Kant e uma leitura epistemológica da Estética do Cinema, in Freitas et al. (ed) Gosto, interpretação & crítica, Volume 2

July 21, 2017 | Autor: M. AurÉlio Baldis... | Categoria: Kant, Film Analysis, Aesthetic Judgement, Aesthetic Attention, Kant's form as purposive, Technique's Intentionality
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Kant e uma leitura epistemológica da Estética do Cinema Márcia Aurélio Baldissera Na Crítica da Faculdade do Juízo (CFJ), Kant postula uma faculdade que permita uma experiência de conhecimento frente ao múltiplo da natureza sem que a lei da sua unidade nos seja dada, isto é, uma faculdade que seja capaz de dar-se a própria lei. De fato, essa experiência pressupõe a possibilidade mesma do conhecer: só é possível conhecermos por meio de uma faculdade que possa refletir sobre o que ainda não conhecemos, mas que pretendemos conhecer. O princípio dessa faculdade de conhecimento é o sentimento de prazer/desprazer, o qual permite à faculdade do juízo de gosto se autodeterminar, ser reflexiva; ao contrário do juízo determinante, a saber, determinado por uma categoria ou por um conceito, que caracteriza as experiências da razão pura e da razão prática. No entanto, é precisamente essa capacidade subjetiva, a faculdade do juízo de gosto reflexiva, que permite mediar entre o sensível e o suprassensível, compartilhando e, ao mesmo tempo, integrando os domínios da natureza e da liberdade. Assim, a CFJ é a legitimação, a descrição e a análise do juízo de gosto reflexivo como faculdade de conhecimento, juízo de gosto reflexivo que será chamado de juízo estético. Este artigo propõe-se analisar o juízo estético para mostrar a sua fundamental pertinência aos fatos estéticos de hoje. Assim, partiremos da descrição das características do juízo estético para associá-lo ao conceito de atenção estética. A partir de tal associação, colocar-se-á o problema do objeto ao qual o juízo estético faz referência, ou seja, a questão do que realmente significa a “forma da conformidade a fins do objeto”. Veremos que essa expressão kantiana não pode ser dissociada do conceito de técnica. Enfim, exemplificaremos as consequências desse ponto de vista por meio de certas premissas de um método de análise cinematográfico. 1. O juízo estético e a atenção estética Kant nos diz que a qualidade fundamental do juízo estético é a de ser “desinteressada”. Isto é, por ser fundado na própria satisfação pela vivificação das faculdades de conhecimento, o juízo estético não tem interesse nem na existência do objeto (então seria agradável), nem na utilidade do objeto (então seria bom). O juízo estético não é nem instrumental, nem utilitário, ou seja, ele não cria necessidades. O seu único interesse é pela relação cognitiva com o objeto, mas esse interesse não é determinado por uma categoria ou por um conceito já existentes, porque o interesse reside na possibilidade do conhecer. Por isso

Kant o chama de “desinteresse”. Em função disso, o juízo estético é livre, porque ele não é limitado seja por um objetivo ou por um conceito presentes no objeto. A liberdade dá-se pela ausência de determinantes1. O juízo estético sustenta-se na motivação interna do próprio sujeito reflexivo e é animado pelo sentimento sensível e intelectual oferecido pela experiência com o objeto, uma experiência que pode ser descrita pelo conceito de jogo empregado por Kant: “o livre jogo das faculdades de conhecimento”. E quais são as implicações desse “desinteresse”? A experiência estética é uma relação de apreciação do sujeito frente a um objeto singular, apreciação que inclui tanto a satisfação do sujeito quanto a sua avaliação do objeto. Nossa interação com o objeto dessa experiência não pressupõe uma reação, um resultado ou uma recompensa. Isso não quer dizer que uma experiência estética não possa provocar um julgamento, um alívio emocional ou a própria aquisição do objeto, mas estes não são a nossa motivação original, não são uma necessidade. Entretanto, não se deve confundir um julgamento conceitual sobre o objeto com o julgamento universal e exemplar do belo. A declaração do belo, “a comunicabilidade direta do sentimento” (SCHAEFFER, 1992, p. 38), é “o efeito decorrente do jogo livre de nossas faculdades de conhecimento” (CFJ, p. 83). Não é um conhecimento sobre o objeto. É a expressão de um sentimento que pode ser universalmente compartilhado e que encontra a sua exemplaridade na relação cognitiva a um objeto específico. Kant usa o verbo beurteilen, traduzido por ajuizar na edição brasileira, que é assim motivado por António Marques no prefácio à CFJ: “o verbo empregue por Kant para esta espécie de juízo é beurteilen, supondose que a diferença relativamente ao mero urteilen, julgar, consista na introdução de um elemento de ponderação ou avaliação.” Esse elemento de ponderação ou avaliação implica a suspensão de qualquer reação do juízo estético, seja ela motora/emocional 2 ou conceitual. Além disso, esse elemento de ponderação ou avaliação também introduz uma certa extensão temporal dessa relação, uma duração e uma dinâmica do juízo estético. Kant descreve essa extensão temporal do juízo estético por meio de expressões como: “longo entretenimento com a contemplação”; “admiração sem fim”; “dinâmica do ânimo”; etc. Vale destacar, ainda, que a experiência estética, como toda e qualquer experiência cognitiva, deve ser compreendida como um processo, e não como um resultado, mesmo que esse processo dure alguns segundos. Ou seja, toda experiência é uma relação essencialmente temporal: ela é uma relação que dura e se transforma continuamente na sua unidade. Ainda que a percepção seja causada pelo seu objeto, que ela seja categorial, mas não necessariamente conceitual, a identificação e a categorização do objeto não parecem ser o que especifica a experiência estética. 2 Leia-se a distinção entre emoções primárias (a alegria, a tristeza, o nojo, o medo, a raiva e a surpresa), que são reações motoras do nosso organismo, e emoções mais complexas, como os sentimentos de prazer e desprazer, dentre outros. 1

De fato, o juízo estético revela-se em dois momentos interdependentes, que se caracterizam (i) pela atividade cognitiva reflexiva que realiza essa experiência de avaliação do objeto e (ii) pela própria satisfação na realização dessa atividade. Então, pode-se admitir que o momento (i) do juízo estético é caracterizado pela atenção, pois toda atividade cognitiva reflexiva deve ser uma atividade atencional. Enquanto o momento (ii) do juízo estético, o seu caráter hedonista, revela o estado de saturação afetiva do sujeito dessa experiência. Assim, o que caracteriza a experiência estética é também chamado de atenção estética, uma inflexão específica da nossa atenção cognitiva ao mundo (cf. GENETTE, 1997; SCHAEFFER, 1992, 1996, 2000, 2009a, 2015). Para melhor caracterizar a atenção estética é necessário descrever as diferenças cognitivas existentes na nossa relação ao mundo, diferenças decorrentes de condições externas e internas, que não são necessariamente conscientes. Em termos breves, as condições externas são as características espaço-temporais dos estímulos, ou seja, nós percebemos regularidades e/ou diferenças na nossa relação aos objetos em um determinado ambiente empírico e em um determinado contexto funcional. As condições internas correspondem à nossa perspectiva em relação ao objeto/ambiente/contexto e à nossa motivação e expectativa nessa relação com o objeto/ambiente/contexto. A percepção é o mecanismo pelo qual nós adquirimos as informações necessárias para realizarmos nossa relação cognitiva direta com o mundo, pois os estímulos sensoriais têm um papel causal na atividade perceptiva (cf. DOKIC, 2004). Mesmo se essa relação se concretiza por intermédio de um veículo semiótico, como no caso do cinema, o meio pelo qual nós adquirimos as informações do objeto externo é a nossa atividade perceptiva. Enquanto a percepção é uma fonte de conhecimento, a atenção se relaciona ao modo de conhecimento, pois a atenção é responsável pelas diferenças qualitativas no tratamento das nossas representações mentais, que são formadas pelas informações sensoriais dos estímulos. Ou seja, o tratamento cognitivo dessas representações mentais pode ser (i) guiado pela saliência dos estímulos, resultando em uma resposta automática e rápida e, consequentemente, em uma percepção pré-atencional e pré-consciente, necessária à nossa própria sobrevivência e rápida adaptação; ou (ii) o tratamento cognitivo das representações mentais pode ser guiado pelos nossos processos internos de nível superior (memória, imaginação, raciocínio, etc.) e pela pertinência dos estímulos à relação cognitiva em ato, desenvolvendo-se em um modo mais lento e flexível porque controlado pela nossa atenção, resultando em uma percepção consciente, necessária à nossa adaptação e aprendizagem. Quer dizer, geralmente a nossa percepção é pré-atencional, mesmo no cinema, pois estamos em um ambiente “familiar”, isto

é, caracterizado pela regularidade dos estímulos. Entretanto, nosso organismo possui mecanismos que suportam a nossa sobrevivência ou rápida adaptação quando na presença de estímulos irregulares e salientes, como quando entramos em estado de alerta por um objeto que move-se rapidamente na tela ou por um ruído intenso, por exemplo. Quando um estímulo é irregular e também pertinente à nossa relação cognitiva, o tratamento atencional possibilita a integração desse estímulo aos nossos processos mentais internos de forma coerente; todavia, essa adaptação a um estímulo inesperado é bem mais lenta. A atenção é considerada, portanto, um dos nossos mais importantes estados mentais, pois não somente a atenção é responsável pela nossa aprendizagem, como também ela está diretamente relacionada à nossa consciência. Os mecanismos da atenção possibilitam a nossa interação com o mundo por meio do tratamento das representações mentais em conjunto com os nossos processos cognitivos internos (memória, imaginação, raciocínio), tratamento que conduz à integração dos nossos estados mentais de nível superior (desejos, crenças, conhecimentos) nessas representações mentais. Esse processo reflete a nossa necessidade de dar ou de manter a coerência, a unidade, da nossa relação ao mundo. É por essa razão que a atenção está também diretamente relacionada ao grau de consciência dessa experiência, e por consequência, a atenção está relacionada à nossa interpretação implícita ou explícita dessa experiência. Ou seja, a faculdade de juízo estética requer uma percepção consciente, um tratamento atencional das representações mentais, caracterizando um processo que possui suas inflexões, seus níveis, seus modos de manifestação. Esse processo é melhor definido pelo conceito de conduta estética, o qual contém a qualidade voluntária do sujeito, em relação ao conceito de atividade (cf. SCHAEFFER, 1996, 2000). Algumas evidências empíricas não apenas demonstram as diferentes inflexões da nossa atenção (devido a condições externas e/ou internas), mas, também, demonstram a pertinência do conceito de atenção estética aplicado ao juízo estético, ou seja, a existência de uma conduta atencional “desinteressada” e saturada afetivamente. São elas: o tratamento atencional de um objeto externo em conjunto com a imaginação, na ausência de um objetivo determinado; a importância da dinâmica temporal nesse tratamento; o processo de aprendizagem não conceitual ou categorial e a efetiva consciência fenomenal dessa experiência. A primeira evidência demonstra a relação entre a atenção a objetos externos e o default mode, reconhecido como uma área cerebral focalizada nos nossos processos internos como a memória do próprio passado, a imaginação, a introspecção. O default mode é assim chamado porque se ativa quando estamos em repouso ou quando realizamos uma atividade

cognitiva sem um objetivo ou uma tarefa determinados (cf. CORBETTA, PATEL & SHULMAN, 2008). Essa evidência é particularmente importante porque geralmente a atenção é tratada como um estado que corresponde a um objetivo, a uma tarefa a ser realizada. Ou seja, a ativação do default mode parece configurar uma conduta cognitiva atencional e “desinteressada”, isto é, uma conduta estética. Isso implica, no caso do cinema, por exemplo, que a ativação do default mode corresponde às saídas da imersão perceptiva. Isto é, a nossa experiência cinematográfica se realiza fundamentalmente pela nossa imersão no universo representado pelo filme, mas uma experiência estética necessita que essa imersão, a qual é orientada pela estória do filme, seja acompanhada pelas saídas dessa atividade objetiva – saídas que possibilitam orientar o foco da nossa atenção para a própria atividade imaginativa, que é fundamental para a experiência estética e também um dos processos do default mode. Deve-se entender a conduta estética como uma inflexão de um processo cognitivo mais amplo, um processo que implica vários modos da nossa atividade cognitiva, principalmente em uma experiência que dura em média 90 minutos, como é o caso do cinema. A segunda característica da atenção estética, relativa à flexibilidade e à intensidade do tratamento atencional, segue essa ideia de uma experiência que dura e se transforma. Muitas pesquisas demonstram que quanto mais tempo dura o tratamento atencional das representações mentais, (i) mais esse tratamento é interativo, caracterizando-se por um feedback entre a representação mental e os processos cognitivos internos (cf. HOCHSTEIN & AHISSAR, 2002), e (ii) mais estados mentais de alto nível são integrados nessa representação mental (cf. HUNT, ZOEST & KINGSTONE, 2010). É importante salientar que o tratamento atencional (interação e integração) se ocupa de uma única representação mental por vez (cf. ALLPORT, 2011) porque sua função é dar coerência à nossa relação ao mundo, isto é, manter a unidade dessa relação (cf. MOLE, 2009). Essas evidências são de grande importância porque demonstram que certas atividades cognitivas não podem ser associadas a um “princípio de economia”, quer dizer, a uma certa eficiência e rapidez no tratamento dos estímulos (cf. SCHAEFFER, 2009b). Em uma conduta estética, uma vez que não temos um objetivo determinado, podemos nos aprazer ao livre jogo das faculdades de conhecimento longamente. Ou seja, a sua flexibilidade é ainda maior. E, portanto, a intensidade cognitiva e afetiva dessa experiência será ainda maior (cf. CORBETTA, PATEL & SHULMAN, 2008). Na experiência cinematográfica, essa flexibilidade e intensidade dependem do equilíbrio entre a nossa atenção e o ritmo do filme. Nós podemos orientar e re-orientar rapidamente o foco da nossa atenção de um objeto a outro, de um objeto do filme a um processo mental interno, de um processo mental interno ao filme, mas uma experiência estética necessita que o tratamento

atencional dessas representações mentais seja mais lento e determinado pelo espectador, e ainda permita a re-imersão na estória representada pelo filme, que é o objeto dessa relação. Ou seja, a conduta estética é uma relação do sujeito com o filme, e ela depende tanto do ritmo subjetivo do espectador quanto do ritmo objetivo do filme. Assim, a experiência estética promove uma aprendizagem específica que não se caracteriza por um conceito ou por uma categoria determinados, mas que também não impede uma aprendizagem proposicional (semântica) ou perceptiva. A experiência estética nos conduz a uma experiência de conhecimento mais “processual” ou “procedural”, do “como”, da “maneira”: “um know-how psicológico, relacional, emocional e moral” (SCHAEFFER, 2009a, p. 26). Essa experiência nos fornece uma bagagem que enriquece as nossas possibilidades de avaliação das situações do dia a dia e de avaliação de nós mesmos, e que será tanto mais rica quanto mais suspendermos as nossas crenças e os nossos julgamentos. Na psicologia experimental essa aprendizagem é chamada de aprendizagem social, a qual pode ser analisada por meio de mecanismos associados à nossa imaginação, como, por exemplo, o mindreading: a nossa capacidade de entender o outro, ou seja, de simular e inferir seus pensamentos, seus sentimentos, a motivação das suas ações, etc. Pesquisas nessa área demonstram que esse tipo de aprendizagem social também ativa o default mode (cf. MARS et al., 2012). Pode-se concluir que o que caracteriza a experiência estética não são as informações proposicionais que o filme nos oferece por meio dos seus diálogos, imagens ou sons. A intensidade decorrente dessa experiência parece estar associada às relações que se estabelecem nesse fluxo visuo-logo-auditivo, ao modo como essas relações interagem na estória representada e ao modo como nós podemos interagir com esses elementos. Quer dizer, o que importa não é o que a estória apresenta, mas o como a estória se apresenta. O sentir de se estar vivendo essa experiência, o “efeito que faz” viver essa experiência, reflete a sua consciência fenomenal. 2. A forma da conformidade a fins do objeto e a técnica Como então analisar essa experiência subjetiva? Conforme visto, o objeto dessa experiência é a relação entre o sujeito e o objeto. Da parte do sujeito receptor é necessária uma conduta estética que se caracteriza pela atenção estética. Mas qual é precisamente o objeto dessa atenção? A que se relaciona a nossa faculdade de juízo reflexiva? Kant diz à forma da conformidade a fins do objeto. Mas o que realmente representa a forma da conformidade a fins de um objeto? A que se relaciona a conformidade a fins do objeto? A consciência da conformidade a fins meramente formal no jogo das faculdades de conhecimento do sujeito em uma representação, pela qual um objeto é dado, é o próprio prazer, porque ela contém um fundamento determinante da atividade do

sujeito com vistas à vivificação das faculdades de conhecimento do mesmo; logo uma causalidade interna (que é conforme a fins) com vistas ao conhecimento em geral, mas sem ser limitada a um conhecimento determinado, por conseguinte uma simples forma da conformidade a fins subjetiva de uma representação em um juízo estético. […] ele [o prazer no juízo estético] possui em si causalidade, a saber, a de manter, sem objetivo ulterior, o estado da própria representação e a ocupação das faculdades de conhecimento. Nós nos demoramos na contemplação do belo porque esta contemplação fortalece e reproduz a si própria (CFJ, § 12, p. 63).

Kant postula um princípio fundador de conhecimento, o sentimento de prazer/desprazer, que é sensível e intelectual; e uma faculdade de conhecimento, o juízo estético, que media entre o sensível e o suprassensível. Nossa satisfação interna se sustenta por meio da atenção estética que faz a interação entre o objeto e as nossas faculdades de conhecimento, sem ser determinada por um conceito ou objetivo externos. O objeto dessa interação é a forma da conformidade a fins do objeto, que é o modo de representação do fundamento da causalidade do objeto, isto é, o princípio ou a “vontade” intencional da unidade do objeto, das regras que o compõe. Ora, a conformidade a fins do objeto é sua “determinação” empírica ou lógica, ou, simplesmente, a função do objeto. Se a consciência dessa forma da conformidade é relativa ao próprio objeto, seu princípio é dito “real” e sua conformidade tem um fim: o conhecimento do objeto. Mas se essa forma da conformidade é experimentada em relação ao conhecimento do próprio sujeito, se essa forma da conformidade parece ser relativa ao sujeito e sua conformidade é pressuposta como uma possível “vontade” aplicada à natureza ou à arte livre, essa forma da conformidade representa um princípio “ideal” que permite o conhecimento do sujeito e é considerada por Kant como uma conformidade a fins sem fim. Vale recordar que o juízo estético não pode ter um limite, um objetivo, um fim. Então, a forma da conformidade a fins sem fim do objeto é um princípio ideal, um modo de representação “subjetivo” que, orientando nossa atenção, possibilita o livre jogo das nossas faculdades de conhecimento. Entretanto, é necessário experimentá-la. A nossa relação à forma depende de seu objeto empírico. E o que é que dá a forma, esse modo de representação ao mesmo tempo real e ideal, objetivo e subjetivo? O prazer está, por isso, no juízo de gosto verdadeiramente dependente de uma representação empírica e não pode estar ligado a priori a nenhum conceito (não se pode determinar a priori que tipo de objeto será ou não conforme ao gosto; será necessário experimentá-lo) (CFJ, Introdução, seção VII, p. 25).

No parágrafo 43, intitulado “Da arte em geral”, Kant diferencia a técnica da teoria: descrever como fazer um sapato não resulta na confecção de um sapato, não é fazer um sapato. Ou seja, para se fazer um sapato, ou qualquer outro objeto, é necessário empregar uma técnica. O filósofo prossegue na distinção entre a arte livre e o ofício (ou arte remunerada) e, mais adiante, nesse mesmo parágrafo, Kant admite:

Não é inoportuno lembrar que em todas as artes livres requer-se, todavia, algo coercitivo ou, como se diz, um mecanismo, sem o qual o espírito, que na arte tem de ser livre e que, unicamente, vivifica a obra, não teria absolutamente nenhum corpo e volatilizar-se-ia integralmente (por exemplo, na poesia a correção e a riqueza de linguagem, igualmente a prosódia e a métrica) (CFJ, § 43, p. 160).

Kant remarca que toda “arte livre” requer um mecanismo, mecanismo sobre o qual o espírito pode vivificar-se, ou seja, um corpo empírico, um corpo que possibilita a experiência. Ora, esse mecanismo coercitivo, que contém regras e que, portanto, dá a forma ao objeto, é, nesse caso, um sinônimo de técnica. O conceito de técnica comporta um conjunto de procedimentos que são (i) empíricos: uma ação sobre uma matéria qualquer, ação que implica certas capacidades não conceituais, assim como a relação sensível a essa matéria, ou seja, sensações e sentimentos; e (ii) também intelectuais: os conhecimentos, desejos e crenças que sustentam essa ação sobre essa matéria. Quer dizer, a técnica se relaciona ao real e também ao ideal. A técnica é o que coloca em relação, conecta e ordena a matéria dando-lhe uma unidade. Ou seja, a técnica é o que dá a forma ao objeto por meio de regras (empíricas, lógicas) que seguem princípios (objetivos, subjetivos). Então, a técnica provém necessariamente de um princípio. É por essa razão que Kant utiliza a noção de “técnica da natureza” 3, a qual repousa sobre um princípio subjetivo do receptor que possibilita a compreensão da natureza em analogia aos artefatos humanos, um “princípio da adequação da natureza à nossa faculdade de conhecimento”, um princípio heurístico. É esse princípio heurístico que nos serve para interpretar a natureza como se fosse arte, pois, na arte, tal princípio é representado pela técnica, precisamente por aquela parte ideal da técnica. Por sua vez, a técnica dos artefatos também é empírica e lógica, ou seja, também possui regras, também possui um princípio objetivo e intencional. Portanto, embora a conformidade a fins no produto da arte bela na verdade seja intencional, ela contudo não tem que parecer intencional; isto é, a arte bela tem de passar por natureza, conquanto a gente na verdade tenha consciência dela como arte. Um produto da arte, porém, aparece como natureza pelo fato de que na verdade foi encontrada toda a exatidão no acordo com regras segundo as quais, unicamente, o produto pode tornar-se aquilo que ele deve ser, mas […] sem mostrar um vestígio de que a regra tenha estado diante dos olhos do artista e tenha algemado as faculdades de seu ânimo. (CFJ, § 45, p. 162-163).

Ou seja, a “forma da conformidade a fins do objeto” é o princípio de unidade do objeto realizado pela autor por meio de uma técnica, que é também intencional e Intencional, no sentido de Searle (1983)4. A técnica é uma ação intencional dotada de Intencionalidade, a saber, de uma perspectiva subjetiva que implica um certo modo de experimentar um objeto, Cfr. CFJ, 1793, § 17 ; CFJ, 1790, Introdução e RIBEIRO DOS SANTOS, 2009. Para um desenvolvimento dessa questão, permito-me de enviar a AURÉLIO BALDISSERA, M., Intencionalidade e técnica(s), DoisPontos, v. 12, n. 1, 2015, no prelo. 3 4

um certo modo do tratamento cognitivo desse objeto, em função dos objetivos mas também em função do “Cenário” (Background) do sujeito criador. Apesar de não pertencer ao momento histórico de Kant, a Intencionalidade é um conceito que realmente possibilita a compreensão da “conformidade a fins sem fim”. A conformidade a fins do objeto é uma conformidade objetiva (o caráter funcional do objeto), que pode revelar-se também como uma conformidade a fins sem fim no momento em que o princípio subjetivo, ideal, do objeto não possa ser deduzido, subsumido, limitado ao seu caráter empírico e funcional, às suas regras, ou seja, às categorias e aos conceitos representados no próprio objeto. Quer dizer, todo objeto tem uma conformidade a fins com fim, do momento que o objeto representa uma Intencionalidade que corresponde à ação que realiza o objeto com uma determinada forma e função. Mas essa mesma Intencionalidade pode representar uma conformidade a fins sem fim quando declina de uma relação entre a forma e a função do objeto que parece ser menos evidente quanto à sua lógica, que não parece corresponder às expectativas do sujeito sobre o caráter funcional do objeto. E é nessa relação não determinante entre a função e a forma do objeto, entre o objetivo e o subjetivo, entre o que o objeto é e o que o sujeito espera dele, que se encontra o sentimento: “Por sua vez, a descoberta da possibilidade de união de duas ou de várias leis da natureza empíricas, sob um princípio que integre ambas, é razão para um prazer digno de nota, muitas vezes até de uma admiração sem fim” (CFJ, Introdução, seção VI, p. 20, sublinhado nosso). Ou seja, é no próprio jogo entre a representação do objeto e as faculdades de conhecimento – tanto o jogo técnico do autor quanto o jogo estético do receptor – que essa brecha entre o princípio objetivo e o princípio subjetivo da técnica satisfaz, porque ela não determina um limite, porque ela permite o livre jogo e, dessa maneira, ela nos vivifica. A isso [o interesse livre] se acresce a admiração da natureza, que se mostra em seus belos produtos como arte, não simplesmente por acaso, mas por assim dizer intencionalmente, segundo uma ordenação conforme a leis e como conformidade a fins sem fim; este, como não o encontramos exteriormente em lugar nenhum, procuramo-lo naturalmente em nós próprios. (CFJ, § 42, p. 156).

A técnica é a representação de uma intenção e de uma Intencionalidade do ponto de vista do autor do objeto. Da parte do receptor, essa Intencionalidade é atribuída “como se” aos objetos da natureza e aos objetos mundanos, ou é atribuída de forma derivada pelo receptor ao autor de artefatos que são também suportes semióticos (cf. SEARLE, 1983; SCHAEFFER, 1996). Pode-se considerar o jogo da compreensão do receptor como análogo ao jogo da criação do autor. Ou seja, do mesmo modo que o autor realiza um objeto por meio de um uso da técnica, nós também percebemos e podemos compreender esse objeto por meio desse uso da técnica. Do mesmo modo que a técnica reflete um esquema cognitivo do autor que

estrutura a matéria de uma certa forma, nós utilizamos nossos esquemas cognitivos para compreender essa estrutura cognitiva que origina essa estrutura formal. Essa questão, na verdade, já foi tratada por Kant sob a noção de esquematismo transcendental, isto é, em termos muito gerais, a estruturação cognitiva que possibilita o nosso conhecimento. Assim, a partir desse jogo entre “uma ordenação conforme a leis” e “uma conformidade a fins sem fim” nós procuramos em nós mesmos o princípio Intencional da unidade formal do objeto que excede a própria função desse objeto. Se o esquematismo transcendental é o processo cognitivo que procura o objeto particular para uma categoria universal, a reflexão é o processo cognitivo que procura a significação universal para um objeto particular, significação universal que no juízo estético é subjetiva. Quer dizer, a reflexão é o processo inverso do esquematismo transcendental5. Mas trata-se sempre de uma relação entre as estruturas cognitivas do autor/receptor e a estrutura formal e técnica do objeto. O que entra em jogo no juízo estético, é a maneira pela qual nós fazemos uso dessas estruturas, cognitiva e formal. De fato, não existe uma única forma para o múltiplo da matéria, ou seja, não existe uma única técnica, uma única estrutura, mesmo em se tratando de um mesmo tipo de objetos. O mesmo material cinematográfico pode resultar em diferentes filmes. Um mesmo roteiro pode ser girado de maneiras diversas; e esses mesmos planos podem ser montados de maneiras diversas; e essa mesma montagem pode ser mixada de maneiras diversas; e assim por diante em todo e qualquer objeto. É justamente essa possibilidade da existência de muitas formas para uma mesma matéria que permite a nossa reflexão sobre os princípios subjetivos da forma, sobre a maneira como estas regras podem ser e são efetivamente aplicadas nesse objeto específico; e não uma reflexão categórica sobre a própria aplicação destas regras enquanto único método, ou modelo, que caracteriza um determinado objeto em geral. “Portanto, há somente uma maneira (modus) e não um método (methodus) da arte bela.” (CFJ, § 60, p. 218). Assim, no juízo estético, o fundamental é a relação subjetiva à estrutura dada. Quando uma estrutura é dada, ou seja, quando estamos em relação a uma estrutura singular, ela determina o juízo estético na medida em que a estrutura é causal com respeito à percepção do sujeito. Isso não implica uma determinação do nosso ajuizar, porque o ajuizar depende também dos nossos estados e processos internos. Como vimos, os processos cognitivos dependem de condições externas e internas. Além disso, Kant remarca que o juízo estético, a atenção estética, se relaciona à estrutura sem determinar-se pela sua função, mas em relação à maneira como essa estrutura interage com a nossa imaginação. Ou melhor, apesar da qualidade funcional da estrutura ser efetivamente percebida, devemos ir além dessa 5

Cf. Introdução de Philonenko à tradução francesa da CFJ.

qualidade funcional para podermos interagir livremente com as possibilidades oferecidas pela estrutura. O saber técnico em todo esse ornamento [a pintura e a jardinagem como belas artes] pode ser mecanicamente muito distinto e requerer artistas totalmente diversos; todavia, o juízo de gosto sobre o que nessa arte é belo é sob esse aspecto determinado de modo uniforme: a saber, ajuizar somente as formas (sem consideração de um fim) da maneira como se oferecem ao olho, individualmente ou em sua composição segundo o efeito que elas produzem sobre a faculdade de imaginação. (CFJ, §51, p. 182-183).

3. Premissas para um método de análise cinematográfico A atenção estética se relaciona à técnica que forma o objeto de nossa percepção a fim de lhe dar coerência, isto é, a fim de procurar o princípio que lhe dá unidade. No caso do cinema, o medium desse processo cognitivo e afetivo é a própria estrutura técnica do filme. Assim, a estética do cinema pode ser concebida como a análise das condições de possibilidade das propriedades empíricas da estrutura na promoção da atenção estética. Para tanto, podemos considerar como dados objetivos a análise Intencional-estrutural do filme e os dados empíricos das ciências cognitivas, análogos a uma experiência cinematográfica, que nos permitam inferir a possível interação do espectador com essa estrutura. As premissas desse método: (i) a técnica como estrutura causal: a estrutura cinematográfica é o elo da interação entre o filme e o espectador, como, também, o elo entre o espectador e o mundo, enquanto a estrutura também representa um “mundo” por meio das suas relações e do seu contexto. A análise dessa estrutura deve, entretanto, incluir as seguintes críticas ao Estruturalismo: primeira, o filme não pode ser considerado como a expressão de uma linguagem, mas sim como um suporte semiótico no qual os signos emitidos pelo(s) autor(es) se (re)ativam no momento da sua recepção individual. Ou seja, o significado não é dado a partir de um código compartilhado uniformemente e univocamente pelo emissor e pelo(s) receptor(es). Cada filme cria o seu próprio sistema de signos, sejam eles mais ou menos compartilhados com o público. O significado é construído na recepção de cada espectador, enquanto o filme é um veículo de signos Intencionais derivados; (ii) segunda, a técnica como estrutura Intencional: pode-se reconhecer a estrutura como conteúdo da Intencionalidade do autor, ou autores, do filme. Quer dizer, todo e qualquer artefato humano é uma construção específica, realizada a partir de um certo ponto de vista, de uma determinada perspectiva, e que, em consequência, representa determinadas funções e determinados princípios. Ou seja, a técnica pode ser vista também como o elo de ligação entre o(s) autor(es) do filme e o espectador;

(iii) terceira, a técnica como estrutura cognitiva: em função da qualidade cognitivoafetiva da experiência dessa representação, isto é, da relação entre os modos da atenção e o desenvolvimento dos processos cognitivos, podemos pensar a relação entre a estrutura e a atenção, como também a relação entre a estrutura, a atenção e a aprendizagem. Ou seja, podemos identificar na técnica, a promoção de modos específicos da imersão cinematográfica e de modos específicos da imaginação; (iv) quarta, a técnica como estrutura temporal: o cinema é uma estrutura temporal, assim como a música, a qual foi definida por Edmund Husserl como um tempo-objeto. Ou seja, o filme é um evento que é formado por eventos, os planos visuais e sonoros. Eventos que iniciam, se desenvolvem e têm fim; eventos que duram e se transformam, seja em sucessão ou em simultaneidade, orientando os processos perceptivos do espectador, o que é fundamental. Não só os nossos processos cognitivos têm uma extensão temporal, como também o objeto da nossa experiência é uma representação temporal com sua própria extensão temporal. Assim, podemos estabelecer uma relação entre o ritmo dos filmes e o ritmo dos nossos processos cognitivos. Essas premissas de uma análise cinematográfica não pretendem fornecer um modelo definitivo e nem completo. Apenas acredito que possam superar algumas lacunas das análises tradicionais do cinema, principalmente devido a uma certa “estaticidade” atribuída ao próprio objeto. Em relação à pesquisa estética em geral, parece-me também tendente ao inerte a ausência da análise estrutural dos objetos e da questão da técnica. Nos últimos anos o termo “estética” entrou nos laboratórios científicos e inúmeras experimentações são realizadas a seu nome, demonstrando a necessidade de acompanharmos esse desenvolvimento interdisciplinar da Estética filosófica, não apenas pelos novos argumentos apresentados, mas também para não deixarmos o seu uso perder o seu verdadeiro sentido: o de uma experiência cognitiva desinteressada e hedonista, que nos faz compreender melhor a nossa condição biológica e social e que, portanto, faz parte da nossa relação ao mundo real.

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