Kant, a História e a Religião: sobre a teleologia na escrita da História

July 5, 2017 | Autor: Jefferson Ramalho | Categoria: Religion, Historia, Filosofía
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Kant, a História e a Religião: sobre a teleologia na escrita da História

Jefferson Ramalho1

RESUMO Este artigo tem como objetivo demonstrar as relações entre algumas concepções do filósofo Immanuel Kant acerca da História, em particular aquelas presentes em sua obra A religião nos limites da simples razão e a pesquisa que temos desenvolvido no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) que tem como um dos documentos de análise a obra clássica História Eclesiástica, de Eusébio de Cesareia, escrita no século IV de nossa era. O bloco com o qual estamos trabalhando desta obra de Eusébio caracteriza-se pela presença de, pelo menos, dois aspectos: 1) trata-se de um discurso panegirista direcionado ao imperador romano Constantino e 2) trata-se de uma obra historiográfica marcada por aspectos teleológicos e providencialistas, ou seja, entendendo existir uma divindade que controla a História. Portanto, nossa intenção é explorar o modo como essas questões foram trabalhadas por Kant e se é possível desenvolver uma leitura da obra de Eusébio a partir dessa perspectiva. Palavras chave: Kant, Eusébio, História, historiografia, teleologia.

Introdução Em nossas pesquisas temos trabalhado com as representações do imperador romano Constantino I (c. 272-337), mais conhecido simplesmente como Constantino. Há muitas representações – escritas e artísticas – dessa personagem histórica, portanto, há que ser estabelecido um recorte, tanto no aspecto documental como nos referenciais teóricos que adotaremos para interpretar tais documentos. Para o presente artigo optamos por verificar uma das fontes escritas com as quais trabalharemos, a saber, a obra História Eclesiástica do bispo cristão Eusébio de Cesareia (c. 265-339), mais conhecido como panegirista e biógrafo de Constantino. Esta obra é marcada por um forte caráter teleológico e providencialista, ou seja, além de ter sido escrita vislumbrando uma finalidade específica (grego: τέλος), acabou por inaugurar um gênero historiográfico que entende que a História é determinada e

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Jefferson Ramalho (RA: 154045) é graduado em História (Centro Universitário Assunção) e em Teologia (Universidade Presbiteriana Mackenzie), tem um mestrado em Ciências da Religião (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e está realizando sua pesquisa de doutorado em História com o professor Dr. Pedro Paulo Funari, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Contato: [email protected]

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controlada por uma divindade, neste caso, o Deus dos cristãos, já que Eusébio era um bispo da igreja. No que diz respeito ao referencial teórico, embora haja outros com os quais pretendamos dialogar em nossa pesquisa, no presente artigo adotaremos das leituras que temos desenvolvido da obra do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), as suas concepções acerca da História. Além das leituras de A crítica da Razão Pura, A crítica da Razão Prática e A religião nos limites da simples Razão, dialogaremos com interpretações presentes nos artigos sobre as relações entre o pensamento de Kant e a História, escritos pelo professor Daniel Omar Perez. Também consideraremos alguns trabalhos e reflexões de introdução à filosofia kantiana como aqueles produzidos por Howard Caygill e Sofia Vanni Rovighi.

1. Aspectos introdutórios da filosofia kantiana em relação à História A princípio, podemos adiantar que há diferentes significados dos conceitos de História no pensamento kantiano. Uma determinação temporal é que estabelece um sentido à História enquanto conceito passando da coerência lógica a um significado efetivo. No que tange à liberdade, há que considerar certa existência determinada por uma causa livre, mas também outra existência determinada por uma espécie de causa natural. É neste ponto que, segundo a filosofia kantiana, trava-se um conflito entre natureza e liberdade. Perez alerta-nos em relação a qualquer interpretação unificadora2, defendendo que é necessário reconhecer as mudanças conceituais3 que há no pensamento kantiano acerca da História. Segundo ele é possível identificar pelo menos Duas grandes correntes de interpretação que buscam determinar o significado do conceito de história e ulteriormente seu lugar sistemático dentro do corpus kantiano. Por um lado, estão aqueles que propõem leituras unificadoras, por outro, os que propõem mais de um sentido ou de uma teoria da história em Kant. (PEREZ, 2006, p. 72)4 2

Segundo Perez, há diferentes leituras que pretendem ser unificadoras na compreensão do conceito de História no pensamento kantiano. Entre os autores citados por Perez como responsáveis por essas interpretações unitaristas estão Aléxis Philonenko, Ricardo Ribeiro Terra, Roberto Rodriguez Aramayo, David Lindstedt e Gerard Raulet. cf. PEREZ, 2006, pp. 72 e 73. 3 Da mesma maneira, Perez destaca algumas perspectivas não-unitaristas sobre a noção História no pensamento de Kant. Entre essas mentes, são mencionadas e comentadas Hannh Arendt, Jean-François Lyotard e Salvio Turró. cf. PEREZ, 2006, pp. 74-76. 4 Segundo Perez, “entre os unitaristas e os não-unitaristas temos a mais variada oferta de interpretações. O esforço de unificação da teoria kantiana é encontrado em outros comentadores. Todos eles, preocupados com a coerência e a sistematicidade do filósofo, procuram mostrar a solidez da teoria kantiana da história.

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Se na obra Crítica da Razão Pura (1781) encontra-se o domínio das preposições cognitivas teóricas, dando sentido à causalidade mecânica e natural, na obra Crítica da Razão Prática (1788) abre-se o domínio das preposições cognitivas moralpráticas, dando sentido ao conceito de liberdade como causalidade da vontade. Assim, entre natureza e liberdade ou entre causalidade mecânica e causalidade livre, há uma divisão que determinará a faculdade de julgar, o que se daria por meio de um juízo teleológico. O resultado escrito dessa elaboração filosófica de Kant foi a escrita e publicação da obra Crítica da Faculdade do Juízo (1790). Se existe uma considerável distância entre o domínio teórico e o domínio prático, esta poderá ser superada apenas, segundo Kant, pela chamada crítica da capacidade de julgar. E o que o filósofo alemão parece propor é uma teleologia, como cobertura ou solução desse abismo (alemão: kluft) intransponível entre os dois domínios da condição humana. A teleologia, neste caso, de acordo com uma perspectiva lógica, exercerá a função de ponte e não de um preenchimento suficientemente capaz de eliminar em definitivo a distância entre os dois domínios5. Segundo interpreta Caygill, “essa visão teleológica da história tem paralelo numa outra visão da história que considera o resultado de cortes epistemológicos e inovações anunciados pela genialidade e o entusiasmo.” (CAYGILL, 2000, p. 172) Ao pensar em uma distância intransponível entre a natureza e a liberdade, Kant pensará também na História que, por sua vez, narrará as manifestações fenomênicas da liberdade da vontade sem cooperação da causalidade mecânica. As ações humanas não estão determinadas pelo instinto natural ou por um plano pré-estabelecido, pois não há um plano decidido racionalmente pela vontade dos indivíduos ou mesmo de uma divindade. Portanto, a aparente arbitrariedade dos fatos inviabiliza toda e qualquer

Mas na hora de reconstruir a argumentação todos eles correm o risco de misturar os conceitos de um momento da reflexão kantiana com outro momento sem levar em conta a mudança da empresa. O problema destas interpretações está na sua orientação. Parece louvável procurar a unidade do pensamento de Kant (que interesse poderíamos ter em mostrar um Kant desvairado?), mas o problema é saber qual é o eixo da unidade. Nossa interpretação procura mostrar que fica difícil harmonizar todos os textos sob uma mesma formulação teórica. É neste sentido que encontramos filósofos e comentadores que buscam identificar as mudanças conceituais no pensamento de Kant sobre a história e que colocam um alerta para qualquer interpretação unificadora.” (PEREZ, 2006, p. 76). 5 Acerca dessa discussão sobre os dois domínios e o abismo intransponível que os separa, bem como acerca da teleologia como ponte que os aproxima, não unindo ou preenchendo em definitivo, mas cobrindo essa abertura existente, nos apoiamos nas ideias do texto História como romance em Kant do professor Daniel Omar Perez, publicado em VERARDI BOCCA, F. (org.). Natureza e liberdade. Curitiba: Champagnat, 2005, pp. 29-37.

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tentativa de compreensão da História a partir dos próprios atos dos humanos. Com isso, onde caberia, então, a teleologia, ou seja, a ideia de fim último ou finalidade? Para Kant, os acontecimentos humanos podem ser entendidos a partir de certa intencionalidade lógica que os organizaria a priori por meio de um fio condutor, ordenando-os em uma sequência específica que propiciará a compreensão da História. O conceito teleológico de História, portanto, não propõe ou tampouco pressupõe uma intencionalidade mecânica ou articulação de uma mente divina habitada numa realidade transcendental. Antes, como fio condutor, a teleologia segundo Kant mostra-se útil para que o ser humano pense teleologicamente a paz universal e, com isso, escreva a História das manifestações da liberdade na natureza. É neste sentido que Perez concluirá seu artigo História como romance em Kant afirmando: O fio condutor kantiano denota a impossibilidade de uma narrativa realista que postule a intencionalidade das coisas em si mesmas ou a articulação de uma mente divina. A necessidade de que os fenômenos mostrem certa regularidade que não pode ser atribuída a eles mesmos nem a um princípio transcendente. A história, enquanto novela que narra as ações humanas, tem utilidade para o uso público da razão. (PEREZ, 2005, p. 37)

Compreendido isso, há que considerar a existência de diferentes maneiras de se interpretar o conceito de História em Kant. Mas, independentemente do sentido em que essa interpretação seja conduzida, é certo que para Kant, a hipótese de uma História objetiva só será possível após uma condição a priori válida. Portanto, pensar a História a partir de experiências não é algo possível através do progresso. Para Kant, se não há providência divina, existe uma ação ou causalidade livre no sujeito que a pensa e a escreve. Será neste ponto que ele avançará numa crítica à ideia de que o gênero humano encontra-se em um progresso para o melhor, sendo a causa o próprio gênero humano. É preciso considerar que a natureza humana é uma categoria subjetiva em relação à noção de liberdade e, por consequência, em relação à História. Não se pode afirmar, por exemplo, com base em Kant, que o ser humano é bom por natureza ou mau por natureza, pois não há uma substância corporal e outra substância racional. O que existe para Kant são preposições. Nisso consiste sua subjetividade, pois as representações que o sujeito faz não são independentes dele, mas dependem única e exclusivamente de sua liberdade. O que o ser humano pode ter, segundo Kant, é uma disposição para o bem, mas também uma propensão não inata e sim contingente para o mal. A natureza humana possui, portanto, o domínio da liberdade na moralidade.

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2. A religião no pensamento kantiano Para pensarmos na concepção kantiana acerca da religião, recorremos à sua obra A religião nos limites da simples Razão (1793), além de outras leituras e de anotações que fizemos durante o curso com o professor Daniel Omar Perez. Nesta obra Kant trata de quatro importantes aspectos da estrutura religiosa da qual ele era proveniente, a saber, a cristã. No primeiro bloco da obra aborda acerca do chamado mal radical, no segundo bloco trata acerca do ser humano enquanto ser moral, embora algumas interpretações entendam que ele tenha, sem mencionar o nome, tratado a respeito da figura mítica de Jesus Cristo. No terceiro bloco, Kant explora questões relacionadas àqueles que compõem um grupo específico de pessoas que consideram-se ligadas à divindade, no sentido teológico-político dessa relação. Finalmente, no quarto e último bloco, a instituição religiosa é o assunto sobre o qual Kant se debruça. A concepção moral está evidente no esquema proposto por Kant, pois a religião acaba demonstrando-se fator simbólico do conflito entre bem e mal existente, antes de tudo, não propriamente na natureza, mas na ação livre e responsável do próprio ser humano. A natureza, por outro lado, é interpretada como elemento subjetivo dessa liberdade do sujeito, fundamentando uma espécie de possibilidade do mal e inclinação por parte do homem à sua condição de maldade. O contraponto será proposto na segunda parte, onde aparece uma espécie de ideal personificado do bem, no qual teria se cumprido a perfeição em termos morais. Assim, todos os seres humanos deveriam elevar-se a este ideal moral. Tudo o que a divindade exigiria do ser humano estaria resumido numa conduta moralmente boa, o que aparece de maneira mais detalhada na terceira parte da obra. Assim, o que Kant parece sugerir é que as religiões que se entendem como reveladas6 por uma divindade, sendo o cristianismo uma delas, são apenas alternativas para que se introduza entre os seres humanos uma religião moralmente pura. O que se conclui da leitura da quarta parte, entre outras questões, é que a única religião verdadeira é a moral, encerrando leis e princípios práticos. Por isso que em nossas últimas leituras foi concluído algumas vezes que, para Kant, é a religião que necessita da moral e não a moral da religião. Segundo Rovighi: 6

Uma religião revelada, na perspectiva kantiana, é aquela em que o ser humano precisa a priori saber que um princípio foi ordenado pela divindade para depois ser reconhecido como dever moral. Quando ocorre o contrário, ou seja, quando o ser humano precisa antes conhecer seu dever moral para depois interpretálo como uma espécie de lei moral divina, a religião será entendida como natural. cf. ROVIGHI, 2002, p. 592.

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A religião nasce de uma exigência moral. De fato, os homens tendem a unir-se, a associar-se: unem-se para constituir o Estado a fim de proteger exteriormente sua liberdade; mas tendem também a constituir uma sociedade fundada na identidade de intenções, uma identidade puramente moral, com vínculos puramente interiores, a sociedade de todos os homens que observam a lei moral, para que, na união com os outros homens, cada um se sinta confortado na luta contra o mal e estimulado ao bem.” (ROVIGHI, 2002, p. 591)

Chegando a esse ponto da leitura, costuma-se perguntar se Kant nega ou afirma a existência de Deus. A princípio, uma questão primeira é resolvida. Para Kant, por meio da Razão Pura, não se pode crer, muito menos provar a existência de uma divindade. Já por meio da Razão Prática, apesar da permanente impossibilidade de prova da existência de uma divindade, parece possível considerar a opção humana de acreditar no que não pode ser comprovado racional ou empiricamente. É neste ponto da leitura que se insere o argumento teleológico proposto por Kant. “Uma explicação teleológica é aquela expressa em termos de fins últimos. Suas origens encontram-se na distinção aristotélica entre causas materiais, formais, eficientes e finais, que ele aplicou à explicação de mudança física.” (CAYGILL, 2000, p. 303). Há que considerar a presença de explicações teleológicas ao longo da história do pensamento filosófico, sobretudo, até o início da Modernidade. Mas, com a rejeição de Galileu às causas propostas por Aristóteles e com a opção de Descartes por desconsiderar as chamadas causas finais, preferindo as chamadas causas eficientes, um novo cenário se constitui e aquelas leituras teleológicas antes predominantes começam a perder espaço. Com Kant, os princípios teleológicos ganham uma função, ainda que limitada, de “servir como meio de realizar a completude sistemática do nosso conhecimento. Por outras palavras, os princípios teleológicos não têm significado explicativo.” (CAYGILL, 2000, p. 303) Parece claro que na filosofia prática, Kant propõe um caminho particular para a teleologia. No entanto, sua limitação em meio ao cenário moderno do pensamento, faz com que esses juízos práticos possam ser interpretados como teleológicos apenas como referências à certa finalidade última. Motivo pelo qual, em Kant, os juízos morais são teleológicos simplesmente porque são estabelecidos por um fim específico, na medida em que tais finalidades sirvam de inclinação ou motivação para determinação daquilo que chamamos de vontade.

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Portanto, apesar de limitada, a função desempenhada pela teleologia na filosofia a partir do século XVIII é determinante. Ela não apenas amplia o domínio do conhecimento por parte da natureza humana como uma espécie de princípio regulativo, mas integra aquelas categorias da liberdade prática e da necessidade natural sobre as quais comentamos no início. Fica entendido, então, que a História, para Kant, possui em si um fim último, uma finalidade que a dirige para a paz e o ser humano para o melhor. De acordo com a interpretação de Rovighi “mesmo nos acontecimentos históricos, há uma ‘intenção da natureza’ que é superior às intenções dos homens; há uma finalidade na história, e Kant se propõe determinar suas grandes linhas.” (ROVIGHI, 2002, p. 591)

3. A teleologia na historiografia religiosa É importante que, antes de voltarmos ao pensamento kantiano acerca da História e da religião e, de maneira mais particular, à sua maneira de olhar para a questão eclesiástica, dedicaremos o presente tópico àquele que tem sido um dos problemas de nosso objeto material de pesquisa. Conforme adiantamos na Introdução, temos trabalhado com a obra História Eclesiástica, de um bispo e historiador do século IV chamado Eusébio de Cesareia. Entre tantos problemas que tal leitura nos tem suscitado, destacamos para o presente artigo um problema que entendemos ser essencial na obra, a saber, seu gênero literário e historiográfico. A História Eclesiástica é uma obra de caráter apologético, pois visa defender a religião cristã, mas também é uma obra de caráter panegirista, pois visa enaltecer a pessoa de Constantino, imperador romano entre os anos 306 e 337, embora tenha sido monarca apenas a partir de 324, quando derrotou seu cunhado e co-imperador Licínio, colocando fim à era das Tetrarquias inaugurada por Diocleciano. Portanto, em meio a apologias à religião cristã e a panegíricos ao imperador Constantino, a obra de Eusébio inaugura na história da historiografia um gênero de escrita que iremos chamar de Providencialista, pois entende que a verdadeira História, ou seja, aquela que ele escreve, do modo como escreve, é resultante da providência divina e, portanto, controlada e conduzida conforme a vontade do Deus dos cristãos. Por se tratar de uma história de caráter providencialista, há um fim último a ser atingido, a saber, a salvação. Assim, Eusébio escreve a história entendendo-a como história da salvação, mesmo porque a igreja da qual ele faz parte e sobre a qual ele escreve é, em sua percepção, constituída pela divindade para alcançar a salvação eterna.

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Se Eusébio entende a História dessa maneira, há, portanto, um caráter teleológico em sua narrativa. E o fim a ser atingido não é outro senão a salvação daqueles que pertencem à religião cristã, tida por ele como única verdadeira. Esse aspecto teleológico presente na obra de Eusébio representa para nós um grande problema, pois inviabiliza toda e qualquer ação livre do ser humano, uma vez que este está à mercê da vontade divina, seja no sentido de ser beneficiado, seja no sentido de ser martirizado. O mesmo serve para as narrativas de Eusébio acerca dos imperadores romanos, especialmente aqueles que exerceram perseguições à religião cristã. Segundo Eusébio, o castigo divino como devida recompensa lhes será concedido, porque Deus não tolera que seus fiéis sejam oprimidos. Da mesma maneira, se algum imperador resolve favorecer os cristãos, Deus o recompensará com triunfo nas batalhas, com poder sobre o império e com honra perante o Senado e perante o povo. O resultado dessa providência divina não pode ser outro além do triunfo da própria instituição terrena que se compõem daqueles que professam publicamente sua fé no Deus da História. A princípio, o resultado conquistado é a liberdade de culto e a proteção imperial, já que na discursiva panegírica de Eusébio, o imperador Constantino não apenas aderiu à fé verdadeira, mas foi escolhido providencialmente pela divindade. Para exemplificar esse processo, podemos citar um breve fragmento da História Eclesiástica, no qual Eusébio narra acerca dos primeiros efeitos dessa aliança estabelecida entre o poder público do império e o poder eclesiástico da religião cristã. No último rolo da obra, o Livro X, em seu derradeiro capítulo nove, no primeiro parágrafo – portanto H.E. X, 9.1 – Eusébio inicia sua narrativa acerca do triunfo de Constantino sobre Licínio e os benefícios que esta vitória traria graças à providência divina aos súditos da corte e da sociedade de Roma:

Tούτῳ μὲν οὖν ἄνωθεν ἐξ οὐρανοῦ καρπὸν εὐσεβείας ἐπάξιον τὰ τρόπαια τῆς κατὰ τῶν ἀσεβῶν παρεῖχε νίκης, τὸν δ+ ἀλιτήριον αὐτοῖς συμβούλοις ἅπασιν καὶ φίλοις ὑπὸ τοῖς Κωνσταντίνου ποσὶν πρηνῆ κατέβαλεν. A este, de fato, do alto do céu, [como] fruto digno de piedade contra os ímpios concedeu os troféus da vitória. Então o ofensor [com] todos conselheiros e amigos, a eles sob [os] pés de Constantino com a face para baixo derrubou. (tradução nossa)7 7

Embora tenhamos destacado uma tradução nossa, há algumas já publicadas em língua portuguesa no Brasil. A tradução da Editora Paulus, por exemplo, ficou da seguinte forma: “Foi, portanto a este que, do alto do céu, qual fruto digno de sua piedade, Deus concedeu os troféus da vitória sobre os ímpios. Quanto

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Podemos perceber, numa rápida leitura filológica do fragmento acima, o caráter teleológico e providencialista da narrativa eusebiana. Tais características perpassam toda a sua obra. Para destacar apenas alguns pontos, pensemos, por exemplo, nos seguintes termos da primeira linha do texto grego: ἄνωθεν, οὐρανοῦ, καρπὸν, εὐσεβείας, ἐπάξιον e τρόπαια. Todos eles, em boa medida, demonstram o caráter providencialista e teleológico da narrativa. A expressão ἄνωθεν ἐξ οὐρανοῦ corresponde à do alto do céu, o que denota intervenção de uma divindade no processo histórico narrado. O termo οὐρανοῦ é um substantivo no genitivo, exercendo, portanto, nesta frase, a função de origem. É a partir do céu que algo acontece, segundo Eusébio. Já a expressão καρπὸν εὐσεβείας ἐπάξιον aponta para o caráter teleológico da narrativa, pois significa fruto digno de sua piedade. O substantivo καρπὸν tem a ver, neste caso, com fruto no sentido de recompensa, ganho, estando diretamente relacionado ao adjetivo ἐπάξιον que significa merecimento. O aspecto providencialista no uso desses termos se completa com a aplicação do verbo composto παρεῖχε que significa concedeu, ofereceu. E, além disso, no uso do substantivo genitivo νίκης (vitória) acompanhado por τρόπαια (troféus), ou seja, troféus da vitória. O aspecto providencialista e teleológico, no entanto, não se cumpre apenas no sentido de beneficiar os que possuem εὐσεβείας (piedade), mas também de castigar os ἀσεβῶν (impiedosos, ímpios). O parágrafo, numa segunda parte, diz: τὸν δ+ ἀλιτήριον αὐτοῖς συμβούλοις ἅπασιν καὶ φίλοις ὑπὸ τοῖς Κωνσταντίνου ποσὶν πρηνῆ κατέβαλεν (Então o ofensor [com] todos conselheiros e amigos, a eles sob [os] pés de Constantino com a face para baixo derrubou). Novamente é possível constatar na narrativa de Eusébio o caráter providencialista e o aspecto teleológico, pois de maneira direta trata do castigo divino e da humilhação àqueles que perseguiam os cristãos e, simultaneamente, o triunfo de Constantino na condição de favorecido pela divindade. Resta-nos, com isso, pensar nos efeitos dessa narrativa elaborada por Eusébio a partir de uma breve leitura comparativa das duas concepções de teleologia, a saber,

ao criminoso com todos os seus conselheiros e amigos, prostrou-os aos pés de Constantino.” cf. EUSÉBIO DE CESAREIA. História eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 505.

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aquela pensada por Kant no século XVIII e a que acabamos de observar no texto do escritor cristão do século IV.

4. Entre a teleologia pensada por Kant e a teleologia de Eusébio Para concluirmos nossa leitura e percebermos as questões que estão entre a teleologia pensada por Kant em suas diferentes concepções conceituais de História e a teleologia proposta nos escritos de Eusébio, entendemos ser possível pontuar alguns elementos explorados pelo filósofo alemão na quarta parte de sua obra A religião nos limites da simples Razão (1793). Estamos pensando naquilo que ele entende por religião erudita, na questão do clericalismo e na ideia de uma religião estatutária. Esses três aspectos estão presentes na parte final da mencionada obra e, em certo sentido, podem servir de chave de leitura do cenário do qual Eusébio faz parte que é o século IV de nossa era. Entendemos que, a partir desse breve exame, será possível pensar nas diferenças existentes entre os dois modelos teleológicos que estamos estudando. O contexto do qual Eusébio fez parte foi marcado por um processo de transição determinante na história do Ocidente. Independentemente da maneira como a adesão de Constantino à religião dos cristãos tenha se dado enquanto experiência pessoal, pois não temos o compromisso de afirmar ou negar sua conversão, pois esta é uma categoria que, em nosso entender, cabe aos teólogos e não aos filósofos ou historiadores, sabemos que todo o enredo narrativo acerca desse episódio foi, por assim dizer, construído por Eusébio. E duas das ferramentas que o escritor cristão utilizou para elaborar essa trama foram a sua capacidade discursiva e sua inegável erudição. No entanto, sabemos que aquele momento foi marcado por um profundo diálogo entre a mentalidade cristã que pretendia afirmar-se e legitimar-se socialmente e a filosofia clássica, especialmente aquela de matriz platônica, que ganhando uma roupagem religiosa, serviu para que os argumentos cristãos fossem elaborados e, por consequência, suas doutrinas fossem apresentadas para posteriormente serem oficializadas. Um dos episódios que sucedeu aquele triunfo de Constantino sobre Licínio que culminaria no restabelecimento da monarquia foi o Concílio de Niceia, em 325, convocado e presidido pelo próprio imperador, embora fosse uma reunião que trataria não de questões políticas, do império, mas da igreja e de suas discussões doutrinárias. Aquele movimento antes sectário, plural, proibido, estava agora não apenas em busca de uma unidade institucional e dogmática, mas também de uma identidade própria,

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marcada por uma nova estética e por um regime estatuário que seria imposto a todos aqueles que dela quisessem fazer parte. A discussão de Niceia era bem objetiva, pois tratava da decisão dogmática acerca da natureza divina atribuída por alguns e negada por outros àquele que era tido como precursor do movimento, a saber, Jesus de Nazaré. No fim das contas, decidiu-se que, por meio de um texto chamado a partir de então de Credo Niceno, redigido pelo próprio Eusébio e ampliado e adaptado no concílio, oficialmente a cristandade consideraria que Jesus de Nazaré, morto cerca de trezentos anos antes, era divino e deveria ser cultuado como tal. Como diz Rovighi “a religião se torna histórica e estatutária. Em lugar de estatutária, Kant também utiliza os termos revelada ou positiva.” (ROVIGHI, 2002, p. 592) Àqueles que se negarem aceitar e assinar o estatuto, vale o castigo do exílio8. Aquela igreja ainda não condenava à morte, o que só acontecerá pela primeira vez sessenta anos mais tarde quando condenará o espanhol Prisciliano, acusando-o de herege, maniqueísta, gnóstico, ocultista e adepto de magia, além de recusar a exclusividade do cânon oficial da igreja, a saber, seus textos sagrados. Como Kant analisaria tal cenário? Segundo Rovighi: Do mesmo modo que se desinteressa pelo conteúdo teórico do cristianismo, Kant também se desinteressa por suas origens históricas (autenticidade dos Evangelhos etc), porque o valor das doutrinas cristãs é dado por seu conteúdo moral, não pelo fato de serem reveladas ou não. E Kant resume, a partir do Evangelho (sempre o de Mateus, com exceção de uma passagem), todo o conteúdo moral do cristianismo em quatro páginas esparsas. Historicamente, porém, até o cristianismo se tornou uma religião culta, ou seja, uma religião que pressupõe o conhecimento de documentos, de livros sagrados. Nele também prevalecem os elementos “estatutários”, positivos, e também ele se tornou superstição e clericalismo. (ROVIGHI, 2002, p. 592)

Outro problema explorado por Kant na quarta parte de A religião nos limites da simples Razão foi a ideia de religião erudita. Falamos acima acerca da relação que os intelectuais cristãos estavam estabelecendo entre suas concepções de fé e posteriormente dogmáticas e a filosofia grega, especialmente a platônica. Orígenes (c. 185-254), Agostinho (354-430) e, entre estes, também Eusébio, foram alguns dos chamados Padres da Igreja que, utilizando-se de repertório filosófico e capacidade retórica, tanto no escrever quanto no falar, construíram um discurso de defesa à religião cristã em prol da construção de sua credibilidade intelectual e, particularmente Eusébio 8

Segundo Paul Veyne, Constantino “torna executórias as decisões teológicas dos concílios, manda para o exílio os bispos insubmissos, publica um edito fulminante contra os hereges.” cf. VEYNE, P. Quando nosso mundo se tornou cristão: 312-394. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p. 136.

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e Agostinho, de sua identidade institucional. Nascia, com isso, uma religião erudita? Há quem acuse Eusébio de falsa erudição. O mesmo servirá para Agostinho? Ao tratar da relação entre o serviço a Deus e a erudição, especialmente pensando na religião cristã como religião erudita, Kant afirma: Eis o verdadeiro serviço da Igreja sob o domínio do princípio bom; mas aquele em que a fé revelada deve preceder a religião é o pseudo-serviço, pelo qual a ordem moral é totalmente invertida, e o que não passa de meio é incondicionalmente imposto (como se fora um fim). A fé em proposições a cujo respeito o não erudito não pode assegurarse nem pela razão nem pela Escritura (enquanto esta deveria, primeiro, ser documentada) transformar-se-ia no dever absoluto (fides imperata) e assim, juntamente com outras observâncias a ela associadas, seria elevada ao estatuto de uma fé que beatifica como culto servil, inclusive sem fundamentos de determinação morais das ações. – Uma Igreja fundada neste último princípio não tem, em rigor, servidores (ministri), como a que tem a constituição primeiramente mencionada, mas altos funcionários (officiales) que mandam, os quais, embora (como numa Igreja protestante) não apareçam no brilho da hierarquia como funcionários espirituais investidos de poder externo, e até protestem contra tal por palavras, de fato, porém, desejam saber-se considerados como os únicos intérpretes autorizados de uma Escritura sagrada, depois de terem despojado a religião racional pura da dignidade que lhe corresponde de ser sempre a intérprete suprema dessa Escritura, e terem ordenado que a erudição escriturística se use a pena sem vista da fé eclesial. Transformam assim o serviço da Igreja (ministerium) numa dominação sobre os seus membros (imperium) embora, para ocultar tal impudência, se sirvam do modesto título de servidores. Mas esta dominação, que teria sido fácil para a razão, resulta-lhes cara, a saber, pela despesa de uma grande erudição. (KANT, 2008, pp. 188 e 189)

Para complementar esse confronto, Kant deixa claro que, em sua compreensão, uma religião estatutária é marcada por arbitrariedade e imposição de determinadas observâncias. O papel de protagonista nesse cenário é praticado, sem dúvida, por aqueles que munidos de uma pseudo-erudição, estabelecerão o que significa servir e o que significa não servir, o que significa verdade e o que significa inverdade. Para Kant: O clericalismo é, pois, a constituição de uma Igreja enquanto nela reina um culto feiticista com que se depara sempre onde os princípios da moralidade não constituem a base e o essencial, mas sim mandamentos estatutários, regras de fé e observâncias. Ora bem, há decerto formas eclesiais em que o feiticismo é tão diverso e tão mecânico que parece expulsar quase toda a moralidade, por conseguinte, também a religião, e deve tomar o seu lugar, pelo que se aproxima muito do paganismo; mas o mais ou o menos não é o que aqui interessa, onde o valor ou o desvalor se baseia na qualidade do princípio que supremamente obriga. Se este impõe a submissão obediente a um estatuto, como serviço forçado, mas não a homenagem livre que deve ser rendida supremamente à lei moral, então as observâncias impostas podem ser tão poucas como se quiser; basta que se declarem incondicionalmente necessárias: trata-se sim sempre de uma fé feiticista pela qual a multidão é regida e privada da sua liberdade moral mediante a obediência a uma Igreja (não à religião). (KANT, 2008, p. 205)

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Após essas leituras é possível pensar em um último embate, no qual se confrontam a concepção de história teleológica pensada por Kant e a história teleológica proposta por Eusébio? Sim, é possível. E o resultado parece-nos óbvio. Enquanto a História para Kant não é providencialista, pois não entende que um Deus possa estar por detrás das maquinações humanas, a História para Eusébio é providencialista, pois ele acredita que haja um Deus controlando e intervindo nas ações humanas. Kant é filho do Iluminismo, portanto, anticlericalista, Eusébio é protagonista intelectual do processo de aliança entre o Estado Romano e a Igreja Cristã, portanto, iniciador de uma mentalidade que fará do clérigo um agente social com status e influência. Kant, como filósofo, entende a teleologia na História no constante progresso do gênero humano para o melhor, enquanto Eusébio, como um teólogo que se faz historiador, apesar de vislumbrar a salvação do ser humano como fim último, está entre aqueles eclesiásticos que, segundo Perez, “predizem o colapso da religião e a aparição do Anticristo ‘enquanto fazem o que é justamente necessário para introduzi-lo’.” (PEREZ, 2006, p. 101) Portanto, são concepções de teleologias bem distintas, não apenas por se tratarem de épocas distantes – quatorze séculos separam Kant de Eusébio – ou pelo fato de um ser, em certo sentido, humanista, enquanto o outro é providencialista, mas, sobretudo, porque possuem concepções muito diferentes em suas interpretações da aplicação do conceito τέλος. Para explicitar essa diferença entre Kant e Eusébio, optamos por mencionar o desfecho do artigo Os significados da História em Kant, no qual Perez afirma, ao tratar do constante progresso do gênero humano para o melhor: “A validade deste progresso não depende de uma arte profética, nem da constatação empírica, mas do próprio funcionamento da razão.” (PEREZ, 2006, p. 104)

Conclusão Por τέλος, entende-se, segundo Perez, como um conceito heurístico do agir. Portanto, na filosofia kantiana, busca-se uma solução ao problema da ação, já que a sua concepção de teleologia resume-se na hipótese de que o gênero humano encontra-se em um constante progresso para o melhor. Na relação que procuramos desenvolver entre o conceito de História em Kant – considerando que não há uma concepção única de História em sua filosofia – e a história teleológica e providencialista de Eusébio, autor que tem sido nosso objeto de

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pesquisa, identificamos diferenças muito claras. Sem a necessidade de retomá-las na presente conclusão, podemos apenas pontuar que, utilizando Kant como referencial teórico ou mesmo como chave de leitura, é possível desenvolver uma ampla interpretação crítica da obra do escritor cristão do século IV. A teleologia que visa o progresso do gênero humano para o melhor não é a única maneira de Kant conceituar e caracterizar a História e não parece estar totalmente desvinculada de sua maneira de pensar a religião, pois esta, segundo Kant, pode compor a experiência humana, ainda que no âmbito daquilo que ele chama de razão prática. Não por acaso, muitos associam Kant à teologia alemã do século XIX, considerando-o a base de maior influência sobre essa corrente, pois para tais teólogos, entre os quais podemos citar Friedrich Schleiermacher (1768-1834), Albrecht Ritschil (1822-1889) e Ernest Troeltsch (1865-1923), era preciso adotar um método históricocrítico de interpretação do cânone cristão, uma relativização da tradição dogmática da religião e uma leitura predominantemente ética do cristianismo, rompendo assim com a tradição ortodoxa evidente no Credo redigido por Eusébio e oficializado no Concílio de Niceia, para adotar uma nova valorização da ética inaugurada na filosofia kantiana.

Referências bibliográficas CAYGILL, H. Dicionário Kant. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. EUSÉBIO DE CESAREIA. História eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000. EUSEBIO DE CESAREA. Historia eclesiástica; [Texto Biligüe, Version Española, Introduccion y Notas de Argimiro Velasco-Delgado, O.P.]. – Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 2001. GIBELLINI, R. A teologia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998. KANT, I. A religião nos limites da simples razão. Covilhã: Lusosofia/Universidade da Beira Interior, 2008. PEREZ, D. O. História como romance em Kant. In VERARDI BOCCA, F. (org), Natureza e liberdade. Curitiba: Champagnat, 2005, pp. 29-37. __________. Os significados da história em Kant. Philosophica (Lisboa), v. 28, p. 67107, 2006. ROVIGHI, S. V. História da filosofia moderna. São Paulo: Loyola, 2002. VEYNE, P. Quando nosso mundo se tornou cristão: 312-394. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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