KANT E OUSPENSKY - E O MUNDO, REALMENTE EXISTE? A estética transcendental de Kant diante da matemática não-euclidiana

June 3, 2017 | Autor: Lucas Sariom | Categoria: Immanuel Kant, Pyotr Demianovich Ouspenskii, Filosofia da Religião, P. D. Ouspensky
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Preferimos por utilizar a tradução inglesa do Tertium Organum e traduzir livremente o texto. Esta versão foi traduzida do russo por Nicholas Bessaraboff e Claude Bragdon. Este é o texto mais fiel ao original de Ouspensky, visto que o mesmo no prefácio do livro diz: "quero expressar ao Sr. Nicholas Bessaraboff e ao Sr. Claude Bragdon minha mais profunda apreciação de seus trabalhos na tradução de meu livro para o inglês. Esta tradução, feita sem meu conhecimento e participação, justamente em um momento em que fui afastado do mundo civilizado por causa da guerra e da revolução, transmite meu pensamento tão exatamente que depois de uma revisão muito atenta do livro, pude encontrar uma única palavra para corrigir. Tal resultado somente pode ser alcançado porque o Sr. Bessaraboff e o Sr. Bragdon não estavam traduzindo palavras meramente, mas capturando diretamente os pensamentos por traz deles".
Tetra-sólido, hiper-sólido, sólido tetradimensional, sólido da quarta dimensão são todos sinônimos utilizados em uma linguagem não-euclidiana. Desta forma podemos utilizar estas expressões para dizer e.g. que a quarta dimensão de uma casa é uma hiper-casa.
Sobre esta "multiplicação multiplicado infinitamente maior" do espaço, Ouspensky dedica toda uma explicação matemática a respeito das matemáticas transfinitas, ou seja, de que há infinitos e infinitos, um após ou anterior ao outro, com um abismo infinito separando um do outro. Somente através dessa perspectiva se poderia compreender corretamente a distinção e interdependência entre uma dimensão e outra. (ver citação)




KANT – E O MUNDO, REALMENTE EXISTE?
A estética transcendental de Kant diante da matemática não-euclidiana


Lucas Sariom de Sousa
UNIOESTE - Filosofia
[email protected]

PALAVRAS-CHAVE: Kant; Ouspensky; Espaço e tempo; Quarta dimensão.


INTRODUÇÃO

A grande incógnita da nossa relação com as causas verdadeiras de nossas sensações foi um dos importantes temas da investigação filosófica desde a era moderna. E realmente é uma das primeiras perguntas que saltarão aos olhos em qualquer tentativa de criação de um sistema epistemológico. Com uma breve análise, podemos ver que as diversas respostas ao redor deste tema se alternaram entre dois polos: um deles como sendo uma completa negação destas causas – que consequentemente as causas das sensações estão em si mesmas e não em nada externo; e o outro polo como a admissão do conhecimento destas causas – e que, portanto, elas estão contidas nas impressões do mundo externo, que estas mesmas impressões constituem as causas das sensações, e que a causa dos fenômenos observáveis radica no movimento do que alguns acabaram chamando matéria. Idealismo e Empirismo.
Mas além destes dois pontos de vista, temos ainda uma posição central neste problema das causas das sensações que é ocupada pelo sistema de Kant, que não comparte nem um nem outro destes critérios extremos e ocupa um meio caminho entre ambos. Kant estabeleceu que nossas sensações devem ter causas no mundo externo, mas que somos incapazes, e nunca seremos capazes, de perceber estas causas por meios sensoriais, ou seja, pelos meios que nos servem para perceber os fenômenos.
Desta forma, Kant deixou estabelecido que "o espaço e o tempo são as formas puras desse modo de perceber (...) [e] se denominam intuições puras (...). As formas referidas são absoluta e necessariamente inerentes à nossa sensibilidade, seja qual for a espécie das nossas sensações, que podem ser muito diversas (...). A nossa sensibilidade, está sempre submetida às condições do espaço e do tempo, originariamente inerentes ao sujeito; nem o mais claro conhecimento dos fenômenos, o único que nos é dado, nos proporcionaria o conhecimento do que os objetos podem ser em si mesmos" (KANT, 1992, p. 105).
É muito seguro dizer que este posicionamento foi marcante na história da filosofia. Todos os filósofos que vieram posteriormente tiveram que de alguma forma estabelecer um diálogo com Kant, e consequentemente traçar um posicionamento ou interpretação a partir deste empirismo racionalista. Alguns tentaram encontrar algum acesso ao númeno; outros aceitaram tão só algum meio parcial de alcança-lo; e outros negaram absolutamente este acesso. Obviamente que não é nosso objetivo neste trabalho elencar e muito menos analisar todas estas perspectivas. Queremos, na verdade, propor a análise de uma delas que certamente foi deixada um pouco de lado, apesar de sua autêntica originalidade e relevância filosófica.
Esta perspectiva da qual falamos é a do filósofo e matemático russo Piotr Demianovich Ouspensky, a qual Palmquist expõe em um de seus artigos como uma interpretação legítima da questão que expusemos sobre Kant, de tal forma que "um fenômeno é uma aparência transcendental (...) e, portanto, é também legítimo dizer que os fenômenos são [referindo-se a Ouspensky] "simplesmente diferentes aspectos de uma e mesma coisa"" (PALMQUIST, 1986, p. 140).
Ouspensky, um bom tempo depois de Kant, em 1912 – no auge da teoria especial da relatividade (1905), e de sua generalização por Minkowsky (1908) e das diversas produções sobre as dimensões como e.g. o futurismo (1909), cubismo (1907) etc. – publicava um livro chamado Tertium Organum, parafraseando os livros anteriores de Aristóteles e Bacon com a proposta de uma nova lógica de investigação.
Neste livro, Ouspensky coloca uma sugestão um pouco diferente para contrapor com os postulados críticos sobre o tempo e o espaço: tendo em vista que na época de Kant não havia senão a geometria euclidiana, e que a própria física newtoniana se fundamentava também totalmente neste paradigma (que aliás inspiraram em parte a Kant), o que aconteceria se contrapuséssemos a nova área da matemática iniciada por Lobatchevsky, mais conhecida como "não-euclidiana"? Neste contexto, tendo em vista a preponderância histórica da estética transcendental de Kant junto ao novo paradigma científico da relatividade geral, a partir disso precisamente vem Ouspensky tentar colocar as duas coisas lado a lado.
Mas qual a relevância filosófica do ponto de vista de Ouspensky?

RELEVÂNCIA FILOSÓFICA DE OUSPENSKY

Kant estabeleceu o fato de que tudo o que os sentidos recebem é percebido através do tempo e o espaço, e que fora do tempo e do espaço nada podemos perceber através dos sentidos; e, sobretudo, estabeleceu o fato de que a extensão no espaço e a existência no tempo não são propriedades inerentes das coisas senão meramente propriedades de nossa sensibilidade.
Desta forma, Ouspensky conclui que – se seguimos o raciocínio kantiano – necessitamos destas determinações que tempo e espaço impõem em nossos fenômenos das coisas por várias razões. Porque "(...) uma coisa que não tem extensão no espaço e não existe durante certa extensão de tempo, não existe para nós. Isto significa que uma coisa não considerada na [forma a priori da] intuição de espaço, não diferirá de modo algum de outra cosa. Da mesma forma, todos os fenômenos não localizados no tempo, em algum antes, agora e depois, ocorreram para nós simultaneamente, mesclando-se um com outro, tornando-nos incapazes de desenredar a variedade infinita de um momento" (OUSPENSKY, 1922, p. 16).
Mas é exatamente isso o que acontece através daquilo que Ouspensky chama no seu Tertium Organum de "sentido do espaço tetradimensional" (OUSPENSKY, 1922, p. 327), e nossa dificuldade em compreendê-lo é justamente por não estarmos acostumados com esta "nova" dimensão, da mesma forma como os prisioneiros na caverna de Platão sequer conceberiam a possibilidade da existência de um mundo "tridimensional", além de meras sombras "bidimensionais" (OUSPENSKY, 1922, p. 162-165).
O fato é que não sabemos sequer se é possível distinguir com clareza todas estas coisas senão desde o ponto de vista humano; não sabemos se, para um organismo constituído diferentemente, nosso mundo não apresentaria um quadro inteiramente distinto, como é o interessante caso dos seres planos da famosa Flatland, de Edwin Abbott (ou em português, Planolândia, escrita em 1884).
Por isso, apesar da profusão de novos sistemas filosóficos que apareceram no curso do século XIX, e não obstante o grande número de filósofos que se interessaram especialmente por comentar e interpretar os escritos de Kant, para Ouspensky as proposições de Kant seguem estando ainda, praticamente, na mesma forma em que as deixou. E isso principalmente porque, como coloca Ouspensky: "a maioria se concentrou no que não é importante nem essencial, omitindo na verdade o mais importante e substancial" (OUSPENSKY, 1922, p. 19).
Neste contexto é que realizamos a pergunta: existe realmente o mundo exterior? Este é o problema proposto por Ouspensky para Kant, diálogo este que procuraremos expor neste trabalho, nos parágrafos seguintes.

DESENVOLVIMENTO DAS PROPOSIÇÕES DE OUSPENSKY

ESTUDO INTRODUTÓRIO DAS QUATRO DIMENSÕES

Assim começam as reflexões de Ouspensky: o mundo existe, ou pelo menos aparece para nós como existindo, no tempo e no espaço tridimensional. A distinção de tempo e espaço, entretanto, dificilmente poderia ser uma realidade objetiva. Todos os eventos que conhecemos estão estruturados em um tempo contínuo. Nós os classificamos como eventos passados que foram reais, mas de nenhuma duração, e eventos futuros que são irreais porque não aconteceram ainda. O que parece realmente estranho e absurdo é termos que restringir a realidade a um recorte ou fresta infinitésima. Objetivamente poderíamos dizer que eventos passados e futuros não são menos reais do que eventos presentes. O problema do conhecimento é justamente explicar por que nós vemos as coisas desta forma tão paradoxal – por que vemos somente este recorte tridimensional de uma realidade tetradimensional.
Na perspectiva de Kant a fonte do tempo e espaço como formas de um mundo fenomênico devem ser encontradas não nos objetos conhecidos, mas na natureza do sujeito que conhece. Sendo assim, a explicação da nossa distinção entre tempo e espaço deve ser encontrada em uma análise de nossa forma de conhecer, ou seja, a forma de nosso pensamento ou nossa consciência.
Se de alguma maneira pudermos dizer que nós conhecemos o mundo por meio de sensações, percepções e conceitos; e se está correta a tese de Kant de que o tempo e espaço são nossas formas puras de intuição; então tempo e espaço como nós os apreendemos deve depender da nossa forma de conhecer o mundo, ou seja, de sensações, percepções e conceitos.
Como confirmaremos isso? Ouspensky aproveita a abertura que Kant deixou quando disse que conhecemos o modo como conhecemos o mundo, "mas pode muito bem não ser necessariamente o de todos os seres, embora seja o de todos os homens" (KANT, p. 105). Neste sentido, bastaria que comparássemos nossa forma de conhecer com outras formas, que empregassem mais ou menos do que estas três faculdades, e a partir disso poderíamos ver como o mesmo mundo exterior apareceria para tais consciências como diferentes do mundo como nós o conhecemos (com seu espaço tridimensional e o movimento no tempo). Ou seja, se nós encontrarmos uma consciência que perceba o mundo com menos faculdades e que, consequentemente, construa para si um mundo com menos dimensões, poderíamos ter uma esperança em entender como o mundo apareceria para determinada consciência neste caso. E a relação deste mundo inferior (de menos dimensões) com relação ao nosso poderia nos dar uma analogia para considerar a relação do nosso mundo com um possível mundo superior.
A proposta de Ouspensky sobre isto é de que esta condição é totalmente preenchida na consciência dos animais. Animais não tem conceitos, como mostrado pela sua falta de linguagem, sem o qual os conceitos são impossíveis. Desta forma, eles conhecem o mundo somente pelas sensações e percepções. No caso de animais inferiores, como, por exemplo, um caracol, sua anatomia e seu comportamento indicam que para eles falta até mesmo a faculdade da percepção e só neste caso devem ter um conhecimento baseado em meras sensações.
Animais, apreendendo o mundo por uma percepção sem conceitos, só poderão ter a experiência desse mundo como bidimensional. E nós sabemos que isto é verdade porque nós mesmos percebemos o mundo como bidimensional. Realmente percebemos somente a superfície das coisas, não seus interiores; podemos dizer que o campo de visão é um contínuo bidimensional. Nós constantemente estamos completando nossa apreensão de um objeto percebido adicionando nele a terceira dimensão, mas isto não seria possível sem uma faculdade mental superior. Os animais superiores (como um cão), não tendo esta faculdade, apreendem somente o campo percebido pela visão, e consequentemente, para eles, o mundo é bidimensional. Os animais inferiores (como um caracol), restringidos pela sensação, não são capazes nem mesmo de combinar suas sensações para um todo ordenado, pois para isso requereriam a percepção, e para eles o mundo no fim se restringe a tão somente uma sequência de sensações, ou seja, unidimensional.
A terceira dimensão, nunca percebida, é introduzida em nossa experiência pela nossa faculdade humana peculiar de formar conceitos por abstrações das percepções. Quando caminhamos ao redor de uma casa, percebemos um número infinito de diferentes percepções (imagens) que consideramos como sendo suas diferentes direções. Não consideramos estas aparências como sendo um número infinito de diferentes coisas justamente porque as integramos em um único objeto – que podemos chamar de casa – um objeto que pode incluir um número infinito de aspectos bidimensionais porque em si mesmo é tridimensional. Abstraída ou integrada de uma sucessão de percepções, uma casa não é uma percepção, mas um conceito. O pior, como poderíamos pensar, é que realizamos essa operação mental mesmo quando a realidade não justifica isso, como quando uma pintura parece ter profundidade.
Desta forma – lembrando que havíamos proposto anteriormente que se a apreensão da primeira, segunda e terceira dimensões do espaço fossem dadas respectivamente pelas sensações, percepções e conceitos, teríamos a esperança de supor a apreensão de uma possível quarta dimensão do espaço – neste momento, portanto, devemos nos perguntar se, além destas três faculdades anteriores, existe alguma quarta faculdade mental do espaço. Estaremos seguindo o caminho correto, de acordo com Ouspensky, se observarmos que esta quarta faculdade deve estar intimamente relacionada com algo emocional, pois tal como os conceitos são inexpressíveis por percepções, as emoções são inexpressíveis por conceitos. Ou, em suas palavras, "o conteúdo das experiências emocionais, até das mais simples, para não dizer nada sobre as mais complexas, nunca poderá se ajustar totalmente aos conceitos ou ideias e, portanto, nunca poderão se expressar correta e exatamente em palavras. As palavras são somente para sugeri-lo ou conduzir a ele" (OUSPENSKY, 1922, p. 83).
O problema em tentarmos compreender o que é este "algo emocional" nos apresentando como uma quarta faculdade é que matematicamente é de uma imensa dificuldade para nós entendermos a experiência de uma consciência superior a nossa, pois – tal como a geometria nos mostra – um ponto não vê uma linha, a linha não vê o plano, o plano não vê o sólido e o sólido não vê o tetra-sólido, pois a próxima dimensão sempre está fora da anterior (a linha fora do ponto, o plano fora da linha, o sólido fora do plano e o tetra-sólido fora do sólido). Por isso, para entender o que esta emoção artística deve significar, teremos que nos voltar para a analogia que podemos fazer através da relação do mundo como é visto pelos animais.

APARÊNCIA DE TEMPO E ESPAÇO EM CADA DIMENSÃO

Animais apreendem coisas, mesmo as coisas tridimensionais, como sendo bidimensionais. É claro que eles reconhecem a diferença entre um sólido tridimensional e uma superfície bidimensional, mas não podem fazê-lo da mesma forma que nós. Quando caminhamos ao redor de uma casa, tanto o animal quanto o homem percebem a sucessão das diferentes fotografias, ou planos visuais. Nós, por nossa faculdade conceitual, integramos tudo isso em um objeto tridimensional que incluem todos eles. O animal, incapaz de fazer isto, experimenta nada além da casa como percebida, ou seja, como um objeto bidimensional, mas um objeto em constante mudança. Para ele, é um objeto em mudança ou se movendo no tempo, enquanto para nós está fixo, imutável – entretanto, infinitamente maior e mais complicado, pois é tridimensional. Conforme o animal contorna o ângulo de uma casa, sua aparência, que para nós é a própria totalidade da casa, muda mais rapidamente, ou seja, há certa aceleração. A mudança segue um padrão ordenado análogo com o que nós poderíamos chamar, em uma linguagem humana, de "lei física", e presumidamente o animal antecipa a aparição futura da casa se ele é familiar com isto ou com objetos similares. No caso de um objeto se movendo atualmente, entretanto, a mudança na aparência é trazida pela combinação de duas causas independentes, o movimento do observador e o movimento do objeto. Por isso, o comportamento do objeto aparente será muito mais complicado e não seguirá nenhum padrão previsível, e tal objeto deverá aparecer para um animal como transcendendo as leis do mundo físico, ou seja, como sendo o que nós poderíamos chamar de "ser vivo", ou melhor, que a casa pareceria viva. Por esta razão é que poderíamos explicar porque o cachorro late para um automóvel que passa.
Com esta base, para tornar mais clara como Ouspensky pretende que compreendamos as dimensões, trazemos a análise feita por Burch em The Philosophy of Ouspensky. Consideramos que nele, o professor de Harvard consegue sintetizar poderosamente este assunto (OUSPENSKY, 1922, p. 80-111) e tratamos de descrever nas próximas linhas esta análise de como os vários objetos de cada dimensão aparecem para cada tipo de consciência em sua dimensão própria.
Um objeto unidimensional, ou seja, uma linha, aparece para um animal inferior como uma coisa ocupando parte do mundo. Sem a faculdade da percepção, ele não pode conceber simultaneamente a linha em si mesma e o espaço ao redor ou ao lado disto, e não é capaz de ver como sua linha não é substancial. Um animal superior, como por exemplo um cachorro, percebe o campo no qual a linha existe. Para ele a linha parece não ser uma coisa, mas o limite ou recorte de alguma coisa. Para um homem aparece ainda menos substancial, sendo somente o recorte de um recorte de uma coisa.
Um objeto bidimensional não pode ser concebido por um animal inferior. Apreendendo somente parte disto pela sensação e não integrando as sensações lembradas em qualquer padrão de percepção, ele considera a parte que ele não sente mais como estando no passado, a parte que ele sente agora como sendo o presente, e a parte que ele não sentiu ainda no futuro. Ou seja, para ele o objeto parece ser uma coisa mudando ou se movendo no tempo. Para um animal superior parece como uma coisa mudando, porque ocupa a parte definida de um campo infinito de visão que para ele constitui o mundo. E para um homem é só a superfície ou recorte de uma coisa.
Um objeto tridimensional, tal como uma casa, está tão longe da compreensão de um animal inferior que só pode aparecer para ele como mudança ou se movendo de uma forma impredicavelmente complicada analogamente da mesma forma que o comportamento dos organismos vivos aparecem para nós. Este objeto aparece para um animal superior, que não integra suas percepções lembradas e antecipadas disto em um só conceito, como mudando ou se movendo, mas de uma forma menos complexa. Para um ser humano é uma coisa estacionária ocupando uma parte definida de um universo tridimensional. Se há uma consciência superior capaz de apreender o mundo em quatro dimensões, um objeto tridimensional deveria aparecer para ele não como uma coisa, mas como os limites ou recortes de uma coisa.
Um objeto tetradimensional, tal como um automóvel se movendo, que pode ser localizado somente a partir de quatro coordenadas (comprimento, largura, profundidade e tempo), aparece para e.g. um cachorro como impredicável – vivo, como poderíamos dizer. Para nós aparece como um corpo tridimensional se movendo no tempo com um movimento compreensível somente em termos de passado, presente e futuro. E para uma consciência superior à nossa, que apreende nosso passado, presente e futuro todos ao mesmo tempo, apareceria como um corpo imóvel ocupando uma parte definida do mundo tetradimensional.
Destas considerações expostas nos capítulos VIII e IX do Tertium Organum, Ouspensky conclui que "o crescimento do sentido do espaço progride às custas do sentido do tempo. Ou poderíamos dizer que o sentido do tempo é um sentido imperfeito do espaço (i.e. a faculdade da representação imperfeita) o qual, quando se aperfeiçoa, se transforma no sentido do espaço (i.e. a faculdade da representação das formas)" (OUSPENSKY, 1922, p. 119). O cachorro, pelo seu poder de percepção, tem um sentido espacial maior que o caracol. O homem, pelo poder do conceito, tem um sentido espacial ainda maior, adicionando a terceira dimensão. Uma consciência superior teria um sentido espacial ainda maior, apreendendo nosso mundo fenomênico do momento presente como um mero recorte ou fresta deste mundo. Mas onde ele vê coisas imutáveis e imóveis, nós vemos mudança e movimento no tempo. Onde nós vemos coisas, o animal vê mudança e movimento no tempo. Onde os animais veem coisas, um animal inferior vê mudança e movimento no tempo. E onde cada forma da mente vê movimento mecânico, a próxima inferior vê liberdade e vida. Quanto menos desenvolvida a consciência, mais dinâmico o mundo, quando mais desenvolvido a consciência, mais estático é o mundo.
Assim é como Ouspensky conclui disso tudo que tempo e espaço são funções de nossa forma de pensamento, mas de nenhuma maneira formas de intuição coordenadas e igualmente subjetivas, como Kant sugeriu. A realidade é espacial, ou seja, consiste de entidades tendo certa ordem entre eles mesmos. Nós não podemos impor na realidade uma ordem não existente, mas, estando limitados em nosso poder de apreensão, nós representamos somente parte desta ordem objetiva, e, portanto – para explicar de alguma maneira – impomos na realidade uma falta de ordem que não existe. O sentido do espaço, definido como "o poder de representação por meio da forma", é, para qualquer consciência, a medida da habilidade de apreender o mundo real. Esta habilidade varia de acordo com as faculdades subjetivas disponíveis. O animal superior adicionando à sensação o poder da percepção, apreende o mundo mais completamente do que o animal inferior; o homem, com seus conceitos, ainda mais completamente; e uma consciência "supra-humana", com sua faculdade adicional, se ela existir, ainda mais completamente. Apreender o mundo mais completamente significa apreendê-lo com mais espaço, desde que espaço seja a forma do mundo. Isto significa apreender outra dimensão, de tal forma que o espaço se vê multiplicado infinitamente maior a cada dimensão além da anterior.
Tempo é a apreensão vaga da qual nós não podemos representar adequadamente. Não importa o que sejamos incapazes de integrar em nossa pintura mental do mundo, ela é deixada como vaga e não existindo atualmente, ou seja, neste agora – experiências que lembramos como o passado que não mais existe; ou experiências que antecipamos como não existindo ainda no futuro. O que quer que se possa integrar encontra um lugar em algum presente existindo atualmente. Muito do que nós humanos podemos integrar (por exemplo, o outro lado da casa que atualmente não vemos) é para o animal passado ou futuro, não existindo agora. Muito do que nós não podemos integrar (por exemplo, o crepúsculo de ontem e a aurora de amanhã) está para uma consciência superior existindo agora. Se o espaço é a medida de nossa apreensão da realidade, o tempo é para a medida de nossa falta de apreensão.

A QUARTA DIMENSÃO E SUA APREENSÃO

Entendendo a relação entre tempo e espaço, e seguindo a analogia da relação entre o mundo animal e o nosso próprio, estamos preparados para considerar a natureza da realidade como realmente apareça para uma consciência superior que a nossa. O que nós chamamos de tempo ela chamará de quarta dimensão do espaço. O que nós chamamos de movimento ela chamará extensão da quarta dimensão. O que nós chamamos de aceleração ela chamará de ângulo. O que nós chamamos de vida ela chamará de movimento. E o que nós chamamos de espaço ela chamará de superfície. O que nós chamamos de universo, ele chamará de recorte do universo, e não necessariamente um importante recorte dele. O que nós chamamos de não-existente ele reconhecerá como estas entidades que por acaso simplesmente não interagiram com nosso espaço tridimensional através desta fração de tempo que estamos experimentando.
É muito difícil concebermos como eventos passados e futuros são experimentados realmente por uma consciência superior, sendo também para elas tão real como o que para nós consideramos o presente. E é difícil para nós concebermos que passado e futuro possam ser equivalentes. A "planolândia" de Abbott é interessante para tentarmos visualizar melhor isso. Para uma consciência que vive confinada em um plano, os vários raios coloridos de uma roda girando neste mesmo plano aparecem para esta consciência como uma linha de cores em constante mudança. Os raios que apareceram no passado e estas que ainda não apareceram no futuro têm, na verdade, em uma terceira dimensão o mesmo grau de realidade das outras – mas somente na terceira dimensão, pois a consciência que viva no plano é capaz de compreender como isso é possível. Da mesma forma, eventos que nós chamamos de passado e eventos que nós chamamos de futuro podem na realidade, em uma quarta dimensão, compor uma unidade igualmente perfeita.
Estas relações geométricas são tão somente um aspecto da diferença entre as várias formas de apreender o mundo. O mundo como apreendido de uma forma superior difere do mundo como apreendido de uma forma inferior não só pelo seu espaço infinitamente maior (por esta dimensão adicional do espaço), mas também possuindo valores infinitamente mais ricos e incompreensíveis para uma consciência inferior. Tal como um animal não pode compreender o significado que um pequeno objeto imperceptível como um livro pode ter para nós, da mesma forma nós não podemos compreender os significados, propósitos, belezas e valores que um objeto que nós achamos ser insignificantes pode ter para uma consciência superior apreendendo isto de formas transcendentes para nós. De outra forma, valores que nós consideramos muito importantes podem aparecer para uma perspectiva superior como tendo menos ou nenhuma significância seja teorética ou prática – como as sombras da caverna de Platão. Além disso, o que vemos como propriedades de um único objeto podem ser na verdade coisas distintas; ou então coisas que para nós não têm relação alguma, como distintos objetos (chegando talvez até acidentalmente em nosso espaço), podem ser na verdade partes intimamente relacionadas de uma única coisa real.
Entretanto Ouspensky traz uma solução para esta nossa distância de uma dimensão superior, e propõe a possibilidade de pelo menos dois caminhos para a apreendermos: a arte e a mística – ambas intimamente relacionadas com uma espécie de emoção, como já havíamos adiantado.
Tanto nas obras artísticas como nos ensinamentos dos místicos podemos reconhecer as características que poderíamos esperar encontrar na descrição do mundo tal como seria experimentado por uma faculdade superior. Podemos encontrar infinidades de semelhanças implícitas entre a quarta dimensão e as ênfases místicas sobre a eternidade, com um equivalente descrédito do temporal; uma ênfase na inefável felicidade e beleza, com um equivalente descrédito pelos valores convencionais; a ênfase pelo pensamento antes da emoção, com um equivalente descrédito por critérios meramente racionais.
A notória irracionalidade da literatura mística é realmente inevitável. Isso tem que ser assim, pois da mesma forma teríamos uma imensa dificuldade em descrever nossa experiência conceitual humana em uma linguagem voltada para experiências perceptivas de um animal, somente com nomes próprios – por exemplo, "João e Pedro são ambos Joãos e Pedros". Mas a arte é nosso mais poderoso instrumento para um conhecimento superior. Nas artes nobres possuímos a técnica através da qual belezas e significados indefiníveis conceitualmente são intuídos emocionalmente, ainda que somente por aqueles que são capazes de tal intuição. A arte, que apreende profundas diferenças entre coisas fisicamente iguais, é colocada em altos patamares por Ouspensky como um primitivo começo de uma linguagem (e, consequentemente também de uma lógica – um Tertium Organum) de um mundo superior.
Para Ouspensky, Kant estava certo quando apontou que a lógica só é aplicável em nosso mundo fenomênico ou, expresso de outra forma, em nosso mundo fenomênico tridimensional. Por isso o filósofo russo afirma tão enfaticamente que este mundo superior é incognoscível com relação ao que se refere à nossa lógica tridimensional – mas totalmente acessível se estivermos nos referindo a uma "quarta unidade da razão", uma quarta faculdade do conhecimento, a emoção artística ou mística.
Então para finalizar as considerações sobre Ouspensky realizamos novamente a questão feita para Kant: e o mundo, realmente existe? Que conclusão tiramos até aqui desta estranha perspectiva filosófica matemática?

CONCLUSÃO

Para concluirmos não será demais repetir o que vimos no começo, quando expúnhamos sobre a perspectiva de Ouspensky: "um fenômeno é uma aparência transcendental (...) e, portanto, é também legítimo dizer que os fenômenos são [referindo-se a Ouspensky] "simplesmente diferentes aspectos de uma e mesma coisa"" (PALMQUIST, 1986, p. 140).
Portanto, assim concluímos finalmente: o fenômeno é o reflexo tridimensional do númeno em nossa esfera. O fenômeno é uma imagem do númeno. E mediante o fenômeno é possível conhecer o númeno. O único detalhe é que aqui os reativos químicos e o espectroscópio não conseguirão nada – tampouco a reflexão lógico-filosófica conseguirá muita coisa. O reflexo do númeno no fenômeno poderá ser sentido e entendido somente mediante aquele sutil aparelho que se chama a "alma do artista". O "ocultismo" – ou seja, o lado oculto da vida – deve ser estudado na arte. De uma maneira mais mística, podemos dizer que um artista deve ser um clarividente, deve ver o que os demais não veem; o artista no fim deve ser um mago, deve possuir o dom de fazer com que os demais vejam o que não veem por si mesmos, porém que ele vê.
A arte vê mais e a maior distância que nós – e num nível incomensurável com relação à razão, pois nenhum livro será capaz de explicar nenhuma obra, senão simplesmente "rodeá-la" – o que diríamos sobre o sorriso de Mona Lisa? Ou sobre a última sinfonia de Beethoven?
Há muito com o qual podemos pensar acertadamente com a lógica tridimensional, ou seja, tudo que se refira ao mundo dos fenômenos. Mas há aspectos da vida os quais só a arte tem o direito de falar – a partir de sua lógica epistemológica particular. Ou, nas palavras de Ouspensky, "a arte é já um começo de visão. Vê muito mais que o aparelho mais perfeito; e sente as infinitas facetas invisíveis "daquilo" da qual uma delas chamamos homem" (OUSPENSKY, 1922, p. 162).


REFERÊNCIAS

ABBOTT, Edwin. Planolândia – Um Romance de Muitas Dimensões. São Paulo: Ed. Conrad, 2002.

BURCH, George Bosworth – The Philosophy of Ouspensky. The Review of Metaphysics, Vol. V, Nº 2, December 1951.

HENDERSON, Linda Dalrymple. The Merging of Time and Space: "The Fourth Dimension" in Russia from Ouspensky to Malevich. Princeton: Princeton University Press, 1983.

ΗΙΝΤΟΝ, Charles Howard. The Fourth Dimension. London: Ed. George Allen & Co., 1912.

________. A New Era of Thought. London: Ed. Swan Sonnenschein & Co., 1888.

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.

OUSPENSKY, Piotr Demianovich. Tertium Organum – uma chave para os enigmas do mundo, São Paulo: Ed. Pensamento, 1993.

____________. Tertium Organum – The Third Canon of Thought – A Key to the Enigmas of the World. Translated to the Russian by Nicholas Bessaraboff and Claude Bragdon. Second american edition. New York: Ed. Manas Press, 1922.

PALMQUIST, S. R. Six Perspectives on the Object in Kant's Theory of Knowledge. Dialectica. Oxford: Vol. 40, nº 2. St. Peter's College (1986).

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