KATZ. Jonathan Ned. A invenção da heterossexualidade

June 20, 2017 | Autor: Fabrício Vilela | Categoria: Teoría Queer, Gênero E Sexualidade
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Em agosto de 1869, um jornal de medicina alemão publicou um artigo do Dr. K. F. O. Westphal que deu nome pela primeira vez a uma emoção - Die contriire Sexualempfindug (instinto sexual contrário ).,Aquela emoção era contrária ao instinto sexual adequado e procriativo de homens e mulheres/" O instinto sexual contrário de Westphal foi o primeiro e um dos mais conhecidos participantes da disputa do final do século XIX pelo nome das perversões. Em 1871, uma crítica

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ao ensaio

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Em 1878, um artigo em uma revista de medicina italiana, escrito por um certo Dr. Tamassia, usou pela primeira vez a expressão inversione sessuale. Traduzido para o inglês, sexual inversion tornou-se um segundo participante ilustre da disputa do final do século pelo nome das perversões.?' Em 1897, Havelock Ellis, um estudioso da medicina, usou pela primeira vez sexual inversion em um livro inglês publicado. Um reformador sexual liberal, Ellis tentou usar termos e conceitos médicos para a causa da expressão sexualf? Antes da invenção da heterossexualidade, o termo instinto sexual contrário pressupunha a existência de um instinto sexual não contrário, e o termo inversão sexual, um desejo sexual não inver-

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anônima

Journal of Mental Science, de Londres, traduziu pela primeira vez o instinto sexual contrário alemão para o inglês como inverted sexual proclivuy,' Esse impulso invertia a tendência sexual adequada e

Em português significa tendência sexual invertida. (N.T.)

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tido. Desde o início dessa abordagem médica a sexualidade contrária e invertida foi considerada um problema, e o instinto sexual aceito como axioma. Isso deu início a uma tradição de um século na qual o anormal e homossexual foram apresentados como um enigma e o normal e heterossexual presumidos. Nas últimas décadas do século XIX, o novo termo heterossexual ganhou o mundo, às vezes ligado à perversão não procriativa e em outras ocasiões ao erotismo normal e procriativo de sexo diferente. A teoria de Sigmund Freud ajudou a fixar, tornar público e normalizar o novo ideal heterossexual.

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" CRIANDO A MISTICA

HETEROSSEXUAL Os Conceitos Seminais de Freud

Ao passarmos da formulação da heterossexualidade de Krafft-Ebing para o seu conceito clássico de Freud, avançamos de uma teoria sexual relativamente simples' e ultrapassada para uma das mais complexas e ainda preponderante. As obras de Freud fornecem o princípio heterossexual com alguns de seus textos mais desenvolvidos intelectualmente e ambíguos. Porque Freud atua como o principal criador moderno do modelo médico a histórico dá heterossexualidade e como um teórico que subverte a construção social da heterossexualidade - sua invenção histórica. Suas teorias constituem o mais complexo esteio da norma heterossexual e instrumentos importantes para contestar o domínio heterossexual. Todos os objetos de estudo de Freud - o homem e a mulher, o adulto e a criança, o heterossexual e o homossexualprocuram a satisfação do desejo erótico. Quando a sua busca pelo prazer entra em conflito com as regras da sociedade, a pressão para que se adaptem a elas produz fagulhas. Por exemplo, Dora (na verdade Ida Bauer, o tema de uma das histórias de casos mais fascinantes de Freud) habita em um mundo eletrizado por desejos conflitantes - dela e por ela.' Dora, de dezoito anos, na descrição extasiada de Freud - na flor da idade - uma jovem bonita e inteligente - é atormentada por seus

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próprios desejos libidinosos, conscientes e inconscientes.2 A ânsia de Dora e de outros por gratificação sensual _ e a dúvida básica a respeito dessa ânsia +-Ievam a intimidades profundas e polêmicas. A história detalhada de Dora contada por Freud ilustra o papel ativo dele como um construtor da norma heterossexual, deixando claro o efeito sobre uma jovem mulher da suposição heterosseXual. Não é uma grande surpresa o fato de Freud ter sido culpado de tendência heterossexual em seu trabalho terapêutico com Dora. Mas o seu papel na criação dessa suposição heterossexual é menos conhecido. A história de Dora mostra a visão que Freud tinha da vida como um melodrama com um elenco brilhante formado por pessoas livres de conflitos que buscavam o prazer: Freud diz que Dora se sente atraída inconscientemente por seu . pai, um sentimento heteroerótico refletido pela ligação do irmão de Dora com a sua mãe.' Pelo amor do pai Dora compete com Frau K, com quem ele está tendo o que ela de forma ciumenta chama de um caso amoroso comum.'

• Dora, salienta Freud, também se sente atraída pelo marido de Frau K, Herr K, descrito pelo admirador Freud como ainda bastante jovem e cativante. Esse Herr K se insinuara sexualmente duas vezes para Dora, a primeira quando ela tinha treze anos." Pela jovem e bela Frau K Dora nutre sentimentos homoeróticos. Elas têm uma grande intimidade, freqüentemente dividindo um quarto e uma cama e falando sobre sexo, Herr K e a possibilidade de divórcio dos KS.6 " ',

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Além disso, os fortes sentimentos positivos e negativos de Dora pelo próprio Freud são analisados pelo primeiro psicanalista do mundo, embora os sentimentos complexos de Freud por Dora não tivessem sido alvo de estudo.'? Freud interpreta os sintomas que Dora apresenta - entre eles tosse, aperto na garganta, incapacidade de falar, desmaios e uma ameaça irresoluta de suicídio - como sinais de conflito psicológico causado por seus desejos eróticos complexos e inconscientes." Freud se dispõe a conseguir uma trégua psíquica da aflição de Dora e de seus outros pacientes com as suas paixões conflitantes e libidinosas. Passando de Krafft-Ebing e seu instinto sexual reprodutivo para Freud e sua libido, percebemos a mudança histórica da ética de procriação do final do período vitoriano para o princípio de prazer moderno.P O prazer sexual é mais valorizado no universo da classe média de Freud e a reprodução menos valorizada - a taxa de nascimentos decrescente indica uma rejeição histórica da antiga ética de procriação. Freud afirma que no final do século XIX a obrigação de procriar já deixara em grande parte de influenciar as práticas privadas da classe média: Se fizermos um estudo amplo sobre a vida sexual do nosso tempo e em particular das classes que mantêm a civilização humana, seremos tentadosa declarar que é apenas com relutância que a maioria daqueles que vivem hoje obedece à ordem de multiplicar-se ... \3

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Ajovem governanta dos filhos dos Ks diz a Dora que Herr K insinuou-se sexualmente para ela e depois de ter sido bem-sucedido a rejeitou, despertando sua ira - e a de Dora.? A astuta Dora percebe que a sua própria governanta _ que secretamente lê obras avançadas sobre sexo e as mostra para Dora, prevenindo-a de que todos os homens são frívolos e desprezíveisestá apaixonada por seu pai." Dora também gostara muito da irmã de seu pai, a quem adotara como modelo. Ela havia morrido depois de uma vida destruí da por um casamento infeliz.9

Como um defensor secreto dessas classes civilizadas que não desejam multiplicar-se, o cientista Freud promove não uma ética, mas um instinto ou impulso sexual que não tem como o seu principal objetivo a reprodução, mas a busca de tiposparticulares de prazerl" O objetivo do instinto sexual de Freud é a satisfação, não a reprodução. Ele salienta que o enfoque na fertilidade é uma manifestação posterior e secundária na longa procura da vida pela felicidade." O prazer, enfatiza Freud, é o objetivo principal de nosso aparato mental - uma máquina cuja missão é o prazer," Freud atribui o prazer, uma finalidade humana, a corpo, mente e desejo. Sua mente é a de um moralista, embora ele se apresente ao

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mundo como um observador que não julga. Como um moralista, Freud oferece descrições do trabalho da mente que com freqüência incorrem em julgamentos normativos sobre como essa mente deveria trabalhar, Em muitos textos Freud sugere que os impulsos perversos são aqueles que provocam sentimentos desagradáveis _ não os que' impedem a procriação.'? O instinto sexual de Freud rompe com os remanescentes do padrão reprodutivo de Krafft-Ebing. A essência das perversões, explica Freud, é unicamente a exclusividade' com que esses desvios são praticados e como um resultado dos quais o ato sexual com o objetivo da reprodução é posto de lado (destaque meu).18 Segundo esse padrão de exclusividade, os atos devem desviar-se completamente da reprodução antes de se tomarem perversos - um padrão reprodutivo realmente generoso. 1 O prazer é colocado por Freud como a essência da intimidade humana, do casamento, da vida familiar e até mesmo da civilização, embora os prazeres civilizados estejam sujeitos às restrições da sociedade. Os termos prazer, satisfação e gratificação aparecem em, todos os seus textos, significando o seu compromisso com a busca secular da felicidade neste mundo - sem dúvida qualificados por sua crença na necessidade da sublimação. A centralidade do erótico é presumida por Freud. Desde a sua época, .il importância do prazer tomou-se um axioma ético do Ocidente modemo - que, como eu direi mais tarde, poderíamos nos esforçar mais para honrar na prática. Como um primeiro autor da proposta de modernização sexual, Freud' rejeita a antiga ética vitoriana na qual o mal carnal se opunha ao béin espiritual _ a odiosa distinção corpo/alma. A satisfação física e psicológica, erótica e de outros tipos - e os impediméntos a essa satisfação _ são a preocupação consciente de Freud. Freud cria um novo e amplo conceito do desejo sexual como libido, instinto, ou impulso - o desejo de satisfação psíquica sentido na carne. Esse desejo de prazer, sugere Freud em talvez sua idéia mais revolucionária, não tem qualquer ligação inata com a procriação ou qualquer.ate particular - e nem mesmo com um determinado objeto ou sexo.

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Freud propõe de forma inovadora a independência original e completa do desejo e do objeto erótico. O único objetivo do instinto sexual é a sua própria satisfação. O instinto erótico deseja inatamente não a procriação ou o ato sexual, e tampouco o homem ou a mulher, mas apenas a satisfação. Para a ávida libido de Freud todo o corpo se toma uma possível área de prazer. Freud tem um papel importante na .transformação do sexo de um dever reprodutivo em um ato prazeroso. Contudo, Freud não é um defensor incondicional do prazer.ê" Ele fala criticamente sobre os escravos do hedonismo+ O teórico do sexo que tomou uma repressão problemática e uma sublimação difícil termos comuns, de modo algum defendia o fim de todas as inibições eróticas. Ele tipicamente recomendava o controle social e a canalização da libido primitiva, natural e livre. Dadas a reputação de Freud e a sua real influência como um liberalista sexual, é surpreendente vê-Io às vezes discutindo sobre as virtudes positivas da vergonha e da repulsaP Freud critica clarª"ment~ as repressões excessivas e desnecessárias que em nossa civilização ocidental tão comumente causam profundo sofrimento psíquico: A escolha de um objeto é restrita ao sexo oposto e quase todas as satisfações extragenitaís são proibidas como perversões. A exigência ... de que haja um único tipo de vida sexual para todos não leva em conta as diferenças, inatas ou adquiridas, na sexualidade dos seres humanos; separa várias delas do prazer sexual e portanto toma-se a fonte de grandes injustiças ... o próprio amor genital heterossexual, que continua a ser aceito, está sujeito a outras limitações, na forma da insistência na legitimidade [o casamento legal] e na monogamia. A civilização moderna deixa claro ... que não aprecia a sexualidade como uma fonte de prazer por si só e está preparada apenas para tolerá-Ia porque até agora não há um substituto para ela como um meio de propagação da espécie humana.P

Freud previne apenas contra as repressões extremas e as sublimações desvirtuadas que causam grandes conflitos." Ele defende a troca de uma repressão inconsciente por um controle consciente: a consciência. A psicanálise', diz ele em certo ponto,

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substitui o processo de repressão, que é automático e excessivo, por um controle moderado e intencional. por parte das maiores forças da

mente."

o endosso de Freud do princípio do prazer é limitado por sua aprovação de uma ética de conformidade com as normas dominantes, da sociedade. Isso é claramente ilustrado pelos conselhos que ele dá aDora. PRAZERES PARTICULARES,

SILÊNCIO

PÚBLICO

A centralidade do erotismo de homens e mulheres uns em relação aos outros foi presumida por Freud e a maioria dos outros modeladores médicos da heterossexualidade. Freud não foi de modo algum o único defensor do heteroerótico. Mas falando publicamente em defesa dos relacionamentos sexuais satisfatórios de homens e mulheres ele se viu lutando contra os defensores de um silêncio tradicional. No despontar da era heterossexual, Freud e os outros promotores de um novo e público debate heterossexual foram veementemente condenados pelos defensores de uma reserva respeitável. Não foi apenas o debate homossexual que foi censurado. Afamosa cura através da conversa de Freud, as suas publicações e a sua doutrina visaram quebrar um silêncio geral. No mundo de Dora, o heteroerótico e o homoerótico não eram discutidos com freqüência em público. Os problemas de Dora surgiram em parte de sua incapacidade de falar sobre todo aquele erotismo perturbador no ar ao seu redor. Apenas na terapia de Dora com Freud ~~ e no relatório médico de Freud sobre Dora - o eros . começou a ser discutido aberta e até mesmo entusiasticamente. Freud, com a ajuda de Dora e de seus outros pacientes, ajudou a criar um dos primeiros fóruns científicos semipúblicos (a sessão de psicanálise) e um dos primeiros gêneros literários semipúblicos respeitáveis (o relatório psicanalítico) nos quais a conversa sobre sexo era constantemente necessária. A resistência ao debate heterossexual público é bem documentada na história de Dora. Quando aquela jovem começou a falar abertamente, acusando o seu pai de um caso amoroso com Frau K, e Herr K de urna tentativa de sedução, ambos a acusaram de estar



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mentindo. Ela é entregue a Freud por seu pai, que pede ao médico que a traga à razão - isto é, que a faça calar a boca. Herr K a acusa de uma excitação excessiva devido à leitura de livros eróticos e discussões impróprias sobre sexo. Aquelas eram acusações sérias contra uma jovem de uma classe respeitável. A dificuldade em falar abertamente sobre o sexo - mesmo o hetero - é documentada em uma passagem confusa e reveladora em que Freud analisa um sonho de Dora. Freud afirma que o sonho revela uma fantasia de Dora de que o seu pai é impotente e outra sobre a sua atividade heterossexual particular com Frau K Freud pergunta a Dora como, se imagina que o seu pai é impotente, ele poderia ter um caso amoroso com Frau K Dora responde: Ela sabia muito bem ... que havia mais de um modo de obter satisfação sexual. Freud pergunta a Dora se ela se referia ao uso de outros órgãos além dos genitais para o ato sexual, e ela diz que sim. Freud diz a Dora que ela deve estar pensando precisamente naquelas partes do corpo que no seu caso estavam em um estado de irritação -sua garganta e boca. Dora a princípio nega fantasias r , orais-genitais. Mas Freud afirmà que mais tarde ela aceitou a sua interpretação e que, muito pouco tempo depois, sua tosse desapareceu. Freud diz a seus leitores que a jovem Dora imaginava Frau K fazendo sexo oral com o seu pai. A possibilidade de Dora fantasiar que o seu pai fazia sexo oral com Frau K não é considerada, e a cunilíngua nunca é claramente mencionada em nenhuma das obras publicadas de Freud (o prazer sexual das mulheres é subordinado ao dos homens). Freud começara perguntando a Dora que tipo de satisfação sexual o seu supostamente impotente pai poderia fornecer a Frau K Termina discutindo o tipo de sexo que ele fantasia que Frau K proporciona ao pai de Dora. Sua conversa sobre sexo causará ao leitor médico ... surpresa e horror, antecipa nervosamente Freud. Pênis em bocas eram temas fortes. A idéia de que uma garota inexperiente poderia ter conhecimento dessas práticas e ocupar a sua imaginação com elas pode provocar horror em seus leitores, reitera Freud." Defendendo-se, ele diz que a sua conversa sobre sexo com Dora apenas traduz

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em idéias conscientes o que já era conhecido no inconsciente.ã Ele afirma que o tratamento da histeria em particular exige conversas sobre a sexualidade. Freud adverte aos seus colegas médicos: Devemos aprender a falar sem indignação sobre o que chamamos de perversões 28 sexuais. A dificuldade em falar sem indignação é ilustrada pela própria referência de Freud a essa fantasia muito repulsiva e pervertida de sugar umpênis. 29 A necessidade terapêutica de falar sobre uma perversão sexual problemática foi para Freud um fundamento lógico para começar a falar publicamente sobre um novo e normal erotismo homem-mulher.

FREUD A RESPEITO

DA HETEROSSEXUALlDADE

Mas o que Freud diz explicitamente sobre a heterossexualidade? E por que isso importa? Por que deveríamos nos concentrar no uso de Freud do termo heterossexual quando o seu desenvolvimento da idéia e do ideal pareceriam mais importantes? Os comentários explícitos de Freud sobre a heterossexualidadef fornecem uma ótima pista para a história do discurso heterossexual.. E essa história fornece um insight da normalização do erotismo de sexo diferente à parte da reprodução. O primeiro uso publicado que Freud fez do termo heterossexual foi em 1905, em seu Three Essays on the Theory of Sexuality, Falando sobre as causas dos desvios sexuais, Freud menciona que osperigos do coito heterossexual (aparentemente, as doenças venéreas) podem resultar em uma fixação da honUJssexualidade.30 Freud emprega heterossexual aqui e em outros lugares sem explicação, sugerindo que o termo já era de uso bastante comum entre os médicos.ê' A grande rapidez com que essa palavra foi integrada ao discurso médico sugere que indicava uma idéia e um ideal cujo tempo chegara - uma norma que os médicos do sexo masculino estavam ansiosos por adotar. O uso inicial de heterossexual em uma discussão sobre a homossexualidade é uma prática típica de Freud que mais tarde tomou-se típica de outros. Os heterossexuais devem quase todas as menções explícitas e públicas à sua existência ao debate sobre os hornos-

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sexuais. Embora a categoria heterossexual tenha passado a significar o padrão dominante, permaneceu estranhamente dependente da categoria homossexual subordinada. O heterossexual e o homossexual apareceram em público pela primeira vez como gêmeos siameses, o primeiro bom, o segundo ruim, ligados por toda a vida em uma simbiose antagônica e inalterável. Na discussão de Freud, homossexual funciona como um termo assustador, e heterossexual é algo de que a pessoa se distanciou. A homossexualidade pode resultar dos perigos do coito heterossexual. No século XX a ameaça da homossexualidade foi freqüentemente usada pelos liberais como um motivo para a educação sexual e uma maior liberdade heterossexual.P Freud usa heterossexual para referir-se a uma emoção, a vários impulsos, instintos ou desejos eróticos e a um tipo de amor. Seu heterossexual também se refere a um tipo de atividade e pessoa. Esses usos tendem a fazer o sentimento, não o ato, definir o heterossexual. Isso contrasta com o antigo modelo reprodutivo que se concentrava nos atos. No uso moderno de Freud, o sentimento hetero define o ser hetero, se a pessoa praticar ou não atos heterossexuais. Freud promoveu a criação de uma identidade heterossexual. Esse médico também ajudou a formar a nossa crença na existência de algo unitário e monolítico com uma vida e um poder determinante próprios: a heterossexualidade.ê Os usos explícitos de Freud da palavra heterossexual ajudaram . a constituir um erotismo de sexo diferente como a norma dominante da sociedade moderna. Embora os seus usos da palavra heterossexual sejam reveladores, surpreendentemente não são muito freqüentes. O Concordance para os 24 volumes dos escritos completos de Freud indica que ele usa heteroerotismo, heterossexual, ou heterossexualidade 29 vezes. Em comparação, usa uma versão de homossexual 316 vezes.ê"

Como podemos explicar a relativa ausência da palavra heterossexual em textos da mais absoluta importância para a definição heterossexual? Freud introduziu discretamente a norma heterossexual, como a que todas as pessoas modernas presumem. Sob o feitiço desse silên-

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cio peculiar, a heterossexualidade tomou-se o fantasma dominante que assombrava esse e outros textos modernos sobre sexo. Durante a maior parte dos mais de 100 anos de norma heterossexual historicamente específica, um tabu verbal impediu um debate muito explícito sobre a heterossexualidade, tornando-a outra das paixões que não ousavam dizer o seu nome. " ; O tabu a respeito do debate sobre a heterossexualidade retardou o desenvolvimento de um discurso indagador sobre esse tema. Porque é difícil analisar criticamente o discurso heterossexual sem usar a palavra. Nomear abertamente a heterossexualidade, e falar longa e explicitamente sobre esse tema, tira-o da esfera daquilo que é tido como certo, sujeitando-o aos perigos da análise - e à possibilidade de crítica. Um ideal erótico de sexo diferente foi introduzido silenciosamente na consciência moderna, construído como o termo principal da ideologia sexual dominante, a norma que todos conhecemos sem refletir muito sobre ela. Se a quantidade das referências de Freud é uma indicação precisa, a homossexualidade pareceria ser muito mais interessante para ele do que a heterossexualidade." Aquelas referências distintas são uma indicação precisa de que Freud considerava o homossexual problemático e supunha o heterossexual. Essa suposição toma a heterossexualidade não-problemática. Ao mesmo tempo, o problema da homossexualidade foi uma expressão explícita de Freud e, posteriormente, um clichê daqueles seguidores que o tomaram popular."

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O trabalho implícito de Freud como um promotor da heterossexualidade, e o efeito deturpador disso, está claro em sua análise da reação de Dora ao primeiro avanço heterossexual de Herr K. Nessa ocasião, Herr K dera um jeito para que a sua mulher e Dora, então com 13 anos, fossem ao seu escritório - ironicamente, para assistir a uma procissão religiosa. Ele então persuadiu Frau K a ficar em casa, dispensou os seus funcionários e, segundo Freud nos diz, estava sozinho quando a garota chegou. Tendo premeditado o seu gesto, Herr K fechou as venezianas da janela, subitamente puxou a garota para si e a beijou. Dora sentiu uma profunda sensação de nojo, livrou-se do homem e correu para a porta da rua." \

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Falando com Freud sobre o' evento cinco anos depois, Dora diz que ainda pode sentir na parte superior de seu corpo a pressão do abraço de Herr K.38 Depois daquele beijo, Dora se recusou a participar de uma expedição na qual seria acompanhada pelos Ks, e evitou ficar a sós com Herr K. Mais tarde, a ambivalente Dora começou a ficar novamente a sós com Herr K durante passeios. Ela não contou a ninguém sobre o primeiro avanço de Herr K até contá-Io para Freud. Analisando a reação de Dora ao beijo, Freud garante a seus leitores: Aquela era certamente uma situação que provocaria uma clara excitação sexual em uma garota de 14 anos de quem nunca alguém se aproximara (Dora na verdade tinha 13 anos)." Como Dora não teve conscientemente uma excitação heteroerótica, sua reação foi totalmente histérica, afirma Freud. Uma ocasião para excitação sexual, salienta o médico, provocou sentimentos exclusivamente desagradáveis. Freud enfatiza a incapacidade de Dora de experimentar a sensação genital que uma garota sadia teria naquelas circunstâncias/" Discutindo a questão da doença psíquica de Dora, Freud inventa um cenário fantasioso para explicar a sua reação supostamente inadequada. Ele especula que quando Herr K beijou Dora ela sentiu o pênis dele ereto contra o seu corpo e isso lhe causou nojo. Houve um tempo, não muitos anos antes, em que a falta de reação erótica de uma mulher provava a sua pureza. Agora, a suposição heterossexual moderna de Freud tornava-a uma doença mental. Freud claramente afastou-se muito do ideal do século XIX da mulher como anjo do lar. A suposição freudiana da resposta heterossexual feminina endossa o desejo erótico feminino em geral apenas para depreciar uma reação particular de uma jovem. Ele ignora a exclusividade da situação emocionalmente complexa e assustadora enfrentada por uma jovem inexperiente sozinha com um homem mais velho. A tendência de Freud à resposta heterossexual também distorce a sua análise do segundo encontro de Dora com Herr K. Dois anos depois do seu primeiro avanço a garota, então com 15 anos, estava visitando os Ks em sua residência de verão. Dora lembra que ajovem governanta dos filhos dos Ks se comportava de um modo muito

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estranho com Herr K, nunca falando com ele e tratando-o como se não existisse." Um dia essa jovem governanta levou Dora para um canto e lhe contou que Herr K se insinuara sexualmente para ela em uma ocasião em que a sua esposa estava fora. Herr K implorava-lhe que

atendesse às suas súplicas, dizendo que nada recebia de sua esposa. contou a Dora que se entregara ao seu patrão, mas depois de algum tempo ele parara de se interessar por ela e desde então o odiava. Os pais da jovem governanta respeitável, informaA governanta

dos por sua filha da situação, tinham ordenado que deixasse imediatamente o seu emprego. Quando ela não conseguiu fazer isso, esperando uma renovação do interesse de Herr K, seus pais lhe disseram para nunca mais voltar para casar? Um dia ou dois depois de Dora ter ouvido essa história dramática, Herr K fez o seu segundo avanço, dizendo-lhe: Você sabe que eu nada recebo de minha esposa. Logo que aquelas palavras saíram de sua boca, Dora o esbofeteou e saiu correndo= Herr K lhe implorou para não mencionar o incidente= Contudo, daquela vez Dora contou a sua mãe que Herr K tivera

a audácia de fazer-lhe uma proposta, e sua mãe obsequiosamente contou a seu marido. Na próxima ocasião em que o pai de Dora encontrou Herr K exigiu que este se explicasse. Herr K negou nos termos mais enfáticos ter feito quaisquer avanços, e depois começou a lançar suspeitas sobre a garota. Frau K lhe dissera que Dora havia lido livros sobre sexo durante uma visita à sua casa. Aquela leitura a excitara em demasia e ela apenas fantasiara o seu avanço." '.j Freud apresenta Herr K da melhor forma possível. Referindo-se ao seu segundo avanço, garante aos leitores que ele não havia

encarado a sua proposta para Dora apenas como uma frívola tentativa de sedução= Isso é mera conjetura. Freud não apresenta quaisquer indícios dos sentimentos de Herr K por Dora, ou de sua seriedade. Contudo, sabemos da frívola sedução de Herr K e da subseqüente rejeição da governanta de seus filhos."? O pai de Dora também é apresentado por Freud da melhor forma possível. Freud também diz que Dora compreendera que fora entregue pelo pai a Herr K para promover o seu objetivo: obter o

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consentimento de K para o caso amoroso com Frau K. Freud afirma que a interpretação de Dora estava certa. Mas então limita destrutivamente o seu apoio. Dora estava bastante consciente, diz ele, de que fora culpada de exagero ao falar assim.48 Seu pai, explica, não se sentara em uma mesa para negociar e oferecer a sua filha para Herr K em troca de seu consentimento para o caso amoroso com Frau K. O argumento de Freud é irrelevante e só serve para pôr em dúvida mais uma vez a interpretação de Dora. Freud sugere seriamente a Dora que o caso de Frau K com o seu pai tornava certo que Frau K concordaria em divorciar-se de Herr K. Diz à sua cliente que ela ficaria então livre para representar a sua fantasia inconsciente de casar-se com Herr K. Insinua que o seu casamento com ele é a única solução possível para todas as partes envolvidas. Seu plano não era inviável enfatiza esse casamenteiro." Em vista dos relacionamentos emocionais particulares envolvidos, esse plano me parece totalmente maluco. A narrativa que Freud faz de Dora é estruturada com uma história de mistério. O mistério, segundo ele, é porque Dora reagiu com tanta indignação à última proposta de Herr K quando, segundo o psiquiatra, a maioria das jovens ficaria feliz em recebê-Ia e até mesmo excitada com ela. Se nós não concordarmos com a premissa de Freud, de que Dora deveria ter reagido positivamente ao avanço de Herr K, não haverá um mistério a ser explicado. A história de Dora termina com a resposta para o mistério - a revelação de que ela sabia da frase que Herr K usara para seduzir a governante de seus filhos: Você sabe que eu nada recebo de minha esposa - a mesma que usou com ela. O mistério, segundo Freud, está resolvido: Dora ficou indignada porque Herr K usou com ela a mesma frase que usara com uma mera governanta." Mas a esposa de quem Herr K nada recebia era a mesma Frau K a quem Dora tinha sido e ainda era muito ligada. A queixa de Herr K da mulher corri quem ele não estava dormindo pode ter provocado uma mistura de sentimentos muito conflitantes em Dora." A análise que Freud faz da intimidade de Dora com Frau K, do mesmo sexo que ela, é bastante distorcida pelo fato de que ele privilegia o heterossexual e deprecia o homossexual. Em seu texto, Freud constantemente apresenta a intimidade entre Dora e Frau K

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resultado bom é o heterossexual. Resultados homossexuais não são os preferidos, como mostram muitas referências de Freud.

como pouco importante para as relações de Dora com Herr K e seu pai. Contudo, o próprio Freud admite em uma nota de pé de página que a jovem Dora tivera durante anos um alto grau de intimidade comFrauK:

Por exemplo, ele tipicamente fala sobre os homossexuais como pessoas fixadas em um estágio imaturo do desenvolvimento inferior porque menos evoluído, menos civilizado e mais perto da sexualidade natural perversa epolimorfa da criança não socializada e do selvagem primitivo. Os termos críticos de Freud, fixadas e imaturas, impuseram julgamentos negativos dolorosos e até mesmo devastadores a gerações de homossexuais que assimilaram a narrativa do mestre psicanalista.

Quando Dora ficava com os Ks, costumava dividir uma cama com Frau K e o marido ficava em outro lugar. Ela tinha sido a confidente' ê conselheira da esposa em todas as dificuldades de sua vida conjugal. Não havia coisa alguma sobre a qual elas não conversassern.S

Dora tinha adorado Frau K, dissera o seu pai para Freud.P Dora falava sobre Frau K, diz Freud, como de uma amante, elogiando o

A teoria de Freud de uma homossexualidade negativa fixada implica uma heterossexualidade positiva e ideal. Freud apresenta a sua história de um desenvolvimento psicossexual individual como umajornada ética, com os conceitos de fixação e revelação completa, infantilismo e maturidade, homossexualidade e heterossexualidade impondo julgamentos enfáticos a respeito do modo correto de sentir-se erótico - isto é, heteroerótico. Mas, como costuma ocorrer, sua mensagem é confusa.

seu belo corpo branco. 54 Discutindo

a intimidade

de Dora com Frau K, Freud se refere à

tendência a um sentimento homossexual encontrada em muitos adolescentes de ambos os sexos: Uma amizade romântica e sentimental com uma de suas colegas de escola, diz ele, comumente precede a primeira paixão de uma garota por um homem. Freud sugere que o sentimento homoerótico de Dora por Frau K é uma fase passageira da puberdade - uma etapa no caminho para a heterossexualidade. 55 Por outro lado, o suposto sentimento heteroerótico de Dora por Herr K é tratado por Freud como a realidade. Em duas outras notas de pé de página, Freud se refere ao amor homossexual profundo de Dora por Frau K.56 Em ainda outra nota, admite que sua técnica imperfeita na análise de Dora resultou em sua incapacidade de descobrir e dizer à garota que o seu amor

homossexual por FrauK era a tendêncig inconsciente mais forte em sua' vida mental." Embora Freud admita, que lidou mal com a tendência inconsciente mais forte na vida emocional de Dora, ele em parte alguma mostra o efeito deturpador de sua própria tendência à heterossexualidade.

A CRIAÇÃO DE UM HETEROSSEXUAL

A tendência de Freud à heterossexualidade inspira a sua teoria do desenvolvimento erótico e o enfoque na escolha do objeto sexual. Embora o resultado da formação inicial de qualquer indivíduo seja definitivamente imprevisível, Freud não deixa dúvidas de que o

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Por um lado, Freurl sugere que os homossexuais, se fixam em uma fase inicial de desenvolvimento.

por definição,

Por outro; ele sugere que a maioria dos heterossexuais também é fixada, embora em um sentido diferente. Amaioria dos heteros, como a maioria dos homos, se fixa em um sexo particular e exclusivo. Em um ensaio de 1905 Freud diz: O interesse exclusivo do homem pela mulher também é um problema que exige uma explicação, não é algo evidente por si mesmo/" (O interesse exclusivo das mulheres pelos homens não é mencionado.) Em uma nota de pé de página acrescentada a um ensaio de 1915, Freud salienta que uma restrição da liberdade da primeira infância do indivíduo de ter acesso igualmente a objetos masculinos e

[emininos.: é a base a partir da qual... se desenvolvem os tipos normais e invertidos. Ele então reitera: [O] interesse sexual exclusivo dos homens pelas mulheres também é um problema que precisa ser esclarecido e não um fato evidente por si mesmo, baseado em uma atração que em última análise é de uma natureza qutmlca/" '111

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E em um ensaio de 1920, sobre o desenvolvimento psicológico da homossexualidade em uma jovem mulher, Freud repete: Precisamos nos lembrar de que a sexualidade normal também depende de uma restrição na escolha do objeto. 60

atingido. A sexualidade normal dos adultos surge da sexualidade infantil através de uma série de acontecimentos, combinações, divisões e repressões que quase nunca são conseguidos com uma perfeição ideal.63 Para Freud, a heterossexualidade é sempre um arranjo conciliatório, como todas as sexualidades. Contudo, um heterossexual ideal e plenamente desenvolvimento é o padrão segundo o qual o homossexual é sempre julgado fixado. A idéia de Freud de que os heterossexuais são criados, não natos, ainda é uma de suas teorias mais provocantes e, possivelmente, mais revolucionárias. Mesmo se não concordarmos com os modos específicos pelos quais ele desenvolveu essa idéia, o insight básico continua a ser um ótimo ponto de partida para a análise da criação ~_istoricamenteespecífica do heterossexual.

Os pensamentos repetidos de Freud são necessários para chamar nossa atenção para um fenômeno repetidamente reprimido, ou seja'i os homossexuais não são os únicos cujos objetos eróticos são restritos a um sexo. Os heterossexuais também são limitados. Seus repetidos comentários sobre a necessidade de analisar o caráter circunscrito da heterossexualidade exclusiva é uma de suas sugestões mais revolucionárias e menos seguidas. Freud não é o único que não conseguiu analisar as limitações da heterossexualidade exclusiva. Essa incapacidade de analisar se origina de uma moralidade dominante que exige a heterossexualidade (e apenas a heterossexualidade) do normal e bom. Esse absolutismo moral representa um peso maior para os heterossexuais do que para os homossexuais, porque um único sentimento ou ato homossexual os coloca diante da ameaça anormal. Por outro lado, um ligeiro avanço do homossexual na direção da heterossexualidade tem uma conotação moral positiva. Freud considera a' heterossexualidade exclusiva o resultado limitado socialmente de um instinto sexual primitivo. Sua heterossexualidade normal não é de modo algum natural. É o produto social limitado de um processo de desenvolvimento difícil. Segundo a teoria freudiana, a criança chega à heterossexualidade através de estágios, de polimorfo a exclusivo, de natureza a cultura, de biológico a social, de primitivo a civilizado, de infantil a maduro. Em sua teoria, é atribuído à maturidade um sentido ético; a maturidade e a imaturidade têm significados muito profundos. A heterossexualidade é madura e boa, a homossexualidade, imatura e ruim." A influência da teoria evolutiva de Darwin e a idéia do progresso têm um papel importante nessa imputação de valores ao processo de desenvolvimento. Embora Freud reconheça claramente o engano de imputar valores humanos a evoluções de valor indefinido, ele é uma primeira vítima desse pensamento teleológico.sApesar do fatode que a heterossexualidade é o ideal operativo de Freud, ele admite que esse ideal quase nunca é totalmente (

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Freud sugere que a criança, partindo inicialmente de um desejo de prazer não ligado a um determinado sexo ou objeto, passa por um processo em grande parte inconsciente de seleção de objeto erótico e identificação sexual. Nesse processo, suas reações àqueles que cuidam dela, e as reações dessas pessoas a ela, determinam o interesse posterior dessa criança arquetípica em sexos e objetos de prazer particulares. , Segundo Freud, na formação do erotismo, a vida amorosa em desenvolvimento da criança originalmente polimorfa se concentra nas satisfações tiradas de seu próprio corpo, no prazer oral associado à mãe, à boca, aos seios e aos encantos do ânus e, mais tarde, nos prazeres associados ao pai e ao falo - geralmente uma passagem do oral, anal e genital, através do autoerotismo, para o heterossexual ou homossexual. Freud também fala ocasionalmente de um objeto do mesmo sexo ou de sexo diferente como o alvo bissexual original do desejo de uma criança. Mas essa idéia de um determinado objeto bissexual contradiz a sua teoria dominante de um eros originalmente não comprometido, polimorfo. Em sua versão esquemática mais simples, Freud conta a história de mãe e pai, menino e menina, os personagens genéricos em uma peça sexual familiar arquetípica, um melodrama situado em uma civilização que exigia a repressão dos instintos sexuais básicos -

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mulheres eram muito menos importantes para ele, centrado nos homens e na heterossexualidade, do que as relações entre homens e

ou a sua sublimação em objetivos que proporcionavam prazer e eram produtivos (embora não necessariamente reprodutivos). Anarrativa de Freud do progresso do garoto enfatiza o primeiro e eterno amor sexual desse homem paradigmal por sua mãe e pelo sexo oposto. Enfatiza a identificação do garoto com o pai e o mesmo sexo, e a sua competição até a morte com o pai e o mesmo sexo pela exclusividade do amor erótico da mãe. (Freud presume uma economia de amor sexual regida por uma escassez e uma propriedade particular exclusiva das figuras paternas.) Na luta titânica do garoto com o pai pela mãe, cheio de culpa, ele teme por seu pênis. (Ameaças explícitas de castração eram rotina na Viena de Freud - em seu estudo de caso "Little Hans", por exemplo, até mesmo a mãe sofisticada desse garoto de cinco anos o ameaça.)" O garoto vence os seus medos de castração, se identifica com o pai e procura triunfantemente um objeto erótico de sexo diferente na pessoa de uma mulher que não é a sua mãe. Portanto, ele resolve o seu problema de amor incestuoso e sua profunda hostilidade para com o pai e, se for bem-sucedido em seu trabalho de aperfeiçoamento, será heterossexual. Durante muitos anos o patriarcal Freud presumiu a universalidade do desenvolvimento sexual do garoto, descrevendo a criação erótica da garota genérica como seguindo o mesmo caminho da do garoto genérico. Por exemplo, Dora e seu irmão são apresentados como buscando um relacionamento primário com o genitor do outro

mulheres. Apenas cerca de 20 anos depois de analisar, Dora, quando a sua teoria já estava em um estágio bastante avançado, Freud parou de pensar muito no desenvolvimento da garota e percebeu uma implicação surpreendente de sua própria teoria." A trama de sua história das origens sexuais enfatiza o poder determinante do primeiro amor da criança. Segundo Freud, o primeiro tem um papel importante. Portanto, a criação de uma mulher heterossexual não é igual à do homem hetero. A primeira ligação íntima da garota é com a mãe e o mesmo sexo. O primeiro amor da futura mulher heterossexual é

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O próprio Freud também admite não ter dado muita atenção aos sentimentos profundos de Dora por Frau K. As intimidades entre as

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homossexual. Portanto, diz Freud, a chegada bem-sucedida da garota à heterossexualidade exige duas outras tarefas difíceis não necessárias para o garoto." (Nunca fica bem claro quem determina as tarefas sobre as quais Freud freqüentemente fala - que pressupõem um imperativo heterossexual.) Segundo Freud, a garota, percebendo o estado inferior de castração da mãe, fica muito ofendida e rejeita zangadamente o seu amor homossexual primitivo por ela, desenvolvendo um amor heteroerótico pelo pai, o orgulhoso possuidor de um pênis. Ela então compete com a mãe pelo pai, e resolve o problema dessa rivalidade encontrando em um marido o seu próprio homem heteroerótico que

sexo." O relacionamento de Dora com a sua mãe também é descrito por Freud apenas nos termos mais negativos- e críticos. A mãe, diagnosticada por ele (que não a viu) como sofrendo de uma típica psicose de dona de casa, está sempre limpando e tornando a vida da farm1ia um inferno em um mundo cruel. Freud, sem demonstrar qualquer sinal de empatia, não observa que Dora sabe que a mãe fora infectada por seu marido com uma doença venérea (gonorréia, que Dora parece ter confundido com sífilis). 66 Ambas as doenças eram sérias, e uma grave violação da pureza feminina, a principal qualidade das mulheres respeitáveis.

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não é o pai. A passagem da garota de seu amor homossexual primitivo pela mãe para um amor heterossexual pelo pai também inclui, segundo Freud, seu repúdio ao seu antigo uso prazeroso de seu clitóris ativo emasculino. (A atribuição de características sexistas a partes privadas é uma criação de mito pela qual Freud foi mais tarde repetidamente criticado pelas feministas.j'" Freud afirma que a futura heterossexual deve sublimar o seu desejo original por um pênis e a sua inveja de seus orgulhosos possuidores, e adotar a sua vagina feminina epassiva como o único local adequado de prazer erótico. (A penetração de uma vagina passiva por um pênis ativo continua a ser o ato sexual normativo de Freud, um remanescente da velha ética reprodutiva.)

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o conceito de Freud do clitóris como masculino e ativo e da vagina como feminina epassiva atribui a esses órgãos um significado inato universal. Segundo o determinismo clitoriano, vaginal e peniano de Freud, essas partes do corpo possuem um caráter essencial,que se origina supostamente de sua estrutura e função fisiológica - por isso sua agora abjeta anatomia é destinol" Segun-' do essa teoria, a falta de pênis de uma garota automaticamente gera uma consciência de sua castração e a sua subseqüente inveja do pênis, do mesmo modo como o orgulho do garoto em possuir um pênis gera automaticamente um medo de perder o seu símbolo básico. Na teoria freudiana, o poder de provocar desejo e medo dessas partes do corpo está dentro delas, não em sua posição estratégica em uma organização social de poderes, corpos e símbolos que é historicamente específica, dominada pelos homens e aprova o falo. Freud apresenta a conquista da heterossexualidade normal como o resultado de uma guerra titânica, muito problemática e comum da família nuclear. Segundo ele, o caminho normal para a normalidade heterossexual é aberto com o desejo incestuoso do menino e da menina pelo genitor do sexo oposto, com o seu desejo de matar o genitor rival do mesmo sexo e irmãos ou irmãs rivais. O caminho para a heterossexualidade é aberto com desejos sanguinários. Apeça sexual sobre a família arque típica é apresentada por Freud como um grande'melodrama, cheio de amores ardentes e ódios profundos. A família tradicional, como representada por ele, não é um belo quadro. Na visão do psicanalista, a invenção do heterossexual é uma produção bastante perturbadora.'·

Por que esse mito grego em particular deveria aplicar-se universalmente a todos os indivíduos em desenvolvimento não é explicado, e a referência ao alegado complexo de Édipo de Freud tornou-se talvez o jargão psicanalítico mais comum do final do século XX. Contudo, o poder do sistema heterossexual é tal que geralmente não notamos o paradoxo no centro da teoria edipiana de Freud da heterossexualidade. Sua história de Édipo atribui à heterossexualidade a mais desconcertante das origens. O fato de essa tragédia grega em particular ter se tomado o paradigma freudiano aceito para o heterossexual normal e superior é mais uma grande ironia da história da heterossexualidade. Freud afirma que apenas a resolução bem-sucedida do complexo de Édipo da criança permite ao adulto passar para a heterossexualidade normal." A resolução bem-sucedida dos primeiros amores apaixonàdos do bebê e dos ódios assassinos evidentemente anula qualquer efeito residual de sua participação ativa na guerra da família nuclear. Só o homossexual permanece eternamente fixado em um drama edipiano inaca?ado. \

A análise freudiana de Dora salienta a tenra idade em que a atração sexual surge entre pais e filhos. Ele continua a sua explicação: a lenda de Édipo provavelmente deve ser considerada como uma representação poética do que é típico nessas relações." Freud mais tarde ficou totalmente certo de que a criança típica na família típica tem a mesma sorte do pobre Édipo, o garoto sendo destinado, segundo o antigo mito grego, a matar o seu pai, casar com a sua mãe e, como punição, arrancar os seus próprios olhos. Freud diz que toda criança, seguindo o mau exemplo de Édipo, se apaixona pelo genitor do sexo oposto e deseja matar o ou a rival do mesmo sexo."

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Segundo Freud, a preferência homossexual se baseia na fixação. Mas tanto as preferências heterossexuais como as homossexuais se baseiam em um trauma profundo. Dadas as origens complicadas de ambos, Freud não fornece um motivo convincente pelo qual os heterossexuais deveriam ser capazes de resolver os seus antigos problemas e os homossexuais deveriam permanecer fixados eternamente em um desenvolvimento interrompido. Ele não apresenta um fundamento lógico plausível para considerar a heterossexualidade preferível.

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É fácil desdenhar da fabricação freudiana de fatos, entre eles os rígidos princípios de sua explicação edipiana do desenvolvimento heterossexual, e as suas grandiosas suposições universais. Mas Freud realmente chama a nossa atenção para os modos particulares como aquelas crianças ativas e cheias de desejo se relacionam inicialmente com as pessoas que são importantes para elas, desenvolvendo padrões específicos de reação erótica. Ele nos mostra utilmente os nossos padrões de resposta inconscientes e prepon.derantes que têm início na primeira infância e freqüentemente reaparecem de várias formas, construindo-nos como sexuados e sexuais.

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Embora Freud simplesmente presuma que a heterossexualidade é o melhor, ele também especula sobre um processo de desenvolvimento eterno em que o heterossexual é incerto, não inevitável. No final do século XX, seu legado moderno ambíguo influencia muito a nossa compreensão da heterossexualidade. Suas teorias ainda fornecem incitações revolucionárias a análises do papel que sis- " temas sociais ligados a uma época específica têm na criação de heterossexuais e homossexuais. No diagnóstico de Freud da histeria de Dora e de sua incapacidade de ter uma reação positiva a Herr K (um homem mais velho), como vimos, ele privilegia a reação heterossexual. Freud (outro homem mais velho) não nota a sua própria hostilidade para com a jovem Dora, a sua própria atração heterossexual e o efeito dessa atração sobre a análise de Dora. Ele só então estava percebendo a importância de os psicanalistas analisarem as suas próprias reações emocionais a seus pacientes.74 Talvez o indício principal (e mais estranho) do caráter invasivo da reação heterossexual hostil de Freud a Dora seja o fato de ele imaginar-se como o seu ginecologista. Essa metáfora reveladora aparece na história do caso de Dora e em seu aviso inicial aos leitores de que em .seu relatório' sobre Dora as questões sexuais serão discutidas com o máximo de franqueza possível. Freud será mostrado discutindo sexo abertamente mesmo com uma jovem mulher. Ele deve justificar essa conversa sobre sexo? - pergunta o defensivo Freud, Se for assim, simplesmente reclamarei para mim o direito do ginecologista, referindo-se ao direito de fazer um exame completo.75, 'Trinta e nove páginas depois, Freud ainda defende a sua conversa explícita sobre sexo com garotas e mulheres - e o reprimido volta mais uma vez em sua ainda mais reveladora analogia de si mesmo com um ginecologista [que). .. não hesita em fazer as suas pacientes se submeterem a descobrir todas aspartes possíveis de seus corpos." O médico que fq,z as garotas e as mulheres se submeterem é a metáfora perfeita para o relacionamento de Freud com Dora.?? Não é de espantar que Dora pare abruptamente de fazer análise com ele depois de apenas três meses. Mas apesar da hostilidade de /'

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Freud, sua cura através da conversa encorajou aquela jovem mulher a enfrentar os Ks. Ela até mesmo teve a satisfação de ouvir os Ks finalmente admitirem que ela não fantasiara as suas atitudes sexuais - de Herr K com Dora e de Frau K com o pai de Dora. Dora voltou a ver Freud um ano depois de sua análise inicial, dessa vez por vontade própria, para pedir-lhe ajuda. Mas Freud agiu como um pretendente abandonado, recusando-se vingativamente a prestar-lhe os seus serviços e enviando-a de volta para o mundo com os seus aflitivos sintomas psicossomáticos e conflitos psíquicos intatos. Uma recente biografia de Dora/Ida indica que ela viveu o resto de sua vida profundamente infeliz dedicada à doença inclusive com a honra duvidosa de ter sido um personagem triste e neurótico de uma das famosas histórias de casos de Freud." O malquea suposição heterossexual de Freud fez a Dora em 1900 é apenas um pequeno exemplo do mal que a supremacia do ideal heterossexual faria durante todo o século.

A MAGIA DO NORMAL

Do início ao fim de seus ensaios Freud proclama o ato sexual normal de homens e mulheres normais como o' objetivo normal do desenvolvimento sexual normal desses indivíduos normais. Embora a palavra heterossexual não seja muito empregada por ele, o termo normal é repetido inúmeras vezes referindo-se ao amor sexual de mulheres e homens uns pelos outros. Ao mesmo tempo que o rebelde Freud questiona freqüentemente de modo devastador a idéia da sexualidade normal, o conformista Freud foi um grande defensor da sexualidade normal. Nessa era de valorização da ciência, a palavra normal substitui natural como o termo com o qual evocar uma nova ética heterossexual. Freud vem e diz que está interessado na sexualidade anormal pelo que ela revelá sobre a vida sexual normal - sua admitida principal preocupação.?' Isso torna explícito o que eu sugeri que é implícito em Krafft-Ebing e na maioria dos teóricos da sexualidade perversa do final do século XIX e início do século XX. O enfoque desses psiquiatras em alguns pervertidos sem poderes é mais bem explicado por seu interesse primário na sexualidade normal. Seu

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interesse especial é em definir e defender a sua sexualidade normal - a heterossexualidade. A obsessão desses médicos com o sexo normal tinha uma origem social. A idéia oficial de um decoro sexual da classe média estava mudando. A velha ética reprodutiva morrera na prática antes de uma nova norma erótica de sexo diferente triunfar na teoria. Por; isso, Freud e outros psiquiatras estavam ansiosos por estabelecer a base conceitual para uma nova distinção entre o que era bom e mau do ponto de vista sexual. O dilema desses médicos era como explicar publicamente as suas próprias práticas de prazer hetero não reprodutivo. Freud e outros sexólogos fizeram isso afirmando a diferença entre o heterossexual e o homossexual, e a superioridade do heterossexual. Seu modelo foi de supremacia heterossexual desde o dia em que o termo foi eleito. O homossexual serviu como o totem dos médicos que representava o anormal monstruoso, uma certeza da normalidade benigna do heterossexual. Os homossexuais de Freud eram culpados de uma fixação em um estágio imaturo do desenvolvimento. Aqueles homos fixados, não reprodutivos e que procura- • vam o prazer afirmavam aos heteros não reprodutivos e que procuravam o prazer a sua diferença - e a sua própria sexualidade normal madura e plenamente desenvolvida. Durante todo o século XX Freud e os freudianos continuaram a ser os influentes defensores da norma heterossexual. Nos primeiros anos do século XX, com a ajuda de Freud e outros médicos; o conceito heterossexual ambíguo e experimental do século XIX•.foi firmado e amplamente difundido, como a ortodoxia sexual dominante - A Mística Heterossexual -, a idéia de uma heterossexualidade essencial, eterna e normal. Quando o termo heterossexual saiu do pequeno mundo do discurso médico para o grande mundo dos meios de comunicação de massa americanos, a idéia heterossexual passou de anormal para normal, e de normal para normativa.

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HETEROSSEXUAL

TORNA-SE CONHECIDO

Do Discurso Médico para os Meios de Comunicação de Massa

No século XX, as criaturas chamadas de heterossexuais surgiram das sombras do mundo médico do século XIX para se tomarem tipos comuns vistos à luz brilhante dos tempos modernos. A heterossexualidade começou este século na defensiva, como a prática privada não sancionada publicamente da classe média respeitável, e a prática de prazer depreciada publicamente dos jovens trabalhadores urbanos, dos negros sulistas e dos boêmios de Greenwich Village. Mas no final dos anos 1920 a heterossexualidade se tomara uma cultura dominante e consagrada.' No primeiro quarto do século XX o heterossexual tomou-se conhecido, fazendo uma estréia solene na sociedade que o homossexuaI repetiria perto do final do século.' O discurso sobre a heterossexualidade adiou a sua estréia na cultura popular americana até os anos 1920. Somente aos poucos a heterossexualidade se firmou como um sinal estável do sexo normal. A associação da heterossexualidade com a perversão continuou até uma grande parte do século XX. Em 1893, por exemplo, Charles Hughes, um médico famoso de St. Louis, garantiu aos seus colegas que, através de tratamento médico, a mente e os sentimentos poderiam voltar a ser normais, o

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Como um tratamento para seus heteros e homos anormais, o Dr. Hughes sugeria medidas extremas - hipnose e às vezes cirurgia. Para Hughes, como para o Dr. Kiernan em 1892, o heterossexual, como uma pessoa de tendência ao mesmo tempo reprodutiva e não reprodutiva, ainda permanecia com o homo não procriativo no panteão dos pervertidos sexuais.

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Esse escritor está certo de que os homossexuais não deveriam desfrutar de um amor sexual que os heterossexuais acham difícil obter. Ele salienta que para os heteros não é fácil encontrar uma pessoa que satisfaça ao mesmo tempo ao sexo, à alma, à sociedade e à família. Portanto, por que, pergunta ele um pouco rancorosamente,

Embora a nova terminologia heterossexual/homossexual tenha começado a tomar-se popular muito rapidamente, não distinguiu de imediato o bem do mal. Em 1895, um jornal de medicina americano publicou uma tradução do francês de um artigo do poeta e ensaísta Marc-André Raffalovich, um judeu russo que mais tarde se converteu ao catolicismo." Baseando-se moralmente na antiga norma reprodutiva, Raffalovich emprega os novos termos heterossexual! homossexual para criticar a ética em ascensão do prazer de sexo diferente. Sua avaliação deformada da heterossexualidade fornece um insight surpreendente da relatividade histórica do padrão heterossexual vitorioso de nosso tempo.

o invertido deveria ter o que o heterossexual encontra com tanta dificuldade? Quantos heterossexuais estão infelizes com as suas vidas sexuatsz'"

Ele sugere que os homossexuais deveriam resignar-se com a mesma infelicidade dos heterossexuais. Raffalovich está se opondo à inovação moral que colocou o erotismo no núcleo da personalidade moderna, posicionando uma sexualidade valorizada no centro da vida moderna. Ele é contra a modernização do sexo, refletida em seus próprios termos heterossexual e homossexualcategorias que ajudaram a tomar a satisfação erótica um valor dominante e oficial. Em seu artigo observamos a primeira manifestação dos termos hetero e homo antes do pleno desenvolvimento da mística pró-heterossexual. Como salienta Raffalovich, se a heterossexualidade não reprodutiva é legítima, é difícil entender por que uma homossexualidade não reprodutiva não poderia também ser aceita. De 1890 a 1900, os que eram contrários ao homossexualismo ainda não tinham ido além de uma norma reprodutiva e apoiado uma heterossexualidade não reprodutiva. Ainda não tinham condenado a homossexualidade por alguma outra falha básica. Esse ensaio mostra a convergência da heterossexualidade e homossexualidade não reprodutivas, julgadas segundo um padrão reprodutivo do final do século XIX. Uma convergência similar de heterossexual e homossexual pode ser notada no final do século XX, julgada segundo o padrão de prazer de hoje. Agora, o valor decrescente da procriação e o valor crescente do prazer sexual fazem o

Se a heterossexualidade não é reprimida, argumenta ele, a homossexualidade deveria ser igualmente aceita. Ele não defende aqui a expressão homossexual ou heterossexual. A repressão da heterossexualidade, salienta agourentamente, é um dos problemas para o futuro.i Ambos os erotismos são suspeitos: A sexualidade não pode ser o objetivo da existência para pessoas superiores, homossexuais ou heterossexuais': Os heteros e homos sexualmente ativos são idênticos em vício: Não existe uma linha de demarcação entre o heterossexual e o homossexual. 7

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TORNA-SE CONHECIDO

baseia-se na teoria de que todos os homens têm direito à satisfação sexual. Se esse direito é concedido ao heterossexual, não vejo como pode ser negado aos invertidos ... Mas em minha opinião, nenhum homem tem o direito de exigir a satisfação sexual de seus desejos."

homo e o hetero transformados em seres de inclinação erótica natural, com impulsos normais?

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O HETEROSSEXUAL

Raffalovich afirma que, achando que a heterossexualidade é tratada com indulgência e entusiasmo, a consciência do invertido não o incomoda. Ele confirma os problemas de consciência e a indignidade do sexo: É apenas aprendendo a... desprezar ou superar a sexualidade e a sensualidade que o invertido inato pode fugir da homossexualidade. 8 Na época-de Raffalovich alguns homossexuais já desejavam ter direitos iguais. Ele diz que esse desejo de.igualdade

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agora levar ao amor, que levava ao casamento, que levava às relações sexuais - que poderiam ou não levar à reprodução. Em muitas de suas antigas versões populares, o imperativo heterossexual do século XX continuou a associar o erotismo de sexo diferente a uma suposta necessidade humana, ou a um impulso ou instinto de propagação da espécie. Esse desejo reprodutivo estava agora inexoravelmente ligado ao desejo carnal - como nunca estivera antes. Por exemplo, o desejo da mulher do século XIX de ser mãe não estava ligado ao erotismo. Mas no início do século XX, a taxa de natalidade decrescente e a de divórcios crescente da classe média, e a guerra dos sexos, eram motivo de grande preocupação pública. A expressão das emoções heteroeróticas foi então incentivada por aumentar a capacidade reprodutiva, a intimidade conjugal e a estabilidade da família.

heterossexual e o homossexual parecerem ainda mais similares. Como veremos, isso enfraquece os antigos fundamentos lógicos para o tratamento desigual e, finalmente, a própria base da distinção heterossexual/homossexual. Nos primeiros anos do século xx, heterosexual e homosexual _ ainda eram termos médicos obscuros, não usados correntemente na: . língua inglesa. Na primeira edição de 1901 do volume "H" do grande Oxford English Dictionary, heterosexual e homosexual ainda não tinham sido incluídos. A heterossexualidade também ainda não tinha o status de normal. Em 1901, o Dorland's Medica IDictionary, publicado na Filadélfia, continuou a definir Heterosexuality como desejo sexual anormal ou pervertido pelo sexo oposto. H A heterossexualidade do Dorland, um novo desejo, era claramente identificada por uma ânsia pelo sexo oposto. Mas aquela ânsia ainda era uma aberração. A definição que o Dorland faz da heterossexualidade como anormal ou pervertida é, segundo o primeiro Suplemento (1933) do Oxford EnglishDictionary, mal empregada. 12 Mas ao contrário da do OED, a do Dorland é uma compreensão legítima da heterossexualidade segundo uma 'norma reprodutiva.

Um homem que teve uma influência sobre a nova heterossexualidade foi, como vimos, o Dr. Sigmund Freud, que viajou para Worcester, Massachusetts, e falou sobre sex-love e o prazer sexual de homens e mulheres em 1909, e cujo importante ensaio, Three Contributions to the Sexual Theory, foi publicado pela primeira vez em Nova York em uma tradução inglesa em 1910.13 No século XX, em nome de Freud e da psicologia popular, a heterossexualidade foi proclamada na terra dos livres como, simplesmente, a perfeição.

O século XX testemunhou a legitimidade decrescente do imperativo reprodutivo e a aceitação pública crescente de um novo princípio de prazer hetero. Pouco a pouco, a heterossexualidade passou a referir-se a uma sensualidade normal relativa ao sexo oposto, livre de qualquer elo básico com a reprodução. Mas somente nos meados dos anos 1960 o heteroerotismo seria totalmente separado da r~Rrodução, e o prazer sexual de ho~ens e mulheres seria por si só justificado.

Outro antigo e influente criador da mística hetero foi Havelock Ellis, cujo Studies' in the Psychology of Sex, em vários volumes, começou a ser publicado na Filadélfia em 1900.14 Embora formado em medicina, Ellis nunca exerceu essa profissão, mas usou o seu título de médico para justificar o fato de falar pública e aprovadoramente sobre o amor sexual de homens e mulheres. No volume de Ellis de 1910, Sex in Relation to Society, ele defende aquele amor sexual normal do cristianismo que, em sua opinião, condenou tanto as expressões do sentimento que todas as palavras que usamos para nos referirmos ao sexo são consideradas obscenidades=

Como o verdadeiro amor do início do século XIX não fora ligado à luxúria, os reformadores do eros e do afeto do final do século XIX e início do XX começaram a referir-se a um novo sex-love. (O hífen freqüentemente usado em sex-love registrava visualmente a nova ligação horizontal do sexo e do amor em um forte e mútuo abraço.) A cunhagem da palavra sex-love visou distinguir o amor heteroerótico da classe média, cada vez mais comum e aceito publicamente, de seu antigo verdadeiro amor espiritual. Com a criação de sex-love, a atração- erótica de homens e mulheres devia

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Mas em 1915, na edição americana daquele apo do volume de Ellis Sexuallnversion, ele usa heterosexual no estilo moderno como uma palavra simples, precisa e natural para o amor sexual de homens e mulheres."

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Em uma oposição consciente à libido originalmente descompromissada de Freud, Ellis afirma que o desejo pelo sexo diferente e pelo mesmo sexo geralmente é inato, um aspecto da dinâmica determinada biologicamente de tumescência e detumescência, seus termos para os altos e baixos do sentimento erótíco.'? Ellis rejeita nervosamente a idéia de que a espécie depende para a sua tumescência e, em última análise, para a sua reprodução, da guerra intrafamiliar eterna e do processo de desenvolvimento falível propostos por Freud.

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A primeira parte da nova norma sexual - hetero - pressupôs uma divergência sexual básica. A oposição dos sexos foi declarada a base para uma atração erótica universal e normal entre homens e mulheres. Essa ênfase na oposição dos sexos, que remonta ao início do século XIX, de modo algum registrou apenas características biológicas, funções únicas e distinções entre os sexos determinadas socialmente de mulheres e homens. O enfoque do início do século :xx no dimorfismo fisiológico e dos sexos refletiu as ansiedades profundas dos homens a respeito das mudanças no trabalho, nos papéis sociais, no seu poder sobre as mulheres e nos ideais de feminilidade e masculinidade. Por exemplo, em 1895, o Dr. James Weir Jr. escreveu, em The AmericanNaturalist, "The Effect ofFemale Suffrage on Posterity", avisando que se as mulheres votassem, mudariam física e psiquicamente, e passariam patologias para seus filhos. Isso provocaria uma revolução social, em que a forma atual de governo seria rejeitada a favor do matriarcado. Ele declarou que as mulheres já têm liberdade demais. Reiterou: Eu vejo no estabelecimento dos direitos iguais o primeiro passo para um abismo de horrores imorais que vão contra o nosso sentido ético apurado. Weir preveniu que as

A atribuição democrática de uma luxúria normal às mulheres (assim como aos homens) serviu para justificar a sua satisfação com os seus próprios corpos, uma atitude que ainda é parte de sua luta (como salientam as feministas radicais quanto ao sexo). O ideal do

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aberrações psicossexuais das mulheres aumentavam quando elas paravam de ser donas de casa e mães." Em 1897, The New York Times publicou uma crítica severa do Reverendo Charles Parkhurst à andromania, uma doença feminina que provoca uma imitação obsessiva de tudo que é masculino. Ele chamou de andromaníacas as mulheres que tentavam minimizar as distinções entre a masculinidade e a feminilidadel? Em 1913, a crítica do The New York Times de The Nature of Woman, um livro do biólogo J. Lionel Taylor, o elogiou como um estudo científico cuidadoso que mostrou que a campanha pelo voto feminino era um esforço de certas mulheres ...para dar à mulher um status que corresponderia ... ao seu conceito dela como nada mais nada menos que 'uma mulher masculinizada '.20 Mais tarde no mesmo ano, The Times fez a crítica de um livro do cientista Walter Heape que afirmou que o movimento feminino atual tem as suas origens no antagonismo do sexo e no desejo de alterar as leis que regulam as relações, e portanto os poderes relativos dos sexos. Se fosse dado poder às mulheres, este ficaria nas mãos das insatisfeitas, e podemos entender como tal as solteironas= A ansiedade desses homens em relação à diferença entre os sexos foi uma reação conservadora à divisão social-sexual mutante de atividade e sentimento que deu origem à nova mulher independente que surgiu nos anos 1880 e à melindrosa dos anos 1920, arquétipo da nova- mulher que tem prazer, companheira do novo homem que tem prazer.P A segunda parte da nova norma hetero se referia de maneira positiva à sexualidade. Esse novo enfoque otimista nas possibilidades hedonistas das uniões físicas entre homens e mulheres também refletia uma transformação social - uma reavaliação do prazer e da procriação, do consumo e do trabalho na sociedade comercial e capitalista. Vários historiadores têm analisado a queda do trabalho agrícola e artesanal e a antiga ética profissional, o crescimento do trabalho assalariado, o consumismo, e uma nova ética de prazer.P

Apesar da discussão de EIlis e Freud a respeito das origens fisiológicas e familiares da heterossexualidade, os dois homens foram grandes divulgadores da nova norma erótica de sexo diferente entre um público progressista. Contudo, no final do século :XX, o modernismo um tanto superficial relativo ao sexo de EIlis foi esquecido, enquanto os estudos profundos de Freud do melodrama familiar da classe média continuam a fornecer uma grande fonte de análise psicológica e debate social.

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século XX da mulher heteroerótica acabou por suplantar o ideal do século XIX da mulher de verdade pura. A nova mulher heterossexual também suplantou a afirmativa das feministas do século XIX da superioridade moral das mulheres, e suspeitou da existência de desejo carnal nas amizades românticas apaixonadas com outras mulheres. Amulher recém-heterossexualizada tomou possível o seu oposto, um monstro feminino ameaçador, a lésbica/" Sob a perspectiva da história heterossexual, o aparecimento no início do século XX da lésbica na cultura popular deriva do interesse em definir o contrário da lésbica - a nova mulher heterossexual. Entre 1877 e 1920 os americanos se dedicaram à busca da ordem, documentada no livro do historiador Robert H. Wiebe (The Search for arder). Embora Wiebe não o tivesse mencionado, essa busca de regularidade deu origem na arena do sexo ao novo modelo de heterossexualidade. Isso se equiparou às tentativas do início do século XX de padronizar as vias férreas, os fusos horários e os procedimentos relacionados com o comércio e a indústria (discutidos por Wiebe), assim como de testar e padronizar a inteligência, a feminilidade e a masculinidade.P Algumas evidências surpreendentes do outro lado do Atlântico sugerem que na segunda década do século XX os termos heterosexual e homosexual estavam sendo lentamente incorporados à língua inglesa. Por volta de 1918, J. R. Ackerley, um jovem inglês inteligente de vinte e poucos anos, filho de um importador de banana, conheceu na Suíça um rapaz divertido, Amold Lund, com uma risada demoniaca que o tomava a alegria e o terror da comunidade/" Ackerley conta: Uma das primeiras perguntas maliciosas que ele me fez foi: Você é homo ou hetero? Eu nunca tinha ouvido esses termos; eles foram explicados e pareceu haver uma única resposta ...

Ackerley se identificou como homo. Já admitira para si mesmo a sua atração pelos homens. Mas não lhe ocorrera dar-lhe um nome. O uso público dos termos heterossexual ou homossexual, feito pela primeira vez diante dele por seu amigo hetero avançado, deu a Ackerley um nome para o seu desejo sexual anteriormente particular

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e indefinido. A pergunta de Lund também lhe deu 'um nome para uma identidade baseada em seu desejo. Na época de seu encontro esclarecedor com Lund, diz Ackerley, salvo algumas tentativas desajeitadas de aproximar-se de colegas da escola, ele não tivera qualquer contato físico com ninguém, nem mesmo um beijo, e conservou a virgindade até Cambridge, onde a perdeu. A pergunta de Lund, homo ou hetero?, mostrou-lhe a necessidade do século XX de ser uma coisa ou outra - ou uma combinação bissexual. Ackerley acrescenta: Lund me emprestou ou recomendou livros para ler, Otto Weininger, Edward Carpenter, Plutarco - e com o seu jeito malicioso, abriu a minha mente. Em encontros desse tipo, heteros e homos passaram a fazer parte da consciência, da cultura e do debate do século XX. Nos Estados Unidos, durante toda a década de 1920, muitos novelistas, dramaturgos, educadores sexuais, editores e produtores de teatro lutaram pelo direito legal de discutir e distribuir um novo produto, o drama heterossexual explícito (para o seu tempo), a novela e o livro de aconselhamento. Os escritores incluíram novelistas como James Branch Cabell, Theodore Dreiser, F. Scott Fitzgerald, Elinor Glyn, James Joyce, D. H. Lawrence, e educadores sexuais como Mary Ware Dennett. 27 Sob a perspectiva da história heterossexual, essa luta do início do século XX pela descrição mais explícita de um eros de sexo diferente aparece a uma nova e curiosa luz. Ironicamente, encontramos os conservadores em relação ao sexo, os defensores da pureza social, da censura e da repressão, lutando contra a descrição não só da perversão sexual, como também da nova heterossexualidade normal. O fato de que uma descrição mais clara do sexo normal teve de ser defendida contra forças sociais confirma que o predecessor da heterossexualidade, o verdadeiro amor do século XIX, sancionara o amor e a reprodução, mas não um eros público e oficial de sexo diferente. Em 1923, heterosexuality fez a sua estréia emNew International Dictionary, de Merriam- Webster. Curiosamente, homosexuality fizera a sua estréia 14 anos antes, em 1909, definida como um termo médico que significava paixão mórbida por uma pessoa do mesmo

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sexo. O anúncio de uma homossexualidade doentia precedeu o de uma heterossexualidade doentia. Em 1923, Webster:S definiu heterosexuality como um termo médico que significava paixão mórbida por uma pessoa do sexo oposto. Somente em 1934 heterosexuality apareceu pela primeira vez na grande Second Edition do Webster:S, definida do modo moderno ainda dominante. Ali, é finalmente uma manifestação de paixão sexual por uma pessoa do sexo oposto; sexualidade normal. A heterossexualidade finalmente atingira o status de normal. No mesmo Webster:S de 1934, homosexuality também mudara. É simplesmente desejo erótico por uma pessoa do mesmo sexo.28 As origens médicas dos dois termos não são mais citadas. H eterosexuality e homosexuality passaram a ser termos de uso corrente da língua inglesa. Em 1924, em The New York Times, heterosexuality tomou-se pela primeira vez um amor que ousava dizer o seu nome. Em 7 de setembro daquele ano a palavra hetero-sexual fez a sua primeira aparição conhecida em The New York Times Book Review, de maneira significativa, em um comentário sobre Sigmund Freud. Ali, em uma longa e bombástica crítica de Group Psychologyand the Analysis of the Ego, de Freud, uma certa Mary Keyt Isham falou sobre a heterossexualidade reprimida e o amor heierossexualP Tentando compreender o estilo bombástico de Isham, parece que ela se preocupou em afirmar que até mesmo a heterossexualidade sublimada é boa: serve à reprodução/" Sua crítica também liga a heterossexualidade à maturidade - desconstruindo-a como uma morbidez, cbnstruindo-a como o alvo final apropriado do desenvolvimento humano. A americanização de Freud e da heterossexualidade andaram de mãos dadas. Mas antes de 1930, nos Estados Unidos, a heterossexualidade ainda enfrentava uma difícil batalha. Em 1929, um tribunal federal no Brooklin julgou Mary Ware Dennett - autora de um folheto de educação sexual dirigido aos jovens - culpada de enviar-lhes um material obsceno." O folheto de Dennett criticava outros materiais de educação sexual por não incluírem uma declaração franca de que o clímax da emoção sexual é um prazer insuperado, algo a que todo o ser humano normal tem direito - depois de se apaixonar e

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casar. Se parecia tão desagradável os órgãos sexuais estarem tão perto ... de nosso 'sistema excretor', Dennett garantiu à desgostosa juventude que essa localização era provavelmente protetora. (Seja como for, é aí que estão, e nosso dever é... cuidar bem deles ... ) Em seu folheto não apareceu a palavra heterossexual. Mas em 30 de abril de 1930, em The New York Times Book Review, uma crítica descreveu o personagem de André Gide em The Immoralist como indo de uma ligação heterossexual para uma homossexual/r A capacidade de incluir-se entre essas categorias sexuais foi mencionada um tanto casualmente como uma possibilidade humana. Essa também é a primeira referência conhecida em The Times ao duo hetero/homo. A partir daí, nos meios de comunicação de massa americanos, o heterossexual passou a ser definido pelo homo-Estranho, o homossexual pelo hetero-Outro. No mês seguinte, em maio, uma segunda referência ao duo hetero/homo apareceu em The New York Times Book Review, em um comentário sobreLove in the MachineAge,33 de Floyd DeU. Essa obra revelou um proeminente antipuritanismo dos anos 1930 usando a terrível ameaça homossexual como o seu fundamento lógico para uma maior liberdade heterossexual - um artifício comum dos liberais daquele tempo. The Times cita a advertência de DeU de que as condições sociais anormais vigentes mantêm os jovens dependentes de seus pais, causando infantilismo, prostituição e homossexualidade. Também é citada a crítica de DeU à ênfase na pureza que leva a uma falta de confiança no sexo oposto. DeU diz que deveria ser permitido aos jovens desenvolver normalmente a sua heterossexualidade até a idade adulta. Mas, enfatiza o crítico de The Times, essa condição já existe, aqui e agora. E foi assim que aconteceu. A heterossexualidade, uma nova categoria erótica de sexo diferenciado, deixou o campo limitado do discurso médico para tomar-se um aspecto citado nacional e internacionalmente da vida da classe média. Em 1933, segundo nos diz o Oxford English Dictionary, a abreviação coloquial hetero fez uma de suas primeiras aparições públicas, em Ordinary Families, de Eileen A Robertson, uma novela satírica inglesa reeditada nos Estados Unidos."

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Aqui, Marnie Cottrell é uma aluna de Cambridge com uma vocação para a medicina, cujo problema de adenóide tornou o seu nariz tão pequeno e a sua boca tão aberta que provavelmente ninguém iria querer casar-se com ela.35 Mamie, quegosta de falar melancolicamente sobre si mesma, diz a Lallie, sua melhor amiga: O estranho em mim é que, como um- tipo pitoresco, deveria ser puramente 'hetero', apesar da falta de oportunidade." As aspas simples em hetero sugerem a novidade do coloquialismo. Mas o uso do jargão sugere que a classe média moderna estava bem familiarizada com o hetero nos dois lados do Atlântico. Mamie claramente queria ter um caso amoroso, conclui a sua amiga Lallie, embora tenha dúvidas em relação às suas perspectivas. Os pais de Marnie não tinham percebido que nenhuma liberdade de pensamento que tivessem se esforçado por incutir em Marnie iria ajudá-Ia a ter uma vida sexual normal, enquanto a liberdade de escolha continuasse a ser privilégio dos homens. (Uma vida sexual hetero normal era agora algo que os pais progressistas se esforçavam por incutir, mesmo em suas filhas.) Em um mundo moderno cheio de mulheres atraentes em busca do sexo hetero, é dito que Marnie estava em uma posição mais desvantajosa ... do que estaria no início do período vitoriano, em que a bondade, o dinheiro ou o berço possivelmente teria compensado a sua respiração ofegante e a sua pele esmaecida.ê À custa da pobre Marnie, a novelista Robertson descreve perfeitamente a difícil situação historicamente, particular da mulher heterossexual feiosa, depois da ascensão e do domínio da heterossexualidade do século XX. Em dezembro de 1940, quando um musical malicioso intitulado PaU oey fez a sua estréia na Broadway, uma canção com o nome de Zip satirizou a artista de strip-tease Gypsy Rose Lee, através de um personagem que, despindo-se, falava de sua aversão por uma mulher de voz grossa e um homem de voz fina e proclamava a sua heterossexualidade. Essa canção registrou o aparecimento na cultura popular de uma identidade heterossexual." Em 1941, o glossário de um livro sobre variantes do sexo afirmou que straight estava sendo empregado pelos homossexuais

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com o significado de não-homossexual. Passar a ser straight é parar com as práticas homossexuais e dedicar-se - em geral voltar a dedicar-se -às heterossexuais/t'

O não-homossexual, uma nova criatura, definida pelo que não é, surgiu entre os personagens eróticos no palco do século XX. Aqui, straight é uma condição não necessariamente inalterável que uma pessoa pode experimentar ou não, dependendo de suas práticas (o sentimento não está em questão ).41 Agora, as variantes do sexo estão fazendo a definição, a classificação é um jogo do qual duas preferências podem participar. O culto à domesticidade que se seguiu à Segunda Guerra Mundial- a reassociação das mulheres com o lar, com a maternidade e com a criação dos filhos, dos homens com a paternidade e com o trabalho assalariado fora do lar - foi uma era em que a predominância da norma hetero praticamente não era contestada. No final dos anos 1940, e nos 1950, os profissionais da área de saúde mental conservadores reafirmaram a antiga ligação entre a heterossexualidade e a procriaçâo.S Opondo-se a eles, os liberais quanto ao sexo se esforçaram por expandir o ideal heterossexual para incluí-lo nos limites dos ideais relativos aos sexos mais variados do que nunca e do comportamento não procriativo, pré-nupcial e extraconjugal. Mas aquela reforma liberal quanto ao sexo na verdade ajudou a assegurar o domínio da idéia heterossexual, como veremos quando chegarmos a Kinsey. A tendência conservadora no que diz respeito ao sexo é ilustrada em 1947, no livro de Ferdinand Lundberg e da Drª Marynia Farnham, Modern Woman: The Lost Sexo A masculinidade e a feminilidade impróprias são exemplificadas, segundo os autores, pelas relações heterossexuais ... em que são tomadas providências para que não haja reproduçãor' Essa ideologia de fecundidade do pósguerra resultou no grande número de nascimentos dessa época. A idéia da mulher feminina e do homem masculino como prolíferos também se refletiu na ênfase, que teve início no final dos anos 1940, no homossexual como um símbolo lamentável de esterilidade - esse termo constrangedor foi usado repetidamente nos fecundos anos 1940 e 1950.44

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Em 1948, em The New York Times Book Review, o liberalismo sexual começava a predominar. O Dr. Howard A. Rusk declarou qu o relatório de Alfred Kinsey, Sexual Behavior in the Human Ma/e, que acabara de ser publicado, descobrira grandes variações nos conceitos e comportamentos sexuais. Isso levantou a questão: O qUI' é "normal" e "anormal"? Em particular, o relatório descobrira qu a experiência homossexual é muito mais comum do que anteriormente se pensara, e que freqüentemente há uma mistura de experiências homo e hetero/ê A contagem de Kinsey dos orgasmos de fato enfatizou a grand variação de comportamentos e sentimentos que se situavam entre os limites de uma heterossexualidade e homossexualidade quantitativas e avaliadas estatisticamente. A reforma liberal de Kinsey do dualismo hetero/homo ampliou a categoria hetero para corresponder melhor às variedades da experiência sexual." Embora Kinsey tivesse questionado explicitamente se os termos "normal" e "anormal" fazem parte de um vocabulário científico, a intetpretação geral foi que a sua contagem dos clímax definia o sexo normal como o da maíoría." Aquela norma quantificada constituiu um grande rompimento, em nível de sociedade, com o velho padrão reprodutivo definido qualitativamente. Apesar de considerado puramente científico, o enfoque estatístico de Kinsey ajudou a substituir a velha ética sexual qualitativa por um novo padrão moral quantitativo - outra vitória para o espírito do capitalismo: Esse cientista sexual popularizou a idéia de um continuum de atitudes e sentimentos entre os pólos hetero e hSlIPO: ... '\. '

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Apenas a mente humana inventa categorias e tenta ordenar os fatos. O mundo vivo é um continuumíê

Sua nova reflexão sobre a polaridade hetero/homo realmente sugeriu que há graus de comportamento e emoção heterossexual e homossexual. Mas aquele famoso continuum também reafirmou enfaticamente a idéia de uma sexualidade dividida entre o hetero e o homo. A escala de avaliação heterossexual-homossexual de Kínsey, de O a 6, pareceu precisa, quantitativa e científica, fixando o binário hetero/homo na mente do público com uma nova convícção.t? Portanto, seu liberalismo sexual influente e aparentemente científico

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1I111I11i,lVI.l a divisão hetero/homo, dando-lhe uma nova vida e legiti1I111l1ull.l. Klnscy também contestou explicitamente a idéia de uma antílelil' nhsoluta entre as pessoas heterossexuais e homossexuais. En".IU/llndoas variações entre os comportamentos e sentimentos ex1II141vos do hetero e do homo, ele negou que os seres humanos /I'II/I'.\'I'ntamduas populações distintas, heterossexual e homos" \/1(11. A população mundial, disse ele, não deve ser dividida em ..nuclros e bodes. (Aquela metáfora bíblica posiciona os heteros1111 is como carneiros, ligados à conformidade, e os homossexuais IIUIIObodes, ligados à licenciosidade.) A divisão hetero/homo de pessoas não é obra da natureza, 1I111111ta Kinsey, mas da sociedade. Como um reformador liberal Ijllllllloao sexo, ele contestou a divisão social e histórica de pessoas 1'/11heterossexuais e homossexuais, porque achou que esse rótulo 111usado para denegrir os homossexuais. Motivado por um impulso 11'lunnista, rejeitou a realidade social e a grande força subjetiva de 111.111 tradição construída cientificamente que, desde o início do III '1110 XX nos Estados Unidos, dividira a população sexual em dois ajudou a estabelecer a realidade social e pessoal de identidades lllltl.lrossexuaise homossexuais. A idéia de identidades heterossexuais e homossexuais - dois Upos essencialmente distintos de pessoas - é um legado político 1.IIHt ante ambíguo. Por um lado, o estabelecimento histórico de uma identidade hvterossexual como universal, presumida e normativa favoreceu a luunação da supremacia heterossexual. . Por outro, o estabelecimento histórico de uma identidade heteIrJssexualfeminina incentivou as mulheres do século XX a buscarem prnzeres eróticos desconhecidos para muitas das suas antepassadas do século XIX. Ao mesmo tempo, a busca das mulheres modernas pula felicidade heterossexual tem sido freqüentemente depreciada pulo sexismo, incentivada pelo comércio (Você fez muitos progres",(J,,~querida! ) e tomada perigosa pelo assédio sexual e pela violên'ia dos homens. O aparecimento histórico de uma pessoa especificamente homossexual tevou, principalmente a partir de 1969, ao início de um

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grande movimento que afirmou pública e enfaticamente uma identidade gay e lésbica. Seguindo o modelo dos movimentos americanos que afirmaram as identidades raciais e étnicas, o aparecimento em massa de pessoas gays e lésbicas livrou milhares de mulheres e homens de uma profunda e dolorosa sensação de inferioridade e ,.' vergonha, induzida socialmente. Esse movimento ajudou a causar uma liberalização social das reações às pessoas identificadas como homossexuais. 50 Ao mesmo tempo, a contestação de Kinsey do conceito de identidades homossexuais e heterossexuais foi uma primeira forma parcial de resistência ao uso anti-homossexual da distinção heterohomo. Outro reformador sexual, Gore Vidal, há muitos anos proclama alegremente: Não existe algo como uma pessoa homossexual ou heterossexual. Há apenas atos homo ou heterossexuais. A maioria das pessoas é uma mistura de impulsos, se não práticas, e o que é feito de comum acordo com um parceiro não tem qualquer importância social ou cósmica. Então por que toda essa confusão? Para uma classe dominante governar, devem haver proibições arbitrárias. De todas as proibições, o tabu sexual é a mais útil, porque o sexo envolve todos ... nós temos permitido que os nossos govemantes dividam a população em dois times. Um é bom, divino, straight; o outro é mau, doentio, vicioso."

Mas podemos levar a análise de Vidal da nossa divisão absurda um pouco adiante? Podemos agora questionar, não só a divisão em pessoas heterossexuais e homossexuais, mas a própria divisão het,ero!homo?\ '., '-

No início de 1949, James Baldwin, de 25 anos, iniciava uma pesquisa sobre os rótulos sexuais consagrados de sua sociedade. Em "Preservation of Innocense", publicado obscuramente em Tanger, ele advertiu de um modo inovador que rotular as pessoas como homossexuais negava a complexidade humana - não só a dos homossexuais, como a de todos.S É praticamente impossível escrever um ótimo romance sobre um judeu, um gentio ou um homossexual, porque infelizmente as pessoas se recusam a funcionar de um modo tão regular e unidimensional. Se o romancista considerar que eles não são mais complexos do que os seus

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rótulos,.deve necessariamente produzir um catálogo, no qual encontraremos, devidamente relacionados, todos aqueles atributos com os quais o rótulo está associado ...

Embora Baldwin não o mencione, um ótimo romance sobre um heterossexual também pareceria impossível, pelos motivos que ele discute: Um romance exige sempre a presença e paixão de seres humanos, que não podem jamais ser rotulados. Quando o romancista· cria um ser humano destrói o rótulo, e transcendendo o tema pode, pela primeira vez, nos dizer algo sobre ele ... Sem essa paixão, podemos todos morrer asfixiados, trancados nessas prisões sem ar dos rótulos, que nos isolam uns dos outros e nos separam de nós mesmos.P

A diferenciação de pessoas homossexuais e heterossexuais, sugere o jovem Baldwin, está inevitavelmente ligada a um sistema de julgamentos moralizadores sobre homens e mulheres: Antes de sermos expulsos do Paraíso e de ser lançada a maldição, Eu porei inimizades entre ti e a mulher, o homossexual não existia; e tampouco, corretamente falando, o heterossexual. Estávamos todos em um estado natural.f

Baldwin sugere que a distinção homo/hetero não é natural, mas social, implica um julgamento de valor e está sujeita a uma conexão cultural problemática de homens e mulheres. A degradação atual do homossexual masculino, e a nossa obsessão por ele,' salienta Baldwin, corresponde à degradação dos relacionamentos entre os sexoS.55 A divisão entre homem e mulher, declara Baldwin, só pode revelar uma .divisão dentro da alma de ambos. A distinção ou/ou, homem/mulher é um problema para a psique. Não ajudará as nossas almas declarar que os homens devem recuperaro seu status como homens e as mulheres exercer as suas funções como mulheres. Essa atitude rígida acaba com qualquer possibilidade de união. De qualquer maneira, tendo relacionado osfatos físicos, é difícil decidir, de nossos múltiplos atributos humanos, quais são masculinos e quais são [emininosi"

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o reconhecimento

dessa complexidade - essa ambigüidade dos sexos e das divisões sexuais - é um sinal de maturidade, diz Baldwin, da morte da criança e do nascimento do homem. Mas, segundo Baldwin, os homens americanos desejam preservar a sua inocência, o seu sonho dos Rover Boys e seu ideal de castidadeéí Em sua tentativa de negar a complexidade e permanecer inocentes, declara ele, esse monstro irracional; os rapazes rudes, foram criados e aperfeiçoados. A masculinidade dos rudes é encontrada na aparência elementar mais infantil. Sua atitude em relação às mulheres é uma combinação do mais profundo romantismo e da mais implacável desconfiança. 58 Os homens e as mulheres têm tudo, mas desapareceram da nossa cultura popular, diz Baldwin, deixando apenas uma série perturbadora de efígies com uma força motriz que nos dizem que é sexo, mas que na verdade é um anseio semelhante a um sonho, uma insatisfação mais aflitiva do que a da Bela Adormecida esperando o toque vital do Príncipe Encantado. Porque o sonho americano de amor insiste em que o Rapaz conquiste a Moça ...59

o sonho

americano da felicidade heterossexual nega outros desejos mais complexos e ambíguos, como sugere Baldwin. Por exemplo, o romance de James M. Cain, Serenade, contém um curioso reconhecimento por parte do herói do fato de que há sempre em algum lugar um homossexual que pode vencer a resistência do homem normal sabendo que atitudes tomar'" Tendo-as tomado em demasia, o invertido feioso dessa novela é prontamente morto a punhaladas pela amante do herói, uma sefiorita robusta.61 Assim, essa masculinidade imaculada dentro de nós é protegida, diz Baldwin, assim, lidamos sumariamente com qualquer obstáculo à união do Rapaz e da Moça.62 Ele alude ao final comumente feliz dos romances heterossexuais populares (e nós nos lembramos dos tratamentos bem-sucedidos de Krafft-Ebing). Eles terminam quando o Rapaz e a Moçafinalmente ficam juntos, com o que os leitores devem imaginar ser um amor eterno: Porque quando o Rapaz e a Moça se tornam o Noivo e a Noiva somos forçados a deixá-Ios; sem realmente supormos que a história acabou, ou que testemunhamos a satisfação de dois seres

humanos ...Não devemos testemunhar, continua ele, o sofrimento e os problemas que virão depois. Baldwin argumenta que esses parceiros na heterossexualidade não estão preparados para essa experiência, porque o rapaz não pode conhecer uma mulher,já que nunca se tornou um homem.ê O ideal inocente e perfeccionista da heterossexualidade feliz deve desaparecer, diz ele, e a conseqüência dessa insatisfação é a violência masculina. Baldwin sugere que o sonho americano de felicidade total no amor encontra compradores no grupo de mesmo sexo, com o mesmo resultado violento. Ele cita o romance de Gore Vidal, The City and the Pillar, no qual o o homossexual confesso ... mata o seu primeiro e único amor quando finalmente eles se reencontram, porque não , pode suportar, em vez disso, matar aquele sonho triste e impossível. De igual modo, em The Fali ofValor, de Charles Jackson, Marine, como um deus, defende a sua masculinidade com um atiçador de fogo, matando o assustado professor que o desejava. Essas resoluções violentas ... são tomadas devido a um pavor que chega perto da loucura. Esses romances não estão preocupados com a homossexualidade, mas com o perigo sempre presente de atividade sexual entre homens/"

O pavor do homem identificado heterossexualmente confrontado pelo desejo homossexual inspira uma brutalidade comum na América, avisa Baldwin. Irá se passar um longo tempo de vingança, conclui ele, até que os americanos reconheçam a ligação entre o escoteiro inocente que sorri no cartaz do metrô e o mundo oculto que subjaz em toda a América - o mundo subterrâneo complexo da ambigüidade erótica/" Vinte e dois anos depois desse presciente "Preservation of Innocence", Baldwin ainda refletia sobre os motivos sociais e psicológicos para o rótulo sexual e racial. Em um debate em 1971, ele diz: As pessoas inventam categorias para se sentirem seguras. Os brancos inventaram os negros para dar aos brancos uma identidade.

Acrescenta:

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Hetero/homo é uma divisão artificial, Baldwin diz: Não existe nada em mim que não exista nas outras pessoas, e nada nas outras pessoas que não exista em mim. É claro que estamos presos à linguagem, admite ele. Mas as complexidades da experiência humana - por exemplo, a própria experiência de Baldwin - lançam dúvidas sobre os termos heterossexual e homossexual, que dividem e tentam subjugar:

OS heterossexuais masculinos inventam os homossexuais masculinos para que possam dormir com eles sem se tomarem homossexuais.

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Mas ele diz que os escritores são forçados a procurar por trás da palavra o seu significado. São responsáveis por descobrir o modo de usar essa palavra para liberar a energia contida nela, para que tenha um efeito positivo nas vidas das pessoas=

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E em 1984, entrevistado em The Village Voice, Baldwin novamente protestou contra os equívocos causados pelos rótulosr"

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Na verdade, a pessoa chamada de heterossexual não está mais segura do que eu estou ... Amar e ser amado por alguém é um enorme perigo, uma enorme responsabilidade ... Os medos que os homossexuais sentem nesta sociedade não seriam tantos se a própria sociedade não sentisse tantos medos que não deseja admitir.

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Baldwin dá nome ao grande medo que ele acha que é a origem do ódio da sociedade ao homossexual: Pavor da carne. Afinal de contas, devemos mortificar a carne, uma doutrina que tem levado a horrores indescritíveis. Um pavor particular do corpo é causado pelo sentimento homossexual do homem heterossexual infantil fixado na negação:

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Eu amei algumas pessoas e elas me amaram. Aquilo não teve nada a ver com esses rótulos. É claro que o mundo tinha todos os tipos de palavras para nós. Mas esse é um problema do mundo.

Areação de Baldwin ao problema sexual do mundo se equipara à sua reação ao problema racial do mundo: I

Em minha opinião, falando claramente da América negra, quando eu tive de tentar contestar esse estigma, essa espécie de maldição social, seria um grande erro fazê-lo usando a linguagem do opressor. Se eu reagir como um negro, provar as minhas alegações a respeito de evidências ou suposições de outras pessoas, estarei simplesmente reforçando essas suposições.

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O Estado, a Igreja e a direita política estão interessados em controlar as pe,s~oas, declara Baldwin:

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Tratam de fazer com que você tenha medo dos seus atos. Se você se sentir culpado, o Estado poderá govemâ-lo. Esse é um modo de controlar o universo, assustando as pessoas.

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Imaginando um sexo futuro totalmente novo, Baldwin diz:

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Os machões - motoristas de caminhão, policiais, jogadores de futebol - são muito mais complexos do que desejariam. É por isso que eu digo que são infantis. Têm necessidades que, para eles, são literalmente inexpriiníveis. Não ousam olhar-se no espelho. E é por isso que precisam dos homossexuais. Eles os criaram para representarem uma fantasia sexual sob~ o corpo de outro homem, e não assumirem qualquer responsabilidade por isso ... Eu acho que é muito importante para o homossexual masculino reconhecer que é um alvo sexual para os outros homens, e que por isso é desprezado, e chamado como tal. Porque os outros homens precisam dele.

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Ninguém terá de chamar a si próprio de gay. Talvez essa seja a causa da minha impacíênclaõom o termo. Ele admite um argumento falso, uma acusação falsa. Isto é, que você não tem direito de estar aqui, que tem de provar esse seu direito. Eu digo que não tenho coisa alguma a provar. O mundo também me pertence.

~ Em um mundo no qual ninguém se identifica como gay, ninguém se identificará como straight. Baldwin insinua que esse mundo, privado da divisão homossexual/heterossexual, pertencerá a todos pós. O questionamento que James Baldwin faz sobre essa elassíficação remonta aos anos de sua formação intelectual. Naquele tempo, todas as crianças eram ensinadas a admirar a grande mistura de raças americana. As pessoas politicamente progressistas trabalhavam pela integração das minorias americanas em uma maioria humana única e universal. Essa mistura deveria incluir os persegui-

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dos do país: negros, judeus e (mesmo, em raras ocasiões) homossexuais. Esse ideal de integração incentivou vários escritores extremamente corajosos - Baldwin, Gore Vidal, o poeta Robert Duncan, a novelista Ruth Seid (como Jo Sinclair) - a afirmar publicamente a humanidade daqueles com tendências homossexuais, e a exigir a sua integração/" Mas essas pessoas ousadas freqüentemente demonstravam um constrangimento básico com a diferença - as características históricas e culturais dos homossexuais que os isolavam. Nos anos 1940, os progressistas defenderam a assimilação. Apenas no final dos anos 1960 os defensores do poder negro declararam que os afro-americanos podiam reclamar a sua humanidade posta em dúvida afirmando ativamente a sua diferença cultural. Os liberais gays e as feministas imitaram aquele modo radical de afirmação dos negros, e seus movimentos de protesto enriqueceram a política atual de diferença.

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Contrapondo-se à rejeição de Baldwin dos rótulos, o movimento moderno de liberação gay e lésbica - revertendo os usos negativos da antiga categoria homossexualtem incentivado muitos de nós a identificar-se como gays, lésbicas e bissexuais. Nos últimos 20 anos, nós nos unimos sob a bandeira gay e lésbica, a nova inversão positiva do velha categoria homo negativa. Então, por um lado, os ativistas gays e as lésbicas afirmaram enfaticamente a idéia de um mundo dividido entre homossexuais e heterossexuais. Por outro, um dos resultados menos esperados da organização de gays e lésbicas foi um incentivo ao trabalho intelectual que 'q'llestiona radicalmente a necessidade de identidades hetero e homo, e 'àté mesmo essas próprias categorias."

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Enquanto isso, em 1953, o antropólogo Clyde Kluckhohn fazia a crítica do novo relatório de Kinsey sobre as mulheres em The New York Times Book Review, e a palavra heterossexual apareceu uma vez.?" KIuckhohn lamentou o fato de o relatório não tratar da freqüência do sexo anal heterossexual - sem dúvida a primeira menção explícita à sodomia hetero no decoroso Times de domingo, Esse fato histórico ilustra como os relatórios de Kinsey e as reações a eles ampliaram a discussão. sobre o sexo hetero para incluir um

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número maior de variações do que a mídia respeitável anteriormente admitira. A liberalização do ideal heterossexual dessa época também é ilustrada pela peça Tea and Sympathy, à qual foi feita uma crítica no The Times, em 1953 - a história de um estudante sobre o qual foi lançada a falsa suspeita de homossexualidade.l' Mas o falso homo se revela um verdadeiro hetero. Embora o nosso herói de 18 anos seja meigo, gentil, calado, tímido, intelectual, guitarrista e não conformista (e tenha decorado o seu quarto espartano na universidade com uma colcha indiana e cortinas estampadas indianas), o dramaturgo finalmente confirma a sua heterossexualidade. (Como sempre, descobre-se que o vilão tem tendências homossexuais.) Mais sobre a heterossexualidade do que sobre a homossexualidade, a peça protesta contra o sexismo estúpido daquela época, defendendo a ampliação da norma heterossexual para incluir os jovens que não apresentam a característica considerada masculina da insensibilidade. Um jovem sensível podia colocar cortinas em seu quarto e ainda ser heterossexual. Mas a ampliação progressista da heterossexualidade para incluir uma variedade maior do que nunca de comportamentos sexuais e sentimentos apropriados serviu para fortalecer o domínio do hetero ideal. Amaior rede heterossexual pegou mais peixes. Em 1963, depois que o State Liquor Authority" cassou as licenças de vários- lugares freqüentados assiduamente por homossexuais em Nova York, The Times examinou oproblema da homossexualidade (um problema de um suposto ponto de vista heterossexual). Descrevendo os homossexuais cada vez mais assumidos e organizados da cidade, o artigo de Robert C. Doty parece o relatório de um antropólogo sobre uma misteriosa tribo de nativos: Existe uma gíria homossexual, antes inteligível apenas para os iniciados, mas agora incorporada à gíria de Nova York. A palavra gay tem sido usada como adjetivo para homossexual.

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Os homossexuais estão roubando a nossa linguagem, diz Doty, Ele continua: *

Órgão do governo que concede licenças para a venda de bebidas. (N.T.)

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Ele é gay?, um homossexual poderia perguntar a outro sobre um conhecido de ambos. Eles falariam sobre um bar gay ou uma festa gay e poderiam rir secretamente do emprego inocente da palavra em seu sentido original pelos straights - isto é, pelos heterossexuaís.P

A imagem de dois gays rindo juntos secretamente do uso da linguagem desconhecida dos straights marca o aparecimento em The Times dos heterossexuais como uma maioria nervosa com o olhar crítico do Hemo-Outro." No final dos anos 1960, os participantes do movimento contracultura que se opunham às instituições, as novas feministas e os ativistas dos direitos homossexuais começaram a fazer uma crítica nunca vista - à repressão sexual em geral, à repressão sexual das mulheres em particular, ao casamento, à família, à opressão dos homossexuais e a algumas formas de heterossexualidade. Essa crítica teve o seu espaço até mesmo no The New York Times. Em março de 1968, no caderno de teatro desse jornal, a free lance Rosalyn Regelson citou uma cena satírica de uma peça de teatro de revista trazida de Nova York por uma companhia de atores de São Francisco: Um homem heterossexual entra inadvertidamente em um bar freqüentado por homossexuais. Antes de perceber o seu erro, envolve-se com uma queen agressiva que pede uma bebida para ele. Sendo um liberal e tentando manter a calma até poder sair diplomaticamente daquela situação, ele pergunta: Como você se sente sendo um -ah -homossexual? Ao que a queen responde secamente e com uma voz arrastada: Como você se sente sendo -ah -seja lá o que for?74

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Regelson continuou: As Duas Culturas em confrontação. A classe média liberal, desafiada hoje em dia em muitas frentes, vê o seu último valor permanente, a sua heterossexualidade, posta em dúvida. Acena ... lembra as estratégias que ela usa para lidar com essa ameaça final à sua visão do mundo ...

Algumas semanas depois, em março de 1968, o crítico do Times Clive Barnes escreveu sobre a nova peça de Paddy Chayefsky, The Latent Heterosexuallê Nela, um escritor de meia-idade e extremamente efeminado descobriu que a sua homossexualidade era...

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meramente um disfarce para os seus medos da impotência. A peça, disse o sempre atento Barnes, mostra uma questão séria. Ele elogiou muito a atuação de Zero Mostel como o poeta homossexual: É o humor do ator heterossexual fingindo ser homossexual, com maneirismos grotescos e exagerados que só são engraçados porque estão muito longe da realidade. Sob a perspectiva da história heterossexual, a esperança de Chayefsky de felicidade hetero para até mesmo a queen documenta a heterossexualidade na defensiva. Esse retrato da heterossexualidade latente vencendo todos os obstáculos foi uma propaganda nervosa de uma norma cada vez mais contestada pelas feministas, pelos participantes do movimento contracultural e pelos homossexuais. A nova defensiva hetero foi ilustrada novamente seis meses depois em The New York Times, em um documento clássico da história 'heterossexual. Em setembro de 1968, a entrevista de Judy Klemesrud com o ator Cliff Gorman, que representou "The Definitive Screaming Queen" em The Boys in the Band, teve como título ''You Don't Have to Be One To Play One".76 Klemesrud satirizou o excesso machista da afirmação nervosa da heterossexualidade de Gorman. Klemesrud começou: O papel de Gorman como Emory, o decorador de interiores homossexual, com os seus gestos efeminados, não foi exatamente o tipo de papel que se imaginaria para um rapaz judeu daJ amaica, Queens. Mas Gorman o aceitara, e Boys in the Band tomou-se um grande sucesso. Gorman recentemente fora convidado para trabalhar na televisão no papel de um estuprador, e perguntou defensivamente, O que pode ser mais heterossexual do que isso? Com uma lata de Schlitz na mão, disse Klemestud, Gorman conversou nervosamente com a repórter a respeito de todos lhe perguntarem naqueles dias: Como um heterossexual como você pode fazer o papel de uma bicha em uma peça gay? É simples - eu precisava do dinheiro, diz ele com a sua voz real muito masculina. Realmente não ligo a mínima para o que as pessoas pensam ... Não tenh'o qualquer dúvida quanto à minha virilidáde. E a minha mulher também não ... Estou ganhando dinheiro agora. .. Se eu fizesse o papel de um psicopata, isso não significaria que sou um ...

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Sua mulher incrivelmente bela, Gayle, entra silenciosamente na sala e coloca a cerveja de Cliff em um copo ... Cliff ainda está nervoso: As pessoas acham surpreendente um sujeito fazer o papel de um homossexual tão espalhafatoso e ainda assim ser heterossexual. Acho que é dada tanta ênfase a esse fato porque promove a peça e todos querem ver o espetáculo ... Cliff desamarra a sua bandanna, joga-a sobre a mesa do café e atravessa a sala para colocar para tocar uma fita com o único tipo de música de que realmente gosta - country ... Depois abre com um estalo a sua segunda Schlitz. Eles me disseram que convidaram muitos atores gays para o papel, mas ninguém quis ser Emory. Acho que um homossexual de verdade poderia ficar muito inibido ... Eu não fiz nada de especial para me preparar para opapel, embora o modo de andar tivesse exigido muita prática ... Mas eu já sabia como falar, porque conto piadas sobre gays desde que era garoto ...

Depois de ser bem-sucedido como ator, disse Gorman, quero ter quatro filhos, um estéreo, um barco, morar em Baja, Califórnia, pescar, mergulhar e todo esse tipo de coisa. Junto com essa entrevista no Times foi publicada uma grande fotografia de Gorman abraçando fortemente a sua esposa, ambos tristes e unidos, um retrato de um casal heterossexual assombrado pelo fantasma da homossexualidade - uma imagem clássica na iconografia histórica da heterossexualidade. Perto do final dos anos 1960, o medo de terem um filho pervertido dominou mães e pais ansiosos, que compraram o livro de Peter e Barbara Wyden, Growing Up Straight: What Every Thoughtfui Parent Should Know About Homosexualuy," Em 1968, esse manual de cpmo criar um heterossexual é categórico: O estilo de vida heterossexual não só é normal e correto, como também produtivo e divertido. 78 Criar um heterossexual significa incutir um sentido de masculinidade e feminilidade, dizem os Wydens, aos pais temerosos de que seus filhos' se tornem homossexuais. O desvio sexual é o caminho para a aberração erótica. Os pais deveriam entender que a aceitação da mãe de seu papel como uma mulher realmente feminina influenciará a sua filha desde uma tenra idade. O respeito da mãe pelo papel do pai como chefe da família ajudará o garoto pequeno a crescer sendo masculino. Mas se os próprios pais não tiverem certeza do que é o comportamento masculino e feminino

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apropriado hoje em dia... seus filhos se sentirão confusos a respeito de seu próprio lugar no mundo." Vamos acabar com a confusão entre os papéis dos sexos! Por outro lado, os liberais dos anos 1960 reconheceram tardiamente o fim das velhas e inabaláveis masculinidade e feminilidade: Vários especialistas deploraram a divisão rígida demais dos interesses masculinos e femininos em muitas famílias.80 Os pais modernos partilham atividades, mostrando assim a seus filhos como homens e mulheres se comportam de modos diferentes. Nos lares sexualmente normais, dizem os autores, a diferença básica entre mulheres e homens é ensinada naturalmente desde cedo. As meninas recebem bonecas para brincar. É dito aos meninos: Os meninos não choram. Uma preocupação excessiva no treino para usar o banheiro é evitada/'!

A maioria dos especialistas em comportamento sexual, dizem os Wydens, obcecados por autoridades, salienta que a heterossexualidade (fruto de uma criação sadia) é a melhor arma contra a homossexualidade= A luta pelo fim da homossexualidade exigia que os jovens fossem incitados à atividade heterossexual, percebida como um conselho dos radicais quanto ao sexo: Muitas pessoas acham que essa é uma idéia nova e um pouco assustadora. É dito que o Dr. Gebhard.'do Instituto Kinsey, afirmou aos conselheiros preocupados com as tendências homossexuais dos jovens: O único modo de evitar isso é incentivar a heterossexualidade. É preciso lutar com as mesmas armas.83

Essas palavras, lembrou Gebhard, chocaram alguns dos conselheiros." Esse' livro, e o gênero auto-ajuda que representa, mostra a doença intelectual que embota as mentes e freqüentemente ainda assola as discussões dos meios de comunicação de massa sobre a heterossexualidade e a homossexualidade." A repetição não crítica desse tipo de banalidade relativa aos sexos foi interrompida nos anos 1960 pela mobilização das feministas liberais, pelo aparecimento das feministas radicais e lésbicas, e por suas novas análises críticas da heterossexualidade.

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Entre 1890 e 1970 os termos heterosexual e homosexual passaram a fazer parte da cultura popular americana, construindo ao longo do tempo um cidadão sexual estável e um estranho pervertido instável, um ser sensual enquadrado na sociedade e um fora-da-Iei lascivo, um centro hetero e uma margem homo, uma maioria hetero e uma minoria homo. Os novos e rígidos limites tornaram o novo mundo erótico menos polimorfo. O termo heterossexual criou um novo ideal de sexo diferenciado do que era eroticamente correto, uma norma que afirmou a superioridade dos homens sobre as mulheres e dos heterossexuais sobre os homossexuais. As feministas questionaram essas hierarquias de sexos e prazer.

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" QUESTIONANDO A MISTICA HETEROSSEXUAL' ..

Alguns Veredictos de Feministas Liberais e Radicais

O movimento das feministas modernas deu início a uma nova era na história da ordem heterossexual, acusando-a publicamente de ser problemática. Um exame atento de vários comentários de feministas liberais e radicais de 1963 a 1975 revela que todas elas analisaram criticamente não só a supremacia masculina, como também o arranjo social da heterossexualidade. Os primeiros 3fiOS da segunda leva de feministas americanas incluem a publicação de 1963 de The Feminine Mystique, de Betty Friedan, analisado aqui por seu comentário sobre a heterossexualidade. Em 1966, a fundação por Friedan e outras da Organização Nacional para as ·Mulheres iniciou o movimento feminista liberal.' Essas feministas, lideradas por Friedan, mostraram às mulheres brancas, da classe média e com formação universitária as restrições no lar, no serviço doméstico e na criação dos filhos, e lutaram para integrá-Ias ao mundo maior do trabalho assalariado.' Começando por volta de 1967, as feministas radicais argumentaram que as mulheres constituíam uma classe socialmente diferenciada e sem poderes com base em seu sexo, cujo tratamentoofensivo era análogo ao dispensado aos afro-americanos, com base em sua raça. Como as feministas o viam, o problema das mulheres não era causado apenas por preconceito ou informações incorretas, e por

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isso não seria resolvido reeducando-se os intolerantes ou mal informados. Era uma parte integrante de uma desigualdade estruturada social e culturalmente.

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heterossexuais." Essas feministas começam a revelar a existência de uma política reprodutiva, uma política de sexos e uma política de prazer que apóiam a supremacia masculina e heterossexual. As obras das feministas liberais e radicais discutidas aqui (e muitas das análises das feministas lésbicas consideradas no próximo capítulo) influenciaram muito as feministas de seu tempo. Continuam a ser importantes devido aos modos diferentes como questionam um sistema heterossexual que opõe muita resistência a ser examinado.

Muitas feministas radicais foram para o movimento feminino da Nova Esquerda dos anos 1960, e suas análises sobre a posição social das mulheres enfatizaram a necessidade de mudanças substanciais além até mesmo dos salários iguais e da integração à força de trabalho defendidos pelas feministas liberais. As feministas radicais ligaram explicitamente o pessoal e sexual ao poder e à política, iniciando a primeira crítica feminista aberta da estruturação social da heterossexualidade.'

Muitas outras autoras poderiam ser analisadas em um estudo abrangente da crítica das feministas modernas à sociedade heterossexual. Todos os textos discutidos se originam de um, contexto político em grande parte branco e da classe média, e as feministas negras, as do Terceiro Mundo, as socialistas e psicanalíticas (entre outras feministas) oferecem suas críticas de seus próprios pontos de vista. As quatro escritoras discutidas merecem estudo por suas análises inovadoras, e pelo modo como começaram a trazer à luz o sistema heterossexual nem sempre visível. 8 Embora eu faça algumas objeções a essas análises, suas formulações corajosas, originais e provocadoras contribuíram para um fim histórico da suposição irrefletida de heterossexualidade.

O que exatamente essas feministas da segunda leva dizem sobre a norma social da heterossexualidade? E como as suas análises contribuem para a nossa compreensão da heterossexualidade como um sistema historicamente específico? Nas obras examinadas, a crítica de Friedan de The Sexual SeU (A Mistificação Sexual), que transforma as mulheres emSex Seekers (Pessoas que Buscam o Sexo), pode ser vista como uma censura implícita à heterossexualização das mulheres americanas do século 4 XX. As feministas radicais começaram a tomar as críticas desse tipo explícitas, formulando novos conceitos para analisar a heterossexualidade." Elas consideram o amor físico não só individual e emocional, mas também preeminentemente social. Ti-Grace Atkinson culpa The Institution of Sexual Intercourse (A Instituição do Ato Sexual). Kate Millett denuncia uma política heterossexual injusta dentro de uma política sexual mais ampla. Gay le Rubin usa pela primeira vez os termos heterossexualidade compulsória e sistema de sexos. Esses novos conceitos, criados durante essa luta, ainda são usados.

A:MíSTICA

FEMININA

DE FRIEDAN

Em 1963, Betty Friedan deu nome a The Problem That Has No N ame, (O Problema Que Não Tem Nome), chamando esse problema particular das mulheres de The Feminine Mystique (A Mística Feminina). Dessa forma ela criou uma expressão e deu título a um livro que marcou uma nova era na política feminista." The Feminine Mystique tomou-se rapidamente a bíblia das feministas da Organização Nacional para as Mulheres, pioneiras na luta por oportunidades iguais de emprego.!"

A análise da ligação problemática das mulheres à organização social da reprodução humana tem um papel importante nas críticas dessas feministas modernas à ordem heterossexual. Adistinção entre um sexo determinado biologicamente e uma feminilidade e masculinidade determinadas socialmente e mutáveis é outra estratégia central das análises dessas feministas do domínio dos homens e dos heterossexuais," Algumas salientam os efeitos negativos sobre as mulheres do privilégio masculino mostrado nos relacionamentos

Friedan explica que a mística feminina específica que definiu a feminilidade do início dos 1960. Aquele ideal prescrevia era no lar, sua função procriar e seu dever e apoiar o seu marido provedor. O antídoto

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é a norma historicamente final dos anos 1940 até o que o lugar das mulheres cuidar dos filhos, da casa, para essa prescrição fatal

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para as mulheres, segundo ela, é uma sociedade na qual as mulheres tenham liberdade para fazer todos os tipos de trabalho que os homens fazem e sejam tratadas como suas iguais. O feminismo de Friedan, colocado como uma questão de justiça, visa conquistar o maior número possível de adeptas para a causa feminista, que na época parecia estranha. No início dos anos 1970, Friedan criticou explicitamente a análise da política sexual oferecida pelas feministas radicais. Ela disse que a ênfase das radicais na liberação erótica das mulheres reproduzia a obsessão sexual das mulheres espoliadas pela mística feminina. Então é surpreendente a freqüência com que em The Feminine Mystique a própria Friedan se concentra na política de poder injusta que regula as relações heterossexuais de mulheres e homens. Contudo, Friedan nunca acusa claramente a norma heterossexual- sua crítica continua a ser diplomaticamente implícita. Por isso, sua crítica à sexualidade é freqüentemente uma crítica discreta à heterossexualidade. O uso de sexual quando ela quer dizer heterossexual não é uma estratégia apenas de Friedan. É um dos principais meios conceituais pelos quais as críticas modernas das relações eróticas entre homens e mulheres evitam as implicações perturbadoras de seus próprios relatórios, que questionam a heterossexualidade. Para que você possa apreciar a tática de Friedan, tente acrescentar hetero aos seus comentários sobre o sexual, que se seguem. Isso mostrará a freqüência com que a heterossexualidade é o seu objeto de crítica. As mulheres, diz Friedan, despendem em ~fW ávida busca sexual as energias agressivas que a mística feminina proíbe que usem para objetivos humanos mais amplos." A culpa de todos os problemas femininos é colocada em uma sexualidade desordenada: Se uma mulher tiver uma sensação de vazio pessoal, se ela se sentir insatisfeita, a causa deve ser sexual. A solução para o problema de toda mulher, sugere a mística feminina, é uma sexualidade bem ordenada. Mas até mesmo o sexo satisfatório com os homens não pode compensar a insatisfação das mulheres com o seu acesso restrito ao trabalho assalariado fora do lar. Contrariamente a essa mística, declara Friedan, as mulheres não podem viver apenas de sexO.12

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Para compensar as mulheres da classe média por sua vida doméstica, diz ela, a mística feminina oferece-lhes o sonho de uma relação erótica satisfatória com os homens. Essa teoria de heterossexualidade compensatória aparece em várias críticas ao hedonismo da vida social do Ocidente moderno.P O anti-hedonismo de Friedan rejeita a idéia de que as libidos heterossexualizadas das mulheres podem ajudar a promover a mudança social feminista. Friedan avisa que a busca feminina de sexo com os homens para resolver todos os seus problemas está afastando os homens americanos," A falha do arranjo sexual também está afastando as mulheres americanas, tornando-as insatisfeitas com os homens," Ela afirma que se fosse permitido às mulheres o trabalho satisfatório, elas apreciariam muito mais os relacionamentos eróticos com os homens." .Friedan critica uma organização da heterossexualidade historicamente particular e socialmente dominante, mas quase nunca lhe dá um nome. Quando por acaso se refere criticamente às relações heterossexuais, seus comentários negativos são equilibrados por comentários igualmentecríticos sobre o homossexuall? Ela cria uma semelhança problemática entre heterossexual e homossexual para criticar o estado de conflito das relações de mulheres e homens. Todas as suas referências conjuntas a heterossexuais e homossexuais enfatizam a sua semelhança. Mas Friedan deve compensar o fato de ter equiparado heteros a homos, e por isso faz um comentário um tanto exagerado: A homossexualidade que está se espalhando como um denso nevoeiro sobre a América não é menos nefasta do que a busca incessante e imatura de sexo das mulheres jovens ...l8 As referências de Friedan a uma homossexualidade que é masculina ou de sexo não especificado elimina a diferença cultural entre homossexualidade masculina e lesbianismo. As lésbicas não são sequer mencionadas em The Feminine Mystique. Friedan parece preocupada com o fato de que as mulheres altivas como ela própria há muito são chamadas de pervertidas sexuais. A perversão está na mente dessa feminista do século XX quando ela protesta contra a imagem estereotipada das feministas do século XIX:

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É uma perversão da história estranhamente não questionada a inspiração e o entusiasmo do movimento feminista terem vindo de solteironas amarguradas, com ódio dos homens e privadas de sexo, de mulheres assexuadas e castradoras que sentiam tanta inveja do pênis que queriam tirá-lo dos homens, exigindo direitos apenas porque não tinham a capacidade de amar [os homens] como mulheres.

Friedan então menciona antigas feministas que amaram homens e se casaram com eles.'? Ela assegura (falsamente) às suas leitoras que as feministas do século XIX promoveram a idéia de que a igualdade para as mulheres era necessária para liberar homens e mulheres para a verdadeira satisfação sexual.ê De fato, a maioria das feministas do século XIX argumentou que apureza especial das mulheres, sua libertação - ou seu controle - da sensualidade, era um bom motivo pelo qual elas mereciam a igualdade cívica. Apenas um pequeno grupo de feministas radicais favoráveis ao amor livre defendeu no século XIX a satisfação sexual de mulheres e homens - e ainda assim apenas quando sancionada pelo amor. O prazer erótico de mulheres e homens continuou ilegítimo como um valor independente até a invenção da heterossexualidade do século XX. Além disso, e ao contrário de Friedan, muitas feministas da primeira leva continuaram solteiras e tiveram relacionamentos românticos e às vezes eróticos durante as suas vidas inteiras com outras mulheres." Friedan afirma que a imagem das feministas do século XIX corpo desumanas, devoradoras de home:{'s, se foi expressa como uma; ofensa a Deus ou nos termos modernos da perversão sexual, não é diferente do estereótipo do negro como um animal primitiVO,•.• 22 Essa menção da perversão sexual (feminina) é o mais perto que Friedan chega em The Feminine Mystique de falar explicitamente sobre as lésbicas. A palavra lésbica parece ter uma carga emocional tão grande para ela que é literalmente indizível. A causa do problema de Friedan é esclarecida por um de seus comentários sobre as feministas americanas do século XIX: O ato delas foi de revolta, uma negação violenta da identidade da mulher como era então definida.ê O próprio ato de revolta de Friedan ao publicar The Feminine Mystique, em 1963, também negou firme-

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mente a identidade da mulher como era então definida. Mas como Friedan aceitou totalmente a imagem diabólica das lésbicas e dos homossexuais masculinos, teme a acusação de que todas as feministas são lésbicas. Está determinada a mostrar que é tão anti-homo quanto os homens (ou as mulheres), e se recusa a falar sobre as lésbicas. O medo da palavra lésbica é mencionado repetidamente nos ensaios das feministas radicais e lésbicas do início dos anos 1970.24 O estranho é que a anti-homossexualidade de Friedan é explicada pelas mesmas teorias psicanalíticas freudianas populares que ela critica veementemente para justificar a inferioridade das mulheres. Friedan introduziu um elemento importante na segunda leva do feminismo - uma crítica de Freud e seus seguidores. Quase todas as grandes feministas americanas criticam o sexismo de Freud ~ dos freudianos. . Friedan critica implicitamente os efeitos nocivos da heterossexualização das mulheres feita por Freud e seus discípulos no século XX. Ela faz uma distinção entre o freudismo inicial e o recente. No início do século XX, continua, a psicologia freudiana, com a sua ênfase na libertação de uma moralidade repressiva, e na satisfação sexual, foi parte a ideologia da emancipação feminina. Mas na época de Friedan o pensamento freudiano tornou-se o baluarte ideológico da contra-revolução sexual.é A nova religião psicológica que torna o sexo uma virtude (ela se refere ao sexo hetero) tem tido um efeito pessoal mais devastador sobre as mulheres do que sobre os homens, argumenta.ê" Apopularização da teoria freudiana deu às mulheres permissão para suprimir as questões perturbadoras do mundo em geral e buscar os seus próprios prazeres pessoaisF' Em. sua discussão sobre Freud, Friedan se concentra em como as suas teorias sexuais culparam as mulheres de inveja do pênis. Esse reducionismo psicológico nega que as mulheres que invejam o poder que a sociedade deu aos homens têm um motivo justo para isso." Ela se opõe repetida e eloqüentemente ao insulto essa anatomia é destino. Friedan também acusa Freud de ligar feminilidade a passividade e masculinidade a atividade.ê? Uma máscara de verdade eterna disfarça o caráter culturalmente relativo da análise de Freud das

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mulheres.v Sua exigência implícita é de uma análise historicamente específica da norma da feminilidade e da situação das mulheres _ o tipo de análise oferecida aqui da norma e da ordem heterossexual. A crítica de Friedan às idéias da antropóloga Margaret Mead aumenta a nossa compreensão da heterossexualidade como uma instituição historicamente específica e uma categoria criada cultu ..• ralmente." ., Levantando a bandeira antifeminista, Mead é a principal criadora de uma mística de maternidade moderna, acusa Friedan. Mead diz que todas as sociedades distinguem as mulheres e os homens com base na função procriativa das mulheres - e na inexistência dessa função biológica nos homens. Segundo Friedan, essa análise com base nas funções biológicas prende as mulheres à maternidade. Por outro lado, o relativismo cultural de Mead é famoso por enfatizar que, com exceção da gravidez, as prescrições de cada sociedade no que diz respeito à feminilidade e à masculinidade são totalmente determinadas pela cultura. Por exemplo, nos Estados Unidos, o feminino está ligado à passividade, e o masculino à atividade - em outros lugares, essas prescrições são inversas. Friedan cita Mead: Por baixo das classificações superficiais de sexo e raça existem as mesmas potencialidades em todos os seres humanos.P O relativismo cultural de Mead, diz Friedan,separa a mulher biológica da feminilidade social, e o homem biológico da masculinidade cultural. Essa separação enfraquece a base da mística que liga as mulheres à maternidade, à criação dos filhos e ao lar. A partir dessas observações antropológicas, diz Friedan, Mead poderia \','" <

ter passado para a cultura popular uma visão realmente revolucionária de mulheres finalmente livres para realizar tudo de que são capazes em uma sociedade que substituiu as definições sexuais arbitrárias por um reconhecimento dos verdadeiros dons individuais presentes em ambos os sexos."

Mas Mead divulgou uma mística de maternidade determinada biológica e funcionalmente que manteve as mulheres em seu Iugar.>' Podemos dizer de Friedan o que ela diz de Mead. Ela não consegue se dar conta das implicações básicas de sua crítica às

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definições sexuais arbitrárias criadas socialmente e !imitadoras do potencial humano. Friedan desmistifica a mística feminina, mas não condena - e até mesmo defende - a mística heterossexual. Friedan não amplia o seu insight e o de Mead para incluir um gênero culturalmente relativo e pôr em dúvida a aceitação social da heterossexualidade e a condenação da homossexualidade.

A ODISSÉIA AMAZONA

DE ATKINSON

Amazon Odyssey, de Ti-Grace Atkinson, inclui ensaios que datam de 1967 a 1972, doisdecujos títulosilustramoseuestiloprovocador: Vaginal orgasm as a M ass Hysterical Survival Response (O Orgasmo Vaginal como uma Reação Histérica em Massa de Sobrevivênciat e The Institution of Sexual Intercourse (A Instituição do Ato Sexual)." Atkinson se posiciona como uma supermilitante amazona: Estou sempre sendo criticada, mesmo dentro do Movimento Feminino, por ser tão guerreira." Sem mencionar com freqüência explicitamente a heterossexualidade, a análise de Atkinson, oferecida do ponto de vista de uma feminista separatista (não uma lésbica), começa a mostrar precisamente a formação de uma sociedade heterossexual como um arranjo injusto imposto culturalmente. A instituição do' relacionamento homem-mulher; diz ela, tem uma estrutura formalizada bastante simples, incluindo classes desiguais definidas pelo sexo que limitam o desenvolvimento das mulheres." Ela se opõe às feministas liberais da Organização Nacional para as Mulheres que, em sua opinião, temem abordar temas sexuais polêmicos, como aborto e lesbianismo. Os temas sexuais são fundamentais para a opressão das mulheres, declara Atkinson, e seus exemplos são em sua maioria heterossexuais. A instituição do ato sexual, continua, impõe o trabalho reprodutivo feminino, limitando as opções das mulheres." Falar do ato sexual como uma instituição coercitiva afirmou o seu caráter estruturado socialmente - uma nova idéia. Essa feminista radical critica as lésbicas por aceitarem a própria premissa da opressão masculina: a dinâmica do. ato sexual. As lésbicas aceitam a idéia de que os seres humanos são antes de tudo

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A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUAUDADE

Aqui Atkinson contesta um princípio importante da ética sexual moderna: o da centralidade e do valor do erotismo. Ela afirma que a heterossexualidade feminina e masculina e o lesbianismo são muito problemáticos: A nossa sociedade nunca coseres sexuais/"

nheceu uma época em que o sexo em todos os seus aspectos não foi explorador e as relações baseadas nele, como por exemplo, o relacionamento homem-mulher, não foram extremamente hostis. Portanto é difícil compreender como o ato sexual poderá ser um dia resgatado como uma prática, mesmo se abolido como uma instituição.ê

A liberação das mulheres, como ela a vê, é uma luta por uma sociedade em que o sexo não seja fundamental, pessoal ou politicamente:" Então, as relações sexuais seriam determinadas individualmente, não socialmente= Em sua opinião, com os arranjos atuais a sexualidade de todas as pessoas está sujeita a um sistema de seleção psicolágicoP Atkinson imagina uma sexualidade não institucionalizada que não tem uma função social, uma sociedade na qual a reprodução não mais exija o esforço cooperativo de mulheres e homens. Então, as possibilidades físicas da sensação sexual poderiam ser plenamente • realizadas por si sós, totalmente separadas da procriação. Mas em uma sociedade assim, pergunta ela, você poderia ter algo remotamente parecido com o que conhecemos hoje como relações sexuais?" Depois de uma revolução desse tipo, sugere ela, precisaríamos de um novo vocabulário e de novos conceitos para expressar os nossos novos prazeres.

EI'1 mostra o processo histórico pelo 'qual o orgasmo vaginal (heterossexual] foi apontado para as mulheres 'como o único modo adequado de ter prazer. Como o casamento foi ameaçado no final do século XIX pela crítica feminista às suas injustiças e pela crescente independência econômica das mulheres, a teoria do orgasmo vaginal foi inventada por Freud para coagi-Ias a continuarem a sua participação no ato sexual e na reprodução.v' Ela argumenta que a divisão de seres humanos em mulheres e homens se baseia em U~divisão de trabalho sexual basicamente desigual: as mulheres reproduzem a espécie, e os homens fazem todo o resto.

QUESTIONANDO A MíSTICA HETEROSSEXUAL

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Mas por que, pergunta ela, a sociedade deve continuar a usar a diferença física entre os órgãos reprodutores femininos e masculinos como a base para as distinções entre dois sexos, dois tipos de trabalhadores? Em sua opinião, isso faz tanto sentido quanto dividir seres humanos segundo as suas características físicas como cor da pele e dos cabelos, ou altura." Ela afirma que a classificação em sexos é assimétrica: as mulheres são definidas e limitadas por sua classificação sexual; a classe dos homens está livre da classe sexual. 47 Por isso as mulheres devem contestar radicalmente a sua classificação política segundo o sexo." Para melhorar a sua condição, as pessoas definidas como mulheres devem acabar com a sua próprio. definição - essa classificação está em desacordo com a sua humanidade e individualidade. As mulheres, declara ela, devem, em um certo sentido, cometer suicidio/" .Em sua análise, as mulheres são uma classe oprimida que, para livrar-se da perseguição, deve cavar os túmulos, não só para a classe dos homens, como para a sua própria. A liberação feminina exige o fim de mulheres e homens como categorias socialmente significativas, o fim não só dos papéis dos sexos, como também das distinções entre os sexos. Se isso parece absurdamente utópico, a sociedade que Atkinson imagina é uma em que o sexo não mais serviria como um critério principal parI!determinados tipos de trabalho - uma sociedade cega aos sexos agora imaginada tanto pelas feministas liberais como pelas radicais. Esse ideal também implica o fim da diferença heterossexual/homossexual, porque esses termos se baseiam, em parte, na distinção homem/mulher. (Ela ainda não faz uma distinção entre sexo determinado biologicamente e gênero determinado socialmente.) A desconstrução do sexo como uma categoria socialmente notável, reconhece Atkinson, seria uma mudança revolucionária. Ela admite que a passagem da feminilidade para uma sociedade de indivíduos é difícil.5o De igual modo, eu sugiro que a superação da divisão hetero/homo é igualmente difícil e também deve ser considerada. Por que as mulheres se unem a homens qUe as dominam?pergunta Atkinson. As feministas radicais precisam de uma teoria de atração para explicar por que as mulheres, até mesmo as feminis-

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tas, se unem ao inimigo. Fazem isso por sexo? Ela duvida. O que quase todas as mulheres respondem é: por amor," Atkinson salienta que como o amor das mulheres pelos homens envolve um relacionamento de desiguais do ponto de vista social, é muito problemático. Talvez a característica mais condenatória das mulheres seja que, diante da terrível evidência de sua situação, elas continuam a afirmar teimosamente que, apesar de tudo, amam o seu Opressor. 52

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O amor, insinua Atkinson, é opivô psicológico na perseguição às mulheres, a corrente que prende as mulheres oprimidas aos homens opressores, mantendo-as em seu lugar.53 Seu amor pelos homens é uma reação típica dos subordinados, uma reação tradicional à profunda opressão, refletindo a identificação das mulheres e sua renúncia à sua própria autonomia." Seu amor pelos homens é uma malograda tentativa de se tornarem humanas. Unindo-se a um homem a mulher espera tornar indistinta a dicotomia de papéis masculinos e femininos, e fundir-se com o universal. 55 Não nomeando explicitamente e nem especificando a heterossexualidade em seus ensaios, Atkinson toma a sua análise um pouco vaga. Mas o fato de ela ter mostrado a problemática das relações eróticas entre mulheres e homens toma o seu texto uma crítica inovadora à sociedade heterossexual.

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1 A POLíTICA SEXUAL DE MILLETT

Em todo o seu livro SexualPolitics, publicado em 1970, Kate Millett mostra- uma ligação estreita entre a supremacia masculina e um sistema 'de casta heterossexual. Ela também se refere a uma ortodoxia heterossexual problemática, a uma postura heterossexual e a um ativismo heterossexual fanâtico= Sexual Politics é um dos primeiros textos feministas modernos importantes a incluir uma crítica totalmente explícita à heterossexualidade. O uso repetido que Millett faz desse termo é fundamental para a sua descoberta das ligações entre a supremacia masculina e heterossexual. A sua denúncia famosa se baseia em exemplos do domínio masculino e heterossexual tirados da literatura de ficção de quatro autores famosos, D. H. Lawrence, Henry Miller, Norman Mailer e

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Jean Genet. As citações que Millett faz desses autores mostram com extrema clareza como a supremacia dos homens e dos heterossexuais permeia até mesmo os encontros eróticos mais íntimos dos sexos, constituindo uma política do sexual. A idéia de uma política sexual foi surpreendente em 1970, contrariando a noção dominante de política como voto, e de sexual como individual, psicológico ou biológico. Embora a idéia de uma política pessoal tivesse sido parte da retórica da Nova Esquerda, a idéia de uma política sexual foi estarrecedora. O conceito de que as relações sexuais são organizadas socialmente, podendo assim ser reorganizadas, e até mesmo de um movimento de política sexual, existira brevemente na Alemanha entre os sindicalistas, os esquerdistas e as feministas antes da subida dos nazistas ao poder. Mas depois que, em 1933, os fascistas queimaram livros sobre sexo e fecharam o Instituto Magnus Hirschfeld de Ciência Sexual, a idéia de uma política sexual e a história do movimento de política sexual foram esquecidas, e o sexual e o político se separaram. 57 O livro de Millett trouxe de volta abruptamente a política sexual. , No início de Sexual Politics, Millett cita uma descrição surpreendente de sodomia heterossexual forçada, do livro de Norman Mailer, An American Dream (1964): Eu enfiei O pau no cu dela e gozei gostoso. Ela deu um grito de ódio.58

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Millett, ironicamente, monta o cenário: O herói de Mailer, Stephen Rojack, acabou de matar a sua mulher e está agora extravasando os seus sentimentos tendo sexo anal (àforça) com a sua empregada. Mailer, afirma Millett se identifica claramente com o seu herói, um homem motivado para matar por sua incapacidade

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de dominar a companheira por outro meio que não o assassinato. O desejo por esse domínio é bastante compreensível para Mailer e até mesmo desperta a sua símpatta."

A revelação anterior da esposa desafeiçoada de Rojack de que havia praticado a sodomia com seus novos amantes é, segundo Millett, o golpe final para a sua vaidade, o seu sentimento de

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propriedade e... o seu suposto direito inato de estabelecer as regras. Por isso, ele reage prontamente estrangulando a esposa rebelde= MilIett afirma que o estupro sodomítico da empregada é igualmente motivado pelo desejo de Rojack de admitir a morte e o mal, simbolizados por Mailer pelo reto. (MilIett diz que Mailer atribui um significado profundamente moral, até mesmo religioso, ao ânus e à vagina.) Ela afirma que Rojack deseja conseguir através da penetração anal a capacidade natural de autopreservação da classe inferior atribuída à sua empregada proletária - porque essa mulher possui o conhecimento de um rato da cidade (ela cita Mailer).61 A sodomia, continua Millett,

o texto de Mailer, comenta Millett, mostra os velhos dualismos, homem e mulher, virilidade e efeminação, enfrentando o duplo perigo da diminuição do domínio masculino e do fascínio perigoso da homossexualidade ... Nesse momento difícil

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A análise que Millett faz de Mailer mostra repetidamente uma ligação problemática entre a masculinidade, a violência viril e a dúvida a respeito da identidade heterossexual masculina. Para os homens de Mailer, diz ela, o verdadeiro abismo é

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o medo da não existência. Isso, ou o medo secreto da homossexualidade; uma mistura de pecado, fascínio e medo que orienta Mailer para sua postura heterossexual. Ser bicha, amaldiçoado, leproso _ deixar de ser viril - era também ser, ou tomar-se, a forma mais grotesca de inferio. ridade feminina - homossexual.63 .,

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A descrição de Millett da postura heterossexual dos homens continua a ser uma análise sugestiva da mente do macho hetero. No código de masculinidade de Mailer, diz Millett, heterossexual é igual a masculino, que é igual a brutal. A definição que Mailer faz de masculinidade, afirma ela, depende de um ativismo heterossexual fanático e da violência que ele imagina ser parte da natureza masculina. Se ele não tiver uma das duas coisas, deixará de existir.64

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o Machismo ficá acuado, temendo a ameaça de uma segunda revolução sexual que, acabando com o medo da homossexualidade, contestaria todas as categorias do temperamento (masculino e feminino) da cultura patriarcal...6S

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tem vários significados possíveis na mente de Rojack: a homossexualidade (ele confessa para Cherry [sua amante] que tem algumas dúvidas em relação à sua vocação heterossexual); um tipo proibido de sexualidade em que ele é especializado e do qual tem direitos exclusivos; ou estupro anal, que é o seu modo de expressar um desrespeitoso domínio.62

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Millett até mesmo inicia experimentalmente uma abordagem histórica da heterossexualidade. Ela se refere a uma ligação temporal entre a masculinidade, a violência e a sociedade heterossexual. Em um clima de contra-revolução sexual, uma era de reação contra os avanços feministas, que Millett situa entre e 1950 e 1970, a homossexualidade é uma grande ofensa à ortodoxia heterossexual; um pecado imperdoável que leva inevitavelmente os pecadores para as regiões sombrias em que habitam os amaldiçoados. E essa equiparação de homossexualidade e não violência a efeminação é... do próprio Mailer, ou de uma época e um lugar (a América nas últimas duas décadas).66

Eu acho que a sua especificação de uma estrutura de tempo particular é bastante apropriada. Por exemplo, as antigas colônias americanas formam um nítido contraste com a era moderna que ela discute; nelas não se achava que o ato sodornítico de um homem com outro desmasculinizava qualquer uma das partes, mas esse ato era condenado como um desperdício de esperma procriativo . Essa feminista radical até mesmo discute a invenção de uma atitude histórica mutante em relação ao amor heterossexual. Dessa forma, ela começa a especificar uma história de reações mutantes a uma essência heterossexual eterna: Se uma atitude positiva em relação ao amor heterossexual não existe realmente no famoso dito de Seignebos, uma invenção do século XII, ainda pode pretender ser uma novidade. Quase todos os patriarcados fazem o possível para excluir o amor [entre mulheres e homens] como base da seleção de consortes. Os patriarcados modernos tendem a fazer isso através de fatores sociais, étnicos e religiosos. O pensamento clássico ocidental tendeu a ver no amor heterossexual um golpe fatal de

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má sorte destinado a terminar em tragédia, ou uma união desprezível e irracional com seres inferiores. A opinião medieval foi firme em sua convicção de que o amor era pecaminoso se sexual, e o sexo pecaminoso se amoroso.67

Millett diz que a história de Adão e Eva é, entre outras coisas, uma narrativa de como a humanidade inventou o ato sexual. As narrativas folclóricas, como a de Adão e Eva, nos impressionam agora como histórias divertidas de inocentes primitivos que exigem muita instrução para serem compreendidas.68 Uma noção embríonária da construção social e histórica da heterossexualidade formando na mente dessa feminista.

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Os comentários de Millett sobre a sociedade heterossexual são bem desenvolvidos em sua análise da sociedade homossexual descrita por um homossexual. Nos romances e nas peças de Jean Genet, os personagens desse escritor francês homossexual servem como espelhos críticos dos heterossexuais da vida real da sociedade: Devido à perfeição com que os homossexuais masculinos de Genet

imitam e exageram o "masculino" e "feminino" da sociedade heterossexua~ seus personagens representam o melhor insight contemporâneo de sua constituição e suas crenças.69

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Analisar os homossexuais para entender os heterossexuais é uma tática anteriormente adotada por Freud. Mas a análise freudiana do homossexual para o heterossexual freqüentemente serviu à causa da normalização heteroerótica. Millett analisa do homossexual para o heterossexual para revelar a subordinação feminina típica da SOciedade heterossexual dominante. 70 Os ~ersonagens homossexuais masculínos de Genet, salienta 'Millett, penetraram infalivelmente na essência do que a Sociedade

heterossexual imagina ser a qualidade característica do "masculino" e "feminino ", e que confunde com a natureza do homem e da mulher, preservando assim a relação tradicional dos sexos. 71 Aqui Millett critica a confusão de distinções entre os sexos, injustas e construídas socialmente com as diferenças sexuais determinadas biologicamente.72 A literatura de ficção de Genet, enfatiza ela, constitui uma descrição detalhada do bárbaro tributo das ordens sexuais, a estrutura de poder de "masculino" e "feminina" como é mostrada ",

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por um mundo do crime homossexual que imita perfeita e brutalmente a sociedade heterossexual burguesa. A explicação de Genet do código homossexual se toma uma sátira ao heterossexual. Em virtude de sua seriedade, a comunidade de homossexuais de Genet ridiculariza o comportamento que tão bem imita ... 73

Seus comentários ligam a construção social do gênero (a masculinidade e a feminilidade) à produção social do erotismo de sexo diferenciado (da heterossexualidade e da homossexualidade). A análise que Millett faz de Genet indica como a sociedade usa as distinções sexuais biológicas para criar a desigualdade civil de homens e mulheres. Ela concorda com a interpretação de Genet de que a própria distinção homem/mulher da sociedade é o protótipo de uma desigualdade institucionalizada. Ele está convencido de que dividindo a humanidade em dois grupos [homens e mulheres] e apontando um para dominar o outro por direito inato, a ordem social já estabeleceu e ratificou um sistema de opressão que inspirará e corromperá todos os relacionamentos humanos, assim como todas as áreas de pensamento e experíência."

Ao longo de toda a sua peça The Balcony, conclui Millett, Genet explora a patologia da virilidade, a quimera das relações sexuais como um paradigma de poder.sobre outros seres humanos. Ele parece ser o único escritor vivo de primeira linha que transcendeu os mitos sexuais da nossa era. Sua crítica à política heterossexual mostra o caminho para uma verdadeira revolução sexual, que deve ser explorado para haver qualquer mudança social radical. 75

Millett termina

o seu livro com a esperança

não só de uma

revolução sexual, como de uma luta conjunta pelo fim do papel social ou predeterminado, liderada pelos grupos expropriados negros, jovens, mulheres e pobres. As lésbicas e os militantes gays ainda estavam muito mal organizados e envolvidos em debates polêmicos para que essa feminista radical os incluísse em sua lista de possíveis revolucionários. Não é possível mudar a qualidade de vida e a personalidade, insiste Millett, sem livrar a humanidade da tirania da categoria

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sexual social e da conformidade com o estereótipo sexual _ e acabar com a classe racial e econômica. 76

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Desconstruir os binários homem/mulher, masculino/feminino e hetero/homo é uma pretensão descabida, diz Millett, uma tarefa ligada ao fim das distinções entre brancos e negros, capitalistas e trabalhadores assalariados, e a outras transformações revolucionárias.

"THE TRAFFIC IN WOMEN"

Na revista Time de 8 de dezembro de 1970, um artigo intitulado "Women's Líb: A Second Look", noticiou a crítica recente ao movimento feminista. As feministas podem pensar claramente?, perguntava o artigo:

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Em resposta à crítica desagradável a Millett publicada no Time em todo o país, as feministas radicais e liberais formaram uma rara frente unida. Em uma grande reunião da imprensa em 18 de dezembro de' 1970, várias escritoras feministas importantes se uniram à diretoria da Organização Nacional para as Mulheres, e à diretoria de sua sede em Nova York, para apoiar Millett enquanto ela lia uma declaração contra a acusação de lesbianismo lançada contra as feministas. Eis parte da declaração:

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DE RUBIN

Em 1975, Gayle Rubin publicou o seu ousado ensaio. ''The Traffic in Women: Noteson the 'Political Economy' ofSex", propondo um novo modo de pensar a organização social do sexo biológico e a criação social da feminilidade e da masculinidade - o sistema sexo/gênero, como inovadoramente o chamou.

Na análise de Millett, os relacionamentos heterossexuais são profundamente problemáticos. E contudo a sua análise crítica da ordem hetero é incompleta. Ela contesta as limitações das psicologias masculina e feminina, a rigidez da distinção homem/mulher e o caráter hierárquico da divisão heterossexual/homossexual. Mas não vai um passo além para contestar radicalmente as próprias categorias heterossexual e homossexual.

Elas sabem alguma coisa sobre biologia? E sobre a sua maturidade, sua moralidade e sua sexualidade? Ironicamente, a própria Kate Millett contribuiu para o crescente ceticismo em relação ao movimento, admitindo em uma reunião recente que é bissexual. Essa revelação há de desacreditá-Ia como uma representante da sua causa, lançar mais dúvidas sobre as suas teorias e reforçar as opiniões dos céticos que comumente acham que todas as liberais são lésbicas. n

Uma sociedade neutra no que diz respeito ao gênero e indiferente à preferência sexual foi um sonho declarado publicamente das feministas radicais e dos liberais gays e lésbicas do início dos anos 1970.

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A liberação feminina e a liberação homossexual estão lutando por um objetivo comum.Uma sociedade que não defina e classifique as pessoas por seu gênero e/ou sua preferência sexual."

Seu ensaio também ofereceu idéias originais sobre o que ela chamava de heterossexualidade obrigatória e heterossexualidade compulsória. A produção da heterossexualidade se revelou sob o escrutínio de Rubin. As feministas liberais e radicais tinham anteriormente tentado denunciar a configuração social da biologia do sexo e do gênero. Mas quando Rubin publicou o seu "Traffic in Women", o sexo, o gênero e a sexualidade ainda eram com freqüência considerados essencialmente biológicos. Quando se refletisse sobre a masculinidade e a feminilidade, estas poderiam ser compreendidas, vagamente, como definidas socialmente, diversas e relativas. As variações culturais nas características de personalidade de homens e mulheres foram amplamente anunciadas pelos escritos de Margaret Mead. Mas as feministas modernas chamaram mais atenção para o uso social de indicadores visíveis, físicos, e das diferenças entre os sexos produzidas socialmente. A referência de Rubin a um sistema de sexo/gênero discutiu as diferenças de sexo e gênero como produtos de um arranjo social específico. Sua nomeação inovadora do sistema sexo-gênero ajudou a aprovar um novo método de reflexão. Rubin era então uma estudante universitária trabalhando em seu doutorado em antropologia e lecionando no programa Estudos Femininos da Universidade de Michigan, onde conhecera muitos tipos de política [eminina/" Seu ensaio teórico discute três instituições implícitas na análise do antropólogo Claude Lévi-Strauss da organização social dos sexos. Essa organização, diz ela, se apóia

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no gênero, na heterossexualidade obrigatória e na repressão da sexualidade feminina. 80 Rubin explica as três bases do sistema de sexo: (1) O gênero é uma divisão dos sexos imposta socialmente, o produto de um processo cultural em que os homens e as mulheres biológicos são transformados em homens e mulheres domesticados: (Sua metáfora da domesticação sugere machos e fêmeas selvagens transformados em mulheres e homens dóceis.) É claro que homens e mulheres são diferentes, diz ela, mas a idéia de que são duas categorias mutuamente exclusivas não surge de uma diferença natural. Os sexos não são naturalmente opostos. Os sexos opostos são construídos socialmente pela supressão das semelhanças naturais, afirma Rubin. Os homens devem reprimir qualquer que seja a versão local de características 'femininas'. As mulheres devem reprimir a definição local de características "masculinas" .81 A divisão social do trabalho por sexo, explica ela, é a causa da oposição entre os sexos. Essa divisão do trabalho exacerba as diferenças biológicas entre os sexos, separando mulheres e homens • em duas categorias mutuamente exclusivas. Assim, a divisão sexual do trabalho cria gênero, um contraste fundamental entre mulheres e homens.F (2) A heterossexualidade obrigatória é reforçada por vários meios, argumenta Rubin. Seu termo nomeia de forma inovadora a criação sistemática e coercitiva de um eros de sexo diferente - a heterossexualidade. Ela ~gumenta que a criação da heterosseiualidade obrigatória está ligada à separação anterior do trabalho por sexo. Inspirada pela análise de Lévi-Strauss, Rubin diz que o objetivo social da divisão sexual do trabalho é garantir a união de homens e mulheres fazendo a menor unidade econômica viável conter pelo menos um homem e uma mulher. Ela cita Lévi-Strauss: a divisão sexual do trabalho não é nada mais que um artifício para instituir um estado recíproco de dependência entre os sexos. 83 Rubin questiona a simetria da dependência de um sexo do outro, mas sua dependência mútua é um tema repetido. A divisão sexual do trabalho cria necessidades em cada sexo que só podem ser

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1 satisfeitas pelo outro. Isso produz um forte incentivo social para mulheres e homens unirem forças em relacionamentos heterossexuais estabilizados pelo casamento legal. Rubin avisa com ironia que Lévi-Strauss

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chega perigosamente perto de dizer que a heterossexual idade é um processo instituído. Se os imperativos biológicos e hormonais fossem tão irresistíveis como afirma a mitologia popular, não seria necessário garantir uniões heterossexuais por meio de interdependência econômica."

Rubin diz que a criação de uma heterossexualidade obrigatória também cria uma anti-homossexualidade obrigatória. Porque a primeira envolve a supressão do componente homo da sexualidade humana e a concomitante opressão dos homossexuais." Mas o sistema social que coloca os heterossexuais acima dos homossexuais produz, em sua opinião, imagens mais complexas do que é sugerido por qualquer hierarquia simples superior/inferior. Um exame atento dos sistemas sexuais específicos indica que as regras das relações humanas adequadas apenas incentivam a heterossexualidade em detrimento da homossexualidade. Essas regras estimulamformas específicas de heterossexualidade. Por exemplo, alguns sistemas de casamento têm uma regra obrigatória de união com primos. Uma pessoa nesse sistema não é apenas heterossexual, mas 86

também sexual nesse tipo de união.

De igual modo, formas particulares de homossexualidade institucionalizada são produzidas pelos sistemas sexuais de diferença.87Rubin cita um costume mojave que permitia que uma pessoa mudasse de um sexo para o outro. Nessa sociedade o sexo não era visto como anatomicamente determinado. O sexo de uma pessoa era criado socialmente pela escolha do trabalho, do comportamento e do modo de vestir do outro sexo. Na sociedade mojave, um homem anatõmico podia tornar-se uma mulher [social] por meio de uma cerimônia especial. Uma mulher anatômica podia tomar-se um homem [social]. A pessoa que optara por essa troca arranjava então uma mulher ou um marido do seu próprio sexo anatômico e do sexo social oposto. Esses casamentos, que rotularíamos como

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homossexuais, eram heterossexuais segundo os padrões mojave, uniões de sexos definidos socialmente como opostos.ê"

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Rubin questiona a idéia de uma homossexualidade e heterossexualidade absolutas e imutáveis, salientando as suas formas sociais muito diferentes. Ela emprega heterossexual e homossexual como categorias trans-históricas com manifestações históricas particulares." (3) A repressão da sexualidade feminina resulta de uma organização social em que as mulheres são, de fato, possuídas, controladas e trocadas como presentes pelos homens, um sistema com um efeito profundo na configuração social das relações heterossexuaís.v Se o tráfico de mulheres praticado pelos homens soa como um raro ritual nativo, ela sugere que os leitores se lembrem do curioso costume pelo qual o pai conduz a noiva ao altarP' Ao que parece, o filme O Pai da Noiva documenta o estranho ritual dos americanos protestantes anglo-saxões. O pai conduzir a noiva ao altar, trocar a sua filha por um genro, presume que ela era sua propriedade. Mesmo se o direito de proprie-. dade da filha é agora uma mera formalidade nos Estados Unidos, Rubin afirma que as mulheres ainda assim não conduzem ao altar, trocam e traficam homens. Mesmo as mulheres modernas não são incentivadas a se entregarem - a dispor de seus próprios corpos e de sua sexualidade - tão prontamente quanto os homens. As relações de homens e mulheres ainda são assimétricas.P Rubin afirma que a troca de mulheres é um conceito analítico importante, porque fofoca a opressão das mulheres dentro dos sistemas sociais, em vez de na biologia= De igual modo, contradizer a idéia biológica dominante de heterossexualidade nos ajuda a situá-Ia dentro de um sistema histórico particular. Em um parágrafo sobre as teorias psicológicas de Sigmund Freud e Jacques Lacan, Rubin reflete sobre a construção do desejo heterossexual feminino. Aqui, ela descreve como as noções de sexo e gênero, formuladas primeiro como regras sociais externas, penetram no fundo de nossas mentes. O reconhecimento anterior de Freud de que a menina-filha primeiro ama a mulher, sua mãe, contesta, segundo Rubin, a idéia de uma heterossexualidade primordial [feminina]. Como a libido

QUESTIONANDO A MíSTICA HETEROSSEXUAL

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de uma garota é dirigida primeiramente à mulher, sua eventual suposição de heterossexualidade é algo a ser explicado." Ela diz que Freud e Lacan explicam que uma garota internaliza o sistema de hierarquia sexual e de poder de sua cultura, percebe que não tem o órgão genital mais valorizado, rejeita o seu amor original pela mãe e o direciona para o pai e outros possuidores de pênis." A regra da heterossexualidade que domina o cenário, diz Rubin, toma a posição de uma garota insustemâvel'" Ela está sempre dependendo de um homem para o seu próprio sentido de poder e valor. O relato de Rubin da criação dos heterossexuais femininos mostra o quanto esse processo é destrutivo para o sentido de autonomia das mulheres. Contudo, ela enfatiza que esse processo é determinado socialmente, e portanto mutável. Em um importante ensaio publicado em 1984, Rubin reviu e aperfeiçoou o seu conceito original do sistema sexo/gênero. Ali ela distinguiu mais enfaticamente a estruturação social do gênero (masculinidade e feminilidade) da organização sistemática do erotismo (ou desejo).97 Distinguir as histórias diferentes de feminilidade, masculinidade e prazer sexual é fundamental para a história em andamento da heterossexualidade como um sistema específico. Adescrição que Rubin fez em 1975 de um sistema de sexo/gênero contrário ao desenvolvimento da mulher sugere que essa ordem opera com uma certa autonomia, à parte da economia e de outros sistemas importantes. Seu sistema de sexo/gênero não pode ser entendido apenas como determinado por esses outros sistemas." Cada sistema de sexo/gênero tem a sua própria estrutura interna e uma lógica operacional única. Precisamos separar sexo e gênero, diz ela, do modo de produção econômica. Por outro lado, Rubin é explicitamente a favor de uma economia política do sexo que nos mostrará as ligações entre normas de relações íntimas, sistemas de casamento e arranjos econômicos e políticos maiores." Porque os sistemas sexuais não podem ... ser entendidos em total isolamento. Nós precisamos, diz ela, de uma economia política de sistemas sexuais. Temos de estudar cada sociedade para determinar os mecanismos exatos pelos quais as convenções particulares de sexualidade são produzidas e mantídas.l'"

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Nós precisamos, sugere ela, de um relato histórico sistemático que reconheça a interdependência mútua de sexualidade, economia e política sem subestimar a grande importância de cada uma na sociedade humana.r" Eu acho que para compreendermos a história da heterossexualidade é preciso que haja uma análise de sistemas similares. O final do ensaio de Rubin de 1975 discute as mudanças estruturais da sociedade necessárias para a realização de seu sonho de uma sociedade sexualmente igualitária, uma sociedade sem hierarquia de gênero.102 Seu sonho do sexo futuro inclui a eliminação das sexualidades obrigatórias e dos papéis dos sexos, e a criação de uma sociedade andrógina e sem gênero (embora não assexuada). Sua visão é claramente feminista pró-sexo. Em sua utopia erótica a anatomia sexual de uma pessoa é irrelevante para quem ela é, o que faz e com quem faz amor. 103 Rubin ainda questiona muito a heterossexualidade. As feministas liberais e radicais heterossexuais, bissexuais e lésbicas foram as primeiras a fazer uma crítica à sociedade heterossexual. Até mesmo Friedan, contrária como era à ênfase das feministas no erotismo, e temendo como temia criticar explicitamente a ordem heterossexual, exigiu uma análise historicamente específica das intimidades dos sexos. E ela criticou as definições sexuais injustas em nome de um maior desenvolvimento humano. Sem nomear precisamente a heterossexualidade, a análise de Atkinson situou de maneira nova o ato sexual de mulheres e homens dentro de u~a instituição social. Millett falou explicitamente sobre a heterossexualidade como um arranjo social. Rubin, lançando a idéia de um sistema de sexo/gênero, insinuou que a heterossexualidade é um processo instituído socialmente. Mais tarde escritoras falando de um ponto de vista explicitamente feminista-lésbico aumentaram o nosso insight da organização social e até mesmo histórica do sistema heterossexual.



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,. A AMEAÇA LESBICA REVIDA Algumas Críticas de F eministas-Lavanda

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Em março de 1970, Betty Friedan foi citada em The New York Times Magazine, mencionando a ameaça lavanda, as feministas lésbicas que, segundo ela, davam uma má reputação às outras feministas.' O ansioso epíteto de Friedan apoiou a acusação antifeminista de que o movimento feminino era composto apenas por um monte de lésbicas. Mas mesmo então as ameaças lésbicas estavam começando a revidar. ., Por volta de 1970, análises de uma perspectiva claramente feminista lésbica começaram a mostrar a combinação da supremacia masculina e heterossexual, algumas até mesmo enfatizando a contribuição causal do domínio heterossexual para o domínio masculino. As feministas lésbicas enfatizaram o efeito controlador da norma heterossexual sobre as mulheres heterossexuais, assim como sobre as lésbicas. As críticas explícitas das feministas lésbicas à ordem heterossexual favoreceram o rompimento inspirado nas feministas com a suposição. comum e irrefletida de heterossexualidade. As lésbicas *Grupo de feministas lésbicas que se distingue por usar camisetas de cor lavanda. (N.T)

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que eram feministas começaram a representar um momento histórico em que a heterossexualidade foi publicamente questionada. Revendo o passado, não é de espantar o fato de que as feministas lésbicas contribuíram sensivelmente, de seu posto de observação particular, para a análise feminista do arranjo social da heterossexualidade. Sem refletir muito a respeito, tanto o antí-homossexual fanático quanto o defensor dos gays e das lésbicas podem presuÍnir que toda a crítica feminista à ordem heterossexual tende a ser uma criação especificamente lésbica. Mas eu observo que a crítica feminista à heterossexualidade não foi totalmente obra de lésbicas, e até mesmo o feminismo anti-homossexual de Friedan inclui uma crítica implícita à ordem heterossexual. As mulheres identificadas como heterossexuais, bissexuais e lésbicas contribuíram para as análises feministas liberais e radicais anteriormente discutidas. Entretanto, mesmo quando feitas por mulheres que se identificavam como lésbicas ou bissexuais, essas críticas não se posicionavam claramente de um ponto de vista feminista lésbico. O debate público sobre a questão permitiu o desenvolvimento de uma crítica mais detalhada ligando a suprema, cia heterossexual ao domínio masculino. ., Esse exame atento de alguns comentários importantes de feministas lésbicas sobre a heterossexualidade - um comunicado lésbico radical, uma antologia editada por Nancy Myron e Charlotte Bunch, com análises de Monique Wittig e Adrienne Rich - põe em foco os insights especiais' e os aspectos problemáticos desse feminismo em particular.ê

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DAS LESBICAS

RADICAIS

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Em' 1 de maio de 1970, trezentas feministas de cidades e opiniões políticas diferentes se reuniram em uma escola de Nova York para a abertura da segunda Conferência Anual para a União das Mulheres. Uma narrativa tirada de reportagens da imprensa alternativa descreve o início dramático e inesperado daquele final de tarde histórico. Subitamente, as luzes do auditório se apagaram. Houve gritos e sons de passos arrastados. Logo. as luzes voltaram a ser acesas, revelando

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paredes cheias de cartazes: LEVE UMA LÉSBICA PARA ALMOÇAR; ... O MOVIMENTO FEMININO É UMA CONSPIRAÇÃO DE LÉSBICAS ... Cercando a estupefata platéia havia 17 mulheres sorridentes usando camisetas cor de lavanda onde se lia em letras vermelhas AAMEAÇALAVANDA. Naquele momento o movimento de liberação feminina se viu enfrentando o medo que o dominara desde o seu início?

Interrompendo o programa da conferência, as críticas estampadas nas camisetas ironizavam a referência de Betty Friedan às lésbicas no movimento feminista. Como parte dessa ação, um grupo de lésbicas radicais entregou o seu ensaio ''The Woman-Identified Woman" [A Mulher Identificada com Mulher], e esse manifesto foi publicado logo depois no jornal de lésbicas e gays Come Out!, e posteriormente reeditado no feminista radical Notes from the Third Year - tomando-se um clássicomuito citado do início do feminismo moderno," As lésbicas radicais contestaram a ordem heterossexual questionando a divisão do mundo em mulheres e homens, lésbicas e gays, homossexuais e heterossexuais. Os. papéis dos sexos definidos socialmente .e as categorias sexuais, dizem as escritoras, são grandes forças.ideológicas que levam a relações reprodutivas e eróticas com os homens. A heterossexualidade e a homossexualidade são proeminentes entre essas categorias suspeitas. A homossexualidade, explicam elas, é um subproduto de um modo particular de estabelecer papéis (ou padrões de comportamento aprovados) com base no sexo; como tal, é uma categoria que não é autêntica (não corresponde à realidade). Em uma sociedade em que os homens não oprimem as mulheres e a expressão sexual pode acompanhar os sentimentos, as categorias da homossexualidade e da heterossexualidade desapareceriam,"

As escritoras defendem a desconstrução de todos os comportamentos rotulados e padronizados, que dizem respeito aos sexos e sexuais, inclusive da heterossexualidade (masculina e feminina), da homossexualidade masculina e do lesbianismo - deixando espaço para os sentimentos não categorizados. Elas imaginam uma liberação em que os sentimentos, livres das restrições, do condicionamento social e dos rótulos, se manifestarão espontaneamente. As lésbicas

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radicais rejeitam a reforma da categoria sexual a favor de sua abolição. Como eu disse, a idéia de uma sociedade sem as categorias homossexual e heterossexual foi discutida freqüentemente pelos movimentos de lésbicas e gays no início dos anos 1970. As lésbicas radicais desafiam todas as mulheres a despender as suas energias com as mulheres e o seu movimento de liberdades Se o movimento feminino tentar liberar as mulheres sem enfrentar a estrutura heterossexual básica que nos prende a relacionamentos com os nossos opressores, muitas energias continuarão a ser despendidas . tentando consertar cada relacionamento particular, descobrindo como ter uma vida sexual melhor e mudar a maneira de pensar de um homem - tentando fazer dele o novo homem, na ilusão de que isso nos permitirá ser a nova mulher.6

A nomeação de uma estrutura heterossexual básica, uma ordem institucional específica de erotismo de sexo diferente, evidencia o desenvolvimento de uma análise de sistemas sociais da heterossexualidãde, um conceito fundamental para a exploração da heterossexualidade como histórica. As lésbicas radicais rejeitam todas as classificações feitas pelos homens. Elas dizem que até mesmo a lésbica é uma das categorias através das quais os homens dividiram a humanidade.' O lesbianis- ., mo, declaram as escritoras, é uma categoria de comportamento possível apenas em uma sociedade sexista caracterizada por rígidos papéis dos sexos e dominada pela supremacía masculina. Esses papéis dos sexos desumanizam as mulheres, definindo-nos como uma classe servil em relação à classe dominante dos homens ...',s ., -v

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As lésbicas radicais sugerem implicitamente o fim da sua própria categoria - e o da dos heterossexuais. O uso social dominante, dizem as escritoras, distingue uma lésbica de uma mulher. Isso quer dizer que uma mulher de verdade depende de um homem. A que não depende de um homem não é uma mulher de verdade. Inclui-se em outra categoria, a das lésbicas, é alguém diferente de uma mulher. \As lésbicas radicais observam que a distinção entre lésbica e mulher revela a posição inferior das mulheres heterossexuais. Na "f~

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opinião popular, a diferença entre uma mulher de verdade e uma lésbica se baseia em sua orientação sexual. Segundo esse modo de pensar, a essência de ser uma "mulher" é ter relações sexuais com os homens.' Mas; perguntam as escritoras, as mulheres no movimento feminista vão manter o sistema de classificação dos homens que define todas as mulheres em relação sexual com uma outra categoria de pessoasi'" Na análise das lésbicas radicais, a própria classificação sexual é feita pelos homens e suspeita. Até mesmo a categoria mulher é suspeita. Como fez Atkinson anteriormente, as lésbicas radicais insistem em que as mulheres rejeitem essa categoria. É preciso descartar esse termo, argumentam elas, para que o grupo ao qual é dado o nome de mulheres possa afirmar o seu autêntico self. Se nos apegamos à idéia de "ser uma mulher", dizem as escritoras, as mulheres entrarão em conflito com a sua própria personalidade. Ser feminina e ser uma pessoa inteira é inconciliável, dizem elas. As mulheres devem trabalhar com outras mulheres para criarem um novo sentido de self.l1 Essa nova identidade abandonará a mulher. como o seu princípio organizador básico. As escritoras se referem durante todo o seu ensaio a autenticidade, personalidade, self e humana, usando esses valores a favor da causa feminista lésbica.P Mostrando que as feministas não tinham motivos para temer o lesbianismo, isse ensaio analisa o grande poder de produzir medo da palavra lésbica, tão freqüentemente usada como uma acusação contra as mulheres arrojadas na América do século XX. O poder da linguagem e da política de classificação é uma parte importante dessa crítica das feministas lésbicas do início dos anos 1970. Essas escritoras analisam como a linguagem é usada pelos homens para manter a supremacia masculina e heterossexual: Lésbica é um rótulo inventado pelo Homem para toda mulher que ousa ser sua igual, questionar os seus privilégios ... afirmar que as suas próprias necessidades são prioritâriasP A função política da palavra lésbica é rotular e dividir: Rotular como lésbica não só uma mulher que deseja ser uma pessoa, como também uma 'situação de amor verdadeiro, solidariedade e primazia feminina, é uma forma elementar de dividir as mulheres: ... o termo

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pejorativo e assustador que as impede de formar ligações primárias, grupos ou alianças umas com as outras."

uma crítica para a qual as lésbicas radicais contribuíram proclamação eloqüente e provocadora.

As autoras insistem em que o poder negativo da palavra lésbica deve ser ativamente contestado, não só pelas feministas lésbicas, como por todas as feministas: As mulheres no movimento ... fizeram o possível para evitar discutir e enfrentar o tema do lesbianismo, o que tem feito as pessoas se sentirem ansiosas. Elas são hostis e evasivas, ou tentam incorporá-Io a um tema mais amplo. Prefeririam não falar sobre esse assunto. Quando precisam fazê-I o, tratam-no sumariamente como a ameaça lavanda. Mas essa não é uma questão secundária. É absolutamente essencial para o sucesso do movimento de liberação feminina. Enquanto o rótulo lésbica puder ser usado para assustar uma mulher que não é uma participante tão ativa do movimento, mantê-Ia afastada de suas irmãs, impedi-Ia de dar prioridade a qualquer outra coisa que não seja os homens e a família - ela será controlada pela cultura masculina.P

As lésbicas radicais incitam as mulheres no movimento feminino não necessariamente a se tomarem lésbicas, mas a ver umas na~

outras a possibilidade de um compromisso primordial que inclui o sexo. Elas avisam: Enquanto a aquiescência com os homens for primordial-tanto para as mulheres individualmente como para o movimento como um todo - o termo lésbica será efetivamente usado contra as mulheres. 16 As escritoras salientam a importância para todas as feministas de ~- mulheres se livrarem dos padrões t!e.resposta definidos pelos homêns - embora não necessariamente de todos os homens: Por~

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que não importa a quem dedicamos o nosso amor e as nossas energias sexuais, se em nossas mentes estivermos identificadas com os homens não poderemos nos dar conta da nossa autonomia como seres humanosl" De passagem, as autoras observam que a lésbica geralmente conhece mais cedo que as suas irmãs straight (heterossexuais) a solidão essencial da vida (oculta pelo mito do casamentotP A necessidade de esclarecer entre parênteses que straight significa heterossexual coloca esse ensaio no passado, em uma sociedade em que a crítica pública à heterossexualidade estava apenas começando,

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LESBIANISMO

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com a sua

DE MYRON E BUNCH

A antologia Lesbianism and the Women~ Movement, editada por Nancy Myron e Charlotte Bunch, inclui artigos publicados pela primeira vez em 1972-73 por um grupo de feministas lésbicas em Washington, D.C., em seu jornal The Furies.ê Esses ensaios nos lembram de que grande parte da crítica pioneira à heterossexualidade como ideologia e instituição foi desenvolvida e publicada pela primeira vez na imprensa popular da facção lésbica e gay do movimento feminista, antes de influenciar CÍrculos maiores através de publicações como a do jornal acadêmico das feministas Signs e dar fama a autoras como Adrienne Rich. O feito de Rich e Signs não é tomado menor se reconhecermos que ambos foram incentivados a fazer uma crítica à sociedade heterossexual por debates anteriores em jornais alternativos, feministas e de lésbicas e gays. A história pessoal de uma mulher toma concreta a crítica à ordem hetero feita mais abstratamente por outras escritoras de

Furies: No inverno de 1969-70, diz Coletta Reid, eu me uni a um grupo de conscientização um jornal feminino recém-formado. Ela nunca fizera parte de um movimento político. Com 27 anos, casada

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com um homem a quem ajudara a completar

o curso universitário,

grávida e com uma criança que estava aprendendo a andar, eu entrei para o movimento feminino- e imediatamente começou a ter idéias extravagantes: Se "The Mylh of lhe Vaginal Orgasm" (O Mito do Orgasmo Vaginal) era verdadeiro, então o ato sexual não era necessário ou mesmo relevante para a minha satisfação sexual." Se "Sexual Politics" (A Política Sexual) estivesse certa quando afirmava que a sexualidade masculina era uma expressão de poder e domínio, então eu estava escolhendo a minha própria opressão tendo um relacionamento com um homem. Se os papéis dos sexos eram uma invenção da sociedade, então as mulheres - não apenas os homens - podiam ser amadas, no sentido mais amplo dessa palavra.ê!

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Se os papéis dos sexos fossem vistos como uma invenção, não demoraria muito para a sexualidade, e até mesmo a heterossexualidade, serem vistas como tal. .Como o homem com quem ela estava casada realmente considerava os homens superiores, Reid logo pediu ao seu marido para ir embora; ele ficou com o nosso filho e eu fiquei com a nossa filha:22 Na época' em que deixou o marido, diz Reid, ela não se via como uma separatistallésbica.ê Enquanto estava casada, ouvira o termo privilégio heterossexual, mas nunca entendera realmente como aquilo funcionava. Contudo, quando começou a se assumir como lésbica, viu sua denominação anterior de heterossexual do ponto de vista de uma pessoa privada dela: Quando eu era heterossexual, era aceita como normal por minha família, meus amigos e conhecidos. Mas quando comecei a pôr a mim mesma e a outras mulheres em primeiro lugar em minha vida, fui vista como antinatural, imoral, pervertida, repugnante, doente ou uma fascista sexual.i" (00') Quando tentei viver explicitamente como uma lésbica, comecei a perceber os privilégios aos quais não dera valor quando casada.

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Reid começou a questionar a naturalidade dos arranjos construídos em torno do erotismo, dos sexos, da reprodu~ão e do trabalho: Os homens usaram o fato natural de que a mulher reproduz a espécie para construir uma ideologia que afirma que a maternidade, a heterossexualidade, o casamento, a família, o serviço doméstico e uma posição inferior no mercado de trabalho são naturais.P

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Reid diz que o insight de que a heterossexualidade, em particular, é construída socialmente era uma idéia nova: Nas primeiras análises feministas, todas essas construções naturais foram contestadas, exceto a heterossexualidade. O início do feminismo aceitou como axioma que sexualidade natural era heterossexualidade; que a relação sexual natural era vaginal; e que a sexualidade feminina devia ser direcionada para os homensr"

Mas Reid aprendera que a sexualidade feminina não é de forma alguma natural ou necessariamente ligada ao pênis ou à penetração penianaF' Passou a compreender que a heterossexualidade como

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uma instituição opera em benefício dos homens.ê Dada a natureza institucional da heterossexualidade imposta, as mulheres apenas pareciam escolher .a heterossexualidade. Na verdade, eram pressionadas para fazê-Ia. Ela percebeu que devido a essas pressões o lesbianismo é um ato de rebeldia individuol.ê O mundo futuro que Reid imagina é um universo que não se preocupa com as divisões eróticas de mesmo sexo e sexo diferente: Em um mundo livre do poder masculino e, portanto, dos papéis dos sexos, com quem você vive, faz amor e está comprometido seria irrelevante. Todos nós seríamos iguais e teríamos o mesmo poder de decisão a respeito da sociedade e de como ela satisfaz às nossas necessidades.

Ela conclui: até isso acontecer, como usaremos a nossa sexualidade e os nossos corpos é tão relevante para a nossa liberação quanto como usamos as nossas mentes e o-nosso tempo.ê" No caso de Reid, o pesadelo do ultraconservador tornou-se realidade. A esposa heterossexual se transformou em uma militante feminista lésbica indignada. O ensaio de Margaret Small, condensado de uma palestra dada no início dos anos 1970, discute a ideologia heterossexual como um apoio à supremacia masculina." Small mostra o trabalho sem nome, gratuito e pouéo valorizado que as mulheres fazem para os homens no casamento. Ela diz que o trabalho feminino é especificamente a procriação e a socialização dos filhos, a dedicação física e emocional aos maridos - alimentando-os e praticando o ato sexual com eles. Os homens justificam essa organização do trabalho feminino favorável a eles por meio de um princípio, a ideologia da heterossexualidade, que afirma que é natural para as mulheres ... cuidar dos homens. Aheterossexualidade não é apenas relacionada com a fecundação, mas também com a ideologia dominante que define as mulheres como apêndices dos homens. Não é a reprodução em si que determina a organização social que coloca os homens acima das mulheres. A ideologia da heterossexualidade é que faz isso, não o simples ato sexual,32Ver a heterossexualidade como uma ideologia - uma idéia política influente - foi um passo importante para questioná-lá. E distinguir uma heterossexualidade definida social-

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mente dos atos sexuais reprodutivos de mulheres e homens é fundamental para a análise da história heterossexual. A ideologia: heterossexual, continua Small, é a estrutura básica que determina a vida de uma mulher desde os primeiros momentos em que ela aprende a observar o mundo, o qual lhe ,. diz o que é natural fazer e ser.

Small acrescenta: A hegemonia heterossexual assegura que as pessoas acharão natural o homem e a mulher formarem uma unidade sexual/reprodutiva por toda a vida com a mulher pertencendo ao homem ... Agora você vai e Ihes diz que poderia haver outro objetivo na vida, que a sexualidade pode ser totalmente separada da reprodução, que a reprodução poderia ser organizada de um modo completamente diferente, e elas apenas riem e dizem que você está falando sobre marcianos. A hegemonia heterossexual assegura que as pessoas nem mesmo perceberão que poderiam haver outras possibil!dades.33

As lésbicas, afirma Small, estão fora da realidade que a ideologia sexual explica. Por isso as lésbicas têm o potencial para desenvolver uma ideologia alternativa, não limitada pela heterossexualidade/" A ideologia heterossexual limita a nossa visão de uma comunidade erótica alternativa, salienta ela, do mesmo modo que a ideologia burguesa aceita naturalmente a organização social do capitalismo, impedindo a consciência de uma possível alternativa viável para esse sistema de produção. E como as suposições da' ideologia heterossexual, diz ela, existem há muito mais tempo do que a ideologia burguesa, são ainda mais difíceis de questionar: Você tem de criar o espaço que fica fora de todas as suposições da heterossexualidade - sobre a família, o casamento, a maternidade, o serviço doméstico, a criação dos filhos, o estupro, a ilegitimidade, o estado de solteira, tudo que tem a ver com os relacionamentos entre homens e 'mulheres. Ficar fora da ideologia sexual, e desenvolver um modo alternativo em que os relacionamentos homens-mulheres poderiam existir, é um ato extremamente críatívo." ( \

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As lésbicas revolucionárias, admite Small, ainda não criaram uma visão alternativa das relações de homens e mulheres. A mudança que ela deseja não exige que as mulheres se tornem lésbicas: Eu acho que a questão é como todas as mulheres irão se entender. Se a ideologia da heterossexualidade puder ser posta à mostra e criticada, e for possível criar uma ideologia alternativa, não sei ao certo o quanto seria importante todas as mulheres pararem de ser heterossexuais. Porque o modo como uma mulher entenderia o que significa ser heterossexual seria totalmente diferente.

Uma crítica à ideologia heterossexual, argumenta ela, em última análise reduz a heterossexualidade a um ato no momento da fecundação. Se você for ter um bebê, haverá um papel para a heterossexualidade. Se desenvolvermos outros modos de ter bebês, então o que a heterossexualidade é se tomará irrelevante.i"

Em minha opinião, Small está certa em relação ao quanto é difícil nos livrarmos da forte sensação de que a heterossexualidade é inevitável. Mas eu acho que ela está errada em sua afirmativa histórica de que as suposições da ideologia heterossexual existem há muito mais tempo do que a ideologia burguesa." Nossa forte sensação de que a heterossexualidade é necessária deve-se não à longa existência da categoria heterossexual, ou à eternidade do sistema heterossexual. Deve-se simplesmente à força da estrutura social vigente da heterossexualidade, e ao poder de seu dogma de tornar as nossas mentes incapazes de pensar em arranjos alternativos dos sexos, e em ordens eróticas alternativas. Small sugere que a heterossexualidade deixe de designar genericamente todos os tipos de intimidade entre homens e mulheres. Dessa forma, ela quer reduzir a heterossexualidade a um nome para um arranjo da atividade reprodutiva limitado historicamente. Sua idéia é privá-Ia de seu status misterioso e eterno, deixando claro que é um indicador de um arranjo histórico particular da reprodução humana. Não lhe ocorre que a heterossexualidade pode significar um sistema distinto da ordem reprodutiva - um 'àrranjo historicamente específico dos sexos e de seus prazeres.

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Os garotos são tão condicionados para a heterossexualidade quanto as garotas-Um homem e uma mulher 'de verdade' são heterossexuais. Um gay é (supostamente) efcrninado, uma lésbica (supostamente) masculinizada. A norma hetero se aplica a ambos os sexos e por isso não é considerada parte do condicionamento feminino."

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Small termina seu ensaio dizendo que novas idéias sobre a sexualidade não mudarão, por si sós, as nossas mentes em relação ao seu poder eterno de permanência. Somente a luta coletiva contra a supremacia masculina e o domínio heterossexual farão isso." "The Normative Status of Heterosexuality" (O Status Normativo da Heterossexualidade) é o título audacioso de um ensaio incluído nessa antologia por um grupo de feministas lésbicas holandesas que editam um jornal chamado Purple September/" Nos anos 1970, a idéia de que a heterossexualidade possuía um status normativo era nova. O quanto o era é indicado pela necessidade das ensaístas de afirmá-Ia repetidamente e insistir em que as feministas lésbicas e heterossexuais a analisassem. Desde a primeira metade dos anos 1970 as feministas (especialmente as lésbicas) têm feito pressões para que seja desenvolvida uma análise da heterossexualidade como uma norma. Podemos então perguntar por que, nos meados dos anos 1990, a análise ainda se encontrava tão pouco desenvolvida. O efeito de um grande tabu, argumento eu mais tarde, mantém a heterossexualidade fora da análise. As feministas lésbicas doPurple September sugerem um motivo pelo qual a heterossexualidade normativa da sociedade é sistematicamente excluída das análises feministas da opressão das mulheres. As feministas não analisam essa norma porque a pressão social para a heterossexualidade não é dirigida exclusivamente às mulheres:

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Mas a pressão para tornar-se heterossexual, argum~ntam as escritoras, só é aparentemente semelhante para homens e mulheres. Embora ambos os sexos sejam expostos a um condicionamento heterossexual, isso não impede que o conceito de heterossexualidade tenha significados opostos para mulheres e homens. A heterossexualidade masculina está ligada à prerrogativa masculina de

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identidade humana. A heterossexualidade feminina está ligada à negação da mesma identidade/" As mulheres heterossexuais são treinadas para buscar nos homens aprovação e uma compreensão básica de si mesmas. Nossa cultura faz a heterossexualidade parecer um destino inevitável, dizem as holandesas. Então você não pode convencer alguém de que é heterossexual por opção/? Mas se a heterossexualidade fosse inevitável como afirma a ideologia dominante, ninguém se daria ao trabalho de condicionar os filhos a serem heterossexuais, e a cultura não precisaria de seus tabus com relação... à homossexualidade/ê Ser gay não determina a sua visão da heterossexualidade como uma norma, dizem as autoras: rejeitar os relacionamentos heterossexuais em sua vida pessoal não é o mesmo que analisar a norma que tomaria todas nós mulheres heterossexuais. Mas do modo como as coisas estão agora, nem todas as lésbicas-lavanda nem as suas correligionárias heterossexuais parecem prontas para ao menos discutir criticamente a heterossexualidade normativa. Em vez disso, elas se unem na luta contra as conseqüências de uma norma que por um acordo tácito não é díscutida."

As holandesas rejeitam o statusnormativo sexualidade como um tipo síveis. Nós não duvidamos que tiram o seu significado apenas da norma.

da heterossexualidade, mas não a heterosde relacionamento entre outros tipos posde que há relacionamentos heterossexuais e conteúdo das pessoas envolvidas, e não

Mas mesmo nesses relacionamentos o homem sempre tem a opção de recair no comportamento "masculino", forçando assim a mulher a recair no condicionamento [eminina= O privilégio masculino é uma opção tentadora mesmo para os homens liberados. As autoras concluem que a norma straight não é realmente uma norma sexual; mas um meio eficaz de perpetuar o relacionamento de poder entre os sexos." Elas não consideram que a heterossexualidade funciona simultaneamente como um incentivador da supremacia heterossexual e um provedor da supremacia masculina.

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da heterossexualidade é complexo e abstrato, mas suas especulações audaciosas podem nos ajudar a ver a ordem heterossexual como histórica. No primeiro de seus ensaios, "The Category of Sex", Wittig já nomeia explicitamente a sociedade heterossexual e a sua economia heterossexual, definindo-as como organizações desiguais de poder de sexos diferentes. 51 Esses termos rejeitam o status supostamente não-problemático da heterossexualidade, levando adiante o projeto intelectual de muitas feministas: tirá-Ia da esfera do que não é discutido, da arena do exclusivamente individual e psicológico, e do domínio do biológico. Ela rejeita a idéia da heterossexualidade como algo-no-corpo para analisá-Ia como um sistema social problemático.

Em sua introdução para essa antologia, suas editoras, Myron e Bunch, salientam que as lésbicas foram pioneiras na análise do domínio heterossexual:

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As lésbicas foram as primeiras a perceber que contestar a heterossexualidade era necessário para a sobrevivência das feministas. Contudo, as feministas heterossexuais também podem analisá-Ia e lutar contra ela como uma ideologia e uma instituição que oprime a nós todas. O problema é que poucas têm feito isso, o que perpetua o medo das lésbicas de que o fato de as mulheres permanecerem presas aos homens as impeça de perceber a função da heterossexualidade e tentar dar um fim a ela.47

Myron e Bunch estão menos preocupadas com se cada mulher se torna pessoalmente uma lésbica do que com a eliminação da heterossexualidade como uma parte crucial da supremacia masculina.48 Sua hipótese de que a heterossexualidade pode ser eliminada presume o seu caráter não essencial. As editoras afirmam que a Liberação Feminina está sem rumo agora porque não conseguiu compreender a importância da heterossexualidade na preservação da supremacia masculina." Eu creio que, nos anos 1990, contestar a organização social da heterossexualidade continua a ser uma tarefa política importante, assim como um desafio intelectual.

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Na análise de Wittig, a distinção entre os sexos feminino e masculino, embora se refira a indicadores biológicos, é basicamente social. Ela questiona a distinção feminista usual entre o sexo determinado biologicamente e o gênero determinado socialmente. Insinua que o sexo anatômico e o gênero feminino e masculino são distinções produzidas socialmente com efeitos negativos para as chamadas mulheres. Isso contesta a nossa suposição comum e sensata de que a categoria do sexo e as características físicas particulares constituem uma distinção natural necessária entre os seres humanos. Nós presumimos a diferença entre os sexos como se ela surgisse automaticamente dos corpos, da biologia ou da natureza, como se as práticas e os julgamentos humanos não servissem de base para as nossas distinções. Presumimos erradamente que as diferenças entre os sexos são simples, evidentes e ínequívocas."

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Em 197.1, Monique Wittig, novelista e teórica feminista lésbica, começouuma série de pequenos e provocadores ensaios sobre a heterossexualidade como regime político. Essa série de ensaios constitui um dos maiores e mais explícitos comentários críticos sobre a heterossexualidade como uma prática organizada de poder desigual em que os homens dominam as mulheres e os heterossexuais dominam os homossexuais. Suas especulações sobre o império heterossexual visam nos conduzir para fora dele, para que possamos subitamente vê-lo como algo estranho e intrigante. Uma leitura atenta de seus ensaios esclarece os pontos de vista corajosos e que se opõem à intuição sustentados por essa teórica, e mostra alguns aspectos problemáticos de sua análise. 50 Seu exame

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Nossa suposição de sexos diferentes, salienta Wittig, exclui indagações sobre a base social dessa diferença, e a sua necessidade eterna. Presumindo a existência de sexos diferentes, deixamos de questionar a variedade de padrões que os seres humanos têm usado para distinguir os sexos, com objetivos diferentes e em sistemas sociais e épocas diferentes. Por exemplo, não usamos a diferença entre os sexos como uma distinção operativa nas práticas de contratação de empregados independentemente de seu sexo determinadas pelas proibições recentes de discriminação sexual. Ela argumenta que o nosso uso de características biológicas particulares para indicar os sexos faz a diferença entre homens e

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mulheres parecer natural e inevitável, e ajuda a manter o poder social desproporcionado dos homens sobre as mulheres. Em particular, a distinção homem/mulher confirma o lugar restrito das mulheres determinado culturalmente - na divisão sexual do trabalho reprodutivo. As diferenças entre os sexos se originam de uma ordem ideológica, econômica e política, diz Wittig.53 A categoria do sexo, conclui ela, domina as nossas mentes de tal modo que não conseguimos pensar fora dela. É por isso que devemos destruí-Ia, começar a pensar além - se é que queremos começar a pensar - e eliminar os sexos como uma realidade sociológica. A categoria do sexo é a categoria que determina a escravidão para as mulheres ...54

Wittig reconhece que pôr fim à ênfase social em feminino e masculino também poria fim a mulher e homem. Para as feministas que desejam manter a categoria mulher, ela pergunta: Podemos resgatar escravo? Podemos resgatar negro, negra? Em que mulher é diferente?55

Ela argumenta que mulher, como escravo, é... um conceito irrecuperável. A verdadeira mulher deve desaparecer, assim como o verdadeiro escravo depois da abolição da escravatura ...56

o homem, indica ela, teria de seguir o caminho de dono de escravos e senhof57 As oposições homem/mulher, senhor/escravo, sugere, resultam.dos sistemas sociais de domínio e os'apõíam." Mas o que aconteceria com a liberação feminina se mulheres e mulher não estivessem disponíveis como um ponto de reunião para as tropas feministas? Wittig responde distinguindo mulheres que lutam pelas mulheres como uma classe (um conceito feminista estrategicamente útil) e mulheres que lutam por "mulher" como um conceito essencialista (um movimento antifeminista, porque a mulher eterna é uma idéia inseparável da subordinação femininaj.t? Wittig também reconhece que a distinção homossexual/heterossexual depende da distinção anterior entre mulheres e homens,

fêmeas e machos: A distinção sexual está na base da sociedade (heterossexualj/" O contraste homo/hetero presume e esconde a oposição entre mulheres inferiores socialmente e homens superiores civilmente. Então a eliminação das diferenças entre os sexos significaria o fim do binário homo/hetero. Mas qual será o destino das lésbicas quando as distinções relativas aos sexos e a oposição hetero/homo forem eliminadas? Wittig explica que as mulheres são definidas apenas em relação aos homens. As lésbicas não são definidas em relação aos homens." Sua conclusão lógica foi anunciada dramaticamente em 1978, na última frase de uma palestra dada na Associação de Linguagem Moderna: As lésbicas não são mulheres= O lesbianismo é algo mais que sexo, explica ela, muito mais que a homossexualidade e a sexualidade= Ela acrescenta: O lesbianismo se abre para outra dimensão do humanos" Separando as lésbicas do sexo e da sexualidade, ela as coloca fora da sociedade heterossexual, em um outro universo." Wittig diz que a equiparação de heterossexualidade a reprodução é um meio social e conceitual importante de normalizar a primeira, fazendo-a parecer inevitável. Ela argumenta que identificar heterossexual com o reprodutivo e o normal foi o trabalho particular de um modelo científico freudiano relativamente recente de sexo procriativo adequado. O conceito da heterossexualidade foi criado na língua' francesa em 1911 e, afirma ela, admite como normal apenas a sexualidade que tem um fim reprodutivo. Acrescenta: Tudo o mais é uma perversão ...66

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Mas a própria análise de Wittig é vítima da equiparação de heterossexualidade a reprodução. A sociedade heterossexual se baseia na procriação obrigatória das mulheres, insiste ela.67 Wittig diz que a heterossexualidade é dominada por sua causa final; a reprodução.68 Eu acho que essa é uma interpretação fundamentalmente errada da história heterossexual e que o aparecimento da norma de prazer hetero rompeu com o modelo anterior de reprodução. , Aordem heterossexual cultua não a procriação, mas a diferença entre os sexos e o erotismo. Wittig de fato analisa essas diferenças de sexo e gênero, a parte hetero da heterossexualidade.Mas ela não apresenta uma análise adequada da parte sexual, erótica. Discutindo

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a heterossexualidade como um regime político, afirma ela, oprazer sexual não é a questão aqui.69 Eu creio que é metade dela.?" O prazer, diz Wittig, está essencialmente fora do sistema reprodutivo heterossexual, dentro da ordem erótica homossexual. O prazer pelo prazer, sugere ela, distingue a subjetividade das lésbicas e dos homossexuais masculinos da dos heterossexuais, envolvidos como estão com o seu sistema reprodutívo." Para os homossexuais a sexualidade não tem outra finalidade... além do seu próprio exercício; está acima de tudo que diz respeito à busca do prazer e à criação de um ser únicoí? Mas eu acho que a sexualidade como busca do prazer e da subjetividade não fornece uma base clara para distinguir heterossexual de homossexual. O ensaio de Wittig, "The Straight Mind", expondo e desmistificando as formas de pensamento heterossexual proeminentes, foi a palestra com a qual ela provocou a Associação de Linguagem Moderna em 1978. Seu título se refere ironicamente a The Savage Mind, de Claude Lévi-Strauss, mas reverte satiricamente a associação usual de civilizado com heterossexual. Aexistência de algo como uma mente straight -um conglomerado mental de todos os tipos de disciplinas, teorias e idéias atuais - foi uma idéia nova.P Essa amazona das letras deu nome à guerra que precisa ser travada contra a suposição da mente straight - a suposição não questionada de heterossexualidade." Anos depois de seu apelo original, a suposição de heterossexualidade ainda ilustra o poder do pensamento straight. Os discursos sobre a heterossexualidade, diz ela, impedem que Iésbicas.igays e feministas falem, a menos quç falemos em seus termos. Esse discurso dominante nega a esses' grupos todas as possibilidades de criarmos as nossas próprias categorias. Tudo que põe em dúvida o discurso dominante é imediatamente menosprezado como elementar. Quem põe em dúvida o discurso heterossexual, insinua ela, é desprezado pela crueza analítica que demonstra, e a acusação de ingenuidade põe fim às indagações.P Wittig começa a mostrar os modos particulares como ideologias específicas protegem a heterossexualidade de indagações básicas.?" Ela mostra as regras e convenções que nunca foram formalmente declaradas, mas que ainda assim constituem os termos do

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contrato heterossexual. Quando nós meramente vivemos na heterossexualidade, concordamos com esse contrato e suas regras." Ela começa a mostrar com precisão a estranha propriedade de visibilidade e invisibilidade do sistema heterossexual. Por exemplo, os códigos de casamento americanos tradicionalmente se referem a um marido e uma esposa (pessoas de sexos diferentes). Mas apenas a partir dos anos 1970 muitas contestações legais de defensores dos direitos de gays e lésbicas atraíram atenção para os privilégios implícitos de relações heterossexuais em função da restrição do casamento aprovado pelo Estado para sexos diferentes (e, ostensivamente, para os com desejos heterossexuais). Aheterossexualidade como uma instituição não tem uma existência clara, e no entanto funciona poderosa e invisivelmente como qualquer lei escrita." O heterossexual de Wittig imita o personagem principal do filme The lnvisible Man. Quando ele remove as bandagens que definem a sua forma, desaparece. Wittig diz que quando tentamos definir a heterossexualidade descobrimos que ela nos escapa: Eu enfrento ... uma forma ideológica que não pode ser alcançada na realidade, exceto através de seu efeito, cuja existência está na mente das pessoas, mas de um modo que afeta todas as suas vidas, o modo como agem, se movem e pensam.t?

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Ela argumenta,que tratamos a heterossexualidade como axiomática, e essa suposição impede que ela seja examinada, o que provoca um silêncio constantemente repetido na prática. Salienta: A heterossexualidade é tratada como se sempre tivesse estado presente em todas as categorias mentais - por isso nunca é questionada.ê" Normalizar a heterossexualidade é outra medida conceitual que ajuda a evitá-Ia como um estudo especificamente social. O relacionamento heterossexual, diz ela, é sempre excluído do social na análise, tratado como uma parte essencial da natureza que resiste a ser examinada."

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Universalizar a heterossexualidade é outra manobra mental comum que impede a sua análise crítica. A mente straight não concebe ... uma sociedade em que a heterossexualidade não regularia não só todos os relacionamentos humanos, como também a sua própria produção de conceitos e todos os processos que escapam à

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A INVENÇÃO

A AMEAÇA LÉSBICA

DA HETEROSSEXUALlDADE

consciência= Como o feminino eterno, o heterossexual eterno presume que a heterossexualidade é a base de toda-sociedade= E se a heterossexualidade é inevitável, não vale a pena pensar nela, porque nadá pode ser feito quanto a isso. O poder da tendência a universalizar é ilustrado pela própria Wittig sucumbindo a ela quando equipara o relacionamento heteros- . sexual ao de homem e mulher= Com essa equiparação o universaÍ' retoma com o biológico. Identificar os relacionamentos homem-mulher com a heterossexualidade admite as noções mistificadas dominantes do século XX. Essa equiparação ignora o sistema histórico específico que determina os relacionamentos na instituição particular a que chamamos de heterossexualidade. O universal também retoma na análise de Wittig quando ela equipara sociedade a heterossexualidade. Embora ela a princípio rejeite a suposição de que a base ou o início da sociedade está na heterossexualidade, mais tarde afirma que viver em sociedade é viver em heterossexualidadeP Mas se uma heterossexualidade genérica for equiparada a uma sociedade genérica será difícil ver o heterossexual como uma construção histórica específica, e imaginar { uma ordem alternativa. Wittig também protesta contra a interpretação conjunta de história, realidade social, cultura e linguagem, que eterniza a heterossexualidade - outra manobra comum para impedir a reflexão." Mas a sua própria análise fica sujeita a uma heterossexualidade eterna." Às vezes ela escreve como se o conceito e a ordem social da heterçssexualidade fossem antigos, referindo-se, por exemplo, a Ovídio fazendo Safo entrar na linha ao torná~la a heroína de um romance heterossexual= Wittig cita a existência de uma cultura lésbica.na Grécia antiga para demonstrar que existia naquela época uma alternativa para o que chama de sociedade heterossexual uma ordem aparentemente eterna.ê?

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Ela salienta que a heterossexualidade também escapa às indagações, através de uma estratégia conceitual que a desmaterializa, reduzindo-a a Idéias Irreais. Essa desmaterialização é conseguida quando as pessoas falam sobre a heterossexualidade como apenas uma questão de palavras e _conceitos, e não também como uma I I

REVI DA

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instituição na .qual os homens e os heterossexuais exercem poder sobre as mulheres e os homossexuais. A grande opressão dos indivíduos através dos discursos é ilustrada, por Wittig, pela pornografia, que ela apresenta como uma forma de violência contra as mulheres." Ela diz que a pornografia tem um significado, um só significado. Para as mulheres, o discurso pornográfico... humilha, degrada. A pornografia é uma tática de agressão, que funciona como aviso, nos ordena que fiquemos na linha, provoca medo. Quando as feministas se manifestam contra a pornografia, diz Wittig, são criticadas pelos acadêmicos por confundir discursos com a realidade, imagens com a vida. Os críticos acadêmicos das feministas antipornografia, declara ela, não percebem que a pornografia é realidade para nôs'" Em 1978~ quando Wittig discutiu a pornografia publicamente pela primeira vez, o movimento feminista antipornografia estava apenas começando. Mas nos anos 1980 e 1990 uma análise como a dela tomou-se o argumento típico das feministas antipomografia que se uniram aos ultraconservadores e ao Direito Cristão para tentar aprovar leis antipornografia e engajar o Estado (e seus representantes em sua maioria do sexo masculino) em uma cruzada de pureza social.P Mais recentemente, as feministas pró-sexo, anticensura e os defensores da liberdade de expressão salientaram que a pornografia, em suas múltiplas variedades e com os seus efeitos complexos (por exemplo, para as feministas e os chauvinistas, os homossexuais e heterossexuais, os sadomasoquistas e as pessoas com preferências sexuais comuns, educativos e objetivadores), fornece um exemplo bastante ambíguo da grande violência praticada pelo discurso heterossexual. As donas de casa heterossexuais felizes, descritas como estúpidas em milhares de comerciais da TV, podem ser citadas como exemplos mais freqüentes, insidiosos e pre[udíciais.P Wittig salienta que a sociedade straight se baseia na necessidade do outroldiferente." Para os heterossexuais se verem como normais, os homossexuais devem continuar a ser-anormais. Ela diz que a sociedade hetero exige vários outros diferentes - não apenas um desejo sexual diferente, mas um sexo e uma raça diferentes. Mas

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A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE

embora as mulheres e as pessoas de cor sejam constituídas como diferentes, os homens não são diferentes, assim como não o são os brancos e os senhores. Wittig argumenta que todas essas diferenças são estabelecidas pela relação social original de dominador e dominado." Wittig sugere que aqueles que não aceitam o contrato social. heterossexual podem quebrá-Io --'- esposas podem fugir de maridos, mulheres podem tornar-se Iésbicasf" Ela insiste em que as mulheres (e os homens?) abandonem a sociedade heterossexual uma a uma, se necessário, como os escravos que fugiram da escravidão." Mas os escravos americanos tinham um lugar para fugir: os estados livres e o Canadá, fora do sistema escravista. Onde fica a zona livre fora da supremacia heterossexual? Ela diz que a idéia da heterossexualidade como uma obrigação é afirmada por todo o mundo. Opondo-se a essa obrigação está apenas a visão efêmera e indistinta da heterossexualidade como uma armadilha, um sistema político forçados" O poder dessa obri;gação é tanto que mesmo essa feminista lésbica iconoc1asta não escapa totalmente dele. Uma compreensão historicamente específica da heterossexualidade fornece uma consciência de uma alternativa possível.

"COMPULSORY

HETEROSEXUALlTY"

DE RICH

"Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence" (A Heterossexualidade Compulsória e a Existência Lésbica), da poeta e ensaísta Adrienne ~ich, foi publicado em 1980 em Signs;,g periódico feminista.?? Um dos primeiros ensaios em um periódico tão respeitável e acadêmico, de uma autora tão conceituada, a colocar heterossexualidade em seu título e torná-Ia o tema principal e explícito de análise crítica, o Heterosexuality de Rich foi uma palavra provocadora - totalmente à parte de Compulsory. Pelo simples fato de nomear a heterossexualidade o seu principal objeto de análise, Rich contestou o usual tratamento silencioso dessa norma.P' . Adrienne Rich menciona repetidamente a instituição da heterossexualidade e o poder saturado da ideologia da heterossexualidade.l'" os quais, assim como' a maternidade, precisam ser ... estu~ 1I

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dados como uma instituição política, através da economia, como também da propaganda cultural da heterossexualidade.102 Como sugere o "Compulsory" no título de Rich, ela se concentra nos muitos tipos de intensa pressão que a sociedade exerce sobre as mulheres para garantir que a heterossexualidade se torne o destino comum de seu sexo. Por exemplo, um romance heterossexual ideal é representado como a grande aventura feminina, dever e realização.103 Isso significa que os aspectos negativos dos relacionamentos íntimos das mulheres com os homens são muito menos divulgados. A revolução sexual e o seu ideal de mulher erótica também sujeita as mulheres a seus dominadores. Os homens também negam às mulheres o seu próprio prazer único e autônomo, prendendo-as a eles. Rich cita a remoção cirúrgica do c1itóris e também a negação deste pelos freudianos; a pena de morte para o adultério feminino e a sexualidade lésbica; as críticas à masturbação feminina e a destruição de provas documentárias da história do lesbianismo.l'" Alguns homens impõem às mulheres atos agradáveis apenas para eles. Além de estupro e incesto, Rich cita descrições pornográficas de mulheres reagindo satisfatoriamente a violência sexual e humilhaçãoF" Rich diz que com essa coerção a heterossexualidade não é adequadamente chamada de escolha ou preferência. Esses termos sugerem um livre acesso a possibilidades alternativas. Aidéia de que a heterossexualidade é escolha das mulheres esconde as forças sociais que convergem para as mulheres com o intuito de heterossexualizá-las.P" Rich critica especificamente o modelo construcionista-social freudiano segundo o qual uma garota se torna heterossexual quando interage livremente com outras pessoas importantes em sua vida. Como as mulheres estão sujeitas ao poder maior dos homens e dos heterossexuais, esse processo na verdade é coercitivo. Ela também critica o modelo biológico que coloca a heterossexualidade como uma orientação inata predeterminada. Isto nega efetivamente as pressões sociais sobre as mulheres, que as empurram para a heterossexualidade.v"

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no que diz respeito à grande variedade de relacionamentos que envolvem intimidade e apoio entre mulheres. Em uma sociedade heterossexual dominante, um silêncio especialmente profundo nega a grande intimidade existente entre as mulheres chamadas de lésbicas.1l2 Ela diz que até mesmo a heterossexualidade sádica é apresentada como mais "normal" que a sensualidade entre mulheresP? Rich salienta que a heterossexualidade deve ser situada no tempo: Os historiadores precisam perguntar em todos os pontos como a heterossexualidade como instituição foi organizada e mantida.1l4Mas ela equipara heterossexualidade à união de mulheres e homens, uma relação encontrada em todas as sociedades. De igual modo, a identificação com mulher e o lesbianismo continuam a ser fenômenos universais que, como diz, aparecem em toda a história.1l5 Ela enumera as múltiplas variedades das relações de mulheres identificadas com mulheres através do tempo e das culturas. Mas considera as intimidades, a resistência e as atribulações das mulheres como isoladas dos sistemas históricos particulares em que

Em contraste com essa heterossexualidade imposta, ela descreve uma existência identificada com mulher resistente e voluntária, caracterizada por várias formas de intensidade primária entre as mulheres. 108 Ela apresenta a identificação com mulher como uma escolha para as mulheres, livremente mantida contra a compulsão hetero dominante. Como opostas, as alianças íntimas com mulheres se baseiam em seus próprios sentimentos autênticos. Mas essas intimidades resistentes das mulheres não são também determinadas fundamentalmente pelo regime heterossexual compulsório contra o qual elas lutam? Rich chama o problema principal das mulheres de heterossexualidade compulsória, sugerindo a possibilidade de uma heterossexualidade liberada.l'" Mas eu acho que sempre que heterossexual e homossexual operam como uma distinção social dominante impõem às pessoas um ou outro desses dois erotismos relativos aos sexos - ou uma combinação bissexual. Qualquer separação que a sociedade faça de heterossexual e homossexual é compulsória. A heterossexualidade. compulsória de Rich é redundante. \

Rich questiona a idéia de que o homem e a mulher em um relacionamento erótico, embora ambos sejam chamados de heterossexuais, são iguais em status social e poder. Contrariando a suposição democrática de equivalência heterossexual, ela mostra as muitas desigualdades sociais que tornam a heterossexualidade uma associação socialmente assimétrica, com as mulheres em uma posição inferior. Rich critica claramente várias análises feministas do status social das mulheres que não examinam o efeito negativo sobre todas as mulheres dessa desigualdade típica do arr~rtjq heterossexual.l'" Ela argumenta que como a organização social da heterossexualidade reproduz a desigualdade das mulheres, as feministas deveriam consideràr a heterossexualidade não um problema secundário, mas o problema principal. Em sua opinião, a idéia da heterossexualidade como a inclinação emocional e sensual" natural" das mulheres, faz a identificação de mulheres com mulheres parecer um desvio e patológica, impedindo a aliança política das mulheres com as mulheres.!" Ela afirma que o sistema de identificação obrigatória com homem também produz um silêncio, uma lacuna no conhecimento,



ocorrem. A história e o tempo existem na análise de Rich como o meio que torna possível, geração após geração, uma heterossexualidade compulsória absoluta e a ocasional resistência ativa e organizada de mulheres identificadas com mulheres. Mas o tempo não fornece um meio de abolir o compulsório em heterossexualidade abolindo a sua institucionalização, e a própria designação heterossexual. Em uma palestra dada em uma conferência feminista em 1979, a poetisa lésbica negra Audre Lorde avisou que ''The Master's Tools Will Never Dismantle the Master's House" (As Ferramentas do Mestre Nunca Destruirão Sua Casa).116Sua frase serviu como uma crítica interna àquela conferência, outra reunião acadêmica na qual a negritude e o lesbianismo significavam diferenças excluídas. A idéia do mestre de diferença como inferioridade deve ser rejeitada, sugere Lorde: Porque as ferramentas do mestre nunca destruirão sua casa. Elas podem nos permitirvencê-lo temporariamente em seu próprio jogo, mas ll7 nunca nos permitirão fazer verdadeiras mudanças.

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Lorde celebra como uma força valiosa e criativa as distinções entre mulheres negras e brancas, e entre feministas homossexuais e heterossexuais. Contudo, não questiona fundamentalmente a polaridade homossexuallheterossexual. Mas no século XX, o conceito heterossexual tem sido desenvolvido como uma das melhores ferramentas do mestre. Sua casa era heterossexual, e os homossexuais a habitavam como parentes pobres e inferiores, com as lésbicas sendo uma classe ainda inferior a essa. O aviso de Lorde sobre o efeito nocivo das ferramentas do mestre pode ser considerado um incentivo a questionar os limites do pensamento e das opiniões políticas dentro dos parâmetros da divisão hetero/homo. Suas palavras nos incitam a inventar novas ferramentas analíticas, e a deixar as do mestre para trás. As análises ousadas de feministas lésbicas da ordem heterossexual e as análises entusiasmadas de feministas liberais e radicais, animaram os liberais gays e as lésbicas do início dos anos 1970 a cavar a sua própria história oculta. E essa escavação do passado de gays e lésbicas tem levado, gradualmente, a um novo exame da história heterossexual: Agora isso está nos fazendo imaginar um novo sistema de prazer.

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PARA UM NOVO SISTEMA

Olhando para Frente

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Noventa anos depois da estréia da heterossexualidade na América, em 1982, The New York Times ,mostrava regularmente sinais de apreensão com um erotismo de sexo diferente contestado dentro e fora de seu próprio jornal. Em agosto, a novelista Margaret Atwood fez a crítica dos poemas de Marge Piercy, chamando-os de o produto de uma mente muito parada no tempo e no lugar e envolvida com os dilemas principais de sua situação. Por exemplo, como uma feminista heterossexual deve reagir (a) aos homens como eles são e (b) às feministas mais radicais que querem que ela se afaste deles?'

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DE PRAZER

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Em outubro, a crítica de John Osborne daDiaries, de Noel Coward, anunciou que Coward contestou a heterossexualidade como uma falha de estilo. Acrítica estética de Coward (a tática de oposição do homossexual culto) tem as suas raízes no passado, no tempo de Oscar Wilde. 2 Em dezembro, The Times descreveu Tootsie como um filme sobre a grande importância da amizade como um pré-requisito para o amor entre um homem e uma mulher? O diretor de Tootsie, Sydney Pollack, foi citado: Não é um comentário triste sobre os relacionamentos sexuais o fato de que é muito raro ver um homem e uma mulher que são ótimos amigos? Os problemas da

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heterossexualidade se tornaram um clichê. Naquele ano a oposição à norma hetero foi tão forte que um psicólogo da Califórnia (que se sentia ameaçado) publicou o primeiro livro do mundo In Defense of Heterosexuality (Em Defesa da Heterossexualidade ).4

veio aAIDS - E para as pessoas como eu, tudo que dizia respeito aos homossexuais mudou outra vez ... Agora, afirma ele, a distância entre os heterossexuais e os homossexuais parece estar aumentando, em vez de diminuir. Porque, como outros que conhece, Hamill

Mesmo antes do herpes e da AIDS se tornarem motivo de. ansiedade para os heterossexuais, seu amor sexual começara a perder a antiga segurança, o status não questionado. Crisis: Heterosexual Behavior in theAge of AIDS (1988) de Masters e Johnson de fato nomeou uma situação crítica antedatando a AIDS.5 Contudo, a reação da mídia à AIDS tem provocado um grande aumento das referências explícitas à heterossexualidade, uma quantificação que promoveu uma mudança qualitativa na opinião pública. Embora em geral a AIDS tivesse sido em princípio ligada nos Estados Unidos a homens que tinham sexo com homens, os relatórios sobre a migração do vírus provocaram agora uma mudança na opinião pública: os atos heterossexuais e outros que envolvem troca de fluidos são um modo de transmissão do vírus - o heterossexual é uma das espécies eróticas em risco. Negando a existência de uma ameaça especial da AIDS aos\ heterossexuais, The Myth of Heterosexual AIDS (1990), de Michel Fumento, distorceu a realidade."

não pode evitar culpar os gays pela epidemia (eles aparentemente saíram à procura de um vírus para matá-Ios ).10

Naquele ano "Confessions of a Heterosexual" (Confissões de um Heterossexual), de Pete Harnill, deu o selo de aprovação de Esquire à raiva desse homem, que se declarava heterossexual, dos gays e dos participantes do movimento em prol das vítimas da AIDS (jogar os homossexuais ruins contra os bons é uma tática diversiva clássica)? Como um jovem marinheiro, revela Harnill, ele entrara em atrito com alguns homos: Éramos muito jovens, por isso presumíamos

arrogantemente que todos nós éramos heterossexuais, mas eles eram homossexuais ...8 Mas muitos anos mais tarde, depois da revolta de Stonewall, os heterossexuais:

em 1969, ele conhecera gays tão dignos quanto

gays que tinham relacionamentos monogâmicos, de princípios morais rígidos e com grande coragem ... eu soube que havia milhares de gays que tinham vidas burguesas respeitáveis."

Contudo, a respeitabilidade não forneceu uma cura definitiva para a sua profunda anti-homossexualidade. Porque então, diz Hamill,

II

PARA UM NOVO SISTEMA DE PRAZER

A INVENÇÃO DA HETEROSSEXUALlDADE

Suas confissões são um exemplo do aparecimento público do heterossexual. Nestes momentos difíceis no que diz respeito ao sexo, Hamill e muitos outros homens freqüentemente sentem necessidade, em várias circunstâncias, de afirmar a sua heterossexualidade. A afirmação da heterossexualidade é mostrada em março de 1989, na primeira página do New York Newsday, que traz uma grande foto do antigo prefeito de Nova York e o título: Koch: "I'm

Heterosexual"

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Um mês depois, Bruce Weber, um editor de TheNew YorkTimes Magazine, escreve em uma coluna "About Men" (A Respeito dos

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Homens) sobre "My Best Friend's Girlfriend" (A Namorada do Meu Melhor Amigo ).12 Ele começa confessando o seu medo de que a mulher que agora mora com o seu melhor amigo acabe com a intimidade que existe há muito tempo entre ambos. Então afirma de imediato (embora timidamente) a sua orientação sexual: Nós somos

os dois heterossexuais mais velhos que eu conheço que nunca viveram com uma mulher. Essas confissões públicas de heterossexualidade sugerem um sexo-amor privado de sua muda certeza anterior. Em 1990, o título de uma peça de teatro de revista of! Broadway, "Heterosexuals in Crisis", resume satiricamente a sensação geral da crise do erotismo de sexo diferente.P Em 1992, um século depois da estréia discursiva americana da heterossexualidade, pela primeira vez na história a palavra heterosexual apareceu quase diariamente nos jornais e em outros meios de comunicação dos Estados Unidos, geralmente na companhia explícita de homosexual. Essas palavras foram empregadas com muita freqüência nas reportagens sobre o movimento pelos direitos civis dos homossexuais e o movimento dos ativistas que protestavam contra a reação inadequada do governo à epidemia de AIDS.

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Quando os defensores da igualdade de gays e lésbicas lutavam pelo direito de seu grupo a oportunidades iguais de emprego (o exército dos Estados Unidos era o empregador mais famoso critica- ! do), ao casamento legal e aos benefícios da parceria doméstica para os casais solteiros de todas as tendências sexuais, apelavam muitas vezes para o contraste social entre homossexual e heterossexual --.:... enfatizando a posição inferior de gays e lésbicas como cidadãos. O aparecimento de ativistas desses grupos e a reação da mídia a eles toma agora as categorias homo e hetero muito comuns. No final deste século o hetero e o homo se firmaram como dois objetos concretos da vida diária pós-moderna. Mas nesse mesmo momento, as pessoas classificadas por sexo, gênero e tendência erótica estão em atividade e prontas para questionamento. Intelectuais gays, lésbicas e feministas estão questionando muito a perenidade do feminino e do masculino, da mulher e do homem, do macho e da fêmea, da lésbica e do gay, e a essência da homossexualidade e da heterossexualidade. No final deste século, o mundo está passando por mudanças contínuas. Muitas coisas arites consideradas eternas estão sendo declaradas construções sociais e invenções - portanto, mutáveis. Isso contribui para um debate político sobre os limites e as possibilidades de mudança na apresentação social da reprodução, das diferenças entre os sexos, do gênero e do erotismo. Até mesmo alguns historiadores estão apoiando essa desconstrução construtiva.

~O QUESTIONAMENTO '-

MICHEL

DE CATEGORIA DE

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No final dos anos 1980 e início dos 1990, preparando este livro, estudei os volumes de Michel Foucault sobre The History ofSexuality (A História da Sexualidade, ed. Graal, em três volumes), seus ensaios e suas entrevistas.!" Como um dos principais céticos em relação ao sexo do século XX, esse historiador e filósofo francês questionou o conhecimento sexual recebido da sua sociedade e da nossa. Em particular, esse cético criativo examinou meticulosamente a hipótese repressiva - seu nome para a noção comum, inspirada

PARA UM NOVO SISTEMA DE PRAZER

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em Freud, de que a reação típica da sociedade capitalista à sexualidade tem sido negá-la.P Foucault argumentou que em vez de .reprimir o erotismo, essa sociedade se manteve ocupada produzindo-o - de diversos tipos e em grande quantidade. Entre os múltiplos erotismos dessa sociedade, um eros reprimido e censurado é apenas um tipo particular e não dominante. Se a repressão sexual não é o que está errado, libertar um sexo supostamente natural de seus grilhões sociais não é a tarefa que está adiante. Com um olho no futuro, precisamos em vez disso nos concentrar nos modos pelos quais o erotismo é produzido agora e o foi no passado, observando como esses sistemas sociais-sexuais regulam e controlam indivíduos e populações. Ele questiona a idéia popular do século XX de que a sexualidade tem uma essência que nos constitui, inequivocamente, como pessoas com um sexo e sexuais: mulher ou homem, homossexual, heterossexual, ou bissexual. Ele se opõe aos modos pelos quais todos nós somos agora pressionados pela sociedade para acreditar privadamente em nossas identidades sexuais e a anunciá-Ias publicamente como a verdade sobre quem somos. Argumenta que esse rótulo problemático colocado em nossos selves sexuais é um meio importante pelo qual nós, pessoas modernas, somos controladas. Foucault examina as regras sociais mutantes que fazem as afir.mações sobre homossexualidade e sexualidade parecerem óbvias, sensatas e axiomas. Ele sugere que pesquisemos as genealogias dessas categorias em discursos historicamente particulares e nas instituições poderosas ligadas a eles.l" Insinua que categorias tão ostensivamente descritivas como homossexualidade e sexualidade são tão cheias de valor e ética, e servem tanto ao poder, quanto as prescrições sexuais moralizadoras dos antigos pregadores puritanos a respeito da sodomia e dos atos procriativos adequados.'? Esse historiador se recusa a aceitar como axioma a questão da perversão sexual ou o problema da homossexualidadeí" Em vez disso, faz indagações básicas a respeito da sexualidade de quem está sendo questionado, e de que prazer é considerado um problema. Quais são as regras e qual é a rnobilização de poder que leva as pessoas a fazerem perguntas sobre alguns praz~res e não sobre outros? Ele nos avisa que a transformação da sexualidade em um

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problema tem uma política e uma história. Lembra que a política de solução do problema sexual está ligada à política de nomear o problema sexual. Assim como outros estudiosos anunciaram um processo de modernização, esse historiador anuncia o processo de normalização social-sexual. Isso produz a nossa experiência de alguns prazeres físicos como normais e bons, e de outros como anormais e ruins.'? Seu History ofSexuality está cheio de referências às funções normalizadoras da psicanálise, e às intervenções normalizadoras na sexualidade feitas por vários médicos moralizadores.ê" A norma sexual, a normalidade e a normalização são de fato a sua idéia fixa. Questionando a nossa suposição tradicional de que a sexualidade é determinada biologicamente e não tem uma história, Foucault afirma provocadoramente que a sexualidade data do final do século XVIII e início do XIX. Ele fala sobre a produção da sexualidade como uma construção histôrica.ê Salienta que a sexualidade do nosso tempo, tornada científica, é muito diferente da afrodisia dos gregos antigos (e, portanto, do desejo carnal dos antigos puritanos da América e dos gostos1eróticos do Iluminismoj.P Foucault argumenta que a sexualidade é um fenômeno e um conceito moderno, constituído por uma prática institucionalizada e uma ideologia historicamente específicas. Pondo em dúvida a nossa idéia comum de sexualidade como algo basicamente privado que existe nos indivíduos, Foucault dá nome a uma economia de prazeres, colocando o prazer dentro de um arranjo mutante de poder social e históricc.P Ele diz que sistemas de prazer'humanos diferentes dão aos nossos corpos capacidade de ~ . . apreciar configurações históricas particulares, isolando o erotismo de outro,s prazeres.ê"

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A análise de Foucault da história do prazer contesta estudos anteriores na área da sexualidade, questionando por exemplo as limitações de uma história de repressão vitoriana, de atitudes em relação à homossexualidade, de uma homossexualidade essencial e até mesmo uma história de uma sexualidade básica. Sua própria história da organização social dos prazeres da Grécia e da Roma antigas (que inclui "Dietetics", "Erotics", "The Body", "Marriage", e "Boys") compara os sistemas de prazer passados com os atuais. O

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caráter histórico que ele atribui radicalmente ao desejo carnal contesta a idéia de um destino erótico predeterminado. Ele apresenta a possibilidade de uma nova e revolucionária organização social do prazer. Mas o que, exatamente, Foucault diz sobre a heterossexualidade? As melhores sugestões que esse historiador dá para analisá-Ia estão, significativamente, implícitas ~ contidas em sua análise da homossexualidade. Seu comentário mais conhecido sobre esse assunto aparece em um capítulo sobre "The Perverse Implantation" (A Implantação Perversa), no qual ele fala sobre uma perseguição historicamente nova e uma especificação dos indivíduos como tipos de pervertidos sexuais. Ele compara a especificação e desqualificação dos homossexuais do final do século XIX com a antiga proibição cristã dos atos desodomià: A homossexualidade aparece como uma das formas de sexualidade quando foi transposta da prática de sodomia para um tipo de androginia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita tinha sido uma aberração temporária; o homossexual era agora uma espécie.25

Inspirados pelos comentários de Foucault, sobre "A Implantação Perversa", não podemos agora perguntar sobre "A Implantação Normal"? No final do século XIX a heterossexualidade também não foi implantada corno uma forma de sexualidade? Eu lembro que o sodornita tinha sido uma aberração temporária de uma norma procriadora; o procriador seu companheiro constante. O homossexual e o heterossexual eram agora permanentes, inferiores e superiores, espécies de tipos eróticos de sexo diferenciado. Em outro comentário importante sobre a homossexualidade, Foucault se refere ao momento histórico específico em que, no final do século XIX, as pessoas com tendências homossexuais começaram a falar abertamente em defesa de seu prazer difamado: o aparecimento na psiquiatria, na jurisprudência e na literatura do século XIX de toda uma série de discursos sobre as espécies e subespécies da homossexualidade, da pederastia e do hermafroduismo'psiquico tomou possível um grande aumento dos controles sociais nessa área da perversidade, mas também a formação de um discurso reverso: a hemos-

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sexualidade começou a falar em sua própria defesa, a exigir o reconhecimento de sua legitimidade ou naturalidade, freqüentemente com o mesmo vocabulário, usando as mesmas categorias através das quais era medicamente desqualificada.ê?

Aqui Foucault questiona o discurso "reverso" que ainda é uma. das táticas políticas básicas dos gays e das lésbicas Iiberais.F Revertendo o julgamento do intolerante de que homossexual é ruim, os liberais afirmam gay é bom, e organizam milhares sob a bandeira dessa afirmação. Mas Foucault insinua que essa afirmação reversa é uma inversão mecânica, limitada pelos termos opressivos estabelecidos originalmente pelo intolerante. Ele admite que o discurso reverso dos liberais tem usos práticos na luta importante pelos direitos e pela igualdade dos homossexuais - a luta por um tratamento melhor dentro do sistema dominante. Mas a afirmação reversa não contesta explicitamente a profunda estrutura social da opressão homossexual em que as categorias hetero e homo estão envolvidas como termos básicos. \ Esse historiador mostra o momento no final do século XIX em que o discurso a favor e contra a homossexualidade se tornava mais . público e comum. Mas nós também não podemos perguntar o que estava acontecendo naquela época com o discurso sobre a heterossexualidade? O heterossexual não estava sendo definido publicamente, embora de forma mais reservada, nessa mesma ocasião? Essa discussão.mais reservada do final do século XIX não é pelo menos tão importante quanto a discussão sobre o pervértido homossexual e sexual? O'discurso dos médicos sobre o homos~hual e o pervertido não é na verdade um modo indireto de discutir o heterossexual? Se for assim, por que Foucault concentra os seus comentários explícitos no homossexual e no pervertido e ignora quase totalmente o heterossexual? Eu acho que o próprio modo de Foucault falar reflete de modo não crítico algo peculiar a respeito da idéia heterossexual como a conhecemos. Desde o início essa idéia foi constituída como, simultaneamente, uma presença influente e uma ausência poderosa. Foucault começa a sugerir isso.

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A explosão discursiva dos séculos XVIII e XIX, diz ele, estava ligada a uma modificação no sistema de casamento (uma organização social de relações de parentesco, de aliança econômica, de transferência de propriedade e de prazer). Ele declara que de 1700 a 1900 o padrão de monogamia heterossexual foi cada vez menos mencionado, ou mencionado como uma crescente moderação. Os esforços para descobrir os seus segredos foram abandonados; nada mais foi exigido dela além de definir-se dia a dia [ele parece estar se referindo à prática social, não ao discurso explícito]. O casal legítimo, com a sua sexualidade regular, tinha direito a mais discrição. Isso tendeu a funcionar como uma norma, talvez mais rígida, mas também mais silenciosa. Por outro lado, o que foi examinado foi a sexualidade das crianças, dos loucos e dos criminosos; a sexualidade daqueles que não gostavam do sexo oposto; fantasias, obsessões, pequenas manias ou grandes ataques de raiva. Foi o momento de todas essas pessoas, que quase não eram notadas no passado, darem um passo à frente e falarem, fazerem a difícil confissão de quem eram.

Ele acrescenta: se a sexualidade regular por acaso fosse questionada mais uma vez, o seria através de um movimento de refluxo, , originando-se nessas sexualidades periféricas. 28 (Em nosso próprio tempo, o questionamento da sexualidade regular do ponto de vista das sexualidades periféricas é exemplificado pelas. críticas das feministas lésbicas e dos liberais gays à ordem heterossexual.) Falando sobre o que anacronicamente chama de norma de monogamia heterossexual, Foucault chama a nossa atenção para uma mudança histórica - do uso de uma lei externa e aplicada pela comunidade de comportamento reprodutivo adequado no casamento para o uso de uma norma interna observada pela própria pessoa que define a experiência adequada do erotismo. O sistema anterior de aplicação da lei de sodomia tinha pública e dramaticamente usado o medo da morte, da punição física ou da condenação ao ostracismo. O sistema em desenvolvimento de norma sexual da classe média usou sentimento de culpa e vergonha como autopunição, e o medo pessoal e secreto de ser sexualmente anormal. Esse sistema da classe média de regularidade sexual mostrado por Foucault certamente é o antecessor de nosso subseqüente padrão heterossexual historicamente específico."

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A análise de Foucault sugere que o discurso crítico e explícito do final do século XIX sobre o homossexual e o pervertido sexual foi um modo dos médicos respeitáveis da classe média falarem veladamente em defesa do heterossexual, ambíguo do ponto de vista procriativo e portanto ainda polêmico. Falando sobre o pervertido sexual, os médicos não precisavam se arriscar a falar freqüente-e abertamente a favor do heterossexual. .

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Ele insinua que a norma heterossexual iniciou a sua existência como um persuasor oculto e mistificado que poucas vezes recebeu um nome e continua a sua ação um tanto secreta nos dias atuais. Apesar de sua grande influência, a norma heterossexual em geral ainda age tranqüilamente, sem ser mencionada, nos bastidores. Embora centenas de manuais sobre como ser um heterossexual melhor tratem-na como uma realização problemática, a própria norma em geral não é questionada. A ação dessa norma heterossexual implícita também pode ser vista na ausência, até recentemente, de referências à heterossexualidade em muitos textos psicológicos, sociológicos e históricos onde de fato está presente e ativa. Por exemplo, a palavra heterosexual aparece raramente nas obras de Freud, embora ele admita que só está interessado nos homossexuais como uma pista que leva aos heterossexuais. Heterosexuality também está tipicamente ausente dos índices dos livros modernos em que essa norma é dominante. Em .todos esses volumes a ausência física da palavra heterosexual não é de modo algum sem importância - é uma evidência da ação da norma heterossexual como um sedutor subliminar não questionado.

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desses arranjos fornece insight a respeito dos meios pelos quais a norma hetero continua a escapar de indagações explícitas. Em primeiro lugar, o poder que durante tantos anos foi usado contra o estudo sério da história da homossexualidade recentemente resultou em uma reação de interesse de estudiosos fora e dentro das academias por esse tipo de pesquisa. Desde os anos 1970, o desenvolvimento de todo um novo campo intelectual, os estudos sobre lésbicas e gays, deve-se ao grande interesse das pessoas com tendências homossexuais em se verem no mundo, em uma descoberta de suas vidas sociais anteriormente pouco conhecidas. A história e os estudos da homossexualidade estão surgindo como um modo de resistir àquela invisibilidade que despedaça a alma. Então não é de espantar que Foucault e outros de predileção homossexual eperversa tenham sido pioneiros nos estudos e na história da homossexualidade. Um profundo interesse pessoal motivou a sua e a nossa preocupação de complicar a problematização por parte dos estudiosos da heterossexualidade dos homos e pervertidos.

Eh observei que o enfoque de Foucault ria normalização é uma de suas realizações mais originais como historiador. Portanto, é estranho que ele nunca tenha estendido a sua análise explícita da normalização até a heterossexualidade - afinal de contas, o nome da norma erótica dominante de nossa sociedade. Por que Foucault não falou em detalhes sobre a heterossexualidade, apesar do grande prazer que sentia em criticar outras normas e instituições prezadas pela sociedade? Como ele pôde, de fato, ter falado tão pouco sobre esse assunto?

O que não é tão óbvio é que, continuando a concentrar-se nos homossexuais e pervertidos, os objetos de estudos dos especialistas em sexualidade, Foucault, como o resto de nós, reproduziu uma problemática tradicional. Começando como uma ação afirmativa e compensatória, a pesquisa. da história da homossexualidade e de outras sexualidades marginalizadas reverteu o silêncio histórico em relação a esses grupos, opondo-se à sua difamação. Mas, concentrando-nos na construção histórica da categoria e do grupo homossexual, não questionamos o suficiente o sistema básico de aliança desigual em que um termo e uma prática especificamente heterossexuais foram produzidos como dominantes." Uma história compensatória dos homossexuais não estuda os heterossexuais em igual profundidade, e por isso não analisa metade do problema. Concentrando-nos nos homossexuais e em outras minorias sexuais, continuamos a deixar a maioria sexual de fora da análise (e a não questionar a idéia de minorias e maiorias eróticaS).31É assim que a heterossexualidade continua a livrar-se do status de uma instituição enigmática e peculiar.

Que arranjos específicos de poder impediram Foucault de problematizar explicitamente. a heterossexualidade? A especificação

Alguns grupos reacionários que agem de má-fé e recentemente têm exigido os direitos e a liberação dos heteros não têm um

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interesse sério no estudo crítico da história heterossexual. Por isso são os liberais homossexuais, as feministas lésbicas e heterossexuais e seus aliados que tendem mais a afirmar que o enfoque na história homossexual à parte da história heterossexual repete a idéia de gays e lésbicas como Outros Aberrantes, Mutantes Marginais. Contudo, tomando clara a visão da margem sexual, também precisamos de obras que questionem a idéia de uma margem e um centro do sexo, um eros homossexual e uma classe padrão. Sem estudar a palavra, a idéia e o sistema social, os estudiosos da sexualidade - homossexuais e heterossexuais - continuam a privilegiar o normal e o natural à custa do anormal e antinatural. Privilegiar a norma é aceitar o seu domínio, livrá-Ia de indagações. Tomando o sexo normal o objeto de estudo histórico, ao mesmo tempo perseguimos a verdade e um objetivo revolucionário e radical no que diz respeito ao sexo: contestamos idéias preconcebidas. Descobrimos que o sexo normal e natural, o erotismo de sexo diferente e o especificamente heterossexual têm uma história de definições mutantes, freqüentemente opostas, contraditórias e contestadas socialmente. Os sexos e os seus erotismos foram ordenados, compreendidos e nomeados em uma grande variedade de modos nem sempre hetero,ssexuais. Estudando a 'norma sexual, aprendemos que ela não é sempre ou necessariamente aceita como axioma, apesar dos comentários casuais em contrãrio.F Como o "heterossexual" é considerado a norma, não é notado, afirma John Boswell. Embora a norma hetero tenha passado despercebida durante boa parte de sua história, em outras ocãsiões é notada e contestada veementemente - como por exemplo, p'elas feministas. De fato, conflitos em relação às normas sexuais são muito comuns na história dos Estados Unidos e nas histórias' de outras nações. Mas em algumas eras o poder dos defensores da norma sexual consegue normalizar o padrão dominante, colocando-o além de indagações. Enquanto nós, como Foucault, não nos concentrarmos especificamente na história heterossexual (bem como na homossexual), os gays e as lésbicas continuarão a parecer unicamente contingentes, problemáticos e esquisitos. Os heterossexuais continuarão a parecer espécimes perfeitos e totalmente transparentes.

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Em segundo, o poder que nos impede de confrontar diretamente as condições desiguais de homens e mulheres impediu Foucault de tornar as mulheres ou o gênero o seu próprio objeto de estudo teórico. Sua análise da história da sexualidade e do prazer indica a sua falta de interesse na problematização das feministas das diferenças entre os sexos e do poder desigual das mulheres. Eu acho que a heterossexualidade escapou da mente extremamente indagadora de Foucault porque o estudo do hetero (como oposto ao sexual) não o interessou particularmente. Isso o levou a uma falta de empatia com as mulheres e as feministas - e a uma falta atípica de curiosidade intelectual. Enquanto os estudos das mulheres, dos homens e do gênero não forem levados tão a sério quanto outras áreas acadêmicas tradicionais, não seremos estimulados a questionar profundamente o uso social das diferenças entre os sexos, inclusive das metades hetero e homo da distinção heterossexual/homossexual. O fato de Foucault ter tomado uma sexualidade genérica e um prazer geral seus objetos de pesquisa excluiu a nossa heterossexualidade distinta do sexo e dividida em gênero de seu campo de visão. Em 20 de novembro de 1980, eu fui sozinho ao auditório lotado da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York para ouvir Michel Foucault falár sobre "Sexuality and Solitude" (Sexualidade e Solidão ).33Mais tarde, participei de uma manifestação anunciada durante a palestra contra o assassinato recente de dois gays que levaram dois tiros diante do The Rarnrod, um bar em Washington Street, em Greenwich Village. (The New York Post noticiou que o assassino, um cafetão de homens que se prostituíam, dissera antes do assassinato ao chefe espiritual de sua igreja: Os homos são serpentes, e afirmara ter matado as serpentes porque estas haviam tocado nele.)34 ' Entre as centenas de pessoas que se reuniram em protesto naquela rua de West Village estava Michel FoucauIt, em pé sozinho na multidão. Eu também estava sozinho, e tive um impulso de me apresentar a ele como um colega estudioso da sexualidade. Mas o primeiro volume de Foucault sobre a sexualidade tinha me desagradado muito com as suas referências constantes ao poder

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fazendo coisas - seu menosprezo, até mesmo sua obliteração, das pessoas ativas e que manifestavam resistência (entre outras; ele, o escritor; eu, o leitor; e nós, que protestávamos naquela rua). Seu nível de discurso extremamente abstrato, seu estilo evasivo e suafalta de desejo de deixar claro o que queria dizer com exemplos concretos suficientes me aborreceram como se ele demonstrasse a indulgência do grande mandarim, de alguém em uma posição tão elevada no meio intelectual que não sentia necessidade de explicar-se para as pessoas comuns. Por isso não o cumprimentei. Treze anos depois, ao me preparar para escrever este livro, relendo o primeiro volume de Foucault sobre a sexualidade e suas outras crônicas e entrevistas sobre a história do prazer, eu me surpreendi com a profunda inspiração demonstrada em sua análise, com a sua insistência em modos novos de ver as coisas que se opõem à intuição, e até mesmo com a clareza quase livre de jargões (embora abstrata) de sua apresentação. Hoje lamento muito não tê-lo cumprimentado, nunca ter rido da sexualidade com esse revolucionário que tão obviamente gostava de tirar a nossa paz intelectual, cuja obra brilhante para nós foi tão prematuramente interrompida pela praga atual. Agora, só posso lamentar a perda desse grande homem e honrar a sua obra, usando-a como uma ferramenta neste projeto que questiona a heterossexualidade.

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de Foucault sobre a sexualidade como construção histórica, a discussão de outros estudiosos sobre a construçõosocial da sexualidade e da homossealalidade e o discurso das feministas sobre a criação do gênero, incentivaram-me a pesquisar a história da invenção da heterossexualidade.P Mas exatamente o que eu quero dizer comA Invenção da Heterossexualidade? Em que sentido eu acho que a heterossexualidade foi inventada? discurso

provocador

Quando eu comecei esta pesquisa, acreditava, como de nós, que os sentimentos, os atos e os relacionamentos sexuais existiam completamente à parte da palavra e do Achava que a palavra e o conceito eram reflexos de uma si heterossexual. Presumia que essa coisa viera muito palavra e da idéia.

a maioria heterosconceito. coisa em antes da

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Acabei concluindo que essa nossa suposição comum distorce e simplifica muito o relacionamento histórico da palavra heterossexual com o conceito, o sentimento, a atividade e o sistema. Agora eu acho que esses relacionamentos são muito mais ativos e complicados. Para ser o mais claro que posso a respeito dessa complexidade: eu não creio que a invenção da palavra heterossexual, e do conceito, criou um erotismo de sexo diferente. Eu realmente creio que a apropriação por parte dos médicos da palavra e da idéia da heterossexualidade legitimou recente e publicamente o que já existia, mas condenou oficialmente o erotismo de sexo diferente da classe média. A palavra heterossexual, e o conceito, então ajudaram a recriar esse erotismo dos sexos como, especificamente, heterossexual, dentro de uma nova sociedade especificamente heterossexual. Essa análise construcionista-social radical contradiz a nossa hipótese oposta, em que acreditamos firmemente, de que a heterossexualidade simplesmente é, não-mediada pela linguagem e pelas idéias, ou mediada apenas superficialmente. Segundo essa hipótese de simplesmente é, a heterossexualidade é uma coisa à parte da palavra e do conceito, um fato objetivamente existente do corpo masculino

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Aidéia de que uma coisa heterossexual existe à parte do discurso é em si um estratagema que impede que o discurso histórico sobre a heterossexualidade seja examinado atentamente. Porque a idéia de simplesmente é torna uma história da palavra heterossexual, e do conceito, algo sem importância. Se o sexo hetero simplesmente é, a história da palavra e do conceito é superestrutural, um revestimento no topo da coisa heterossexual real, básica e autêntica. Mas não é, e eu escrevi este livro para mostrar isso. Eu agora acho que a heterossexualidade é inventada no discurso como o que está fora dele. É criada em um discurso particular como o que é universal. É construída em um discurso historicamente específico como o que não se restringe ao tempo. Foi construída bastante recentemente como o que é muito antigo: a heterossexualidade é uma tradição inventada.ê"

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Aheterossexualidade, afirma a nossa hipótese dominante, definitivamente não é apenas uma norma, uma visão possível do lugar do eros nas intimidades dos sexos diferentes, uma idéia que deveria ou não continuar a ser dominante na prática. Não é apenas um sistema erótico de sexo diferenciado histórico e particular. O discurso de que a heterossexualidade simplesmente é nega a política e á história dessa produção da verdade. Finalmente, esse discurso afirma que, como a heterossexualidade simplesmente é, não há nada que possamos fazer em relação a isso. Mas se 11msistema especificamente heterossexual não existiu no passado - por exemplo, na Nova York de Walt Whitman -, não tem de existir no futuro - embora um sistema hierárquico poderoso de desigualdade heterossexual certamente exista no presente. Mas como, então, podemos abolir esse sistema, e instituir uma nova e mais justa organização de prazer? Os conflitos políticos atuais a respeito das formas adequadas de sexo e gênero, reprodução e erotismo, estão até mesmo agora determinando a forma do sexo futuro. Os números nunca antes vistos de mulheres que integram a força de trabalho despertam impulsos rebeldes em mulheres não necessariamente identificadas como feministas. Essas muitas mulheres, cheias de uma nova coragem, exigem o fim da discriminação sexual por parte dos empregadores e oportunidades iguais de emprego para ambos os sexos, o que ajuda a derrubar os velhos mitos relacionados com os sexos. Diante dos olhos fascinados da nação, uma das novas mulheres, Anita Hill, acusou Clarence Thomas, candidato a um cargo eletivo no Supremo Tribunal, de assédio (hetero) sexual, criando uma consciência nacional desse problema. Logo. outras novas mulheres protestaram publicamente contra o anuário da Marinha que fechou os olhos ao assédio (hetero) sexual na convenção de Tailhook, revelando os anos de (hetero) sexualização indesejada do Senador Bob Packwood. Em seguida, Lorena, uma esposa maltratada, tomou uma atitude direta em relação a Bobbitt (seu marido, John Wayne). Tomando o patriarcado em suas próprias mãos, ela contestou, de seu próprio modo literal, a lei do falo. As muitas mulheres que integram a força de trabalho finalmente colocam um fimàs associações vigentes no século XIX de seu sexo

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com passividade e domesticidade. Apesar dos salários mais baixos para o mesmo cargo, dos empregos inferiores e do domínio dos homens no local de trabalho, os salários tornam as mulheres mais independentes dos homens, promovendo novas relações entre os sexos, e uma nova idéia de feminilidade totalmente igual à masculinidade. Dispondo de seus corpos no mercado de trabalho, essas novas mulheres afirmam o seu direito a dispor do seu erotismo, anteriormente uma prerrogativa apenas dos homens. Os historiadores da sexualidade americana John D'Emilio e Estelle B. Freedman dizem que a grande proporção de mulheres que trabalham em troca de um salário está ligada a mudanças ... nas relações heterossexuais." Durante a campanha presidencial de 1980, a Nova Direita torna a sexualidade, a feminilidade e a masculinidade temas políticos nacionais. No ano seguinte os conservadores republicanos no Congresso tentam proibir o envio de fundos para as escolas que negam as diferenças de papéis entre os sexos como eles têm sido historicamente conhecidos nos Estados Unidos. Os mesmos políticos tentam negar benefícios governamentais a qualquer um que apresente a homossexualidade como um estilo de vida alternativo aceitável.38 Mas mesmo esses conservadores mantêm as diferenças sexuais e a sexualidade no centro da consciência pública. Durante a campanha presidencial de 1992, os conservadores do Partido Republicano tomam as aventuras (hetero) sexuais de Bill Clinton um assunto nacional, junto com os direitos dos gays, os valores da família tradicional, e a política do ódio. Anteriormente, o Senador Gary Hart fora eliminado da corrida presidencial devido a um deslize (hetero) sexual. Mais tarde, o adultério (heterossexual) do pai de família de Long Island Joey Buttafuoco com a adolescente Amy Fisher é reapresentado em três programas nacionais de televisão. A revelação pública de escândalos heterossexuais torna agora difícil afirmar a grande base moral desse amor sexual particular. A queda da velha ética reprodutiva também elimina um fundamento lógico da distinção entre homossexual e heterossexual. Como a maior parte do mundo ocidental, os fundamentalistas cristãos e a grande maioria dos católicos usam regularmente intensificadores do prazer (eufemisticamente, controle de natalidade). Pou-

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cas pessoas agora, exceto o Papa, julgam a qualidade dos relacionamentos heterossexuais por sua fecundidade.

bicas, engravidam com a ajuda de um homem obsequioso e tubos de plástico condutores de esperma . Enquanto a lacuna do gênero entre mulheres e homens diminui, ocorre o mesmo com a lacuna da orientação sexual. A convergência da heterossexualidade e da homossexualidade se toma ainda mais visível. A instabilidade dos relacionamentos homossexuais (não apoiados pela lei e pela cultura dominante) não serve mais para distingui-Ios essencialmente dos muitos relacionamentos heterossexuais desestabilizados pelo divórcio.

. Como descrevem D'Emilio e Freedman, desde o início do século XIX, quando as amarras reprodutivas das relações sexuais se afrouxaram para a classe média urbana, muitos americanos tiveram de descobrir timidamente o significado e o objetivo das relações sexuais. 39 Agora, a universalidade próxima do controle da natalidade põe em foco a separação do procriativo do erótico." Hoje, o significado de sexualidade não parece mais residir, evidente por si mesmo, dentro de nossos corpos ou na natureza, mas depende de como a usamos. As descobertas surpreendentes de biólogos que estudam a sexualidade, e o desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas, contestam os antigos fatos indiscutíveis relacionados com a ligação entre sexo eprocriação. Quaisquer que sejam as idéias a respeito da sexualidade que a maioria dos americanos tem na teoria, quase todos agora comumente agem como se não houvesse um elo necessário entre fazer amor e bebês.41

Começando nos anos 1970, a coabitação de números crescentes de jovens solteiros de sexos diferentes tomou-se muito visível, fazendo a coabitação de pessoas do mesmo sexo parecer muito comum. D'Emilio e Freedman dizem que enquanto os americanos adiavam o casamento e a vinda dos filhos e se divorciavam com mais frequência, e as feministas e os liberais gays questionavam a ortodoxia heterossexual, a sexualidade não conjugal se tornava comum e explícita. Outra distinção tradicional entre heteros e homos desaparece."

Ao mesmo tempo, os membros conservadores da legislatura e os ativistas de direita lutam para manter o velho elo entre o ato sexual e a reprodução. Eles negam fundos federais para abortos a mulheres pobres, e os fanáticos antiaborto tentam negar a todas as mulheres a opção de interromper uma gravidez. Impedem a divulgação de informações sobre controle de natalidade para muitas moças e rapazes que têm vida sexual ativa, e negam aos heterossexuais e homossexuais a educação sexual que pode salyar suas vidas. , A dese&.tabilizaçãopública atual da tradição hetero também é visível no aumento da taxa de divórcio e na criação de novas famílias. Entre 1960 e 1980, dizem D'Emilio e Freedman, o número de pessoas divorciadas subiu quase duzentos por cento; a própria taxa de divórcio subiu noventa por cento. Os segundos casamentos tinham ainda menos chance de sobreviver.42 Nos anos 1980 afamília tradicional com filhos e os dois pais presentes representava apenas três quintos de todas as uniões/ê A idéia e a realidade da família estão se ampliando diante dos olhos atônitos dos americanos. Casais de lésbicas e gays criam seus filhos de casamentos anteriores, ou os adotam; mulheres heterossexuais solteiras, assim como muitas lés-

Os atos sexuais particulares que antes achava-se que distinguiam heterossexuais e homossexuais não servem mais claramente para essa função. Embora Kinsey tenha encontrado poucos heterossexuais que praticaram relação ou cunilingua, dizem os historiadores, no final dos anos 1970 essa era uma experiência comum entre as pessoas na casa dos vinte.45 Nos anos 1970, acrescenta, até mesmo o "ato sexual" supostamente imutável foi redefinido de modos que enfraqueciam um monopólio masculino da natureza do sexo/" A variedade dos atos eróticos mencionados nos manuais da heterossexualidade de hoje também enfraquece o velho monopólio heterossexual da definição do sexo. .

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A convergência dos estilos de vida hetero e homo é provocada pela ascendência da economia de consumo e de sua ética de prazer. (Duplique o seu prazer e o seu divertimento ...) Isso contesta a velha ética de trabalho, ajudando a promover uma grande mudança dos valores sexuais. Enquanto a ética de trabalho vitoriana apregoava o valor da produção econômica, a ética de procriação desse tempo exaltava as virtudes da reprodução humana. Por outro lado, a ética econômica moderna apregoa os prazeres do consumo, enquanto a ~ .• ~~~-

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ética sexual moderna defende um princípio de prazer erótico para os homens e atémesmo para as mulheres. Como dizem D'Emilio e Freedman, a dinâmica de uma economia voltada para o consumo vende o prazer para aqueles que podem comprá-lo. Não vai demorar muito para os preservativos sert:m vendidos em todos os supermercados. A comercialização do sexo e a sexualização do comércio colocam opeso das instituições capitalistas do lado de uma visível presença pública do erotismo." No final do século XX, grande parte da corrente principal da cultura estava promovendo o erotismo.ê A comercialízação do prazer acaba ainda mais com as velhas distinções entre hetero e homo. Como a cultura dominante da classe média passou a dar mais valor à satisfação sexual e ao prazer, dizem os historiadores, toma-se difícil preservar o casamento heterossexual como um meio legítimo de expressão sexual." Aestimulação comercial desvenda os velhos mistérios do sexo. A venda do prazer e do sexo para todos que podem comprâ-los ajuda a pôr fim a antigos fundamentos lógicos para a supremacia heterossexualaté mesmo à diferença hetero-homo, Porque, como uma busca pelo prazer, a heterossexualidade e a homossexualidade têm muito pouco para distingui-Ias. Os heterossexuais são cada vez mais como os homossexuais, exceto pelo sexo de seus parceiros. O cientista político do sexo Dennis Altman chama a crescente legitimidade da heterossexualidade prazerosa de homossexualização da América. Ele insinua que os estilos de vida heterossexuais basicamente não diferem mais dos homossexuais.ô'Ahomogeneízação de heterossixual e homossexual anuncia o aparecimento de uma ten,dência paradoxal: a de ser dada menos importância à orientação sexual. .

D'Emilio e Freedman dizem que em meados do século XX os liberais quanto (!.O sexo tinham celebrado o erotismo, mas tentado mantê-lo dentro de uma estrutura heterossexual de relações monogãmicas de longo prazo que continuavam a ter no casamento o seu objetivo final.5l Agora não existe mais aquele consenso liberal em relação ao erotismo. Atualmente, milhares de homossexuais e seus simpatizantes participam ativamente com os heterossexuais de um grande e orga.

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nizado movimento nacional pela igualdade civil. E isso, surpreendentemente, promove um igualamento fundamental da antiga distinção homo/hetero. Porque a afirmação explícita da igualdade homossexual - o aparecimento em massa dos homossexuais basicamente põe em risco a supremacia heterossexual, e a própria divisão hetero/homo. . O homossexual e o heterossexual foram nomeados pela primeira vez na tentativa dos reformadores da lei alemã de fornicação antinatural de opor-se à posição inferior desse ato na hierarquia social-sexual. Adivisão homo/hetero foi então eleita pelos médicos como um meio de afirmar a supremacia dos heterossexuais. Historicamente, o motivo para nomear e distinguir o heterossexual e o homossexual era refutar a inferioridade do homossexual ou afirmar a superioridade do heterossexual. Não haveria um motivo para a divisão hetero/homo se os heteros não estivessem acima dos homos em uma hierarquia social de prazeres superiores e inferiores. Se os homossexuais conquistassem a igualdade social com os heterossexuais, não haveria um motivo para distingui-los. A distinção homossexual/heterossexual cairia em desuso, do mesmo modo como foi um dia inventada. Em certo sentido, a direita está certa. Os fundamentalistas religiosos e os ultraconservadores estão corretos em acusar o movimento pelos direitos de gays e lésbicas de uma homogeneização -, ameaçadora. A afirmação política de igualdade dos homossexuais pode ser concebida pelos gays e pelas lésbicas liberais como uma estratégia para igualar o status civil de heteros e homos. Essa igualização pode até mesmo ser acusada de confirmar a diferença hetero/homo, Mas sejam quais forem os seus objetivos conscientes, se os gays e as lésbicas liberais algum dia conseguirem a total igualdade, acabarão com a necessidade social da divisão hetero/homo. O segredo do movimento principal e mais moderado pelos direitos civis de gays e lésbicas é a sua promessa de transformação radical (ou a sua ameaça, dependendo de nossos valores). O mundo do sexo está agora virado de cabeça para baixo. Influenciados pelos muitos movimentos sociais, os heteros e homos se tornam ainda mais parecidos. Daí a corrida là~ca da mídia para divulgar todos os novos estudos científicos que demonstram que o , ;..•.

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desejo homossexual, e o heterossexual, está nos genes, no hipotálamo, nos hormônios ou seja lá onde for, e que as orientações nunca devem juntar-se. Mais uma vez a linha fisiológica segura é traçada. Os homossexuais e os heterossexuais de convicção biológica determinista suspiram de alívio: os heterossexuais porque os seus sentimentos não são homossexuais, e portanto são bons, e os homossexuais porque os seus sentimentos são naturais, e portanto bons. Mas então a diferença hetero/homo passa novamente despercebida, e amantes ansiosos de um sexo diferente e amantes nervosos do seu próprio sexo são forçados a afirmar o seu desejo sem a ajuda da ciência e da biologia. Os deterministas biológicos e os seus críticos lutam hoje por valores, política e a possibilidade de criar um mundo sexual totalmente novo. Mas exatamente que tipo de novo mundo sexual esperamos? Embora seja agradável a idéia de especificar o sexo futuro, eu recuso o papel de profeta do prazer. Em primeiro lugar, precisamos procurar menos por profetas, e confiar mais em nossos próprios desejos, nossas visões e nossa organização política. Em segundo, a forma do sexo futuro não pode ser conhecida agora, porque será determinada por todos nós. Isto é, nós construímos a forma do sexo futuro do modo como agimos no presente em resposta à AIDS, aos direitos de gays e lésbicas, aos benefícios da parceria doméstica, à educação sexual, ao aborto, ao controle da natalidade, à saúde mundial, às oportunidades iguais de emprego e às definições de homossexual e normal, lésbica'egay, homossexual e heterossexual. Quando nos esforçamos para coar uma sociedade com menos sofrimento e mais prazer, inventamos a sexualidade do futuro. ' Mas esse sistema fará uma distinção entre heterossexual e homossexual? Se a heterossexualidade foi construída no passado, e continua a ser construída no presente, também poderá ser desconstruída no futuro. Quais são as perspectivas da heterossexualidade? Heterossexual e homossexual se referem a um sistema de domínio historicamente específico- de sexos e erotismos desiguais socialmente.S Então faz tanto sentido procurar na biologia a causa

PARA UM NOVO SISTEMA DE PRAZER

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do sentimento heterossexual ou homossexual quanto o faz procurar os determinantes fisiológicos da mentalidade do escravo ou do senhor. O determinismo biológico é mal interpretado intelectualmente, bem como abominável politicamente. Porque coloca o nosso problema em nossos próprios corpos, não em nossa sociedade. Agora comumente pensamos, Bem, é claro que a biologia e a sociedade determinam juntas os nossos destinos. Mas isso apenas coloca o velho fatalismo bio dentro de uma estrutura sociobiológica. Somente a extrema arrogância do olhar heterossexualizador nos permite ver a divisão hetero/homo da sociedade ocidental moderna como baseada na biologia, na natureza ou na evolução, e as categorias, os sexos e os prazeres de outros tempos como construções superficiais. A idéia de que a biologia determinou a nossa heterossexualidade e homossexualidade historicamente particulares é infundada e ~ega as diferenças. Ao contrário do que julga a crença atual na biologia, o binário heterossexual/homossexual não está na natureza, mas é construído socialmente, e portanto desconstruível. Com a abolição da escravatura, as relações de domínio indicadas pelos termos senhor e escravo perderam a sua proeminência imediata e pouco a pouco se tornaram arcaicas, embora o racismo continue a existir. Com a abolição do sistema heterossexual, os termos heterossexual e homossexual podem tornar-se obsoletos. -,

E então o que acontecerá? Então, depois de todas as pessoas desprezadas se unirem para aumentar o prazer de sua curta permanência no planeta, finalmente nos tornaremos uma nação, não apenas fundada, mas de fato operando segundo os princípios de vida, liberdade e busca da felicidade. Desses três valores tradicionais, a busca da felicidade é, nas palavras de Gore Vidal, o verdadeiro coringa do baralho. Ele acrescenta que a busca da felicidade e de alguns prazeres mundanos exige o fim da sociedade egoísta e do princípio da ambição particular, a criação de um novo sistema de prazer. Eu afirmo aqui o meu compromisso com o prazer. Mas a busca da felicidade é um valor tradicional não limitado ao erotismo. As feministas recentemente nos mostraram que a anatomia sexual não determina os nossos destinos sexuais, nossa feminilidade

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e masculinidade. Agora, a análise da história heterossexual e homossexual sugere uma outra liberação: a biologia também não determina os nossos destinos eróticos. A organização social das interações eróticas não é fixa, a economia política do prazer mudou muito com o correr do tempo - e pode mudar novamente. Podemos lutar juntos para fazer com que os relacionamentos e o mundo social aceitem mais a diversidade erótica e o prazer carnal. Dentro dos limites e das possibilidades de nossa situação social, podemos ser os agentes da nossa própria felicidade, acabar com a supremacia heterossexual e a distinção hetero/homo. Em outras palavras, os seres humanos fazem os seus próprios arranjos diferentes de reprodução e produção, de diferenças sexuais e erotismo, escrevem a sua própria história de prazer e felicidade. Mas eles não a escrevem como desejariam, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas com que se deparam diretamente, herdadas do passado. Com essa qualificação, o sistema de prazer futuro é uma questão de debate político e organização ativista. A busca da felicidade no século XXI cabe a você.

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EPÍLOGO Lisa Duggan

Amissão de Jonathan Ned Katz neste livro - apresentar a heterossexualidade como uma convenção social histórica, em vez de como um dom natural e eterno - pode fazer muitos leitores se sentirem constrangidos, senão diretamente hostis. Para alguns liberais, dispostos a tolerar a homossexualidade nos outros desde que a sua própria heterossexualidade continue intocada, este livro pode parecer absurdo em suas críticas a essas categorias de identidade evidentes por si próprias. Para alguns conservadores, as afirmativas de Katz podem parecer uma ameaça imoral que leva ao colapso do centro da civilização, a família. Mesmo para alguns defensores dos direitos dos gays e das lésbicas, esses argumentos podem parecer prejudicar as estratégias políticas baseadas nas noções de identidade fixa. Mas os argumentos de Katz não são tão absurdos e novos como podem a princípio achar muitos leitores; Ele está seguindo uma longa linha de argumentos apresentados por movimentos sociais e políticos que tentam desestabilizar as hierarquias e acabar com as injustiças e desigualdades na vida social, cultural e política. Quando as feministas dos Estados Unidos começaram a contestar a crença generalizada de que as mulheres são naturalmente diferentes dos homens de modos que justificam desigualdades sis-

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EPíLOGO

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temáticas, foram ridicularizadas e desacreditadas. Por exemplo, os sufragistas do século XIX foram representados por seus oponentes como defensores de um ataque à própria natureza, assim como' à família, à igreja e ao Estado. Quando os afro-americanos contestaram a escravatura, e no final do século passado lutaram por igualdade política, foram atacados com evidências científicas de que os negros eram biológica e culturalmente diferentes dos brancos de modos que justificavam um tratamento desigual. Entretanto, com o passar das décadas, tomou-se possível afirmar que quase tudo, senão tudo, que era considerado diferenças entre os sexos e as raças, era histórico e político, sem ser marginalizado e posto à margem do pensamento e da crença. É claro que ainda há muitos debates. E não são apenas os que se opõem à mudança progressiva que defendem as categorias fixas de identidade. Por exemplo, algumas feministas e alguns centristas afro-americanos argumentariam que o gênero e a raça realmente constituem linhas de diferença expressivas e fixas, apesar do fato de que reverteriam as avaliações relativas dessas categorias propostas pelos conservadores. Uma feminista essencialista poderia argumentar que as mulheres são naturalmente mais pacíficas e protetoras do que os homens, e governariam melhor o mundo; alguns centristas afroamericanos acreditam que as pessoas com descendência africana estão mais preparadas para promover a democracia e a vitalidade cultural do que os caucasianos descendentes de povos frios e viciosos. Em resposta, os antiessencialistas reconhecem que as diferenças existem (embora freqüentemente discordem sobre o seu conteúdo e' \ ", significado]; mas argumentam que elas são cultrir\ais, históricas e políticas, não naturais ou fixas. ." Jonathan Ned Katz entra na briga aqui com o argumento de que as categorias heterossexual e homossexual são históricas, e portanto mutáveis. Ele encontrará oposição por parte dos conservadores, que poderiam achar que a homossexualidade pode e deveria ser mudada, mas estão apegados ao caráter natural e eterno da heterossexuálidade. Os homossexuais, para esses fanáticos, não são apenas inferiores como deveriam ser rechaçados com desprezo e punição. Mas Katz também será contestado pelos existencialistas homossexuais que acreditam que a identidade sexual é fixa, talvez inata. Com-

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preensivelmente, esses defensores da igualdade acham que o seu tipo de argumento funciona melhor contra os conservadores que os baniriam do planeta. Se as lésbicas, os gays e os bissexuais nascem, não são criados, então o desejo de bani-los ou puni-los é em si contra a natureza, e portanto errado e indigno. Mas esses argumentos são insensatos e a-históricos. Tudo que podem conseguir é a tolerância para a minoria supostamente fixa chamada de lésbica e gay. O que não podem é mudar a noção de que a heterossexualidade é normal para a grande maioria das pessoas, e mudar práticas sociais, culturais e políticas baseadas nessa suposição. Tampouco podem desestabilizar as rígidas noções de gênero que sustentam as categorias de identidade sexual. Argumentos inteligentes como o de Katz são difíceis de criar no atual clima cultural e político. Como salientou a antropóloga Carole S. Vance, nós, vemos manchetes anunciando a existência de um cérebro gay, mas não reportagens sobre os estudos históricos, cada vez em maior número, que mostram que a identidade sexual é variável cultural e historicamente. Esperamos abrir um exemplar de USA Today e ler Estudo descobre que a heterossexualidade não é "natural", não é "normal". As chances são de esperarmos muito tempo por isso. É por isso que este livro é tão importante. Colocando no discurso público os argumentos dos historiadores da sexualidade de que as categorias heterossexual/homossexual são históricas e mutáveis, Katz nos prestou um grande favor. Se esses argumentos permanecessem dentro dos limites das salas de aula das universidades e das conferências acadêmicas, não dariam um impulso ao debate público e à política como precisamos que façam. Katz sem dúvida será criticado e ridicularizado pelos argumentos que apresentou aqui, mas ao apresentâ-los se une a uma longa e distinta linha de pensadores que contestaram o senso comum de seus contemporâneos e pagaram por isso. Outros de nós serão gratos por seu espírito pioneiro. Deixem o debate começar!

NOTAS

CAPíTULO A GENEALOGIA

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DE UM CONCEITO

SEXUAL

1. Joseph Epstein, "Horno/Hetero: The Struggle for Sexual Identity", Harper's Magazine 241:144 (set. de 1970),37-51. 2. Epstein 46. 3. Epstein 43. 4. Epstein 43. 5. Epstein 51. 6. Jonathan [Ned] Katz, Gay American History: Lesbians and Gay Men in the U.SA. (NY: T. Y. Crowell, 1976) 1; doravante, Katz, GAH. 7. Katz, GAH 1-2. 8. Eu creio que o conceito de uma identidade baseada nos sentimentos eróticos e afetivos de uma pessoa, e uma política que afirma essa identidade, não explicam o ativismo de muitos daqueles cujas energias têm estimulado os movimentos de gays, lésbicas e, mais recentemente, as organizações que tratam do problema da AIDS. Os conceitos de identidades gays e lésbicas, e de política de identidade são os principais termos que temos usado para explicar a afirmação clara e em massa do sentimento erótico e afetivo que estimula os movimentos modernos de gays e lésbicas. Precisamos de vários outros termos analíticos. 9. Anteriormente, Martin Duberman escreveu uma peça teatral de sucesso, In WhiteAmerica, a partir de documentos históricos sobre o conflito entre afro-americanos e brancos. Eu provavelmente tive aquele modelo em mente, embora não houvesse assistido à peça de Duberman. Inspirado pelo grande interesse de meu pai pela história afro-americana, no final dos anos 1960 eu havia pesquisado dois documentários de rádio-teatro e em 1973 e 1974 publicaria dois livros sobre a resistência dos negros na época da escravatura. Com meu pai, Bernard Katz,
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