Justiça, desenvolvimento e sustentabilidade? - Primeira aproximação

June 8, 2017 | Autor: David Gomes | Categoria: Filosofía Política, Filosofia do Direito, Teorias Da Justiça, Teoria da Justiça
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Este texto encontra-se publicado no livro TOLEDO, André de Paiva (org.). Direito internacional e desenvolvimento sustentável. Belo Horizonte: D'Plácido, 2015, p. 131-160.
Agradeço a Gabriela Navarro e a Leonardo Gomes Penteado Rosa, professora e professor do Departamento de Direito da UFLA, o auxílio na construção do presente texto.
NEVES, 2009.
Cf., por exemplo, CATTONI DE OLIVEIRA, 2010; CATTONI DE OLIVEIRA; GOMES, 2011; CATTONI DE OLIVEIRA; MEYER, 2014; MEYER, 2012; MEYER; CATTONI DE OLIVEIRA, 2014.
Cf., por exemplo, SANTOS, 2010; QUADROS DE MAGALHÃES, 2012.
Tradução livre de "Ce n'est qu'au début du crépuscule que la chouette de Minerve prend son vol".
Sobre a relação entre Hegel e Marx, nenhum texto é mais elucidativo do que o posfácio à segunda edição d'O Capital (MARX, 2013, p. 83-91).
Dois bons panoramas da discussão contemporânea são oferecidos por GARGARELLA, 1999; e KYMLICKA, 2002. Ambos os textos possuem versões traduzidas para o português e publicadas no Brasil. Todavia, em relação ao livro de Will Kymlicka, a tradução disponível (KYMLICKA, 2006) foi feita a partir da primeira edição do original em inglês. A segunda edição, lançada em inglês em 200w, isto é, antes da tradução brasileira, possui uma série de acrescentamentos significativos em relação à primeira edição, o que torna a consulta à tradução brasileira não recomendada.
Axel Honneth vem procurando aproximar-se do debate contemporâneo sobre justiça, partindo da teoria crítica frankfurtiana, pelo menos desde 1992, com a publicação de seu livro "Luta por Reconhecimento" (HONNETH, 2003). O resultado recentemente mais significativo dessa aproximação é o livro "Das Recht der Freiheit", publicado em 2011 e ainda sem tradução para o português, mas com traduções que podem ser consultadas em inglês e em espanhol (HONNETH, 2014). Cf. tbm. HONNETH, 2007; HONNETH, 2011; e FRASER; HONNETH, 2006.
No afamado debate com Honneth, Fraser ainda se referia a sua teoria como uma teoria bidimensional da justiça, que englobava o que ela entendia por reconhecimento e por redistribuição. Ainda que a preocupação com a representação já se fizesse presente, ela não resultava na consideração da representação como uma dimensão a mais da justiça. Cf. FRASER; HONNETH, 2006.
Como fica claro no debate com Honneth, o modo como ambos compreendem o conceito de reconhecimento é distinto. Para ela, reconhecimento diz respeito a questões cultural-identitárias; para ele, reconhecimento é antes de tudo uma categoria moral relacionada à constituição intersubjetiva dos seres humanos nas várias esferas de relações sociais em que se encontram inseridos. Assim, para ela o reconhecimento diz respeito a apenas uma das dimensões das lutas sociais por justiça, ao lado de questões econômicas abrangidas pela dimensão da redistribuição e de questões políticas abrangidas pela dimensão da representação. Para ele, diferentemente, o reconhecimento, ou melhor, a luta por reconhecimento é o fundamento último de toda e qualquer luta social.
Um exemplo de um esforço de compreensão de uma luta social contemporânea à luz dessa reflexão teórica pode ser encontrado em FRASER, 2007.
Tradução livre de: "Indeed, one could argue that the real flaw in liberal nationalism is not its inability to sustain distributive justice whithin national boudaries, but its seeming indifference to issues of global justice across national boudaries".
Reflexões como essas têm sido levadas a cabo no âmbito das disciplinas de teoria da justiça ministradas por mim e por Leornardo Gomes Penteado Rosa no Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras. Um exemplo dos desdobramentos dessas reflexões pode ser encontrado no artigo recentemente publicado pelo discente Pedro Viana (VIANA, 2015).
Cf. RAWLS, 1971; RAWLS, 1993. É bastante conhecido o debate acerca das revisões empreendidas por Rawls em sua teoria da justiça, consolidadas em "O Liberalismo Político" (RAWLS, 1993). Não me ocuparei aqui desse debate. Referências a ele podem ser encontradas, por exemplo, em GARGARELLA, 1999; CATTONI DE OLIVEIRA, 2007; CATTONI DE OLIVEIRA, 2013; CALVET DE MAGALHÃES, 2011.
Cf. DWORKIN, 1995; DWORKIN, 2002; DWORKIN, 2011.
VEIGA, 2005, p. 171.
Não entrarei aqui em discussões acerca do papel que o egoísmo continuaria a jogar mesmo em uma teoria da justiça como a de Rawls. Referências a essas discussões podem ser encontradas em GARGARELLA, 1999; KYMLICKA, 2002.
No mesmo sentido da nota anterior, não entrarei aqui em discussões sobre a relação entre justiça, felicidade, vida boa e bem-estar. Referências a essas discussões podem igualmente ser encontradas em GARGARELLA, 1999; KYMLICKA, 2002.
Cf., por exemplo, Dworkin, 2011, p. 351-363.
VEIGA, 2005, p. 154-162.
Seria interessante acompanhar o modo como Axel Honneth vai alterando seu posicionamento acerca desse ponto ao longo de sua obra. Tanto em "Luta por Reconhecimento" (HONNETH, 2003) quanto no debate com Nancy Fraser, Honneth atribui ao direito, como segunda das esferas de relações de reconhecimento naquele momento por ele trabalhadas, um papel central, ao poder forçar com sua linguagem própria a reciprocidade também nas relações das esferas do amor e da estima social/mercado. Mais recentemente, Honneth tem abandonado essa posição, ou ao menos a relativizado radicalmente, ao apontar a insuficiência da linguagem dos direitos, sobretudo conforme concebidos na tradição individualista liberal, para lidar com as pretensões da justiça como um todo. Cf. HONNETH, 2007; HONNETH, 2011; HONNETH, 2014.
Não me alongarei aqui na discussão sobre o conceito de desenvolvimento sustentável. Marcos Nobre oferece um bom resgate histórico do processo de institucionalização desse conceito no cenário político internacional e mostra como tal institucionalização somente foi possível porque prevaleceu como pano de fundo a ideia segundo a qual desenvolvimento, no sentido de crescimento econômico, e meio ambiente não eram termos contraditórios entre si (NOBRE, 1999, p. 138).
Cf., por todos, VEIGA, 2005; e NAVARRO, 2013.
Cf., por exemplo, VEIGA, 2005, p. 162-170.
MARX, 2013, p. 84-87.
A proposta de Werle parece consistir num retorno a Rawls, por intermédio de Honneth, de modo a aprofundar a discussão acerca de arranjos societários aptos a "fazer com que a estrutura básica da sociedade não determine arbitrariamente a vida das pessoas" (WERLE, 2014, p. 86). Mas essa tarefa perde-se no mesmo vazio e na mesma impotência do dever-ser quando não se levam em consideração - como tanto Rawls quanto Honneth não o fazem - os imperativos sistêmicos do capitalismo, imperativos que, como dito, impõem-se a nós independentemente de nossa vontade, independentemente de nossa a um só tempo suposta e desejada autonomia.



Justiça, desenvolvimento e sustentabilidade? - Primeira aproximação

David Gomes
Professor de Teoria do Direito e de Direito Constitucional do Departamento de Direito da Universidade Federal de Lavras

I - Introdução

O convite para a participação nesta obra, intitulada "Direito Internacional e Desenvolvimento Sustentável", causou em mim, inicialmente, certa surpresa, para não dizer certo espanto. Afinal, o que alguém com formação predominantemente em teoria do direito e em direito constitucional poderia oferecer como contribuição ao tema do livro?
Após alguns diálogos com o professor André de Paiva Toledo, responsável pelo convite que me havia sido feito, aquela surpresa inicial foi assumindo um tom de desafio: tendo em vista a centralidade que se anuncia para os temas do internacionalismo e do desenvolvimento sustentável neste século XXI, se a teoria do direito e o direito constitucional nada tiverem a dizer sobre isso, qual será então a utilidade desses dois campos teóricos para o nosso tempo presente?
A partir de então, aquele convite começou a ser por mim percebido como uma oportunidade para aproximar-me de tais temáticas. Restava, porém, a tarefa de decidir por qual lado realizar essa aproximação. Dois caminhos pareceram interessantes. Um primeiro, mais focado no direito constitucional, ou, mais especificamente, na teoria da constituição, poderia apoiar-se nas discussões recentes sobre a relação entre ordem constitucional nacional e diálogos supra, trans e/ou internacionacionais. Um conjunto denso de reflexões poderia ser aqui trazido para o debate, sendo de se destacar, no Brasil, a tese do transconstitucionalismo, do professor Marcelo Neves, as discussões acerca da justiça de transição, capitaneadas em Minas Gerais pelos professores Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e Emílio Peluso Neder Meyer, e as abordagens reunidas sob a rubrica do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. No que se refere a este último, aliás, não só uma vocação para a integração supranacional no âmbito latino-americano justificaria sua abordagem: também a relevância que nele assume a relação entre espécie humana e natureza seria um motivo mais do que especial para lhe dedicar atenção.
Um segundo caminho estaria mais focado na teoria do direito, mais exatamente na teoria da justiça. E, dado o caráter fundante que as reflexões nesse campo teórico costumam ter, pareceu uma rota mais indicada para uma primeira aproximação.
Este texto consiste, portanto, numa primeira aproximação aos temas do internacionalismo e do desenvolvimento sustentável, aproximação que se dá à luz da teoria da justiça.
É preciso reconhecer, entretanto, que se trata de uma aproximação atrasada: se para mim, autor deste texto, ela pode ser chamada de uma primeira aproximação, faço-o com a consciência de que se trata de uma minha primeira aproximação a temas que vêm sendo discutidos pelo menos desde a década de 1960.
Esse atraso não pode, contudo, ser entendido como mera displicência. A sentença de Hegel acerca da filosofia parece ainda não ter encontrado superação possível: "não é senão ao começar do crepúsculo que a coruja de Minerva toma seu voo" (HEGEL, 1940, p. 45). E mesmo o giro materialista empreendido por Marx na dialética hegeliana não consegue livrar-se desse destino. Ao contrário, todas as vezes em que a filosofia procura saltar para além de si mesma e assumir o aspecto de profecias teoricamente fundadas sobre o futuro, a realidade do mundo reafirma-se diante dela e a faz retornar, de modo humildade, às modestas pretensões de uma compreensão de seu próprio tempo presente, compreensão que somente é possível de modo adequado quando as circunstâncias específicas desse tempo já puderam amadurecer ao longo dos anos e das décadas anteriores. Chegar atrasada aos temas que aqui abordarei é, assim, ao mesmo tempo a fraqueza e o mérito que toda reflexão teórica - que se pretenda coerente com o mundo que observa - inevitavelmente carrega dentro de si.

II - A teoria da justiça contemporânea

Ao invés de se falar de uma teoria da justiça contemporânea, ou da teoria da justiça contemporânea, o mais correto seria revelar desde já a pluralidade desse campo teórico e falar de teorias da justiça contemporâneas. De todo modo, mesmo quando se proceda com essa cautela, um ponto de convergência entre a variedade de pontos de vista teóricos sobre a justiça não pode ser negado: trata-se da referência a John Rawls. Concordando com ele e defendendo sua teoria contra os ataques sofridos, aprofundando suas proposições e indo além delas, opondo-se radicalmente a ele e procurando outros pontos de apoio para o pensamento e a prática da justiça: como quer que seja, não é possível discorrer teoricamente sobre justiça sem se referir a Rawls e a sua obra "Uma Teoria da Justi a", publicada logo no início da década de 1970 (RAWLS, 1971). Foi a partir desse livro que o problema da justiça retomou sua dignidade filosófica, e é a partir dele que pode ser datado o início do que hoje se costuma nomear como teorias contemporâneas da justiça.
Esse fato ajuda a explicar a hegemonia que abordagens de matiz rawlsiano continuam mantendo no debate acadêmico sobre justiça. Por abordagens de matiz rawlsiano é possível entender um complexo de teorias que, geralmente rotuladas como liberalismo igualitário, são marcadas por certos traços comuns. Axel Honneth conseguiu, de maneira exemplar, indicar quais seriam esses traços.
Vinculado a uma tradição filosófica - a chamada Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica Frankfurtiana - no interior da qual o horizonte de uma sociedade futura emancipada e as possibilidades presentes de se caminhar em direção a essa sociedade são fundamentais, Honneth parte de um diagnóstico acerca da distância que se poderia verificar contemporaneamente entre teoria da justiça e prática da justiça:

O abismo que se abriu com isso não é o de um descompasso temporal entre a fundamentação filosófica e a aplicação prática; não se configura a situação em que custaria somente esforço, tempo e persistência para transformar os princípios de justiça desenvolvidos teoricamente em diretrizes da ação política. Antes, parece que os princípios normativos em geral foram formulados num nível tal, que se torna impossível derivar deles orientação para a ação política; (...). (HONNETH, 2009, p. 346-347)

Esse abismo a que Honneth se refere seria decorrência dos delineamentos gerais que para ele formariam uma espécie de pano de fundo de convergência no qual poderiam ser situadas hoje "praticamente todas as teorias da justiça" (HONNETH, 2009, p. 347). Sem distinguir entre as variadas teorias que procura abranger com sua visada teórica, Honneth trabalha três características que seriam compartilhadas por todas elas.
As duas primeiras dessas características seriam a referência a um esquema procedimentalista e a uma ideia de justiça distributiva:

Tanto a justificação como a determinação conteudística da justiça devem resultar da ideia geral de que os princípios de justiça sejam expressão da vontade comum de todas as cidadãs e todos os cidadãos de assegurarem-se reciprocamente as mesmas liberdades subjetivas de ação. Mesmo que este princípio abstrato pareça uma unidade homogênea, confluem nele dois complexos imaginários que advêm de diferentes determinações de liberdade: de um lado, aquilo que é denominado justiça social deve ser avaliado com base na garantia de autonomia pessoal, concebida como puramente individual, mas, de outro, os princípios de justiça correspondentes devem ser passíveis de ser concebidos como resultado de uma formação comum da vontade, tal como ela só acontece na cooperação entre sujeitos. (HONNETH, 2009, p. 348)

Quanto à ideia de justiça distributiva, sua lógica interna começa com a ênfase liberal no indivíduo e em sua suposta autonomia perante a sociedade, de modo que sua liberdade seria tanto maior quanto menor fossem as restrições externas, isto é, advindas do meio social. Um conceito assim "individualisticamente reduzido de autonomia pessoal" (HONNETH, 2009, p. 349) culmina no que Honneth chamará de "paradigma da distribuição":

[P]elo fato de que toda dependência de outros é vista como uma ameaça à liberdade individual, essa só pode ser assegurada se cada indivíduo dispõe em suficiência sobre meios geralmente valorizados, para poder realizar seus próprios planos de vida. Por conseguinte, a tarefa material da justiça consiste em assegurar algum tipo de distribuição deste tipo de "bens", de tal modo que permita a todos os membros da sociedade igualmente a perseguição de suas preferências individuais. (HONNETH, 2009, p. 349)

Quanto ao esquema procedimentalista, sua lógica interna começa com a mesma pressuposição de indivíduos livres e autodeterminados e culmina na exigência de que os princípios a orientar uma distribuição justa dos bens somente podem ser elaborados por meio de um procedimento que corresponda àquela pressuposição:

[P]orque os membros da sociedade devem em princípio poder ser concebidos como livres e autodeterminados, a concepção de justiça não pode pretender fixar a sua revelia como deve ser feita em detalhes uma distribuição equitativa dos bens; ao invés disso, finge-se em geral uma "situação original", o fechamento de um contrato ou uma situação de deliberação, cujas condições apartidárias no sentido de um experimento mental nos devem permitir chegar a conclusões justificadas sobre qual o tipo de distribuição de bens as cidadãs e os cidadãos prefeririam (...). Portanto, segundo esta concepção, a fixação dos princípios distributivos não é feita a partir da teoria, mas deixada para um acordo original que os próprios participantes teriam fechado numa deliberação imaginada como equitativa e justa; esta autolimitação que ali ocorre pode ser designada como procedimentalista na medida em que a concretização do esquema distributivo é conectada com a realização virtual de um procedimento que deve garantir a concordância de todos os afetados pelas especificações. (HONNETH, 2009, p. 350)

A terceira característica que viria unir-se a essas duas para formar o panorama das teorias da justiça que se apresentam contemporaneamente como hegemônicas, segundo Honneth, seria uma ênfase no papel do Estado como instância para a efetivação da justiça.

Mesmo que nem sempre esteja claro se as atuais teorias da justiça também querem incluir instâncias não-estatais ou comportamento individual em suas reflexões, suas ponderações fundamentais são marcadas pela ideia de que somente o estado democrático de direito representa a agência correspondente de efetivação da justiça. Esta tendência de concentrar todo poder de estruturação normativa no estado resulta de uma combinação de duas reflexões que, ambas tomadas por si, parecem plausíveis: de um lado, não se deve atribuir aos próprios membros da sociedade a responsabilidade pela justiça, pois essa atribuição viria acompanhada do risco de uma ditadura das virtudes, de uma exigência de comportamento moralmente exemplar, e ao mesmo tempo só o estado de direito deve dispor dos meios legítimos para impor efetivamente as medidas necessárias para a redistribuição dentro das diversas instituições básicas da sociedade. Nesse sentido, as teorias da justiça geralmente operam com o pressuposto de uma divisão moral do trabalho segundo a qual cidadãs e cidadãos devem produzir por si sós os respectivos princípios de justiça, cuja implementação então é vista como atribuição exclusiva do estado de direito democraticamente controlado. (HONNETH, 2009, p. 351)

Justiça concebida como bens a serem adequadamente distribuídos, necessidade, portanto, da construção de um procedimento para a distribuição desses bens e, consequentemente, necessidade de uma instância a que cabe organizar tal procedimento: são esses os três elementos que Honneth acredita serem suficientes para definir o mainstream da reflexão teórica sobre a justiça elaborada contemporaneamente.

III - Teoria da justiça e limitações territoriais

Na sequência da construção desse quadro geral acerca das teorias hegemônicas da justiça, o segundo passo de Axel Honneth consiste em apresentar críticas consistentes que sejam capazes de mostrar a insustentabilidade, ou ao menos a insuficiência, das formulações teóricas concebidas nos termos acima. Essa insustentabilidade teria seu núcleo no conceito de autonomia pessoal e no modo como esta se constitui segundo o paradigma da distribuição. É essa a chave que permitirá a Honneth oferecer uma alternativa própria em termos de teoria da justiça, alternativa que rompe como uma concepção de justiça como distribuição de bens para sustentar uma concepção de justiça como relações de reconhecimento não deturpadas. Quebrada a dependência frente ao "paradigma da distribuição", isto é, demonstrado que o problema da justiça não pode ser compreendido de modo correto quando reduzido a um problema de distribuição adequada de bens, Honneth acredita poder desfazer-se também, como consequência lógica de sua argumentação, dos outros dois elementos acima trabalhados, isto é, a alusão a um esquema procedimentalista e a ênfase no Estado como instância por excelência de realização da justiça.
Para os interesses do presente texto, porém, o caminho argumentativo de Honneth precisa ser invertido. Pois, aqui, o que necessita ser destacado é exatamente o terceiro dos elementos apresentados e criticados por Axel Honneth: a ênfase no Estado, um Estado que, ainda que seja democrático e de direito, continua sendo restrito à dimensão interna a si mesmo.
Neste ponto, é relevante trazer à colação outras duas abordagens contemporâneas que apontam, cada uma a seu modo, a ênfase demasiada no papel do Estado - que modernamente não é senão o Estado nacional - como uma das falhas internas às teorias hegemônicas da justiça.
Uma dessas abordagens pertence a Nancy Fraser. Muitas vezes estudada no Brasil apenas no que diz respeito a seu debate com Honneth, Fraser tem desenvolvido uma teoria da justiça epistemicamente autônoma e bastante consistente, teoria que vem sendo alterada ao longo dos anos e que parece ter alcançado uma versão mais definitiva com a publicação de seu livro "Scales of Justice" (FRASER, 2008), ainda sem tradução para o português. É nesse contexto que ganha mais clareza conceitual sua teoria tridimensional da justiça.
A tríade que conforma tal teoria é composta pela redistribuição, pelo reconhecimento e pela representação. Por representação, entretanto, não se pode entender simplesmente a exigência de que pessoas e grupos variados tenham acesso livre e igualitário às instâncias em que as decisões coletivamente vinculantes são tomadas. Tal conceito abrange também a exigência de enquadramento adequado dos problemas de justiça a serem enfrentados: há questões de justiça que são mais bem enquadradas, certamente, no horizonte tradicional do Estado-nação; mas há outras questões cujo melhor enquadramento é infra-estatal, isto é, local ou regional; assim como há questões cujo único enquadramento possível para um enfrentamento efetivo dos problemas é um enquadramento supranacional.
Por conseguinte, também em Fraser a crítica às concepções hegemônicas da justiça coincide, ao menos em parte, com uma crítica à ênfase que essas teorias colocam no papel do Estado nacional frente às demandas, cada vez mais complexas, plurais, localizadas e, a um só tempo, globalizadas, por justiça.
A outra abordagem pertence a um conjunto de autores que vão se preocupar em acusar nas teorias hegemônicas da justiça certa contradição com os próprios termos de justiça por elas propostos. Essa contradição estaria manifestada em uma despreocupação com problemas que estão para além das fronteiras dos Estados nacionais. Em outros termos, essas teorias teriam feito louváveis esforços para refletir sobre arranjos sociais justos internamente aos limites do Estado-nação, tomando como referência o modo como este se consolidou nas democracias ocidentais, mas teriam sido negligentes ao não considerarem suficientemente, conforme sua própria linguagem conceitual, problemas de justiça que ultrapassam aqueles limites, que transcendem aquelas fronteiras.
Se autores como John Rawls e Ronald Dworkin, os dois maiores nomes do mainstream das teorias hegemônicas da justiça, construíram seus argumentos conforme o objetivo de que as pessoas pudessem ser razoavelmente responsabilizadas por suas escolhas e, concomitantemente, não prejudicadas por elementos ligados ao acaso, à sorte, à loteria natural, porque não levar esse raciocínio até a questão do próprio lugar global de nascimento, isto é, até o próprio país do planeta onde se nasce? Não seria também esse um elemento de acaso, de loteria natural (KYMLICKA, 2002, p. 268)? E, se assim o é, não seria também um elemento a ser neutralizado pelos procedimentos de distribuição igualitária de bens e recursos com os quais tais teorias procuram resolver todos os problemas de justiça que conseguem enxergar a partir de suas perspectivas?
Will Kymlicka consegue sintetizar bem as críticas que essa segunda abordagem - ao lado da abordagem de Nancy Fraser e ambas em complemento aos argumentos de Axel Honneth - lança perante as teorias hegemônicas da justiça: "[p]or certo, pode-se arguir que o real flanco no nacionalismo liberal não é sua inabilidade para sustentar uma justiça distributiva dentro de limites nacionais, mas sua aparente indiferença a questões de justiça global que atravessam limites nacionais" (KYMLICKA, 2002, p. 268).
Sem dúvida, Nancy Fraser e os responsáveis por essa última abordagem trabalhada logo acima estão muito mais próximos a preocupações de ordem internacionalista do que Axel Honneth. Exatamente por isso, como dito acima, o caminho argumentativo desenrolado pelo próprio Honneth em busca da formulação de sua teoria da justiça - de sua teoria do reconhecimento como teoria da justiça - foi aqui invertido. De toda sorte, todas as três abordagens teóricas apresentadas escancaram com suas críticas aquilo que poderíamos chamar de limitações espaciais ou territoriais das teorias hegemônicas da justiça. Quando o que está em jogo são problemas que, como aqueles ligados às temáticas do desenvolvimento e da sustentabilidade, somente podem ser pensados tendo-se como pano de fundo a sociedade global, essas limitações aparecem como um obstáculo assaz perigoso, quiçá intransponível.

IV - Teoria da justiça e limitações temporais

Uma segunda ordem de questões pode ser levantada perante as teorias hegemônicas da justiça: ela se refere à dimensão temporal implícita nessas teorias. O que está em pauta, de modo geral, nos complexos raciocínios mediante os quais seus representantes de maior envergadura procuram fornecer critérios de justiça é o arranjo adequado de uma sociedade que é ou será vivenciada pelos sujeitos humanos pressupostos como agentes ativos capazes de uma formulação autônoma - isto é, elaborada por eles mesmos - daqueles critérios.
Seja na posição original de Jonh Rawls, seja no sofisticado leilão de Ronald Dworkin, seja em qualquer outro desses procedimentos formais fictícios imprescindíveis às teorias hegemônicas da justiça, as partes ou atores sociais pressupostos neles estão preocupadas em ordenar adequadamente, conforme parâmetros de justiça, a sociedade na qual vivem ou viverão, não uma sociedade na qual não estarão mais presentes. Assim, se os problemas que circulam internamente ao campo temático do desenvolvimento sustentável são problemas não apenas de dimensões espaciais alargadas, mas também problemas que têm uma dimensão temporal dilatada, ou seja, problemas que só ganham todo seu sentido quando pensados a médio, a longo e a longuíssimo prazo, as teorias hegemônicas da justiça mostrar-se-iam, também quanto a este ponto, radicalmente impotentes. Por exemplo: por que, na posição original rawlsiana, as partes auto-interessadas, ainda quando dotadas das capacidades do racional e do razoável, escolheriam princípios de justiça que, aplicados à estrutura básica da sociedade, carregariam consigo a pretensão de preservar essa sociedade para além da duração de sua própria - delas, as partes - vida? Isto é, princípios que consubstanciassem uma preocupação em preservar a sociedade, entendida em um sentido amplo que abrange também o ambiente natural sem o qual nenhuma sociedade humana é ainda possível, para que gerações futuras pudessem nela viver?
Objeções podem ser facilmente apresentadas frente a essa minha acusação. Um argumento razoável contra a minha crítica referente à dimensão temporal restrita das teorias hegemônicas da justiça poderia ser construído mais ou menos assim: partindo da observação das relações sociais em geral, não fere nossa intuição, adquirida pelo contato cotidiano que temos uns com os outros, pressupor que um dos aspectos fundamentais de uma vida plena é poder deixar descendentes no mundo. Se assim o é, não estaríamos dispostos a aceitar como uma sociedade ordenada de modo justo aquela onde nossas filhas e nossos filhos não pudessem ter condições adequadas de crescer e se desenvolver. Logo, estaria inevitavelmente embutida nos critérios de justiça utilizados para a ordenação da vida social uma preocupação ao menos com a próxima geração em seguida à geração presente. Como, porém, a mesma pressuposição acerca da importância atribuída à possibilidade de deixar descendência no mundo repetir-se-ia também em relação a essa próxima geração, ela se tornaria uma pressuposição de tal modo constante que uma teoria da justiça e os critérios de justiça por ela apresentados poderiam ser assumidos como suficientes para a ordenação justa da sociedade mesmo quando tomada a longuíssimo prazo. Como conclusão, uma teoria da justiça não só poderia fazê-lo, mas, na verdade, inelutavelmente necessitaria incluir o desenvolvimento e a sustentabilidade no âmbito de suas inquietações.
Esse argumento possui, é verdade, sua força e alguma plausibilidade. Todavia, é possível mostrar seu lado frágil valendo-se de suas próprias armas. O valor quase indiscutível de "nossas intuições" funciona metodologicamente como uma espécie de axioma para as teorias hegemônicas da justiça. Aquilo que "nossas melhores intuições" conseguem constatar é o fundamento último de boa parte dos argumentos de tais teorias. É a partir das pressuposições informadas pela intuição que os procedimentos formais fictícios - outra peça metodologicamente fundamental, como a posição original rawlsiana e o leilão dworkiniano - são construídos como recurso metodológico para a justificação racional de posições teóricas acerca do problema da justiça. Se observarmos o mundo à nossa volta, parece-me possível entender que o desejo de deixar descendência no mundo é cada vez menos forte nas gerações presentes. Isso pode ser verificado tanto objetivamente mediante referências à diminuição do crescimento populacional quanto por meios mais subjetivos, relacionados a planos de vida que, cada vez mais, incluem menos uma prole como necessidade sem a qual uma vida plena não seria possível. Por conseguinte, ao contrário da pressuposição que fundamenta o argumento do parágrafo anterior, parece-me que não feriria "nossas melhores intuições" pressupor que a geração atual, ou talvez a próxima, não tenha necessariamente em seu horizonte a preocupação com um mundo melhor para sua descendência, pois é provável que ela não tenha descendência alguma em seu horizonte de expectativas.
Se tal pressuposição parece intuitivamente plausível, então poderíamos prosseguir afirmando que, para ser coerente com seu próprio modus operandi, as teorias hegemônicas da justiça precisariam estar dispostas a construir modelos teóricos que fornecessem critérios de justiça para a ordenação de uma sociedade que tem como objetivo permanecer viva por apenas uma geração.
Não é difícil imaginar o que daí pode decorrer: se quiséssemos ordenar nossa vida em sociedade partindo da ideia de que a nossa geração seria a última geração humana a habitar o planeta, que sentido haveria em nos preocuparmos com o estabelecimento de uma relação mais harmoniosa com a natureza? Que sentido haveria, portanto, em nos preocuparmos com algo como o desenvolvimento sustentável?
Indiscutivelmente, esse meu experimento mental pode ser acusado de absurdo: por mais que tenha aumentado a quantidade de pessoas que não querem deixar descendência no mundo, ainda está longe o momento no qual seria possível intuir que uma determinada geração não pretende senão viver e esvair-se sem deixar sementes. No máximo, e permanecendo em uma linguagem rawlsiana, caberia dizer que o desejo de ter ou não filhos é algo que deveria passar a ser compreendido como uma posição determinada na sociedade - uma posição de pessoas que querem ter filhos, uma outra posição de pessoas que não querem ter filhos. Como consequência, o véu da ignorância passaria a abranger também esse aspecto do posicionamento das partes na sociedade que será ordenada pelos princípios de justiça alcançados na posição original. Logo, tendo em vista que as partes não saberiam se, na sociedade por elas ordenada e na qual iriam viver, estariam na posição social de pessoas que desejam ter filhos ou na posição social de pessoas que não desejam ter filhos, a incerteza acerca dessa posição social as conduziria a princípios de justiça capazes de ordenar a sociedade levando em consideração as gerações futuras.
Contudo, em que pese o aparente absurdo do experimento mental por mim descrito acima, são exatamente exercícios mentais parecidos, ainda que incomparavelmente mais sofisticados, que perfazem o conjunto dos argumentos e conclusões mais importantes das teorias hegemônicas da justiça - algo que é inclusive assumido por elas reflexivamente. Além disso, complementarmente, o que esse meu breve exercício mental procura não é fundamentar uma nova teoria da justiça, mas, levando à radicalidade seu modus operandi, revelar como as teorias hegemônicas da justiça são incapazes de lidar adequadamente com problemas de ordem temporal dilatada.
Poder-se-ia objetar, complementarmente, que, por mais que meu exercício mental tenha alguma coerência interna, o fato de que nenhuma teoria hegemônica da justiça chegou às conclusões a que ele poderia chegar mostra que a dimensão temporal dilatada está, sim, implícita nas teorias hegemônicas da justiça. Ainda que de modo não suficientemente expresso e trabalhado, uma preocupação com o longo e mesmo com o longuíssimo tempo permaneceria subjacente aos critérios de justiça alcançados por essas teorias.
Eu responderia a essa nova objeção com uma contestação dividida em duas partes. Primeiramente, as teorias hegemônicas que hoje estão disponíveis e são conhecidas no universo intelectual mais amplo não conseguiram ainda abranger elas mesmas, em seus próprios termos e com o rigor teórico necessário, problemas de ordem temporal dilatada como aqueles relativos ao desenvolvimento e à sustentabilidade. Se não chegaram às conclusões absurdas a que meu experimento mental poderia conduzir, por outro lado não chegaram, na maioria das vezes, a conclusão significativa alguma, posto que sequer chegaram a se posicionar acerca de questões semelhantes. Ademais, se estivermos preocupados não com as teorias que já foram construídas mas com a possibilidade de que novas formulações teóricas sejam possíveis valendo-se de sua inspiração e de seu modus operandi, parece-me que o panorama não é melhor: se a intuição e as pressuposições que ela autoriza, de um lado, e os procedimentos formais fictícios a partir de então elaborados, de outro, são, metodologicamente, duas pedras angulares das teorias hegemônicas da justiça, então meu experimento mental, com aquilo que ele tem de absurdo, precisa ser aceito como consequência não apenas possível, mas talvez inevitável, quando se leva à radicalidade aquelas premissas metodológicas no mundo de hoje.
E assim, mesmo quando fosse possível livrar-se do peso atribuído ao Estado, outro dos elementos apresentados e criticados por Honneth continuaria a desmascarar a impotência das teorias hegemônicas da justiça diante de problemas que despontam como alguns dos mais relevantes neste início de século. Ainda quando liberadas das fronteiras espaciais a que costumam estar atadas, tais teorias permaneceriam presas em fronteiras temporais impossíveis de serem superadas dentro de suas próprias premissas metodológicas e dos procedimentos formais fictícios em que essas premissas se consubstanciam.
Se a justiça é, por excelência, a virtude que se exerce perante outrem (RICOEUR, 2007, p. 101), torna-se extremamente delicado o problema quando ele diz respeito a outros e outras que ainda não existem.

V - Teoria da justiça e limitações quanto ao objeto

Abandonei, mais acima, o roteiro que o próprio Axel Honneth seguiu depois de ter caracterizado criticamente as teorias hegemônicas da justiça. E segui, até aqui, um roteiro exatamente inverso: inicialmente, a ênfase daquelas teorias no papel a ser desempenhado pelo Estado como instância por excelência de realização da justiça serviu-me de gancho para explicitar o que me parecem ser limitações espaciais ou territoriais de tais teorias. Após essa primeira explicitação, vali-me dos procedimentos formais fictícios tão típicos dessas teorias para tentar explicitar o que mais me interessa - em relação ao tema do presente texto - nesse elemento: as limitações temporais que dele decorrem. Feito esse percurso, cabe retornar ao outro dos três elementos com os quais Honneth delineia as teorias hegemônicas da justiça: trata-se do objeto da justiça.
O foco principal de Honneth diz respeito a esse elemento: para ele, as teorias que dominam a discussão contemporânea sobre o problema da justiça partem de uma pressuposição acerca da autonomia dos sujeitos humanos. Estabelecida essa pressuposição, a justiça resume-se, pois, a um problema de distribuição: quais bens ou recursos devem ser distribuídos para que possa haver uma ordenação justa de uma sociedade de entes autônomos, isto é, capazes de decidir livre e responsavelmente pelos rumos de suas próprias vidas. Para Honneth, essa pressuposição acerca da autonomia é falha e leva a uma concepção inadequada da justiça, posto que ela desconsidera exatamente aquilo que é necessário para que os seres humanos possam constituir-se como seres dotados da capacidade de autodeterminação. Por conseguinte, a mera distribuição de bens, ao pressupor uma autonomia que não se verifica empiricamente, não só não resolve problemas de justiça como pode acabar por agravá-los.
Diante disso, Honneth propõe que a justiça não seja pensada como bens ou recursos a serem distribuídos, mas como relações de reconhecimento não deturpadas, no interior das quais as pessoas possam alcançar intersubjetivamente a capacidade de autodeterminação e, consequentemente, a autorrealização. É nisso que consiste a mudança de paradigma honnethiana: de um paradigma da justiça como distribuição, ou redistribuição, para um paradigma da justiça como reconhecimento.
Em síntese, o objeto da justiça para Axel Honneth é distinto do objeto da justiça para as teorias hegemônicas da justiça: para estas, bens ou recursos; para aquele, relações de reconhecimento intersubjetivo.
Para o tema com o qual aqui me ocupo, essa crítica de Honneth pode ser assim traduzida: as teorias hegemônicas da justiça tomam por seu objeto bens ou recursos a serem distribuídos, ou redistribuídos. Porém, será que problemas como os relativos ao desenvolvimento e à sustentabilidade são enfrentados de modo satisfatório quando interpretados em termos de bens ou recursos distribuíveis? Afinal, as crises mais graves que nos assolam com antecipações sombrias do que pode vir a ser o futuro não derivariam exatamente do fato de a natureza ter sido tratada na modernidade capitalista como um conjunto de recursos infindáveis a serem distribuídos globalmente, sobretudo entre as potenciais militares e econômicas mundiais? Continuar tratando-a assim não significaria permanecer no mesmo círculo vicioso?
Que seguir lidando com questões de desenvolvimento e sustentabilidade em termos de bens ou recursos é uma alternativa possível, não há dúvida. A maior prova disso são os chamados créditos de carbono, que têm sido capazes de levar ao alcance de resultados indubitavelmente positivos. Entretanto, esses resultados somente podem ser tomados como positivos quando comparados com uma outra situação que se mostrava presente de modo ameaçador no horizonte de expectativas: qual seja, a livre continuação de uma degradação ambiental em ritmo acelerado e em escalas colossais. Quando comparados com um horizonte de expectativas no qual a degradação ambiental esteja simplesmente ausente, tais resultados não podem senão parecer meros paliativos que, é verdade, podem até postergar em alguma medida o colapso geral, mas não são capazes de impedi-lo, nem mesmo de retardá-lo por muito mais tempo.
A resposta protocolar das teorias hegemônicas da justiça, quando acusadas de resumirem o objeto da justiça a bens ou recursos distribuíveis, consiste em ampliar o significado de bens ou recursos: não se trataria apenas de bens ou recursos materiais, mas de todo e qualquer item que pudesse ser distribuído em prol da realização da justiça. Um bom exemplo disso seriam as chamadas "bases sociais do autorrespeito", bens primários a serem distribuídos na teoria da justiça de John Rawls.
Todavia, em primeiro lugar, essa resposta eleva a um tal grau de generalidade o significado de bens ou recursos que corre o risco de tornar a teoria totalmente inócua diante do mundo e das necessidades concretas da justiça. Em segundo lugar, embora afirmando que sua concepção de bens ou recursos estende-se para além de meros bens ou recursos materiais, as teorias hegemônicas da justiça dificilmente conseguem oferecer exemplos concretos envolvendo bens ou recursos que não sigam a lógica de bens ou recursos materiais. Em terceiro lugar, resta saber até que ponto é realmente possível traduzir toda e qualquer pretensão por justiça em termos de bens ou recursos, ainda quando concebidos do modo mais abstrato possível. Não haveria uma incomensurabilidade, por exemplo, entre relações de reconhecimento não deturpadas e o conceito de bens ou recursos? Seria mesmo possível conceber que relações intersubjetivas de reconhecimento são bens ou recursos que precisam ser distribuídos? E, quanto ao desenvolvimento sustentável, seria possível conceber a natureza como bem ou recurso a ser distribuído de maneira justa sem que isso engendrasse a continuação da exploração que, em tom de alerta, hoje coloca o desenvolvimento e a sustentabilidade como temas da ordem do dia?
Doutra margem, no entanto, cabe indagar se a alternativa apresentada por Honneth tem algo a oferecer ao tema do desenvolvimento e da sustentabilidade. Tomar como objeto da justiça uma teia de relações intersubjetivas de reconhecimento aptas a possibilitar aos sujeitos nelas inseridos o desenvolvimento da capacidade de autodeterminação e, consequentemente, sua autorrealização pode contribuir para enfrentar a série de problemas que decorrem, em última instância, da relação entre a espécie humana e a natureza que a circunda?
Certamente, uma resposta a essa indagação não é simples nem fácil. Ela envolveria tanto um retorno aos textos mais antigos de Axel Honneth - quando sua pretensão teórica era fundamentar todo e qualquer conflito social, e também aqueles movimentos sociais ligados à ecologia e ao ambientalismo portanto, na gramática moral da luta por reconhecimento - quanto um diálogo aprofundado com o desenvolvimento mais recente da obra honnethiana, o que não cabe no presente texto. De qualquer modo, em um juízo preliminar, parece que a resposta seria negativa. E isso, senão por outros motivos, por um muito simples: a justiça em Honneth permanece sendo algo restrito ao âmbito interno da espécie humana.

VI - Teoria da justiça e limitações quanto à titularidade de pretensões de justiça

Gostaria de voltar ao experimento mental que esbocei acima: a suposição de uma geração, seja a geração presente ou alguma geração futura, que não quisesse deixar descendentes, isto é, que quisesse apenas viver o seu tempo na Terra, sem durar para além dela mesma. Quais seriam, assumida essa suposição, as consequências para os problemas do desenvolvimento e da sustentabilidade? Ou, trocando os termos, quais seriam as consequências para a relação entre humanidade e natureza?
Ao criticar aquilo que chamei de uma limitação temporal das teorias hegemônicas da justiça, vali-me dessas perguntas para dar a entender que, assumida tal suposição, as consequências para o futuro do planeta poderiam ser catastróficas, posto que as teorias hegemônicas da justiça teriam uma dificuldade imensa - talvez intransponível - em lidar com uma situação como esta: como ordenar uma sociedade de modo justo, preocupando-se ao mesmo tempo com o futuro das condições de possibilidade ambientais da vida humana, se a própria espécie humana não tem interesse em estar viva nesse futuro.
Na própria colocação dessa dificuldade, contudo, revela-se outra limitação das teorias hegemônicas da justiça: o fato de a humanidade não pretender estar viva no futuro somente pode representar um aumento exponencial do risco para o planeta se se assume outra suposição fundante, qual seja, a de que os debates relativos à teoria da justiça devem permanecer internos à espécie humana. É essa suposição e as consequências dela derivadas que chamo aqui de limitações quanto à titularidade de pretensões de justiça.
Se o cerne dos graves problemas hoje mais ou menos englobados, ou ao menos maquiados, sob as rubricas do desenvolvimento e da sustentabilidade é o modo como se dá o relacionamento entre humanidade e natureza, será mesmo que um conjunto de teorias que tomam por titulares das pretensões das quais elas tratam apenas os sujeitos humanos têm condições de contribuir de alguma maneira para a superação desses problemas?
Uma alternativa que costuma ser apontada consiste em defender a proteção da natureza como justa na medida em que corresponde a demandas humanas por justiça. Ou seja, a justiça, e as teorias dominantes que se debruçam sobre ela, tem algo a dizer sobre e para a natureza não por causa da própria natureza, mas por causa do interesse humano na preservação dessa natureza. Essa aparente rota de escape, entretanto, sucumbe igualmente diante do exercício mental trabalhado acima: se se pode imaginar um momento em que a humanidade não tenha mais pretensões de continuar viva, como espécie, isto é, um momento em que uma determinada geração não pretenda mais deixar descendência no mundo, a proteção da natureza, que se justificava apenas por causa da humanidade nela interessada, também perde totalmente o sentido.
Uma outra perspectiva procura romper com essa limitação quanto à titularidade das pretensões de justiça atribuindo tais pretensões à própria natureza. Em geral, isso se materializa na concepção da natureza como titular de direitos. O exemplo mais concreto e mais detidamente trabalhado recentemente advém do chamado Novo Constitucionalismo Latino-Americano, sobretudo das inovações realizadas em países como Equador e Bolívia.
Boaventura Santos é um dos autores que têm refletido teoricamente sobre tais inovações (SANTOS, 2010). Na verdade, já há um bom tempo aquele que seria o principal sociólogo lusofônico vivo neste momento vem discutindo temas que ganharam vida e assumiram a centralidade do debate constitucional na América Latina apenas nos últimos anos. Ao defender o que ele mesmo chama de uma concepção multicultural dos direitos humanos por meio de uma hermenêutica diatópica, Boaventura já alertava para uma incompletude da concepção ocidental dos direitos humanos - o que ele chama de topos dos direitos humanos - frente ao topos do dharma, na cultura indu,e da umma, na cultura islâmica:

Vista a partir do dharma, e, na verdade, também a partir da umma, como veremos a seguir, a concepção ocidental dos direitos humanos está contaminada por uma simetria muito simplista e mecanicista entre direitos e deveres. Apenas garante direitos àqueles a quem pode exigir deveres. Isto explica por que razão, na concepção ocidental dos direitos humanos, a natureza não possui direitos: porque não lhe podem ser impostos deveres. Pelo mesmo motivo, é impossível garantir direitos às gerações futuras: não possuem direitos porque não possuem deveres. (SANTOS, 1997, p. 24)

É com essa "simetria muito simplista e mecanicista" que a ideia de pacha mama procura romper no horizonte do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao considerar a natureza como sujeito de direitos.
Essa perspectiva, todavia, está muito distante do mainstream das teorias da justiça contemporaneamente: se, como virtude que se exerce perante outrem, a justiça já titubeia e se mostra impotente diante de outras e outros que ainda não estão vivos, seus limites mostram-se ainda mais claros frente a outrem que parece radicalmente outrem, a outrem que, conquanto seja o mesmo da humanidade, foi construído por ela, humanidade, como radicalmente distinto dela: ela, a cultura; o outro, radicalmente outro, a natureza.

VII - Teoria da justiça e limitações quanto à linguagem em que suas pretensões se expressam

O fato de que uma perspectiva de consideração da natureza como titular de pretensões de justiça seja efetivada, em geral, pela sua consideração como sujeito de direitos revela, não obstante, outra limitação das teorias hegemônicas da justiça: a linguagem na qual conseguem exprimir suas conclusões teóricas dificilmente logra escapar da linguagem jurídica moderna. Em geral, pretensões de justiça somente ganham alguma concretude no mundo moderno se podem ser transpostas adequadamente para o código do direito moderno.
A questão que então se coloca é: ainda que se possa considerar a natureza como titular de pretensões de justiça e sujeito de direitos, esse direito moderno, com a estrutura formal interna que lhe é própria, é capaz de abrigar adequadamente conteúdos que materializem preocupações relativas ao desenvolvimento e à sustentabilidade?
Temos acompanhado as mudanças no universo jurídico causadas pelo chamado direito ambiental. Essas mudanças não se resumem apenas ao surgimento de um novo ramo ou setor específico do direito: a partir desse novo ramo, as mudanças trazidas por ele afetam praticamente todos os outros setores jurídicos.
No direito constitucional, por exemplo, ao lado dos direitos fundamentais individuais, políticos, sociais, econômicos, trabalhistas, coletivos e individuais homogêneos, passam a figurar os direitos difusos: direitos cuja titularidade não pode ser definida de modo nítido e recortado, mas pertence difusamente a toda a humanidade. O exemplo mais significativo desses direitos difusos continuam sendo aqueles direitos referentes a um ambiente ecologicamente equilibrado.
Para além do direito constitucional, mudanças importantes, ou ao menos traços delas, continuam sendo exigidas no direito penal, no direito administrativo, no direito processual, no direito trabalhista, no direito tributário, no direito civil e no direito empresarial. Quanto ao direito internacional, um dos objetos centrais do presente livro, e à teoria do direito, objeto específico do presente capítulo, acredito que as evidências aqui relatadas falem por si mesmas.
Não obstante a relevância de todas essas mudanças, elas seguem convivendo bem com uma concepção geral que protege a natureza apenas em razão do interesse humano em tal proteção. Isso fica muito claro no caso dos direitos fundamentais difusos: o direito a um ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental dos seres humanos. Mas, tão breve se reconheça a própria natureza como sujeito de direitos, essas mudanças continuam sendo suficientes? Ou mudanças outras, muito mais radicais, passam a ser exigidas? Para ficarmos apenas com um exemplo: como ficaria o direito processual e questões como legitimidade, representação processual e substituição processual em causas nas quais a natureza figurasse como sujeito de direitos?
Assim, a dúvida que persiste é: uma nova concepção, segundo a qual a própria natureza é reconhecida como sujeito de direitos, encontra abrigo no direito? Não seria uma outra limitação importante das teorias hegemônicas da justiça o fato de não se conseguirem expressar senão num linguagem jurídica moderna, ao passo que a natureza reconhecida como sujeito de direitos não cabe exatamente nessa linguagem jurídica moderna? Mas, ainda que tal concepção da natureza como sujeito de direitos não encontre guarida no direito, as mudanças acima referidas e que já foram realizadas no direito, por meio do que se chama em geral de direito ambiental e das transformações por ele exigidas nos outros ramos, não seriam já suficientes para o desenvolvimento e a sustentabilidade? Direito, então, versus natureza? Direito, porém, ao lado do desenvolvimento e da sustentabilidade? Desenvolvimento e sustentabilidade, portanto, versus natureza?
O aparente paradoxo dessas perguntas não é aleatório. Ele, na aparência de falsidade de sua superfície, apenas revela contradições que, mais profundas, são reais no mundo.

VIII - Teoria da justiça e limitações estruturais mais profundas: a ordem capitalista e a impotência do dever-ser

Como afirmei no início deste texto, meu objetivo era realizar uma primeira aproximação aos temas do internacionalismo e do desenvolvimento sustentável, aproximação que seria realizada à luz da teoria da justiça. Para tanto, pareceu-me uma boa alternativa metodológica começar traçando um panorama do que hoje seriam teorias hegemônicas da justiça. Tal panorama foi apresentado com base em Axel Honneth e no diálogo que ele vem estabelecendo com essas teorias hegemônicas. Inicialmente, minha preocupação foi tentar verificar em que medida os elementos definidores das teorias que contemporaneamente continuam dominando o debate acadêmico sobre justiça eram ou não elaborados de maneira apta a enfrentar problemas derivados do desenvolvimento e da sustentabilidade.
Invertendo o percurso argumentativo do próprio Honneth, meu primeiro passo consistiu em tratar das limitações espaciais ou territoriais das teorias contemporâneas da justiça, uma vez que aqueles problemas relativos ao desenvolvimento e à sustentabilidade somente podem ser adequadamente enfrentados em um plano supranacional. O segundo passo consistiu em apontar como o modus operandi padrão dessas teorias - premissas sustentadas por intuições e procedimentos formais fictícios baseados naquelas premissas - pode acabar por enredá-las em uma espécie de aporia diante de questões que possuem uma dimensão temporal dilatada, exatamente o tipo de questões que emergem nas discussões sobre desenvolvimento e sustentabilidade. O terceiro passo, por sua vez, consistiu em questionar se uma compreensão do objeto da justiça como sendo bens a serem distribuídos pode realmente fazer frente aos desafios postos pela gramática do desenvolvimento e da sustentabilidade.
Até esse terceiro passo, o binômio desenvolvimento e sustentabilidade foi assumido sem maiores questionamentos e as limitações apontadas resumiram-se a tentar mostrar como as teorias hegemônicas da justiça não parecem bem equipadas para lidar com os riscos e as crises que se discutem sob o rótulo do - unindo os termos do binômio em uma única expressão conceitual - desenvolvimento sustentável. Após esse terceiro passo, contudo, impôs-se, pela própria lógica interna da argumentação por mim empreendida, dois outros passos que pareciam sugerir duas outras graves limitações das teorias hegemônicas da justiça: limitações quanto à titularidade de pretensões de justiça e limitações quanto à linguagem em que essas pretensões se expressam.
Ao lidar com essas duas outras limitações, o desenvolvimento sustentável foi mostrando-se insuficiente e precisou abrir sua casca para que sob ela reluzisse o verdadeiro cerne dos problemas a que ele se refere: a relação entre humanidade e natureza. De modo aparentemente paradoxal, o quinto dos meus passos argumentativos terminou questionando até que ponto o desenvolvimento sustentável poderia ser lido como algo contrário à própria natureza que supostamente ele, ainda que apenas motivado por interesses da humanidade, pretendia proteger.
Com isso, a própria indagação precípua que guiara o presente texto desde o início na aproximação por ele almejada muda, inevitavelmente, de figura: não se trata tanto mais de saber até que ponto a teoria da justiça está apta a enfrentar os problemas que o desenvolvimento sustentável procura enfrentar, mas de saber até que ponto o próprio desenvolvimento sustentável não precisa ser abandonado se o que quisermos for alterar radicalmente a relação entre a humanidade e a natureza. Pois, por mais que a expressão desenvolvimento sustentável permaneça vaga e aberta a interpretações variadas (NOBRE, 1999; VEIGA, 2005; NAVARRO, 2013), todas elas parecem convergir em um ponto: a aceitação de que entre desenvolvimento e sustentabilidade não haveria uma contradição relevante. Nessa toada, os três pilares fundamentais do desenvolvimento sustentável, estabelecidos desde o Relatório Brundtland em 1987, são mais do que reveladores: eficiência econômica, equidade social e prudência ecológica (NAVARRO, 2013). Em outras palavras, manter a produção econômica crescente, procurando mitigar a desigualdade e reduzir a degradação ambiental. Em palavras ainda mais específicas: manter a mesma lógica do modo de produção capitalista responsável pelos problemas que, em tese, o desenvolvimento sustentável surge para tentar enfrentar. Ou seja, o desenvolvimento sustentável, desde o início, não conseguiu ser mais do que mais do mesmo. E se é verdade que alguns resultados puderam ser obtidos em termos de redução da degradação ambiental, é preciso não se esquecer de que esses resultados são muitas vezes simples externalização dessa degradação, com os capitais limpos de países da Europa, da América do Norte ou da Ásia extraindo lucros de sua aplicação em arranjos produtivos extremamente sujos por eles montados em países pobres espalhados pelo mundo.
Essa crítica ao desenvolvimento sustentável não apresenta novidade alguma. Já há muito ela vem sendo apresentada, por abordagens distintas. Correntes teóricas como o pós-desenvolvimento, a economia ecológica, o decrescimento e o ecossocialismo, cada uma a seu modo, têm em comum o fato de recusarem o mainstream apologético do desenvolvimento sustentável.
Não obstante a capacidade de afastar-se da ilusão otimista em torno do desenvolvimento sustentável, o que mais impressiona é, por outro lado, a impotência das propostas críticas delineadas por essas correntes. Todas elas conseguem enxergar na manutenção do modo de produção capitalista o grande obstáculo a uma relação menos predatória entre humanidade e natureza. Mas raramente conseguem enxergar a estrutura fundamental desse modo de produção e a lógica interna de seu funcionamento que conduz inelutavelmente à degradação da vida - tanto humana quanto da natureza. Assim, boa parte das propostas se resumem a expectativas bonitas de futuro, mas que me parecem padecer daquilo que, pelo menos desde Hegel, costuma ser referido como impotência do dever-ser.
Seria ótimo se o nível de consumo e produção dos países mais ricos do mundo diminuísse. Seria ótimo se, além de uma diminuição quantitativa do consumo e da produção, houvesse também uma alteração qualitativa desse consumo. Seria excelente que o valor de uso ganhasse o centro do mercado, deixando de lado o valor que se expressa nas relações de troca. Seria belo se todas as pessoas, ou ao menos a maioria delas, mudassem seu modo de enxergar o mundo e a vida e se essa mudança cultural pudesse significar um jeito mais livre e prazeroso de aproveitar nosso breve tempo na face da Terra, com menos rigor e trabalho e mais afeto e lazer. Mas, enquanto nossa sobrevivência estiver enredada em relações capitalistas de produção, tudo isso dificilmente conseguirá passar de meras expectativas bonitas de futuro, tão bonitas quanto ingênuas e fadadas à inoperatividade, isto é, à impotência do dever-ser.
Se a maneira que temos para extrair nossas condições cotidianas de sobrevivência do mundo no qual nos inserimos são as relações capitalistas de produção, por mais belas que sejam nossas intenções elas acabam tendo de ceder frente aos imperativos da estrutura e da lógica do capitalismo. Pois é preciso estar vivo para querer mudar de vida e mudar a vida. E aqui a contradição real se apresenta com toda sua força: o que está em jogo para a humanidade como espécie, neste momento mais do que em qualquer outro, é sua sobrevivência ao longo do tempo; todavia, o que ameaça essa sobrevivência duradoura é exatamente o modo como ela é obtida neste momento da história humana.
Mas em que consiste esse "modo de obter sobrevivência neste momento da história humana"? A transição do regime feudal para o capitalismo implicou mudanças estruturais básicas: progressivamente, a propriedade privada foi se institucionalizando como regime geral de apropriação das coisas do mundo; ao lado disso, práticas extremamente violentas foram separando a humanidade em dois grupos muito nítidos: os que tinham a propriedade privada dos meios para produzir outros produtos (os donos de terras, os donos de indústrias, os donos de instituições de crédito) e os que não tinham senão a propriedade privada de seu próprio corpo e - para não morrer pela fome, pela sede e pela falta de abrigo - precisavam vender esse corpo como força de trabalho para aquele primeiro grupo e, com isso, obter condições de sobrevivência, ou seja, condições de comprar aqueles produtos produzidos por eles mesmos, mas com os meios de produção daquele primeiro grupo. Essa separação tornou possível que aquele primeiro grupo, ao investir dinheiro na obtenção dos meios de produção, pudesse, depois que esses meios fossem postos em operação pelo segundo grupo, obter mais dinheiro ao final de um certo período temporal. Assim, tornou-se possível o desenvolvimento da lógica de autovalorização do capital, lógica que, como que pelas nossas costas, força-nos diariamente a nos mantermos dentro dela.
Propriedade privada, separação entre proprietários dos meios de produção e expropriados dos meios de produção, e autovalorização do capital: em um resumo arriscado, nisso consiste a estrutura e a lógica fundamentais do modo de produção capitalista. E é esse o modo pelo qual obtemos hoje no mundo nossa sobrevivência cotidiana.
Toda essa linguagem marxista parecia obsoleta até alguns anos atrás. Falar em classes sociais, em distinção entre proprietários e expropriados dos meios de produção, em crítica da propriedade privada: tudo isso pareciam figuras de museu frente às maravilhas da vitória do capitalismo global e da harmonia de todos os grupos nas sociedades ocidentais. A crise econômica mundial que, a partir de 2008, vem assolando países da Europa tem deixado claro que todos esses conceitos são conceitos que ainda explicam o mundo: o que os vários movimentos de contestação da Europa e também dos Estados Unidos entenderam e provaram foi que mesmo nesses países há uma distinção fundamental para além de todas as outras: os que detêm os meios de produção e sobrevivem com tranquilidade às crises e os que não detêm senão seus próprios corpos a serem vendidos como força de trabalho, força de trabalho que, em épocas de crises agudas, deixa de ser comprada, colocando em risco a vida desse segundo grupo e escancarando a desigualdade estrutural e a lógica perversamente cega do capitalismo.
Enquanto as relações capitalistas de produção forem o modo pelo qual a humanidade extrai suas condições presentes de sobrevivência, a sobrevivência futura dessa humanidade e da natureza da qual ela faz parte permanecerá em risco. O conceito de desenvolvimento sustentável, qualquer que seja a definição que se lhe dê, é, ele mesmo - exatamente por sua raiz capitalista, ou seja, por assumir que não há contradição entre desenvolvimento e sustentabilidade -, um conceito insustentável.
Tudo isso está bastante distante do que em geral se discute hoje no âmbito da teoria da justiça, tanto no que diz respeito às teorias hegemônicas da justiça quanto no que diz respeito às variadas correntes de contestação que tais teorias têm enfrentado. Afinal de contas, por mais relevantes que sejam as limitações por mim apontadas acima, o âmbito total das teorias da justiça em voga no universo acadêmico - as teorias hegemônicas e as abordagens que as contestam - parece conseguir, mediante alguns ajustes mais ou menos profundos, lidar com as questões postas pelo desenvolvimento sustentável. Bens ou recursos compreendidos num sentido o mais ampliado possível, ao lado de relações de reconhecimento, podem resolver os problemas de limitação quanto ao objeto. Abordagens supranacionais podem romper sem maiores dificuldades as limitações espaciais ou territoriais. Quanto à limitação quanto à titularidade das pretensões de justiça, proteger a natureza na medida em que ela sirva aos interesses humanos não é um problema interno para as variadas perspectivas na teoria da justiça, posto que todas elas sempre comungaram de um certo pano de fundo antropocêntrico. E, exatamente por isso, se em algum momento a humanidade não pretender mais deixar descendência e continuar existindo no mundo, não faria mais sentido pensar a justiça além dessa duração, de modo que também as limitações temporais por mim apontadas podem ser tranquilamente acomodadas. Por iguais motivos, expressar-se em uma linguagem jurídica não representa um problema.
A teoria da justiça poderia, assim, ainda que por meio de transformações e correções internas mais relevantes ou menos relevantes, oferecer-se como aliada do desenvolvimento sustentável. Mas ambos são igualmente impotentes frente às contradições reais que marcam hoje o problema da sobrevivência presente e futura, isto é, a relação mais profunda entre humanidade e natureza.
Se levarmos a sério uma epistemologia e uma metodologia de base materialista, tão bem resumida por Marx no posfácio à segunda edição d`O Capital, poderíamos encerrar o percurso argumentativo do presente texto da seguinte maneira. Enquanto o capitalismo florescia e amadurecia era possível que suas contradições mais profundas e perversas não se mostrassem no mundo com tanta força, sobretudo no mundo europeu distante da realidade brutal das colônias. Nesse período, foi possível que a economia política, como campo do saber, surgisse, crescesse e se proliferasse, tivesse vários discípulos e correntes variadas discutindo entre si, mas todas elas sem tocar nas raízes dos problemas que já assolavam, ou viriam a assolar, a economia capitalista. Estabilizado e consolidado em grau significativo esse capitalismo, seus problemas fizeram sangrar toda a Europa e suas contradições tornaram-se impossíveis de serem negadas em qualquer teoria minimamente comprometida com a realidade do mundo. Nesse novo contexto, tornou-se impossível continuar fazendo economia política, mas tornou-se possível realizar a crítica da economia política, sendo a este trabalho que Marx se dedicou: não tanto pôr algo novo no mundo, mas explicitar as contradições do que já estava posto.
A teoria da justiça surgiu em um momento no qual o Estado Social havia alcançado seu ápice – e, por isso mesmo, começava, em várias partes do mundo, a ser acusado por diversos motivos. Tal teoria floresceu como tentativa de salvaguardar a estabilidade e a relativa igualdade que as sociedades ocidentais modernas puderam alcançar como sociedades de massas sob o regime do Estado Social. Nas últimas quatro décadas, as variadas abordagens da teoria da justiça encontraram campo fértil para surgirem, crescerem e se multiplicarem, discutindo entre si a maneira mais adequada de preservar aquilo que assumiam como realidade de fundo imutável: sociedades capitalistas, democráticas, harmoniosas e livres. Os últimos anos têm mostrado que o solo sereno onde floresceu a teoria da justiça e por cuja proteção ela fez esforços louváveis não passava de uma ilusão, de uma imagem de leveza perecível: tão logo o capitalismo seja abalado por crises mais profundas, a democracia se torna dispensável para ele, o autoritarismo ameaça como alternativa supostamente mais eficiente, a harmonia cai por terra e a própria liberdade se torna uma palavra tida como perigosa.
Neste novo contexto, diante dos dilemas que se já se apresentam ou que se anunciam, uma teoria da justiça talvez não seja mais epistêmica e metodologicamente possível. E mesmo uma teoria crítica da justiça, como pretenderia, no Brasil, um autor como Denílson Werle (2014), não faria mais do que abstrações teóricas que negam a realidade bruta do mundo. A única alternativa teórica consistente que parece restar, diferentemente de uma teoria da justiça e inclusive de uma suposta teoria crítica da justiça, seria a crítica da teoria da justiça: isto é, a possibilidade de uma crítica consistente e coerente com o tempo presente residiria não na proposta de uma nova teoria da justiça, mas na explicitação das contradições insuperáveis em que se enreda toda e qualquer teoria da justiça frente ao movimento real do mundo contemporâneo.

IX - Considerações finais

A maior parte dos argumentos por mim aqui avançados, senão todos, carece de aprofundamentos, complementações, detalhamentos e relativizações. Como a proposta deste texto era de uma primeira aproximação, acredito, no entanto, que o delineamento geral aqui estabelecido pode, quando menos, contribuir para suscitar o debate acerca da relação entre justiça, desenvolvimento e sustentabilidade, inclusive para além desses termos.
Quaisquer que sejam os caminhos que esse debate venha a seguir, uma certeza mínima parece clara: não é mais possível abordar nenhum desses temas fora de uma reflexão de fundo internacionalista, isto é, dentro das restritas fronteiras que a história arbitrariamente construiu na face da Terra.

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