Justiciabilidade nos Estados Unidos da America: Limites para a obtenção de uma decisão pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América

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Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio Marcelo Kokke & Igor de Carvalho Enríquez Organização

PRECEDENTES JUDICIAIS, JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E ATIVISMO JUDICIAL

Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política Volume 3

Belo Horizonte 2016

PRECEDENTES JUDICIAIS, JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E ATIVISMO JUDICIAL

Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio, Marcelo Kokke e Igor de Carvalho Enríquez (Orgs.) Copyright © desta edição [2016] Initia Via Editora Ltda. Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes Belo Horizonte, MG - CEP 30140-061 www.initiavia.com Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro Revisão: autores Diagramação e capa: Brenda Batista Imagem da Capa: Colunas do STF e escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, por Evaristo Sá/AFP (11. fev. 2007) TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas. ______________________________________________________

C749

Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política (2. : 2015 : Belo Horizonte, MG) Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial / organizadores: Thomas Bustamante, José Adércio Leite Sampaio, Marcelo Kokke, Igor de Carvalho Enríquez. - Belo Horizonte : Initia Via, 2016. 206 p. – (Anais do II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política, v. 3) ISBN 978-85-64912-90-8 (Volume 3) ISBN 978-85-64912-87-8 (Coleção) 1. Direito constitucional - Congressos . 2. Filosofia do direito – Congressos. I. Bustamante, Thomas. II. Sampaio, José Adércio Leite Sampaio. III. Kokke, Marcelo. IV. Enríquez, Igor de Carvalho. V. Título. CDU: 340(061.3)

Programas de Pós-Graduação Stricto Senso da Universidade Federal de Minas Gerais e da Escola Superior Dom Helder Câmara Apoios institucionais: Capes e Fapemig https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V03

COMISSÃO ORGANIZADORA Thomas da Rosa de Bustamante (Presidente) Bernardo Gonçalves Fernandes José Adércio Leite Sampaio Élcio Nacur Rezende Igor de Carvalho Enríquez Evanilda Nascimento de Godoi Bustamante João Víctor Nascimento Martins Ana Luisa de Navarro Moreira Grégore Moreira de Moura Ludmila Lais Costa Lacerda Christina Vilaça Brina Deivide Júlio Ribeiro Beatriz Souza Costa Cácia Rita Stumpf Francisco Haas Lucas Azevedo Paulino Adriano Souto Borges Renan Sales de Meira Franklin Vinícius Marques Dutra

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SUMÁRIO Uma era de “commom law” para o Brasil? Katya Kozicki William Soares Pugliese Peso político das decisões judiciais estruturantes:o poder judiciário como agente para implementação de políticas públicas Luciana Cristina de Souza A configuração dos precedentes no cenário jurídico brasileiro Carolina Almeida Maíra Almeida O precedente judicial e a sua vinculação no ordenamento jurídico brasileiro Antônio Álvares da Silva Isabela Murta de Ávila O protagonismo do poder judiciário: a atuação do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral frente à legislação eleitoral brasileira Paulo Vinicius Liebl Fernandes A relevância no estudo de parâmetros na aplicabilidade de precedentes judicias e a segurança jurídica Allan Marques Regimentos internos legislativos como parte do bloco de constitucionalidade brasileiro: fundamento para o controle judicial dos atos “interna corporis” Lucas Tavares Mourão Advisory opinion: o mito da inexistência de controle abstrato de constitucionalidade nos Estados Unidos Marcelo Kokke

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Justiciabilidade nos Estados Unidos da América: limites à obtenção de uma decisão pela Suprema Corte Guilherme Brenner Lucchesi William Soares Pugliese Peter Häberle e o “pensamento das possibilidades” na jurisprudência do STF: um estudo de caso da Ação Penal 470 André Rubião Guilherme Gosling

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Ativismo judicial e a aplicação da teoria do valor de desestímulo: proposição para uma mais efetiva proteção civil do meio ambiente brasileiro Maraluce Maria Custódio Fernando Barotti dos Santos

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A judicialização da saúde e as formas alternativas de resolução de conflito Emmanuelle Konzen Castro

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A judicialização da saúde e a responsabilidade dos entres da federação nas demandas judicias de medicamentos 167 Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia Jéssica Helena Braga Araújo Interpretação das normas fundamentais de direitos sociais em tempos de crise econômica: hermenêutica constitucional à luz da (im) possibilidade jurídica de vedação ao retrocesso social 180 Matheus Medeiros Maia Rafael Soares Duarte Moura A concorrência como instrumento: por um diálogo entre os princípios constitucionais da livre concorrência e da defesa do consumidor 194 Andressa C. Schneider

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JUSTICIABILIDADE NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA LIMITES À OBTENÇÃO DE UMA DECISÃO PELA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS Guilherme Brenner Lucchesi1 William Soares Pugliese2 Introdução Ao se tratar do controle de constitucionalidade no Brasil, é bastante comum que os autores se utilizem de referências ao sistema de judicial review americano3, o qual ocorre apenas pela via difusa. Mais do que isso, não são apenas os juristas brasileiros que se influenciam pela doutrina americana, mas toda a sociedade brasileira – vale recordar do recente julgado que reconheceu o direito fundamental ao casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos na América4, amplamente celebrado e noticiado pela imprensa brasileira, mesmo tendo o Brasil decidido esta questão Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2008). Master of Laws (LL.M.) pela Cornell Law School (2010). Doutorando em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professor Substituto de Prática Penal com ênfase em Violência e Gênero da Faculdade de Direito da UFPR. Conselheiro do Instituto dos Advogados do Paraná. Diretor Financeiro Adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico. Membro da Comissão da Advocacia Criminal e da Comissão de Estudos de Violência de Gênero da OAB/PR. Advogado. [email protected] 2 Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2008). Mestre em Direito das Relações Sociais pelo PPGD/UFPR (2011). Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Professor Substituto de Direito Constitucional e Teoria do Estado da UFPR. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR. Coordenador da Pós-graduação em Direito Processual Civil da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Advogado. [email protected] 3 Para os fins do presente trabalho serão adotados os gentílicos “americano” ou “estadunidense”; evita-se o uso da expressão “norte-americano”, comumente utilizada, por entende-la morfologicamente equivocada, pois a América do Norte compreende, além dos Estados Unidos da América, também o Canadá e o México. 4 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Obergefell v. Hodges. United States Reports, vol. 576, p. ___, Washington: GPO, 2015. 1

https://dx.doi.org/10.17931/DCFP2015_V03_42

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anteriormente.5 Se, por um lado, é preciso ter sempre em mente que um sistema alienígena não é totalmente compatível com o nacional6, também é necessário olhar para as regras e procedimentos adotados no estrangeiro com a intenção de se aprimorar o ordenamento pátrio. É com este propósito que se pretende apresentar características absolutamente distintas do sistema de judicial review estadunidense quando comparado ao brasileiro, que constituem limites à prolação de uma decisão judicial em casos envolvendo pretensas ofensas à Constituição dos Estados Unidos da América. Ao dispor sobre o Poder Judiciário da União no Artigo III da Constituição dos Estados Unidos, estabeleceu-se que haveria atuação das cortes federais apenas em casos e controvérsias, sendo necessário demonstrar a existência de um litígio entre alguma das partes enumeradas na primeira parte da Seção 2 daquele artigo.7 Por evidente, isso significa que são vedados pareceres consultivos pelos órgãos do Poder Judiciário.8 No entanto, aponta-se a necessidade de que, para haver um caso ou controvérsia, o autor deve demonstrar que sofreu alguma espécie de dano que provavelmente seja corrigido ou compensado com uma decisão favorável, o que é Sobre o processo de “americanização” do Direito na tradição Civil Law, ver MATTEI, Ugo. A theory of imperial law: A study on U.S. hegemony and the Latin resistance. Global Jurist Frontiers. Berkeley, v. 3, n. 2, 2003. 6 Acerca dos cuidados a serem tomados na análise comparada de conceitos, ver WATSON, Alan. Legal transplants: An approach to comparative law. 2. ed. Athens: University of Georgia, 1993; TEUBNER, Gunther. Legal irritants: Good faith in British law or how unifying law ends up in new divergences. Modern Law Review, London, v. 61, 1998; LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations: The globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. Harvard International Law Journal. Cambridge, v. 45, n. 1, inverno de 2004. 7 “The judicial power shall extend to all cases, in law and equity, arising under this Constitution, the laws of the United States, and treaties made, or which shall be made, under their authority;--to all cases affecting ambassadors, other public ministers and consuls;--to all cases of admiralty and maritime jurisdiction;--to controversies to which the United States shall be a party;--to controversies between two or more states;--between a state and citizens of another state;--between citizens of different states;--between citizens of the same state claiming lands under grants of different states, and between a state, or the citizens thereof, and foreign states, citizens or subjects.” 8 FRANKFURTER, Felix. A Note on Advisory Opinions. Harvard Law Review, vol. 37, 1924, p. 1002. 5

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chamado de standing.9 Para além disso, coloca-se um limite de discricionariedade pela Suprema Corte com relação aos casos que entende serem relevantes a ponto de merecer decisão pela mais alta corte daquele país, o chamado writ of certiorari. Etimologicamente, a expressão decorre do infinitivo “certiorare”, que significa “informar” ou “mostrar”. Sua função atual no judiciário americano é determinar que uma corte inferior “mostre” ou “informe” à Suprema Corte um caso previamente decidido sobre o qual poderá incidir controle de constitucionalidade.10 Assim, em definição meramente estipulativa, tem-se que o writ of certiorari não é uma garantia de decisão favorável, mas sim uma decisão da Suprema Corte de que ela decidirá sobre o mérito de uma causa. Repita-se: a Corte tem discricionariedade para decidir se irá decidir um caso. Resta saber como tais limites são operados no sistema jurídico de origem. Para tanto, serão apreciados os dispositivos legais que tratam do tema e a construção jurisprudencial desenvolvida sobre os institutos pela própria Suprema Corte dos Estados Unidos da América.

1. O entendimento a respeito de standing na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos da América De acordo com o posicionamento das cortes americanas, o Artigo III da Constituição dos Estados Unidos limite os tribunais federais ao julgamento de verdadeiros casos e controvérsias.11 De acordo com a decisão da Suprema Corte no caso Allen v. Wright, “em essência, a questão de standing é se o litigante tem direito a ter o tribunal decidir o mérito da disputa ou das questões particulares”.12 Tais limites incluem a proibição de uma parte invocar os ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Simon v. Eastern Kentucky Welf. Rights Org. United States Reports, vol. 426, p. 26 Washington: GPO, 1976. p. 38. 10 MELLO, Vitor Tadeu Carramão. A repercussão geral e o writ of certiorari.: breve diferenciação. Revista da SJRJ. Rio de Janeiro, n. 26, p. 139-146, 2009, p. 141. 11 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Allen v. Wright. United States Reports, vol. 468, p. 737. Washington: GPO, 1984. 12 Idem, p. 750-751, citando ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Warth v. Seldin. United States Reports, vol. 422, p. 490. Washington: 9

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direitos de terceiros, a vedação de reclamações generalizadas, cuja resolução é melhor direcionada aos Poderes Executivo e Legislativo, bem como a exigência de que a reclamação do autor recaia sob a zona de interesses protegida pelo dispositivo legal invocado.13 O elemento central da noção de standing, derivado da Constituição americana, dispõe que “o autor deve alegar dano pessoal razoavelmente rastreável à conduta supostamente ilícita do réu e provavelmente corrigida ou compensada pela tutela pleiteada.”14 No caso Allen, os pais de estudantes negros de escolas públicas alegaram em uma ação coletiva nacional que a Receita Federal dos Estados Unidos15 não adotou procedimentos adequados para cumprir sua obrigação de negar isenção tributária às escolas particulares que praticam discriminação racial. Alegam, portanto, serem diretamente prejudicados pela Receita Federal, e que a conduta do órgão interfere com a possibilidade de seus filhos receberem educação em escolas públicas dessegredadas. A Suprema Corte entendeu que os pais não tinham direito a ajuizar tal demanda, pois (i) a concessão de incentivo fiscal a escolas particulares discriminatórias não constitui um dano judicialmente reconhecível e (ii) possuem standing apenas aqueles a quem tenha sido pessoalmente negado tratamento igualitário, e os autores não alegaram terem sofrido dano estigmatizante.16 Baseando-se em outros precedentes17, a Corte decidiu que, para haver standing, o dano alegado deve ser “distinto e palpável˜, ao invés de “abstrato”, “conjectural” ou “hipotético”. Além disso, o dano deve ser razoavelmente rastreável à conduta impugnada, e provavelmente remediado pelo provimento da tutela pleiteada. A própria Suprema Corte, no voto majoritário proferido pela Justice Sandra Day O’Connor, reconheceu que tais definições são imprecisas, inobstante o seu desenvolvimento em precedentes as torne GPO, 1975. 13 Idem, p. 751. 14 Idem. Traduação livre dos autores. 15 Internal Revenue Service (IRS). 16 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Allen v. Wright. United States Reports, vol. 468, p. 737. Washington: GPO, 1984. p. 753-756. 17 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. City of Los Angeles v. Lyons. United States Reports, vol. 461, p. 95. Washington: GPO, 1983; ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Simon v. Eastern Kentucky Welf. Rights Org.. United States Reports, vol. 426, p. 26. Washington: GPO, 1976.

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operáveis, ainda que não mecanicamente.18 Enxerga-se certa similitude desta noção com as categorias de legitimação ad causam e interesse de agir, previstos no Código de Processo Civil brasileiro de 1973, em seu art. 267, VI, como condições da ação. Primeiramente, sobre a legitimação ad causam, ou “legitimação para agir”, LIEBMAN afirma possuir legitimação para propor ou contestar uma demanda aquele a quem pertença o interesse de agir, ou a quem este fizer referência.19 Assim, estaria legitimado para agir apenas aquele a quem se referir o interesse material em conflito, pois, de acordo com o art. 6.º do Código de Processo Civil, “ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado em lei”. Já, quanto ao interesse de agir, entende a doutrina processual civil clássica pela sua existência quando “há para o autor utilidade e necessidade de conseguir o recebimento de seu pedido, para obter, por êsse meio, a satisfação do interêsse (material) que ficou insatisfeito pela atitude de outra pessoa”20, isto é, o autor tem interesse na demanda quando essa lhe trouxer utilidade. Tal fundamento está ligado ao binômio “necessidade-adequação”, pois, além da necessidade de se recorrer à tutela jurisdicional para obtenção do provimento visado, é indispensável, também, que tal provimento seja adequado à solução do litígio.21 Ainda que se percebam semelhanças entre tais categorias e a noção de standing, não se pode cair na armadilha cognitiva de buscar pontos de convergência entre sistemas de todo díspares. Análise mais detalhada demonstra que standing é, ao mesmo tempo, um requisito mais abrangente e mais rigoroso que a legitimidade e o interesse, pois exige estrita demonstração de utilidade à parte, vinculada à ocorrência de um dano concreto causado pela parte adversa. Ademais, analisando a questão sob a ótica do controle de constitucionalidade, verifica-se que o sistema de judicial review, de ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. United States Supreme Court. Allen v. Wright. United States Reports, vol. 468, p. 737. Washington: GPO, 1984. p. 751-752. 19 LIEBMAN, Enrico Túlio. O despacho saneador e o julgamento do mérito. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, vol. CIV, ano XLII, fas. 509, p. 216-226, nov. de 1945. p. 224. 18

20

Idem.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 223. 21

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via difusa, é mais limitado que o sistema de via direta previsto no esquema da Constituição da República Federativa do Brasil, ainda que, pela difusa, todos sejam potencialmente legitimados, em contraste à via concentrada, em que é previsto rol taxativo de possíveis autores em sede de ação direta. Isto porque, ao contrário do controle constitucional abstrato, em que qualquer ato normativo possa ser diretamente acionado perante o Supremo Tribunal Federal, caso haja ofensa ao texto constitucional, o sistema de judicial review exige que o ato inconstitucional venha a causar alguma espécie de dano ao autor. Ademais, pela noção de standing, exige-se que o dano seja remediável pela tutela jurisdicional pleiteada. Para que determinado caso alcance a Suprema Corte dos Estados Unidos, no entanto, não basta que tenha havido uma lesão remediável por meio da ação proposta. Em se tratando de instância recursal, é preciso que se esgotem as instâncias judiciais ordinárias inferiores, e, ademais, que o caso seja reputado relevante pela própria Corte, por meio de critérios discricionários, definidos mediante o procedimento de writ of certiorari.

2. Regras do writ of certiorari no direito positivo americano Os principais dispositivos que tratam do certiorari são encontrados no Título 28 do Code of Laws of the United States of America, uma compilação das leis federais dos Estados Unidos da América. Mais especificamente, interessam neste exame as seções 1.254 e 1.257(a)(b), que tratam do writ para as cortes federais e estaduais, respectivamente. Verbis: § 1.253 Except as otherwise provided by law, any party may appeal to the Supreme Court from an order granting or denying, after notice and hearing, an interlocutory or permanent injunction in any civil action, suit or proceeding required by any Act of Congress to be heard and determined by a district court of three judges. § 1.257 (a) Final judgments or decrees rendered by the highest court of a State in which a decision could be had, may be reviewed by the Supreme Court by writ of certiorari where the validity of a treaty or statute of the United States is drawn in question or where the validity of a statute of any State is drawn in question on the ground of its being repug-

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nant to the Constitution, treaties, or laws of the United States, or where any title, right, privilege, or immunity is specially set up or claimed under the Constitution or the treaties or statutes of, or any commission held or authority exercised under, the United States. (b) For the purposes of this section, the term “highest court of a State” includes the District of Columbia Court of Appeals.

Vê-se, assim, que o propósito do writ of certiorari é uma revisão de uma decisão judicial que pode ser “ofensiva à Constituição”. Não há, no entanto, qualquer outro requisito estabelecido pela lei federal a respeito dos critérios de admissibilidade do instituto; pelo que estabelece a Lei, cabe à própria Suprema Corte definir quais casos merecem ser apreciados. Por isso, diz-se que o certiorari é concedido à discricionariedade da Corte. Não há qualquer tentativa de mascarar esta questão por parte do Judiciário estadunidense. A doutrina reconhece esta característica de forma bastante natural. Ao tratar do tema, CHOPER, FALLON JR, KAMISAR e SHIFFRIN assim definem o writ of certiorari: “um writ discircionário que permite à Corte decidir por si quais casos mais merecem a sua atenção”.22 Retoma-se, aqui, a definição estipulativa estabelecida no início do ensaio: pela via do certiorari, a Corte decide se irá decidir um caso – e é exatamente isto que ela faz. Aliás, ao tratar do tema, os autores acima referenciados vão ainda mais além, reconhecendo que a competência da Suprema Corte não é a de corrigir todas as decisões incorretas das cortes inferiores, mas sim julgar os casos de maior importância para a comunidade: “a fim de permanecer eficaz, a Suprema Corte deve continuar decidindo apenas aqueles casos que apresentam questões cuja resolução terão importância imediata muito além dos fatos particulares e as partes envolvidas”.23 A doutrina brasileira também observou esta peculiaridade do certiorari: O desafio que o certiorari enfrenta é o de conciliar a necessidade de uniformização do direito aplicado em todo o território dos Estados Unidos com as limitações de um tribunal CHOPER, Jesse H.; FALLON JR., Richard H.; KAMISAR, Yale; SHIFFRIN, Steven H. Constitutional Law: cases – comments – questions. 10. ed. St. Paul: Thomson West, 2006, p. 48. Tradução livre dos autores. 23 Idem. Tradução livre dos autores. 22

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composto por apenas nove juízes. Cabe justamente à Suprema Corte o papel de conferir unidade ao ordenamento jurídico. Porém, o volume de trabalho que lhe seria atribuído caso tivesse de decidir todas as questões controversas e uniformizar todas as diferentes interpretações existentes no Judiciário norte-americano já era considerado, à época em que o instituto surgiu, como insuportável para uma corte tão pequena. O certiorari, desta forma, é visto não como a solução ideal, mas como o mecanismo que torna viável a atuação da Suprema Corte na uniformização do direito vigente nos Estados Unidos, por meio da apreciação dos casos mais importantes, de acordo com o seu próprio julgamento.24

Como se observa, porém, o Code of Laws of the United States of America não trata do procedimento do writ of certiorari. Esta matéria é tratada pelo regimento interno da Suprema Corte, especialmente pela Regra 1025. O que salta aos olhos, desde o início, é o reconhecimento da Suprema Corte de que sua atuação é discricionária26. Outro elemento que chama a atenção é a utilização de expressões indeterminadas, como o critério de “fortes razões” para uma petição ser admitida. As subdivisões (a), (b) e (c) da Regra 10 determinam algumas das causas que podem ser julgadas, mas mesmo assim a discricionariedade não é controlada ou limitada por elas. Observe-se, ademais, que a Corte não é obrigada a fundamentar a decisão que nega o certiorari. Esta questão não encontra previsão legislativa, todavia está afirmada nos precedentes da Suprema Corte: Opinion of MR. JUSTICE FRANKFURTER respecting the denial of the petition for writ of certiorari. […] A variety of considerations underlie denials of the writ, and as to the same petition different reasons may lead different Justices to the same result. This is especially true of petitions for review on writ of certiorari to a State court. Narrowly PINTO, José Guilherme Berman C. O Writ of Certiorari. Revista Jurídica da Presidência da República. Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007, p. 89. 25 ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Supreme Court of the United States. Rules of the Supreme Court of the United States. Washington: GPO, 2013. Disponível em: , acesso em 10 dez. 2015. 26 Idem (“Review on a writ of certiorari is not a matter of right, but of judicial discretion […]”). 24

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technical reasons [338 U.S. 912 , 918] may lead to denials. Review may be sought too late; the judgment of the lower court may not be final; it may not be the judgment of a State court of last resort; the decision may be supportable as a matter of State law, not subject to review by this Court, even though the State court also passed on issues of federal law. A decision may satisfy all these technical requirements and yet may commend itself for review to fewer than four members of the Court. Pertinent considerations of judicial policy here come into play. A case may raise an important question but the record may be cloudy. It may be desirable to have different aspects of an issue further illumined by the lower courts. Wise adjudication has its own time for ripening. Since there are these conflicting and, to the uninformed, even confusing reasons for denying petitions for certiorari, it has been suggested from time to time that the Court indicate its reasons for denial. Practical considerations preclude. In order that the Court may be enabled to discharge its indispensable duties, Congress has placed the control of the Court’s business, in effect, within the Court’s discretion. During the last three terms the Court disposed of 260, 217, 224 cases, respectively, on their merits. For the same three terms the Court denied, respectively, 1,260, 1,105, 1,189 petitions calling for discretionary review. If the Court is to do its work it would not be feasible to give reasons, however brief, for refusing to take these cases. The time that would be required is prohibitive, apart from the fact as already indicated that different reasons not infrequently move different members of the Court in concluding that a particular case at a particular time makes review undesirable. It becomes relevant here to note that failure to record a dissent from a denial of a petition for writ of certiorari in nowise implies that only the member of the Court who notes his dissent thought the petition should be granted.

Outra questão destacada pela doutrina é o volume de casos recebidos pela Suprema Corte. A média é de que cerca de 7.000 processos foram submetidos à Suprema Corte em cada ano. Deles, um número que gira em torno de 100 a 150 processos tem o certiorari concedido. Ou seja, a Suprema Corte decide por julgar o mérito de aproximadamente 1% da demanda que recebe.27 27

CHOPER, J.H. et al. Obra citada, p. 48.

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Mas o processo de seleção de casos não é simples como pode parecer. Trata-se de procedimento denominado screening process, pelo qual os membros da Suprema Corte dividem os casos recebidos entre seus assessores que apresentarão breves memoriais (“pool memos”) e a recomendação de conceder ou não os writs. Após a distribuição desse material, os membros da Corte se reúnem para apreciar uma lista dos casos que merecem a atenção da Corte – esta lista costuma ser preparada pelo Juiz-Presidente da Corte após a análise dos memoriais. Os demais juízes podem, a seu turno, requerer a inclusão de determinados casos para a lista de discussão.28 Da descrição acima, pode-se observar que alguns casos sequer serão levados para a lista de discussão, e é exatamente isto que ocorre: os casos não incluídos na lista têm o writ of certiorari negado, sem a necessidade de justificativa ou fundamentação específica.29 Por conta disso, e pela sintética apreciação dos casos nesta fase, o entendimento majoritário da doutrina americana é o de que as decisões que negam o prosseguimento dos feitos não possuem qualquer efeito em termos de precedentes. Para que o writ seja concedido, e o caso incluído na pauta de julgamentos da Suprema Corte, pelo menos quatro juízes devem votar favoravelmente. No entanto, essa decisão não é definitiva, de modo que após o aprofundamento do estudo sobre o caso a matéria se revelar de menor relevância – ou qualquer que seja o motivo – a Corte pode revogar sua decisão e dispensar o writ.30 Como já se demonstrou, não há um critério específico para a concessão do certiorari. Apesar disso, a concessão do writ é um importante indicativo de que a decisão poderá ser alterada após a ordem de informação pela Suprema Corte. Nos últimos anos, o índice de julgamentos reformados é de 60 a 70% dos casos que tiveram o certiorari concedido.31

3. A importância do certiorari Apesar de não haver unanimidade neste sentido, parte da doutrina enxerga a discricionariedade da Suprema Corte dos Es28

Idem, p. 49.

Idem. Idem, p. 50. 31 Idem, p. 51. 29 30

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tados Unidos da América para escolher os casos que irá julgar com bons olhos.32 Os argumentos favoráveis neste sentido são a possibilidade de o órgão definir sua própria agenda e organizar melhor o seu tempo; e o reconhecimento de que a Suprema Corte deve intervir seletivamente, sem se comprometer com a fiscalização ou com o policiamento de determinadas áreas.33 Esta observação tem grande relevância para o direito brasileiro. Veja-se o argumento de Edward Hartnett: “o poder da Suprema Corte de rejeitar a revisão de decisões de tribunais estaduais que negam reivindicações fundadas em material federal permitiram a Corte a intervir seletivamente e mover o direito na direção em que prefere sem sujeitar-se à arremetida de casos que deveria julgar.”34 Em outras palavras, o autor sugere que o poder discricionário de definir a sua própria agenda permitiu à Suprema Corte estabelecer sua orientação para uma série de questões jurídicas sem, por outro lado, receber uma enxurrada de casos para aplicar o seu próprio entendimento. A discricionariedade também desenvolveu a mentalidade e a cultura de que a função da Suprema Corte não é a de corrigir todos os julgamentos incorretos proferidos pelo Judiciário estadunidense. Ao contrário, ela é vista como uma instância extraordinária cuja função é se ater aos casos mais controversos e relevantes.35

Considerações finais Diante destas breves considerações, é possível refletir se a Suprema Corte dos Estados Unidos seria um modelo a ser observado. O controle de discricionariedade no Brasil encontra-se fundado em importantes alicerces, como o controle concentrado abstrato de leis e decisões judiciais, mas ao mesmo tempo o locus do Supremo Tribunal Federal enquanto instância recursal ordinária em uma série de feitos. HARTNETT, Edward A. Questioning Certiorari: some reflections seventy-five years after the judges bill. In: Columbia Law Review, V. 100, n. 7, nov/2000, New York: Columbia, 2000, p. 1643-2000, p. 1730. 33 Idem, p. 1731. 32

34 35

Idem, p. 1733. Idem.

126 • II Congresso Internacional de Direito Constitucional e Filosofia Política

Periga-se que, entre duas margens, de um lado, o desejo de tratar o STF como corte constitucional, e, de outro, o apego ao “quádruplo grau” de jurisdição, o processo constitucional brasileiro não encontre seu prumo. Para operadores de nossa tradição jurídica, pode parecer peculiar a existência de mecanismo que permite uma Corte escolher os casos que pretende adjudicar, o que poderia ser visto como uma tentativa de se excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, em violação ao inciso XXXV do art. 5.º da Constituição da República.36 Por outro lado, a operação dos tribunais superiores como instância quase ordinária leva à criação de artifícios para limitar os casos que podem ser analisados, ou o próprio escopo de tal análise. Exemplos disso são a Súmula n.º 7, editada pelo Superior Tribunal de Justiça, e a Súmula n.º 279 do Supremo Tribunal Federal, que dispõem que a pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial e extraordinário, respectivamente. Quiçá não se deseje que o STF possa discricionariamente rejeitar sem indicação de fundamentos o conhecimento de casos submetidos à sua jurisdição. No entanto, a experiência comparada revela alternativas encontradas em outros sistemas. Mantendo-se atento às dificuldades de se “transplantar” conceitos e experiências jurídicas37, é importante que o Supremo Tribunal Federal defina a sua identidade.

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37

Ver supra nota 3.

Precedentes judicias, judicialização da política e ativismo judicial • 127

_____. United States Supreme Court. Maryland v. Baltimore Radio Show. United States Reports, v. 338, p. 912, St. Paul: West, 1950. _____. United States Supreme Court. Obergefell v. Hodges. United States Reports, vol. 576, p. ___, Washington: GPO, 2015. _____. United States Supreme Court. Simon v. Eastern Kentucky Welf. Rights Org. United States Reports, vol. 426, p. 26 Washington: GPO, 1976. _____. United States Supreme Court. Simon v. Eastern Kentucky Welf. Rights Org.. United States Reports, vol. 426, p. 26. Washington: GPO, 1976. _____. United States Supreme Court. Warth v. Seldin. United States Reports, vol. 422, p. 490. Washington: GPO, 1975. FRANKFURTER, Felix. A Note on Advisory Opinions. Harvard Law Review, vol. 37, 1924, p. 1002. HARTNETT, Edward A. Questioning Certiorari: some reflections seventy-five years after the judges bill. Columbia Law Review, V. 100, n. 7, nov/2000, New York: Columbia, 2000. JAY, John. Correspondence and Public Papers of John Jay (1792-1793). Vol. 3. Org. de Henry P. Johnston. New York: Putnam’s Sons, 1890. p. 486489. LANGER, Máximo. From legal transplants to legal translations: The globalization of plea bargaining and the Americanization thesis in criminal procedure. Harvard International Law Journal. Cambridge, v. 45, n. 1, inverno de 2004. LIEBMAN, Enrico Túlio. O despacho saneador e o julgamento do mérito. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, vol. CIV, ano XLII, fas. 509, p. 216-226, nov. de 1945. MATTEI, Ugo. A theory of imperial law: A study on U.S. hegemony and the Latin resistance. Global Jurist Frontiers. Berkeley, v. 3, n. 2, 2003. MELLO, Vitor Tadeu Carramão. A repercussão geral e o writ of certiorari.: breve diferenciação. Revista da SJRJ. Rio de Janeiro, n. 26, p. 139-146, 2009. PINTO, José Guilherme Berman C. O Writ of Certiorari. Revista Jurídica da Presidência da República. Brasília, v. 9, n. 86, p.87-103, ago./set., 2007. TEUBNER, Gunther. Legal irritants: Good faith in British law or how unifying law ends up in new divergences. Modern Law Review, London, v. 61, 1998. WATSON, Alan. Legal transplants: An approach to comparative law. 2. ed. Athens: University of Georgia, 1993.

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