Kant: o filósofo do dever, um pensador do direito.

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Kant: o filósofo do dever, um pensador do direito1

Rui Esteves Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Só a natureza é divina, e ela não é divina… Alberto Caeiro

1. Do homem à humanidade, da humanidade ao homem

O tema da humanidade assume em Kant um papel fundamental. É pela cultura que o homem, guiado pela moralidade e pela razão, se afasta do estado de natureza rumo ao último destino moral do género humano2.                                                                                                                 1  É com enorme honra, orgulho e prazer que participo nesta homenagem ao insigne Professor Doutor Leonel Ribeiro dos Santos. Conheci o Prof. Leonel no ano de 2011, no meu ingresso no Mestrado em Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. As suas lições, o seu entusiasmo (bem kantiano) e o seu profundo conhecimento histórico-filosófico instantaneamente se reflectiram no interesse e motivação de todos nós; a sua simpatia e amabilidade foram a recepção mais amiga e o convite mais imediato à partilha filosófica. Sempre lembrarei os seus ensinamentos, a sua enorme prestabilidade, o seu apoio decisivo no iniciar do meu percurso na filosofia. Neste meu humilde contributo, poderia não tratar Kant, é certo, mas não faria, para mim, o mesmo sentido. 2

Eticamente, o percurso será o longo, digno e trabalhoso caminho de constante aperfeiçoamento rumo

ao que seria a perfeição ética do homem, contudo, no plano jurídico-político – e não esquecendo o papel fundante da ética -, é mesmo delineado, por Kant, todo um projecto. Importa considerar, nesta senda, a seguinte passagem onde, contextualmente, se manifesta bem clara a acepção da Natureza para Kant: “Pode considerar-se a história humana no seu conjunto como a execução de um plano oculto da Natureza, a fim de levar a cabo uma constituição estatal interiormente perfeita e, com este fim, também perfeita externamente, como o único estado em que aquela pode desenvolver integralmente todas as suas disposições na humanidade.” KANT, Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, 1988, p.33. Também a importância, como ressalva Hannah Arendt, da terceira Crítica no plano da Filosofia Política de Kant, a propósito: KANT, Crítica da Faculdade do Juízo, §83, p. 358. E ainda, o ensaio de Leonel RIBEIRO DOS

 

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Se pensarmos concretamente no plano kantiano para a humanidade, no contexto jurídico-político, podemos constatar que o caminho se encontra traçado. É certo que não deixa de corresponder a um plano de desenvolvimento, a um esforço, a uma verdadeira tarefa, mas parece mesmo haver uma destinação final concebida pelo filósofo. Segundo Kant, cada homem transporta em si o sentido da humanidade, o que o torna por si digno dessa responsabilidade. O homem deve então procurar ser virtuoso nessa árdua e trabalhosa tarefa de cumprir o dever moral em si. Esta relação do homem consigo mesmo e do homem na relação com toda a espécie pressupõe, necessariamente, a convivência entre os homens, o que conduz à construção do futuro da humanidade numa atitude filantrópica3. É esse sentido de humanidade que deve fazer o homem sentir-se digno de respeito para com a lei presente em si mesmo, merecendo dessa forma o respeito de todos os outros já que, qualquer homem, como homo noumenon 4 merece, pelo seu valor intrínseco, o respeito de todos. A humanidade, na sua pessoa, é o objecto de respeito que ele pode exigir a qualquer outro; é a condição necessária e essencial da sua liberdade que lhe é dada pela razão. É a razão que lhe permite a liberdade: a liberdade de optar sempre pelo bem. Eis outra questão central no pensamento de Kant: a questão da liberdade5. Segundo o filósofo, só numa comunidade predominantemente ética 6 e orientada                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             SANTOS, Kant e os Limites do Antropocentrismo Ético-Jurídico, Cristina Beckert (coord.), Ética Ambiental – Uma Ética para o Futuro, CFUL, 2003, p.167. 3

A misantropia é mesmo condenada pelo próprio filósofo prussiano. A propósito, ver: KANT, Dos

vícios da misantropia directamente contrapostos (contrarie) à filantropia, §36, em Metafísica dos Costumes, Tradução e notas de José LAMEGO, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 407. 4

“Somente o homem, considerado como pessoa, isto é, como sujeito de uma razão prático-moral, está

acima de todo o preço; pois que, como tal (como homo noumenon), não pode valorar-se apenas como meio para fins alheios, mas sim como fim em si mesmo, isto é, possui uma dignidade (um valor intrínseco absoluto)”, KANT, Metafísica dos Costumes, p. 367. 5  Kant

diferencia a liberdade interna (moralidade) da liberdade externa (jurídica). A liberdade interna

corresponde ao respeito pelo imperativo categórico: “age segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que se torne numa lei universal”. A liberdade externa, portanto jurídica, será a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes puder ser dado consentimento.     6

Não esquecemos a predominância da eticidade na filosofia prática de Kant. Só um ser eticamente

perfeito poderia ser absolutamente livre. Para o iniciar de um estudo relativamente a esta questão é fundamental considerar: KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Introdução de V. SOROMENHO-MARQUES, Tradução de Paulo QUINTELA, Porto Editora 1995. Para um estudo a

 

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segundo as regras do direito é possível a liberdade de todos e cada um e, a tão desejada, Paz duradoura7. Este assunto é bastante denso e interessante, principalmente se relacionado com as tendências jusnaturalistas da época e, nomeadamente, com a própria noção de Kant relativamente ao estado natural e ao direito natural8. Kant, por um lado, não opõe o estado natural ao estado social, contudo - e como podemos comprovar pelo §42 da Doutrina do Direito – estabelece que o estado natural, na oposição ao estado civil, priva, necessariamente o ser dotado de razão da realização da sua liberdade social, embora, é certo, estejam já latentes, no estado de natureza, os princípios correspondentes a normas que pertencem ao senso comum de todos os indivíduos 9 . Porém, no estado de natureza, a lei, como força do mais forte, corresponde a um grande perigo: a violência; ora vejamos:                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             respeito de uma “comunidade ética”, ver: José BARATA-MOURA, O Outro Kant, CFUL, 2007, p.120 – 124. 7

O tema da Paz tem sido estudado por diversos autores portugueses; deixamos algumas sugestões para

uma eventual apreciação quanto a um dos aspectos basilares da filosofia de Kant. Ver: José BARATAMOURA, Do eterno descanso à paz perpétua. Confronto de uma problemática kantiana, presente em O Outro Kant, CFUL, 2007, p. 135 – 176. Também: Leonel RIBEIRO OS SANTOS, Regresso a Kant – Ética, Estética, Filosofia Política, A paz como problema filosófico e a ideia kantiana de federalismo, Imprensa Nacional Casa da Moeda, p. 429 – 468. Ainda: Viriato SOROMENHO-MARQUES: Razão e Progresso na Filosofia de Kant, A maior tarefa do progresso, Edições Colibri, 1998, p.493 e segs. 8  O

Professor Leonel Ribeiro dos Santos orientou, no ano de 2011, no Departamento de Filosofia da

FLUL, um seminário intitulado: “Representações da Natureza na História do Pensamento”, dando conta, num roteiro histórico-filosófico, da dificuldade de “fixar” o conceito de Natureza. Essa dificuldade manifesta-se igualmente na “naturalidade” do Direito Natural.   9

É inevitável lembrar Hobbes e Rousseau. Hobbes considerando o estado de natureza como “o estado

de guerra de todos contra todos”, onde o “homem é lobo do homem”. E Rousseau e o chamado “bom selvagem”, embora possa ser discutida se esta bondade deva ser entendida verdadeiramente como tal, dada a impossibilidade de uma distinção entre o conceito de bom e mau no estado de natureza. É importante considerar este assunto juntamente com a questão da propriedade, verdadeira causa da guerra, segundo Rousseau. Veja-se: “Mais il est clair que ce prétendu droit de tuer les vaincus ne resulte en aucune maniere de l’état de guerre. Par cela seul que les hommes vivant dans leur primitive indépendance n’ont point entre eux de rapport assez constant pour constituer ni l’état de paix ni l’état de guerre, ils ne sont point naturellement ennemis.” Jean JACQUES-ROUSSEAU, Du Contrat Social – Écrits Politiques, Oeuvres completes, Éditions Gallimard, 1964, p. 356 – 357. Também: Thomas HOBBES, Leviathan, The Collected Works of Thomas Hobbes, Chapter XIII. Of The Natural Condition Of Mankind As Concerning Their Felicity, and Misery, Vol III, Parts I and II, Routledge Thoemmes Press, 1994, p. 110 - 116.

 

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“Do Direito privado no estado de natureza surge, então, o postulado do Direito público: deves, numa relação de coexistência inevitável com todos os outros, sair do estado de natureza para entrar num estado jurídico, quer dizer, num estado de justiça distributiva. – A razão para isso pode explicar-se analiticamente a partir do conceito de direito na relação externa, por contraposição à violência (violentia). (...) Dada a intenção de permanecer neste estado de liberdade externa desprovida de leis, os homens não cometem nenhuma injustiça uns para com os outros se lutam entre si, pois aquilo que vale para um para reciprocamente para outro (...) mas em geral cometem uma injustiça em último grau, ao querer estar e permanecer num estado que não é jurídico, quer dizer, em que ninguém está seguro do seu contra a violência.” Immanuel KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §42.

Parece então não ser correcto utilizar aqui o termo “injustiça”, já que todos se regem pela mesma lei (a da força), embora a opção de querer e permanecer num estado sem lei instituída seja, em última análise, uma injustiça em último grau, já que aquela mesma “ordem” para todos semelhante, não garante a sua protecção e segurança.

2. Considerações do Direito civil (ius civilis) e do estado civil (status civilis)

“O estado não jurídico, quer dizer, aquele em que não existe justiça distributiva, é o estado natural (status naturalis). A ele não se opõe o estado social, que se poderia chamar um estado artificial (status artificialis), mas o estado civil (status civilis) de uma sociedade submetida à justiça distributiva; porque no estado de natureza também pode haver sociedades legítimas (por exemplo, a conjugal, a familiar, a doméstica em geral e outras), para as quais não vale a lei à priori “deves entrar nesse estado”, enquanto que do estado jurídico pode dizer-se que todas as pessoas podem contrair relações entre si (mesmo de modo involuntário) devem entrar nesse estado.” Immanuel KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §41.

Kant, a todo o tempo, demonstra grande preocupação e rigor na sua abordagem às questões da justiça entre os homens. O filósofo, na primeira parte do texto da Doutrina do Direito, vinha debatendo e reflectindo assuntos essencialmente concernentes ao foro privado do direito, como são os casos, a título de exemplo, dos

 

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direitos e deveres no âmbito do direito da sociedade doméstica10, nomeadamente quanto ao direito dos progenitores, presente no §28 da primeira parte da Doutrina do Direito, em grande medida relacionado com as questões dos direitos e deveres de cuidado, protecção e manutenção, quer no âmbito afectivo quer educacional; ou também a interessante reflexão relativamente ao direito do chefe de família, como abordado no §30 da primeira parte da Doutrina do Direito. É porém ao chegar à “passagem do meu e do teu no estado de natureza ao meu e ao teu no estado jurídico” que o professor de Königsberg estabelece um conjunto de ligações e dicotomias entre o estado de natureza e o estado civil. É que o estado de natureza possibilita verdadeiras relações de direito no foro privado da vivência dos cidadãos de um povo, sem que possamos por isso dizer que se tratam de relações jurídicas (enquanto normas existentes); contudo, é no carácter público do direito que eles largamente se diferenciam11. No seu ensaio de 1793 / Sobre a expressão corrente isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática, mais propriamente Da relação da teoria à prática no Direito político (contra Hobbes), Kant estabelece, a priori, os princípios essenciais na constituição de um Estado, para que se possibilite, por acordo universal, a realização da liberdade universal, com a necessária limitação da liberdade individual onde os homens (livres) se encontram sujeitos a leis coercitivas para que respeitem a convivência e harmonia social. Os princípios12, são então: 1. A liberdade de cada membro da sociedade, como homem; 2. A igualdade deste com todos os outros, como súbdito.                                                                                                                 10

KANT, Metafísica dos Costumes, p.124.

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Tal como ressalva o Prof. José Lamego, em nota introduzida na p.169 da Metafísica dos Costumes:

“Kant aproxima-se aqui em grande medida do “garantismo” de Locke (...) o estado civil (status civilitas) surge não da alienação dos direitos naturais à autoridade estadual (como em Hobbes ou Rosseau), mas com exigência de dotar de garantia, ou seja, de fazer assistir por um poder coercitivo, os direitos. Esta ideia de prioridade normativa dos direitos, conjugada com a distinção entre Direito “privado” (no estado de natureza) e Direito “público” (no estado civil), configura a estrutura argumentativa fundamental do jusracionalismo de legitimação do Estado de Direito liberal-formal”. 12

É imprescindível, numa investigação mais aprofundada, um enquadramento histórico, salientado as

principais influências epocais, a importância decisiva da Revolução Francesa e os grandes debates existentes à altura. Quanto aos princípios: KANT, Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática (1793), A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, p.57.

 

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3. A independência de cada membro da comunidade, como cidadão Estes princípios não são propriamente leis que o Estado já instituído dá, mas máximas segundo as quais somente é possível uma instituição estável. São princípios racionais do direito humano externo em geral. Estes princípios estabelecem o núcleo basilar da doutrina política. Na verdade, não se pretende que eles devam partir da concepção do Estado e, subsequentemente da sua constituição mas sim, que a própria concepção de Estado e constituição partam dos princípios. São afinal os três princípios que devem prevalecer no fundamento dos pilares essenciais do Estado, fundando, através da razão, os pilares da ordem constitucional13. Esses três poderes que decorrem do conceito de comunidade política em geral, representam afinal a vontade unida do povo que procede a priori da razão como uma ideia pura de chefe de Estado, que tem realidade prática objectiva. O chefe (o soberano) é apenas um produto da mente (que representa o povo na sua integralidade). Esta ideia está aliás eminentemente relacionada com a noção de contrato originário para que se possa fundar uma constituição civil entre os homens; não aqui através de um plano histórico, factual, de orientação social e cultural, mas apenas, e simplesmente, como uma ideia da razão conciliada com o imperativo categórico entendido na sua generalidade: como obrigando “todo o legislador a fornecer as suas leis como se elas pudessem emanar da vontade colectiva de um povo inteiro (...) é esta, com efeito, a pedra-de-toque da legitimidade de toda a lei pública”14; admitida esta possibilidade, qualquer lei seria então justa; não concebendo a realização imediata da felicidade15 de cada homem, mas a sua segurança e liberdade.

                                                                                                                13  “A Constituição civil em cada Estado deve ser republicana”. KANT, Primeiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, p.127.   14

KANT, Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correcto na teoria, mas nada vale na prática

(1793), presente em, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, p.83. 15

A questão da felicidade é desafiante no plano da filosofia kantiana. Não se trata do alcance da

felicidade, nem mesmo da sua realização como “prémio de conduta”. No respeito pela lei moral não há um atender à felicidade, mas ao comportamento virtuoso. O homem deve sim tornar-se digno de poder vir a merecer a felicidade. Kant faz mesmo questão de salientar o que é a virtude, contrapondo a sua concepção à – por ele considerada - falsa suposição de virtude proposta por Aristóteles. Ver: KANT, Metafísica dos Costumes, p.320.

 

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A sociedade civil16, que nada mais pretende do que cumprir o direito do mais amplo e universal possível e, respectivamente, o cariz do direito civil (ius civilis), conduz-nos, naturalmente, a um outro ponto crucial da filosofia da política e do direito em Kant, pois que para a realização dessa sociedade assente em princípios do direito e da liberdade segundo leis jurídicas comuns, temos necessariamente que atender ao desenvolvimento no contexto político desenvolvido pelo filósofo. A ideia do direito das gentes (hoje denominado direito internacional) e do direito cosmopolita, vêm aliás universalizar o plano ao ponto da idealização de uma união e sistematização possível a larga escala, equacionando mesmo um sistema político de ordem mundial. O filósofo, na Sétima Proposição da Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita (1784) salienta a ideia da projecção da constituição da sociedade civil a uma constituição civil perfeita, apenas concebível se admitida a relação perfeita entre os Estados. Neste cenário entram, evidentemente, as apreciações relativamente à guerra das quais, mais à frente, nos ocuparemos. Nessa medida, a Paz, funcionando como o princípio (e fim) mobilizador essencial de toda a filosofia do direito de Kant, terá também as suas implicações na projecção de todo o projecto político. No §57 da Doutrina do Direito, é dito:

“(...) a ideia do Direito das gentes coenvolve tão-somente o conceito de um antagonismo para conservar o que é seu, segundo princípios da liberdade exterior, mas não coenvolve um modo de aquisição que em resultado do acréscimo de poder de um Estado possa tornar-se ameaçador para outro Estado.”

Chegamos então ao que o filósofo chama o direito das gentes com suas implicações na relação entre os povos e os Estados.

                                                                                                                16

KANT: “O maior problema do género humano, a cuja solução a Natureza o força, é a consecução de

uma sociedade civil que administre o direito em geral”. Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita (1784), presente em, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, p.27.

 

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3. Direito das gentes (ius gentium)

“Os homens que constituem um povo podem ser representados como indígenas, de acordo com a analogia da procriação com base numa estirpe comum (congeniti), mesmo que não o sejam; no entanto, num sentido intelectual e jurídico, enquanto nascidos de uma mãe comum (a República), constituem, por assim dizer, uma família (gens, natio) cujos membros (cidadãos) são de igual condição de nascença e não consentem em misturar-se com aqueles que a seu lado vivem no estado de natureza, em razão do seu baixo nível, mesmo que estes (os selvagens) se creiam superiores em virtude da liberdade sem lei por que optaram, sendo que os selvagens constituem tribos, não Estados.” Immanuel KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §53.

Eis a forma como Kant inicia a abordagem do Direito das gentes na sua Doutrina do Direito. Deste pequeno excerto podemos retirar duas ideias essenciais: a Paz como maior tarefa e o perigo da guerra. Parece ficar patente a ideia de que um estado não organizado juridicamente acaba por cair numa situação de “inferioridade” e insegurança em relação a um verdadeiro Estado vizinho, este por si capaz de garantir a liberdade e segurança do seu povo através de verdadeiras leis jurídicas; a solução, segundo Kant, seria a concretização dos estados de natureza em verdadeiros Estados, caminhando, progressivamente, para um regime de associações federais 17 entre os Estados politicamente organizados, não através da representação onde a união representasse um poder soberano único, mas uma associação livre, voluntária, não definitiva, sujeita a contestação e a renovações periódicas. Na questão do Direito das gentes parece haver um outro ponto bastante delicado: a situação do direito durante a guerra18. Se, como sabemos, o verdadeiro rumo das associações entre Estados devem tender para uma aproximação entre os sistemas jurídicos dos mesmos, por outro lado, tendo em conta a dificuldade da execução desse mesmo plano, a própria história e a evolução cultural dos povos e da própria espécie, outros problemas se levantam. Kant apresenta um prisma dividido no                                                                                                                 17

Fica a nota da importância do projecto kantiano na própria constituição da Comunidade Europeia,

bem como na defesa, nos dias de hoje por alguns defendida, do avanço para um modelo federalista. 18

 

Cfr., KANT, §57 Doutrina do Direito, Metafísica dos Costumes, p.233.

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que à guerra diz respeito. É que, como aliás se verifica também no relativo às catástrofes naturais que assolam povos e terras - como abordado na sua carta a respeito do terramoto de Lisboa de 175519 - também a guerra pode, em certos casos, e dentro de determinados limites, contribuir para um desenvolvimento da própria cultura. Mas é claro que, também pode ser totalmente destrutiva e avassaladora. O professor de Königsberg mostra-nos que o direito das gentes pressupõe a necessidade do Estado conservar o que é seu, não querendo com isso dizer que detenha esse Estado o direito de entrar em conflito com outro, até porque a ideia primordial no direito das gentes é a segurança dos homens na relação dos Estados politicamente organizados. O filósofo aborda até, na sua Doutrina do Direito, uma suposição de declaração de guerra, onde refere que se a determinado Estado é declarada guerra, este deve fazer tudo por forma a garantir a paz no seu interior, utilizando todos os meios necessários, excepto tomando medidas que possam ultrapassar o limite na utilização das suas forças, o que demonstra a proibição de ser colocada em causa a condição dos cidadãos de um povo, para que não deixem estes de ser tratados como cidadãos legítimos, nem deixe o próprio Estado de valer, ele próprio, como pessoa moral. Kant, afirma claramente não deverem os Estados, em circunstância alguma, colocarem-se em posição de serem injustos:

“Mas o que é um inimigo injusto, segundo os conceitos do Direito das gentes, no qual, à semelhança do estado de natureza, cada Estado é juiz na sua própria causa? É aquele cuja vontade publicamente expressa (seja por palavras ou acções) revela uma máxima segundo a qual, se se convertesse em regra universal, não seria possível qualquer estado de paz entre os povos, tendo, ao invés, que se perpetuar no estado de natureza.” Immanuel KANT, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §60.

O direito das gentes aponta, implicitamente, ao direito cosmopolita (ius cosmopoliticum) que muito pode contribuir para o alargar do nosso horizonte de reflexão.                                                                                                                 19  Veja-se, a propósito: KANT, Escritos sobre o Terramoto de Lisboa, Almedina, 2005.    

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4. Direito cosmopolita (ius cosmopoliticum)

“O direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal.” Immanuel KANT, Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua.

Para o filósofo prussiano, o direito cosmopolita, considerado segundo um ponto de vista filantrópico (no sentido ético 20 ), valendo como se se tratando de um verdadeiro princípio jurídico, seria o derradeiro passo rumo à realização de uma verdadeira República Mundial, não necessariamente entendida no contexto de uma relação íntima e perfeita entre todos Estados, mas baseada numa relação de igualdade, de respeito, de associação e pertença construindo um verdadeiro caminhar conjunto no rumo de toda a humanidade, pois “originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar da Terra21.” O conteúdo do direito cosmopolita nem sempre se apresenta claro: por vezes parece corresponder à ideia de um direito à hospitalidade universal, segundo o princípio de cada ser humano poder visitar qualquer lugar do mundo merecendo em toda a parte o respeito de qualquer outro22. O filósofo ao transmitir a ideia de todos os povos possuírem originariamente em comum o solo e de estabelecerem, posteriormente, ou mesmo por via de contratos já existentes, a posse real, não invalida que nenhum ser humano deixe de dever ser recebido em qualquer lugar do Mundo segundo o princípio da hospitalidade universal. É contudo numa segunda perspectiva que o conteúdo do direito cosmopolita toma a sua verdadeira amplitude já que, apesar de cada povo ter em solo constituído a                                                                                                                 20

Nesta senda: “É um dever, tanto para consigo próprio como para com os outros não se isolar

(separatistam agere), mas estimular com as suas perfeições morais o convívio entre os homens (officium commercii; sociabilitas); converter-se, sim, no centro fixo dos seus próprios princípios, mas considerando este círculo, traçado em torno de si, como parte também de um círculo omnicompreensivo que tudo abarca, em termos de uma disposição cosmopolita”. KANT, Metafísica dos Costumes, p.430 - 431. 21

KANT: Terceiro artigo definitivo para a paz perpétua, Edições 70, p.137.

22

Cfr.: KANT, Metafísica dos Costumes, p.240.

 

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sua parte de um todo, isso não invalida possuírem, todos os povos e, consequentemente, todos os homens em comum, a posse do todo universal. Qualquer homem individualmente considerado na sua relação com a terra, não possui juridicamente nada; negá-lo seria admitir que entre o homem e a terra seria possível estabelecer uma qualquer relação juridica. Imagine-se um só homem habitando a Terra, que possuiria esse homem realmente? A relação jurídica parte da relação do homem com o homem 23 e da necessidade (política) do estabelecer (jurídico) de sua propriedade. Kant, dá-nos margem para pensar mais além estas possibilidades, projectando a concepção do direito cosmopolita a uma verdadeira noção de pertença global, de comunidade originária da Terra, que o homem, no contexto histórico da evolução da humanidade deve conjuntamente conservar. O direito cosmopolita, em relação a toda a superfície da Terra, sem qualquer hierarquização que leve um homem a ter mais direito do que outro24, conduz-nos verdadeiramente à construção do grande caminho da humanidade, rumo à realização - do ponto de vista do filósofo Kant, percebe-se que talvez seja mesmo uma obrigação que o Mundo impõe aos Estados25 - de uma grande constituição cosmopolita, de um verdadeiro Estado cosmopolita de igualdade, de respeito, de perseverança em busca da Paz. Como temos visto, o projecto do filósofo prussiano desenvolve-se, em larga escala, segundo os princípios basilares da dignidade e igualdade do homem, da humanidade e do verdadeiro fim final: a Paz perpétua entre os homens. Esta ideia, que se propaga por grande parte da sua obra, assume todo o seu esplendor no contexto cosmopolita. Nada melhor que o próprio Kant para, numa frase, concluir todo o nosso estudo:                                                                                                                 23

“Ora se atentarmos em toda a nossa experiência, não conhecemos nenhum outro ser que seja capaz

de obrigação (activa ou passiva) senão o homem.” KANT, Metafísica dos Costumes, p.380. 24  Em

imensos pontos se denotam as aproximações ao pensamento político de Jean Jacques-Rousseau.

Esta questão da igualdade natural dos homens está também presente no pensamento do filósofo francês, embora, à época, estivessem os juristas do direito natural de acordo quanto a este assunto.     25

Quanto ao carácter teleológico achamos pertinente e interessante a seguinte proposição: “Um ensaio

filosófico que procure elaborar toda a história mundial segundo um plano da Natureza, em vista da perfeita associação civil no género humano, deve considerar-se não só como possível, mas também como fomentando esse propósito da Natureza.” KANT, Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70, p.35.  

 

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“a violação do direito num lugar da Terra é sentida em todos os outros.” Immanuel Kant, Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua.

 

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