistência e mobilização. IHU Revista do Instituto Humanitas Unisinos. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3436&secao= 340 ____________________: O bem-viver como perspectiva ecobiótica e cosmogônica. IHU Revista do Instituto Humanitas Unisinos. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3446&secao= 340 UNITED NATIONS DECLARATION ON THE RIGHTS OF INDIGENOUS PEOPLES http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/en/drip.html VEJA. Edição 2.107, 8/4/2009. ____. Edição 2.164, 12/5/2010.

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