KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO - Um livro há muito esgotado, de Roberto Lyra Filho

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ROBERTO LYRA FILHO Professor Titular de Criminologia e Filosofia è Sociologia Jurídicas da Universidade de Brasília

KARL, MEU AMIGO: DIÁLOGO COM MARX SOBRE O DIREITO

Co-Ediçao Sérgio António Pabris Editor e Instituto dos Advogados do RS 'Porto Alegre/1983

by Roberto Lyra Filho

A Gisálio Cerqueira- Filho e Leandro Konder, (Elaborada pela equipe da Biblioteca do Tribunal de Justiça do RS) corn afeto e admiração, este pequeno estudo, que, há muito, encomendaram e, por diversos Lyra Filho, Roberto Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito. Porto Alegre, Fabris, 1983. 95p. 22cm.

motivos, fiquei devendo até agora.

l. Filosofia do direito. 2. Marxismo — Teoria do direito. 3. Teoria do direito - Marxismo. I. Título. CDU335.51J40.il 340.11:335.51 340.12

índice paia catálogo sistemático 1. Filosofia do direito 340.12 2. Marxismo —Teoria do direito 3.. Teoria do direito — Marxismo

335.51340.11 340.11535.51

"Coníamos também com os socialistas de todas as escolas,"

Reservados todos os direitos de publicação, total ou parcial, a SÉRGIO ANTÓNIO FABRIS EDITOR Rua Miguel Cou(o,745 Caixa postal 4001 -Telefone (0512) 33-2681 Porto Alegre, RS - Brasil

.•MARX, 1880 (MARX, Oeuvres, Paris,'GaUimard, 1969-1982, l, p. 1528.)

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"Aqui, é preciso revelar ao leitor um grande mistério do nosso santo homem — a saber, que toda a sua exposição sobre o Direito começa por uma explicação geral, que lhe escapa, enquanto falado Direito, e que ele só recupera no momento de abordar um assunto diferente, que é a lei" MAKX,À Ideologia Alemã (í)

- MARX, Oeuvres, cil., III, p. 1231.

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OBSERVAÇÕES PRELIMINARES

"Tomo a liberdade de pedir-lhe que estude esta teoria lias fontes originais, e não em obras de segunda mão. " ENGELS (2)

Este ensaio desenvolve o material, recolhido em aproximadamente 40 anos de pesquisa e reflexão e que resumi sobretudo nos capítulos///eIVdo livro Humanismo Dialético. Os referidos capítulos foram, em parte, divulgados no terceiro número da revista Direito &: Avesso (3), mas, em tal forma incompleta, não chegam a delinear a síntese, agora realizada. Em qualquer hipótese, falar sobre Marx e o Direito já é, em si, uma arriscada empresa, pois, na medida em que a tarefa se cumpra sem distorção, nem sectarismo, ela mesma se torna um posicionamento sujeito aos fogos cruzados do conservantismo furioso e da hero-\vorship marxista. Marx polariza, ainda hoje, com sua presença gigantesca, tanto a ira dos reacionários, que ele previu e suportou (4), a seu tempo, quanto o fanatismo de seguidores,. que ele também repeliu, com ironia (5), e chegou a denunciar, com veemência (6). "2 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Omega, sem data, III, p. 285. 3 —Direito &Avesso, Boletim da Nova Escola Jurídica Brasileira, Brasília, Edições Nair Ltda., n° 3 (1983). Pedidos para José Geraldo de Sousa Jr., Caixa Postal 13-1957, CEP 70259,Brasflia,DF. 4 ~ MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, p. 16. 5 - MARX-ENGELS, Corresponda n cê, Paris, Editions Socíalcs, 1971-1982, VIII, p. 362. 6 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., m, p. 283.

O vespeiro permanece ameaçador e fervente. De um lado, os antimarxístas continuam ferroando quem ousa destacar a fecundidade e valor de tantas contribuições marxianas; de outro, os netinhos agressivos não admitem a menor restrição ao que denominaram o "núcleo de verdade invariável" (7) dum saber feito e perfeito (8) ~ aliás, e de novo, em contraste com os pressupostos (9) e protestos antecipados de Marx (10) e Engeís (11) mesmos. Mas, se desejarmos colocar-nos, diante da obra. marxiana, com o respeito e independência tão bem definidos pela brilhante companheira, Marilena Chauí (12) não há como fugir à situação incómoda, entre Ciia e Caribde. Arrostamos, deste modo, aqueles que Marx chamou de "porta-vozes doutrinários" (13) da classe privilegiada, assim como os discípulos imaturos, que,-conforme assinalava• Engeís, utilizavam o materialismo histórico, não como um "guia para o estudo", e, sim, "como pretexto para não estudarem a História" (14) — sem dogmas, nem antolhos. Adernais e juntamente com esta dificuldade posicionai, surgem outras, conexas mas distintas e de ordem técnica, já por mira relacionadas em seis tipos de problemas (15). O primeiro tipo concerne aos obstáculos filológicos, rio sentido em que a palavra é empregada na metodologia da ciência histórica (16); isto è", o estabelecimento e ordenação das fontes. Antes de tudo e apesar das edições russa, do Instituto Marx-Lênin, de Moscou, e alemã, do Instituto de Marxismo-Leninismo, de Berlim, não há, quer nestas, quer noutras publicações, uma divulgação realmente integral e filologicamente impecável das obras de Marx (17). Além disto, interferem, a todo instante, no exame dos textos marxianos e sua interpretação, as assim chamadas teorias marxistas do Direito e do Estado, nenhuma das quais é rigorosamente marxiana, e que se excluem, recipro7 - LUCIEN SÈVE, Une Introductíon â Ia Philosophie Moraste, Paris, Éditions Sociales, 1980, p. 534. S - SARTRE, Questão de Método, São Paulo, DIFEL, 1966, p. 34. 9 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, p. 195. IQ-Ibidem, n, p. 10. 11 -Ibidem, IIÍ.p. 283. 12 "MARILENA CHAUl", Cultura e Democracia, São Paulo, Editora Moderna, 1981, p. 219-220. 13 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, p. 16. 14 -Ibidem, III, p. 283. 15 ~ ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialétíco, cit., IV, l. 16 ~N. ABBAGNÁNO.ZJ/cíbíiáno de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1960, p. 420. 17 -RAYA D1JNAYEVSKAYA, FSosofia y Revoluciôn, México, Siglo Veinteuno, 1977, p. 299 e passim. M, RUBEL, f« MARX, Oeuvres, cit., II, IX ss.

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camente, na polemica sobre a reconstrução do que Marx teria sustentado, a propósito daqueles temas (18). Todas essas contribuições procuram redispor, num padrão coeso e lógico, as inúmeras referências, sugestões e análises marxianas, a respeito de assuntos políticos e jurídicos. Entretanto, forçam, para isto, a exegese, eliminam os textos contrastantes, impõem a bitola estreita e única ao acervo desordenado, fértil, cheio de cintilações e achados inestimáveis, tanto quanto de extrapolações arbitrárias, conclusões apressadas e ambiguidades perigosas. De qualquer forma, as teorias marxistas do Direito e do Estado não representam, de nenhum modo, a tradução fiel do pensamento de Marx. Como acentua Miliband, isto não importa dizer que a elas falte alguma relação com as concepções marxianas, porém que destacam certos aspectos, em prejuízo de outros (19);mutilam o oscilante corpo de ideias,ora nítidas,ora confusas; e dissipam a riqueza do conjunto, para reduzi-lo a um sistema, que ali não existe. 18-UMBERTO CERRONI.D Pensamento Jurídico Soviético, Lisboa, Europa-América, 1976; RICCARDO GUASTINI,Marxismo e Teorie dei Díritto, Bologna, IlMulino, 1930; ELIAS DÍAZ, Legalidad-Legitimidad eu e! Socialismo Democrático, Madrid, Civitas, 1978; MONIQUE & ROLAND WEYL, Révolution et Perspectives du Droit, Paris, Ediíions Sociales, 1974; ZHIDKOV et alii, Fundamentos de Ia Teoria Socialista dei Estado y dei Dereclio, Moscú, Editorial Progresso, 1980; NICOS POULANTZAS, L'Êtat, Lê Pouvoir, Lê Socialisme, Paris, PUF, 1978;IMRE SZAKÒ, Lês Fondements dela Théorie du Droit, Budapest, Akadérniai Kiadó, 1973; J. R. CAPELLA, org., Marx, el Dereclio y el Estado, Barcelona, Oikos Tau, 1969; J. R. CAPELLA, Dos Lecciones de fntroducción a! Deredio, Barcelona, Universidad de Barcelona, 1980 (fora do comércio); MICHEL MIAILLE, Uma Introdução Critica ao Direito, Lisboa, Moraes, 1979;ERNST BLOCH, Karl Marx, Bologna, II Mulíno, 1972; ADAM PODGORECKI, Lawand Sodety, London, Routledge & Kegan Paul, 1974;GEORGES SAROTTE, LêMatérialisme Historique dans l'Ssíude du Droit. Paris, Ed. du Pavillon, 1969; RADOMIR LUKIC, 77ifor/e de 1'Êtat et du Droit, Paris, Dalloz, 1974; B. T. BLAGOJEVIC et alii, Introductíon aux Droits SocMistes, Budapest, Akadémiai Kiadó, 1971; PÈTR I. STUCKA, La Funzione Rivoluzionaria dei Diritto e dello Stato, Torino, Einaudi, 1976; E. B. PASUKANIS, La Théorie Générale áu Droit et lê Marxisme, Paris, EDI, 1970; ERNST BLOCH, Naturredit und Mensdilldie 11'ilrde, Fiankfurt am Maim, Suhrkamp, 1961; DIVERSOS, Sovlet Lega! PhUosophy, Harvard, Unlversity Press, 1951; CHAMBLISS & SEIDMAN, Law, Order and Power, Reading, Addison-Wesley, 1971; DIVERSOS, Teorie Sovietidie de! Diritto, Milano, Gíuffrè, 1964; BERNARD EDELMAN, O Direito Captado pela Fotografia, Coimbra, Centelha, 1976; M. BOURJOL et alii, Pour une Critique du Droit, Grenoble-Paris, Uníversité de Grenoble-Maspero 1978; J. J. GLEIZAL, Lê Droit Pôlitique de l'État, Paris, PUF, 1980; MICHEL MIAILLE, L'Êtat áu Droit, Paris, Maspero, 1978; MICHEL MIAILLE, Analyse Critique dês TJiéories Marxistas de VÊtai, (fora do comércio); A. J. ARNAUD, Critique de Ia Raison Juridique, Paris, LGDJ, 1981 — etfen passe... 19 - RALPH MILIBAND, in J. R. CAPELLA, org., ob. cit., p. 49; NORBERTO BOBEIO, Contribucclón a Ia Teoria de! Dereclio, Valência, Fernando Torres, 1980, p. 357.

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Convém destacar, entretanto, que, atualmente, os mais lúcidos marxistas e marxólogos "ocidentais" começam a retificar as suas posições e, entre eles, já se considera banal (20) o reconhecimento de que não há uma teoria do Estado, elaborada e coerente, na obra de Marx (21) assim como também ali não se encontra urna teoria formada e completa do Direito. Sobre o que nos interessa particularmente, neste ensaio, já tende a prevalecer, fora das áreas de controle do "socialismo" oficial das repúblicas ditas populares (22), esta conclusão exata e firme de Guastini: "seja qual for a discriminação feita, dentro da obra de Marx (por exemplo, entre a juvenil e a madura, a filosófica e a científica e similares), seja qual for a periodização dessa obra — em parte alguma, e tampouco no conjunto, se acha uma teoria ou doutrina do Direito. Há, sim, enunciados, ora cognitivos, ora preceptivos, concernentes ao Direito, mas não existe meio de reduzi-los à unidade e muito menos de considerar a soma deles uma doutrina constituída, dispensando "integração e necessitando apenas explicita coes e repetição ortodoxa (23). Para evitar a confusão entre as ideias jurídicas marxianas e qualquer teoria, sói disant marxista, do Direito, que em Marx não se perfaz e, de a marxista, varia de fona em comble, é preciso eliminar as hetero-integrações, os saltos, as supressões, as traduções mutiladoras (24). Tudo isto forma uma cortina de fumaça, que perturba as novas leituras, criando especiais dificuldades para a singela retomada do estudo, sem preconceitos e arranjos preestabelecidos. Vale recordar, consequentemente, o conselho de Engeis, assim formulado: "tomo a liberdade de pedir-lhe que estude essa teoria nas suas fontes 20 - BOABENTURA DE SOUSA SANTOS, m P. BEIRNE & QUINNEY, orgs. Marxism and Law, New York, John WBey & Sons, 1982, p. 364; M. CAIN & A. HUNT, Marx and Engeis on Law, London, Academia Press, 1979, p. XIV; ERICWEIL.JÍefce/ etVÊtat, Paris, Vrin, 1970, p. 110. 21." RALPH UILIBAÍ^D, Marxism and Politícs, Oxford, University Press, 1977, p. l ss; NORBERTO BOBEIO,Qiiale Socialismo? Torino, Einaudi, 1976, p. 3 ss. 22 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, Porto Alegre, Fabris - IARGS-AGETRA, 1982, passim. PAULO SINGER, Aprender Economia, São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 157 ss. 23 - RICCARDO GUASTIN1, Marxismo e Teoríe dei Diritto, cit., p. 9rlO; também: GUASTINI, Marx: DaUa Filosofia de! Diritto alia Sdenza adia Societã - Un'Analisi Storica e Linguistica dei Pensiero di Marx, negli Ánni delia sua Formazione Teórica e Política, tendo, em apêndice, o valioso Lessico Giuridica Marxiano (1842-1851), Bologna.n Mulino, 1974. 24 - A propósito, ROBERTO LYRA FILHO,^mmmíimoDw/éííco, cit:, notas 91,108, 122,126,127,133,134,135,153,154,155, 156,157,259,264,280,286,291,303, 312,323,327, 329,332, 339,349,357,372,373,386,420,422 etc.

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originais, e não em obras de segunda mão" (25). Engeis falava do materialismo histórico ~ este, sim, delineado em concepção global (26) ~, mas a sua recomendação se aplica, afortiori, no caso das ideias jurídicas marxianas, que, justamente por não se articularem numa teoria geral do Direito, são ainda mais suscetiveis de remanejamento, disfarçado como exegese. O segundo tipo de problema a vencer, no estudo sobre Marx e o Direito, è constituído pelos obstáculos lógicos, atinentes, sobretudo, à falta duma construção sistemática do método-conteúdo (a dialética marxiana), seus aspectos um tanto indecisos e carentes de fundamentação mais precisa e satisfatória. Isto não poderia deixar de repercutir, como, de fato, repercute, na visão e abordagem do Direito, desde as disparates gerais, sobrea dialética mesma, que aparecem nalguns marxistas (27), como agravamento da irresolução marxiana Ç28), até o balanço, entre a dialetização mais ampla e um mecanicismo angusío, no tratamento do Direito, reduzido a epífenôrneno superestrutura! (29), com a sua posterior elaboração, principalmente sob o ponto de vista de leis (estatais) e mores da classe dominante (30). Não há espaço, aqui, para considerar in extenso a questão da dialética marxiana— que já debati em dois longos escritos recentes (31). Mas é preciso, ao menos, situar o problema, — pelas suas óbvias interferências na focalização dialética e, às vezes, subdialética, ern Marx e, especialmente, nos marxistas, dos fenómenos jurídicos e das "relações essenciais", que neles se ocultam (31 A). De fato, no próprio O Capita}, Marx distingue o fenómeno, em superfície, e aquelas relações subjacentes e portadoras da significação profunda, que nos permitem vê-lo com exatidão. "Sabe-se", diz ele, "que é preciso distinguir entre a aparência das coisas, e sua realidade" (32) ou "essência" (32 A).

25 -Ver nota 2. 26 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., III, p. 284-286. 27 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 280 e 332. 28 - ROBERTO LYRA FILHO,Humanismo Dialético, cit., nota 264, por exemplo. 29 - MARILENA CHAUl", Roberto Lyra FSho ou a Dignidade Política do Direito, in Direito &Avesso {nota 4), n? 2 (1982), p. 21-30. 30 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., IV, l (análise da crítica ao programa de Gotha). 31"- ROBERTO LYRA FILHO, ibidem, II, IIT, IV e V, 1; ROBERTO LYRA FILHO, A Reconciliação de. Prometeu, Brasília, Centro de Estudos LMalétícos, 19S3. -31 A - MARX, Osuvres, cit., I, p. 1684. 32 - MARX, Osuvres, cit., I, p. 1032. 32 A - IMRE SZABÕ, 'Lê Droit Socialiste, in B. T. BLAGOJEVIC, fntroductlon aux Droiís Socialistes, cit., p. 19-22.

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Esta observação, apresentada como princípio científico (33), não se esgotaria, entretanto, no idealismo dos conceitos (positivismo lógico),.nem dos "fatos" brutos (positivismo naturalista), porque Marx rejeitou todo e qualquer positivismo, opondo ao que chamou cruamente de "merda" (34) comteana a superioridade, em conjunto, de Hegel e da sua dialética (35). Por isso mesmo, Engels notava que Barth e outros liam mal a teoria materialista da história, como se fosse um positivismo, de modelo economicista, e concluía: "o que falta a todos esses senhores é a dialética. Vèrn apenas causas aqui e efeitos ali... Para eles, é como se Hegel não houvesse existido" (36). Apesar destas opções cortantes, entretanto, subsiste um ingrediente positivista, muito mais forte nos epígonos do que em Marx mesmo, porém neste deixando transparecer limitações fenomenicas e um culto à ciência, como se esta sobrepairasse às distorções e condicionamentos ideológicos (37), além de apresentar urna constante hostilidade a tudo.o que chama de "mística" e "metafísica". Esta atitude resulta aparentada ao suposto itinerário humano progressivo, no padrão dos três estados (o teológico, o metafísico e o positivo). E isto é, aliás, evidente, na medida em que os discípulos acentuaram ainda mais o "terceiro estado", cortando a obra de Marx ern duas partes, uma "filosófica" e outra "científica", para, depois, não mais saberem como inserir, neste quadro, a dialética. O que era, em Marx, uma hesitante mistura de espírito dialético e ciência empírica, desenvolve-se em proveito desta última; e, para não cair nos braços de Comte, arma um travejamento de_ categorias e conceitos de "razão pura", dita "científica", que fugindo a-Cbmte, seria, em determinados marxísmos, devorada por Kant. Este último caso é, aliás, nítido, embora inconfesso, ern Althusser. A verdade é que Marx nunca chegou a tais despropósitos, que, em nome da dialética, tratam de liquidá-la (38); pois, nele e apesar dos colapsos incidentes, o compromisso declarado com a "essência" e a dialética mesma, situa o núcleo mais constante, em que se diz, e é, um autêntico filho de Hegel (39)." 33-Ver nota 32. 34 - MARX-ENGELS, Lettres sur lês Sciences de Ia Nature, Paris, Éditiom Sociales, 1974,p.46. 35 ~ Ibidem. Ver tambe'ra MARX, JENNY MARX, ENGELS, Lettres à Kugdmann, Paris.Éditions Sociales, 1971, p. 169. 36 -MARX-ENGELS,ObrasEscolliidas, cit., III,p.292. 37 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 273. A propósito, ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 264. 38- ALTHUSSER, Posições I, Rio, Graal, 1978, p. 143 ss. Vera propósito ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 280. 39 - Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dmlético, cit., notas 324 e 338 e texto correspondente.

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Todavia, a penetração transempírica, em Marx, tem ambiguidades e insuficiências, que resultam da pretendida reviravolta, mediante a qual desejou transpor uma filosofia do ser, de timbre e âmago nada menos do que teológico (40) ~ tal corno é a de Hegel — para o âmbito materialista ~ que Hegel desapoiava, como "sistema consequente do empirismo" (41), na redução à exclusiva determinação, singular e concreta (42). Assim, a dialética, originalmente concebida para explicar, nas coisas, a pensar, em coincidência do raciona e do real, o Ser-em-Devenir (que não disfarça o seu engajamento teológico), passaria a servir, em Marx, à redenção do materialismo, a fim de esconjurar o díabinho mecanicista, mal se acomodando e adaptando, porém, a esta função leiga e empírica. Daí o embaraço dos marxistas, que tendem a desfazer-se, mais ou menos conscientemente, do trambolho, ainda que a preço de transformarem as ideias marxianas no estranho hibridismo que Marx nunca admitiu, em linha de princfpio: um materialismo "dialético" — positivista. Para desmoralizar este último, basta a 3a tese sobre Feuerbach (43), à luz da qual a 6a tese (44) ganha o seu verdadeiro matiz e, através da ponte não dinamitada do humanismo dialético e do "homem total" (45), recoliga o homem, "produto" das "relações sociais em seu conjunto" ao homem cuja "essência" é liberdade, como potencial, realizado na práxis (46). Depois disto, 40 -HEGEL, Redit, Staat und Gesdiidiie, Eine Aits\vahl aus sémen Werken, F.Bulow org., Sturtgart, Kroner, 1955, p. 374. 41 - HEGEL,Enzyklopãdie der pliSosophisclien Wissensdiaften im Gnindrisse, §60 (ed. 1830). 41—Ibidem, adendo, §38. Esta remissão e a anterior, feitas conforme a tradução francesa de Bernard Bourgeois, HEGEL, Encydopédie de Sciences Philosophiques, I: Science de Ia Logique, Paris, Vnn, 1979, p. 322 e 496. A propósito desta hesitação, ver MARX, Oeuvres, cit., II, p. 1555, onde a chave dos fenómenos é devolvida aos fenómenos mesmos. Seria, então, lícito pergunlar corno é possível, sem o "passepai-tout duma teoria histórico-filo só Oca" (MARX, ibideiri), formular as conjecturas prospectivas que constituem a essência, mola e teleologia do materialismo histórico e sua proclamação dum futuro desenlace das lutas e contradições classísticas, num ponto situado além do horizonte atual. Parece que o problema, aqui, d a desdialetização ep i st em o lógica, em prejuízo da filosofia da História, como se a verdade supra-histórica não pudesse surgir (MARX, ibidem') dentro do horizonte histórico mesmo. A relatividade das concepções, desta maneira, escorrega para o relativismo - e carrega o materialismo histórico, junto com todas as outras edificações transempíricas. 43'-MARX, Oeuvres, cit. Hl,p. 1030. 44 ~ Ibidem, p. 1032. Ver nota 110 e ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 112-113. 45 - MARX, Oeuvres, cit., I, p. 79 ss, onde, aliás, se insinua o artificialismo das "antíteses teóricas" (p. 80} entre subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo. Sobre o "homem total", ver ibidem, p. 24 ss. 46 -MARX, Oeuvres, cit., m, p. 166 ss (ver ibidem, sobrerepercussõcsjurídicas, p. 17 175 epOTsím)jROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., notas 91,372 e 373.

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l falar em processo sem sujeito e "subordinar a dialética ao materialismo" (então fatalmente rnecanicista) chegando a invocar a suposta abonação do arquiinimigo Hegel (47), paia defender a cibernética dos aparelhos, num processo sem sujeito, é puro delírio -de Althusser, que, disse eu noutra oportunidade, antes do uxoricídio dome'stico, praticara um "marxicfdio" intelectual. O fato é que as aplicações duma díalética marxiana — inclusive ao Direito (e, por isto, eu me detenho, aqui; no intrincado problema) — denunciam a hesitação daquela dialética mesma nos seus aspectos gerais e tanto em conteúdo, quanto operatoríamente. . Em .que sentido-se deve entender a dialética marxiana? Para isto, não bastam as metáforas da casca "mística" e do núcleo "racional" (48) ou da virada, em que a própria dialética, supostamente plantando bananeira, no idealismo hegeliano, ficaria, com Marx, solidamente plantada em seus pés materialistas (49). Acontece que, em Hegel, não é a casca, mas o núcleomesmo, que serve ao "misticismo" (50); e, quando se põe sobre os ditos pés materialistas, a dialética, já vem, portanto, não com a cabeça no lugar, mas com a cabeça cortada — no que se arrisca a perder e, de fato, perde logo o equilíbrio, para cair sobre o traseiro, no positivismo dos fenómenos ocos. Ora, com o vácuo ontológico, ela não pode servir, sequer, para o fim principal da sua cooptaçãó por Marx, que é precisamente destruir o positivismo (51), mediante essa dialética (nada obstante, decapitada). Isto, é evidente, não inutiliza todos os resultados concretos, análises e propostas validas, que o próprio Marx alcançou com esse instrumento bambo; porém denuncia e explica o caráter oscilante, as ambiguidades, as contradições não-dialéticas da focalízação marxiana de muitos temas (não excluindo o jurídico). De tal sorte e para ganhar a maior nitidez, ou se amputa, definitivamente, a dialética (tal qual fosse ela uma excrescência) e o marxismo se torna um positivismo de esquerda (inclusive no âmbito jurídico) (51 A),

47 - Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialètico, cít., nota 332 e 339. Ver ALTHUSSER, in JEAN HYPPOLITE, org., Hegd et Ia Penses Moderne, Paris, Payot, 1970,p.l09. 43 - MÃRX-ENGELS, Obras Escolhidas, cít., H, p. 16.

49 - Ibidem. .. 50 -Vernota 40.

51 -MÃRX,Lettrss à Kugelmann, cit., p. 169. 51 A - DUJARDIN & MICHEL, in M. BOURJOL et alii, Pour une Critique du Droit, cit., p. 16.

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ou se reforça o tônus dialético e a mentalidade positivista "acusa" este marxismo de hegeliano ou "místico" (assim, por exemplo, no iurisnaturalísmo de Ernst Bloch, que Habermas cognominou "o Schelling marxista" (52) — ultrapassando até a "mística" racional hegeliana). A aporia vem do próprio Marx, embora, nele, jamais se torne tão simplista e primária, quanto em alguns seguidores menos ágeis. Efetivarnente, não se trata sequer da falta duma teoria ou doutrina do Direito, em Marx — o que já foi assinalado e permanece óbvio, para quem não anda com os olhos vendados pelos preconceitos —; mas de uma verdadeira Impossibilidade conseqiiencial de construir, em ortodoxia marxista, a "essência" do Direito, ali ausente, mesmo que esta seja concebida, segundo o modelo metódico da ciência económica marxiana. Procurando as "relações essenciais" (53), que não surgem à flor dos fenómenos jurídicos, ditos positivosjá se empreende uma indagação sobre categorias transempíricas, ainda que estas nos pretendam brindar com uma ontologia marxístico-lukácsiana, isto é, não divorciada dos fenómenos, porém deles partindo, para "deduzir" o "ser" do Direito, dentro da própria cadeia, das transformações (54). Acontece que, perante a supressão do Ser hegeliano e a indeterminação ou supressão de outro "ser" transempírico, valendo, problematicamente, para essas "ontologias" marxistas, o marxismo, em si, ficou desorientado, entre a intuição aguda, mas não fundamentada, de Lenin, que postula o Absoluto

S2-3URGENEAKER.UA.S,ProfHsPhilosop!tiqiie!;et Poliliqiies, Paris, Gallimard, 1974, p.!93ss. 53 -VernotasSl e32. 54 —Não propriamente Ser em sentido fixista, mas Ser dialctico, Ser-em-Devenir;ou, como disse em noutro escrito: não o que o Direito é, porém, antes, "o que ele vem a ser, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta, dentro do mundo histórico e social" (ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 14-15). Ver LUKACS, Zur Ontoíogie dês GesellschaftHchen Seins:Die Ontologischen Grundprinzipíen von Marx, Darmstadt — Neuwied, Luchteihand, 1972, p. 12. Conferir, na tradução impecável de Carlos Nelson CoutinlioiLUKACS, Ontologia do Ser Social: Os Princípios Ontológicos Fundamentais de Marx, São Paulo, Livraria Ciências Humanas, 1979,p. 17. O camitilio lukácsíano parece-me correto, com a ressalva, porém, de que, nele, o "ser" buscado não seja confundido com os fenómenos e, portanto, dissolvido neles. Neste caso, o "ser" se torna apenas um pseudónimo, ou dos fenómenos mesmos, induzido o padrão inerente, ou das categorias, mentalmente "deduzidas" da "razão", a fim de ordená-los. E isto nada tem a ver com a dialética do Ser-em-Devenir.

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no processo (55), e o paradoxo de Engels, segundo o qual o "Absoluto" é o processo mesmo (56). Neste caso ou temos uma "díalética", parecendo a cabeça de pau da mula empírica ou uma "dialética" empírica lembrando a mula sem cabeça. De qualquer forma, do vácuo ontológico não se extraem mais do que uma pseudo "ontologia" de "words, words, words" (57) ou de "facls, facts, facts" (58) (para os quais só existem os remendos de conceitos à Kant, logo rebaixados, nas induções de Comte, que Marx rejeitava, ou afinal abstrativas, nos empirismos lógicos, que nada têm a ver com uma lógica dialética) (59). E onde fica, entífo, o núcleo que enforma as "relações essenciais", quer dentro dos fenómenos, quer nas construções mentais, que pretendem vazá-lo em categorias? Onde fica, sobretudo, o heart of the mattei', "aquilo" que faz com que a existência e os fenómenos, efetivamente, sejam, isto é, se manifestem, corn "rela-

55 — "A diferença entre o subjetivismo (ceticismo, sofística etc.) e a dialética consiste, entre outros, no fato de que, na dialética (objetiva), é também relativa a diferença entre relativo e absoluto. Para a dialética objetiva o absoluto está no relativo; para o subjetivismo e asofística, o relativo é só relativo e exclui o absoluto": LÊNIN, Quaderni Filosofici, Roma, Editor! Riuniti, 1976, p. 363. Se interpretarmos o "está no" relativo, como absolutizacâo do processo mesmo, é evidente que caímos na alternativa de Engels e seus próprios impasses, 56 — ENGELS, Dialectique de Ia Nature, Paris, Editions Sociales, 1973, p. 234:"assim, a ciência da natureza confirma o que ãh Hegel (onde?): a açãb recíproca é a verdadeira causa fi/ialls das coisas. Não podemos remontar para além desta ação recíproca, pois, atrás dela, não há precisamente nada a conhecer". Note-se que Engelscita Hegel de memória incerta ("onde?") e, nisto, é claro, traj Hegel, para quem a "causa eficiente" e, não, a final, é "necessidade cega", enquanto a causa final, ligada ao objetivo (finalidade, Zweck), através deste, manifesta o englobante e se perfaz no Ser, no Absoluto: "o fim realizado" volta à "origem" (HEGEL, Encydopédie, cit., versão Bourgeois, p. 266 ss, 440 ss). O Ser-em-Devenir, portanto, se realiza nos fenómenos e, no entanto, permanece, corno suporte de toda efetivação. 57 ~ SHAKESP£ARE,fiam;eí, U, 2. 58 — "Uma doutrina puramente empírica do Direito é, como a cabeça de pau, na fábula de Fedro, uma cabeça que pode ser bonita, rnas infelizmente nío tem cérebro" (KANT, Staío diDiritto e Società Civile, N. MERKER, org., Roma, EditoriRiuniti, 1982,p.216). Quando, por exemplo, LEON RADZINOWICZ afirma, em Criminologia - "agora, desconfiamos da filosofia e exigimos fatos" (Ideology and Crime, London, Heinemann, 1966, p. 127), nem percebe que, a pretexto de expulsar a "ideologia", transmite urna ideologia, que apenas náo se enxerga como tal. Ver, a propósito, MARILENA CHÀUl", Cultura e Democracia, cit., p. 85; MERLEAU PONTY, Éloge de Ia Philosophie et Avires Essais, Paris-, Gallimard, 1967, p. 112 ss. 59'- LUIZ DE CARVALHO BICALHO,^ Evolução do Pensamento de Sartre. Belo Horizonte, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, 1974 (tese de concurso para livre-docência rnimeografada), p. 353-364.

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coes essenciais", com significação e enlace transempírico e até um endereço teleológico tão forte, como no evolucionismo social marxiano? Se, para atém dos.fenómenos liada existe, a dialética fica desarvorada. ^_. Não à toa os marxismos permanecem dilacerados, entre o voluntarismo prometéico do Homem e o encadeamento cego de aparelhos, no "processo sem sujeito". Isto resulta de que, tendo Marx querido "desvirar" a dialética hegeliana, deixou sua própria dialética sem qualquer ponto de apoio (60). O problema, que afeta, como insinuamos, a própria construção das categorias económicas (61), também se reflete nas categorias jurídicas e nas obstruções que levanta à visão estritamente marxista do Direito, ern totalidade e movimento. Marx ficou devendo aquele estudo sobre a dialética, em termos gerais, muitas vezes anunciado e jamais escrito (62). Ora, enquanto os seus discípulos engrossam os obstáculos, com o psitacísmo beato e repetidor de fragmentos entranhados em diversas obras e esboços incompletos ou anotações incidentes (63), o próprio Marx e até mesmo no campo onde são mais fortes e vivas as suas contribuições, o histórico e económico, também nunca se desembaraça de todo da carência de fundamentação das suas operações dialéticas. Estas, assim, correm o risco de escorregões positivistas ou de afirmações programáticas e de mera intencionalidade, sem a exata definição de rumos e procedimentos. A totalidade pensada, sob impulsão externa (64), seria em Marx o "desentranhamento, pela análise, dum certo número de relações gerais e abstraías", que se obtêem pela "intuição e representação" (65). Aliás, ele fala, tanto em categorias vestindo episódios fenomênicos, quanto em categorias simples, "coni existência independente, de caráter histórico ou natural e anteriores às categorias mais concretas" (66). Contudo, estes "produtos do cérebro pensante, que se apropria do mundo, como pode", não nos

60 - Ver PIETRO ROSSI, &i N. ABBAGNANO et alii, La Evoludôn de Ia Dialéctica, Barcelona, Martinez Roca, 1971, p. 251-252; IGNACIO SOTELO, Sartre y Ia Razón Dialéctica, Madrid, Tecnos, 1967, p. 158. 61 - MARX, Die Afethode der politiclien Okonoinie, in MARX-ENGELS, Texte Ober die Methode der okononúsdien Wissensdiaft, bilingue, Paris, Editions Sociales, 1974, p. 156 ss. 62 - MARX-ENGELS, Lettres sur !es Sciences de Ia Nature, cit., p. 64. 63—Exemplo característico desse psitacismo beaío é o ensaio de M. ROSENTHAL, LesProbtèmesdelaDialectiquedansle Ca pitai de Marx, Paris, Editions Sociales, 1959. 64 - MARX, Die Melhode, cit., p. 160. 65 —Ibidem. 66 -íbidem, p. 162.

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dão sobre a realidade profunda e a origem da razão raciocinaníe (67), mais do que um desenvolvimento à fé do realismo ontognosiológíco um tanto ingénuo. E, nisto, vão descambar, com Lênin, para a "teoria do reflexo", assim como, em Marx mesmo, não fundam o padrão dialético das coisas e só ministram a 'Verdade" durn critério pragmático (68). O recurso a tais "soluções" precárias, deixa inclusive de notar que até a avaliação da funcionalidade legitima e operacionalização correia, já carregam não desprezíveis pressupostos teóricos. Em todo caso, um relativismo (não dialético) se insinua nesta "prova" pela práxis. Para usar a metáfora tão grata a Marx, se a "prova" do pudim dialético se faz, comendo, ainda assim é indispensável o critério para distingui-lo dum bolo de lama ernpirista; e, em seguida, no saboreá-lo, vem a questão do ontognosiológico paladar, que não coníunda o produto da melhor doceira com o pó industrial de supermercado ernpirista: misture ao fogo baixo, com um litro de leite, sem deixar ferver, ponha na forma, deixe esfriar — e está pronta a "delícia" pragmática. Por tudo isto, quando um marxista, mesmo erudito e sagaz, como Imre Szabò, pretende oferecer-nos uma reconstrução da essência do Direito, supostamente extraída de Marx, fica perdido entre postulações confusas e citações do seu mestre, como se fossem prova do acerto das teses (69). É um método, aliás, utilizado pela maior parte dos marxistas, com transposições da teológica "verdade revelada", um bocado sacrflegamente, das barbas brancas do Senhor, para os bigodes grisalhos do bomKarl, que, como vimos, não se julgava um deus (70), nem sequer admitia a existência de deuses. Seria pura malícia relembrar, aqui, os antecedentes duma adolescência teísta, no jovem poeta, que então extraía parte da sua força "prometéica" de uma reza convencional (71). Dirão que isto era bobagem de menino (aliás já bem crescidinho, por volta dos

67 - ROBERTO LYRA FILHO, A Reconciliação as Prometeu, cit.; ROBERTO LYRA FILHO, Filosofia, Teologia e Experiência Mística, in Anais do 89 Congresso Interamerlcano de Filosofia, São Paulo, Instituto Brasileiro de Filosofia, 1974, H, p. 145 ss. 68 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1030 (2? tese sobre Feuerbach). A propósito, NORMAN D. LIVERGOOD, Activity in Marx's PhUosophy, The Hague, Martínus-Nijhoff, 1967. 69 - IMRE SZABÕ, in BLAGOJEVIC et alii, Introduction aitx Droits Socialistes, cit., p. 19-24. 70-Ver notas 5,6 e 10,11. 71 — MARX-ENGELS, Tferfce (ed. da Dietz Verlg), volumes complementares, I, p. 613 (cfr. S. S. PRAWER, Karl Marx and World Literature, Oxford, Uníversity, Press, 1978, p. 9): "Contra ventos, ondas luto;/ Rezo a Deus, é meu Senhor,/ Velas pandas,/ rumo fruto/ No astro firme, condutor" (MARX, circa 1837).

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20 anos); convenhamos, entretanto, que é bastante pitoresco ver, por outro lado, uns moços imberbes e tocados pela ruptura epístemológica (em que Althusser engole uma fatia do idealismo de Bachelard), repetindo, contra Corneille, que o valor depende da maturidade dos anos (71 A) — o que, en passant, resultaria no absurdo cronológico de considerarmos o Schelling velho mais "científico" (no seu misticismo reacionário) do que o Shelling moço (de tantas antecipações — na Neue Daduktion dês Naturrechts, por exemplo — com nítido sabor progressista e ao estilo liberal do jovem Marx). O fato é que os marxistas continuam, desde Lassalle, às voltas com a nostalgia do "salto ontológico" (72) e, quando o intentam, arriscam-se aos tropeções e quedas, impíedosarnente apontados pelos seus companheiros. Engels já puxava as orelhas contemporâneas e lassalleanas, com esta censura contundente: "o gajo demonstra, apesar de tudo, uma grande superstição, crendo ainda na ideia do Direito, no Direito Absoluto. As objeções que faz à filosofia jurídica de Hegel são, em grande parte, muito carretas, mas ele próprio não avançou muito com a sua filosofia do espírito. Até no ponto de vista filosófico, devia, no entanto, haver chegado a captar como absoluto somente o processo, e não apenas um resultado momentâneo deste; e, se o tivesse feito, não resultaria disto outra ideia do Direito, senão como o processo histórico mesmo" (73). Já chamei esta ligação do Direito em geral, e não apenas das normas de um só conjunto, o estatal, à movimentação do processo histórico, de "fecundo ponto de partida para uma nova filosofia jurídica" (74); mas "apenas um ponto de partida", pois é necessário desobstruir, primeiro, seja a aporia dialética marxiana (75) e a absolutização do processo, que criou o significativo dissídio entre Engels e Lênin (76), seja a indeterminação, na abordagem de Engeís, sobre qual aspecto do processo é verdadeiramente jurídico. Ê certo denunciar a "ideia do Direito", que pretendia apresentar-se como autónoma, situada num compartimento estanque e desentranhada,.por completo, do fluxo histórico-social (isto é contraditado pelos fatos); mas, dentro deste

71 A-ROBERTO LYRA FILHO, Prefácio a AGOSTINHO RAMALHO MARQUES NETO,A Ciência do Direito, Rio, Forense, 1982, p. XIII. 72 - LUKACS, Zur Ontologie, cit, p. 12.

73 - MARX-ENGELS, Cotrespondance, cit., VI, p. 375. 74 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo DMético, cit,, nota 245 e texto correspondente. 75 — Ver, aqui, notas 55,56 e texto correspondente.

76 — Ibiãem.

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fluxo, o fenómeno, articulado no processo, não some, sem mais, na enxurrada" (77). E isto nos devolve à faltante (em Marx) teoria ou doutrina geral do Direito, que, entretanto, recebe do autor ã.'0 Capital não poucas luzes incidentes, em todas as fases de sua obra. A partir dumas colocações excepcionalmente fecundas, que se encontram, por exemplo, n'A Sagi-ada Família e até na Ideologia Aleuiã' (78), é possível caminhar, pós-marxíanamente, com o acréscimo de análises e propostas não incompatíveis (já o veremos) de toda a segunda etapa de Marx, para uma visão do Direito que mantenha o fôlego dialético, ná"o se dissolva no empirismo sorrateiro, nem se divorcie do processo histórico; e incorpore, transfunda e reenquadre o que de válido e subsistente se encontra no conjunto da obra aqui estudada. O terceiro tipo de problema do nosso rol ê decorrente dos pa>'alogismos ocasionados, seja pela ausência duma teoria ou doutrina do Direito em Marx, seja, como já foi explicado, pela impossibilidade prática de sequer intentar essa teoria ou doutrina, sem resolver a questão lógica e ontognosiológica da dialética marxiana. A dialética é lógica ontológica e, em suas conotações, ontognosiológica, pois não consiste apenas em um estilo de pensamento correto — e, assim lógic a — e uma postura que se coliga à natureza contraditória das coisas, em totalidade e movimento — e assim ontológica — porém, ao mesmo tempo, numa proposta do co-implicado critério de coincidência do pensamento e do "ser" das coisas mesmas — e, assim, gnosiológica. Nada disto se realiza perfeitamente em Marx e tal carência determina os paralogismos marxianos e marxistas. Os primeiros são paralogismos de texto (os .que recolhem certos

77 - ROBERTO LYRA FILHO, Razffes de Defesa do Direito, Brasília, Editora Obreira, 1981, p. 8. A propósito, ver MARX, A Sagrada Família, in MARX, Oeuvres, cit., m, p. 453. 78 — MARX, Oeuvres, cit., III, p. 453 e 1231. Ressalvo que, nas colocações citadas, Maix intuiu a perspectiva histórica do Direito, na dialética da Justiça, realizada pela sua negação, mas conserva a dificuldade inerente à não-dialetizaçao dos elementos antitéticos e à falta- da construção expressa e global durna teoria não idealista da Justiça mesma (ver ROBERTO LYRA FILHO, Hutiwnismo Dialético, cit., nota 357, capítulo IV e V ê passitti). A este propósito é que vou aprofundando aquela "ontoteleologia" do processo (ROBERTO. LYRA FILHO, O Direito Que se Ensiiw Errado, Brasília, Centro Académico da UnB, 1980, p. 28; ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, tií.,passim; ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 122), que mereceu a atenção simpática da companheira Marílena (MARH.ENA CHAUl", Roberto Lyra Filho ou a Dignidade Política do Direito, c\i.,passim) e até do professor (nesta qualidade; não me refiro ao político) Franco Moritoro (MONTORO, Estudos de Filosofia do Direito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1981, p. Ef, XIII e 55)."

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desconjuntamentos do raciocínio marxiano) e os segundos, paralogismos hermenêuticos (os que são perpetrados sobre aqueles, na sua leitura e interpretação, pelos marxistas). Mas é bom que logo se dissipe um equívoco, já que a expressão "desconjuntamentos do raciocínio" pareceria a alguns indicar um defeito ético — o que não é, de nenhum modo, insinuado aqui, nem representa o sentido exato da palavra empregada. Os raciocínios falsos, à que se dá o nome de paralogismo, distinguem-se precisamente dos sofismas, porque não conotam o matiz pejorativo "comumente associado a noção de sofisma (a intenção de enganar alguém)". O paralogismo é realizado de boa fé" (79). Tal como na distorção material da ideologia, o erro operacional do raciocínio paralógico deixa indenes as boas intenções — o que não as impede, como no brocardo popular, de arriscar-nos à queda no "inferno" das construções sobríTareias movediças. Em Marx, as referências ao Direito refíetem a situação esboçada na análise dos obstáculos lógicos e ontognosiológicos, aqui transmudados em paralogismos frequentes. Ele discorre, às vezes, num "positivismo de esquerda" (80), apenas (a título de Direito) sobre as leis e costumes da classe dominante — o que faz com que o marxismo, depois, má se distinga de kelsenianisrno exceto nisto que a redução do Direito sobretudo ao Direito estatal é feita por Kelsen com a complacência de quem situa no Estado o ponto de controle e dissolução dos antagonismos e conflitos da sociedade classista (81); e em Marx, aquela mesma redução eventual (82) inspira os indignados protestos na me79 ~ A. LALANDE, Vocabulaire Techniqtie et Critique de Ia PhSosophie, Paris, Presses UniversiiairesdeFrance, 1968, p. 736-737. 80-MARX,Oeuvres, cit., II, p. 1402-1403. 81 - HANS KELSEN, Teoria General dei Deredw y de! Estado", México, Imprenta Universitária, Universidad Nacional Autónoma de México, Facultad de Derecho, p. 24. O monopólio estatal das forcas nomogenéticas é, então, equiparado à ordem estabelecida para "manter a paz" e a "justiça" é, assim, qualquer ordem, segundo o sistema adotado (p. 16). O círculo vicioso e viciado fica evidente, enquanto a dominação estatal tira, então, a sua legitimidade da própria pretensão de ser legítima (p! 223) e a pretensão é legitimada, exclusivamente pelo critério pragmático da eficácia e do maroto "consenso" presumido (ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 103). A propósito, ver ROBERTO LYRA FILHO, Para um Direito sem Dogmas, Porto Alegre, Fabris, 1980, p. 3538; ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, cit., p. 29 ss; MARÍLENA CHAUl', Roberto Lyra Filho oii a Dignidade Política do Direito, crU p. 2230; RAYMUNDO FAORO, O Que é Direito, segundo Roberto Lyra Filho, m Direito e Avesso (ver nota 3) nP 2 (1982), p. 33-35. A identificação entre Direito e Estado, aliás, acarreta uma tautologia infernal, como acentuou Podgorecki (ver ROBERTO LYRA FILHO, Para um Direito sem Dogmas, cit., p. 32; PODGORECKI, in DIVERSOS, Knowledgeand Opinion about Law, London, MarinRobertson &Co, 1973, p. 65). 82-Ver nota 80.

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l dida em que o Estado é visto como "resumo oficial" da "sociedade civil" (83) (malgrado as eventuais contradições entre ambos), a "sociedade civi!" não é mais do que a sociedade burguesa — em alemão a ambiguidade do biirgerjich denota ambas as coisas (civil e burguês) — e o "Direito" não passa de uni instrumento de controle da classe dominante, ao menos (e, de novo malgrado contradições emergentes) ern última análise, ligado aos interesses e privilégios da burguesia (84). A seguir, este conceito sofre, não raro, uma extrapolação, de tal sorte que o Direito passa a ser concebido como, em qualquer tempo ou parte, um produto estatal, a desaparecer, portanto, com o Estado mesmo. O fim deste coincidiria, na sociedade comunista, com o do Direito, trocado pela "administração das coisas e pela direçãb dos processos de produção" (84 A), mediante normas que só não são qualificadas como jurídicas, porque, de início foi contraído o conceito de Direito, à moda estatal (85). O paralogismo desanda num círculo vicioso e viciado, não distante do mesmo rodopio keíseniano. Esta concepção, que é, de certo modo, et pour cause, a do marxismo tradicional e até oficial, nos Estados ditos socialistas (86), não será, porém, de forma alguma, a única, presente em Marx. Coexistem com ela a tensão e dualismo decorrentes das inevitáveis referências de Marx a direitos (87) dos dominados e à mais ampla (e nele não absorvida dial eticamente) contradição entre,as normas da classe dominante e as reivindicações jurídicas de dominados. Isto, aliás, em toda a obra marxiana, e não só na primeira fase (da mocidade). Desta sorte, mesmo após o abandono de um certo íurisnaturalismo juvenil e com o reforço daquela posterior desconfiança ante o Direito e os juristas, como instrumento e servidores da burguesia (88), e até 83 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1068, 1117; MARX, Pages de Karl Marx pour une Êthique. Socialiste, M. RUBEL, org., Paris, Payot, 1970, í, p.72,152,123. 84 -MARX-ENGELS, Critique dês frogrammes de Gotha et á'Erfurt, Paris, Édítions Sociales,1981,p.32. 84 A - ENGELS,Anti-Duhring, Paris, Éditions Sociales, 1977,p. 317. S5 -JOÃO MANGABEIRA, Ideias Políticas de João Mangabeira, F. DE ASSIS BARBOSA, org., Brasília-Rio, Senado Fedcral-MEC-Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, III, p. 21. 86 - Ver por exemplo, ZHIDK.OV et alii, Fundamentos de Ia Teoria Socialista dei Estado y dei Dereclio, cit., (nota 19J e, em MON1QUE & ROLAND WEYL, Révolutíon et Perspectives du Droit, cit., (ibidem), toda a confusão decorrente da tentativa de escapar, em termos ortodoxamente marxistas, dessa tese da "morte do Direito" (a propósito ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e-Dlreito do- Trabalho, cit., p.44; ROBERTO LYRA FILHO, Problemas Atuais do Ensino Jurídico, Brasília, Editora Obreira, 1981,p. 36). 87 - MARX-ENGELS, Obras EScoi!,idas. cit., I, p. 322 ss. 88 - A propósito, ver ENGELS, in MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., n, p. 173.

perante a justiça, (vista sobretudo como expressão ideológica de princípios burgueses) (89), persiste um curioso iurísnaturalismo implícito, repontando na ambiguidade das referências subsistentes a Direito e Justiça, quando mais não seja, pela reafirmação constante do dfreito de revolução. E este íurisnaturalismo implícito, que já fora assinalado em Heller (90), chega, às vezes a ser desenvolvido, expressamente, por exemplo, em marxistas como Bloch (91) ou MiaHle (92). As duas visões não se harmonizam, pelo simples fato de que ambas são apresentadas, embora incidentemente, como o- Direito (inteiro) e, mesmo quando são contrastados o "direito" da classe dominante e os direitos da classe proletária (93), na obra madura, rompe-se, em geral, o fio daquela realização do Direito e da Justiça, peia sua negação, que assinalamos n"A Sa89 - Ibidem; MARX, Oeuvres, cit., II, p. 620. Ê pertinente assinalar que a crítica de Marx às noções de Direito e Justiça,bem como o seu emprego inevitável por ele mesmo, não decorre, neste eventual emprego e como pensa o meu eminente amigo Atíenza (MANUEL ATIENZA, Marx y hs Derechos Humanos, Madrid, Mezquita, 1983, p. 279), de concessões do cientista à conveniências políticas (ver ROBERTO LYRA FILHO, flamanisino Dhlêtico, cit., notas 420, 421). Isto representaria um oportunismo safado que a integridade intelectuaràíTMaix. não admite. Ele se refere a Direito e Justiça, no mais amplo e correio sentido de Direito dos espoliados e oprimidos e Justiça reparadora das íniqíiidades sociais, decorrentes da espoliação e opressão, porque isto era inevitável num pensamento revolucionário. Tem razão Rubel, quando reconduz (MARX, Pages, cit., Introduction, I, p. 29) a ojeriza do Marx cientista a palavras como Justiça, moral, dever etc., ao horror que Ibe inspirava "o moralismo verborrágico dos socialistas doutrinários". Os encadeamentos da reflexão maixiana permanecem, contudo, imersos em preocupação com a Justiça autêntica e ele só condenava "essa mitologia moderna", enquanto "mascarava a injustiça e a imoralidade" (RUBEL, ibidem). Não é menos exaío, entretanto, que leva esta reprovação razoável a extremos de, eventual e injustificadamente, negar, às vezes, o Direito e a Justiça em tese e em princípio. Tais exageros, entretanto, são, com não menor frequência, corrigidos pela volta dos termos banidos, para atender à necessidade de fundamentar a própria contestação do status quo. Por outro lado, entretanto, é lícito supor que só mesmo o receio de se ver confundido corn um socialismo palavroso e oco o impediu de ver e proclamar que o problema jurídico se põe na própria infra-estrutura, enquanto modos de produção, visceralmente injustos, sacrificam direitos dos espoliados e oprimidos (ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 101-124). 90 - HERMANN HELLER, Teoria do Estado, São Paulo, Mestre Jou, 1968, p. 204-205. 91 -ERNST BLOCH, JVãfttfTfidif und Menschlich Wttrde, cit. 92 - MICHEL MIAILLE, in M. BOURJOL et alii, Pour Une Critique du Droit, cit., p. 123-124. 93 ~ MARX, Oeuvres, cit., III, p. 453. Ver, por exemplo, O Capital, onde o dualismo chega a um clímax e Marx opõe. como "dois direitos iguais" (sic!) o da classe dominante e o da classe proletária, para sugerir que a oposição só se resolveria pela força (MARX, Oeuvres, cit., I, p. 791). Aio dualismo chega a tornar-se escandaloso.

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l gi-ada Família — e ali tampouco ultrapassava a intuição carente de sustenção dialêtica, para ver, em globo e era movimento, a juridicidade progressiva, como realização afirmada pelas classes e grupos ascendentes, sua negação na esclerose social, quando eles se tornam classes e grupos dominantes e, afinal, a negação da negação, quando ou nu classe e grupos ascendentes retomam o itinerário (94). Por mais estranho que pareça, num autor tão forte em temas históricos, o que, neste particular, ocorre mais frequentemente é um equivoco de perspectiva histórica. Assim, por exemplo, os direitos humanos (declaração burguesa) são impiedosamente criticados (94 A), desde a juventude marxiana e do ponto de vista da sua justa denúncia socialista, esquecendo-se, nisto, o que representaram de avanço, a seu tempo, no combate ao establiskment aristocrático e sob o rótulo de direitos "naturais", que se opunham ao chamado direito "positivo" feudal. Aí se insere a mencionada perda do fio dialético, insinuado, en passant, rCA Sagrada Família, em diálogo corn Proudhon. É, decerto, fácil, à altura de novos tempos, mostrar as deficiências do _ passo antecedente. Acontece, porém, que, no progresso histórico, só podemos entender as coisas, do anterior para o posterior, e não deste para a conquista prévia — pois, neste último caso, qualquei- progresso nos parece ab ínitio superado. Corn tal ilusão de ótica, é viável acusar, sempre e absurdamente, a vanguarda da véspera de não coincidir com a vanguarda atual, que há de ser (não há meio de eludi-lo) um veiculo de coisas obsoletas, quando for tragada pelo tempo e pelas futuras aquisições. Aristóteles podia ver as contradições entre a sua teorização política e a infra-estrutura social escravocrata? O mais estranho é que, por exemplo, ao condenar a posteriori o resultado do avanço burguês (não foi ela classe ascendente que, enquanto tal, representava momentaneamente os lemas gerais do progresso?), certo aspecto da reflexão marxiana assimila as categorias da própria burguesia no poder (com a troca burguesa do iurisnaturalismo contestador da fase montante pelo positivismo daquela dominação conquistada, que castra o Direito, pondo-o todo na forma da legislação e do Estado). Deste modo, é possível distorcer a "ideia do Direito", para vê-lo sobretudo como instrumento de dominação e embaraçar-se, consequentemente com a referência inevitável a 1 94 — Sobre a distinção entre classes e grupos, na dialêtica do Direito, ver ROBERTO LYRÁ FILHO, O Que é Direito, cit., p. 94-95; ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dfaiético, nota 92 e texto correspondente; MARILENA CHAUÍ", Roberto Lyra Filho ou a Dignidade Política do Direito, cit., p. 28-29; RAYMUNDO FAORO, O Direito, segundo Roberto Lyra filho, cit., p. 34. 94 A — MARX, X Questão Judaica, Lisboa, Moraes, sem data, p. 38 ss.

direitos dos dominados. Assim, nos Estatutos da l? Internacional ou até na Critica do Programa de Gotha, que analisei, noutro escrito (95), mostrando como Marx, num só texto, passa de uma a outra das concepções — a do direito dos espoliados e oprimidos e a do direito da burguesia entronizada e sua ideologia de "igualdade jurídica", tal como se estivesse criticando todo o Direito (e; não apenas o direito burguês} (96). Isto resulta de haver engulido, ocasionalmente, o positivismo jurídico da antiga classe ascendente, agora dominante e fator de conservantismo, ao invés de progresso. Todavia, resta o preceito jurídico, formulado em conclusão da critica e como ocaso, não do Direito, mas do "direito burguês". Tudo isto aparece de cambulhada, numa só página — da Crítica do Prograiita de Gotha — bastando, nesta oportunidade, para ilustrar o que chamei de paralogismos de texto. Assim, não apenas em fases diversas e obras diferentes se encontra a coesistência de visões jurídicas dum teor antinomia) e que liwlent se trouver

95 - ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit, IV, l b, notas 386-426 e texto correspondente, com análise pormenorizada de paralogismo marxianos sobre Direito e Justiça que aqui, por falta de espaço, não posso reproduzir. 96 — MARX, então, passa do direito burguês, com a suposta igualdade dos socialmente desiguais (Critique dês Progratnines de Gotha et d'Erfurt, cíl., p. 31), para "todo o direito", desdialetizando'o processo no qual as desigualdades sociais se compensariam (igualando relativamente os desiguais) pela desigualdade (reforço de garantias para o desnivelado), que realiza o seu contrário (reparação relativa da igualdade negada), ern operação de alargamento e retificação do próprio direito (esboço reformista, que Marx não desdenhava, como passo transitório, de "evolução revolucionária", MARX, f/i Pages...., cit., RUBEL, org., II, p. 56, 59; MARX, Oeuvres, cit., II, p. 1488), a caminho da revolução consumada, ern que as desigualdades sociais ficariam resolvidas (ao menos, como meta e "utopia", em sentido de Bloch) pelo cancelamento das desigualdades sociais. Nesta sociedade futura, prevalecendo o "de cada um, segundo as suas aptidões; a cada um, conforme as suas necessidades" (Critique, cit., p. 32), seriam irrelevantes as desigualdades individuais (de aptidão e situação pessoal), com que Marx confunde o raciocínio desenvolvido; e, então, sem desigualdades sociais, as desigualdades pessoais se fundiriam na igualdade de participação nos frutos do trabalho comum (igualdade dos pessoalmente desiguais), para realizar o preceito nada menos que jurídico e socialista: "livre do desenvolvimento de cada um", como príus do "livre desenvolvimento de todos". (MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., I, p. 38). Desta forma, inclusive, a análise prática do processo ganha um timbre ético, mediante a concepção da Justiça, como aquinhoa mento igual dos desiguais (no sentido pessoal). A confusão, estabelecida na Critica do Programa de Gotha, entre desigualdades sociais e diferenças individuais, advém da falta de exato discernimento de que uma coisa é a "igualdade e outra a uniformidade: ver PAULO SINGER, Aprender Economia, cit., p. 163.

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ensemble: a presença delas na mesma obra (97) e até no mesmo trecho de obra oferece um terreno acidentado, em que os paralogismos do texto exigem grande cautela, para não se transformarem nos consequentes paralogismos hermenêuticos, acumulados pelos intérpretes sobre os primeiros. Nada disto —repito — pretende minimizar o valor das análises e propostas marxianas, no campo jurídico. Noutro escrito, assinalei que méritos e resultados da elaboração marxiana colhem-se a despeito da impostaçao hesitante da sua dialética e da carência, no âmbito do Direito, de uma visão global, uma doutrina ou teoria gerais do Direito ~ "o que, aliás, acontece, o mais das vezes, no avanço da ciência; pois doutra forma, permaneceria obstruída a pesquisa, até que se achasse um suporte filosófico impecável" (98). E isto não ocorre nunca: tal como na ciência, as superações continuas incorporam, transfundem e reenquadram, na filosofia, as conquistas precedentes (99). Defendo, neste breve estudo, a conclusão, mais longa e profundamente fundamentada noutra obra (100), de que, sem Marx, nada se intenta, validamente, na atua! Filosofia e Sociologia jurídicas (101), porém, com ele e sua obra, o trabalho apenas começou. É em Marx que a verdadeira e própria teoria dialética do Direito (ainda informe, porém já denunciada, em muitas cin-

97 - N'0 Capital, por exemplo convivem a contraçao do Direito às normas e mores da classe dominante (MARX, Oeuvres, cit., II, p. 1402-1403), a referencia à existência de "dois direitos" (do dominante e do dominado) num estranho nivelamento ("direitos iguais" sic! - da classe capitalista e da classe operária: MARX, Oeuvres, cit., I, p. 791), a afirmação de que, para tal antinomia, só um remédio existe ~ a força (ibiderri), a ilustração disto, através da luta pelo direito à limitação da jornada do trabalho e, no final da obra (MARX, Oeuvres, cit., loc. cit., II, p. 1488), a mesma limitação da jornada, como um passo decisivo ("condição fundamental") da passagem ao reino da liberdade — quando a pressão proletária, já conquistara tal avanço, ao menos em parte; isto é, o direito dos espoliados passara, de norma contrastante ao acervo adversário e capitalista. A redução da jornada do trabalho, nota Marx mesmo (in Pages.., cit., M. RUBEL, org., II, p. 194) fora considerada "utopia comunista" de Owen e terminou como "lei do Estado" burguês. Na esteira da "evolução revolucionária", já citada (nota 96), do próprio Marx, não estaria, então, certo o nosso eminente companheiro Boaventura de Sousa Santos, quando afirma que "a revolução socialista será o que tiverem sido as reformas que a vão constituindo"? BO AVENTURA. DE SOUSA SANTOS, A Questão ao Socialismo in Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, Centro de Estudos Sociais, nP 6 (1981), p. 171. 98 - ROBERTO LYRA FILHO, A Reconciliação de Prometeu, cit., p. 11. 99 ~ MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., n, p.195. 100 -Ver nota 3. 101 -MARILENA CHATJT", Roberto Lyra Filho ou A Dignidade Política do Direito, cit., p. 28.

tilações preciosas) começa a emergir do diálogo com Hegel, para combater o lado mais vulnerável do sistema idealista, que é a Filosofia Jurídica. Ainda assim, é preciso, manter o equilíbrio entre a negação desta última, e a negação da negação, que lhe preserva os aspectos positivos. Como bem acentua Bloch, "se a Filosofia do Direito é o que ele (Hegel) escreveu de mais reacíonário" (102), não é, por isto, menos verdade que permanece falsa a imagem de idólatra do Estado, prussiano, afixada em Hegel mesmo por uma crítica obtusa. Marx chamou esta rotulagem de "bosta" e "burrice" (103), Naquela Filosofia Jurídica idealista, há, sem dúvida, uma "estranha mistura" de aspectos avançados e retrógrados, onde, apesar de tudo, emerge "um elemento do edifício dialétíco, aplicado ao mundo" (104). Hegel "nunca abateu inteiramente a árvore da liberdade", plantada na juventude, como um desafio, que ardia nele e nos colegas progressistas, como endereço político da vanguarda do seu tempo; nem renegou, na velhice, a face liberal, fervilhante no idealismo germânico (105). Por isto mesmo, é que, no grande mestre da dialética idealista, germinam as sementes do socialismo contemporâneo; e, neste sentido, é inestimável a contribuição de Marx, porque ela associa, poderosamente, ao substrato filosófico, a descoberta das raízes sociais e económicas do processo, à luz duma práxis da classe montante: "o filósofo encontra no proletariado as suas armas materiais, como o proletariado descobre na filosofia as suas armas intelectuais... A cabeça desta emancipação (do homem) é a filosofia; sem coração, o operariado" (106). E a ciência marxiana desempenha, entre ambos, uma notável função mediadora. O quarto tipo de problema do elenco mencionado refere-se aos obstáculos cronológicos. Há questões falsas, estabelecidas por um tipo de periodização, servindo ao que chamei de beatice marxista e que faz da obra, dita madura, de Marx uma espécie de Bíblia Sagrada, para depois, atrapalhar-se com a questão do Velho e do Novo Testamento. De qualquer sorte, a "ruptura" radical é de todo inaceitável e, aliás, tem sido matizada, em muitos marxistas, que não aceitam a arrumação do

102-ERNST BLOCH, Subjekt-Obfekt: Erràuterungen zu Hegel, Frankfurt-arn-mam,

Suhrkamp,1964, §14. '103 -Xp«dERlClVElL,/fe?eí et 1'État, cit., p. 16. 104 - ERNST BLOCH, ob e loc., cíts., (nota 102). 105 - JACQUES D'HONDT, Hegel en sou Ternps, Paris, Editions Sociales, 1968, passim.

106 -MARX, Q-itique du Droit Polilique Hégêlien, Paris, Édítíons Sociales, 1980. p. 212.

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l tipo althusseriano e já destacaram a sua arbitrariedade (107). Sève, por exemplo, mais de uma vez pegou Althusser flagrante delicio de infundada liquidação de conceitos e posicionamentos que, em Marx, não se esgotam na fase juvenil, mas atravessam toda a obra marxiana, de princípio a fim (108). Situarnse aí, particularmente, as questões do humanismo (109), da alienação (110) do homem total (111), da Aufl-iebung (negação da negação) (112) e assim por diante. Acrescento que também aí se deve inserir a questão do Direito. Althusser chega a tresler, deliberadameníe,-as teses sobre Feuerbach, a fim de acomodar este documento marxiana, dito, de ."transição", ao esquema preestabelecido, que serve ao partipris anti-hurnanista e cientifista (113). Para divisão do Velho e Novo Testamento, os marxistas.geralmente se apoiam numa passagem famosa, em que Marx lembra a sua colaboração com Engels e o desenvolvimento das ideias que passaram a compartilhar. É então que ele se refere ao "exame de consciência filosófica", de que resultou haverem de bom grado entregue um manuscrito anterior à "crítica roedora dos camundongos" (114). O manuscrito, assim referido, só foi publicado muitas dé107 - Entre outros E. P. THOMPSON, Poverty ofTheory and Other Essays, London, Merlin Press, 1980, p. 193 ss. Note-se, en decorrência, a intensificação do tõnus dialético, nas análises concretas de Thompsonr é o caso, por exemplo, do seu estudo muito fecundo e matizado sobre Tlie Ruis of Law (E. P. THOMPSON, in BEIRNE & QUINNEY, A&rxisrn and Law, cit., p. 130 ss). Alí reponta, inclusive (Thompson é um grande historiador), a colocação exata dos termos relativos e progressivos duma realização díalética da Justiça. Insinua-se, ademais, no referido texto, um reconhecimento de quanto se tornou "requintada, mas (em última análise) altamente esquemática" a noção do Direito como produto de superestrutura. Thompson anda af às voltas com todo reducionismo, procurando ver inclusive o Direito "na base das relações de produção", no posicionamento conflítívo de ambas as classes e não apenas em normas da classe dominante, 108 - LUCIEN SÈVE. ot>., cit., p. 428437,605 (nota 28), 628 (nota 257). 109 —Ver, por exemplo, ADAM SCHAFF, Au Suje t cie Ia Traductioti Française de !a Vlème Tíièse de Marx sur Feuerbach, in L 'Homme et ia Socíété, Paris, Antropos, n9 19 (1971), p. 157-167; ADAM SCHAFF, O Afarxismo e o Indivíduo, Rio, Civilização Brasileira, 1967; V. KESH.ELAVA., Humanismo Real y Humanismo Fictício, Moscú, Progreso, 1977; RODOLFO UQNDQIFQ, Estudos sobre Afarx, São Paulo, Mestre Jou, 1967; I. M. GOULIANE, Lê MarxismeDevant 1'ffomme. Paris, Payot, 1968; HECTOR P. AGOSTI, Condições Atuais do Humanismo, Rio, Paz e Terra, 1970 etc. 110 - SÈVE, ob. cit., p. 115-125, além dos estudo s já citados (nota 109), e muitos outro s. 111 - ERNST FISCHER, O Que Marx Realmente Disse, Rio, Civilização Brasileira, 1970, p. 1-15;HENRI LEFEBVRE, La Petisée de Marx, Paris, Bordas, 1966, p. 17-24 etc. 112 - Por exemplo, SÈVE.ob. cit., 112 ss. 113 -ADAM SCHAFF,Au Sufet..., cit. 114 - MARX, Oeuvres, cit., l, p. 274. Nota-se que, interpretando isto como ruptura radical e negação puja do que antes pensara c escrevera Marx, ainda assim fica aberta a questão de saber se esta persuasão, por mais sincera que fosse, corresponderia aos fatos e que ioda elaboração posterior resulte, não só incompatível com a anterior, mas, inclusive, escrita em tábua rasa.

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cadas após a morte de Marx e de Engels, desencadeando uma controvérsia entre marxistas e marxólogos, a respeito do Marx "autêntico" e sua colocação aquém ou além do que foi tomado como ponto de referência, para separar as etapas de imaturidade e maturidade da obra. Entretanto, esta divisão passando a situar a linha divisória entre os manuscritos de 1844 e (como textos de "transição") as Teses sobre Feuerbach e A Ideologia Alemã', só assinalaria a liquidação das "formas arcaicas" (115) do marxismo, a preço de considerar a produção posterior como um acervo de pensamentos "radicalmente novos" (116), naquela visão do conjunto que tende a extrair do legado marciano um "núcleo de verdade invariável, que não pode caducar" (117). Isto, é claro, traz como pressuposto a opção marxista de uma ortodoxia, cujos fundamentos já me permiti considerar comoantimarxianos(118). Daí, em todo o caso, o afã de "arrumar" a obra de Marx, numa reta ascendente, que, de ruptura em ruptura, com precursores, influências e primeiras posições marxianas, vai delineando o surgimento do fiat lux, mediante o qual emerge a "verdade invariável". De tal sorte, todos os que antecede-, " 'ram Marx e até ele próprio, nos passos iniciais do itinerário, só conteriam germes fecundos, na medida em que estes são lidos como antecipações precárias da "verdade", ainda mal enquadrada pelo seu emissor "imaturo". Da mesma forma, os pensadores atuais só seriam "válidos", enquanto fiéis seguidores, não "corrompidos" pelo "desvio" ou "revisão" (118 A), e, sim, apenas suplementando e adaptando o núcleo perene, dentro de suas linhas mestras, havidas como capazes de absorver qualquer alteração do horizonte histórico. O progresso deveria ser, em tal perspectiva, sempre "marxista", e não cederia nenhuma concepção superadora, mesmo que esta se articulasse smAufliebiing, isto é, numa superação não-destrutiva, que, como já assinalei, incorpora, transmuda e reenquadra a tradição, para formar novos produtos intelectuais. Neste caso, a tradicional denúncia a Hegel, de haver detido a anteriormente assentada progressão da filosofia, no dealbar do próprio sistema, e até a progressão histórica, no advento de hegemonia germânica, vem a caber, muiatis mutandis, ao próprio marxismo. Este, brigando com os seus fundamentos, decretaria a própria perenidade e daria por findos os trâmites teóricos, para aguardar a consumação profética do socialismo (depois, forcado a vestir a ca-

115 - SÈVE, ob. cit., 99. 116«^ SEBE, ob. cit., 95. 117 -Ibidem, p. 534. 118 -Ver, a respeito, ROBERTO LYRAFÍLHO,//«maíiiifí!o.Dw/efíco, cit., III. USA-BLOCH.JÍar/JliaM, cit., p. 202.

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misa da força'dos Estados totalitários) (119), no "trânsito" para a sociedade perfeita, o comunismo, isto é, o termo do processo prefigurado nele mesmo como panorama terrestra dum paraíso. Neste último, aliás, de sen volve m-se, prospectivamente, estas cenas bucólicas, de evidente conteúdo mítico: "na sociedade comunista, ninguém fica encerrado num círculo exclusivo de atividades, cada um pode formar-se no ramo de sua escolha; é a sociedade que regula a produção geral e me permite fazer hoje isto e amanhã aquilo: caçar de de manha', pescar à tarde, criar animais à noite (sicf) e dedicar-rne à crítica após a refeição, a meu bei prazer e sem jamais tornar-me caçador, pescador, pastor ou crítico" ... (120). Aí, as "funções governamentais" se transformariam em "funções administrativas" (?), o Estado sumiria e o socialismo não chegaria ao comunismo senão para consumar uma "anarquia" (121), em que estranhamente as tais funções administrativas não seriam jurídicas e as "normas organizacionais" teriam não se sabe que natureza técnica ou ética. Gramsci mesmo ficou um tanto encabulado, diante desses devaneios e advertiu os companheiros de que não convinha assumir o risco duma descrição muito precisa da sociedade futura e "cientificamente prevista"; pois então seria inevitável a fantasia, consistindo em "criar imediatamente" um "sonho utópico" (122). Nada obstante e por ser fiel marxista, ele aposta na prefiguração idílica e chega a utilizá-la, paradoxal, antes que díaleticamente, para tentar conciliar o pressuposto do marxismo, de que não há verdades eternas, e a sobrevivência deste, que, não sendo eterno, tem de caducar, mas só entregaria os pontos... quando viesse a sociedade perfeita, segundo suas próprias previsões — isto é, caducaria sem caducar, antes se consumando; e, dando os trâmites por findos (aqui Gramsci entra na incoerência), cogitaria até de ceder passo a "numerosas concepções idealistas" (sicf). Estas, inclusive, bem poderiam tornar-se "verdade", após a passagem ao limite que conduz ao paraíso... (123). Eis um exemplo da rnixódia em que dá a autodefesa marxista, que, não querendo ceder nada de sua "verdade" absoluta, contra todas as "verdades"

119 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, cít., ROBERTO LYRA FILHO, Introdução ao Direito, In Direito & Avesso, n9 2 (1982), p. 4347. 120 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1063. 121 -ÍAAKX,apud Pages..., cit., M. RUBEL.org., II, p. 243 ("Pretensas Cisões", texto marxiano de 1872). 122 -GRAMSCI, Surle Texte, Paris, Éditions Sociales, 1977, p. 275. 123-ftiWem, p. 277-278.

alheias, fica entre a cruz das verdades relativas e o pelourinho dum "absoluto" meio esfarrapado. Mas é claro que as periodizações, no sentido que chamei preconceito da reía ascendente, em direção ao fiai lux marxiano, nada têm a ver com um pensamento livre, que não é marxista, nem antimarxista, porém simplesmente "não marxista, embora — como eu ~ nos sintamos dentro de uma tradição de que Marx constitui umabalisa fundamental" (124). Deste ponto de vista, Marx tanto pode estar mais certo e fecundo neste ou naquele período, independentemente das datas "evolutivas", já que a validade ou invalidade das teses não é questão de cronologia (125). Veja-se o caso de Schelling, entre outros. Ademais, se quisermos, então, apreender o fio da meada, no pensamento marxiano, sem o parti pris de julgar as fases sucessivas como excludentes das (e incompatíveis com) as anteriores (no empenho de destacar um coroamento que seria, para os marxistas, a lux que cincunfulsit de caelo (126) marxiano), a organização dos textos e a leitura da obra estará mais atenta ao movimento geral da pesquisa e reflexão de Marx, do que a um suposto es-' guicho, sobre os escombros de todo antecedente, de algo absolutamente original e inteiramente novo: aquela "verdade" antóctone, que nasce da própria genialidade intrínseca e insuperável, como pai e mãe de si mesma (126 A). Note-se que, procedendo livremente, no diálogo com Marx, estou mais próximo dele... que os marxismos, de vez que, não só pelos seus fundamentos filosóficos e protestos continuados (127), mas pelo próprio roteiro do trabalho intelectual marxiano, ele vai fazendo triagens críticas, e não arquivamento de um monte de erros, só erros, precedentes, nos seus antecessores filosóficos e científicos. Basta ver por exemplo, corno dirige a "crítica da economia política" — onde simultaneamente rejeita, em parte, e, em parte,

124 -MANUEL ATffiNZA, Marx y los Derechos Humanos, Madrid, Mezquita, 1983, p. 280. 125 - MÁRILENA CHAUf, In Folhetim da Folha de São Paulo, As Novas Alternativas da Política, 10/10/82, p. 8. 126 - ATOSDOS APÓSTOLOS, IX, 3, 8-9. 126A —Para devolver Marx à sua posição na continuidade substancial e rupturas incidentes da tradição filosófica, ver as sugestões de HENRIQUE CLÁUDIO DE LIMA VAZ, Por que Ler Hege! Hoje? (Belo Horizonte, Boletim da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos— SEAF, nP l, 1982, p. 61-76) e, do mesmo autor — a quern presto aqui mais uma vez, a homenagem do meu infinito respeito e adrnkação - Sobre as Fontes Filosóficas do Pensamento de Karl Marx {Belo Horizonte, Boletim da Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos - SEAF - n? 2,1982, p. 5-15). 127 -Ver notas9,10,11. 33

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aproveita as concepções anteriores (128) — e o tratamento de Hegel — em relação, inclusive, à dialética; pois, no instante mesmo em que afirma a sua concepção como "reverso'da hegeliana", Marx não esquece de acentuar, que é discípulo do grande idealista, que, neste, a seu ver, as "formas gerais do desenvolvimento", na dialética, já podem ser encontradas, "em toda sua amplitude"'^ — mais — que elas estão afirmadas, ali, "com toda consciência" (129), e não como acerto casual. Os marxistas, depois de investirem a obra marxíana na função de texto sagrado e cindirem o acervo, arbitrariamente, nos dois blocos, da mocidade e da maturidade, da "filosofia" e da "ciência" acabada e perfeita, distribuem-se em trás correntes hermenêuticas para a polémica estéril sobre o instante exato em que ocorre o parto sublime: uns detêm-se na primeira fase, regendo o que se segue à luz da genética e das contorsões da gestação; outros Operam numa espécie de remanejamento retroatfvo, pondo os antecedentes em foco à luz dos consequentes, de tal sorte que o jovem Marx desprezado só se valoriza, na medida em que se apresenta, ele próprio, como um garoto confuso e nada obstante, portando raios do sol, ainda invisível aos seus olhos cegos. Uma.terceira corrente, mais radical, nega, tanto o primeiro Marx, como prospecto do segundo, quanto o segundo, como critério de separação do joio e do trigo existentes no primeiro: estabelece-se, então, um segundo Marx, de súbita e espontânea geração, onde reluz o diamante eterno sobre o eixo imprestável de tudo e de todos os que antecederam, inclusive o seu próprio e prévio "divagar" de adolescente abobalhado (129 A). Sobre isto, acumulam-se várias distorções, também de três modelos: a dos que se babam diante dos traços liberais, para neutralizar o crescimento socialista e dão ao primeiro Marx o status de rapaz genial, degenerado em velho desencaminhado (redução burguesa à Gúrvitch) (129 B); a dos que forcam a linha do crescimento socialista, como pura e simples negação dos traços liberais, para fazer do velho Marx o patrono do socialismo autoritário (re-

.128 - Por exemplo, MARX, Oeuvres, II, p. 7 ss e passim, no tratamento dado a Ricardo. 129 - MARX-ENGELS, Obras Escolhidas, cit., II, p. 15-16. 129 A — Note-se que vai, neste juízo, uma arrogância do medidor, que, antes de tudo, supõe-se, a si mesmo, como firmemente instalado num saber e critério absolutos, para dar cascudos no menino Marx, em nome do que tal juízo soberbo considera sua posterior transfiguração e perfeição. E, afinal, a pretexto de ortodoxia, fica "revogado" o Velho Testamento. 129B-GEORGES GURVITCH, La Sociologie du feune Marx, in Cahiers Internationaux de Sociologie, Paris, Seuil, vol. EV (1948), p. 347.

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duçáb stalinista e desvio das imprudências leninianas (130), pela entronização do que Blpch denominou, acerta dam ente, de coníradictio in adiecto) (3 31); e a dos.que_saltam para cá e para lá, tomando, ora o velho, ora o jovem Marx, para "citá-lo, aos pedaços, como abonaçâò dum luciluzir oportunista, no píngue-pongue de ocasião (que caracteriza, por exemplo, a colcha de retalhos denominada eurocomunismo) (132). É possível ler Marx de várias formas: todo o autor genial e criativo é multifacetado e se presta a manobras que tomam isto e largam aquilo, segundo as preferências, predeterminações e preconceitos. Há, sempre, cá e lá, uns 'textos ou frases isoladas, que arrimam esta ou aquela leitura. Mas o que rne interessa é outra coisa: e' o sentido geral, é a curva marxiana. Toda disposição em linha reta é tanto mais arbitrária, quanto mais forceje para dar "coerência" ao seu autor, expungindo contradições fecundantes_.e rompendo a continuidade do itinerário. Uma lição de pensamento não é uma colagem de instantâneos, mas um filme, cujo enredo reintroduz personagens e ambientes, sob focos diversos e em diferentes etapas da evolução, que só se delem coma morte do pensador,' para aquela sobrevida conosco, permitindo repensar o todo, remontara película, criar sequências, substituir angulações — em suma, tratar o legado, não como capital a ser diluído nas UPCs da caderneta de poupança dogmática, pTítefrí reinvestido, para que dinamize outras empresas e gere um desenvolvimento real, no intuito da melhor partilha. Esta metáfora "capitalista" não deve ser tomada, é claro, literalmente, e sim como referência a um património democrático, popular e socializado, cujos frutos se destinam à prosperidade e bem estar de todos; e, de qualquer forma, não me refiro a operações de open mwket e, sim, á elementos gestionários e intelectuais, da cultura socialista, com base libertadora e projeção doutrinária, segundo a práxis mais avançada e continua. Nesta, unem-se a massa e seu número, em solidariedade orgânica, iluminada pela ciência engajada e a filosofia fundante, englobante e polarizada pelas metas históricas do progresso efetivo (133), 130 - ROBERTO LYRA FILHO, Direito do Capital e Direito do Trabalho, cit.; ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo DMético, cit., IIMV; MARILENA CHAUl', Cultura e Democracia, cit., p. 132-133. 131 -ERNST BLOCH, m ER1CH FROMM, org-, Humanismo Socialista, Lisboa, Edições 70-, 1976, p. 232; MARILENA CHAUl', Cultura e Democracia, cit., p. 131 ss. 132--MARILENA CHAUl", Cultura e Democracia, cit., p. 180;DIVERSOS, Que és el Compromisso Histórico? M. LOIZU org., Barcelona, Avance, 1976; SANTIAGO CARRILLO, Eurocomunismo e Estado, São Paulo, Difel, 1978. 133-MARX.P^ei..., cit., M. RUBEL, org., l, p.77;II,p.62;MAJOÍ eí alii, Lettresà Kugelmann, cit., p. 82; MARX-ENGELS, Lettres sur lês Sciences de Ia Nature, cit., p. 96.

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Nunca houve um Marx, feito bloco cie mármore, nem dois, com o primeiro a "preparar" o segundo e, sim, um só homem, que atravessa, de uma ponta a outra, a existência, buscando a verdade, anotando intuições, desenvolvendo ideias, em giros que compõem a sua própria espiral ascendente. Por isto mesmo,.os temas, as teses vêm e voltam, sob diversas iluminações e em formas contraditórias, mas não incompatíveis — se retomarmos o fio da meada, para tentar mostrar como urnas reenquadram as outras e, mesmo quando, eventualmente, assumem a parte como todo, não se inutilizam, enquanto pcn-te, esclarecida em caminho. Por isto mesmo, não cabe paralisar Marx, numa ou noutra etapa, nem ceder ao preconceito de que, necessariamente, a sucessão cronológica das imagens inutiliza o que ficou estabelecido (embora também parcialmente). Noutras palavras, não cabe "recuperar o Marx 'autêntico' — não estamos diante de Bonifácio VT1T, proclamando a bula Unam Sactam, uma só fé, um só senhor, um só batismo. Também não se trata de recuperar Marx, preenchendo o que falta em seu pensamento — se o fizéssemos, perderíamos o essencial, isto é, Marx pensando, abrindo para nós um campo para pensarmos a partir dele e mesmo contra ele" (134). O roteiro vivo, móvel da reflexão marxiana permanece como "possibilidade aberta" duma retomada do itinerário, onde ele projetou luzes perenes, mas não exaurientes; um bastão, para a corrida de revezamento, e não um poço de sabedoria estagnada. Quando abordamos Marx, do ponto de vista dialético, o que emerge é a compenetraçâb.dos contrários, de tal sorte que — por exemplo — a concepção do homem como, essencialmente, liberdade (concebida enquanto potencial de libertação, na práxis, em que cumpre dinamizá-la) (135) não é de nenhum modo incompatível com a visão do "ser humano" (136) e a sua existência histórica então concebidos, não como cabide das relações sociais, porém como lugar da conscientização (137) dessas relações, que o condicionam, sem acachapar-se em "determinações" mecânicas (138). Assim é que se po134 - MARILENA CHAUí; Otltura e Democracia, cit., p. 219. 135 - 3a tese sobre Feuerbach. 136 — E, não, "essência" do Homem (SCHAFF,/lu Sufet, cit., p. 157 ss)),para esclarecer a 6a tese sobre Feuerbach. 137 -MARX, Oeuvres, cit., III, p. 1056: "consciência é conscientização" (ROBERTO LURA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 114; ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, nota 372). 138 - A colocação dialética do problema da liberdade perante as "determinações", que alguns marxistas (ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., nota 370), atribuem a... Engels, já estava devidamente posta em Hegel: "o homem sabe o que o determinam: eis af uma independência" (PhSosophie der Weltgegechichte, introdução), com o que as "determinações" não podem ser concebidas, positivisticamente, enquanto deter-

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deriam quebrar os elos da cadeia de influxos e modelagens, que nos enformam, para nos recriarmos, livres, em outras formas, superadoras. Nessa tarefa coletíva (139), o Homem se desideologiza gradualmente, buscando o processo de desalienação (140) que componha o fragmento possível, a cada instante, do Homem Total. Este processo tem (e não poderia deixar de ter) implicações jurídicas e políticas (141) isto é, a compeneíração dos contrários, também nesse terreno, dissolve, expressa ou implicitamente, as aparentes antinomias marxianas, quer entre etapas (os supostos Marx I e Marx II incompossíveis), quer dentro da mesma etapa (quando os parlogismos textuais dificultam, às vezes, a possimínismo, e, sim, à guisa de condicionamentos — isto 6, "determinações" vencíveis pelo saber, que emerge no horizonte histórico, segundo o favorecimento de conjunturas propícias e influxos da práxis (ROBERTO LYRA FILHO, O QueéDireito, cit., p. 27;ROBERTO LYRA VILHQ, Humanismo Dialético, cit., nota 91). 139 -ROBERTO LYRA FILHO, O Que é Direito, cit., p. 16-32. 140 —Também o processo de alienação pode ser pensado, a partir duma dialética em que se compenetram as visões antitéticas, atribuídas a Hegel e Marx I contra Marx II.-O fato é que Althusser foi obrigado a reconhecer que, n'0 Capital mesmo, a ideia de alienação desempenha uma função muito mais do que, simplesmente, "metafórica". É um traço real e cardeal do processo histórico. Neste contexto, a contribuição hegeliana, da alienação como um processo descaracterizador do homem e a procura de um "regresso" a si mesmo (que Marx I encampou, no enquadramento mais lato, como projeção dos processos sociais de dominação, transfundida na trama económica o sistema de pressões — MARX, Oeuvres, cit., II. 79: "processo de exteriorização no qual o homem perdeu sua essência no trabalho" - SÈVE, ob. cit., p. 662), não é, de nenhum modo, incompatível com o posicionamento, aparentemente antinômico, da alienação, noutro angulo, para ser observada como "processo histórico objetivo, mediante o qual, na sociedade mercantil e especialmente o capitalismo, as forças produtivas e as relações sociais tornam-se, à base da divisão do trabalho e da sociedade em classes, forças exteriores que dominam e esmagam os homens" (SÈVE, ob. cit., p. 662). Para que os dois ângulos da alienação se cancelassem reciprocamente, ao invés de interagirem dial et içam ente, -seria preciso que se suprimisse o ângulo interior, dando ao aspecto externo uma potência de "aparelho" sern chofer, nem passageiros (eventualmente rebeldes), isto é, um "processo sem sujeito" (ver aqui, a nota 48 e texto correspondente). O lado objetivo não exclui o subjetivo, assim como o processo histórico e global não elimina o intercâmbio de sujeitos individuais e coletívos nele imersos e. o redirecionamento dos episódios ali insertos. O que sustenta o núcleo da obra marxiana é a verificação de que "a consciência sozinha não tem estritamente nenhuma importância", mas por outro lado, o processo global mesmo se compõe de "três elementos: força produtiva, posiçãosocíal e consciência" (MARX, Oeuvres. cit., II, p, 1063);e, em síntese, que, na dialética histórica, "as circunstâncias fazem os homens, tanto quanto estes produzem as circunstâncias" (MARX, Oeuvres, cit., II, p. 1072). 141 -Ver ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, cit., notas 146, 165-170, 175, 177, 180-184, 194-197, 202-204, 245,257-259,262,264,270-275,277-279,282, 284, 286, 289-292, 300, 310, 312, 316, 327, 355-356 etexto correspondente.

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bilidade de síntese dialética — exigindo que repensemos o Todo com Marx, ao invés de procurar refleti-lo em um espelho parado e acabar por distorcê-lo, quer nas imagens falsas, quer no jogo de paralogismos hermenêuticos, movimentados por séries de preconceitos). Essa atitude ficará melhor determinada, adiante, no exame das dificuldades metodológicas da análise das relações ambíguas entre Marx e o Direito. Mas desde logo queria apontar o alcance jurídico da compenetração dos contrários, dentro da obra de Marx e na interpretação criativa que desta se faça. Quando tomamos a afirmação do Direito, naquele tom iurisnaturalista, que tanto se acentua, na chamada primeira fase — por exemplo, no texto famoso sobre a liberdade de imprensa, de 1842 e que consta do elenco de artigos publicados na Gazeta Renana (142) é preciso não esquecer que esta produção convive, no mesmo período marxiano, com a destrutiva crítica da declaração burguesa dos Direitos Humanos, que vai fluir nos artigos, não menos famosos, sobre A. Questão Judaica, de 1843 (143). Mas, ao apresentar-se, asstm, um dinamismo inquieto, na busca de~ padrões jurídicos superadores e frustrações sociais no contexto, logo se evidencia uma afinidade, posta em relevo na Critica do Direito Político Hegelianó (144): o caminho entrecrudo de uma afirmação do princípio de liberdade e suas contradições históricas no direito dito positivo ou nas construções ideológicas, onde ele supostamente se "sintetiza" como "Justiça" realizada e "Direito" constituído. Por outro lado, é inteiramente arbitrário e falso predeterminar o roteiro para o Marx II (artificialmente considerado um compartimento estanque ou, pelo menos, escoimado, de remanescentes "jurídicos" e de luta pela Justiça, não ideal e ideológica, mas efetiva e social), para dizer que, na pesquisa e reflexão maduras, Marx negou o "mito" da Justiça e a dignidade política do Direito, então vistos como normas da classe dominante, seus mores, cristalização estatal em leis. Este ingrediente, de fato, aparece — e já o assinalei — porém a alergia às palavras Direito,-Justiça, Moial — como também já fiz ver — não exclui a efetivação daquela outra Justiça (autêntica), daquele outro Direito (sonegado), em relação ao qual a dialética do próprio ordenamento estatal, com as suas contradições, enseja a obtenção de conquistas parciais, como a limitação da jornada do trabalho. Não desaparece, no Marx II, o Direito (em maiúscula) dos espoliados e oprimidos, segundo o rumo do processo e progresso históricos e exibindo-se em documentos deci142 - MARX, Oeuvres, cit., III, p. 138 ss. 143 —MARX, A Questão Judaica, Edhora Moraes, sern local, nem data, p. 39 ss. 144 — MARX, Critique du Droil folllique Hêgélien, cit.

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sivos (ambiguamente, na Q-ftica ao Pi-ograma de Gotha, nitidamente e sem ambages, nos Estatuto s da 19 f n ter nacional) (145). Isto, sem dúvida, acompanha os trâmites dum pensamento político3 no qual tampouco se transmudam os aspectos libertadores do moço, em dogmas ditatoriais do "cientista maduro". A verdade é que Marx não apoia, nas observações finais de seu roteiro da segunda etapa, o caminho da ditadura estatal para o comunismo (146); acentua os produtos válidos duma "evolução revolucionária"; completa e supera a crítica ao sufrágio universal, como "engodo", a fim de preconizá-lo, como "instrumento de libertação" (l46 A); chega mesmo a minimizar a ditadura (não estatal) do proletariado, no estilo da Comuna de Paris, de toda forma não mais considerada uma etapa necessária (146 B) da transformação social; chega a preludiar uma conversão ao socialismo democrático e, se não o sugere, tão claramente como Engels, no famoso prefácio às Lutas de Classe na França (147), pelo menos fornece pontos de apoio que podem e devem ser aproveitados pela construção jurídica e política pós-marxiana. Diante deste panorama, é preciso rejeitar, decididamente, o quadro puramente cronológico, para mostrar as sincronlas (ligadas a incidentes da práxis e teorização sempre conjuntural), como elementos dum edifício diacrônico. Marx, em cada tempo e etapa e no conjunto de sua obra-itinerário, aparece com todas as preocupações, muito atuantes, inclusive as do Direito e da Justiça, que apenas se redispõem, nos diversos instantes, em arranjos também diversos, segundo o estímulo da situação e as relações mais ou menos apressadas ou mais ou menos ponderadas, que tal estímulo suscita neste jogo cambiante. Ora se obliteram, parcialmente, certas aquisições, logo retomadas; ora se destacam, parcialmente, aquelas mesmas conquistas —jamais vistas, definitivamente, como coisas vencidas e dissolvidas. Para um verdadeiro estudo dialético, portanto, no campo das relações entre Marx e o Direito, é preciso subordinar a simples cronologia aos padrões de afirmação, negação e negação da negação do núcleo jurídico permanente, pondo as fases, etapas ou períodos nunca estanques, dentro da perspectiva temática dialetizada. Só assim é dado corrigir o simplísmo grosseiro e erróneo, 145 - A propósito ROBERTO LYRA FILHO, Humanismo Dialético, notas 420426 e texto correspondente. 146-ROBERTO LYRA FILHO, Introdução ao Direito, cit., p. 43-47; ROBERTO LYRA FILHO, .Direito ao Capital e Direito do Trabalho, cií.,passim. 146 A-MARX, .filhes..., cit., II, p. 90. 146B-MARX,.P
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