Kafka & Barthes: considerações sobre o conceito de “Obra” e “Texto”

May 31, 2017 | Autor: Pablo Rodrigues | Categoria: Franz Kafka, Roland Barthes, Teoria da literatura, Texto
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KAFKA & BARTHES:
considerações sobre o conceito de "Obra" e "Texto"
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Por
PABLO BAPTISTA RODRIGUES
Aluno do Curso de Mestrado em Teoria da Literatura
(Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura)
 
 
 
 
 

 
 
Trabalho apresentado à Professora Flávia Trocoli no curso o Projeto Semiológico, código LEL835.
 
 
 
 
Faculdade de Letras da UFRJ
1º semestre de 2016














Sumário

Introdução 4
Um convite para entrar em Kafka: poesia e tempo cósmicos 4
O texto Kafka 6
A ideia de texto por excelência 8
Ainda sobre a questão do texto e obra 11
Max Brod 12
Fugir do escritório 13
Considerações finais 16
Referencias 17



Introdução
Querido Pai...
Quando Karl Rossmann, um jovem de dezessete anos que fora mandado para a América...
Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos...
Era tarde da noite quando K. chegou...
Alguém certamente havia caluniado Josef K...
Acima podem ser lidos os trechos inicias de Carta ao Pai, O desaparecido ou América, A Metamorfose, O Castelo e O Processo, de Franz Kafka. Talvez a sentença mais conhecida seja do livro A metamorfose, uma das obras que consagra o autor para um grande público. Quando um leitor iniciante pergunta "Quem é Kafka?", uma das respostas mais comuns de ser ouvir é: o autor do livro em que um homem se torna "barata".
As sentenças justapostas colocadas acima revelam um caráter muito peculiar da escrita kafkiana. Podemos observar de antemão, que não há fronteiras entre os livros de Kafka e que cada sentença poderia fazer parte de um único texto. Na realidade não há incoerência em afirmar, que de fato, estamos diante de um único texto e não de cinco escritos. E se cedermos ao lúdico e "brincarmos" com esses "inícios de Kafka", rearranjá-los, reagrupá-los, veríamos novamente a potência do texto kafkiano: "Alguém certamente havia caluniado Josef K... Querido Pai... Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos...".
Um convite para entrar em Kafka: poesia e tempo cósmicos
"Como entrar na obra de Kafka?", perguntam Deleuze e Guattari. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 9). Estamos diante dessas "entradas múltiplas", inúmeras formadoras do "processo literário" de Franz Kafka. Nem um início é confiável e confortável, e cada entrada da toca-texto serve não somente como acesso e saída, como é também possível entrada para lugar nenhum.
Multiplicidade de caminhos, logo, multiplicidade de interpretações, acertos e erros, sendo justificáveis, pois diante do texto de Kafka o significante entra em colapso. O texto, portanto, foge a qualquer leitura de caráter definidor. A sentença do poeta de Praga ao leitor é então, da ordem da experimentação.
Desse modo o leitor sendo tensionado em seu papel se vê diante de um tempo não linear, o tempo do "nunca chegar", tempo de chegada perpétua. "Quando Karl Rossmann..." "Quando certa manhã..." "Era tarde da noite quando K. chegou... Os grifos se justificam como forma de acentuar esse aspecto do trabalhado de Franz Kafka, que é a do refinamento da noção do tempo narrativo. Somos introduzidos ao tempo da viagem de Karl Rossmann, a uma das manhãs de Gregor Samsa, a um dos dias do trabalho do agrimensor K. In medias res entramos na toca-texto de Kafka e na vida de papel de cada um desses personagens. Entra-se no tempo cósmico kafkiano.
Recorremos a Octavio Paz para corroborar o caráter profundamente poético de Franz Kafka. Observação já apontada em outros trabalhos, por Modesto Carone, Günther Anders, Félix Guattari, Haroldo de Campos. E sobretudo o próprio escritor com sua "prosa miúda" (PUCHEU, 2015):
Para que a linguagem se constitua é preciso que os signos e sons se associem de tal maneira que impliquem e transmitam um sentido. Na frase, a pluralidade potencial de significados da palavra solta se transforma numa direção certa e única, embora nem sempre rigorosa e unívoca. Então, não é a palavra e sim a frase ou oração, que constitui a unidade mais simples da fala. A frase é uma totalidade autossuficiente; como num microcosmo, a linguagem inteira vive nela. Assim como o átomo, é um organismo que só pode ser separado pela violência. De fato, só pela violência da análise gramatical a frase se decompõe em palavras. A linguagem é um universo de unidades significativas, ou seja, de frase. (OCTAVIO, 2012, p. 56)
Devemos relembrar que logo no início de O arco e a lira, Paz ressalta que o lugar fundante desse microcosmo é o poema. A frase estaria aqui para o verso. Não é a mera palavra, mas sim a frase, a oração que carrega essa pluralidade potencial de significados, a unidade mais simples da fala. Ressaltar os vocábulos "Quando" nos satisfaz nessa violência da análise gramatical, entretanto, é o mesmo vocábulo que exige, como nos aponta a própria gramática, a introdução de uma oração subordinada adverbial. Ou seja, o texto de Kafka carrega um ritmo de abertura, algo que está por vir. "Quando o quê?" se pergunta o leitor. A língua nos convida a ir adiante, e o poeta de Praga a coloca em marcha. (OCTAVIO, 2012, p. 44–45).
Alberto Pucheu, poeta e crítico literário, sobre o aspecto poético de Kafka dirá também:
Do estilo – poético – de Kafka, muito já foi dito por tantos, ressaltando, em sua linguagem, a fluência, a velocidade com que vai ao essencial, a simplicidade, a complexidade, a evasão, a coesão, a secura, a pureza, a quietude, o caráter descritivo, objetivo, enxuto e microscópico, o rigoroso, o fragmentário, a técnica, a instabilidade semântica, a sobriedade, o burocrático, a limpidez, a unidade da forma e do sentido, a não construção de imagens, a ausência de desvios, o parecer vir de outro mundo, a não adjetivação, o não inchaço, a não presença de neologismos, a ausência retórica, a ausência de fogos de artifício, a ausência de truques, a ausência de mentiras, o enigmático, o obscurecimento, o balanço entre a determinação e a indeterminada, a precisão, a oficialidade, a justeza, a minúcia, a flexibilidade, a exatidão, o cartorial, o protocolar etc. etc. etc. (PUCHEU, 2015, p. 61)
Entretanto Pucheu ao propor uma leitura de O veredicto, nos permite ver além desses enquadramentos críticos já estabelecidos, justificativas para um "Kafka poeta". Não são importantes apenas a questão da escrita em Kafka, mas a relação de escrita e o "insólito", o "irrealizável", a "inconsistência", a "incompreensão". A força argumentativa de um "Kafka poeta" seria a relação de como se dá o trabalho da escritura e o trabalho do incomunicável da vida. É o não pertencer a vida do escritório, a vida da família, a vida de sua própria cultura, juntamente com o trabalho da linguagem do escritor que temos o seu profundo dizer poético.
Ainda sobre essa questão e subvertendo Günther Anders, poderíamos dizer que esse convite sintático e também interpretativo dos "Quando(s)" de Kafka diz respeito ao mundo "descrito de fora", no qual se entra e nunca mais sai; incorporação a esse mundo, que se dá por meio de um dano. (ANDERS, 2007, p. 31).
O texto Kafka
De fato, o jogo combinatório das sentenças revela um caráter peculiar da escrita kafkiana. Não estamos diante de cinco obras diferentes? Não é isso que observamos; mas um tecer profundo entre textos, um único texto. Aqui o uso de tal palavra é o mais apropriado possível. Kafka tece uma história "única", mas com várias entradas. E esse caráter "repetitivo", não é pobreza criativa, mas riqueza pela (im)possibilidade. Trata-se de uma arte que nos faz passar da impotência para o impossível, em que o gesto da impossibilidade se configura como o lugar que não cansamos de andar. (SAFATLE, 2016, p. 35)
Sobre a própria ideia de Texto, cito o Roland Barthes de O rumor da língua, em especial o texto "Da obra o texto":
A diferença é a seguinte: a obra é um fragmento de substância, ocupa alguma porção do espaço dos livros (por exemplo, numa biblioteca). Já o Texto é um campo metodológico. A oposição poderia lembrar (mas de modo algum reproduzir termo a termo) a distinção proposta por Lacan: a "realidade" se mostra, o "real" se demostra; da mesma forma, a obra se vê (nas livrarias, nos fichários, nos programas de exame), o texto se demostra, se fala segundo certas regras (ou contra certas regras); a obra segura-se não mão, o texto mantém-se na linguagem: ele só existe tomado num discurso (ou melhor, é Texto pelo fato mesmo de o saber); o Texto não é a decomposição da obra, é a obra que é a cauda imaginária do Texto. (BARTHES, 2004, p. 67)
Todo capítulo de "Da obra ao texto" carrega um traço marcante de Barthes. Temos a breve distinção entre dois conceitos de extrema importância, "Obra" e "Texto", onde o crítico francês propõe o convite ao pensamento, a observar a "mudança na linguagem", "o efeito interdisciplinar", e o próprio empobrecimento de ambos os termos usados contemporaneamente.
Aproximando a teoria da literatura ao texto literário, teríamos em Kafka poucas obras, inclusive algumas já citadas neste trabalho: Carta ao Pai, O desaparecido ou América, A Metamorfose, O Castelo e O Processo. Na seção de uma livraria, na ala de literatura alemã, Kafka está presente em formato de "obra". O veredicto, outro de seus textos, é tomado num processo de filiação, como dirá Barthes. Desse modo Kafka pertence a uma história da literatura, em especial a literatura europeia do século XX. O autor de língua alemã é então, o proprietário da obra. Lemos Um médico rural na procura de um pai.
Para que Kafka sirva como autoajuda ou simples meio de consumo da sociedade do capital, ou ainda, que o autor possa ser oferecido nas casas de sabedoria automatizadas, engolido e não digerido com a "faculdade de ruminar" nietzschiana, é importante que ele seja tratado como obra. Projeto contrário ao espírito kafkiano por excelência:
A obra é geralmente o objeto de um consumo; não estou aqui fazendo nenhuma demagogia ao referir-me a chamada cultura de consumo, mas é preciso reconhecer que hoje é a "qualidade" da obra (o que supõe finalmente uma apreciação do "gosto"), e não a operação mesma da leitura. (BARTHES, 2004, p. 73).
A ideia de texto por excelência
Além da costura realizada no início, com as partes iniciais da matéria textual de Kafka, podemos recorrer a passagem d'O Processo como outra forma de aproximação da teoria da literatura e o trabalho literário. No capítulo de número VII, "O advogado. O industrial. O pintor", temos um dos trechos mais emblemáticos para o acusado Josef K:
– Com o que está assustado? Perguntou este [Pintor Titorelli], também assustado. – São cartórios do tribunal. Não sabia que aqui há cartórios? Eles estão em quase todos os sótãos, por que deveriam faltar logo aqui? O meu ateliê faz parte dos cartórios, mas o tribunal colocou-o à minha disposição. (KAFKA, 2003, p. 153).
O capítulo "O advogado. O industrial. O pintor" se inicia com a saída de Josef K. de seu escritório do banco. K. afirma no decorrer logo no início desse capítulo estar feliz, justamente por poder se dedicar ainda que pouco ao seu processo. A saída do banco, saída do mundo que também o aprisiona, é a forma com que ele se torna agente de sua existência. O narrador nos auxilia a compreender Josef K. neste instante: "e deixou o banco quase feliz com o fato de poder se dedicar, por algum tempo, mais completamente à sua causa". (KAFKA, 2003, p. 131).
O capítulo VII, de O Processo, é o capítulo que sucede a visita do tio de K. Temos acesso no capítulo VI, ao peso da família, na figura do tio, que o questiona da possibilidade de ser verdade o "boato" a respeito do sobrinho: "Verdade – bradou o tio. – Como pode ser verdade? Que processo é esse? Não é um processo criminal, é?" (KAFKA, 2003, p. 91). Após a leitura da carta de Erne, a prima de K., o tio chora, o que dá a cena um aspecto profundamente sentimental.
O capítulo da visita do tio sustenta toda a busca de K. A ida aos tribunais e depois ao encontro do pintor Titorelli. Devemos lembrar que somente após intervenção incisiva da família, é que o personagem se coloca em ação. A questão perpassada nesse trecho então, é da importância do conjunto espacial do quarto do próprio pintor. A busca de auxílio por parte de K., após a forte influência emotiva do tio e de sua prima, o faz chegar mais uma vez ao espaço dos advogados.
Um industrial afirma para K que conhece seu processo por meio de um pintor, e que ele precisa da ajuda do artista, mesmo que isso pareça danoso a sua própria reputação: "Infelizmente não é muito o que posso comunicar ao senhor. Mas nessas coisas não se deve negligenciar o mínimo". (KAFKA, 2003, p. 127). Ou seja, não se deve negligenciar a ajuda nem que ela seja de um de um pintor, profissão impensável de se relacionar com os atos jurídicos:
Sei do seu processo [diz o industrial] através de um certo Titorelli. É um pintor, Titorelli é apenas o nome artístico dele, nem mesmo conheço seu nome real. Já faz anos que, de tempos em tempos, vem ao meu escritório trazendo pequenos quadros, pelos quais sempre lhe dou – ele é quase um mendigo – uma espécie de esmola. Aliás, são quadros bonitos, pradarias e coisas do gênero. Essas compras – já tínhamos ambos nos acostumado a isso – corriam muito bem. Mas certa vez as visitas se repartiram com muita frequência, eu o censurei, começávamos a conversar, interessava-me saber como ele podia se sustentar só com a pintura e então fiquei sabendo, com surpresa, que sua principal fonte de renda era fazer retratos. [...] Talvez – assim pensei comigo – Titorelli possa lhe ser um pouco útil, ele conhece muitos juízes e, mesmo que não tenha pessoalmente alguma influência, pode assim lhe dar um conselhos. (KAFKA, 2003, p. 127).
Pode-se dizer que Titorelli é um personagem de extrema importância na narrativa d'O processo. Por meio dele temos um dos acessos, ainda que breve, ao sistema em que K. foi inserido. Ele ocupa um longo trecho da narrativa, se tornando, gradualmente, parte dos interesses de Josef K. No final não resta dúvidas para o personagem principal: é necessário conhecer Titorelli.
A essa altura K. já constata que a vida judicial se dá em espaço estreitos, baixo, de difícil respiração, completamente degradados. Após o conselho do próprio industrial K. "Dirigiu-se imediatamente à casa do pintor", visitando antes um espaço da Lei. Porém, o que ocorre ao chegar na casa do Pintor, é o de chegar novamente ao espaço do sótão. Tudo faz parte do tribunal e a casa de Titorelli também dá acesso a um dos braços da Lei. De certo modo, K. nunca saiu de um mesmo ambiente, o que dá ao leitor a impressão da impossibilidade da ação, de movimentação. Tudo está conectado por meio de várias entradas.
É por meio de Titorelli que temos acesso, portanto as conexões do processo de Josef K. A questão da pintura e das mulheres são imagens ricas que nos forcem uma gama de interpretações, porém chamaria a atenção a um dizer do artista sobre a estrutura física de sua própria casa: "São cartórios do tribunal. Não sabia que aqui há cartórios?". Tudo é o cartório. Veremos que se rompe aqui toda a arquitetura de supostos espaços diferenciados. E isso se repete não apenas n'O Processo, como também n'O Castelo:
– Esta aldeia é propriedade do castelo, quem fica ou pernoita aqui de certa forma fica ou perntoita no castelo. Ninguém pode fazer isso sem permissão do conde. Mas o senhor não tem essa permissão, ou pelo menos não a presentou.
K. tinha erquido a metade do corpo, alisado os cabelos para trás com os dedos; olhou os dois de baixo para cima e disse:
– Em que aldeia eu me perdi? Então existe um castelo aqui?
– Certamente – disse o jovem devagar, enquanto aqui e ali alguém balança a cabeça em relação a K. – O castelo do senhor conde Westwest. (KAFKA, 2000a, p. 4)
Logo, no primeiro capítulo do livro O Castelo percebe-se que o agrimensor está diante, não de uma estalagem, mas sim do próprio castelo. Cometer um mero equívoco com o próprio dono da estalagem, é cometer um equívoco com o dono do castelo. Tudo está "conectado", se nos é possível usar novamente um vocábulo contemporâneo. Ou barthesianamente, tudo está textualmente composto. As entradas são múltiplas, porém, levam a um mesmo lugar.
Modesto Carone, em Lição de Kafka, já apontava esse caráter das conexões em Kafka. Diz o tradutor em seu livro:
Não é menos expressiva a proximidade entre os cenários de O processo, as vias de comunicação urbana e um tipo de arquitetura remanescente da antiga capital do reino. As cidades em geral destacam o espaço interno do externo separando casas, ruas, avenidas, praças e bairros. Mas, no miolo de Praga, o espaço aberto está ligado ao ambiente privado por inúmeras "passagens internas" (em alemão, Durchhäusern), que levam o cidadão, debaixo de abóbadas, de uma rua a um pátio, a um labirinto ou a outra rua pelo interior das residências. (CARONE, 2009, p. 79).
Sabemos que o Castelo em Wossek, terra natal dos antepassados por parte de pai de Kafka, pode ser um ponto de contato entre o literário e a vida do autor. Matéria vivida que se possivelmente, tornando-se, literatura. Porém, apesar desse dado não temos uma relação tão evidente de espaço geográfico e narrativa em Kafka, como em Machado de Assis e seu Rio de Janeiro, ou ainda Joyce e a cidade de Dublin. Talvez, o caso de Kafka seja o mesmo de Shakespeare que não coloca diretamente o reino inglês como paisagem de suas tramas, mas universaliza o espaço utilizando, com exemplo, do reino da Dinamarca, em Hamlet, como forma de chegar ao reino inglês. Nesse caso poderíamos dizer que Franz Kafka desvia de Praga, porém pelo desvio faz emergir sua cidade natal. (Se é possível falar em pertencimento em Kafka).
Carone, que acima de tudo também é leitor de Kafka, em sua experiência literária, dirá que um dos castelos da capital do antigo reino se identifica com o primeiro capítulo de O castelo. Sobre a geografia de Praga dirá que a experiência daquele que sai do centro para chegar à parte baixa pela ponte de Carlos e depois começa a subir a ladeira calçada de pedras, pode ver surgir um castelo do primeiro capítulo que nos apresenta a chegada do agrimensor K. (CARONE, 2009)
O trabalho das sentenças justapostas. A fala do pintor Titorelli e a arquitetura conectada da casa do artista. A cidade de Praga levantada pelo tradutor brasileiro. E esbarrar ainda, no K. d'O Processo, ou do K., d'O Castelo. Mesmo nome, mesma consoante oclusiva. Entradas diferentes para um único texto, ou textos diferentes que pedem metodologias diferentes, como nos aponta Barthes?
Sem dúvida não é possível separar "obra" e "texto", na concepção barthesiana dos termos. Seria necessário computar o Texto, e "o Texto não deve ser entendido como um objeto computável. Seria vão tentar separar materialmente as obras dos textos". (BARTHES, 2004, p. 67). Mas sem dúvida quando se está diante de um texto, ele nos pede uma metodologia própria. Pois na sua característica de texto, ele desvia continuamente a possibilidade de encontrar qualquer significado.
Deleuze e Guattari encontram a filosofia do rizoma, a do Kafka em uma língua menor. Otto Maria Carpeaux, crítico que introduziu Kafka no Brasil, nos deu uma entrada religiosa e estrangeira de Kafka. Sergio Buarque de Hollanda buscaria olhar o autor d'O processo com um olhar mais nacional. Diante do texto kafkiano, cada um desses críticos encontrou a metodologia apropriada para sua leitura.
Ainda sobre a questão do texto e obra
Fabio Akcelrud Durão, em seu texto "Do texto à obra" (DURÃO, 2011), nos 40 anos do célebre e polêmico texto de Barthes, nos propõe também uma reflexão profunda sobre o "par" barthesiano "obra" e "texto". O crítico brasileiro coloca em questão a necessidade de "desfamiliarizar" o conceito de Texto barthesiano, que como outros conceitos importantes de uma história da crítica e da teoria da literatura e do pensamento ocidental acabam por entrar no campo do banal. Seria o caso de a crítica, de Kant, o real, de Lacan, e também a Lei, de Kafka:
O primeiro passo para se desfamiliarizar o "texto" é perceber que, de fato, ele é algo radicalmente novo, e que grande parte da facilidade de sua circulação se deve justamente a essa aparência de naturalidade e atemporalidade, as duas características mais típicas da ideologia. (DURÃO, 2011, p. 68)
Não só o uso do par é questionado nessa espécie de banalização interpretativa, criando um lugar comum e improdutivo, mas também, se evidência, que ao invés de se ter uma via de análise poderosa, cria-se mais um sistema de leitura. O texto passa a ser concebido como um sistema e o caráter de leitura libertária, presente nos primeiros parágrafos de "Da obra ao texto" de Barthes, se perde. Como também a "natureza programático-polêmica [...] característica interna constitutiva da escrita de Barthes". (DURÃO, 2011, p. 71)
Não se deve perder o lugar e a importância da noção de Texto. A compreensão do mesmo, permite compreender o lugar do leitor e a multiplicidade que os escritos de Kafka podem suscitar. Não só o crítico, mas também o leitor devem sempre se perguntar, "Por qual rizoma eu devo entrar em Kafka?", pois cai sobre esses leitores os inúmeros caminhos da experimentação.
Tal movimento nos permite relacionar a liberdade interpretativa com a liberdade da vida. Com o deslocamento do referente de sentidos "qualquer elemento da malha linguística pode ser significante, e cabe ao leitor decidi-lo". (DURÃO, 2011, p. 70). Estamos diante da multiplicidade interpretativa, "produtividade linguística sem limites".
Max Brod
Deve-se lembrar ainda do polêmico desejo da queima de sua obra, a ordenação a Max Brod para a destruição completa do espólio do autor. Brod decido então desobedecer ao autor e logo no ano seguinte da morte de Kafka é publicado O Processo. Sendo América a última publicação realizada por Brod. Em conversas com Janouch, Kafka afirma:
Aí está o problema! Max Brod, Felix Weltsch, todos os meus amigos se apoderam regularmente de tal ou qual coisa que escrevi, e em seguida me surpreendem chegando com um contrato de edição em boa e devida forma. Não quero causar-lhes dificuldades e é assim que, para acabar, se publicam coisas que de fato só eram notas para uso pessoal, ou brincadeiras. Documentos pessoais, atestanto minha fraqueza de homem, estão impressos e mesmo vendidos, porque meus amigos, a começar por Max Brod, encasquetaram torna-los literatura e porque eu, por meu lado, não tenho força para destruir esses testemunhos de minha solidão. (JANOUCH, 1983, p. 30)
O problema maior é Max Brod, amigo de confiança de Franz Kafka. E a quem ele pede no fim da vida para obedecer ao pedido de queimar toda sua obra. Seria possível pensar na traição de um amigo? Ou na encenação de Kafka, pois no fundo já sabia que sua obra não seria destruída? De fato, Dora Diamant nos ajuda a esclarecer isso no momento que em relata, ela sim, ter tido coragem de queimar, junto com Kafka, os escritos do autor:
"[...] ele queria queimar tudo o que havia escrito. Eu respeitei sua vontade e, diante de seus olhos, enquanto ele repousava, doente, em sua cama, queimei alguns de seus textos. [...] Fui repreendida por ter queimado alguns escritos de Kafka. Eu era muito jovem naquela época e os jovens vivem no instante, pouco no futuro" (DIAMANT, 1998, p. 231 Apud PUCHEU, 2015, p. 29)
O binarismo de Barthes talvez se materialize na relação "Max Brod: obra", "Franz Kafka: texto". Um faz com que o texto kafkiano resista no tempo, o publica, o edita. O outro ordena a queima, inclusive atestada pelo olhar de Dora, e em outro momento pelo próprio olhar de Brod: "tanto Max Brod nos relata que encontrou, entre os pertences de Kafka após sua morte, alguns cadernos que possuíam apenas a capa, com todas as folhas arrancadas". (PUCHEU, 2015, p. 29). E assim como não podemos culpar Kafka ou Brod pelos manuscritos queimados, nos resta aceitar o que "aí está", analisando o ato de Brod como profunda simbiose de editor e artista. Não existiria texto, Franz Kafka, sem Max Brod.
Fugir do escritório
Volto a Barthes para estabelecer um último movimento de perpétua tentativa de interpretação. Até o momento observamos a textualidade das sentenças, os caminhos que entrecruzam dentro da casa do pintor Titorelli. A geografia de Praga. A amizade de Brod e de Kafka. Para enfim, também poder relacionar, especificamente, o texto literário a vida de Kafka. Antes, cito Barthes em A preparação do Romance:
A OBRA O MUNDO
Para ter o tempo necessário à escrita, é preciso lutar ferozmente com inimigos que ameaçam esse tempo, é preciso arrancar esse tempo ao mundo, ao mesmo tempo por uma escolha decisiva e por uma vigilância incessante -> Há rivalidade entre o mundo e a obra; Kafka é figura maior desse combate, dessa tensão: ele sempre viveu dolorosamente, às vezes até a aflição, o mundo como hostil à literatura; o mundo, isto é, para ele as figuras do Pai, do Escritório e da Mulher. O que é, o que pode ser o mundo?

Escritório

Para Kafka, é (em parte) o Escritório: "Que eu esteja simplesmente perdido, enquanto não estiver livre do escritório , eis o que é, para mim, a própria evidência: trata-se unicamente, na medida do possível, de manter a cabeça suficientemente alta para não me afogar" (daí o diário) –> E isto:

KAFKA. Diário

(Kafka escrevendo ou ditando uma frase para o Escritório, com grande desgosto:)

"… Afinal digo a frase, mas permaneço tomado de um grande terror, porque vejo que tudo em mim está pronto para um trabalho poético, que esse trabalho seria para mim uma solução divina, uma entrada real na vida, enquanto no escritório devo, em nome de uma lamentável papelada, arrancar um pedaço de sua carne ao corpo de tal felicidade".

O Escritório equivale, aqui, a toda espécie de alienação cotidiana ("ir ao escritório todos os dias"): tudo o que é obrigatório, o preço que é preciso pagar à sociedade para viver; escrita = meu próprio sangue –> é o preço do sangue. – Notar: como sempre, nenhum princípio psicológico é garantido, universal. Lembro-me de que Queneau escrevia melhor por que obrigado a arrancar o livro ao Escritório. (BARTHES, 2005, p. 152–153)
É na entrada definitiva no escritório que Franz Kafka começa a publicar. Em 1908 transfere-se para o Instituto de Seguros contra Acidente de Trabalho do Reino da Boêmia, administrado pelo Estado. É o ano em que surge a primeira publicação: são oito trabalhos em prosa, incluídos no volume Meditações, na revista Hyperion, de Munique.
Pode-se dizer, que seguindo uma cronologia básica da vida de Kafka percebe-se que não é atribuído ao escritório um valor tão importante como o atribuído por Barthes. Sobram os dados sobre as mulheres, as viagens, a vida que padece pela doença. Surge o interesse de questionar a classificação de uma vida. A ação de criar uma linearidade didática, constrói-se também, um Kafka próprio.
O que se observa, entretanto, é a tentativa de relacionar as mulheres que passaram na vida de Kafka com a sua obra. É em 13 de agosto de 1912 que ele tem o primeiro contato com Felice Bauer. E em 22 de setembro escreve O veredicto e em novembro-dezembro trabalha na Metamorfose. No segundo ano de encontro com Bauer, a publicação de "O foguista" em 1913. Em 1 de junho de 1914 seu noivado, para em 12 de julho realizar desmanche do noivado. Em 1916 é o ano de reconciliação com Bauer e publicação de O veredicto. Isso apenas para exemplificar o processo de escrita de alguns de seus principais textos do autor e o relacionamento com a primeira mulher de sua vida.
Pode-se observar uma chave de leitura interessante. Sobre a vida do escritório podemos pensar uma nova relação, que ultrapassa a mais objetiva datação. Será por outro desvio que chegaremos nesse interdito, nesse caso a relação de Janouch e Kafka e a representação nos Diários. Cito as passagens:
Então o Dr. Kafka me fixou quase desagradavelmente e articulou com uma voz baixa, rouca de tão contida:
– Enga-se. Não é Treml, sou eu que estou na jaula.
– É compreensível. O escritório...
O Dr. Kafka me cortou a palavra: – Não falo somente deste escritório, falo em geral. – Carrego minhas barras sempre comigo. (JANOUCH, 1983, p. 23).
Do Diário temos:
Apresentei quatro possibilidades ao meu chefe: 1º) deixar tudo na situação em que estava na última semana de tortura, a pior de todas, e terminar com uma febre nervosa na loucura ou de qualquer outro modo; 2º) pedir férias; recuso-me a isso por um sentimento qualquer de dever e afinal de contar isso de nada adiantaria; demitir-me, não me é possível fazer nessa oportunidade, em razão de meus pais e da fábrica; 4º) resta somente o serviço militar. Resposta: gozar uma semana de férias para uma cura de hematogenia que o meu chefe deseja fazer comigo. Ele mesmo está certamente muito doente. Seria suficiente que eu saísse para que minha secção estivesse totalmente desamparada.
Alívio porque falei francamente. Pela primeira vez emitindo a palavra "demissão", quase abalei oficialmente a atmosfera do Instituto. ((KAFKA, 2000, p. 114)
No trecho de Conversas com Kafka, o que vemos é o jovem Gustav Janouch que chega ao escritório do Dr. Franz Kafka. O escritor nunca deixou de receber o jovem autor que estava iniciando a vida literária. O escritório então, inicialmente, é o espaço do encontro e da conversa sobre literatura. Janouch se torna uma abertura para observarmos o Kafka aprisionado na vida profissional.
Em seu Diário, como nos revela o breve trecho citado, o próprio Kafka, aponta para o desejo sempre presente de sair do escritório como forma de libertação da escrita e de atingir a vida literária. "É necessário adoecer, se for preciso, para sair do escritório, "gozar uma semana de férias para uma cura de hematogenia". Como se fosse uma das vias possíveis para o literário.
E aqui o dizer do Macaco, de "Um relatório para um Academia é preciso: "Até então eu tiver tantas vias de saída e agora nenhuma! [...] "Não, liberdade eu não queria. Apenas uma saída". (KAFKA, 1999, p. 63–64). Pois tanto no personagem de Kafka, como na vida do próprio autor, se vê um lutar feroz e o desejo da escrita. O mundo é o escritório, e esse é alienante.
Considerações finais
Iniciamos estre trabalho propondo sentenças justapostas dos principais trabalhos de Kafka, o que nos permitiu observar, e se questionar, sobre a existência de várias entradas a um único texto ou se cada texto é uma entrada e, portanto, um texto. Mas responder a isso seria enquadrar, e única constatação a que chegamos é que Kafka pede do seu leitor uma metodologia de leitura e não um enquadramento.
Tal leitura nos permitiu associar Roland Barthes e Franz Kafka em uma aproximação do texto "Da obra ao texto" ao trabalho do autor de língua alemã. Buscando não apenas em aspectos comparatistas, mas entrar, ainda que arriscado por um caminho ariscado.


Referencias
ANDERS, G. Kafka: pró & contra. Tradução Modesto Carone. São Paulo: CosacNaify, 2007.
BARTHES, R. O rumor da língua. Tradução Mario Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARTHES, R. A preparação do romance II. Tradução Leyla Perrone-Moises. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CARONE, M. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Kafka: por uma literatura menor. Tradução Cíntia Vieira da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
DURÃO, F. A. Do texto à obra. Alea: Estudos Neolatinos, v. 13, n. 1, 2011.
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