KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina

May 30, 2017 | Autor: Edison Gastaldo | Categoria: Social Anthropology, Martial Arts (Anthropology)
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina. Édison Luis Gastaldo

Porto Alegre, novembro de 1995.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

KICKBOXERS Esportes de Combate e Identidade Masculina.

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pósgraduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Édison Luis Gastaldo Orientação: Profª Drª Ondina Fachel Leal

Porto Alegre, novembro de 1995.

Sumário

Resumo/Abstract Introdução

5

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Capítulo 1. As Artes Marciais 1.1 A Arte da Guerra

19

19 25 28

1.2 Artes Marciais e Esportes de Combate 1.3 Artes Marciais e Indústria Cultural

1.4 A Organização das Artes Marciais no Campo Esportivo 35 Capítulo 2. O Full-Contact 2.1 Generalidades 46

46

2.2 Universo de Pesquisa: Os Praticantes de Full-Contact 2.3 A Prática Esportiva em Grupos Sociais Diferenciados

55

2.3.1 Dois Casos

2.4 O Lado de Dentro das Academias 2.4.1 O Espaço: 2.4.2 Uma Aula:

61 66

47 53

59

2.4.3 Uma Tarde de Lutas 74

74 b. O Público 78 c. Os Lutadores 85 d. Um Combate 86 a. O Evento

Capítulo 3. Identidade Masculina e Competitividade 3.1 Sobre a Noção de Gênero

92

3.2 A Construção Social da Identidade Masculina

92 94

3.2.1 Aspectos Sociais da Masculinidade em Diversas Culturas 3.2.2 A Masculinidade e seu Reverso

99

3.3 A Identidade Masculina no Ambiente das Academias

100

97

3.4 A Competitividade: Jogo e Hierarquização da Masculinidade

111

3.4.1 O Ethos Masculino e a Competitividade 3.4.2 O Jogo

117

119

3.4.3 A Hierarquização da Masculinidade 3.5 Uma Semântica da Virilidade

111

127

3.5.1 Sobre os Valores "Força" e "Técnica"

135

3.6 Ringues e Rinhas, Galos e Goleiras: a masculinidade posta à prova Capítulo 4. Homens de Ferro: a Construção do Corpo

150 153

150

4.1 O Uso e a Percepção Social do Corpo 4.2 A Utilização do Corpo para a Luta 4.3 O Desprezo à Dor

158

4.4 A Aceitação das Regras Conclusão

163

166

Referências Bibliográficas Índice Remissivo

171

180

Anexo: Glossário de Termos Usuais no Full-Contact

183

139

Resumo Esta pesquisa etnográfica trata da prática de um esporte de combate, o "full-contact", em academias na cidade de Porto Alegre, sob o viés da construção social da identidade masculina. Como este esporte é praticado quase que exclusivamente por homens, este trabalho busca compreender como se articulam os diversos elementos constituintes da identidade masculina no ambiente destas academias.

Abstract This etnographical research approaches the practice of a sportive fight, the "full-contact", in the city of Porto Alegre, under the perspective of the social construction of male identity. As this sport is practiced almost exclusively by men, this work wishes to understand how do the shaping elements of this male identity articulate within the environment where this sport is practiced.

Lutar e vencer em todos os combates não é a glória suprema; a glória suprema consiste em vencer o inimigo sem lutar. Sun Tzu (c. 500 a.C.)

Introdução Esta dissertação consiste em um estudo acerca da construção social da identidade masculina entre jovens praticantes de um esporte de combate, o full-contact, tomando como universo de pesquisa os freqüentadores das academias onde se aprende e pratica este esporte, na cidade de Porto Alegre. Este trabalho pretende contribuir para os estudos sobre a construção da identidade de gênero, apresentando os praticantes de full-contact (em sua absoluta maioria homens jovens, entre 15 e 25 anos) e o uso social que eles fazem do espaço no interior das academias, produzindo significados e compartilhando

determinadas

atitudes,

valores,

gestos

e

expressões

constituidoras de uma identidade de gênero, no caso o masculino. Nestas academias, como veremos, se valorizam aspectos como a "valentia", a força física, a "garra" e uma noção de corporalidade baseada no domínio sobre o corpo através do aprendizado da técnica de combate, bem como o desprezo à dor decorrente da prática do combate e dos treinos. Em um plano mais simbólico, na interação entre os membros do grupo pesquisado se desvaloriza a conduta "homossexual" e se lança publicamente esta pecha à guiza de desafio, sendo a conduta esperada pelo grupo a pronta reação do "ofendido". Como veremos, estes valores e atitudes não são apenas esperadas de um praticante de full-contact, mas correspondem de modo geral a uma espécie de "estereótipo" da atitude masculina em nossa sociedade, conforme demonstram os trabalhos de Leal (1992c), Jardim (1991) e Leczneiski (1995), entre outros. O fato de ser praticado quase que exclusivamente por homens (em dois anos de trabalho de campo, só foi registrado um caso de mulher praticando este esporte) e envolver um estreito contato físico entre os

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praticantes (o termo "full-contact" significa literalmente "contato pleno") torna o ambiente das academias um local onde valores associados a esta constituição de uma identidade masculina se tornam particularmente evidentes. O full-contact, além disso, é representativo de uma série de outras técnicas corporais conhecidas sob o nome genérico de "artes marciais". Oriundas em grande parte de antigas tradições orientais, estas técnicas corporais de luta corpo-a-corpo sofreram, em maior ou menor grau, um processo de reinterpretação ao serem adaptadas à nossa sociedade, adotando, muitas vezes, o caráter de práticas esportivas, desviando-se de sua utilização original de técnicas de combate para uso militar. Assim, o tema que este trabalho aborda são estas técnicas corporais conhecidas como "artes marciais", sob o prisma da construção da identidade masculina. As academias onde se ensinam e aprendem estas técnicas são tomadas aqui como um locus privilegiado para o entendimento da construção desta identidade de gênero. O universo das artes marciais, entretanto, é demasiado vasto para ser abarcado em um único trabalho de cunho antropológico, e se o fosse, provavelmente o grau de generalização necessário a uma tarefa desta ordem poria a perder a riqueza das especificidades inerentes a cada estilo de luta. Como colocar em um único trabalho, por exemplo, as complexas relações sociais presentes nas origens da capoeira com a imensa representatividade do judô no cenário esportivo brasileiro? Assim, optei por apenas uma modalidade de luta, que fosse representativa deste universo e cujas especificidades pudessem acrescentar novos dados para o entendimento destas técnicas corporais e sua relação com a construção de uma identidade masculina em nossa sociedade.

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Neste trabalho, busco construir uma interpretação do que sejam os aspectos constituintes desta identidade masculina perante o grupo pesquisado. Entendendo, como Geertz (1978: 15), que a cultura seja como uma "teia de significados" produzida pelos homens, acrescida da análise sobre esta teia, e a antropologia como uma "ciência interpretativa, à procura do significado", procuro captar os significados produzidos pelo grupo pesquisado, para em um processo interpretativo, analisar estes significados à luz da teoria antropológica. Para atingir este objetivo de compreender e interpretar os significados produzidos por este grupo, foi utilizada a observação participante. Os dois anos em que convivi com o grupo pesquisado, observando, entrevistando os praticantes, conversando ou mesmo participando de alguns treinos de full-contact se inserem neste trabalho como uma parte importante do processo de interpretação destes significados. O olhar posicionado do pesquisador e seu estranhamento frente à situação de campo relativizam e reinterpretam as outras fontes de dados, por vezes confirmando, por vezes contradizendo estas informações, mas sempre conduzindo a um conhecimento mais aprofundado do objeto desta pesquisa. Para viabilizar este objetivo, foram utilizadas diferentes técnicas de pesquisa, como a realização de entrevistas abertas e semi-diretivas com praticantes e professores de várias academias, todas gravadas e transcritas ipsis litteris. Além das entrevistas, também foi realizada uma extensa cobertura fotográfica de treinos, lutas de demonstração e combates oficiais. Estas fotografias foram utilizadas não só como material etnográfico, como uma forma auxiliar na descrição de locais e eventos, mas também foram posteriormente mostradas aos praticantes, sendo seus comentários a respeito anotados, fornecendo novos dados acerca do grupo pesquisado, além de

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estabelecer uma espécie de troca, que levou a um ganho em sociabilidade e confiança por parte do grupo. Parte destas fotografias encontra-se no corpo deste trabalho. As minhas impressões pessoais eram escritas imediatamente após qualquer ida a uma situação de campo, sob a forma de um diário de campo. Todos estes procedimentos ajudaram a fornecer informações para este trabalho, que serão tratadas como "dados etnográficos". Estes dados, por sua vez, como ressalta Jardim (1991), são também produtores de significados, uma espécie de "metassignificação" acerca da situação de campo, ou seja, uma interpretação da interpretação original. Nos termos de Geertz (1978: 25), apenas o "nativo" teria acesso à interpretação original (afinal, é a sua cultura), a interpretação antropológica via de regra é uma interpretação de segunda ou terceira mão. Não que isso represente um problema muito sério; afinal de contas, ainda segundo Geertz, a necessidade de atenção para um trabalho etnográfico encontra-se basicamente no grau em que ele é capaz de esclarecer o que ocorre na situação de campo a que ele se refere, de modo a reduzir a perplexidade derivada de "atos não-familiares que surgem de ambientes desconhecidos", o assim chamado estranhamento (Geertz, 1978: 26). Dito de outra forma, trata-se de realizar o trânsito de informações que tornem o exótico em familiar, de modo a reduzir este estranhamento perante um universo de significados do qual não somos originários, a cultura de um outro. Os nomes das pessoas e das academias de full-contact pesquisadas foram trocados, de modo a preservar a privacidade dos informantes. As transcrições de trechos de entrevistas foram realizadas a partir do registro em gravações magnéticas. Eventuais erros de concordância nestes trechos devemse à intenção de preservar o quanto possível a fluência original da fala dos informantes. As referências bibliográficas utilizadas neste trabalho que não estavam originalmente em português foram traduzidas por mim. Estas

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traduções estão indicadas com um asterisco (*) na legenda abaixo da citação, e transcritas no original em nota de rodapé. Com a finalidade de tornar o acesso a pontos específicos do texto mais fácil e rápido, ao final foi incluído um índice remissivo contendo os autores citados e palavras-chave consideradas relevantes. Após o índice remissivo, coloquei em anexo um glossário de termos usuais do full-contact, de modo a familiarizar o leitor neófito neste vocabulário. Via de regra, os termos que indicam nomes de golpes ou especificidades da prática do fullcontact estão italizados, assim como palavras em língua estrangeira. Uma abordagem mais geral acerca das técnicas corporais chamadas de "artes marciais" é traçada no primeiro capítulo, com um breve histórico destas práticas, em especial as de origem oriental. É feita também neste capítulo uma distinção entre dois grupos diversos de modalidades de luta: as "artes marciais" e os "esportes de combate". Ainda neste capítulo, é abordada a relação entre estas práticas de luta e sua apropriação por parte de produtos da indústria cultural, e a influência advinda desta apropriação no imaginário dos praticantes. Finalmente, este primeiro capítulo relaciona algumas informações acerca da organização política destas técnicas de luta na nossa sociedade, sob a forma de modalidades esportivas. Para tanto, é utilizado o conceito de "campo esportivo" de Bourdieu, "campo" onde se inserem e organizam estas práticas na nossa sociedade, segundo uma rígida hierarquização, conforme veremos. No segundo capítulo, é tratado mais especificamente o full-contact. Após abordar alguns aspectos gerais a respeito desta prática esportiva, passo à delimitação do universo de pesquisa. O recorte em que situo o grupo pesquisado é o de "praticantes de full-contact". Esta categorização implica em um corte transversal que engloba pessoas provenientes das mais diversas origens sociais. É evidente que diferenças provenientes deste pertencimento a

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camadas sociais distintas existirão. Porém, acredito que, isoladas estas diferenças, os indivíduos que se situam sob este recorte teórico possuem em comum uma série de características que transcendem o simples pertencimento a uma determinada camada social, especialmente no que diz respeito à construção da identidade masculina. A discussão acerca desta questão está no tópico "a prática esportiva em grupos sociais diferenciados". Após este tópico, relato dois casos, histórias de vida de praticantes provenientes de grupos sociais distintos, como ilustração da discussão anterior, e em seguida passo à descrição etnográfica de diversos aspectos ligados à prática do full-contact. No tópico intitulado "O lado de dentro das academias", descrevo sob uma abordagem interacionista a organização do espaço em uma academia de fullcontact, a didática do combate dentro das academias e, finalizando este capítulo, descrevo a realização de um evento de lutas organizado pela Federação Gaúcha de Full-Contact, abordando aspectos da constituição do espaço, do público, as relações entre os lutadores e, por fim, a realização de um combate. O terceiro capítulo aborda a questão da identidade masculina sob diversos aspectos. Inicialmente, este capítulo trata do tema geral onde se localiza a problemática da identidade masculina, a noção de gênero. Situada esta noção, passo a descrever mais pormenorizadamente aspectos da construção social da identidade masculina. Através da referência a etnografias clássicas dentro da antropologia, busco demonstrar como, nas mais diversas sociedades, a noção de masculinidade, antes de ser biologicamente dada, é uma construção social, constituída de atributos socialmente valorizados que devem ser conquistados pelos meninos em cada cultura para que sejam considerados "homens". Um destes aspectos, ressaltado por diversos autores, é a "negação da feminilidade", que freqüentemente toma a forma de um repúdio

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à homossexualidade. Como este aspecto é relevante junto ao grupo pesquisado, ser-lhe-á dada maior atenção. Após esta abordagem teórica acerca da masculinidade, veremos como se articulam estes conceitos na interação entre os praticantes no interior das academias, analisando os dados de campo à luz daqueles dados teóricos. A seguir, um aspecto importante da constituição de um ethos masculino é levado em consideração: a competitividade. Como veremos, nas mais diferentes sociedades existe uma estreita ligação entre o "ser homem" e a participação em jogos e disputas, em geral com outros homens. Após uma revisão bibliográfica sobre este tema, abordo a questão do jogo propriamente dito, segundo a visão de alguns autores que trataram do tema. O nexo entre as noções de jogo e identidade masculina é feito a seguir, no tópico "a hierarquização da masculinidade", onde abordo a prática de jogos e disputas – os esportes, de modo especial – como sendo criadoras de uma hierarquia de poder entre homens, uma espécie de ranking simbólico da masculinidade. Em seguida, analiso os significados de gestos, falas e expressões de uso corrente entre os praticantes de full-contact pesquisados sob a ótica da construção da identidade masculina, estabelecendo uma "semântica da virilidade", nome deste tópico. Finalmente, o último tópico deste capítulo trata da questão da masculinidade posta à prova, estabelecendo relações entre a prática de esportes de combate com outras atividades competitivas eminentemente masculinas, como as rinhas de galo e o futebol, abordando as conclusões de diversos trabalhos antropológicos nesta área em confronto com os dados de campo obtidos neste estudo. O quarto capítulo trata da questão da corporalidade entre os praticantes de full-contact. Como qualquer prática esportiva, o full-contact exige do praticante uma intensa preparação física. No início deste capítulo, discuto alguns conceitos a respeito do uso social da corporalidade, como a

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noção de "técnica corporal" de Mauss e o conceito de "corpo social" de Douglas. Considero que, embora todo ser humano possua um corpo biologicamente dado, o uso que se faz deste corpo é determinado pela sociedade na qual cada ser humano está inserido. A utilização deste corpo para a prática de lutas não seria exceção. O corpo humano precisa ser ensinado a realizar quaisquer atividades. A prática da luta exige que o praticante molde determinados aspectos de sua constituição corporal para adaptar-se a estas circunstâncias. Além disso, na prática do combate, é freqüente a ocorrência de lesões. No ambiente das academias pesquisadas, desta forma, se valoriza socialmente o desprezo à dor, não apenas como um índice de masculinidade, mas como um sinal de pertencimento àquele grupo. Sem nenhum acordo explícito, os praticantes relatam histórias de contusões, fraturas e hemorragias de modo leve e despreocupado, valorizando as cicatrizes que fazem questão de exibir como "troféus de batalha". A valorização das cicatrizes como "emblemas" da masculinidade também é tratada por Jardim (1991). Um último aspecto a ser tratado neste capítulo refere-se à aceitação incondicional das regras por parte dos praticantes. Embora a relação dos praticantes com os professores seja bastante informal, quando em assuntos acerca da prática do combate, suas palavras são atendidas sem hesitação. O professor, nestas circunstâncias, é tratado, como em muitas artes marciais orientais, como um mestre, detentor absoluto de um saber do qual o aluno deseja compartilhar. Suas palavras e ordens são, neste sentido, indiscutíveis. Sobre a subjetividade inerente ao fazer antropológico, posso dizer que ao longo da realização de meu trabalho de campo etnográfico fui recebido pelo grupo pesquisado de modos os mais diversos. De todos os graus de estudada indiferença até uma implicante desconfiança a priori ("quê que tu quer por aqui com essa câmara?"). Afinal de contas, um pesquisador

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observando, anotando e fotografando tudo o que ocorre em um evento de lutas não passa despercebido ao público presente. Fui várias vezes interpelado por perguntas de treinadores, lutadores e torcedores. O mote das perguntas era invariavelmente a minha câmara fotográfica a tiracolo, que todos associavam com fotojornalismo. Ao tirar fotos, freqüentemente alguém perguntava: "Vai sair na Zero Hora?" ou "Tu tá vendendo essas fotos?" Ao explicar que o que eu fazia era reunir material para uma dissertação de mestrado em antropologia, várias cabeças ao redor se viravam para ver do que se tratava. Posteriormente, algumas pessoas já puxavam assunto diretamente nesse tema: "Tu tá fazendo mestrado em antropologia? Qual é a tua tese?" Ao explicar que a tese versava sobre aspectos da masculinidade entre lutadores de full-contact, me perguntaram: "E isso aí [apontando o ringue, onde ocorria uma luta], qual é o teu parecer, aprova ou desaprova?" Tentei me esquivar com uma resposta dúbia: "Não aprovo nem desaprovo, eu só observo, anoto e depois escrevo a respeito". Um professor de boxe que estava sentado do meu lado, ao saber que eu estava escrevendo uma dissertação, mostrou que para ele aquilo não era novidade: "Eu sei como é que é isso, lá na minha academia já foi um estágiário do Jornalismo e um mestrando da Educação Física, fazendo a mesma coisa que tu tá fazendo, anotando tudo e tirando foto". Enfim, na interação que se estabalece entre pesquisador e pesquisados, temos, como pesquisadores, um papel social relativamente delimitado a que temos que nos ater. Um fator que me ajudou bastante a conquistar a confiança das pessoas do grupo pesquisado foi o fato de eu também ser praticante de uma técnica de combate, no caso, a arte marcial chamada "Kung fu estilo Shaolin do Norte". Vi várias vezes o rumo de entrevistas que prometiam ser desanimadoras, dada a desconfiança do entrevistado com a presença de um

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antropólogo – manifesta nas respostas monossilábicas – mudar de modo surpreendente, assim que eu contava en passant que também era praticante de artes marciais. Após uma ou duas perguntas do entrevistado: "qual estilo?" "quem é o professor?", o semblante deste desanuviava-se, as frases tornavamse mais longas e confidentes, e o tratamento geral a mim dispensado passava a ser o mesmo dado a um "colega de outra academia": de uma certa maneira, "um deles". Com o tempo, aprendi a colocar esta informação a meu respeito, que descobri ser importante para conquistar a confiança dos praticantes, logo no começo da conversa, para auferir rapidamente dos benefícios etnográficos desta identificação. Enfim, vicissitudes inerentes ao ofício de etnólogo, essa mania de "xereta profissional", que chega na situação de campo a qualquer hora, senta, puxa um bloquinho, uma caneta, um gravador, uma câmara fotográfica e sai fotografando e fazendo perguntas insólitas para todo mundo. É evidente que o reconhecimento do grupo pelo meu trabalho é gratificante: quase no final de meu trabalho de campo, fui convidado por um professor para fazer a entrega oficial dos prêmios de um torneio de full-contact; em outra ocasião, fui apresentado pelo presidente da Federação a um dos diretores: "este aqui é o antropólogo amigo nosso, que está escrevendo um livro sobre full-contact". No final das contas, compensa. Gostaria de deixar registrados aqui, ao final desta introdução, uma série de agradecimentos a pessoas cuja ajuda foi de fundamental importância para que a realização deste trabalho fosse possível. Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à minha orientadora, professora Ondina Fachel Leal, não só pela lucidez de suas indicações teóricas em antropologia como pela paciência, cuidado e tempo que dedica a cada um

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de seus orientandos, mesmo envolta no seu mar agitado de compromissos cotidianos. Agradeço particularmente a meus colegas de seminário de tese e amigos leais Luiz Eduardo Robinson Achutti, Maria de Nazaré Agra Hassen e Maria Cristina Duarte Ribeiro, pelo inestimável auxílio teórico-prático e pela cumplicidade nos meandros do mundo acadêmico. Meu agradecimento sincero também às minhas colegas de turma Liliane Stanisçuaski Guterres e Maria Letícia Mazzuchi Ferreira pelo apoio e interlocução qualificada. Meus agradecimentos também a toda a equipe do Laboratório de Antropologia Visual, cuja disponibilidade permitiu que fosse realizada a gravação em vídeo de diversos combates, de grande valia na descrição etnográfica. De toda a equipe do Laboratório, agradeço especialmente à professora Cornélia Eckert, pela leitura minuciosa e comentários valiosos sobre a primeira versão deste trabalho; a Adriane Rodolpho, apoio logístico indispensável na obtenção de equipamento de vídeo e ao bolsista Alfredo Barros, pela operação competente da câmara de vídeo no trabalho de campo. Agradeço também à professora Sônia Maria Haas, da Agência Experimental de Publicidade e Propaganda da Unisinos, pela disponibilidade no uso do equipamento (scanner e computadores) desta Agência na digitalização e editoração das imagens fotográficas incluídas nesta dissertação. No métier do full-contact, agradeço particularmente ao sr. Vinícius Guarilha, presidente da Federação Gaúcha de Full-Contact, e aos professores Aimoré Goulart e Sincinato Rodrigues, pela disponibilidade e colaboração generosa nas informações necessárias a este trabalho, além dos demais professores e praticantes de full-contact, pela paciência e boa-vontade.

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Agradeço de modo muito especial a meus pais e irmãos, pelo apoio, e principalmente à minha irmã Denise Gastaldo, exemplo de pesquisadora, cuja leitura atenta e comentários precisos sobre a primeira versão deste trabalho foram de enorme valia, além da pesquisa bibliográfica que ela realizou na University of London, com resultados inestimáveis. Agradeço também a minha esposa, Adriana Braga, cujo constante incentivo e carinho cotidiano em muito colaboraram para a finalização deste trabalho. Meu agradecimento também aos amigos Marco Zimmer, pelo apoio bibliográfico sobre dados esportivos; Guilherme Wagner Ribeiro, pelo auxílio na valiosíssima pesquisa bibliográfica na biblioteca da UFMG e João "Nenê" Carneiro, por sua sempre solícita e simpática assessoria nos mais diversos qüiproquós informáticos. Além destas pessoas, gostaria de agradecer de modo especial ao Conselho Nacional de Pesquisa Científica - CNPq, pela concessão da bolsa de estudos que viabilizou a minha formação de mestrado com dedicação exclusiva, sem a qual eu dificilmente teria conseguido completá-lo.

Capítulo 1. As Artes Marciais

1.1 A Arte da Guerra Em termos semânticos, a palavra "arte" no termo "arte marcial" tem o significado de "técnica refinada". A palavra "arte" deriva do latim arte, enquanto que a palavra "técnica" deriva do grego  (téchne), traduzido no dicionário Aurélio por "arte", o que dá uma indicação da relação estreita entre os dois termos. A palavra "marcial" deriva do latim martiale, relativo à Marte, deus da guerra, ou seja, bélico, militar, guerreiro. Portanto, uma tradução possível de "arte marcial" seria "técnica militar", ou "técnica guerreira". Em chinês, o termo genérico empregado para designar qualquer estilo de arte marcial é Wu Shu, que significa literalmente "técnica militar", ou "arte da guerra", e, nesse sentido, possui o mesmo significado de "arte marcial" (Chan e Veiga, 1995). Assim, pode ser percebida a estreita ligação das chamadas "artes marciais" com a prática da guerra propriamente dita. Na maioria absoluta das sociedades humanas, a sobrevivência esteve sempre associada, além da obtenção de alimentos, à necessidade de defesa contra ataques inimigos. Assim, no conjunto das sociedades, simples ou complexas, a existência da guerra é um fato praticamente universal (Clastres, 1980b e Gilmore, 1990). Segundo Clastres (1980b), a guerra na sociedade primitiva possui a função de manter a sociedade indivisa, sem estratificação social, de modo a resistir perante um inimigo sempre à espreita. A existência de um "inimigo" torna necessária a obtenção de uma "tecnologia militar", que permita fazer frente aos seus ataques ou, em sociedades particularmente

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belicosas, atacar os inimigos de modo eficaz. Desenvolveu-se, assim, nessas sociedades, paralelamente aos demais aspectos sociais, uma espécie de "cultura militar", com desenvolvimento técnico e tecnológico próprios para esta "arte guerreira". Assim, muitas armas de caça foram aproveitadas na guerra, como a lança e o arco e flecha, e outras foram criadas e desenvolvidas especialmente para a guerra, como a borduna, o tacape e o escudo. O uso de cada uma destas armas exige o aprendizado de uma técnica corporal adequada para otimizar o desempenho do guerreiro no seu manejo. Estas técnicas 1

tradicionais de combate com cada tipo de arma e, por vezes, técnicas de combate desarmado estão na origem das técnicas corporais hoje em dia chamadas de "artes marciais". Paralelamente a estas técnicas militares, é bastante freqüente em muitas sociedades a existência de lutas "esportivas", com finalidade ritual ou de entretenimento (Clastres, 1980. Neste sentido, ver também Gilmore, 1990). Ballery (1954) descreve várias modalidades de lutas tradicionais ("folclóricas", segundo este autor) em países como a Turquia, Islândia, Suíça, Rússia, Senegal, Ilhas Canárias, Filipinas e Marrocos, entre outros (Ballery, 1954: 67-84). Em geral, essas lutas são realizadas corpo-acorpo e desarmadas, tendo como objetivo imobilizar o oponente ou deitar-lhe as costas no chão, como na modalidade olímpica chamada "luta grecoromana". Um exemplo desta relação entre as práticas militares e jogos rituais foram os jogos olímpicos realizados na Grécia antiga, durante doze séculos, de 776 a.C a 393 d.C. As provas disputadas nos jogos olímpicos eram variações esportivas de técnicas militares, como o arremesso do dardo, o arremesso do disco e o "pancrácio" – luta em que eram válidos todos os tipos de golpes. Mesmo provas de corrida, como a célebre maratona, estão

1

O conceito e a discussão sobre "técnica corporal" encontram-se no capítulo 4 desta dissertação. Ver também Mauss (1974).

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associadas a proezas militares (Durantez, 1987). Assim como as técnicas 2

militares estão na origem das atuais artes marciais, estas lutas disputadas entre "adversários" (e não "inimigos"), com regras determinando os golpes válidos estão na origem dos atuais esportes de combate, e os próprios jogos olímpicos da Grécia antiga serviram de modelo na idealização por Pierre de Coubertin dos chamados "jogos olímpicos da era moderna", gênese do esporte como o conhecemos hoje. Comumente, o termo "arte marcial" refere-se às artes marciais orientais, embora, como foi visto, no sentido em que emprego este termo, existam "artes marciais" em quase todas as sociedades. As artes marciais orientais são oriundas da China, onde existem estilos de wu shu praticados há vários séculos. O templo budista de Shao Lin, no norte da China, local de origem de um dos mais famosos estilos de arte marcial chinesa, o estilo "Shaolin do Norte", recentemente comemorou 1500 anos de sua fundação. Durante séculos, a cultura chinesa dominou as nações circunvizinhas, como a Coréia, o Japão e os países do sudeste asiático, influenciando profundamente a filosofia, a medicina, a culinária, o comércio e vários outros aspectos da cultura destes países, entre eles as técnicas militares. Assim, modalidades de artes marciais orientais atualmente praticadas, como o karatê, o taekwondo e outras, possuem um tronco comum ligando-as ao wu shu chinês(Chan e Veiga, 1995).

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2 A origem

da Maratona é atribuída a um soldado grego que correu os 42 Km que separavam a planície de Maratona, local de uma batalha, até Atenas, onde, após dar a notícia da vitória grega sobre os persas, caiu morto de exaustão. 3 A maioria das informações acerca da história das artes marciais foram obtidas em Virgílio, 1986 e Chan e Veiga, 1995. Informações complementares sobre este tema, especialmente sobre as artes marciais chinesas, foram obtidas através de entrevistas com o professor Ruben Vieira, professor de artes marciais e presidente da Federação Gaúcha de Kung Fu, que prepara um livro sobre o assunto. Informações adicionais, em especial sobre a história do full-contact, foram obtidas em entrevistas com o professor Aimoré Goulart, professor de full-contact.

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Muitas destas técnicas tradicionais de combate, que tomavam como paradigma da tecnologia militar a lâmina de aço usada nas chamadas "armas brancas", como espadas, lanças e punhais, tornaram-se obsoletas para utilização militar com o advento da arma de fogo. Muitas armas e a técnica necessária para usá-las desapareceram ou tornaram-se conhecidas de pouquíssimas pessoas, suplantadas pelo impacto e poder de alcance das armas de fogo. Várias dessas armas e técnicas, entretanto, sobreviveram até nossos dias sob a forma de jogo, através de um processo de "esportivização" no qual, submetendo a sua prática a regras, tornaram-se modalidades esportivas. Proni (1994) denomina a este processo "esportivização das artes marciais". Assim, hoje em dia existem competições de arco e flecha, de esgrima, de arremesso de dardo, bem como de várias outras "artes marciais", mesmo que nenhuma destas técnicas guerreiras seja hoje usada com finalidade militar. Segundo Proni (1994), a expansão das artes marciais orientais no ocidente se deu mais acentuadamente a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, com o aumento da emigração asiática para os Estados Unidos. No início dos anos 50, tornou-se moda praticar "boxe chinês" (nome genérico dado então a todas as artes marciais de origem oriental) entre os astros de Hollywood (Hyams, 1992). Muggiati (1984) aventa algumas hipóteses para este crescente interesse por aspectos da cultura oriental na sociedade norteamericana do pós-guerra, como o contato dos soldados americanos com a cultura japonesa durante a ocupação do Japão ou como uma reação decorrente do sentimento de insatisfação com os valores judaico-cristãos vigentes naquela sociedade (Muggiati, 1984: 106). Com a crescente valorização deste "orientalismo" na sociedade americana, diversas manifestações culturais oriundas do extremo oriente passaram a ser vistas como algo extremamente positivo, na medida em que representavam parte da reação à cultura ocidental

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tradicional, no movimento que se chamou de "contracultura" (Pereira, 1983). Expoentes das artes naquele país, como Jack Kerouak, Allen Ginsberg, George Harrison e outros aderiram a religiões e seitas indianas e chinesas, como o Hare Krishna, o Zen-budismo e a "meditação transcendental" do guru Maharishi. A adesão a estas religiões orientais naquele momento representava uma alternativa às religiões judaico-cristãs ocidentais. Estas religiões incluíam nos seus ensinamentos uma nova maneira de lidar com a mente, o espírito e o corpo. Na esteira desta valorização de aspectos da cultura oriental, várias outras manifestações culturais do oriente foram se difundindo, entre elas as artes marciais. Com o tempo, as artes marciais foram se popularizando nos Estados Unidos e, de lá, estas técnicas acabaram sendo difundidas para o resto do mundo ocidental, inclusive por meio de produtos da indústria cultural, tema que será tratado adiante. Na adaptação destas técnicas tradicionais de combate corpo-a-corpo de origem oriental para a sociedade ocidental, o lugar destinado às artes marciais acabou sendo o de prática esportiva. No anos seguintes, muitas modalidades tradicionais se "esportivizaram", estabelecendo-se campeonatos, rankings e federações nacionais de cada modalidade. Em 1964, o judô foi admitido provisoriamente como modalidade esportiva olímpica, nos jogos olímpicos de Tóquio. Em 1972, nas Olimpíadas de Munique, ele foi incorporado definitivamente aos jogos (Virgílio, 1986). Assim, o jodô tornouse a primeira "arte marcial" de origem oriental (transformada em "esporte de combate") a fazer parte das Olímpíadas da Era Moderna. Atualmente outras artes marciais "esportivizadas", como o taekwondo e o karatê, estão se candidatando a serem modalidades olímpicas, o que deve ocorrer nos próximos anos. No final dos anos 60, nos Estados Unidos, alguns praticantes de diferentes modalidades de arte marcial, como o taekwondo e o karatê,

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começaram a testar uma nova modalidade de luta com uma regra tal que permitisse o confronto entre lutadores de estilos diferentes. Esta tentativa de fazer um estilo que unisse as particularidades dos demais acabou criando um novo estilo, com suas próprias particularidades, o full-contact. No início, o full-contact era praticado de modo bastante parecido com o karatê, as lutas eram realizadas em um tablado e não num ringue e as luvas eram mais leves, de modalidades de "semi-contact", como alguns estilos de karatê. O próprio nome da nova modalidade indica o vínculo com o karatê na sua origem: "karatê full-contact". Aos poucos, o full-contact foi se autonomizando em relação ao karatê. Após as primeiras lutas, que se assemelhavam a um combate de karatê com luvas de semi-contact, as regras foram se modificando, e em poucos anos acabaram tomando a forma atual. A divisão dos lutadores por categorias de peso, o uso de luvas idênticas às de boxe e a realização dos combates dentro de um ringue aproximaram o full-contact da prática do boxe, com a diferença dos golpes de perna, totalmente derivados do taekwondo e do karatê. Hoje em dia existem diversas associações mundiais que regulam a prática do full-contact, com pequenas diferenças técnicas nas regras de cada uma delas, como a obrigatoriedade ou não de chutar o adversário determinado número de vezes por round, a validade ou não de chutes abaixo da linha da cintura, etc. Dentre estas entidades, a associação mundial que tem maior representatividade no Brasil é a ISKA (International Sports Karate Association), considerada pelos praticantes entrevistados a mais importante, e onde estão os melhores lutadores. Em outra associação, a WAKO (World Association of Kickboxing Organizations), de grande representatividade na Europa, o campeão mundial é um lutador brasileiro, Paulo Zorello, motivo pelo qual esta entidade vem crescendo em representatividade no país.

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O full-contact chegou no Brasil através do lutador paulista Sérgio Batarelli, no início dos anos 80. Batarelli criou algumas das especificidades que este esporte tem no país, como a hierarquização dos praticantes por meio de faixas coloridas, a exemplo do karatê, e uma sistemática de avaliação dos praticantes com crescente grau de dificuldade de uma faixa para a outra, o chamado "Batarelli System". Este sistema inclui um teste para aquisição da faixa-preta, chamado por alguns praticantes de "Homem de Ferro", em que o candidato deve lutar durante dez rounds contra três adversários que se revezam. O "Batarelli System" não é unanimemente aplicado, e, na prática, apenas uma linha de alunos diretos deste lutador aplicam seu método. Estes e 4

outros

aspectos

mais

específicos

da

prática

do

full-contact

serão

pormenorizados mais adiante. A maioria dos professores pesquisados neste estudo começou a praticar luta em outras modalidades (em geral o karatê, taekwondo ou o boxe) que não o full-contact, e aplicam em suas academias o seu próprio método, de acordo com a sua experiência pessoal, com visível influência da modalidade da qual cada um é "originário".

1.2 Artes Marciais e Esportes de Combate O termo "arte marcial" em geral refere-se a uma técnica de luta tradicional que visa oferecer ao praticante meios de ataque e defesa contra um adversário em uma situação de confronto. É senso comum entre os praticantes destas técnicas de luta que o termo "arte marcial" se aplica somente às técnicas de luta de origem oriental, que seriam elevadas à categoria de "arte" por trazerem em seus ensinamentos uma "filosofia" que esportes como o boxe, por 4 As

especificidades envolvendo este teste e seu significado simbólico para os praticantes serão assuntos tratados mais adiante nesta dissertação.

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exemplo, não teriam. Discordo desta justificativa. A origem de cada técnica de luta está impregnada dos valores da cultura onde esta técnica foi gerada. Por exemplo, no Japão, a partir do século XVI, houve uma crescente influência do zen-budismo nas mais diversas instâncias da vida social, incluindo, naturalmente, as técnicas de combate (Hyams, 1992). A influência do zenbudismo, entretanto, não se limitou à arte marcial; a ótica zen vê "caminhos" para o aprimoramento do indivíduo em qualquer atividade que este realize, desde que o faça com a correta disposição mental, como o ikebana ("arranjo floral"), ou o origami ("dobraduras de papel"), por exemplo. Da mesma forma, um esporte criado e desenvolvido no ocidente, como o boxe, por exemplo, está repleto de valores e características da cultura que o gerou, a própria lógica interna da prática esportiva, que implica na busca de superação do adversário dentro das limitações impostas pela regra, é fruto da moderna sociedade industrial (Bourdieu, 1983). O boxe, neste sentido, também tem a sua "filosofia"... Além disso, mesmo as artes marciais orientais não incluem no corpo de ensinamentos aplicados nas academias nenhuma noção de "filosofia", mas pura e simplesmente o aprendizado de técnicas corporais de ataque e defesa. As artes marciais podem, neste sentido, eventualmente ser um "caminho" para o desenvolvimento espiritual do indivíduo, mas esta escolha deve partir do próprio indivíduo. No sentido zen da palavra "caminho", este também pode ser encontrado na poesia, na jardinagem ou, como sugere Robert Pirsig (1984), na "arte da manutenção de motocicletas". A diferença entre uma "arte marcial" e um "esporte de combate" reside na destinação original do desenvolvimento de cada estilo de luta. Como foi visto, uma arte marcial tem na sua origem a intenção de treinamento militar, ou seja, seu local de aplicação é numa situação de guerra, onde se estabelecem confrontos de vida ou morte. Quando a maior parte destas

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técnicas foi criada, no extremo oriente, não existiam armas de fogo, e a maioria dos combates era corpo-a-corpo. A destreza de um guerreiro no manejo de armas brancas e, quando desarmado, de seu próprio corpo transformado em arma, garantia-lhe a sobrevivência em um combate. Assim, nos ensinamentos de uma arte marcial incluem-se o controle e fratura de articulações, golpes dirigidos a pontos vitais (técnica chamada de atemi, em japonês) ou estrangulamentos, técnicas que visam eliminar o perigo representado pelo adversário da forma que for necessária, mesmo que ao custo da vida do oponente (Virgílio, 1986). Em um confronto em que seja necessário o uso de técnicas marciais, o lutador mata o oponente para não ser morto por ele. Neste sentido, Rapoport, referindo-se à relação estabelecida com o adversário na modalidade de conflito do tipo luta, afirma que ...em uma luta o adversário é um estorvo. Precisa ser eliminado, desaparecer ou perder seu tamanho e importância. O objetivo de uma luta é subjugar ou fazer desaparecer o adversário. (Rapoport, 1980: 14) Já o "esporte de combate", como o próprio nome indica, é uma modalidade esportiva, em que o objetivo é derrotar o oponente atingindo o seu corpo com determinados golpes permitidos por regras estritas. A finalidade de um esporte de combate, desde sua origem, sempre foi lúdica, esportiva, como o boxe, por exemplo. As lutas de boxe começaram na Inglaterra, em meados do século passado, como entretenimento em feiras livres, tendo suas regras sido sistematizadas por Lord Queensberry, por volta de 1860 (Gonçalves et al., s/d). Assim como ocorre nas rinhas de galo, o público apostava em um dos lutadores, que, usando apenas golpes com os punhos (sem luvas nem ataduras, naquela época), devia derrotar o seu oponente. Mesmo hoje em dia, as lutas de boxe profissionais são em geral associadas a apostas em dinheiro, como nas

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corridas de cavalos e nas rinhas de galo. As regras do boxe permitem apenas socos, e o objetivo de uma luta de boxe sempre foi esportivo. A representatividade do full-contact no universo das técnicas de combate, pode-se sugerir, provém do fato de ele, sendo um esporte de combate de origem extremamente recente, criado há menos de trinta anos, ter sofrido profunda influência de estilos de luta os mais diversos, orientais e ocidentais, como o boxe inglês, o taekwondo coreano e o karatê japonês. Estas diferentes influências tornam este esporte uma espécie de "forma híbrida" de artes marciais orientais e esportes de combate ocidentais. O estudo mais aprofundado das particularidades do full-contact, assim, acaba se referindo a outras artes marciais. Estas referências a outros estilos, sempre presentes, tornam o full-contact bastante representativo do universo das técnicas de luta.

1.3 Artes Marciais e Indústria Cultural O conceito de "indústria cultural" foi usado pela primeira vez em 1947, por Horkheimer e Adorno, com o fim de distinguir os então incipientes produtos dessa indústria de bens culturais do termo "cultura de massa", já que os produtos da indústria cultural não são, como poderia parecer, oriundos espontaneamente da própria "massa", como se fossem uma forma contemporânea de "arte popular" (Adorno, 1978). Pelo contrário, a relação da indústria cultural com a massa é a de adaptar os seus produtos ao consumo desta. Como veremos a seguir, em muitos casos, os produtos industriais culturais acabam por refletir, no seu próprio conteúdo, aspectos de um determinado momento sócio-político. Esta espécie de "referência" não ocorre para determinar a conduta da massa no sentido do consumo desses produtos, mas como um efeito paralelo decorrente da interação entre produtores e consumidores destes bens culturais.

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A indústria cultural se define pela produção centralizada e distribuição massificada de "produtos culturais", como filmes de cinema ou programas de televisão – que no início dos anos 60, ainda de modo incipiente, já anunciavam estas características descritas por Adorno. Para Adorno, o termo "indústria" não deve ser tomado literalmente, já que permanecem instâncias de produção individual no processo de produção, por exemplo, de um filme. Segundo este autor, o termo "indústria" se aplica especialmente à "estandardização da própria coisa", como no caso de filmes produzidos segundo os padrões de um gênero específico, como o western ou, como veremos, os chamados "filmes de ação", que seguem uma espécie de "receita" em seu roteiro. (Adorno, 1978: 289) Como vimos anteriormente, o advento da contracultura, nos anos 50 e 60, trouxe à cena cultural norte-americana a valorização de uma série de aspectos da cultura do extremo oriente, num movimento cultural que se chamou de "orientalismo". Vinculado em princípio ao movimento beat, a valorização de aspectos da cultura oriental tornou-se na década seguinte um – mais um – lucrativo empreendimento para a indústria cultural dos Estados Unidos. Toda uma geração de jovens sedentos por incenso, Kama Sutra, cítaras e meditação transcendental manifestou seu interesse pela cultura oriental, entre outras coisas, consumindo livros de Lobsang Rampa, Banghwan Rajneesh e discos de Ravi Shankar, por exemplo (Muggiati, 1984). Parte deste mesmo movimento foi o súbito sucesso no cinema dos filmes de arte marcial de Bruce Lee, que veio a popularizar ainda mais as artes marciais orientais junto ao grande público. Em alguns episódios do seriado de televisão "Batman", produzidos em meados dos anos 60, Lee aparece como "Kato", o fiel ajudante do "Besouro Verde", outro herói mascarado. Tendo seus primeiros filmes produzidos em Hong Kong, Bruce Lee atingiu o estrelato com o filme "Operação Dragão".

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Foto 1: Pôster de Bruce Lee, Academia Central

Após o sucesso deste filme, no final dos anos 60, os chamados "filmes de arte marcial" vieram a tornar-se um ramo da indústria cinematográfica, em geral associados a produções de segunda linha, mas que já fizeram surgir alguns ídolos do cinema, como o ator belga Jean-Claude Van Damme, o já citado "dragão" Bruce Lee ou Chuck Norris, ex-heptacampeão americano de karatê. No início dos anos 70, o seriado de televisão "Kung Fu", com David Carradine no papel principal, levou para os lares do mundo inteiro a informação de que "kung fu" era uma luta praticada por sábios monges chineses, ajudando, desta forma, a popularizar as artes marciais orientais no ocidente. Neste seriado, um monge Shao Lin foragido da China por ter vingado a morte injusta de seu mestre vem para a América em meados do século XIX, nos tempos do western. Com este argumento, "Kane" (o nome do monge) vagueia pelo deserto do velho-oeste americano, agindo sempre com serenidade e paciência "orientais". Em todos os episódios, a serenidade e a paciência de Kane são postas à prova por cowboys prevalecidos que pretendem abusar do humilde chinês ou de outros desfavorecidos, de quem Kane sempre toma partido. Neste momento, entra em ação o "kung fu" que dá o nome à série: Kane (inaugurando na televisão o efeito de slow motion) derrota com as mãos desarmadas vários adversários ao mesmo tempo, com golpes certeiros de sua arte marcial. Em cada episódio, Kane também recorre à memória (sob a forma de flash backs) para se lembrar de algum sábio conselho de seu mestre – um velhinho cego que o chamava pelo apelido de "gafanhoto" – no templo de Shao Lin. O argumento desta série parece ilustrar simbolicamente o que ocorreu no imaginário norte-americano com o momento em que se desenvolve este "orientalismo". O símbolo masculino por excelência da cultura norteamericana, o cowboy, até então sempre retratado com atributos positivos, passa

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a ser visto neste seriado como um brutamontes covarde e truculento. De "mocinho", passa a "bandido", exatamente o que estava acontecendo com a imagem pública dos soldados americanos entre a Segunda Guerra Mundial e a Guerra do Vietnã. Em enormes manifestações de protesto, jovens americanos queimavam publicamente suas cartas de convocação e carregavam cartazes de Ho Chi Min, líder do Vietnã do Norte, considerando o povo vietnamita como o verdadeiro "herói" desta guerra, ao sustentar-se com mínimos recursos contra o poderoso exército americano, prevalecido como os cowboys-vilões de Kane (Pereira, 1983). O oriental, neste seriado, era visto como um homem bom (afinal de contas, ele era o "mocinho"), dotado de vários adjetivos positivos, e possuidor de uma arma que não se comprava em nenhuma loja: o poder sobre o próprio corpo, utilizado como arma pelo conhecimento de uma arte marcial. Os produtores da indústria cultural souberam muito bem captar o momento em que essas mudanças de mentalidade estavam se passando e traduzi-las em linguagem televisiva. O enorme sucesso da série, em princípio nos Estados Unidos e – por conta dos canais de distribuição dos produtos da indústria cultural – em vários outros países, manifesta o quão adequada era a metáfora naquele momento. Na esteira destes produtos da indústria cultural, como uma espécie de "efeito colateral", houve uma grande popularização das artes marciais, em especial do kung fu, arte marcial praticada por "Kane" e por Bruce Lee. Uma música bastante famosa no início dos anos 70 chamava-se – não sem motivo – "Everybody is Kung Fu Fighting". Nas academias de full-contact é bastante freqüente verem-se pendurados à parede pôsteres de Bruce Lee ou Van Damme, denotando a influência destes filmes no imaginário dos praticantes. Vários praticantes declararam ter tido o seu primeiro contato com as artes marciais através de

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programas de televisão ou em filmes no cinema, como pode ser visto no seguinte depoimento, onde um praticante justifica a sua escolha, na adolescência, pela prática das artes marciais: "Eu sempre gostei de luta. Desde pequeno, eu sempre vi filmes, Bruce Lee, David Carradine, só que eu procurei o kung fu, no caso o Shao Lin do Norte, que era o que tinha na época [em 1979], por causa do que ele ensina, não me interessa só aprender a lutar, eu quero mais, eu gosto da história..." (Lúcio, 30 anos, porteiro) Notável neste caso é a influência exercida pela indústria cultural no sentido do praticante escolher não apenas uma arte marcial, mas a mesma arte praticada pelos dois atores citados pelo praticante, o kung fu chinês. No caso do full-contact, ocorre hoje em dia um fenômeno parecido com o que sucedeu ao kung fu no início dos anos 70. A extraordinária visibilidade patrocinada pela sua presença em diversos produtos da indústria cultural tornou o full-contact extremamente popular. O full-contact é uma das modalidades do chamado kickboxing, termo genérico que define as modalidades de luta esportiva que utilizem mãos enluvadas e golpes com as pernas. A partir de filmes de artes marciais como "O Grande Dragão Branco", com Jean Claude Van Damme, ele próprio praticante de kickboxing, esta modalidade adquiriu grande visibilidade. Outros filmes do gênero reforçam esta visibilidade, com títulos como "O Rei dos Kickboxers", "American Kickboxer" ou mesmo "Full-Contact: Contato Mortal", que, apenas por curiosidade, nada tem a ver com o esporte, é só um título. Em "O Grande Dragão Branco", o personagem representado por Van Damme realiza um movimento inverso ao de "Kane" em "Kung Fu". Se neste seriado o herói era um chinês que sobrevivia em um meio socialmente adverso, o velho-oeste americano, contando apenas com o seu auto-controle e o conhecimento de artes marciais, no filme de Van Damme o protagonista é um

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militar americano que, tendo aprendido os segredos das artes marciais com um mestre oriental, vai ao extremo oriente participar de um torneio de artes marciais.

$$$ Foto 2: Pôster de Van Damme, Academia Central

O torneio, ilegal, chama-se Kumite e nele se inscrevem lutadores de todos os estilos, em lutas que duram enquanto um dos lutadores não desistir ou desmaiar. A luta final do torneio (e do filme) é contra um chinês corpulento que usa de todas as vilanias para vencer, como atacar um lutador caído (não por acaso, um wrestler americano, amigo de Van Damme) ou jogar areia nos olhos do "mocinho" na luta final. A lógica maniqueísta do filme de uma certa 5

forma "vinga" os cowboys-vilões de "Kung Fu". Desta feita, o grande "bandido" é um imenso chinês que só vence porque usa de meios ilícitos (ao contrário de "Kane" e Bruce Lee, ambos de pequena estatura, habilíssimos no combate, e sempre éticos perante o adversário). O "mocinho", além de ser militar, americano, branco e de olhos verdes, vai até o mais fundo porão do extremo oriente competir com lutadores de todo o mundo e de todos os estilos, ou seja, perfaz o caminho de "Kane" ao contrário, invadindo o próprio "berço" das artes marciais para mostrar que aprendeu muito bem sua lição. Ao final, consagrado pela vitória – inevitável –, Van Damme recebe de todos os orientais que presidem o torneio o título de "O Grande Dragão Branco". Cabe lembrar que "Dragão" era o apelido de Bruce Lee, que acabou tornando este ser imaginário em uma espécie de "animal totêmico" das artes marciais. 5

"Wrestling" é a denominação americana para uma modalidade de luta-livre, conhecida no Brasil como "catch" ou "telecatch". Wrestler é o praticante de wrestling. 6 O apelido de "Dragão" deriva de uma antiga denominação das virtudes necessárias a um mestre de kung fu. São os chamados "cinco animais do kung fu", cada um deles representando uma virtude: tigre, a força; leopardo, a velocidade; serpente, a agilidade; grou, a flexibilidade e, finalmente, o

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Utilizando-se do "título" de Bruce Lee, já falecido, acrescido dos adjetivos "grande" e "branco", Van Damme adquire para si o trono simbólico de "maior lutador do mundo" – do mundo do cinema, evidentemente –, vago desde a morte de Lee. Não basta mais ser apenas um "dragão": há que ser "grande" e, principalmente, "branco". Assim, ao contrário de outras artes marciais menos conhecidas, como o kempô ou o hapkidô, o full-contact possui uma "visibilidade" social derivada dessa influência da indústria cultural, tornando-o "conhecido" e consumido mesmo por pessoas de fora do métier das artes marciais. Esta influência da indústria cultural produziu um grande aumento no número de praticantes deste esporte em relação a outras artes marciais estabelecidas há bem mais tempo. Além disso, se ao número dos praticantes de artes marciais e esportes de combate for somado o dos consumidores de produtos da indústria cultural que se referem a combates corpo-a-corpo, como a transmissão de combates pela televisão, os filmes de ação ou os videogames de luta, fica clara a representatividade que estas práticas e consumos têm no imaginário de nossa sociedade. A propósito dos videogames que simulam situações de combate, é notável a freqüência com que, entre os lutadores disponíveis de serem manipulados pelo jogador, aparecem referências a Van Damme e a Bruce Lee. Nestes videogames, quase sempre existe um lutador cuja característica é a abertura lateral das pernas de 180°, referência a Van Damme. Em uma cena de "O Grande Dragão Branco" que o tornou famoso no mundo das artes marciais, Van Damme treina para uma luta com os calcanhares apoiados em duas cadeiras, as pernas diametralmente opostas. Da mesma forma, outro personagem freqüente nos videogames é um chinês franzino de calças pretas e dragão, que representa o poder espiritual do mestre de artes marciais.

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sem camisa que associa seus ataques fulminantes a gritos estridentes, referências claras a Bruce Lee. Em um jogo chamado Pit Fighter, um dos lutadores, que na abertura do jogo aparece treinando um kati de kung fu e associa gritos estridentes ao seu ataque, chama-se – não por coincidência – "Kato", exatamente o mesmo nome do personagem de Bruce Lee no seriado "Batman". Em outro jogo, chamado Mortal Kombat, um dos lutadores chama7

se "Johnny Cage", que é apresentado como um famoso astro do cinema americano, praticante de kickboxing, que apresenta no seu repertório de golpes uma súbita abertura das pernas a 180° que lhe permite golpear o baixo-ventre do adversário. Se esta associação do full-contact com o conteúdo dos filmes referidos e com jogos de videogame por um lado promove a popularização do full-contact, por outro traz consigo uma série de preconceitos em relação a este esporte, ao apresentá-lo como uma competição sangrenta onde todos os meios são lícitos na busca da vitória, os lutadores transformados em gladiadores sanguinários, como no enredo dos filmes ou dos videogames. O full-contact, na verdade, é apenas um esporte de combate como tantos outros, repleto de regras proibindo golpes perigosos e com o corpo do lutador coberto de equipamentos de proteção. Desmitificar esta imagem pública com que o sensocomum cerca as artes marciais em geral e em especial o full-contact me parece importante, e também é um dos objetivos deste trabalho.

1.4 A Organização das Artes Marciais no Campo Esportivo Neste trabalho será utilizado o conceito de "campo", nos termos tratados por Bourdieu (1989). Um "campo" pode ser inicialmente definido 7

Kati – kata, em japonês – é uma série de movimentos predeterminados que simulam os golpes característicos de cada estilo de arte marcial.

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como um "universo relativamente autônomo de relações específicas" (Bourdieu, 1989: 65-66). Posto nestes termos, o conceito é vago, dada a imensa multiplicidade de "campos" distintos, como o campo da alta costura, o campo científico, o campo econômico e o campo do poder, por exemplo. Apesar dessa diversidade, existem propriedades em comum, a ponto de Bourdieu sugerir uma "Lei Geral dos Campos" (Bourdieu, 1983a: 89). Nos termos deste autor, um campo é basicamente um terreno de luta "entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada, e o dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência" (Bourdieu, 1983a: 89). Assim, a estrutura de um campo é dada pela relação de força entre os agentes ou instituições em conflito pela distribuição do capital específico deste campo. Por exemplo, o "campo da religião" é o espaço social onde se trava uma luta entre as igrejas e crenças tradicionais, já estabelecidas, e o avanço de novas seitas e cultos, estes ansiosos por conquistar o maior número de "fiéis", e aquelas, temerosas de perder os fiéis já conquistados. O exemplo é evidentemente simplificado, mas posto nestes termos, o "capital específico" do campo são os fiéis, que garantirão a sobrevivência, a manutenção ou a ascensão de um corpo de crenças dentro desse campo das práticas religiosas, que tem como "produto" os chamados por Bourdieu "bens de salvação" (Bourdieu, 1992). Uma característica decorrente deste conflito é a oposição entre as duas posições citadas, que assume a forma de conflito entre "ortodoxia" versus "heresia". Os que mantêm a posição dominante (freqüentemente monopolizando a posse do capital específico) tendem a estratégias de conservação, ao passo que os que possuem menos capital e querem estabelecer-se no campo recorrem a estratégias de subversão, de modo a minar o poder dos dominantes.

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Essa luta por uma parcela mais significativa do capital específico do campo, entretanto, não é uma guerra de extermínio. Na verdade, se formos utilizar a classificação de Rapoport (1980), nem se trata de luta, mas de jogo. Nos termos deste autor, ...o jogo parte não de um desacordo, mas de um acordo, isto é, o acordo entre os oponentes de lutar por objetivos incompatíveis dentro de certas regras. (Rapoport, 1980: 2) Assim, apesar do interesse conflitante dos agentes envolvidos, há um acordo tácito entre eles, e um interesse em comum pela preservação do campo. Mesmo as estratégias de subversão ocorrem dentro de limites estritos, sob pena de exclusão. Afinal, a subversão levada a seu extremo levaria à dissolução do campo, fato que não é do interesse de nenhum dos agentes envolvidos. Referindo-se ao "jogo" como função cultural, Huizinga relata fato semelhante. A transgressão da regra leva, segundo ele, à expulsão do transgressor ou, se tal não ocorrer, ao fim do jogo (Huizinga, 1971: 14). A analogia do campo como um terreno de jogo é enfatizada por Bourdieu, que considera, dado o investimento em tempo e esforço para a entrada no campo, (ou seja, no jogo) "praticamente impensável a destruição pura e simples do jogo" (Bourdieu, 1983a: 137). Colocada a questão nestes termos, o universo das práticas e consumos esportivos pode ser considerado como um "campo esportivo". Bourdieu considera o esporte moderno como um sistema de agentes e instituições que começou a funcionar como um "campo de concorrência". Se esse sistema funciona como um campo, dada a autonomia que o caracteriza, não se pode simplesmente associar em relação direta os fenômenos esportivos num dado momento e as condições econômicas e sociais das sociedades correspondentes. A respeito desta relativa autonomia que caracteriza o "campo esportivo", Bourdieu afirma:

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A história do esporte é uma história relativamente autônoma que, mesmo estando articulada com os grandes acontecimentos da história econômica e política, tem seu próprio tempo, suas próprias leis de evolução, suas próprias crises, em suma, sua cronologia específica. (Bourdieu, 1983a: 137) O "campo esportivo" ao longo de seu processo de constituição tornou-se palco de lutas as mais diversas, pelo monopólio da legitimidade de representar determinado esporte e seus praticantes, pela legitimidade da "prática amadora" (mais fiel aos ideais da elite) contra a "profissionalização" (mais próxima da realidade das classes populares), o "esporte-prática" contra o "esporte-espetáculo", e mesmo dentro de um mesmo esporte, as lutas por hegemonia de determinadas "escolas" ou "estilos". Essas lutas todas opõem entre si não apenas atletas, treinadores e dirigentes, mas também médicos, nutricionistas, fabricantes de artigos esportivos, designers e estilistas de moda, publicitários e profissionais de imprensa. Para Bourdieu, essas lutas pela 8

legitimidade dentro do campo esportivo são reflexo "do estado das relações de força entre as frações das classes dominantes e entre as classes sociais no campo das lutas pela definição do corpo legítimo e dos usos legítimos do corpo" (Bourdieu, 1983a: 142). No "campo esportivo", como em todos os outros campos, existe uma luta entre diferentes setores da sociedade pela legitimidade dos espaços conquistados naquele campo. Como um exemplo, pode ser vista a difícil relação estabelecida entre a realização dos jogos olímpicos da era moderna e a prática esportiva profissional, apenas recentemente permitida naqueles jogos. Durante quase um século – ou seja, durante praticamente toda a história dos jogos olímpicos modernos – só podiam competir nos jogos olímpicos (que representavam um ideal de "espírito esportivo" caracterizado pela distância de vantagens materiais auferidas por meio do esporte) atletas ditos "amadores". Esta categoria se opõe à categoria 8

Ver também, neste sentido, Cristan, 1994.

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"profissional", ou seja, "amadores" são aqueles que praticam o esporte "por amor" e não "por profissão". A disputa acerca destas duas categorias revela um conflito entre duas posições sociais distintas: de um lado os membros das chamadas "elites", que podem praticar esportes de modo "amador", devido à disponibilidade de recursos financeiros; de outro, os esportistas oriundos das camadas populares, que para disporem de tempo para treinar, precisam receber pagamento pelas horas de treinamento, ou seja, tornam-se "profissionais". Há poucos anos, esta posição foi revista, e hoje participam dos jogos olímpicos todos os atletas que obtiverem um determinado índice técnico específico para cada modalidade, independente do pagamento ou não dos "serviços" do atleta. A relação conflituosa no campo esportivo derivada de diferenças de origem social, entretanto, persiste. As diferentes práticas e consumos de produtos esportivos em nossa sociedade – bem como os demais tipos de consumo – se dão de modo diferenciado de acordo com o pertencimento de cada agente a determinados grupos sociais.

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Não somente as possibilidades de acesso ao consumo desses bens são menores para as pessoas provenientes das camadas populares como o próprio tempo necessário para a prática esportiva em si é aproveitado de modo diferente. As alternativas de lazer disponíveis – entre as quais se inclui o esporte – também são diferentes para pessoas de camadas diferenciadas. Mesmo no caso da prática de um esporte como atividade de lazer, cada grupo social apresenta uma tendência a escolher determinada modalidade esportiva, de acordo com a natureza das motivações envolvidas a respeito. A própria natureza "gratuita" e "descompromissada" da prática esportiva representa um reflexo das circunstâncias sociais que deram origem ao esporte moderno. 9

Ver, neste sentido, Bourdieu (1983a), e Boltanski (1979).

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O esporte, como o conhecemos hoje, surgiu em fins do século passado, apesar de serem referidos jogos e competições entre os mais diversos povos desde a mais remota antigüidade. De acordo com Bourdieu (1983a), uma possível "história social do esporte" deveria ressaltar o surgimento da competição esportiva associado aos liceus e escolas destinados aos filhos das classes dominantes da Inglaterra e França em fins do século passado. Através de uma releitura de jogos populares, retirou-se desses jogos todo o elemento de interesse material imediato (inclusive suas ligações com festas e tradições populares), tornando-os um fim em si mesmos, uma atividade irredutível a qualquer outra categoria. Estava criado o "esporte amador", e não é por coincidência que Pierre de Coubertin, o criador dos modernos jogos olímpicos era um barão de nobreza antiga. Essa inclinação pela atividade desinteressada e sem finalidade específica é "uma dimensão fundamental do ethos das 'elites' que sempre se vangloriaram de desinteresse e se definem pela distância eletiva (...) em relação aos interesses materiais." (Bourdieu, 1983a: 139) Esse "berço nobre" no qual nasceu o esporte deixou sua marca ao longo do processo de autonomização do campo esportivo, na forma de uma "filosofia política do esporte" (Bourdieu, 1983a: 140). Esta filosofia política é uma dimensão da filosofia aristocrática baseada no desinteresse por razões materiais e pela busca tenaz da vitória, desde que jamais se desobedeça às regras. É o assim chamado fair play (sempre invocado na época das Olimpíadas e Copas do Mundo) que, na perspectiva de Bourdieu, representa uma forma de forjar o caráter e desenvolver as virtudes viris dos futuros líderes, conforme os preceitos daquelas instituições de ensino. Além disso, a prática esportiva era também recomendada pelos educadores de então como uma maneira saudável de ocupar, vigiar e, principalmente, canalizar a agressividade latente naqueles grupos de adolescentes sob seus cuidados. Essa função de mobilização,

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ocupação e controle exercida pelo esporte foi rapidamente apropriada por todos quantos tinham sob sua influência grande número de pessoas. Desta forma, surgiram associações esportivas vinculadas inicialmente a sindicatos, partidos e igrejas que, adquirindo autonomia, transportaram para o campo esportivo rivalidades políticas dos mais diferentes níveis (Bourdieu, 1983a). Nessa transposição da prática esportiva do meio social das elites dominantes para as camadas populares houve uma profunda reinterpretação dos significados dessas práticas, segundo os critérios das camadas populares. Um dos principais efeitos dessa transposição foi a profissionalização do esporte, fato que contraria frontalmente o chamado "espírito esportivo" conforme preconizado por Coubertin. No confronto estabelecido entre esporte amador e esporte profissional, aquele sendo possuidor de uma "pureza" de princípios que este, por envolver uma soma em dinheiro, não possuiria, muitos esportistas foram discriminados por serem "profissionais". Fato notável a esse respeito foi o episódio ocorrido na Olimpíada de Estocolmo, em 1912, quando um atleta americano, Jim Thorpe, um índio algonquim do Oklahoma, tornou-se o primeiro campeão olímpico do decatlo e pentatlo. Após os jogos, teve as suas medalhas cassadas pelo Comitê Olímpico de então por ter, supostamente, recebido no passado quinze dólares por semana para jogar beisebol, o que faria dele

um "profissional"

(Maranhão,

1980).

Esta

obrigatoriedade

da

desvinculação ao interesse financeiro durou até há bem pouco tempo no Comitê Olímpico Internacional, que não aceitava atletas "profissionais" nos jogos olímpicos. Para profissionais ou amadores, as quadras de esporte, pistas, campos ou ringues são locais privilegiados para a realização de confrontos competitivos em nossa sociedade. Às diferentes práticas esportivas correspondem diferentes praticantes. Vários autores referem-se a uma relação

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estatisticamente comprovável entre as diferentes modalidades esportivas e a origem social de seus praticantes, como Benach (1987), Bourdieu (1983a), Kregel (1987) e Boltanski (1979). Assim, entre pessoas provenientes das classes populares, a utilização do próprio corpo como instrumento de trabalho revelaria uma tendência a escolher esportes que demandem um grande investimento de esforço físico, "por vezes, mesmo dor e sofrimento", tais como os esportes de combate (Bourdieu, 1983a). Já nas camadas médias, a motivação para praticar uma determinada modalidade esportiva adviria de benefícios na manutenção da saúde e da forma física do indivíduo. Nestes grupos, a prática de esportes arriscados, como o full-contact (onde o risco de sair ferido ou nocauteado é sempre uma possibilidade real), limita-se a uma espécie de "licença" concedida aos membros mais jovens e impetuosos destes grupos, por um período limitado. Em geral, estas práticas são abandonadas muito cedo (Bourdieu, 1983a). Para as pessoas provenientes das classes populares, entretanto, a prática do esporte com finalidade profissional representa uma alternativa bastante viável de ascensão social, talvez uma das únicas (Bourdieu, 1983a e Magnane, 1969). Assim, as artes marciais encontram-se, junto com os esportes de combate, ligadas a uma realidade maior, o "campo das práticas e consumos esportivos". Para cada estilo de luta existem produtos especializados, desde o uniforme da academia onde se treina até acessórios importados, como armas orientais, no caso do kung fu e kendô, ou equipamentos de proteção, como botas e caneleiras, para full-contact e outros estilos de kickboxing. No mercado de bens e serviços, os "serviços" são prestados por todas as academias, locais onde se transmitem os conhecimentos acerca de cada modalidade de luta, com um corpo técnico autorizado a ministrá-los, a partir de um alvará emitido pela federação que regulamenta cada modalidade. Nas

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últimas décadas, muitas artes marciais tradicionais foram transformadas em modalidades esportivas, com a incorporação de regras para competições, estabelecimento de rankings, filiação a entidades internacionais de luta esportiva e organização nacional em federações e confederações, como é o caso do judô, karatê, jiu jitsu e muitas outras modalidades. As diversas modalidades de luta encontram-se todas organizadas em federações e confederações, ligadas em última instância ao poder público, através do Ministério da Educação e Cultura. A organização política de uma 10

modalidade de luta esportiva ou arte marcial segue uma hierarquia que vai da academia ao MEC. O Ministério da Educação e Cultura regulamenta a prática do esporte no Brasil através do Conselho Nacional de Desportos (CND). A este órgão estão ligadas todas as confederações esportivas nacionais. Uma confederação é formada a partir da adesão de no mínimo dez federações estaduais de uma mesma modalidade. No caso dos esportes de combate, a maioria deles está vinculada à Confederação Brasileira de Pugilismo, que possui um departamento para cada modalidade. Modalidades que estejam organizadas no país inteiro, entretanto, podem se autonomizar e fundar a sua própria confederação, como é o caso da Confederação Brasileira de Judô, hoje desvinculada da Confederação Brasileira de Pugilismo. A nível estadual, a organização política das práticas esportivas é similar. As modalidades de luta mais freqüentes possuem, em cada Estado, uma federação que regulamenta sua prática, cabendo a ela emitir alvarás autorizando determinados praticantes a lecionar, referendar testes para passagens de degraus hierárquicos para os praticantes, organizar competições e estabelecer os rankings amador e profissional daquela modalidade. Em princípio, uma modalidade nova no 10 As

informações acerca da organização política das modalidades esportivas foram obtidas através de entrevistas com o sr. Vinícius Guarilha, ex-presidente da Federação Gaúcha de Pugilismo e atual presidente da Federação Gaúcha de Full-Contact.

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"campo esportivo", em se tratando de um esporte de combate, terá sua prática e ensino normatizada, no Rio Grande do Sul, pela Federação Riograndense de Pugilismo, como é o caso do hapkidô, capoeira e kendô, onde cada um destes esportes está organizado como um departamento daquela federação. À medida em que uma modalidade vai crescendo de importância dentro do campo esportivo, pelo aumento expressivo do número de seus praticantes, aumenta também o número de instrutores a ela associados, e esse processo em geral leva a modalidade a buscar autonomia, através de uma federação própria. Após um ano organizada como um departamento da federação, os clubes filiados podem pedir a desvinculação desta, através da publicação de um edital de desvinculação, marcando a eleição da primeira diretoria, de um conselho fiscal e de um tribunal de justiça esportiva próprios. Cada clube filiado há mais de um ano tem direito a voto, e o estatuto da nova federação deve ser aprovado pelo CND. Foi o caso do full-contact no Rio Grande do Sul, que inicialmente era ligado à Federação Gaúcha de Pugilismo. Os instrutores mais antigos fizeram seus testes para faixa-preta em São Paulo, através da Federação Paulista de Full-Contact, e depois tiveram seu resultado referendado pela Federação Gaúcha de Pugilismo. Com o súbito sucesso desta modalidade desde o final dos anos 80, em 30 de dezembro de 1991 foi criada a Federação Gaúcha de Full-Contact, que, com sete clubes fundadores, hoje conta cerca de 35 faixas-pretas (praticantes autorizados a lecionar) e aproximadamente 2000 praticantes registrados em todo o Estado (Dados da Federação Gaúcha de FullContact). Em nível internacional, o full-contact, a exemplo do boxe, encontrase organizado por associações mundiais, como a ISKA, a WAKO e a FFKA. Cada uma destas entidades disputa com as outras a supremacia dentro do "campo esportivo", filiando o maior número de países e organizando rankings

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e competições mundiais. As regras de cada uma destas associações são ligeiramente diferentes, bem como a área geográfica de influência de cada uma. A ISKA, principal associação mundial de full-contact, sob cujas regras compete a maioria dos atletas brasileiros, obriga os lutadores a desferir, em cada round, no mínimo oito chutes contra o adversário, sob pena de perda de pontos. Já a WAKO, entidade que predomina na Europa, não impõe aos lutadores qualquer limite de chutes, tornando a luta mais próxima ao boxe. Desta forma, cada associação tem seu próprio ranking, e um mesmo lutador pode, por exemplo, ser o campeão mundial por uma das associações e quinto colocado no ranking de outra. Por vezes, pode acontecer de os detentores do cinturão mundial de duas associações combinarem uma luta para unificar o título, e o vencedor passa a ser o campeão mundial nas duas associações.

Capítulo 2. O Full-Contact

2.1 Generalidades Como foi visto no capítulo anterior, o full-contact é um esporte de combate de origem relativamente recente. Surgido nos Estados Unidos em fins dos anos 60 e início dos 70, o full-contact era uma tentativa de reunir em condições de competição praticantes das mais diversas técnicas de combate, como o taekwondo, o karatê e o boxe. Utilizando elementos de todas essas modalidades, o full-contact, hoje em dia, é praticado em um ringue de 7x7m e com luvas semelhantes às usadas no boxe, com as faixas, hierarquia e cumprimentos semelhantes aos do karatê e com técnica de pernas similares às usadas no taekwondo. Os praticantes têm sua competência específica hierarquizada por meio de faixas coloridas atadas à cintura. Cada faixa representa um degrau hierárquico a ser atingido pelo praticante por meio de exames periódicos, nos quais o candidato à ascensão de faixa demonstra sua competência perante uma banca examinadora autorizada pela Federação. São avaliadas seqüências de socos, chutes, golpes combinados (combinação predeterminada de socos e chutes) e uma luta, tanto mais difícil quanto mais avançada a faixa pretendida. Em ordem crescente de competência, as faixas são: branca, azul, verde, marrom, marrom-com-ponta-preta e preta. Nas academias que aplicam o sistema de treinamento conhecido como "Batarelli System", o teste para que um candidato adquira a faixa-preta inclui a realização de uma luta de dez rounds de três minutos contra três adversários que se revezam no ringue, de

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modo a estarem sempre descansados. O objetivo deste exame é testar a determinação e a resistência do candidato à faixa-preta. Os praticantes chamam este teste de "Homem de Ferro", e aspectos envolvendo a realização desta prova serão desenvolvidos adiante. Este teste, cabe ressaltar, não é unanimemente aplicado, em muitas academias o teste para a faixa-preta é realizado com as seqüências de golpes, uma luta de três rounds e a apresentação de uma aula de full-contact. Esta aula é solicitada nestas academias porque a posse da faixa-preta autoriza o praticante a lecionar com alvará da Federação, uma perspectiva de profissionalização considerada viável por muitos praticantes.

2.2 Universo de Pesquisa: Os Praticantes de Full-Contact Os dados etnográficos utilizados para a realização deste trabalho foram obtidos em academias de full-contact localizadas na cidade de Porto Alegre, Brasil. Nesta cidade existem mais de dez academias com professores autorizados a lecionar full-contact. Destas, foram selecionadas cinco academias, além da própria sede da Federação Gaúcha de Full-Contact, onde são realizados mensalmente torneios de full-contact freqüentados por dezenas de praticantes de Porto Alegre, Grande Porto Alegre e interior do estado do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, a origem social dos praticantes de full-contact permite uma divisão destes em dois grupos: um deles formado por pessoas provenientes das camadas populares, com escolaridade geralmente abaixo do segundo grau, trabalhando em funções subalternas (padeiro, auxiliar de escritório, cobrador de ônibus...) e residindo na periferia de Porto Alegre ou mesmo nos municípios vizinhos. As academias onde estes praticantes treinam ficam em geral próximas ao centro da cidade, e cobram uma mensalidade de

cerca de dez reais . O outro grupo de praticantes é formado por estudantes 11

universitários, que, quando trabalham (alguns são sustentados pela família), ocupam cargos de nível médio (funcionalismo público, gerente na empresa da família, etc) e residem em bairros residenciais de Porto Alegre. As academias onde estes praticantes treinam ficam em bairros residenciais tradicionais de Porto Alegre, e o preço de suas mensalidades é cerca de três vezes maior do que o das academias do outro grupo. Assim, neste trabalho levei em consideração a existência desta "bipartição" dentro do grupo pesquisado, e houve a preocupação em realizar entrevistas e trabalho de campo etnográfico em academias que representassem os dois segmentos deste grupo. Apesar de serem tratados neste trabalho como um único grupo, nos aspectos que se referem à identidade masculina, e de terem em comum a prática de uma mesma modalidade esportiva, os praticantes de full-contact de cada um destes grupos raramente se encontram. As academias freqüentadas por pessoas oriundas das camadas médias são vinculadas ao chamado "Guaraci Vargas Team", um grupo de academias ligadas a um mesmo professor, que dá aulas em três academias e a outros professores, ex-alunos seus, que dão aulas em mais três. Na academia Pro Fitness, foi construído um ringue para realizar as lutas deste grupo. A partir da construção deste ringue, foi estabelecido um ranking por faixa de peso entre os praticantes ligados a essas academias, de modo análogo ao ranking da Federação. Os torneios realizados por este grupo também são de âmbito exclusivamente interno, e os lutadores mais qualificados deste grupo são conhecidos entre os alunos das outras academias do grupo. Com ranking, ringue e praticantes próprios, o único contato deste grupo com a Federação é o estabelecido por lei, a necessária presença de um 11

O valor de R$ 10,00 correspondia aproximadamente, em maio de 1995, a US$ 9,00

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representante da Federação quando da realização de exames para passagem de faixa. Nestas academias se pratica a prova chamada de "Homem de Ferro", teste para a obtenção da faixa-preta que será tratado adiante. Os praticantes deste grupo dão grande valor à faixa que estão usando no momento, e a prática de lutas dentro do ringue é, para muitos deles, de menor importância. Muitos praticantes têm suas únicas experiências de combate nos testes para passagem de faixa. Nas tardes de lutas e demais eventos promovidos pela Federação, os praticantes deste grupo não comparecem, e suas academias são desconhecidas dos praticantes do outro grupo, acostumados a lutar contra praticantes de todo o Estado. Deste grupo, foram selecionadas para trabalho de campo a academia "Pialo", no bairro Mont'Serrat, o "Centro de Lutas Ferlinghetti", no bairro Auxiliadora e a "Academia Pro Fitness", local da construção do ringue utilizado por este grupo, no bairro Rio Branco. O outro grupo, que reúne a maior parte dos praticantes de fullcontact, está subdividido por academia, os alunos de uma academia tendo pouco trânsito junto aos alunos de outra. O ponto de encontro destes praticantes é a sede da Federação Gaúcha de Full-Contact, onde mensalmente são realizados eventos de luta entre praticantes de academias de todo o Estado. A ênfase dada à prática do full-contact neste grupo é do desempenho no ringue, sendo dada pouca importância à faixa de cada praticante. No ringue, somente os lutadores faixa-preta usam faixa, os demais não usam faixa alguma. É comum, neste grupo, um lutador médio (faixa-verde, por exemplo) já ter em seu currículo várias lutas "oficiais", contra praticantes de diversas academias. Com a marca de dez lutas como amador, um lutador pode passar a realizar lutas como "profissional", recebendo uma "bolsa" em dinheiro de acordo com sua qualificação. O caminho da luta profissional, assim, passa pela Federação, e é seguido por muitos praticantes. Para os praticantes do outro

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grupo, a carreira profissional de pugilista é unanimemente descartada, a única instância admitida de profissionalização dentro deste esporte é como professor, de preferência como "dono" de sua própria academia. Das academias vinculadas a este segundo grupo, foram selecionadas a "Academia Central", no centro de Porto Alegre, coordenada pelo professor Daniel, escolhida pela sua representativa participação no ranking da Federação, com vários dos seus alunos sendo detentores do cinturão estadual de sua categoria de peso.

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$$$ Foto 3: Cinturão do campeão estadual dos "cruzadores"

Neste sentido, a Academia Central é uma exceção no contexto do full-contact estadual, pois todos os demais cinturões estão de posse de praticantes da Grande Porto Alegre e interior do Estado. Além desta academia, a própria Federação Gaúcha de Full-Contact é outro dos locais pesquisados, não só pela disponibilidade dos dados do registro dos praticantes no Estado, mas também pelos eventos mensais de lutas de full-contact realizados por ela, em que se reúnem praticantes de dezenas de academias de todo o Estado e onde se realizam lutas valendo pontuação para o ranking e defesas de cinturões estaduais, ou seja, a prática "oficial" do full-contact, representando sempre para os praticantes a possibilidade de ascensão dentro deste esporte. Assim, a divisão dos locais para a realização de trabalho de campo etnográfico e entrevistas com os praticantes procurou seguir esta diferença na composição social do grupo considerado, o dos "praticantes de full-contact". 12

Nos esportes de combate, o detentor de um título, campeão de uma determinada categoria de peso, detém, como símbolo de sua posição, a posse de um "cinturão", que deve ser colocado anualmente em disputa com outros lutadores.

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Em Porto Alegre, alguns esportes de combate, como o boxe, por exemplo, são praticados, com raras exceções, por pessoas provenientes das camadas populares, em academias de poucos recursos, com preço relativamente baixo, em geral no centro da cidade. Outras modalidades, como o jiu jitsu, são praticadas em academias caras, nos bairros mais elitizados da cidade, e freqüentadas por pessoas provenientes das camadas médias e altas, em instalações impecáveis e com equipamentos importados. O full-contact, 13

curiosamente, é praticado por ambos os grupos: as academias no centro, de preço baixo e instalações precárias, são freqüentadas por pessoas provenientes da Grande Porto Alegre, trabalhadores de baixo poder aquisitivo e escolaridade. Ao mesmo tempo, as academias instaladas em bairros residenciais das camadas médias e altas, são freqüentadas por pessoas provenientes destas camadas, em geral de nível universitário e de bom poder aquisitivo. Os dois grupos, é verdade, raramente se encontram, e a distância entre eles tende a aumentar. Não obstante, enquanto "praticantes de fullcontact" são muitas as semelhanças entre eles, a ponto deste trabalho tratar os "praticantes" como um grupo relativamente homogêneo. Assim, o fato do full-contact ser praticado por grupos sociais tão diferentes torna-se uma particularidade interessante sob o ponto de vista da pesquisa, já que permite isolar, no somatório dos relatos dos praticantes e observações etnográficas nas academias, aspectos invariáveis e relativamente desvinculados da origem social destes praticantes.

2.3 A Prática Esportiva em Grupos Sociais Diferenciados

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Estes exemplos referem-se à cidade de Porto Alegre. No Rio de Janeiro, onde o jiu jitsu é extremamente popular, a situação provavelmente é diferente.

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Conforme foi visto no capítulo anterior, os motivos que levam uma pessoa a praticar

um determinado esporte em vez de outro são os mais

diversos, de acordo com o desejo de manter a forma, de conquistar títulos, de freqüentar a "alta sociedade", apenas pela diversão, etc. De modo geral, o segmento social a que pertence o praticante influencia esta escolha, embora não a determine (Boltanski, 1979). Um aspecto importante a ser levado em conta na prática esportiva entre pessoas provenientes das camadas populares é a sua utilização por muitos praticantes como uma atividade profissional. A profissionalização dentro de um determinado esporte torna, para este atleta, a ascensão neste esporte no objetivo de uma carreira profissional, fazendo do esporte, que para a maioria das pessoas está identificado com o lazer, o núcleo do seu projeto de ascensão social. Neste sentido, a busca de ascensão no ranking de uma determinada modalidade esportiva representa, para o praticante profissional, uma etapa necessária para a sua ascensão no "ranking social", recebendo proporcionalmente maiores quantias em dinheiro por seu desempenho esportivo e maior reconhecimento social por esse desempenho, na forma de "prestígio" ("capital simbólico", nos termos de Bourdieu). A busca deste caminho de realização profissional através do esporte, entretanto, não é hegemônica entre os praticantes de esportes provenientes das camadas populares, apesar de vários atletas buscarem esta alternativa, como o cerne mesmo de seu projeto de ascensão social. Segundo Velho, a noção de "projeto" representa, dentro da teoria sociológica, uma tentativa de compreensão das ações de indivíduos ou grupos que leve em conta a "margem relativa de escolha", naquilo que ele chama de "campo de possibilidades" (Velho, 1981: 108). A noção de "projeto" é definida por Schutz como "o ato proposto, imaginado como se já houvera sido

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efetuado", e também como uma "conduta organizada para atingir fins específicos" (Schutz, 1974: 24). Esta noção é utilizada por Velho para referirse à relativa "margem de manobra" que os indivíduos têm, dentro de uma mesma situação social, para fazerem opções diferentes. Muitos dos praticantes de full-contact são provenientes das camadas populares e relatam histórias de vida semelhantes. Somente alguns destes, entretanto, têm como projeto individual de ascensão social a prática profissional do full-contact. Assim, a noção de um "projeto" individual de, no caso, ascensão social através do esporte, faz parte de um repertório possível de opções para estes praticantes, é um caminho possível dentro do seu "campo de possibilidades".

2.3.1 Dois Casos Muitos praticantes de mesma origem social e histórias de vida semelhantes,

entretanto,

preferem

não

optar

pelo

caminho

da

profissionalização, praticando full-contact apenas "por esporte". A seguir, veremos dois casos de praticantes de full-contact oriundos de meios sociais diversos e o espaço em que esta prática esportiva se inseriu na vida cotidiana de cada um deles. Carlos, 20 anos, luta full-contact há quatro e é faixa-preta no seu estilo. Como lutador amador, possui um currículo notável: dez lutas e dez vitórias, oito por nocaute, além de um título estadual amador de full-contact, categoria meio-médio-ligeiro. É casado, tem uma filha, e trabalha como cobrador de ônibus em Porto Alegre. Segundo ele, sua adolescência foi marcada por brigas freqüentes na escola, que pararam quando ele entrou para a academia: "No tempo do colégio, sempre o pau fechava, eu sempre procurava os chefes das gangues, eu ganhava as gatinhas deles, eles saltavam em mim, eu não era de levar desaforo pra casa, vivia brigando

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[mostra as cicatrizes de cortes nos punhos, lembranças do colégio...]. Aí quando eu entrei pra academia, eu acho que até porque os caras sabiam que eu treinava, né, começaram a respeitar mais, quer dizer, os caras respeitam o cara que tá na academia e que tem progresso, não adianta, como eu te falei, tem um monte de cara que treina aí só pra dizer: "Ah, eu faço Full-Contact", e o pessoal tem que ver o teu progresso pra te pegar um respeito." Atualmente, ele está em processo de profissionalização no fullcontact e no boxe, realizando lutas marcadas de antemão por uma soma em dinheiro. Sua primeira luta de full-contact como profissional não foi favorável, ele perdeu por nocaute técnico no primeiro round. Dias depois, falando a respeito desta luta em entrevista, Carlos assinalava várias vezes que seu defeito era ser "amador", enquanto que seu oponente era "profissional". A diferença entre as categorias "amador" e "profissional" é ressaltada com freqüência por Carlos, que falou diversas vezes no seu sonho de ter como profissão o full-contact. Como cobrador de ônibus, sua atual ocupação, Carlos trabalha das seis horas da manhã às três da tarde, e em seguida, vai à academia treinar. Numa das atividades de sua vida cotidiana, ele é "cobrador", na outra, ele é "campeão". O projeto de viver exclusivamente dessa atividade como esportista representa também o desejo de ascensão social pela via do esporte profissional, embora ele reconheça as dificuldades de viver exclusivamente à custa do dinheiro de patrocinadores – bastante raros no contexto esportivo brasileiro. O fato desta via de ascensão social através do esporte ser uma das poucas possibilidades de ascensão para pessoas provenientes das classes populares, e um projeto freqüentemente buscado por estas pessoas foi ressaltado por diversos autores, como Bourdieu (1983a), Boltanski (1979), Magnane (1969) e Benach (1987). O valor dado por Carlos à prática do esporte de combate e o significado atribuído por ele a esta prática esportiva podem ser aferidos a partir do seguinte trecho de entrevista:

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"[Lutar] é estar vivendo. Isso aí pra mim é estar vivendo. Treinar, lutar, pra mim é a minha vida. Sem isso, eu não seria nada. A minha vida em si é isso aí, é o ar que eu respiro." A afirmação de que sem o esporte de combate ele não seria nada revela o desprezo pelas outras instâncias de sua vida cotidiana. O momento em que ele faz o que sabe, gosta e recebe uma valorização social por suas atividades é, sem dúvida, o tempo passado dentro do ringue, ou mesmo o horário de treinos diários dentro do recinto da academia, onde praticantes iniciantes o olham com respeito e lhe pedem orientações sobre o treino. Compreensível, portanto o desprezo dele para com a categoria "amador" do full-contact. Nela, ele já é campeão, enquanto que, na categoria "profissional", a que ele aspira, ele foi derrotado por nocaute técnico no primeiro round em sua primeira luta. O grau de dificuldade nos combates profissionais é sensivelmente maior, e o desafio de lutar contra oponentes cada vez mais qualificados, além da possibilidade de ganhos financeiros com as lutas, ou seja "viver do full-contact", são motivação suficiente para o seu projeto de ascensão no esporte profissional.

Severo, 20 anos, pratica full-contact há três anos, e é faixa marromcom-ponta-preta. Trabalha como funcionário de uma transportadora e possui uma aparelhagem de som e luz para "botar som" em festas nos fins de semana. Estuda administração de empresas à noite em uma faculdade particular. Segundo seu relato, durante a adolescência, em uma escola particular, Severo teve, em um único ano, onze repreensões por escrito por ter se envolvido em brigas com colegas. Começou a praticar luta treinando capoeira, mas abandonou esta modalidade em poucos meses por achar "muita ensebação". Junto com alguns amigos, entrou para uma academia de full-contact, onde foi o único que permaneceu treinando por mais do que um ano.

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Com pouco mais de um ano de full-contact, Severo foi processado judicialmente por lesões corporais, por agredir um rapaz que teria roubado o relógio de seu primo. Conforme o relato de Severo, "...meu primo foi assaltado por uma gangue na saída da Crocodillus, e o cara roubou o relógio dele, e eu sou um cara que trabalho, como eu te falei, eu sei quanto é que custa um relógio. Então eu disse, 'olha, se nós encontrar esses caras tu pode deixar que o que eu puder fazer pra desmontar eles eu vou fazer'. Eu botava som numa danceteria, o cara entrou lá dentro, eu chamei o cara pra sala da segurança, eu e ele, tinha o meu primo também, mas não precisei que ninguém cuidasse de mim, e disse pra ele: 'mas tu é um chinelo, mesmo, ô rapaz, roubar um relógio, que é isso?' Aí ele lutava capoeira, e eu como já lutei, né, quando ele fez aquela ginga pra trás, quando ele foi me dar um golpe, eu saí. (...) Coloquei três golpes, um, dois, três, foi o homem. Resolvi. Aí ele me processou e ganhou, eu não tive como alegar legítima defesa. Foi meio premeditado, era dentro da sala do lugar onde eu tava trabalhando, deixei o som rolando e fui lá... Foi de repente um ato impensado, mas eu não me arrependo totalmente, porque na minha opinião, ladrão tem que apanhar, eu acho que tem que apanhar, tem que levar tiro, tem que morrer, ladrão, ainda mais assim gurizinho filhinho de papai, que não passa fome, pra roubar, não é pra comer..." Na verdade, com esse confronto, Severo não resolveu muita coisa: além de não ter reavido o relógio de seu primo, ainda foi processado e condenado por lesões corporais, com o agravante de ser praticante de artes marciais. Neste depoimento, podem ser percebidos vários outros aspectos além do simples relato. Severo manifesta a importância do trabalho para ele na medida em que lhe confere independência. Ele sabe "quanto é que custa um relógio". A importância dada à independência também é ressaltada quando ele fala que na sala onde ocorreu o confronto também estava o seu primo, mas que ele não precisou que ninguém cuidasse dele. Chodorow (1979) afirma que uma das características da constituição da identidade masculina é a negação de relações de dependência, tidas como "feminilizantes". Ao defender um membro de sua família, Severo estava também afirmando publicamente a sua

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masculinidade por esta via. As conseqüências de seu ato (que só não foram mais graves porque ele era réu primário) fizeram com que ele se afastasse de lutas fora do recinto da academia, ainda que ele justifique até hoje a sua atitude naquela ocasião e mesmo tenha um certo orgulho em contar este caso. Ele "resolveu" a situação não por ter reavido o relógio, motivo do confronto, mas porque "vingou" seu primo derrubando o ofensor. Segundo Dundes (1994), a derrota em um combate implica uma espécie de "feminilização simbólica" do derrotado. Um conteúdo desta ordem pode ser visto na frase com que Severo descreve o efeito de seu ataque: "foi o homem". Ele "foi" porque após ser derrubado não "é" mais homem, neste sentido. A relação de Severo com o trabalho também manifesta-se num conteúdo de rejeição a quem depende dos pais, que ele identifica com o seu adversário, "gurizinho filhinho de papai". Batendo nele, Severo também estava atingindo um estereótipo que tenta evitar a qualquer preço, o de "filhinho de papai". Segundo Gilmore (1990), um dos traços que, nas mais diversas culturas, manifestam a transformação de um menino em um homem é a obtenção do próprio sustento, ou seja, produzir mais do que consome. Neste sentido, adquire um especial tom de desprezo o diminutivo "gurizinho" colocado por ele à frente de "filhinho de papai". Assim, também fica manifesto o conteúdo de "desmasculinização" do oponente, não por sua feminilização, mas por sua redução à condição de "gurizinho". Esta temática da construção da identidade masculina será mais desenvolvida no capítulo seguinte.

2.4 O Lado de Dentro das Academias Nesta descrição etnográfica de algumas academias, com eventos como aulas, uma tarde de lutas e um combate, será utilizada a noção de setting e da representação dramatúrgica da interação social, conforme tratada por

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Goffman (1975). Segundo este autor, a interação social se dá sob a forma de uma "representação" análoga à teatral, na qual "atores" sustentam perante um "público" uma dada definição da situação que ocorre naquele momento, a chamada "impressão de realidade". Nesta acepção, o objetivo de um ator é sustentar uma particular definição de situação, representando isto, por assim dizer, sua afirmação do que seja a realidade. (Goffman, 1975: 83) Assim, o self de cada ator é variável de acordo com a "manipulação da impressão" (impression menagement) que está sendo dada naquele momento. Para Goffman, a unidade básica desta interação social "dramatúrgica" não é o ator, mas a "equipe", definida por ele como um conjunto de indivíduos cuja íntima cooperação é necessária, para ser mantida uma determinada definição projetada da situação. Uma equipe é um grupo, mas não um grupo em relação a uma estrutura ou organização social, e sim em relação a uma interação, ou série de interações, na qual é mantida a definição apropriada da situação. (Goffman, 1975: 99) Assim, tratarei a interação social que ocorre durante a realização de uma aula de full-contact, por exemplo, como o relato da atuação de uma "equipe" comandada pelo professor e sustentando perante um "público" (muitas vezes, composto apenas por mim, assistindo e anotando a todos os pormenores possíveis daquela atuação) uma definição do que seja a realização de uma aula de full-contact. Desta forma, os eventos que se passam dentro e fora do ringue e no lado de dentro de uma academia serão tratados sob esta perspectiva dramatúrgica, sendo os desempenhos relatados constantemente referidos à abordagem interacionista de Goffman. Para este autor, o local onde se dá uma determinada interação é chamado de "região" ou setting, uma espécie de "cenário", que se define por ser limitado de algum modo por barreiras à

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percepção. O setting a ser descrito é justamente o lado de dentro das academias onde se pratica o full-contact, oculto dos olhos dos passantes por escadas e portas. A descrição do "cenário" onde se dá esta atuação procura fixar aspectos da decoração e dos acessórios que ajudam a compor a "atmosfera" do ambiente onde se dá a interação pesquisada, mesmo sem a presença dos atores. Assim, esta descrição começa pelo setting da prática do full-contact .

2.4.1 O Espaço: A Academia Central está situada no último andar de um velho prédio na esquina das ruas Vigário José Inácio com Voluntários da Pátria, no centro de Porto Alegre. Em frente à entrada, bloqueando metade da porta do prédio, há uma máquina de fazer "sorvete italiano" e outra de fazer "churros uruguaios". O operador das máquinas bloqueia a outra metade da estreita passagem. Em dias quentes, posta-se também à entrada uma enorme fila de pessoas interessadas no sorvete. Passando por sorveteiros, máquinas e consumidores, entra-se no prédio, cuja única indicação para a rua é um letreiro incompleto: "ACAD". A escada que leva até o recinto da academia é de madeira, muito velha e sem conservação, e range a cada passo rumo ao recinto da academia, local dos treinos de vários lutadores campeões estaduais de fullcontact. No meio do segundo lance de degraus, fica uma porta de madeira que, quando trancada por um cadeado com corrente, impede o acesso ao recinto da academia. Passando por mais esse lance da antiga escada, chega-se ao lado de dentro da academia. O salão onde são realizados os treinos é bastante grande. Trata-se de uma sala em formato trapezoidal de aproximadamente quinze metros de comprimento por uma largura média de cerca de oito metros (ver figura 1, na pág @). O piso da sala é de madeira, e quando, durante o aquecimento, os praticantes correm em torno do dojô, o local onde se realizam

os treinos, pode-se ver claramente o chão oscilar sob os passos dos atletas. No 14

fundo da sala, junto às janelas para a Voluntários da Pátria, ficam os equipamentos para treino, máquinas de musculação, halteres e um grande saco de pancada, pendurado ao forro por uma corrente. A parede lateral da academia, a maior de todas, é praticamente despida. Nesta parede, perto da entrada, fica um painel de isopor com fotografias de antigas lutas do professor Daniel, instrutor de full-contact e taekwondo nesta academia.

$$$ Foto 4: Quadro com fotos de lutas na Academia Central.

Ao lado das fotos, cartazes anunciando as datas de eventos de luta de full-contact promovidos pela Federação Gaúcha de Full-Contact. Abaixo dos cartazes, uma folha de papel mimeografado com as divisões de peso utilizadas pela ISKA , de mini-mosca a super-pesado. Ao lado desta folha de 15

papel, um mapa do Brasil com as divisões de Estados, publicado em papel jornal, provavelmente encarte de algum periódico. Na parede oposta à Voluntários da Pátria, a menor da sala, estão afixados diversos objetos, o principal deles um grande espelho com moldura, onde os alunos freqüentemente se olham ao praticar os golpes aprendidos na aula. Acima do espelho, diplomas emoldurados comprovando a faixa-preta do professor, emitidos por entidades nacionais e internacionais de taekwondo. É notável, na constituição deste setting, o grande número de fotos e diplomas que referem-se 14

O termo "dojô" é uma palavra japonesa que refere-se ao local onde são realizados os treinos de arte marcial, particularmente de karatê. Como na maioria das academias são praticadas várias modalidades de técnicas de combate, o termo japonês pode ser aplicado a outras artes marciais não-japonesas. Neste sentido, utilizarei este termo referindo-me ao espaço onde se realizam os treinos. 15 International Sports Karate Association, uma das federações internacionais que organizam a prática do Full-Contact, cujas regras são as mais utilizadas no Brasil.

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ao desempenho do professor, atestando, mesmo sem sua presença, a sua excelência nesta área. Ao lado do espelho, um pôster composto de diversas cenas de filmes de Jean-Claude Van Damme, incluindo a clássica cena, já citada, em que ele realiza a abertura lateral de 180° e outra, do mesmo filme, onde Van Damme acerta um chute frontal com salto no meio do peito de seu adversário chinês. Acima deste pôster, um cartaz do Conselho Regional de Desporto: "Esporte é vida, escolha o seu!" Ligeiramente acima dos diplomas, um velho pôster emoldurado de Bruce Lee. A presença de pôsteres de atores de cinema que atuam em "filmes de arte marcial" é, como já foi dito, bastante freqüente nas academias pesquisadas. Os preferidos são o já citado Van Damme e o eterno "dragão" Bruce Lee. Em academias onde se ensina o estilo de kung fu "Shaolin do Norte", é usual colocar-se à parede retratos dos antigos mestres, junto a um cartaz escrito em chinês louvando os feitos destes "ancestrais", que legaram aos atuais praticantes os conhecimentos desta tradição. Este estilo, entretanto, um dos mais antigos e tradicionais dentro das artes marciais, é originário da China, onde a reverência devida aos ancestrais representa importante papel dentro daquela cultura, aspecto que se manifesta na arte marcial originária daquele país. Em uma técnica de combate ocidentalizada como o full-contact, que foi criado há menos de trinta anos, os "ancestrais" acabaram sendo substituídos por atores de cinema, refletindo a importância que estes produtos da indústria cultural têm no imaginário dos praticantes, como que representando uma perene fonte de inspiração para a prática do combate. As paredes com as janelas para a rua são decoradas, nos espaços entre cada janela, com aparelhos auxiliares nos treinos, como "raquetes" (alvos para chutes e socos altos, em formato aproximado de uma raquete de tênis) e

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luvas: normais, para a prática de combate e "de foco", uma luva acolchoada, semelhante à luva de beisebol, utilizada como alvo para socos. Junto às luvas, outro pôster de Van Damme e, no alto, quase no limite superior das janelas, vários "nunchakus", armas tradicionais das artes marciais, que consistem em um par de pequenos bastões de cerca de 30 cm ligados por uma corrente de cerca de 10 cm. Os nunchakus não são utilizados no full-contact nem no taekwondo. Sua função na parede desta academia, portanto, é apenas decorativa, reforçando um vínculo com a origem oriental das técnicas de combate ali praticadas. Na ilustração abaixo, pode ser vista a disposição dos diversos elementos no recinto da academia.

aparelhos de musculação saco de pancada

halteres

Área de Treinos (dojô)

pôsters espelho diplomas fotografias

Entrada Vestiários

Figura 1: Diagrama do salão de treinos da Academia Central

A partir do diagrama acima, podemos notar diversos aspectos acerca da constituição deste setting onde ocorrem as aulas de full-contact. Logo próximo à entrada ficam os objetos de decoração que demonstram publicamente a capacidade técnica e a competência do professor Daniel: as fotografias de seu desempenho em combates e seus diplomas conferidos por

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entidades esportivas internacionais. Ele não precisa estar presente ao recinto de treinos, nem lutar com ninguém para provar sua capacidade na prática do combate: suas fotos e diplomas o fazem por ele. No extremo oposto do recinto de treinos, estão os aparelhos de musculação e demais equipamentos para a construção do corpo dos lutadores: halteres, cordas e saco de pancadas, à disposição dos praticantes, antes e depois das aulas. Entre a "técnica refinada" manifesta pelos "comprovantes de competência" do professor e a "força bruta" adquirível nos aparelhos, está o dojô, local onde se aplica esta "força bruta" visando obter aquela "técnica refinada". Numa certa medida, pode-se falar em um trânsito da "natureza" para a "cultura". Como veremos mais adiante, os valores considerados necessários para um bom lutador, salientados pelos praticantes em entrevistas são a "força" e a "técnica", que podem ser associados ao binômio natureza/cultura. A força é associada ao corpo, enquanto a técnica está associada à "cabeça", diz-se que um lutador é "técnico" quando ele "luta com a cabeça". Esta questão acerca das categorias êmicas "força" e "técnica" será mais desenvolvida no próximo capítulo. Assim, na descrição do espaço onde se desenvolvem as aulas de full-contact, podem ser percebidas manifestações de conteúdos simbólicos que se refletem no uso que os praticantes de fullcontact fazem do espaço onde ocorre esta interação, através do arranjo dos diversos elementos componentes deste espaço. Na classificação que Goffman faz dos diversos elementos componentes do setting de uma determinada representação social, ele divide-o basicamente em dois setores: "área de fachada" e "área de bastidores" (Goffman, 1975: 106). A área de fachada corresponde à região onde a representação efetivamente ocorre, na presença do público. A área de bastidores é a região onde os atores preparam a representação e ocultam aquilo

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que contradiria a definição de situação levada à cena. Segundo este autor, o acesso aos bastidores é normalmente restrito aos membros da equipe. O público deve restringir-se à área de fachada, de modo a não pôr a perder a definição de situação que está sendo sustentada pela equipe que atua naquele setting. Aplicando esta categorização de Goffman para o caso da academia descrita, a "área de fachada", ou seja, o recinto de treinos da academia, sempre me foi franqueado, podendo ficar lá, observar, fotografar, anotar e entrevistar os praticantes sempre que quisesse. O acesso aos vestiários, entretanto, como "área de bastidores", sempre me foi tacitamente negado. Os praticantes entram na academia, cumprimentam os presentes levemente com a cabeça e vão para o vestiário. Saem de lá vestidos para a aula de full-contact, já com outra disposição para conversar com os colegas e demais presentes, inclusive para conceder entrevistas: por duas vezes, alunos desta academia me pediram que eu esperasse eles se vestirem para dar uma entrevista, já que eu os interpelei sobre a entrevista logo que chegaram. Uma vez vestidos como "lutadores de full-contact", ou seja, já "em cena", as entrevistas transcorreram naturalmente.

2.4.2 Uma Aula: Tarde de maio em Porto Alegre, poucos minutos antes das quatro. Na Academia Central, os alunos desfrutam de um momento lúdico. Um aparelho de rádio em volume alto toca sem cessar uma emissora de música jovem. Sentados no chão, em pequenos grupos, os alunos conversam, riem, demonstram golpes aos colegas no saco de pancada, outros fazem musculação nos aparelhos da academia, todos à espera do professor, que começará a aula às quatro. O professor chega, cumprimenta os alunos informalmente e vai ao vestiário trocar de roupa. O grupo de alunos é composto de oito praticantes,

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três meninos de cerca de dez ou doze anos e cinco adolescentes de dezesseis, dezoito anos. O professor chega na sala de treinos; dois dos meninos, deitados no chão em frente ao espelho, brincam com o professor, ameaçam "dar nele". Em resposta, sem dizer palavra, este agacha-se, pega um dos meninos pelo tornozelo e, com facilidade, levanta-o do chão com um só braço: "E aí? Vai dar em mim?" O menino jura que não, mas mal é recolocado no chão, já recomeça a brincadeira, com um arremedo de chute. A brincadeira com o menino é vista por todos os presentes, e pode ser interpretada como uma manifestação de virilidade por parte do professor, reestabelecendo o seu poder colocado jocosamente em dúvida pelos meninos. O braço levantado é, nos esportes de combate, o sinal da vitória de um dos lutadores. O professor, levantando o corpo do menino pelo tornozelo com um só braço, demonstra publicamente sua excelência perante seus alunos como resposta ao chiste dos dois meninos, além da evidente demonstração de grande força física. Segundo Goffman, quando ocorre a apresentação de uma equipe, geralmente um dos participantes possui a função de "dirigir" a apresentação, basicamente através da realização de duas "missões": trazer de volta à linha de ação escolhida algum ator desviante e distribuir os papéis destinados a cada membro da equipe (Goffman, 1975: 94). Estabelece-se, assim, uma relação de dominância do diretor sobre os demais membros da equipe, para que a representação tenha sucesso, isto é, para que corresponda à definição de realidade proposta. No caso citado, o professor agiu de acordo com o que era esperado de seu papel social de "diretor" da "equipe": manifestando o seu poder ao reconduzir à linha de ação proposta o menino "infrator". Como a "infração" se deu em termos jocosos, a "punição" igualmente o foi, aceitando entrar na brincadeira. Cabe notar o cuidado com que o professor ergueu o menino,

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vagarosamente, de modo a evitar machucar o menino ao erguê-lo pelo tornozelo. Mesmo em uma brincadeira, os papéis de cada ator estão claramente delimitados, e a linha de ação seguida pela "equipe" que está sendo descrita durante esta ação nada sofreu com a relação jocosa estabelecida entre este menino e o professor. Após colocar o menino no chão, o professor caminha pela sala, reúne os alunos para o começo da aula. Os alunos ficam alinhados na área de treinos, em frente ao espelho. O professor comanda "sen-tido!" e os alunos executam o movimento marcial, os braços estendidos ao longo do corpo. Ao comando "cumprimentem!", os alunos executam o cumprimento à japonesa, uma leve inclinação do tronco à frente com os braços ao longo do corpo. Após o cumprimento, o aquecimento começa com uma corrida em torno do dojô. De tempos em tempos, são comandadas ligeiras variações na corrida, elevando os joelhos, trocando o sentido do deslocamento, correndo de costas, etc. Após alguns minutos de corrida, os alunos fazem o exercício conhecido por "polichinelo". O total é de 400 repetições, cada aluno "puxa" (conta em voz alta) 50 repetições. Longas séries de exercícios são comuns nos treinos de fullcontact. Seu objetivo é, além de conferir resistência física aos praticantes, prepará-los para controlar a dor resultante deste grande esforço muscular. Durante os exercícios, o professor passeia pela sala, pratica chutes no saco de pancada ou olha pela janela o movimento intenso de pedestres no centro da cidade. Nem sempre é o professor quem coordena o aquecimento dos alunos. Em algumas academias, um aluno mais experiente pode tomar o lugar do professor e comandar a sessão de exercícios de aquecimento. Durante um certo período, participei de treinos de full-contact na academia Pialo, como parte do trabalho de campo etnográfico, para estar junto com o grupo e

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compartilhar da mesma experiência. Nesta academia, o professor, que dá aula em vários outros locais, aproveita que um de seus alunos começa o aquecimento para chegar um pouco mais tarde na aula e trocar de roupa enquanto os alunos aquecem. A minha primeira participação em um destes treinos está registrada no seguinte trecho do meu diário de campo: Cheguei no treino, após falar com o Guaraci, e os alunos já estavam aquecendo. Eles aquecem por conta própria, orientados por alguns alunos mais experientes. Havia sete alunos, eu e o professor. Como eles já tinham começado, o Severo (entrevistado de hoje), que estava orientando o aquecimento falou pra mim: "é só chegar, tira o tênis e entra". Como eu não sabia há quanto tempo eles estavam aquecendo, falei: "Não esquenta, eu faço shaolin, deixa que eu aqueço sozinho". Fui pra um canto e fiz meus próprios exercícios. Talvez tenha sido antipático, mas marca minha diferença. Com o tempo, veremos como resultou esse approach. No caso, a minha entrada em cena – que hoje reputo algo brusca – foi proveitosa, mal acabou a aula e os alunos vieram conversar comigo para saber onde eu treinava, o que eu estava fazendo ali, e outras perguntas do gênero. Ao responder, aproveitei para falar dos objetivos da minha pesquisa e já marcar entrevistas com alguns deles. O primeiro a ser entrevistado foi o próprio Severo, arrogante e desconfiado a princípio, porém mais receptivo ao final, quando, pelo fato de eu também ser praticante de artes marciais, acabei sendo reconhecido como "um deles". Em várias outras ocasiões, vi o rumo de uma entrevista mudar totalmente por conta da minha relação pessoal com a arte marcial, do mesmo modo que ocorreu com Severo. Ao saberem desta prática, o semblante, os termos empregados e a profundidade das respostas melhoravam consideravelmente, decorrência do ganho em confiança por parte dos entrevistados, e a entrevista mudava de uma espécie de questionário respondido de má-vontade para algo próximo a uma conversa informal entre velhos conhecidos.

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Voltando à academia Central, após a longa série de polichinelos praticada pelos alunos, o professor coloca-se à sua frente e, explicando como será o próximo exercício, mostra uma ou duas repetições. O aprendizado das técnicas de combate, como de muitas outras técnicas corporais se dá de modo mimético. Segundo Bourdieu (1990), o aprendizado das práticas esportivas se dá através de uma "compreensão corporal", já que o que há para ser aprendido não passa pelo domínio verbal, mas corporal. Wacquant (1989), que realizou um estudo etnográfico treinando boxe em uma academia no bairro negro de Chicago – como "participante observador" – referindo-se à didática do pugilismo, afirma que ...a transmissão do pugilismo se efetua de modo gestual, visual e mimético, ao preço de uma manipulação regrada do corpo, que somatiza o saber coletivamente detido e exibido pelos membros da academia a cada nível da hierarquia tácita que a atravessa. A "nobre arte" apresenta sob este título o paradoxo de um esporte ultra-individual cuja aprendizagem é profundamente coletiva. (Wacquant, 1989: 56) *

A transmissão destes conhecimentos corporais, assim, exige que o professor mostre fisicamente "como se faz", para que os alunos, imitando mimeticamente o seu movimento, aprendam a técnica. Quando se diz, entre os praticantes, que "o aluno é o espelho do professor", não se trata só de retórica, o aprendizado se dá exatamente desta forma: o movimento físico do professor é imitado do modo mais exato possível pelos alunos. Valores morais inculcados pelo professor (sentido usual no qual esta expressão é usada) seriam uma variante desta forma mimética de aprendizado. Além disso, o professor, ao executar ele próprio o movimento exigido dos alunos reatualiza constantemente perante eles a sua própria capacidade de fazê-lo, a sua *

No original: "La transmission du pugilisme s'effectue de manière gestuelle, visuelle et mimétique, au prix d'une manipulation réglée du corps qui somatise le savoir collectivement détenu et exhibé par les membres du club à chaque palier de la hiérarquie tacite que le traverse. Le "noble art" présente à ce titre le paradoxe d'un sport ultra-individuel dont l'apprentissage est foncièrement collectif."

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excelência naquele domínio. Isto fica particularmente claro no seguinte depoimento de um praticante: "...se tu for dar aula, tu vai ser um exemplo pros teus alunos. Além de tu ser um exemplo, tu vai ser o espelho de quem te ensinou, então tu vai ter que mostrar que tu é capaz daquilo ali, que tu sabe fazer, que tu tem condições de fazer." (Lúcio, 30 anos, porteiro) Após a demonstração, os alunos, mimeticamente, começam a praticar até receber a ordem de parar. O praticante mais graduado desta aula é um rapaz de seus dezesseis anos, faixa-verde, que manifesta uma certa independência dos demais alunos ao praticar os exercícios por conta própria, de modo mais lento, independente da contagem do professor. Na analogia dramatúrgica, este ator representa perante o público o seu papel de "aluno experiente", já que indica possuir experiência suficiente para realizar o treino no seu próprio ritmo, independente do ritmo determinado pelo professor. Os exercícios consistem basicamente de "alongamentos", com especial atenção para as pernas. O efeito buscado com estes exercícios é aumentar ao máximo a "abertura", o máximo ângulo entre as duas pernas abertas lateralmente. O "paradigma da máxima abertura", por assim dizer, é Jean Claude Van Damme, que, como já vimos, tornou-se famoso por sua abertura de 180°, meta buscada com afinco pelos praticantes.

$$$ Foto 5: Alongamento individual, Academia Central.

A obtenção de uma grande abertura traz diversas vantagens ao lutador. Como nas regras da ISKA só são válidos os chutes acima da linha da cintura e são exigidos de cada lutador oito chutes por round, quem tiver a

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perna mais aberta poderá desferir os chutes mais altos e com maior eficiência. Para obter uma boa abertura são necessários treinos freqüentes e, principalmente, suportar a dor do tendão sendo forçado além do seu limite. Se o praticante forçar demais, pode causar uma lesão que levará semanas para melhorar. Se forçar pouco, para não doer, o exercício será inútil, pois o tendão não estará sendo alongado. A obtenção de uma grande abertura de perna, assim, exige que o praticante não apenas suporte a dor, mas que a busque voluntariamente como uma etapa necessária para seu desenvolvimento técnico. Como diz um provérbio americano comum entre fisiculturistas: No pain, no gain (Klein, 1993). Em um treino de full-contact, o tema do controle sobre a dor como uma das medidas simbólicas da masculinidade aparece com freqüência. A busca deste controle voluntário sobre a dor é ressaltada por diversos autores como um aspecto da identidade masculina, como Helman (1994) e Gilmore (1990). Além da busca do alongamento visando a máxima abertura, as infindáveis séries de exercícios abdominais também são motivo para a superação da dor. Os exercícios abdominais são imprescindíveis para um lutador: o abdômen é uma região extremamente vulnerável a ataques do adversário. Sem uma musculatura rija protegendo o fígado, o estômago e o baço, basta um único golpe bem colocado no abdômen para tirar de combate um lutador. Os exercícios abdominais, assim, enrijecem os músculos serráteis ventrais, formando uma espécie de "escudo" que protege os órgãos internos de traumatismos decorrentes do combate. É comum os praticantes, após a aula, realizarem uma bateria de 400 a 500 repetições de exercícios abdominais, cada aluno "puxando" 50 repetições, como na longa série de "polichinelos" relatada acima.

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Após estes exercícios individuais de alongamento, o treino, ainda no aquecimento, prossegue com exercícios em dupla, também visando o alongamento, além de exercícios abdominais. Estes exercícios funcionam da seguinte forma: um dos praticantes ajuda o outro a exercitar-se, e depois é por ele ajudado.

$$$ Foto 6: Alongamento em dupla, Academia Central

O primeiro exercício consiste em pousar as pernas por sobre as canelas do colega, estirado no chão, para que ele faça exercícios abdominais. Outro exercício, desta vez visando abertura, consiste em colocar a planta dos pés nas panturrilhas do colega, forçando, desta forma, a abertura lateral das pernas dele. Desta forma, sucedem-se diversos exercícios em dupla. O contato com o corpo do colega é indispensável à realização do exercício: no fullcontact não há contato corporal apenas durante o combate. Nos treinos, este contato corporal pacífico é freqüente e, segundo os praticantes, "faz parte do treino", é considerado necessário à construção de um lutador. Findo o período de exercícios em dupla, os praticantes se dispersam pela academia, para terminarem de alongar, cada um à sua maneira. Eles usam janelas, barras horizontais dos aparelhos de musculação ou mesmo o ombro de um colega, qualquer anteparo alto o suficiente para pousar uma perna estendida para alongar, a fixação evidente na busca da máxima abertura. Ao fim do tempo para alongamento livre, termina o longo aquecimento dos praticantes. O treino de full-contact começa com os alunos em fila, andando em círculos em torno do dojô aplicando chutes por cobertura. Ao passar diante do espelho da parede, os praticantes freqüentemente param

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um pouco para verem-se aplicando o golpe que está sendo treinado. Os meninos, para quem o treino tem o seu tanto de brincadeira, nem pensam no golpe, usam sua passagem diante do espelho para admirarem o próprio bíceps, com o braço direito erguido, num narcisismo alegre e despreocupado. Além do "espelho" personificado pelo professor, os praticantes normalmente costumam treinar em frente a um espelho para poderem ter um feedback de seu próprio desempenho no aprendizado da técnica de luta. Um praticante considera um "egocentrismo" ficar admirando o próprio desempenho em frente ao espelho: "...eu curto me olhar no espelho e ver dar um golpe legal, dizer "pô, tô progredindo", eu curto, é um egocentrismo meu, se tu gosta disso, eu acho que não tem nada de mal..." (Severo, 20 anos, funcionário de transportadora) No caso, o que Severo chama de "egocentrismo" nada mais é do que um sentimento narcíseo em tudo similar ao dos meninos que aproveitam sua passagem em frente ao espelho para admirarem o próprio bíceps. A diferença é o nível de elaboração deste sentimento, justificado por conta de uma valorização estética do desempenho aprimorado da técnica de combate. Após a sessão de chutes por cobertura, os alunos, em duplas, treinam golpes combinados com o auxílio de um "escudo" (retângulo acolchoado, revestido de lona, de cerca de 30 x 40 cm). Enquanto um dos praticantes segura o escudo, à altura do rosto, o outro aplica os golpes combinados. Esses golpes, na verdade, são seqüências de golpes predeterminados, bastante práticas quando em combate, pois fornecem ao lutador a possibilidade de realizar ataques rapidíssimos, praticamente sem pensar, evitando a defesa do adversário. No caso, a primeira seqüência de golpes consistia em um chute frontal, um jab e um direto, ou seja, um chute e dois socos, um com cada braço. Estas seqüências de golpes também podem ser chamadas de 1-2-3. Após determinado tempo, o escudo troca de mãos e o outro

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praticante realiza os golpes combinados. Enquanto os alunos menos experientes treinam com os escudos, junto às janelas, dois praticantes mais velhos, com o tórax envolto por um protetor acolchoado, treinam chutes laterais nas costelas do colega. O treino é realizado em sentido linear, quem está atacando avança, e a cada passo troca a perna que está chutando. Quem está levando os chutes não se defende, ao contrário, ergue os braços para facilitar o chute do colega. Ao final de uma linha imaginária ao longo do dojô, os papéis são trocados, quem estava no ataque, passa para a defesa, e viceversa. Este exercício treina ambos os participantes. Quem está atacando, aprende a distância correta para o chute, além do controle da força na perna: mesmo com protetor de tórax, um chute lateral potente quebra com facilidade algumas costelas, um lutador deve ter alguma prática antes de realizar este tipo de treinamento. Quem está se defendendo (ou, no caso, não está) aprende a levar o golpe e, no jargão do grupo, assimilá-lo, isto é, agir como se não tivesse sido atingido, desconsiderar o dano causado. Mais uma vez, a presença do controle sobre a dor. Um golpe nas costelas pode facilmente provocar parada respiratória, por isso os protetores e os chutes que são apenas colocados no colega. O fato de um lutador deixar-se bater, no entender deste grupo, prepara este lutador para o combate, demonstra sua coragem e autocontrole perante os colegas e injeta-lhe a necessária auto-confiança na hora do combate. Segundo Jardim (1991), o auto-controle perante outros homens é um dos valores fundamentais associados à masculinidade nos grupos de camadas populares por ela pesquisados. Fato similar pode ser observado entre os praticantes de full-contact: não só o controle sobre a dor, mas também o exporse deliberadamente aos golpes de outro praticante sem manifestar o reflexo de defesa, ou seja, deixar-se bater superando estoicamente um gesto involuntário

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de auto-defesa pode ser considerado, neste grupo, como um índice de valores associados à masculinidade, como veremos no capítulo seguinte. Após guardar os escudos, o professor distribui a cada dupla uma "raquete", que tem um uso similar ao do escudo, serve como alvo para golpes, só que permite maior mobilidade. O treinamento com as raquetes também é similar: com a raquete erguida acima da cabeça, o colega deve acertar uma seqüência de golpes, ao mesmo estilo "1-2-3" descrito anteriormente. Outro exercício consiste em, segurando a raquete para baixo, passá-la por trás da nuca do colega ida e volta, forçando-o a esquivar-se duas vezes, para, no mesmo movimento, desferir-lhe um soco cruzado com cada mão. Outros exercícios de raquete, sempre incluindo golpes combinados, são realizados. A aula, desde o aquecimento, já dura mais de uma hora e meia. O professor recolhe as raquetes, pendura-as junto à parede, ordena aos alunos o mesmo comando

marcial

do

começo,

"sen-tido!",

a

seguir

o

comando

"cumprimentem!", com a mesma saudação do início e a seguir, sem mais palavra, o grupo se dispersa. A aula está terminada.

2.4.3 Uma Tarde de Lutas a. O Evento Tarde de sábado. Mensalmente, a Federação Gaúcha de FullContact realiza, num sábado à tarde, um evento de lutas de full-contact, reunindo diversas academias de todo o Estado. O local destes eventos é a própria sede da Federação, em Porto Alegre. O ringue está colocado em um grande salão de cerca de 15 x 30 metros, uma espécie de auditório. Num dos extremos do salão, há um palco desativado, coberto de cadeiras empilhadas e restos de material de construção. No extremo oposto fica uma arquibancada de

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quatro lances que preenche o salão quase de parede a parede. Exatamente no meio do salão fica o ringue, oficial, de 5 x 5 metros, elevado do piso do salão cerca de um metro.

$$$ Foto 7: Salão de lutas da Federação Gaúcha de Full-Contact

De cada lado do ringue, fica uma mesa e uma cadeira para os árbitros e, atrás de cada uma delas, mais cadeiras colocadas para aumentar as acomodações para o público. Entre o ringue e a arquibancada, fica a mesa dos jurados, com o gongo que assinala o início e o fim dos rounds e os troféus conferidos ao vencedor de cada luta. Neste dia, havia dez troféus pequenos e um grande, para um total de nove lutas. Na primeira luta, que seria entre dois iniciantes, meninos de doze anos, ficou combinado que ambos ganhariam troféus, o vencedor como primeiro e o perdedor como segundo colocado. As demais lutas conferiam um troféu ao vencedor, e, no final do evento, o troféu maior ia para o atleta mais técnico do torneio. O menino que venceu esta primeira luta não teve a unanimidade dos jurados, sua vitória foi por dois a um, resultado que, apesar de hierarquizante, ficou muito próximo de um empate. O cuidado por parte da organização do evento em não ferir a suscetibilidade do lutador derrotado, no caso um menino de doze anos, encontra paralelo no caso de um torneio interno realizado pelos praticantes do "Guaraci Vargas Team", em que não havia a indicação dos vencedores ao fim de cada luta. No final do torneio, havia uma premiação para o atleta mais técnico e outra para o atleta mais competitivo. Novamente cabe ressaltar a presença da dicotomia entre as categorias "força" e "técnica". A premiação ao atleta mais "competitivo", ou seja, aquele dotado de mais "garra", denota uma

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valorização de aspectos associados à corporalidade, enquanto a premiação ao atleta mais "técnico" valoriza o "uso da cabeça" ao lutar. Voltarei a este tema mais adiante. Voltando ao torneio de Guaraci, inquirido a respeito da ausência de vencedores no final de cada combate, o organizador respondeu que preferiu não expor seus alunos à possibilidade de uma derrota, "para ninguém se arriscar a ter uma imagem negativa durante o evento". Embora a derrota seja uma contingência do estar lutando, nenhum lutador gosta de perder. Considerase que um cartel de lutas sem nenhuma derrota seja um cartel "limpo", de modo que, neste sentido, uma derrota "suje" o cartel de um lutador. Neste sentido, transcrevo o seguinte trecho de entrevista: "Ter um currículo limpo, só com vitórias, é melhor, lógico, mas não regula: nem sempre o cara que ganha é bem visto pelos outros, tu não concorda comigo? O que eu estou dizendo é o seguinte: que aquele cara que não tem muita técnica às vezes ganha do cara que tem mais técnica e quem está de fora olhando vê que aquele que perdeu, perdeu mas foi melhor. O cara que está lutando não pode ser muito orgulhoso: perdeu, perdeu. O cara tem que ser humilde, não pode ficar dizendo: "Eu sou o cara", não tem essa de "eu sou o cara", pega outro cara ali, te derruba, deu. Muito cara é melhor do que tu, sempre tem um que pode ganhar." (Daniel, 43 anos, professor de full-contact) No caso, o professor Daniel estava justificando a derrota de um lutador seu que fora derrotado por pontos por um adversário que, inferiorizado tecnicamente, vencera a luta usando de sucessivos clinches para impedi-lo de lutar. O que fica claro neste depoimento é o cuidado que se tem, neste grupo, ao lidar com a derrota de um aluno ou companheiro. Freqüentemente se ouve, à guisa de explicação, como neste caso, que "ele perdeu, mas foi melhor", ou que "se aprende mais perdendo do que ganhando". Como veremos adiante, existem conteúdos simbólicos associados à derrota que convém evitar, "para ninguém se arriscar a ter uma imagem negativa", usando os termos do professor Guaraci.

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Voltando ao evento de lutas organizado pela Federação, na figura abaixo pode ser vista a disposição dos diversos elementos que compõem a cena do torneio de full-contact da Federação. Como se vê, o ringue ocupa a posição central: é, por assim dizer, o "palco" onde ocorrem os "dramas" buscados pelo público, os combates. Os eventos esportivos em geral, por sua própria natureza, têm o seu tanto de espetáculo teatral, seu lado "dramático", com a diferença que o final, ao contrário das artes cênicas, é sempre desconhecido do público. Magnane (1969) atribui a atração que o esporte exerce sobre as massas à sua "autenticidade". Segundo este autor, o estar presenciando algo de "real", como um espetáculo esportivo significa, para o público, ser a testemunha de um drama que se realiza sob os seus olhos, cujo fim não é conhecido pelo autor, organizador ou qualquer outro deus ex-machina. (Magnane, 1969: 88-89)

entrada 1

2

cadeiras

b

a

ringue

jurados 3

cadeiras 1,2,3: árbitros

arquibancada

a,b: contadores de chutes

Figura 2: Diagrama do salão de lutas da Federação Gaúcha de Full-Contact

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Observando a figura acima, podemos perceber que o ringue/palco não só está na posição central do setting, como também está completamente cercado pelos assentos destinados ao público, como em um teatro de arena. Descrito o cenário, vamos ao espetáculo.

b. O Público No dia do evento, o público presente lotou completamente os espaços disponíveis. Havia mais de cem pessoas no local. O público era composto em sua maioria por homens, cerca de dois terços do total. Um terço das pessoas presentes, entretanto, eram mulheres e crianças, perceptivelmente mães, irmãs, namoradas ou amigas de algum lutador. Havia também muitas crianças brincando no local, o que dava ao público presente um caráter de "ambiente familiar". As relações familiares envolvidas ficavam claras quando era anunciado pelo locutor o nome dos lutadores, via-se em meio ao público aquela pequena torcida a favor de um determinado concorrente concentrada em um ponto da arquibancada a gritar seu nome antes da luta. O restante da torcida aderia a um ou outro dos contendores sem saber seu nome, de acordo apenas com o desempenho de cada um no ringue. Durante um combate, o público valoriza determinados aspectos da conduta dos contendores. O valor denominado garra, por exemplo, em geral associado à agressividade e determinação de um lutador no combate, é aplaudida e gritada pelo público durante um ataque devastador de um dos oponentes. A capacidade de reação de um lutador também é valorizada. Se, após suportar um ataque intenso do tipo que arranca aplausos do público, um lutador consegue esquivar-se, sair das cordas e surpreender seu oponente com um inesperado contra-ataque, o público grita e aplaude com mais entusiasmo ainda. Ao final de um combate nestes termos ocorrido durante este evento, o

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público aplaudiu espontaneamente por longo tempo os dois contendores, antes mesmo do resultado oficial. A manifestação do valor denominado técnica, associado à habilidade e velocidade de um lutador na utilização de golpes difíceis, enfatizado freqüentemente pelos praticantes em entrevista, também é bastante valorizada pelo público, além de ser premiada oficialmente com o maior dos troféus destinados pelos organizadores aos lutadores. Em uma das lutas, um dos contendores aplicou um chute giratório com salto, golpe bastante difícil de ser aplicado com êxito. Foi o caso: o lutador errou o alvo com uma rápida esquiva de seu oponente, enredou-se nas cordas e caiu ao chão. A luta foi interrompida para que ele se levantasse, mas o lutador ergueuse da lona coberto de aplausos. Além de aplausos e gritos, pessoas do público também interagem de modo mais direto com os lutadores. Durante o combate, parentes e amigos do lutador incentivam-no gritando seu nome: "Vai lá, Sabugo, vamos, Sabugo, não pára!!!" Colegas e treinadores aconselham táticas para vencer o combate ou para reverter uma situação difícil aos berros: "Entra de novo com a perna!!" Frases avulsas ditas em voz alta ironizam condutas dos lutadores, evidenciando aspectos considerados jocosos pelos torcedores. Durante uma luta, um dos lutadores pediu para interromper o combate pois seu cabelo, bastante comprido, estava caindo em seu rosto pela fresta do capacete, e ele precisava tirá-lo. Ao ver o motivo da interrupção, um torcedor gritou, provocando gargalhadas no público: "Faz uma maria-chiquinha!!" Este tipo de comentário jocoso ironiza a aparência do lutador, em uma espécie de censura à cabeleira ostentada pelo lutador. A "maria-chiquinha", arranjo do cabelo em dois rabos-de-cavalo laterais à cabeça, é comumente utilizada em cabelos de menininhas. De forma irônica, o torcedor aludia ao lutador com um termo depreciativo comum em desafios verbais entre meninos, indicando a falta de

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atributos masculinos, referindo-se a ele como "mulherzinha" (ver também, neste sentido, Carvalho, 1987, Leal, 1992c, e Leczneiski, 1995). Atributos masculinos são exigidos dos lutadores pelo público praticamente em tempo integral, usando da jocosidade como canal de manifestação desta cobrança. Após uma luta, abraçar o oponente é uma conduta normal nos esportes de combate, considerada entre os lutadores uma manifestação de honradez e espírito esportivo. Porém, após um dos combates, o abraço demorou uma fração de segundo além do esperado, o suficiente para ouvir-se o grito da arquibancada: "Dá um beijo também!!" Além de palavras, é comum ver-se "conselhos" sobre táticas de combate manifestados sob forma gestual, durante o intervalo: enquanto o lutador, extenuado, descansa em seu canto do ringue, seu professor, um dos jurados da luta, indica-lhe com as mãos a seqüência de golpes a ser utilizada, no caso, o clássico 1-2, um cruzado de esquerda e um uppercut de direita. Por vezes, os "conselhos" nem precisam de muito entendimento técnico do público para serem válidos. Pelas regras da ISKA, são necessários oito chutes por round para cada lutador, sob pena de perda de pontos. Para tanto, existem dois auxiliares "contadores de chutes" (ver figura 2, na pág @), um para cada lutador, com cartazes de um a oito indicando em ordem decrescente o número de chutes desferido por cada lutador. Em um determinado combate, um dos lutadores, em péssima situação na luta, estava "devendo" seis chutes e se aproximava o final do round. Seus amigos e familiares começaram a gritar desesperados: "Chuta, Ricardo, chuta!!" Ricardo não chutou, mas por absoluta falta de condições de terminar a luta. Ele completou o round de pé, nas cordas, sob severo ataque do adversário. Cambaleou até seu canto, seu treinador perguntou: "Tudo bem?" Ricardo, completamente grogue, agarrado nas cordas,

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apenas balançou a cabeça. O treinador fez para os jurados o sinal de desistência, as duas mãos espalmadas se cruzando na horizontal sobre uma linha imaginária à frente do peito. Vitória do oponente por desistência no segundo round.

$$$ Foto 8: Ricardo, sem condições físicas, desiste do combate.

A interação entre o público e os lutadores não é unidirecional, existe uma comunicação entre os lutadores e a torcida, em geral ao final de um round ou da luta, quando da entrega dos prêmios. Ao final de um round onde tinha se saído excepcionalmente bem, um lutador vai para o seu canto com os braços erguidos, o símbolo da vitória, girando de leve o corpo para mostrar-se ao público em torno como o virtual vencedor, visando também o efeito moral sobre a disposição do adversário naquela luta. Ao final do combate, o vencedor recebe seu troféu e ergue-o caminhando em torno do ringue para, da mesma forma, mostrá-lo ao público que o aplaude.

$$$ Foto 9: Apresentando o troféu ao público, Academia Pialo.

Apesar da "cena principal" acontecer dentro do ringue, interações as mais diversas acontecem entre as pessoas que compõem o público das lutas. Pouco antes de começar o evento, o presidente da federação e um professor de boxe "acertavam" (combinavam os detalhes) a realização de duas lutas de boxe para o próximo evento da Federação Gaúcha de Boxe, uma noite de lutas semelhante ao evento descrito. Dizia o professor para o presidente: "Então tá,

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eu te levo um de 58 e um de 62 pra semana que vem". No caso, o professor estava se referindo a dois lutadores, um com 58 e o outro com 62 quilos, que estavam sendo procurados pelo presidente para completar as lutas de um evento. Em outro momento, um instrutor de uma academia, falando com o espectador que estava a seu lado, descobriu que ele era fabricante de artigos para esportes de combate, como luvas e sacos de pancada, e em pouco tempo já estavam tratanto de facilidades no pagamento. A realização de um evento como este, que reúne lutadores de várias academias, também é um momento de encontro entre os treinadores, e muitos deles se conhecem de outros eventos. Existe entre eles uma espécie de corporação baseada no pertencimento a uma mesma categoria hierárquica perante os alunos. O corporativismo dos treinadores é manifestado na interação que se estabelece entre eles. Quando não se percebe uma camaradagem de longa data, os treinadores tratam-se como colegas de profissão, com uma espécie de ética profissional, cada qual respeitando os alunos e a academia dos demais. Cada treinador traz para o evento alguns dos "seus" alunos, para porem-se à prova contra os alunos dos outros. Em uma certa medida, os treinadores podem ser comparados aos "galistas" que trazem seus galos para uma rinha. O bom desempenho dos galos recai simbolicamente sobre o proprietário. No caso dos treinadores, a diferença é que um lutador é muito mais "treinável" do que um galo, e seu desempenho depende muito mais da orientação do treinador, portanto o prestígio decorrente de uma série de vitórias dos lutadores de um determinado treinador é bem mais merecido do que no caso dos "galistas". O paralelo com as brigas de galo será mais desenvolvido no capítulo seguinte. Os treinadores via de regra não lutam, pelo menos nestes eventos, a não ser indiretamente, por meio do desempenho dos seus alunos. A relação dos

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treinadores com os alunos é algo paternal, e se vários alunos de um mesmo professor ganham suas lutas, ele também sai do evento prestigiado junto a seus pares. Durante este evento, registrei em meu diário de campo o seguinte trecho de um diálogo entre dois professores, a respeito da luta de "Sabugo", referida acima: "Estão indo bem os teus guris..." "Tá bom este guri, né? Tá treinando só há cinco meses..." "Ele é o que melhor usa os braços até agora, ele devia era boxear, leva ele lá [na academia] pra treinar boxe..."

c. Os Lutadores Os lutadores formam um grupo claramente distinguível das demais pessoas presentes ao evento. Antes do começo dos combates, eles encontramse junto ao público presente, mas por sua representação peculiar, bem como por seus trajes, pode ser dito que eles formam uma "equipe", no sentido empregado por Goffman (1975). Eles são os protagonistas do espetáculo apresentado/representado no ringue, e, de uma certa forma, são todos "colegas". Goffman define "colegas" como ...pessoas que apresentam a mesma prática à mesma espécie de platéia, mas não participam juntos, como fazem os companheiros de equipe, no mesmo momento e lugar, de uma mesma platéia determinada. Os colegas, como se diz, partilham de um mesmo destino. (Goffman, 1975: 149) Os lutadores parecem saber desta partilha de um destino comum e fazem questão de estarem distintos do público. Vestidos com o uniforme de suas academias, já com as ataduras nos punhos, os lutadores reúnem-se em pequenos grupos dos conhecidos da mesma academia. Mantendo o aquecimento para a luta, eles ficam treinando seus golpes devagar, demonstrando sua "abertura", praticando socos e esquivas em frente a uma

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coluna do salão (a coluna, parede, etc, em frente ao lutador serve para dar a noção de distância do golpe) ou simplesmente conversando com seus colegas.

$$$ Foto 10: Grupo de lutadores em um dos eventos de lutas promovido pela Federação Gaúcha de Full-Contact

Muito desta performance pré-combate não é mais que mise-enscène para impressionar o público e os prováveis adversários: mostrar o domínio do corpo para a luta, mesmo antes desta, já é uma atuação em cena, ainda que fora do ringue, que seria, por assim dizer, o "palco principal" deste evento. A maior parte dos lutadores usa uniformes de full-contact: camiseta regata e calça comprida com boca larga. Alguns lutadores, entretanto, circulam com uniformes característicos de outras modalidades, como taekwondo e kung fu. O conhecimento de outra arte marcial, indicado pelo uso do uniforme a ela peculiar, pode representar outro aspecto do mesmo mise-en-scène já referido anteriormente. Full-contact, todos os praticantes sabem, mas full-contact e taekwondo ou full-contact e kung fu, apenas uma minoria. Apesar das técnicas peculiares a estes estilos não serem válidas em uma luta de full-contact (portanto, inúteis neste caso), o sentido simbólico atribuído a um praticante de várias artes marciais é o de um lutador experiente (mesmo que ele só tenha praticado os dois estilos o tempo suficiente para comprar os uniformes), portanto um adversário a ser temido. Em um caso, pelo menos, que será visto adiante, a combinação deste e de outros papéis funcionou a contento. A interação entre os lutadores quando um deles está no ringue e seus companheiros estão assitindo é a de uma entusiasmada torcida, acrescida do fato de todos conhecerem a luta e, portanto, darem mais palpites ao colega

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sobre a conduta correta a ser seguida dentro do ringue. Voltando ao caso de Ricardo, citado acima, não faltou incentivo por parte de seus companheiros, mas a diferença técnica entre os contendores era por demais evidente: Ricardo não teve a menor chance. Desanimado, ainda cambaleando, Ricardo desceu do ringue e foi ao encontro dos colegas. Um deles ergueu as mãos abertas, que Ricardo socou de leve, com ambas as mãos. Cinco ou seis colegas dele se aproximaram para abraçá-lo, consolando-o: "Da outra vez..." "Na próxima..." No caso de uma vitória, a comemoração também é realizada em grupo. No caso também citado de "Sabugo", lutador da mesma academia de Ricardo, os comentários e gritos dos colegas foram igualmente intensos. No intervalo de um excelente primeiro round, os colegas comentaram: "Só dá Sabugo...". No primeiro knockdown, gritos e aplausos não só dos amigos de Sabugo como de todo o público. A uma tentativa de reação, o aviso dos colegas: "Não deixa ele entrar, Sabugo!!" No meio do terceiro round, Sabugo nocauteou seu adversário. No meio da euforia dos colegas, o comentário, entre risadas: "Eu não disse? Só deu Sabugo!!" A entrega do troféu é também motivo para uma interação especial entre o vencedor e seu treinador. Com o troféu na mão, sobre o ringue, o treinador de Sabugo (provavelmente oriundo de uma arte marcial oriental) comanda "sentido!" ao seu lutador, e, a seguir, cumprimentam-se à japonesa. Só então ele lhe entrega, com um aperto de mão, o troféu que Sabugo levanta com o braço direito erguido para seus companheiros. Além disso, a entrega do troféu é também um momento importante para o treinador: em pleno "palco", se por um lado o treinador "entrega" o troféu, por outro é ele quem o tem nas mãos tantas vezes quantas os seus lutadores vencerem os combates contra seus oponentes, uma manifestação pública do triunfo obtido sobre seus pares.

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d. Um Combate Após a entrega do troféu ao vencedor de uma luta, ele, seu treinador e "segundos" deixam o ringue saindo por entre as cordas. No ringue, fica somente o locutor do evento, que anuncia para o público o nome dos oponentes da próxima luta. A não ser algum familiar, como já foi apontado, ninguém aplaude a nomeação dos contendores. Eles entram no ringue, cada um pelo seu canto (onde ficam os contadores de chutes), junto com seu treinador e um "segundo", auxiliar do lutador, que nos intervalos lava seu protetor de dentes, dá-lhe água, abana-o, etc. Os lutadores entram no ringue sem luvas, só com as ataduras nos punhos, o protetor de dentes na boca e a caneleira colocada por dentro das calças. Já no ringue, o treinador, enquanto vai instruindo seu aluno para o combate, vai também "armando-o" com os equipamentos de proteção, primeiro as luvas, depois as "botas" (espécie de polaina acolchoada, sem sola, que cobre só a parte de cima do pé) e finalmente o "capacete", protetor de cabeça usado em lutas amadoras, que também serve para identificar os lutadores.

$$$ Foto 11: treinador vestindo seu lutador para um combate.

O lutador de full-contact é coberto literalmente da cabeça aos pés com equipamentos de proteção. Ao ver o treinador equipar seu lutador, me ocorre imediatamente a imagem de um cavaleiro medieval "armando-se" (isto é, colocando sua armadura) antes de um combate. Estes equipamentos, ajustados ao corpo do lutador, formam uma espécie de "couraça" protegendo sua cabeça, dentes, punhos, canelas e tornozelos. Além desses acessórios exteriores ao corpo do lutador, a sua própria musculatura desenvolvida em longas séries de exercícios, como foi visto acima, possui a mesma intenção. A

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musculatura abdominal, por exemplo, enrijecida por séries diárias de 500 repetições de exercícios abdominais, possui a mesma função de uma caneleira. A diferença é que, à exceção dos equipamentos de proteção da cabeça e dentes, todos os outros equipamentos tem a função não de salvaguardar quem recebe o golpe, mas de proteger o atacante, seus punhos e tornozelos, "armas" válidas no full-contact. Construir no próprio abdômen uma "muralha" de músculos capaz de suportar os golpes adversários é função do lutador, em defesa de sua própria integridade física. Um combate de full-contact pode ser entendido como uma representação, de certa forma ritualizada, de alguns aspectos considerados "masculinizantes" em nossa sociedade, como a resistência à dor e a aceitação de confrontos com outros homens. Este aspecto ritualizado encontra um paralelo na classificação das etapas dos ritos de passagem descritos por Van Gennep (1978), que, segundo ele, dividiriam-se em "separação", "margem" e "agregação". É importante ressaltar que uma luta de full-contact não é um rito de passagem, mas sim que a luta apresenta, na forma como é realizada, elementos destes ritos, instâncias ritualizadas. Assim, ao entrar dentro do ringue e ser "armado" pelo treinador, o lutador está sendo "desinvestido" de outros papéis que tenha fora daquele ringue e "investido" exclusivamente do papel de lutador. Durante o combate, que pode ser comparado à fase "marginal" ou "liminar" [conforme o termo usado por Turner (1974)] a situação do lutador é ambígua, ele e seu oponente encontram-se em igualdade de condições, de peso e de equipamento. Não obstante, o decorrer dos acontecimentos no combate determinará a criação de uma hierarquia entre eles, implicando em uma mudança de status entre estes lutadores até então iguais. Com o final do combate, ocorre a concessão pública do símbolo desse valor posto em jogo: a elevação do status do vencedor e a diminuição do derrotado.

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O caráter ambíguo da fase "liminar" dos rituais é ressaltado por Turner (1974), uma vez que durante este período, os envolvidos "escapam à rede de classificações que normalmente determinam a localização de estados e posições num espaço cultural" (Turner, 1974: 117). Como já vimos, o "drama" presenciado pelo público e vivenciado pelos lutadores dentro do ringue tem o seu potencial dramático acentuado por esta incerteza quanto ao resultado do confronto. Segundo Magnane, a paixão pelo espetáculo esportivo manifesta-se por uma "obsessão do visível". Em esportes de combate, este estado de fascínio pelo olhar é crítico, já que o golpe decisivo pode ser desferido a qualquer momento, "com a rapidez do relâmpago" (Magnane, 1969: 90). Após "armar" seu lutador, o treinador comunica-lhe o final das instruções. O juiz comanda: "Segundos fora!" e, somente com os lutadores e o árbitro sobre o ringue, soa o gongo, dando início ao combate. Em uma das lutas, um dos adversários era um rapaz de seus dezesseis anos, moreno, vestido com um uniforme de kung fu. Antes de entrar no ringue, ele tirou a camiseta branca de mangas curtas com um dragão nas costas, característica deste estilo, e colocou outra camiseta, tipo regata, preta, com a inscrição "full-contact" nas costas. A calça preta com duas listas azuis, entretanto, permaneceu, indicando sua ligação com o kung fu. Seu adversário, um rapaz loiro aparentando a mesma idade, com um uniforme comum de fullcontact, calça preta com uma lista vermelha larga, subiu ao ringue aparentando insegurança, o passo tíbio ao pisar a lona. Durante a colocação dos equipamentos, este lutador ficou de olhos baixos, enquanto que seu oponente, no outro canto do ringue, balançava os braços de modo a ressaltar a musculatura saliente, e, sem tirar os olhos do adversário, o peito inflado, mastigava o protetor de dentes. O rapaz de vez em quando erguia os olhos para

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o adversário, mas não sustentava esse olhar por muito tempo. Na denominação estabelecida por Goffman, chama-se "maneira" os estímulos que informam sobre o papel que um ator espera desempenhar em uma situação que se aproxima, as maneiras de um ator podem ser arrogantes e agressivas ou humildes e escusatórias (Goffman, 1975: 31). Vendo as "maneiras" destes dois lutadores, eu intuí qual seria o resultado da luta... Ao soar o gongo, o lutador com uniforme de kung fu aproximou-se de seu adversário e começou um ataque demolidor, o rapaz apenas se defendia do jeito que conseguia, um chute frontal, um jab, mas acabou sendo levado para as cordas, onde continuou a ser batido. Com um golpe que atingiu-o abaixo da linha da cintura o rapaz caiu, mas não foi configurado o knockdown por ter se tratado de um golpe ilegal, que valeu uma advertência ao oponente. Após este golpe, a luta foi interrompida para que o lutador recém-derrubado colocasse um protetor de genitais, o que lhe deu um tempo para respirar. Ao final da interrupção, o outro lutador continuou a atacar violentamente, usando todo seu repertório de golpes, cruzados, uppercuts, socos giratórios, até que o protetor de genitais do lutador loiro começou a cair, pois estava muito frouxo: nova interrupção. Com o protetor de genitais devidamente apertado, a luta continuou por mais alguns segundos até soar o gongo. No intervalo, via-se claramente o esforço do treinador do lutador em desvantagem para dar-lhe uma tática que pudesse reverter sua situação desfavorável no combate. Ele repetiu várias vezes, por gestos, a conduta a ser tomada: durante o ataque do adversário, um jab para ganhar espaço seguido de um uppercut para surpreender o oponente. Soou o gongo para começar o segundo round. Como era de se esperar, o lutador de calça de kung fu começou novamente com seu ataque avassalador, e seu oponente, preocupado em não apanhar, apenas fugia, jabeava e dava chutes frontais para tentar afastar o adversário, não conseguindo nenhuma vez utilizar

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a tática sugerida por seu treinador. O público, reconhecendo a total desigualdade de nível técnico entre os dois lutadores, torcia agora para que uma reação do lutador em desvantagem surpreendesse o oponente. Um espectador gritou: "Vai pra cima dele, alemão!!" Mas já era tarde. Com a saraivada de golpes, um direto acabou entrando certeiro na guarda deste lutador, que caiu agarrado às cordas. O juiz entendeu que ele não tinha mais condições de continuar no combate e concedeu vitória por nocaute no segundo round para o lutador com uniforme de kung fu. Na verdade, acredito que o simples fato de um dos lutadores estar vestido com um uniforme de outra arte marcial não determine absolutamente o resultado de qualquer combate, tampouco a atitude arrogante e agressiva do lutador vencedor antes do combate. Podia muito bem ocorrer – como muitas vezes efetivamente ocorre – de todo o mise-en-scène ser apenas um blefe, e o lutador que agia desta maneira ser "desmascarado" logo nos primeiros segundos de luta por um adversário em princípio humilde, mas que não se deixou intimidar. No caso, não foi o que ocorreu, e o mise-en-scène antes do combate, aliado à superioridade técnica do lutador, acabou funcionando. Após a divulgação do resultado, o lutador derrotado dirigiu-se até seu oponente mas não abraçou-o, apenas um aperto de mão e um tapinha nas costas, antes de sair por entre as cordas, para junto de seus colegas de academia. Sobre o ringue, o vencedor recebia o troféu das mãos de seu professor, um negro alto com um boné escrito "boxe". A "luta de origem" deste treinador provavelmente seja mesmo o boxe, porque a entrega do troféu não teve aquela ligeira cerimônia já descrita, com o cumprimento à japonesa. O professor, com o troféu nas mãos, simplesmente o entregou a seu aluno, com um aperto de mão e um tapinha no ombro. O lutador, de posse de seu prêmio, levantou-o com um braço, mostrando-o em torno do ringue para o público,

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bastante aplaudido. Terminados os aplausos, o lutador e seu treinador deixaram o ringue por entre as cordas para dar a vez ao locutor, que subia ao ringue para anunciar a próxima luta. Fim do espetáculo.

$$$ Foto 12: Fim da cena.

Capítulo 3. Identidade Masculina e Competitividade

3.1 Sobre a Noção de Gênero O conceito de gênero refere-se à construção de uma identidade social a partir de diferenças biológicas entre homens e mulheres. Cabe ressaltar que, apesar de estarem na base da justificativa acerca das diferenças entre masculino e feminino, as diferenças biológicas absolutamente não determinam a conduta de homens e mulheres em sua vida social. Como diz uma palavra de ordem feminista citada por Fonseca e Brito (1995: 9): "Biologia não é destino". Segundo Rosaldo (1995), o conceito de gênero não deve ser entendido com referência a limitações biológicas, mas como um produto de relações sociais e políticas com especificidades variáveis para cada sociedade. Nas mais diferentes sociedades, o conjunto de valores e atitudes socialmente determinadas correspondentes às representações e expectativas do ser homem e do ser mulher, os chamados "papéis sexuais", estão claramente definidos, variando de acordo com o uso que cada sociedade faz das diferenças biologicamente dadas. De acordo com Rosaldo (1995), Todo sistema social usa fatos de sexo biológico para organizar e explicar os papéis e oportunidades dos quais homens e mulheres podem desfrutar. (Rosaldo, 1995: 18) Cada indivíduo, desta forma, constrói para si uma identidade baseada em padrões de conduta para cada gênero. Estes padrões são correspondentes aos valores e atitudes esperados de homens e mulheres de acordo com cada sociedade. É importante notar que as noções de "gênero" e de "papéis sexuais"

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implicam em conceber

estes

sistemas

de

valores

como

construções

eminentemente culturais, que se apresentam sob uma forma "relacional", isto é, que se constrói na relação e/ou oposição a um "outro". Mesmo fatos aparentemente universais a respeito da relação entre os gêneros, como a dominação masculina, que acaba conferindo um status subordinado ao gênero feminino, devem-se à manipulação cultural de diferenças biológicas. Ortner (1979) sustenta que esta universal desvalorização da mulher em relação ao homem deriva de uma visão que, relacionando a dicotomia "natureza/cultura" aos gêneros masculino e feminino, associa a mulher à natureza e o homem à cultura. Na medida em que o desenvolvimento da cultura se dá por sobre a dominação da natureza, esta estrutura se repetiria na relação de gênero. Assim, a partir de um dado biológico (a gravidez, nascimento e a lactação dos filhos) se aproxima culturalmente a mulher do mundo da natureza, a mulher, por assim dizer, engendra a sua criação de dentro do próprio corpo, enquanto que o homem deve buscar a matéria para o seu ato criador fora dele, transformando o mundo da natureza no mundo da cultura (Ortner, 1979). Por meio desta dicotomia, Ortner explica vários outros fatos recorrentes, como a associação da mulher ao domínio doméstico e do homem ao domínio público, já que o público se sobrepõe ao doméstico da mesma forma que a cultura se constitui sobrepondo-se à natureza (Ortner, 1979: 108. Neste sentido, ver também Rosaldo, 1995). Da relação entre os gêneros surge uma identidade pessoal associada aos papéis de cada gênero. O conceito de identidade, bem como o de gênero, na tradição antropológica, é eminentemente relacional, ou seja, só se define no contraste com um outro que fornece os parâmetros para o estabelecimento das diferenças que constituirão esta identidade. No caso da identidade de gênero, a relação que definirá os termos da construção desta identidade será a relação com o sexo oposto. Segundo Chodorow (1979), muitas das características relativas a

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cada gênero são adquiridas através de um processo de socialização intensa na primeira infância, pela relação da criança, menino ou menina, com a mãe, que definirá diferentes padrões de identidade de gênero. Segundo esta autora, o fato de uma filha mulher ser socializada por alguém do mesmo sexo facilita a apreensão dos padrões sociais femininos, o que seja "ser mulher" em uma dada sociedade. A socialização de um menino é diferente: ele precisa apreender um papel social que não é dado de imediato, e que se constrói em grande parte por conta da negação do papel feminino (Chodorow, 1979: 73).

3.2 A Construção Social da Identidade Masculina Na construção da identidade masculina, os atributos que definem o que é considerado "ser homem" em uma dada sociedade – ou seja, qual a conduta esperada por esta sociedade de um homem frente a diferentes situações – são uma construção eminentemente social, e a identidade masculina passa pela conquista destes atributos pelos meninos. Socialmente falando, nenhum menino "nasce homem", mas "torna-se homem" no decorrer da sua vida, pensando e agindo de acordo com valores tidos por sua sociedade como "valores masculinos". Desta forma, a identidade masculina, não é dada simplesmente por atributos anatômicos, como a posse de um pênis e musculatura desenvolvida, mas sim pela filiação do indivíduo ao longo de sua vida a determinados valores e condutas considerados dentro de sua sociedade como "condutas e valores masculinos". Diversos estudos etnográficos apontam para estes aspectos sociais da construção da identidade masculina, mostrando a recorrência, nas mais diversas sociedades, da necessidade de conquista da masculinidade pelos meninos. Alguns destes trabalhos serão explorados no tópico a seguir.

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3.2.1 Aspectos Sociais da Masculinidade em Diversas Culturas Em muitas sociedades, a diferença entre os gêneros chega a determinar completamente o modo de vida de homens e mulheres, punindo com severidade os desviantes. Em um estudo etnográfico sobre relações de gênero nos Balcãs, entre os gregos Sarakatsani, os Albaneses, os Sérvios e os Montenegrinos, Denich (1979) analisa a organização política e social destas sociedades a partir do ethos masculino. Para ela, nos Balcãs, a relação de cada grupo familiar com o mundo externo é vista como uma relação competitiva contra rivais em potencial. Lutar, tanto na defensiva como na ofensiva, é uma atividade exclusivamente masculina. Desde que todas as arenas públicas têm a potencialidade para o combate, elas são designadas como masculinas. O meio ambiente externo da família é de domínio exclusivamente masculino. (Denich, 1979: 213) Nestas sociedades, como em muitas outras, o "ser homem" confundese com a vida pública, e os valores da honra familiar, cuja perda pode ser desencadeada pela mulher, forjam severas sanções a comportamentos desviantes por parte destas. Pitt-Rivers (1979) tratando sobre honra e posição social na Andaluzia, considera que a conduta "honrada" implica obrigações diferentes para homens e mulheres. Enquanto para um homem a obrigação é de "defender a honra" sua e de sua família, para uma mulher, a honra consiste em conservar a sua pureza. Esta "obrigação" feminina praticamente exclui as mulheres da vida pública, pois ao tomar um papel ativo na vida social (prerrogativa masculina naquela sociedade) uma mulher arrisca a sua reputação e a de sua família, e pode, por esta via, "perder a vergonha". Um homem, por sua vez, deve mostrar-se sempre pronto a participar ativamente na arena pública, e sua conduta "honrada" exige, por

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exemplo, que ele ofenda ao outro homem no caso de receber dele uma provocação (Pitt-Rivers, 1979: 44-45). Também se referindo à Andalusia, Brandes (1980) considera que, nesta sociedade, a causa da dominância masculina sobre o sexo feminino – cujo corolário é a exclusão das mulheres da vida pública – se deve ao fato de os homens se sentirem ameaçados pelo poder que as mulheres têm de porem a perder a sua reputação e a de sua família, através de uma conduta "desonrosa". Para Brandes, este temor é que impele os homens daquele grupo a dominar a vida feminina, e que os faz sentirem-se paradoxalmente "vulneráveis e vitimizados" por elas (Brandes, 1980: 75-76). Em seu estudo a respeito da sociedade brasileira, Da Matta (1991) considera que em nossa sociedade a "rua" é tradicionalmente o espaço destinado ao homem, onde a mulher é englobada "jurídica e politicamente pelo marido", enquanto que o espaço da "casa" corresponde ao domínio feminino, onde ele é englobado por ela (Da Matta, 1991: 130). A respeito desta associação entre homem/domínio público e mulher/domínio doméstico, ver também Jardim (1991) e Rosaldo (1995). Em uma sociedade indígena do Brasil central, os Mehinaku, Gilmore (1990) referindo-se à identidade masculina entre este grupo, afirma que nesta sociedade toda a atividade masculina é realizada no meio da aldeia, "à vista do público". Fato notável a esse respeito é o local destinado à arena onde ocorrem as lutas corpo-a-corpo, atividade que define a hierarquização da masculinidade nesta sociedade. Num notável simbolismo, esta arena situa-se exatamente no centro da aldeia (Gilmore, 1990: 91). No estudo cross-cultural realizado por este autor, torna-se evidente a quase absoluta predominância no mundo de sociedades onde a identidade do gênero masculino é algo a ser conquistado pelos meninos através de provas e indicadores socialmente determinados, que variam de cultura para

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cultura. Segundo ele – sob um viés psicológico e buscando referências na teoria pós-freudiana –, meninos e meninas ao nascer possuem uma visão de unidade de sua personalidade com a da mãe. À medida em que que crescem, entretanto, as crianças vão adquirindo uma personalidade independente. Para as meninas, em geral este processo é considerado mais fácil, dada a proximidade da mãe como modelo dos papéis sociais que ela deve assumir, de acordo com sua sociedade. Para os meninos, no entanto, cria-se uma ambivalência de fantasia-medo a respeito da mãe. A fantasia em questão é a da volta ao útero materno, tornar-se novamente "uno" com ela, dela tudo recebendo, a assim chamada "regressão". O medo inseparável desta fantasia é de, voltando à mãe, ter a sua personalidade aniquilada nesta fusão: tornar-se o mesmo que a mãe, nesta visão, significa tornar-se mulher, perdendo assim a identidade masculina, o que pode ser associado ao assim chamado "temor da castração". Assim, para Gilmore, o que leva a existir em quase todas as sociedades testes para a conquista da masculinidade é o temor da regressão. Sob o ponto de vista social, a tendência à regressão representa um seriíssimo perigo à sociedade como um todo. Para Gilmore, um dos indicadores da conquista da masculinidade pelo indivíduo se dá quando ele mostra perante sua sociedade que é capaz de prover de recursos a seus dependentes, ou seja, quando produz mais do que consome. Além disso ele deve ser capaz de engravidar sua esposa e de defender seus dependentes de ataques de toda ordem. No caso, um indivíduo "regressivo" espera somente receber, sem nada produzir. É, nesse sentido, hostilizado entre seus pares, que com freqüência o comparam a uma criança, negando-lhe o direito ao casamento e ao respeito dentro daquela sociedade, com todas as sanções sociais possíveis, negando-lhe o direito à masculinidade: ao negar-lhe o casamento, nega-lhe a existência de mulher e filhos, "dependentes" a quem ele deveria suprir e defender. Assim, nos termos de Gilmore, a construção social da masculinidade surge como uma reação

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da sociedade a uma tendência regressiva inata a qualquer ser humano, e que se fosse levada em conta por cada indivíduo, inviabilizaria a vida social. A masculinidade é uma proposição ambivalente, uma construção cultural baseada nas necessidades do grupo, que se sobrepõe e reage a uma natureza hesitante e renitente. (...) O que a masculinidade coloca é a negação social de um desejo anti-social de fugir aos rigores da cultura do trabalho. (Gilmore, 1994: 98) *

Neste sentido, também Jardim (1991) considera que exista uma associação entre a masculinidade, através do valor respeito, e a autonomia de um homem, manifestada na regra segundo a qual um homem deve pagar a sua própria bebida: aceitar que outrem a pague é considerado uma espécie de ofensa . Também Chodorow (1979) considera que existem diferenças marcantes na construção do senso de identidade masculina e feminina. Para ela, a identidade feminina é atribuída naturalmente à menina, a partir de sua identificação com a mãe, ao passo que a identidade do gênero masculino tem que ser adquirida ou mesmo conquistada pelo menino, num processo bem mais problemático. Para esta autora, na obtenção desta identidade do gênero masculino devem ser levados em consideração quatro aspectos: ...em primeiro lugar, a masculinidade se torna e permanece uma questão problemática para um menino. Segundo, envolve a negação do vínculo ou do relacionamento, principalmente daquele que os meninos consideram como dependência ou necessidade de outro (...). Terceiro, envolve a repressão e a desvalorização da feminilidade tanto no nível psicológico como cultural. Finalmente, a identificação com seu pai normalmente não se desenvolve no contexto de um relacionamento afetivo satisfatório, mas consiste na tentativa de interiorizar e aprender componentes de um papel não compreensível de imediato. (Chodorow, 1979: 73) Para Chodorow, a personalidade masculina é caracterizada por uma espécie de "independência forçada", referente à busca de autonomia por parte dos *

No original: "...manhood is an ambivalent proposition, a cultural construct based on group needs, that overlays and counteracts a hesitant and resisting nature. (...) The manhood pose is the social negation of an anti-social wish to flee the rigors of work-culture."

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meninos. Segundo esta autora, a compreensão da identidade do gênero masculino pelos meninos começa pela negação da identidade do gênero feminino. Os atributos inerentes ao "ser homem", então, são primeiro entendidos como o oposto do que seja "ser mulher", a partir do referencial materno (Chodorow, 1979: 70). Assim, na medida em que relações de dependência são entendidas como sendo identificadas ao gênero feminino, a atitude masculina a esse respeito é a da busca do oposto, ou seja, da individualidade e da autonomia.

3.2.2 A Masculinidade e seu Reverso O aspecto da construção da identidade do gênero masculino a que Chodorow

chama

de

"repressão

e

desvalorização

da

feminilidade"

freqüentemente toma a forma, em grupos de homens de qualquer idade, de uma aversão social à homossexualidade. Sendo o homossexual, em termos simbólicos, um ser híbrido, com corpo masculino e atitudes consideradas femininas, ele representa uma negação dos princípios norteadores da construção da identidade do gênero masculino. Um "desvio" desta natureza em relação a comportamentos estabelecidos provoca uma reação particularmente acentuada em grupos que se caracterizam por valorizar sobremaneira estes aspectos constitutivos da identidade do gênero masculino. Em grupos que se caracterizam pela predominância (por vezes, a totalidade) de homens, o discurso a respeito da construção da identidade do gênero masculino tende a ser mais incisivo a esse respeito, e menos tolerante com o desvio. Klein (1993) denomina "homofobia" a este aspecto do discurso dos fisiculturistas pesquisados por ele, que hostilizavam em público alguns praticantes assumidamente homossexuais. Carvalho (1987) referindo-se ao jogo de bolinhas de vidro praticado por meninos, relata que aqueles meninos que não sabem jogar ou que choramingam e reclamam com facilidade são chamados pejorativamente de "mulherzinha" pelos demais. O uso

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pejorativo deste termo e sua forma diminutiva, como índice de desprezo, ilustram bem a análise de Chodorow acerca da desvalorização da feminilidade como aspecto da identidade masculina. Sob esta lógica, um menino que choraminga e reclama está na verdade pedindo proteção aos demais, pois sua habilidade no jogo não é suficiente para fazê-lo competir em condições de igualdade com eles. Voltando aos termos de Chodorow, este menino pede "proteção" aos demais, isto é, solicita uma relação de dependência por não possuir a autonomia necessária para vencer por seus próprios meios. Sob esta ótica simbólica da masculinidade, portanto, ele não é um homem, é uma "mulherzinha". A seguir, veremos como estas abordagens teóricas se equacionam dentro das academias, na interação com os praticantes.

3.4 A Identidade Masculina no Ambiente das Academias Um local freqüentado de modo quase exclusivo por homens gera quase que automaticamente, na interação entre estes homens, situações que envolvem termos e questões associadas à identidade masculina. Wacquant (1989) refere-se à sala de treinamento de boxe por ele pesquisada como "um espaço eminentemente masculino no qual a intrusão de mulheres é tolerada, mas rara" (Wacquant, 1989: 45). Oates, autor citado por Wacquant, refere-se a esta ausência de mulheres no local de treinos de boxe de modo enfático: O boxe é para os homens, o boxe é sobre os homens, o boxe é os homens. Homens combatendo homens para determinar seu valor, ou seja, sua masculinidade, excluem as mulheres. (Oates, apud Wacquant, 1989: 45, nota 31) *

Entre os praticantes de full-contact observados neste trabalho, podem ser ouvidas com alguma freqüência no seu discurso alusões a uma aversão à *

No original: "La boxe est pour les hommes, à propos des hommes, elle est les hommes. Des hommes qui combattent des hommes pour déterminer leur valeur, c'est-à-dire leur masculinité, excluent las femmes."

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conduta homossexual. Estas alusões, geralmente jocosas, são freqüentemente utilizadas com o objetivo de provocar um companheiro, aludindo à sua pretensa homossexualidade. Certa vez, eu estava, após uma aula de full-contact, mostrando a Guaraci, o professor, o livro recém-publicado que incluía um artigo meu sobre o full-contact. Ele o mostrou para alguns alunos que estavam por perto, um deles examinou o livro e disse: "O nome da tese dele é: 'O que leva um homossexual a se tornar professor de full-contact'". As risadas generalizadas e um arremedo de chute do professor como uma forma branda de vingança completaram o episódio. É de se notar que uma brincadeira a respeito da virilidade de alguém, como foi o caso, não pode, de modo algum, ficar sem resposta, seria "concordar" com o que foi dito. Segundo Duarte, (1986), a agressividade verbal entre grupos de homens funcionaria como uma espécie de "teste contínuo da capacidade de cada um reagir 'como homem'" (Duarte, 1986: 195), isto é, como uma espécie de critério para a definição da identidade masculina junto àquele grupo. A realização desta espécie de desafio à masculinidade de outro homem perante uma platéia é característica em grupos de adolescentes, conforme Leal (1992c). Segundo ela, a alusão à homossexualidade do "ofendido" é uma constante na temática destas ofensas jocosas. Esse tipo de relação jocosa, para esta autora, pode significar uma forma de lidar simbolicamente com a ansiedade decorrente da assunção do papel sexual masculino, o que também inclui o lidar com os próprios impulsos homossexuais presentes no processo de auto-identificação enquanto ser masculino (Leal, 1992c). Análises neste sentido são também desenvolvidas por Suárez-Orozco (1982) em seu trabalho sobre os torcedores de futebol na Argentina. Neste grupo, as provocações entre torcidas centram-se basicamente na insinuação da assunção pelo oponente de um papel homossexual passivo. É de se notar que em todas estas frases de desafio, é considerado "homossexual" apenas quem representa o

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papel passivo. O outro, o "comedor" (geralmente o próprio ofensor) tem por esta via um acréscimo na avaliação social de sua masculinidade por conta da submissão de outro homem à penetração anal simbólica, como se a masculinidade que ele nega ao outro fosse acrescida à sua própria. Ao insinuar uma pretensa homossexualidade do professor, o aluno estava, ainda que brincando, atentando contra a "honra" deste. Nos termos de Pitt-Rivers (1979), o termo "honra" é entendido como "o valor de uma pessoa para si mesma, mas também para a sociedade, (...) é o seu direito ao orgulho" (Pitt-Rivers, 1979: 18). Para este autor, a honra por vezes é tratada como um bem, algo que se for tirado a alguém deve ser restituído. "Deixar uma afronta sem vingança é deixar a própria honra em estado de profanação, o que equivale a covardia" (Pitt-Rivers, 1979:24). A uma ofensa "de brincadeira" corresponde um chute nos mesmos termos, entre risadas. Pode-se supor que, se as circunstâncias fossem "sérias", a ofensa e a agressão física subseqüente também o seriam. A respeito deste tipo de relação jocosa estabelecida entre os praticantes de full-contact fora dos momentos de aula, pode-se dizer que a intenção, mais do que ofender o oponente, é provocar o riso público às custas dele, que terá que, usando dos mesmos meios, retribuir o chiste para reestabelecer a sua posição posta em risco. Esta troca de chistes, de desafios verbais é, por assim dizer, uma relação eminentemente lúdica, ainda que manifeste profundos conteúdos simbólicos. O conceito de "relação jocosa", aplicável a este caso, é definido por Radcliffe-Brown (1959) como ...uma peculiar combinação de amizade e antagonismo. O comportamento é tal que em qualquer outro contexto social ele expressaria e geraria hostilidade; mas tal atitude não é a sério e não deve ser levada a sério. Há uma pretensão de hostilidade e uma real amizade. Posto de outro modo, é uma relação de desrespeito consentido. (Radcliffe-Brown, 1959: 91) *

*

No original: "...a peculiar combination of friendliness and antagonism. The behavior is such that in any other social context it would express and arouse hostility; but it is not meant seriously and must not

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Segundo Freud (1969), a presença de instintos inibidos em um indivíduo, cuja supressão reteve alguma instabilidade, fornecem uma "disposição favorável para a produção de chistes tendenciosos" (Freud, 1969: 166). Assim, uma das maneiras de tratar de um tema potencialmente "perigoso" para um grupo, como no caso a homossexualidade para os praticantes de full-contact, é pela via do humor. A tendência a abordar um assunto preferencialmente através da comicidade manifesta a instabilidade acerca do grau de elaboração deste assunto. Neste mesmo sentido, Brandes (1980) considera os "chistes", os gracejos, como demarcadores de "fronteiras culturais", que soam engraçados para um dado grupo porque referem-se a situações e emoções produtoras de ansiedade compartilhadas por este grupo. Para ele, o humor pode ser considerado uma espécie de "barômetro" que indica certos temas "preocupantes" para um grupo, cuja via de acesso para contornar a ansiedade produzida por estes assuntos é o riso. O riso, segundo este autor, é "um mecanismo de descarga que fornece alívio para uma tensão nervosa" (Koestler, apud Brandes, 1980). Esta definição é similar à elaborada por Freud (1969: 172), que aponta também para o aspecto social da produção dos chistes: é necessário que o(s) ouvinte(s) de um gracejo compartilhe(m) de uma mesma realidade psíquica perante o tema tratado por este gracejo. "Partilhar o riso diante dos mesmos chistes evidencia uma abrangente conformidade psíquica" (Freud, 1969: 174). Se uma determinada situação ou tema traz tensão a um certo grupo, esta tensão é dissipada prazerosamente através das risadas compartilhadas pelos membros deste grupo (Brandes, 1980: 114). Ele cita, entre outros motivos de gracejo dos homens da Andaluzia por eles pesquisados, a infidelidade conjugal e a impotência sexual. No caso dos praticantes de full-contact, o tema "homossexualidade" enquadra-se muito bem

be taken seriously. There is a pretence of hostility and a real friendliness. To put it in another way, the relationship is one of permitted disrespect."

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nesta categoria de "temas preocupantes", que encontra-se manifesto nos gracejos destes praticantes. Em outra ocasião, eu estava na Academia Central entrevistando o professor Daniel a respeito de questões técnicas do full-contact, falávamos da diferença entre "full", "semi" e "light-contact". Um aluno que fazia exercícios abdominais ali perto parou e nos interrompeu, em alto e bom som: "Lightcontact? Isso só pode ser coisa de veado!" Na verdade, muitas modalidades de luta esportiva podem ser praticadas "light-contact", como a modalidade chamada "karatê point", por exemplo, e a observação do aluno, sob o ponto de vista técnico, é irrelevante. Em termos simbólicos, entretanto, o que este praticante está afirmando é que uma luta é tanto mais "masculina" quanto mais direto e real for o combate, novamente construindo a identidade masculina por contraste com a identidade feminina, ou por um seu "equivalente", a homossexualidade, na medida em que esta é tomada como representação de ausência de virilidade. Se lutas "light-contact" são "coisa de veado", lutas "full-contact" são (para aquele praticante, evidentemente) "coisa de macho". Como praticante de full-contact, portanto, o aluno se auto-adscreve nesta categoria de "macho", afirmando em público sua masculinidade. Certa vez, durante uma entrevista com um professor acerca da relação entre diferentes estilos de luta e a conduta dos praticantes, o tema da homossexualidade voltou novamente à baila, desta vez relacionado à prática da dança por homens, numa súbita mudança no rumo do discurso: "O pessoal que faz kung fu é um pessoal que é sempre compenetrado, correto, educado, humilde. No karatê, o pessoal é direto, assim, às vezes até arrogante, mas porque o japonês é um povo assim arrogante, autoritário, então isso aí vem da tua prática, assim como todo bailarino é veado..." (Guaraci, 28 anos, professor de full-contact)

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A insólita mudança de assunto, passando subitamente da natureza das condutas de praticantes de artes marciais para a "veadagem" dos bailarinos traz à tona novamente a oposição "macho/veado", desta vez associada à técnica corporal praticada pelo indivíduo. Em termos de técnica corporal, as técnicas de aprendizado da dança e das artes marciais possuem muito de semelhante, variando basicamente no destino a que se aplicam estas técnicas. A finalidade puramente estética da dança é, neste discurso, associada à conduta feminina, ao passo que o uso pragmático do corpo em um combate, nas artes marciais, é visto como uma atividade masculina. Segundo o discurso deste professor, associandose a prática da dança a uma conduta feminina, "todo bailarino" é visto como um homem com uma conduta feminina, ou seja, um "veado", gíria comum para "homossexual". No outro extremo desta oposição, está o praticante de artes marciais, que, associando-se à conduta "masculina" afirma-se como "macho", associado a valores como "compenetrado, correto, educado" ou mesmo "arrogante e autoritário", nada que ponha em dúvida sua condição masculina. Esta ênfase masculinizante é dada justamente pelo contraste com a expressão "assim como todo bailarino é veado". É de se notar que as modalidades de arte marcial usadas como exemplo não são ingenuamente escolhidas: o kung fu é a modalidade que eu pratico, e os juízos de valor dizem da opinião deste professor a meu respeito. O karatê é a modalidade de onde o próprio professor é originário, de modo que ele próprio se qualifica por esta via como "arrogante e autoritário", adjetivos que, no contraste imediato com o juízo de valor acerca dos bailarinos, adquirem por esta oposição um caráter "masculinizante". Mais uma vez, constróise a identidade masculina por sobre a oposição ao feminino, ou esta sua "variante masculina", a homossexualidade. "Ser homem", neste sentido, é principalmente o "não-ser mulher".

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Outro tema que surge com freqüência nas conversas e entrevistas com os praticantes de full-contact pesquisados neste trabalho, é a afirmação de que a prática do esporte de combate seria para eles uma ocasião de "botar pra fora" uma agressividade que estaria "no sangue". Cabe ressaltar que apesar de recorrente, esta afirmação não é unânime. Muitos praticantes procuram a academia por motivos os mais diversos, embora eu creia que a escolha deliberada por uma modalidade de luta esportiva indica a busca pelo confronto com outros homens, uma maneira de aceitar desafios, correr riscos. Afinal de contas, um bom "condicionamento físico" – motivo para praticar full-contact freqüentemente ressaltado por praticantes deste esporte em entrevistas – também pode ser adquirido caminhando diariamente em um parque... Após o ingresso na academia, a noção, transmitida pelo treinador, do perigo real representado pelo uso indevido das técnicas de combate muitas vezes serve como um freio a uma eventual falta de controle por parte do praticante. Os treinadores sempre procuram impor limites à prática do combate fora do recinto da academia. Percebe-se, entretanto, no discurso de alguns praticantes, um desejo velado de ver o limite ultrapassado, para poder usar do poder adquirido na academia com um bom motivo, que o isente das sanções associadas à prática ilegítima deste esporte, isto é, fora do contexto esportivo. O limite relatado pelos praticantes em geral é o contato físico: palavras não atingem, mas se o adversário "encostar um dedo" no praticante, aí este terá motivo para "desmontá-lo". No caso, o contato físico deliberado por parte de um pretenso adversário configura agressão (ainda que seja apenas um gesto em direção ao oponente), o que justifica o uso da técnica de combate como "legítima defesa". Esta negociação acerca do limite para o uso da técnica de combate fora do recinto da academia fica clara no seguinte depoimento:

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"O professor tenta dar uns toques de conscientização, tipo, 'não usa isto pro mal', ou, se o cara te chamar de pau no cu, tu diz, 'sou pau no cu mas tou feliz, fica na tua'. Agora, se ele encostar o dedo em ti, aí, sim, aí tu desmonta..." (Severo, 20 anos, funcionário de transportadora) O perigo representado pelo uso indevido de técnicas de luta é uma realidade. Um golpe aplicado em um ponto vital do oponente pode causar-lhe a morte, ou, no mínimo, custar ao agressor um processo por lesões corporais. No caso de um eventual processo judicial por lesões corporais, o fato de o agressor ser praticante de alguma arte marcial é considerado um agravante, de acordo com o artigo 129 do Código Penal Brasileiro. No caso deste praticante ser faixa-preta em seu estilo, ele terá seu registro suspenso junto à Federação que o legitimou, impedindo-o de lecionar e participar de competições, uma espécie de "banimento" do mètier das academias. Lutar fora da academia, assim, implica em sanções severas, de que os praticantes têm noção e tentam, em princípio, evitar. Não obstante, o simples fato de saber-se detentor do poder de até mesmo matar um possível adversário usando apenas o próprio corpo parece satisfazer alguns praticantes, que realizam este poder apenas enquanto discurso: "...depois que tu aprende uma arte marcial, uma luta, tu sabe lutar, e tu sabe que tu sabe fazer e o que tu é capaz de fazer. Por incrível que pareça, se tu é consciente, tu até evita de brigar, porque tu sabe o que tu pode fazer com uma pessoa, então tu jamais vai querer fazer aquilo ali." (Lúcio, 30 anos, porteiro) O lado de dentro da academia, desta forma, se torna o local destinado à prática do combate, e um confronto físico fora deste espaço só se justifica em circunstâncias muito especiais. Uma vez dentro da academia, entretanto, todos são iguais, estão ali para lutar, e eventuais lesões decorrentes da luta são invariavelmente consideradas como inerentes à prática do full-contact. A esse respeito, Ballery (1954), falando sobre os esportes de combate, afirma: Do ponto de vista moral, a luta desenvolve a virilidade, a energia, a combatividade, o senso de observação e o espírito de decisão. A

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cortesia faz parte das regras, pois, sem fazer mal ao adversário devese derrubá-lo, provar-lhe que se é momentaneamente mais forte. (Ballery, 1954: 13) *

No caso de um eventual confronto entre amigos, é freqüente o relato de que a amizade é colocada em parênteses durante a luta. No ringue, o que se tem diante de si é um adversário, que deve ser derrubado antes que nos derrube. Na prática do combate, o que conta é a "garra", a capacidade técnica e a resistência dos lutadores. A amizade, via de regra, fica do lado de fora das cordas do ringue: "Ali dentro é cada um por si, no caso eu vou lá e falo com ele: 'Olha, sinto muito, tu é meu amigo, mas ali dentro tu vai ser o meu pior inimigo, depois na rua eu espero que a gente continue amigos...' Amizade acima de tudo, mas dentro do ringue o negócio é outro..." (Salomão, 22 anos, padeiro) Se para lutar com um amigo o combate se dá nestes termos, quando ao combate se acresce o fato de se estar diante de um desafeto, ou de ser uma revanche, caso em que o lutador tenta vencer um combate em que foi derrotado anteriormente, este ímpeto competitivo torna-se ainda mais acentuado, pois à vontade de vencer, acrescenta-se o desejo pessoal de vingança pela derrota sofrida ou por motivos pessoais os mais diversos. Em geral, os professores tentam evitar que lutadores que sejam notórios desafetos entrem no ringue, mas por vezes, uma simples antipatia mútua é motivo para a luta degenerar em uma "briga" dentro do ringue, caso em que a intervenção pronta e enérgica do árbitro se faz necessária, com uma severa admoestação aos infratores. O valor reconhecido como "garra" não pode jamais ser confundido com "raiva". Estes casos de uso do espaço do ringue para "tirar diferenças" com algum desafeto existem, sem dúvida, e quase todos os praticantes conhecem histórias a respeito. Esta, entretanto, não é a regra nos combates e torneios *

No original: "Au point de vue moral, la lutte développe la virilité, l'énergie, la combativité, le sens de l'observation et l'esprit de décision. La courtesie est de règle puisque, sans lui faire aucun mal, il faut terrasser son adversaire, lui prouver que l'on est momentanément le plus fort."

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observados. Os praticantes de full-contact valorizam o fair play como uma condição importante à prática esportiva em geral. Os cumprimentos entre adversários são freqüentes, em lutas e em treinos. A forma do cumprimento varia de acordo com a "origem" do treinador (de acordo com a arte marcial da qual ele é proveniente). Nas academias do professor Guaraci, que antes do full-contact praticava karatê, no início e no fim de cada aula, os alunos realizam um cumprimento em grupo, saudando o professor e o local de treinos. O cumprimento é o mesmo usado em aulas de karatê. Na luta, entretanto, um cumprimento que é praticado com freqüência por todos os praticantes é "bater a luva". O full-contact é praticado com equipamentos de proteção, entre eles as luvas, semelhantes às de boxe. Antes de entrar em combate, no início de cada round, ou após cada interrupção da luta por clinch, knockdown ou outro motivo, os lutadores, esticando um braço ou os dois, tocam de leve as luvas um do outro, uma espécie de "grau zero" do aperto de mão. Desta forma, no sinal para o começo do combate, ou à ordem do juiz para lutar, não se desencadeia um ataque de parte à parte, mas um cumprimento. Após este, os contendores voltam a lutar. É comum, também, ao final de uma luta, antes mesmo de declarar-se o vencedor (no caso de uma decisão por pontos) os dois lutadores abraçarem-se cumprimentando-se pelo combate.

$$$ Foto 13: Cumprimento entre os lutadores antes de um combate.

Em uma tarde de lutas de full-contact promovida pela Federação, entre participantes de diversas academias, uma das primeiras lutas foi entre dois meninos de doze anos, ambos negros. No primeiro round, um dos meninos levou um knockdown (queda sem nocaute), mas se recuperou. No segundo round, este

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mesmo menino, com um chute frontal, derrubou seu oponente, que não levantou até o fim da contagem. Nocaute. O juiz-professor declarou o nocaute para os jurados, levantou o braço do menino vencedor, para os aplausos do público, e, retirando o capacete do menino nocauteado, passou-lhe a mão na cabeça e, discretamente, abraçou-o junto à lateral do corpo, falando-lhe em voz baixa, consolando-o. No combate seguinte, entre dois lutadores mais velhos, de cerca de dezoito anos, após uma seqüência de chutes por cobertura de um dos lutadores, o outro, recuando, esperou a distância certa e, com um direto fulminante no queixo, nocauteou seu adversário. Após a sagração do vencedor, este foi abraçar seu oponente e ambos desceram abraçados do ringue. Consolar o adversário derrotado é considerado uma manifestação de espírito esportivo e grandeza de caráter entre os lutadores. A justificativa dos lutadores para assimilar uma eventual derrota é dada nos termos de um "espírito esportivo", que englobaria quaisquer outros valores que estivessem em jogo. A vitória e a derrota em uma luta são aspectos de um mesmo evento: a vitória de um contendor é a derrota de seu oponente. Entrevistando lutadores que foram derrotados, é freqüente ouvir uma explicação similar à que é dada a uma contusão ou sangramento, ou seja, que a derrota é uma parte integrante do "estar lutando": tanto a derrota quanto a vitória "fazem parte" do full-contact, como de qualquer outro esporte. A possibilidade da derrota é que confere o valor à vitória, o verdadeiro valor em questão é a "valentia" de aceitar o desafio e entrar no ringue.

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3.4 A Competitividade: Jogo e Hierarquização da Masculinidade O full-contact, a exemplo de outras modalidades esportivas, é antes de tudo um jogo. Acredito que o engajamento de homens em disputas e competições tenha uma profunda relação com a constituição de uma identidade masculina, particularmente em nossa sociedade. Assim, após relacionar ao meu tema vários autores que se referem a esta característica competitiva do ethos masculino, desenvolvo alguns aspectos acerca da natureza do jogo, relacionando alguns autores que abordaram este tema. Após estas revisões bibliográficas, estabeleço um vínculo entre a prática de jogos e disputas por homens e a busca por uma "hierarquização simbólica" de valores em princípio alheios aos objetivos imediatos do jogo, como a honra e a masculinidade, por exemplo.

3.4.1 O Ethos Masculino e a Competitividade A prática de disputas e competições pode ser considerada uma característica bastante generalizada do ethos masculino. Em culturas as mais diversas, a afirmação social do "ser homem" passa pela disputa com outros homens, seja do modo mais direto, em uma luta corpo-a-corpo, seja por vias mais sutis, como desafios verbais, torneios de insultos ou apostas em rinha de galos, por exemplo. Vários autores referem-se a esta relação entre a prática de disputas e o reconhecimento social da masculinidade nas mais diferentes sociedades Em geral, a prática de disputas tem lugar privilegiado na infância, e se refere a uma espécie de "treinamento" para as funções da vida adulta. Em estudo sobre o grupo Arapesh das montanhas da Nova Guiné, Mead (1988) refere-se à existência de uma modalidade de relação entre homens chamada de buanyin, que caracteriza-se pelo dever formal de insultarem-se

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publicamente, onde quer que se encontrem, afirmando que esta relação é um "campo de treino quanto ao tipo de firmeza que um grande homem deve ter" (Mead, 1988: 51). Entre os Tchambuli, outro grupo pesquisado por esta autora, também é registrada a competição entre homens pelos favores das mulheres do grupo, não da forma aberta e violenta de outras sociedades, mas de modo sutil e subterrâneo, por meio de intrigas e meias-palavras, valendo-se das relações de parentesco vigentes naquele grupo (Mead, 1988: 253). Mauss (1979), referindo-se ao potlatch praticado no noroeste da América do Norte como um "fato social total", não se esquece de ressaltar seu caráter agonístico, como uma competição por generosidade e nobreza.

16

À

realização de um potlatch está também associado, em um dado momento, como parte das festividades, um torneio de insultos entre os homens que dele participam (Mauss, 1979: 175). Segundo Harris (1993), a participação masculina em expedições guerreiras, na quase totalidade das sociedades tribais, está associada à determinação de um papel sexual masculino, estando a posse e uso das armas reservados aos homens. Para ele, estas sociedades "treinam os homens para o combate através de jogos competitivos, como a luta livre, as corridas e os duelos" (Harris, 1993: 66). Freqüentemente se preparam os jovens para a guerra por meio de lutas "jogadas", com finalidade "esportiva". Em sociedades particularmente belicosas, a referência a essas lutas é um conteúdo presente em seus mitos e narrativas orais. Em um mito Chulupi, grupo habitante da região do Chaco paraguaio, Clastres (1980) relata formas de luta "esportiva". Neste mito, a origem da guerra entre eles 16

O conceito de "fato social total"refere-se a fenômenos sociais que a um só tempo mobilizam toda espécie de instituições de uma dada sociedade: religiosas, jurídicas, morais, políticas, econômicas, etc. O caráter agonístico destes fenômenos faz parte deste "sistema de prestações totais", como no kula trobriandês ou no potlatch norte-americano. Ver, neste sentido, Mauss, 1979.

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e seus tradicionais inimigos, os Toba, deriva de uma luta "esportiva" entre dois jovens, quando os dois grupos eram indivisos. Ao ser atingido por um golpe um pouco mais forte do que o combinado, ou seja, ao "violar a regra", o contendor atingido acusa o golpe desleal e vinga-se atingindo o outro com um pedaço de pau. Do conflito gerado a partir da crescente violência entre os dois contendores, surgiu a guerra entre as duas sociedades, que desde então rivalizam-se mutuamente. A prática de lutas é uma das atividades preferidas deste grupo. Segundo Clastres, ela consiste mais de agilidade do que de força, e seu objetivo é deitar o adversário ao chão, como na modalidade olímpica chamada de "luta greco-romana". Outro mito que se refere a um fato semelhante é descrito por Da Matta (1976). Este autor relata um mito de origem das tribos Timbira segundo o qual a separação deste grupo se deu a partir do conflito decorrente do resultado de uma modalidade esportiva: a corrida de toras. Um dos grupos, derrotado, não se conformou com a derrota e os comentários jocosos decorrentes dela, iniciando uma luta "a sério" que provocou a separação das tribos. Da Matta refere a existência desta espécie de competição, em que um grupo de homens deve carregar uma pesada tora de madeira de um ponto no exterior até dentro da aldeia, como um jogo característico de todos os grupos Jê do Brasil central. Os Apinayé, grupo pesquisado por este autor, realizam esta corrida de toras separando os "times" segundo critérios de idade, de casados/solteiros e associados às metades exogâmicas. Em geral, as corridas estão associadas a momentos rituais de iniciação (Da Matta, 1976: 105). Em seu livro sobre os Nuer, grupo pastoril do Sudão, Evans-Pritchard (1993) afirma que um Nuer luta em duelo sempre que se sentir ofendido, e que eles se ofendem com muita facilidade. No caso de alguém ser desafiado para um duelo, deve aceitá-lo. Uma vez começada a luta, nenhuma das partes pode

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desistir, a menos que uma delas fique seriamente ferida. Neste povo, no caso de alguém se sentir prejudicado em alguma questão, não há outra instância a recorrer que os próprios punhos: os meninos são instados a lutar desde muito cedo. Segundo Evans-Pritchard, tendo aprendido desde pequenos a resolver todas as suas questões lutando, "eles crescem considerando a habilidade de lutar como a realização mais necessária, e a coragem, como a virtude mais elevada" (EvansPritchard, 1993: 162). Lévi-Strauss (1979) relata uma situação de campo em que presenciou o encontro de duas facções rivais do grupo Nambikwara, que, sem estarem abertamente em guerra, provocavam-se mutuamente entre cantos e danças, tendo sido necessário com freqüência apartá-los para evitar uma luta sangrenta. Um Nambikwara manifesta sua antipatia agarrando os próprios genitais com as duas mãos e apontando-os para o adversário, para em seguida, agredi-lo tentando arrancar-lhe o tapa-sexo feito de folhas de buriti, assim como tomar-lhe arco e flechas para lançá-los longe (Lévi-Strauss, 1979: 299). Os exemplos da relação entre masculinidade e competitividade buscados junto a sociedades tribais poderiam ser estendidos quase que indefinidamente. Na sociedade ocidental, em grupos bem mais próximos de nosso convívio, a competitividade também é exacerbada e por vezes exigida socialmente, a aceitação de desafios sendo freqüentemente uma das medidas da masculinidade. Em seu trabalho sobre os "gaúchos", trabalhadores da pecuária extensiva na região dos pampas, Leal (1992b) enfatiza a presença, neste grupo, de diversas formas de desafio entre homens. Estes desafios incluem desde formas corporais, como a dança conhecida como "chula", até formas poéticas, como a "trova", e são consideradas constituintes da identidade masculina naquele grupo.

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A pronta aceitação dos desafios de outros homens reafirma a masculinidade de um sujeito frente aos demais (Leal, 1992b: 12). Na sua etnografia sobre os homens de classes populares que freqüentam os butecos, Jardim (1991) relata diversas formas de competição entre eles, com especial destaque para os "duelos verbais". Segundo ela, Os duelos verbais são uma das formas que os homens encontram de, através da comparação e competição, compartilharem alguns dos significados associados à masculinidade. (...) Responder a um jogo verbal é reconhecer o outro enquanto um igual e, ao mesmo tempo, assumir um papel ativo, ser agressivo, responder na hora ao adversário. (Jardim, 1991: 198) Aranguren (1976), referindo-se a um "sentido agonal da existência humana", acredita que a competitividade possa ser não apenas a dimensão preponderante, mas mesmo "a nota essencial de toda uma concepção de vida" (Aranguren, 1976: 80-81). O homem, para este autor, é capaz de levar esta dimensão de competitividade até o mais abstrato plano intelectual: "que é a dialética senão a luta, a golpes de silogismos, para (con)vencer o adversário?"

*

(Aranguren, 1976: 81). Rapoport (1980) compartilha da mesma opinião, colocando os "debates", juntamente com as "lutas" e os "jogos" como categorias dos conflitos inerentes à conduta do homem. Ao longo da História, a humanidade sempre conviveu com formas complexas de luta competitiva. Ballery (1954) assinala que, no canto XXIII da Ilíada [escrita em torno do século IX a.C., segundo Schüler (1985)] é descrita uma luta entre Ulisses e Ajax, em frente ao exército grego, em homenagem a Pátroclo, amigo de Aquiles (Ballery, 1954: 21). Os jogos olímpicos , realizados 17

*

No original: "El hombre es capaz de llevar su competitividad hasta el mismíssimo y más abstracto plano intelectual: ¿qué otra cosa es la 'dialéctica' sino la lucha, a golpes de silogismos, para (con)vencer al adversário?" 17 Os Jogos Olímpicos da Antigüidade, convém lembrar, eram uma atividade exclusivamente masculina, ao contrário dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Na Grécia, as mulheres sequer podiam assistir aos jogos.

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na Grécia durante cerca de doze séculos, de 776 a.C. até 393 d.C., incluíam modalidades competitivas as mais diversas, como corridas, arremessos e luta. As provas de luta dividiam-se em pugilato ("luta com os punhos") e pancrácio (literalmente, "vale tudo"). Não raro, lutas de pancrácio terminavam com a morte de um dos contendores, já que todo tipo de chaves, fraturas e estrangulamentos eram permitidos pelas regras. Para os gregos daquela época, entretanto, a vitória nos Jogos era um caminho para a imortalidade, uma maneira de "permanecer no pensamento dos parentes e na recordação dos homens, através de êxitos extraordinários" (Durantez, 1987: 8). De acordo com Huizinga (1971), toda luta submetida a regras (e justamente por essa limitação) possui as características formais do jogo. Para ele, a luta pode ser considerada "a forma de jogo mais intensa e enérgica, e ao mesmo tempo a mais óbvia e primitiva" (Huizinga, 1971: 101). Na nossa sociedade, esta relação entre a conquista da identidade masculina e a competitividade também pode ser encontrada, especialmente na infância, quando a demanda social pela afirmação do "ser homem" é maior. Leal (1992b) considera a realização de duelos verbais entre crianças em idade escolar no Brasil como sendo uma forma ritualizada de desafio, uma maneira de afirmar a própria virilidade durante a puberdade, "momento do menino assumir o papel masculino que a cultura espera dele" (Leal, 1992b: 55). A afirmação da masculinidade pela via competitiva, entretanto, não é característica apenas entre crianças. Mesmo entre adultos, se a honra de um indivíduo estiver em jogo, a maneira de defendê-la é enfrentando o desafiante, seja com palavras, num duelo verbal, seja fisicamente, numa luta corporal. Nos termos de Huizinga (1971): A dignidade do indivíduo deve ser evidente para todos e, se este reconhecimento estiver em perigo, ela precisa ser afirmada e defendida pela ação agonística em público. (Huizinga, 1971: 107)

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Aranguren (1976) afirma que "hoje, em nossa civilização, o esporte prima como o exercício por excelência da competitividade agonal" (Aranguren, *

1976: 91). Assim, as diferentes práticas esportivas fornecem em nossa sociedade local e oportunidade para colocar em ação o desejo de competitividade de um indivíduo. Certamente, o esporte não é a única via de manifestação deste impulso agonístico, mas, como veremos a seguir, ele contém em sua natureza todos os elementos necessários para que se ponha socialmente em disputa os quesitos mais diversos. Como veremos mais adiante, uma das formas de "mostrar-se homem" em nossa sociedade é correr riscos, aceitar desafios, em suma: "entrar no jogo".

3.4.2 O Jogo Uma primeira e muito importante visão acerca dos aspectos culturais do jogo foi realizada por Huizinga (1971), no livro Homo Ludens, cuja primeira publicação foi feita em 1938. Muitos de seus conceitos, feitas algumas ressalvas, são utilizados até hoje. Huizinga considera o jogo como um elemento presente na maioria das manifestações da cultura: a poesia, o direito e a guerra, por exemplo, estariam permeados por uma espécie de "espírito do jogo". Segundo Huizinga, o próprio desenvolvimento da cultura se realizaria sub specie ludi, sob a forma de jogo. O conceito de jogo utilizado por ele, entretanto, é passível de críticas. Para este autor, Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como "não séria" e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras. (Huizinga, 1971: 16) *

No original: "Hoy, en nuestra civilización, prima, sobre todo como ejercício de la competitividad agonal, el deporte."

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O fato de Huizinga considerar o jogo como sendo destituído "de todo e qualquer interesse material" coloca fora do âmbito de seu conceito o esporte profissional, considerado por ele uma "corrupção" do espírito do jogo, bem como toda a vasta gama dos jogos de azar, que estão excluídos de sua definição. Além disso, a insistente proposição de que "a menor desobediência às regras 'estraga o jogo'" (1971: 13) não encontra respaldo na realidade, onde freqüentemente se joga ultrapassando o limite da regra, como no caso de alguém "fazer uma falta" no futebol para evitar um gol do adversário. Para isso existem os árbitros e um código de punições previstas para as mais diversas transgressões, ou seja, a transgressão das regras não apenas não estraga o jogo, como inclusive está prevista nestas mesmas regras. Outro trabalho a tematizar o jogo, de modo bem mais completo, no meu entender, é o de Caillois (1990). Em sua análise, Caillois classifica os jogos em quatro categorias básicas: agôn, os jogos de competição; alea, os jogos de azar; mimicry, os jogos de representação e ilinx, os jogos de vertigem. Os jogos de competição, como as diferentes modalidades esportivas, por exemplo, são classificados na categoria agôn, descritos por Caillois como ...um grupo de jogos que aparece sob a forma de competição, ou seja, como um combate em que a igualdade de oportunidades é criada artificialmente para que os adversários se defrontem em condições ideais, suscetíveis de dar valor preciso e incontestável ao triunfo do vencedor. (Caillois, 1990: 33-34) O full-contact e os demais esportes de combate podem ser bons exemplos dessa "igualdade de oportunidades criada artificialmente", pois não só o equipamento de cada lutador deve ser idêntico, como o próprio peso corporal dos lutadores deve estar situado dentro de uma mesma categoria de peso. A perspectiva de Caillois, entretanto, embora mais elaborada do que a de Huizinga, também possui aspectos passíveis de crítica. Com um forte acento evolucionista,

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Caillois peca ao desvalorizar as "sociedades primitivas" quando, mais adiante em seu trabalho, as compara com a "sociedade civilizada". Neste sentido, Turner (1987) comenta que a análise conceitual do jogo de Caillois deve ser valorizada, "desde que se evite seu argumento evolucionista, pois ele desvaloriza as sociedades não-elitistas, que agora talvez tenham muito a contribuir ao curso geral da cultura humana" (Turner, 1987: 128). Geertz (1983) reconhece o valor da análise conceitual do jogo de Caillois, mas assinala o risco de se tomar a vida em sociedade como um jogo. Geertz chama de "analogia do jogo" a esta extrapolação teórica. Decididamente, apesar de ter alguns aspectos em comum, a vida em sociedade é muito mais do que simplesmente um jogo, e a utilização das análises de Huizinga e de Caillois, no meu entender, deve ficar restrita àquilo que é seu objeto, o jogo. 3.4.3 A Hierarquização da Masculinidade O trabalho de Carvalho (1987) acrescenta às reflexões anteriormente referidas de Chodorow (1979) o jogo, fator que considero fundamental na reprodução dos valores associados à identidade do gênero masculino em nossa sociedade. Diversos trabalhos etnográficos que referem-se a grupos de homens e à construção da identidade masculina nestes grupos relatam que, entre homens, o sobrepor-se ao outro em uma disputa traz para o vencedor um incremento simbólico à própria masculinidade. Neste sentido, a prática de disputas e competições pode ser considerada um terreno fértil para a investigação dos valores que compõem o que seja o "ser homem", e é um dos motivos que me levaram a pesquisar a construção da identidade masculina junto a um grupo de praticantes de esporte. Em muitas expressões de uso corrente podem ser 18

18

Ver também, neste sentido, Suárez-Orozco (1982), Gilmore (1990), Leal (1992b e 1992c) e Dundes (1994).

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identificados aspectos desta relação entre o jogo e a virilidade, como na expressão "atleta sexual", aplicada a um homem que apresente um desempenho "atlético" em sua performance sexual. Outra expressão que refere-se a esta forma competitiva da virilidade é "ganhar uma menina", significando conquistá-la. A palavra "ganhar", no caso, indica uma relação com o obter pela vitória alguma coisa que estava em jogo. Note-se que há nestas duas expressões uma forte ênfase à atitude masculina em relação a essa espécie de "jogo". Neste sentido, Magnane (1969) afirma que existiria hoje uma tendência a uma "contaminação (...) do comportamento sexual pelo espírito de competição esportiva" (Magnane, 1969: 155). Desta forma, pode ser notada a ligação entre o jogo e a aquisição e manutenção da identidade masculina, como uma instância privilegiada de observação de valores relacionados aos significados do "ser homem"em nossa sociedade. A partir da análise do jogo das bolinhas de vidro praticado por meninos de Ipanema, cidade no interior de Minas Gerais, Carvalho (1987) identifica uma série de aspectos que compõem a identidade masculina, conforme é entendida na comunidade pesquisada. Para ele, o jogo revela-se como uma forma de treinamento para as futuras atribuições masculinas na sociedade, como a manutenção da honra e a posse e administração do dinheiro. As situações propiciadas pelo jogo simulam, em termos simbólicos, desafios e dificuldades pelas quais um homem deve passar na sua vida cotidiana. Existe, no "jogo da lua", pesquisado por este autor, uma regra segundo a qual o jogador que "cricar" o "coco" do adversário (ou seja, que acertar com a sua bolinha a bolinha de jogar do adversário) ganha imediatamente todas as bolinhas da "lua" (espaço em forma de semicírculo onde cada jogador aposta duas ou mais bolinhas). Por vezes, esta regra reduz o jogo a uma tentativa de "cricar" os adversários sem ser "cricado" por eles, numa manifestação simbólica de evidente conteúdo sexual. Leal (1992c)

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refere-se aos desafios verbais entre meninos de modo similar a Carvalho, isto é, os jogos (no caso, os por ela chamados "duelos verbais") proporcionariam uma oportunidade para a manifestação simbólica de aspectos da construção da identidade do gênero masculino. Nestes desafios entre meninos nota-se muitas vezes a dicotomia estabelecida entre "comer" e "ser comido", isto é, entre tomar o papel ativo e o passivo numa virtual relação homossexual entre esses meninos. O papel ativo, como já foi visto, é sempre identificado com a atitude masculina, sendo socialmente reconhecida como "homossexual" apenas a atitude homossexual passiva. Além dos jogos infantis, a prática de esportes diversos por crianças e adolescentes também representa, por vezes, uma forma de construir socialmente a identidade masculina, podendo-se relacionar os "feitos esportivos" e o desempenho individual em atividades esportivas em geral como possíveis parâmetros para uma "mensuração" da masculinidade entre meninos, uma maneira de instituir uma espécie de "hierarquia" da masculinidade pela via do desempenho individual nas práticas esportivas (Gilmore, 1994: 110). Segundo Gagnon (1981), a valorização social da força física, (mesmo que atualmente o valor "força física" seja cada vez menos necessário nas atividades cotidianas) ainda hoje encontra-se presente na educação dos meninos, freqüentemente reforçadas pelo incentivo paterno a que seus filhos tornem-se fortes e testem-se a si mesmos nas diversas práticas esportivas, competindo fisicamente com outras crianças. Desta noção de competitividade desenvolvida desde a infância surge, segundo este autor, a noção da força física como uma das medidas da masculinidade. Força física e coragem física tornam-se identificadas com força moral e coragem moral, e a determinação de lutar com outros garotos

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pelos próprios direitos é um emblema da masculinidade. (Gagnon, 1981: 142-3)

*

Neste sentido, Klein (1993), que pesquisou indivíduos pertencentes à elite dos fisiculturistas nos Estados Unidos, entende a força física como um "emblema biológico da masculinidade". Para ele, o senso de identidade de um homem provém de alguma resposta a esses "emblemas": a posse de um pênis e de musculatura masculina. Outras manifestações seriam variantes simbólicas. Segundo ele, alardear a respeito do tamanho dos troféus recebidos ou do número de publicações que alguém tenha é, nesse sentido, a mesma coisa que exibir um peito musculoso numa camiseta colante. (Klein, 1993: 34) *

Além da simples obtenção de força física, o engajamento lúdico em práticas esportivas realiza, por assim dizer, uma "ponte" entre as brincadeiras infantis e as atividades "sérias" do mundo do trabalho adulto, possuindo características de ambos os domínios. Cada esporte é organizado em nível mundial por Federações, realizam-se competições internacionais capazes de conferir grande prestígio aos contendores e, em alguns casos, remuneração à altura, tornando-se um caminho possível de realização profissional. Ao mesmo tempo, pode ser uma atividade completamente descompromissada, realizada por pessoas de qualquer idade e geralmente prazerosa, praticada sem qualquer outro fim que o próprio prazer do jogo, como uma partida de futebol na beira da praia, a tradicional "pelada". A prática de esportes, além disso, pode ser associada, conforme as condições sociais em que é realizada, àqueles aspectos da construção da identidade do gênero masculino tratados acima. Afinal de contas, os esportes são *

No original: "Physical strength and physical courage become identified with moral strength and moral courage, and the willingness to fight other boys for one's rights is an emblem of manliness." * No original: "Bragging about the size of grants won or the number of publications one has is the same tjing, in this respect, as showcasing a massive chest with a skin-tight T-shirt."

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uma variante mais "regrada" dos jogos e disputas infantis. Jackson (1990) associa a prática de esportes com a infância e adolescência, "uma etapa da vida de um homem onde a masculinidade é construída e confirmada" (Jackson, 1990: 207). Este autor descreve a sua experiência nos esportes como carregada de valores socialmente atribuídos à conduta masculina, como a coragem, a determinação e o estoicismo. Segundo ele, para que um atleta seja bem-sucedido, deve desenvolver uma personalidade bastante determinada, que o encorage a ver seu corpo "como uma ferramenta, uma máquina ou mesmo uma arma utilizada para derrotar o oponente" (Jackson, 1990: 210). Este autor acentua que a valorização do caráter 19

agonístico nos esportes está relacionada com a reprodução de valores considerados masculinos. Segundo ele, estes valores são códigos sociais derivados da literatura épica, que associa a "honra masculina heterossexual" e a virilidade de um homem à sua prova e defesa pública através de competições ou combates contra seus rivais (Jackson, 1990: 218). Como veremos mais adiante, este é exatamente o ponto onde se insere a identidade masculina nos esportes de combate, ou seja, na aceitação pública do desafio, no pôr-se à prova contra outro homem perante um público/platéia. Na verdade, a prática de esportes se presta à aferição de um determinado valor colocado em questão, conforme a modalidade esportiva. A vitória será do mais veloz, se for disputada uma corrida; do mais forte, se for uma prova de halterofilismo; do mais hábil lutador, se for um combate. Segundo Caillois (1990), o interesse de uma competição esportiva para os contendores é o "desejo de ver reconhecida a sua excelência num determinado domínio" (Caillois, 1990: 35). A prática do esporte apresenta-se, desta maneira, como a forma por excelência para a manifestação pública do valor pessoal. Para Gagnon (1981), a força física e seu uso através da prática do combate corpo-a-corpo (esportiva ou 19

Ver também, neste sentido, Magnane, 1969 e Wacquant, 1989.

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não) e de outros esportes competitivos seria uma maneira de criar uma espécie de "hierarquia de poder entre os homens". Em relação ao mesmo tema, Lévi-Strauss (1976) refere-se ao jogo como uma atividade "disjuntiva", isto é, ele resulta na criação, pelos fatos do jogo, de uma "divisão diferencial" entre os jogadores. No início de uma partida, os competidores encontram-se em igualdade de condições. Quando esta chegar ao fim, os participantes estarão distinguidos entre vencedores e perdedores (Lévi-Strauss, 1976: 54). Cria-se assim uma hierarquia de valor num dado domínio entre os adversários, ainda que temporária. Para Gilmore (1994), a identidade do gênero masculino está geralmente associada a uma espécie de "escala" onde pode-se "hierarquizar" simbolicamente a masculinidade de um indivíduo em relação a outro, de acordo com padrões variáveis de uma sociedade a outra (Gilmore, 1994: 110). Assim, a prática esportiva em geral pode ser considerada uma forma de hierarquizar simbolicamente a masculinidade dos praticantes envolvidos. Em relação especificamente aos esportes de combate, existem aspectos envolvendo esta situação de vitória/derrota que tornam mais "literais" tanto uma quanto a outra. Nesse sentido, Parlebas (1986) realiza um inventário das diferentes categorias referentes aos por ele chamados "duelos esportivos". Neste sistema se enquadram a maioria dos esportes. Após uma primeira divisão entre esportes individuais e esportes de equipe, Parlebas dispõe os esportes individuais em um eixo crescente de simbolização acerca do dano físico real ao oponente. Num extremo estariam os esportes de combate como o kendô e a esgrima, modalidades com o uso de arma, além de modalidades desarmadas, como a luta greco-romana, o judô e o boxe. No outro extremo, estariam os duelos com projéteis, em que o dano ao adversário é simbolizado pelo toque do projétil em seu "território", como o tênis e o ping pong, sem qualquer contato físico entre os contendores. Nos esportes de combate, com ou sem armas, o objetivo a ser

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atingido é o corpo do oponente, esta é a regra fundamental destas modalidades esportivas. O objetivo do lutador, do boxeador ou do esgrimista é o de derrubar seu adversário, literalmente nos esportes de combate, simbolicamente hoje, na esgrima. (Parlebas, 1986: 171-2) *

Para este autor, a lógica interna dos combates singulares é uma lógica de destruição real ou simbólica do corpo do adversário. O sistema de pontuação se baseia de modo inequívoco sobre a demonstração direta desta superioridade corporal: a vitória é dada ao maior número de toques no corpo do oponente (como na esgrima e kendô), por queda, estrangulamento, projeção ou imobilização (como no judô ou jiu-jitsu) ou por colocar o adversário fora de combate, por nocaute (como no caso do boxe e do full-contact).

$$$ Foto 14: Um dos contendores estirado no chão: knockdown.

Em função do código do jogo, hoje em dia a destruição do corpo do adversário não é mais do que simbólica, e para tanto, são utilizados os mais diversos artefatos de proteção, como, no caso do full-contact, luvas, botas, caneleiras, protetor de dentes, etc. O conteúdo da derrota numa contenda esportiva como uma "morte simbólica" do oponente, entretanto, continua presente em muitas práticas esportivas. Diz-se, por exemplo, de um time de futebol desclassificado para as finais de um campeonato: "Nadou, nadou e morreu na praia". Nesse mesmo sentido, Lévi-Strauss (1976) também afirma que, conforme diversos mitos, ganhar no jogo é, de uma forma simbólica, "matar" o *

No original: "L'objectif du lutteur, du boxeur ou du bretteur est de terrasser son adversaire, littérallement en sports de combat, symboliquement aujourd'hui en escrime."

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adversário (nos mitos, este conteúdo aparece muitas vezes de forma literal). No caso dos esportes de combate, uma derrota por nocaute pode representar de modo quase literal este conteúdo simbólico inerente ao espírito do jogo: por vezes, um dos lutadores fica estirado no piso do ringue, inconsciente da vitória de seu oponente.

$$$ Foto 15: Uma derrota por nocaute, Academia Pialo.

A prática de esportes de combate pode ser relacionada a alguns aspectos que envolvem a construção da identidade masculina entre os participantes. Em um combate, a derrota do oponente, uma espécie de "morte simbólica" deste, não implica automaticamente na perda dos seus atributos masculinos, desde que se seja derrotado lutando bravamente. É freqüente o comentário entre os assistentes de um combate de que determinado lutador é "valente". Em geral, esta qualificação se aplica ao lutador derrotado, que, mesmo com absoluta inferioridade técnica em relação ao seu oponente, não foge ao combate, e, lutando, tenta evitar o nocaute. Para este lutador, terminar a luta "de pé" (ou seja, garantir uma derrota "por pontos") já é em si uma espécie de vitória, sua "honra" e fama de "valente" estão asseguradas. Para o vencedor, a glória será tanto maior quanto mais qualificado e respeitado for o seu oponente. Leal (1992b) refere uma afirmação aos "gaúchos" por ela pesquisados que pode ser aplicada com propriedade neste caso: "nesta cultura, um homem será sempre mais homem quando derrotar um outro homem" (Leal, 1992b: 12). Para Pitt-Rivers (1979), o vencedor em uma disputa em que o valor "honra" esteja envolvido vê sua reputação realçada socialmente pela humilhação do vencido (Pitt-Rivers, 1979: 21). Gilmore (1994), referindo-se ao grupo Mehinaku do Brasil central,

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ressalta a importância das lutas esportivas realizadas no centro de suas aldeias. Para Gilmore, a luta realizada por eles é um "quadro simbólico de referência" pelo qual um homem pode demonstrar seu valor perante seus pares. Por simbolizar todas as outras habilidades, a habilidade na luta é, sobretudo, a medida de um homem e uma arena simbólica para sua auto-promoção.(...) Entre os Mehinaku, a derrota e a vitória são, portanto, muito mais do que bilhetes de uma loteria inconseqüente; a luta tampouco é apenas recreação. Os combates indicam o valor de um homem como um adulto atuante e são sinais indeléveis de seu potencial. (Gilmore, 1994: 89-90) *

Assim, pode ser visto como através de uma prática esportiva podem ser traçadas divisões hierárquicas acerca da identidade masculina, uma espécie de ranking simbólico da masculinidade. Após esta revisão bibliográfica sobre a relação entre competitividade, jogos e hierarquização da masculinidade, passo a analisar o universo dos praticantes de full-contact à luz destas questões, a respeito da forma que tomam neste meio as manifestações simbólicas de virilidade relacionadas à prática deste esporte, tanto no discurso dos praticantes como nos eventos relacionados aos combates.

3.5 Uma Semântica da Virilidade Entre os praticantes de full-contact, a constituição deste ranking simbólico decorrente do desempenho individual no combate enseja uma valorização de si em relação à sociedade envolvente, sendo freqüente a alusão a "andar na rua" ou "sair pela rua" aplicando os conhecimentos adquiridos na *

No original: "Because it symbolizes all other skills, wrestling ability is, above all, the measure of a man and a symbolic arena for self-promotion. (...) Among the Mehinaku, defeat and victory in sports are therefore more than tickets in an inconsequential lottery; nor is wrestling simply a recreation. The contests indicate a man's worth as a functioning adult and are undelible signals of his potential."

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academia. No caso, o "andar na rua" significa sair em público, fora do espaço restrito do interior da academia. Em entrevista, alguns praticantes referem que a prática do esporte de combate confere a oportunidade do lutador pensar "ser mais do que o outro" em função de dominar melhor as técnicas de combate de modo a derrotar a este "outro" no caso de um eventual confronto. Em geral, estas afirmações vêm acompanhadas da negativa dos entrevistados em pensarem a si mesmos desta forma, valorizando a necessidade de ser humilde. A verbalização deste sentimento, entretanto, ocorre de modo recorrente, conforme o exemplo abaixo: "...eu pratico Full-Contact porque me sinto bem com isso, não pra mim sair agredindo os outros na rua nem pra mim ficar dizendo: 'Ah, eu sou mais do que tu, tu é mais um otário'". (Alexandre, 22 anos, auxiliar de escritório) Outra expressão usada neste mesmo sentido de sobrevalorização de si decorrente da excelência na prática do combate é "ser o cara". O fato de um indivíduo dizer que "é o cara" indica que este se diferencia do resto das pessoas de um modo "individualizante", ele não é "um cara", ele é "o cara". Um exemplo do emprego deste termo no discurso dos praticantes é dado a seguir: "Eu faço full-contact pra me sentir bem, é um hobby. Tem três tipos de pessoa, um que faz luta pra ser o cara, outro que faz luta pra campeonato, pra ser o campeão e outro que faz pra se sentir bem." (Salomão, 22 anos, padeiro) A eventualidade do uso do combate dentro do ringue para obter uma sobrevalorização da própria masculinidade à custa do "vexame" do oponente que seja um desafeto, ou seja, que dentro do ringue coloquem-se em disputa outras questões além do simples confronto esportivo é relatada no seguinte depoimento, em que o praticante considera a possibilidade de encontrar-se em um campeonato com um seu desafeto:

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"...num campeonato, eu esperaria pegar o cara numa luta, aí eu dava o troco, claro que dentro das normas, dentro da regra, agora, se o cara disse isso, isso e isso, e o confronto é num campeonato, eu não vou poupar ele, se tiver que dar um vexame, dar um nocaute nele na frente de todo mundo no primeiro assalto, eu vou dar, certamente." (Severo, 20 anos, funcionário de transportadora) A realização de um combate para um lutador, entre outras coisas, representa uma oportunidade de demonstrar publicamente aspectos socialmente valorizados na construção da identidade do gênero masculino, como a coragem de correr riscos, já que, ao entrar no ringue, a possibilidade de ser derrotado em um combate é sempre real e presente. Existem muitos casos em que um lutador estava sendo surrado e, num golpe feliz, acertou o queixo de seu adversário e nocauteou-o. Então, na medida em que o risco de ser derrotado está sempre presente, é interessante para um lutador buscar sempre adversários mais qualificados do que ele, pois uma eventual derrota nada mais é do que a confirmação de um prognóstico já esperado, o favoritismo era do adversário. Uma vitória contra um lutador "superior", entretanto, confere ao vencedor um grande aumento no seu prestígio, além de valiosos pontos no ranking de sua categoria. O fato de um lutador "não escolher adversários", ou seja, aceitar qualquer luta que se lhe apresente, freqüentemente aparece no discurso dos praticantes como um motivo de orgulho, e pode ser entendido como um índice de masculinidade. Em um eventual torneio, o fato de um lutador recorrer à comissão organizadora para negociar um adversário mais "fácil" é considerado "pedir o penico", ou seja, colocar-se sob a dependência de outrem, assumindo uma postura "infantil" que não combina com a virilidade esperada de um lutador pelo público e pelos colegas. Assim, a conduta "masculinizante" é justamente o contrário, ou seja, "encarar qualquer um". Sob a ótica da identidade masculina, é até mesmo preferível buscar adversários ainda mais qualificados.

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A esse respeito, é bastante ilustrativo o comentário de um praticante de full-contact, poucos dias antes de ser derrotado por nocaute técnico no primeiro round de sua primeira luta profissional. A entrevista foi concedida enquanto o praticante ainda era detentor de uma carreira invicta de dez lutas como amador e um título estadual. Nesta sua primeira luta como profissional, ele bateu-se (e foi, literalmente, batido) com o campeão brasileiro profissional de full-contact, versão WAKO: "Eu sempre gostei de lutar com cara melhor que eu, um cara que tem fama, já, porque aí, vá que dê uma casualidade de perder a luta, não vai 'ficar xarope' ['pegar mal'], agora, se tu ganhar, melhor ainda. Acho que é por isso que eu subi tão rapidamente, os adversários que eu peguei sempre estavam acima, sempre cara com fama. Eu luto há quatro anos e já tenho este título aí, agora tô começando no profissional." (Carlos, 20 anos, cobrador de ônibus) A busca da glória esportiva leva um lutador que deseja se profissionalizar a procurar sempre adversários mais qualificados, lutas mais difíceis, para que o valor atribuído a cada vitória seja proporcional ao risco corrido em disputá-la. Uma derrota perante um adversário muitíssimo mais qualificado torna-se quase inevitável para quem procura desafios sempre crescentes ao seu desempenho no ringue. A esse respeito pode ser traçada uma associação, guardadas as diferenças, entre a atitude destes lutadores em busca da profissionalização e o modus vivendi dos grupos de guerreiros descritos por Clastres (1980). A partir da constatação da guerra como um fato universal das sociedades primitivas, este autor entende que a função da guerra nestas sociedades é a de manter a identidade destes grupos como uma "totalidade una", um grupo coeso e indiviso, sem estratificação social. Clastres descreve e analisa uma série de sociedades onde a função da guerra é exercida em tempo integral por um grupo de homens, que dela fazem seu modo de vida. O que move estes guerreiros não é o desejo do poder

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dentro destes grupos, mas a busca da glória alcançada pelos feitos militares, cada vez mais audaciosos. A busca de suplantar seus pares em feitos gloriosos leva estes guerreiros invariavelmente à morte em combate. Assim, para este autor – no que pode ser traçado um paralelo com a análise de Chodorow –, o modo de vida do guerreiro opõe-se de modo radical à condição feminina. As mulheres nestas sociedades seriam "seres para a vida", que concebem, fazem nascer e conservam vivos os filhos destes grupos, enquanto que os guerreiros seriam "seres para a morte", onde o objetivo de sua existência é a morte dos inimigos, de modo cada vez mais audacioso e destemido, que acaba conduzindo-os a uma morte prematura. Pode ser notado que na sociedade primitiva o preço da audácia crescente perante o inimigo é a morte do guerreiro. No caminho do full-contact profissional, o "preço" é um provável nocaute no primeiro assalto, morte simbólica de um dos contendores, estirado no chão, enquanto o adversário tem seu braço levantado pelo juiz sob os aplausos da torcida. Pode ser percebido um conteúdo simbólico no fato do árbitro levantar o braço do vencedor. O braço é, nos esportes de combate desarmado, a própria arma do lutador, que com um direto certeiro pode nocautear o oponente, "matálo", em termos simbólicos. A demonstração pública desta vitória é dada pelo árbitro, que levanta o braço do vencedor perante o público e mantém baixo o braço do derrotado. A honra de um lutador se constrói na mesma medida da desonra do outro, ou mais do que isso, à custa desta desonra. A "arma" erguida em público: um símbolo de virilidade incontestável. O derrotado com os seus braços/armas pendentes: uma manifestação simbólica da sua impotência/morte.

$$$ Foto 16: A assinalação da vitória.

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Sob este mesmo prisma, pode ser visto o sinal pelo qual é entendido que um lutador está em condições de continuar o combate após um knockdown, uma queda que não resulta em nocaute. Ao cair um dos lutadores, o árbitro afasta o contendor que derrubou o oponente para um canto neutro do ringue. Inicia, então, a chamada "contagem protetora", em voz alta, de um até oito. Neste intervalo de tempo, o lutador derrubado deve levantar do chão e manifestar ao árbitro suas condições de permanecer no combate, levantando as luvas até a altura do rosto, ou seja, mostrando que a sua "guarda" está "alta". Não aquela demontração incontestável de superioridade, o braço erguido do vencedor, mas a recusa em ficar no chão, o desejo de prosseguir até o fim, manifestado pelo braço/arma erguido, em posição de voltar ao combate. A recusa de um lutador em abandonar o combate contra um adversário mais qualificado, tentando levar a luta para uma derrota por pontos ou mesmo "vingar-se" do knockdown nocauteando o oponente, é valorizada pelos espectadores que, como já foi visto, interpretam como "valentia" esta atitude. Levantar após um knockdown e prosseguir de pé até o fim da luta significará na certa uma derrota por pontos, mas concede ao lutador que soube superar a queda a fama de "valente", um valor de ordem moral: independente da derrota no combate, sua "honra" está assegurada.

$$$ Foto 17: A "contagem protetora".

Para Gilmore (1994) – referindo-se aos jovens lutadores das ilhas Truk, no Pacífico Ocidental –, embora a vitória em um combate seja importante, o que marca a identidade masculina de um homem é o aceitar prontamente os desafios e mostrar-se indiferente à dor. Para os membros daquele grupo (e, neste

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sentido, também para os praticantes de full-contact), não importa se um homem ganhe ou perca uma determinada luta, se um homem porta-se bravamente no calor do combate, seu apelo à masculinidade fica assegurado, simultaneamente mantendo por sua força a reputação de seu grupo. (Gilmore, 1994: 67) *

A propósito do simbolismo da "guarda", ou seja, a defesa realizada com os braços erguidos juntos em frente ao rosto e ao abdômen, pode ser notada uma relação entre a prática do esporte de combate e a dicotomia "comer/ser comido" freqüente nos duelos verbais relatados por Leal (1992b). Para atingir o seu oponente, um lutador deve "entrar" em sua guarda, desviando o golpe da defesa do adversário, por exemplo, ameaçando um cruzado de esquerda que fará o adversário erguer a sua guarda para em seguida "entrar" por baixo com um uppercut.

$$$ Foto 18: Cena de um combate, Academia Pialo. A "guarda alta" protegendo o lutador.

É de se notar que em uma combinação de golpes com ambos os braços como a descrita acima, o lutador que estava no ataque arriscou-se a ser nocauteado, pois no momento do ataque estava com a sua própria guarda completamente aberta, preocupado apenas em "entrar" no oponente. Poderia ter sido surpreendido por um contra-ataque e ter perdido a luta. Assim, em um combate, os lutadores devem buscar atingir o corpo do adversário sem deixar que este o atinja: uma espécie de "dar pau sem levar pau". Muitas expressões verbais referentes à luta carregam um sentido sexual bastante acentuado, e são de uso comum mesmo fora do métier das academias de arte marcial. Diz-se de um *

No original: "...if he acquits bravely in the heat of the combat, a man corroborates his claim to manhood, simultaneously bolstering his group's reputation for strength."

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lutador que foi duramente golpeado em um combate, ou nocauteado, que ele "levou um pau", ou "tomou um cacete", enquanto que o vencedor deste combate hipotético "deu um pau" no seu oponente. Um soco aplicado com energia é chamado de "porrada" e se um lutador "toma uma porrada", ou seja, se o golpe aplicado pelo oponente efetivamente "entra" em sua guarda, ele fica em uma situação difícil no combate, provavelmente "se fodendo" no final. Em um combate, quando um lutador "toma uma porrada", uma das maneiras de evitar a seqüência do ataque adversário é jogar o próprio corpo por sobre o oponente, agarrando-o com ambos os braços, o chamado clinch. Além de fornecer ao lutador que recorre a este expediente preciosos segundos para respirar e se recuperar do golpe sofrido, é ainda uma maneira de cansar o adversário com o peso do próprio corpo lançado por sobre o dele. O clinch ou "abraço", entretanto, apesar de tolerado pelas regras é muito mal visto pelos praticantes e espectadores, que o consideram uma forma de "fugir à luta", algo muito próximo da covardia. Um dos professores entrevistados afirmou que sempre orienta seus alunos a procurarem o combate até o fim, mesmo que eles acabem sendo derrotados: "Aqui eu treino pra fazer os caras técnicos, não é aquela pauleira, atropelado, nem agarramento, disso aí eu nunca gostei. Eu sempre falo pra eles: 'se tiver que lutar e perder, vai perder lutando, não se agarrando ou fugindo'". (Daniel, 43 anos, professor de full-contact) Tentar prorrogar o desenvolvimento desfavorável de uma luta recorrendo ao "agarramento" (termo utilizado por este professor) ou fugindo do combate é para ele uma atitude desonrosa. Em outros casos, a própria masculinidade do lutador parece ser colocada em dúvida se ele resolve recorrer ao clinch. Cabe notar que o termo "agarramento" é também sinônimo de contato físico voluptuoso, "bolinação", o que, entre dois homens, seria uma prática

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homossexual. No depoimento de outro professor, que relatou uma de suas experiências de combate, o seu próprio treinador incitava os brios dos lutadores acusando-os de homossexuais caso recorressem ao clinch: "...quando a gente cansava e agarrava o cara [clinch] ele dizia: 'Mas que bichona, se abraçando! Luta, rapaz, que eu quero ver sangue!' – e isso que ele era o juiz da luta..." (Nicolau, 44 anos, professor de full-contact) Assim, uma eventual derrota de um lutador não representa risco à sua reputação de "valente" (que pode ser traduzida por "valoração da identidade masculina"), desde que ele "perca lutando", ou seja, devido ao melhor desempenho do adversário.

$$$ Foto 19: Um clinch

Perder uma luta fugindo ao combate ou tentar evitar os golpes do adversário "se agarrando" nele (o que, ao fim e ao cabo, também é uma maneira de "fugir da luta") não só pode ser identificado como "covardia" como também pode comprometer, de modo simbólico, a própria identidade masculina do lutador.

3.6.1 Sobre os Valores "Força" e "Técnica" É bastante comum ouvir nas entrevistas com os lutadores e professores de full-contact alusões a dois valores considerados necessários a um bom lutador: "força" e "técnica". Como já foi referido anteriormente, é relativamente comum, em torneios de full-contact, haver premiações especiais para o atleta mais "técnico" do torneio e para o mais "competitivo", ou seja, aquele que for mais dotado de "garra".

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Essas categorias êmicas, consideradas complementares, na verdade englobam, cada uma, diversos outros atributos, possibilitando uma bipartição dos atributos considerados positivos para um lutador de full-contact pelos praticantes pesquisados. Sob a categoria "força" encontram-se associados os valores ligados mais diretamente à corporalidade: não só a "força bruta", mas também características como a resistência física, a capacidade de "assimilação" – velocidade com que o lutador se recupera de um golpe sofrido –, e o valor conhecido como "garra" – tenacidade e determinação do lutador em buscar a vitória no combate, também chamada de "força de vontade". Já a categoria "técnica" engloba os valores associados ao domínio da mente, como a inteligência, a esperteza, o conhecimento de grande número de golpes e a eficiência em aplicá-los com velocidade e precisão, ou seja, a aplicação dos conhecimentos adquiridos ao próprio corpo tende a torná-lo mais ágil e veloz. É interessante, neste sentido, a crença, bastante difundida entre os praticantes, de que o excesso de exercícios físicos de musculação – comumente conhecidos como "puxar ferro" – tornam os músculos "lentos". Neste caso, a busca de um acréscimo no valor "força" por si só, sem a presença da "técnica", produziria um efeito inverso ao esperado, tornando o corpo, apesar de forte, lento. Se se considerar que a sagacidade e a esperteza são demonstrações de velocidade de raciocínio, associadas ao valor "técnica", a sua versão "corporal" é a velocidade e precisão nos golpes, fintas e esquivas. Um corpo que seja "lerdo", neste sentido, seria o equivalente corporal de uma pessoa sem esperteza, "burra", por assim dizer. Estes dois valores podem ser relacionados a dois conjuntos de pares opostos, de modo a buscar categorias mais abrangentes: numa primeira instância, pode-se associar força/corpo e técnica/cabeça. Jardim (1991), em sua etnografia

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acerca dos homens freqüentadores de butecos, relata categorias similares. Curiosamente, os termos êmicos são exatamente os mesmos para significar a diferença de uma para a outra categoria. Para ela, a "força" e a "técnica" são duas vias complementares pelas quais ocorre a auto-percepção enquanto ser masculino. Estes valores encontram-se particularmente evidentes, segundo ela, na leitura que seus pesquisados fazem de jogos de futebol. Cabe notar, mais uma vez, a relação entre práticas esportivas e sistemas simbólicos envolvendo a masculinidade: Entre os homens, o futebol evoca uma habilidade baseada na força física dos jogadores e na técnica. (...) Estes são atributos que os homens entendem que devem possuir e adquirir para construir sua masculinidade socialmente. (Jardim, 1991: 188) Num segundo movimento de categorização, proponho a associação do binômio força/técnica ao conhecido binômio natureza/cultura. Assim, o grupo de valores representado pelo termo "força" pode ser associado ao âmbito da "natureza", enquanto o termo "técnica" pode ser associado à "cultura". A relação entre "força" e "natureza" pode ser melhor entendida a partir dos outros termos a ela associados. Por exemplo, o atributo "garra", que em um sentido significa persistência, vigor e determinação, em outro, refere-se à unha forte e recurvada de certos animais, como as aves de rapina, que tem a função de "agarrar" a presa. Igualmente, o termo "raça", empregado em geral no mesmo sentido de "garra", possui também fortes conotações biológicas, inclusive estando associado a classificações de animais, como cavalos, cães e gatos. A relação dos atributos da "técnica" com o âmbito da cultura está particularmente ligada ao "uso da cabeça", referindo-se a atributos como a inteligência, velocidade – do corpo e da mente – e conhecimento. A dicotomia força/técnica encontra-se por vezes relacionada a outros temas, embora me pareça sempre refirir a idéia de um trânsito, de um movimento

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cujo desenvolvimento progressivo, partindo do domínio da "força", encontra ao final o domínio da "técnica". Considero este processo similar à realização de um trânsito entre o domínio da natureza e o da cultura. No seguinte trecho de entrevista, estes aspectos ficam bastante claros: "...a diferença do amador pro profissional é muito grande. A qualidade de luta é muito superior no profissionalismo. Enquanto o amador é um lance em que tu usa mais força e raça, no profissionalismo, não, no profissionalismo tu usa a técnica e a cabeça, tu luta com a cabeça, então tu não te atira pra ganhar a luta logo, o profissional luta com a cabeça, é muito inteligente. Eles não largam golpe em vão, eles entram só na boa. Só na boa e são uns experts, são profissional, né, a diferença é essa, o profissional tem que usar muito a cabeça." (Carlos, 20 anos, cobrador de ônibus) Neste trecho, fica clara a distinção entre as categorias "amador" e "profissional" do full-contact segundo o praticante. O que identifico por sobre a leitura direta deste discurso é essa noção de um processo, no qual o "amador", iniciante na prática do combate, contando apenas com os atributos conferidos pela "natureza", como a "força", a "garra" e a "raça" vai, com o tempo, aprimorando-se na prática do combate, adquirindo "técnica". A aquisição dessa "técnica" por parte do lutador implica em utilizar os atributos da mente no combate, em "usar a cabeça" e "lutar com inteligência". O aprendizado da "técnica" vai aprimorando a qualidade do lutador, vai dotando-o de "cultura" até que ele possua os atributos da "técnica" em ordem de fazer dele um "profissional". Desta forma, o processo de aprendizado de uma técnica de combate pode ser considerado como um trânsito entre o domínio da natureza e o domínio da cultura, mediado pelo ensinamento, na academia, das técnicas de combate. Estas técnicas são, em última instância, um conhecimento de que o professor é o detentor legítimo: por meio dele, em suas aulas dentro da academia, realiza-se o trânsito de um domínio para o outro. As faixas coloridas atadas à

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cintura dos praticantes, neste sentido, são indicadores da posição relativa de cada lutador neste processo de culturalização da natureza.

3.6 Ringues e Rinhas, Galos e Goleiras: a masculinidade posta à prova Em muitos sentidos, o universo das artes marciais e esportes de combate pode ser comparado com outros domínios relativamente conexos, e com alguma freqüência abordados por trabalhos de cunho antropológico, como o universo das rinhas de galo e o complexo mundo do futebol. Os aspectos esportivos/lúdicos que perpassam estas atividades são em larga medida equivalentes, desde que, é claro, seja feita a transposição da natureza dos contendores – galos, nas rinhas e homens, nos esportes citados. Além disso, os aspectos de natureza simbólica envolvendo a constituição da masculinidade são basicamente os mesmos nestes universos, justificando a constituição de um paralelo entre estes domínios. A seguir, farei uma breve abordagem paralela destas atividades, sob o prisma da construção da identidade masculina. Após relacionar e comentar as abordagens que diferentes autores fizeram do tema da masculinidade relacionada a rinhas de galo e jogos de futebol, retomarei alguns dos temas tratados anteriormente, confrontando-os com algumas abordagens destes autores. As brigas de galo, também chamadas rinhas, já foram objeto de diversos estudos antropológicos, como o de Geertz (1978), Teixeira (1992), Leal (1989, 1994), Cook (1994) e Dundes (1994). Consideradas uma atividade de origem extremamente antiga, as rinhas de galo possuem apreciadores nos mais diversos países, e são com freqüência associadas a uma forma simbólica de lidar com aspectos da construção da masculinidade, e podem ser relacionadas sob

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diversos aspectos à prática de esportes de combate, como o full-contact e o boxe, por exemplo. Teixeira (1992), descrevendo as rinhas de galo no Brasil, freqüentemente compara aspectos da rinha com a prática do boxe. Geertz (1978) também assinala as semelhanças do tratamento dispensado a um galo ferido no intervalo de um combate à assistência prestada pelo treinador ao seu boxeador entre dois rounds. Os paralelos, na verdade, são muitos, e não apenas de ordem simbólica. Assim como no boxe, os galos são treinados antes de entrar no rinhadeiro, com exercícios para fortalecer as pernas e asas, além de "lutas simuladas" para acostumá-los com o combate. Por ocasião de um combate, os dois galos contendores devem ser de peso semelhante, de modo a equilibrar as chances de cada galo, assim como na maioria dos esportes de combate. À semelhança do full-contact, onde os lutadores revestem seu corpo de equipamentos de proteção, usados principalmente para proteger os punhos e pernas do atacante, "armas" usadas na luta, assim também na rinha de galos são aplicados "bicos de aço", não como armas, mas como uma proteção aos bicos dos galos, que de outra forma se quebrariam facilmente durante o combate. O regime da luta também é similar ao de um esporte de combate, com períodos de luta alternados por intervalos para "recuperar" os contendores das vicissitudes do combate. A principal semelhança, entretanto, e a que me interessa de modo particular é no nível das relações simbólicas envolvidas nos combates, principal dimensão abordada pelos trabalhos antropológicos referidos. Segundo Geertz (1978), as brigas de galos observadas por ele em Bali denotam grande parte do ethos balinês, do mesmo modo que o ethos americano pode ser visto num campo de beisebol ou em torno de uma mesa de pôquer. Para Geertz, "é apenas na aparência que os galos brigam ali - na verdade, são os homens que se defrontam" (Geertz, 1978: 283). Para este autor, os galos

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representam para os balineses os símbolos por excelência da masculinidade, estando a linguagem cotidiana dos balineses repletas de alusões metafóricas sobre galos e atitudes masculinas, a própria ilha de Bali sendo comparada, por seu formato, a um pequeno galo orgulhoso em permanente desafio à ilha de Java, sua tradicional rival (Geertz, 1978: 285). No trabalho de Leal (1994) sobre os gaúchos, um dos capítulos centrase na descrição e análise de um rinhadeiro em Porto Alegre. Nesta análise, é ressaltado um valor simbólico atribuído à conduta de um galo de rinha: a "dignidade". A "dignidade" de um galo consiste, nos termos desta autora, na capacidade do animal de suportar o sofrimento de modo estóico, "heroicamente". Para ela, a busca da vitória numa rinha é importante, mas não é a parte mais importante deste evento. Nesta adoração profana da masculinidade, o senso de abnegação dos homens, seu senso de sacrifício necessário encontra compensação na "dignidade" do galo: ele sofre, mas não é um perdedor, sua honra está salva se ele (o homem e o galo) souber como sofrer e assim preservar sua masculinidade. Se um galo luta até a morte, sem jamais fugir do rinhadeiro e se, mesmo profundamente ferido, ele continua lutando, sua honra e a honra de seu dono não estão em risco: um homem pode perder dinheiro, mas não a honra. (Leal, 1994: 213) Fica claro neste trecho outro importante aspecto das rinhas: a identificação simbólica do galo com seu dono. As ações do galo no rinhadeiro são simbólicas da conduta do seu dono. Se um galo, após um golpe do oponente, foge do rinhadeiro "piando feito galinha" , não só ele é motivo de escárnio entre os 20

assistentes, mas seu possuidor também, como se ele em pessoa tivesse fugido ao combate. Esta relação simbólica do galo como "representante" ou "duplo" do seu 20

Devido a um traumatismo craniano, um galo pode "piar feito galinha", isto é, cacarejar. Isto se deve exclusivamente ao traumatismo sofrido, e não por uma eventual "perda dos atributos masculinos", que, além dos biologicamente dados, animal algum possui. Os "galistas" (possuidores dos galos) são cientes de que o "piar feito galinha" é decorrência de um dano fisiológico, mas o evidente conteúdo simbólico de "feminilização do adversário" é mais forte: se um galo "piar feito galinha" ele e seu dono estão desonrados.

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possuidor é notada por diversos autores que analisaram este evento, como Geertz (1978), Teixeira (1992), Cook (1994) e Dundes (1994). Na prática dos esportes de combate, ocorre um fato semelhante, guardadas as (muitas) diferenças. Como já foi visto, mensalmente, a Federação Gaúcha de Full-Contact realiza um evento de lutas no qual participam academias de todo o estado. Durante um evento de lutas entre praticantes de diversas academias, cada treinador leva os "seus" lutadores para o combate com lutadores de outros lugares. Normalmente, os treinadores se conhecem de muito tempo. A realização de um evento desta ordem é também ocasião para o reencontro destes treinadores, muitos deles ex-lutadores. Os treinadores, via de regra, não lutam nestes eventos, mas seus alunos, lutadores "feitos" por eles o fazem. A figura do 21

treinador ocupa um papel importante na construção do "estilo" de um lutador, se sério e compenetrado ou deliberadamente agressivo ou ainda falastrão e autoconfiante, dentro e fora do ringue.

$$$ Foto 20: Orientação do treinador durante um combate.

Como já foi assinalado anteriormente, uma frase corrente no métier das academias afirma que "o aluno é o espelho do professor", e toda a noção de estratégia dentro do ringue, preparo físico para um combate e mesmo a atitude do lutador antes, durante e depois da luta são, se não orientadas pelo treinador, pelo menos bastante influenciadas por ele. Antes do combate e nos intervalos, o treinador sobe ao ringue para "armar" seu lutador e dar-lhe instruções. A glória decorrente da vitória no combate recai também sobre o treinador, que após a luta 21

O termo "fazer", no sentido de ensinar e treinar um lutador, é êmico e, no meu entender, bastante significativo. Ele implica no fato de que o desempenho do lutador é, em grande parte, "obra" do treinador, que, assim, encontra-se "representado" dentro do ringue pelo "seu" lutador, de modo análogo ao "galista" cujo galo está na rinha.

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sobe ao ringue para fazer a entrega do troféu a seu aluno, o vencedor, compartilhando desta forma de sua vitória. Cada treinador o faz de um modo: um, oriundo do karatê, realiza o cumprimento característico das artes marciais japonesas; outro, ex-lutador de boxe, bate de leve com a cabeça na têmpora de seu aluno, antes de abraçá-lo. Enfim, no palco/ringue, cada treinador celebra em público a "sua" vitória a seu modo. No final do evento, um treinador sai tanto mais prestigiado entre seus pares quanto maior o número de lutas vencidas por seus lutadores. Em um destes eventos, um professor levou quatro alunos para o ringue. Dois deles venceram suas lutas. Ao final do evento, convidei-o para uma foto: ele espontaneamente chamou para entrarem na fotografia somente os dois vencedores, com seus troféus, um de cada lado; os seus alunos que foram derrotados ficaram fora de quadro, observando a glória alheia. De acordo com a análise de Dundes (1994), não apenas as brigas de galos, mas todas as formas de combate entre homens obedecem a um mesmo princípio básico, o da preservação da própria masculinidade à custa da "feminilização simbólica" do adversário. As formas de combate masculino, para Dundes, variam desde as brincadeiras infantis até a guerra, passando por todas as formas de competição esportiva. Segundo este autor, todos estes jogos e esportes podem ser tratados como variações de um único tema: Este tema envolve a preservação da masculinidade, na qual um homem demonstra sua virilidade, sua masculinidade, à custa de outro homem adversário. Prova-se a própria masculinidade feminilizando o oponente. Tipicamente, a vitória implica (...) penetração. (Dundes, 1994: 250) *

A interpretação de Dundes é ousada, e concordo com ela apenas parcialmente. Quanto ao aspecto de provar a própria masculinidade à custa da derrota do adversário, concordo plenamente. Vários outros autores manifestam * No

original: "The theme involves an all-male preserve in which one male demonstrates his virility, his masculinity, at the expense of a male opponent. One proves one's maleness by feminizing one's opponent. Tipically, the victory entails (...) penetration."

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opiniões concordantes neste sentido, como Leal (1992b) e Gilmore (1990). Já a afirmação de Dundes de que a derrota implica na feminilização simbólica do oponente parece-me questionável. O conteúdo simbólico que talvez esteja mais associado à derrota é o da morte do derrotado, conforme foi visto acima, não a sua necessária feminilização, que me parece apenas um caso possível dentro dos diversos conteúdos simbólicos inerentes à competição. Os braços do lutador derrotado abaixados pelo árbitro enquanto levanta o braço do vencedor podem simbolizar publicamente a impotência do lutador derrotado, que a meu ver está mais próxima de uma "morte simbólica" do que de sua "feminilização". No meu entender, algumas derrotas podem ter como conseqüência a feminilização simbólica do vencido, particularmente quando o contendor derrotado foge do combate ("pia feito galinha", para manter o paralelo com as rinhas de galo). Este conteúdo de reduzir o adversário à condição feminina através da derrota é bastante claro neste caso em que o galo "pia feito galinha". Se ele age como uma galinha, não é galo, portanto não pode lutar. Quando um lutador foge do combate ou recorre com freqüência ao clinch, o reconhecimento social de sua falta simbólica de atributos masculinos se dá da mesma forma, assim como o menino que choraminga porque não consegue jogar bolinhas em condições de competir com seus oponentes é chamado pelos outros meninos de "mulherzinha". Pode-se notar que este menino é "mulherzinha" não porque perde no jogo, mas porque choraminga, ou, em outros termos, "perde a dignidade", solicitando o auxílio dos outros, uma relação de dependência. Em todos estes exemplos, vale ressaltar, a identidade masculina é construída a partir da negação/desvalorização da feminilidade, de acordo com a análise de Chodorow (1979). No caso em que algum contendor "perca lutando", seja uma guerra, um combate ou uma rinha de galos, ou seja, não recue frente ao ataque do adversário, e, mesmo perdendo a luta, não perca a "dignidade" (no

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sentido empregado por Leal), o reconhecimento social do desempenho deste combatente preserva-lhe a honra. Ele é "valente", "perde lutando", e, socialmente, sua honra e, como decorrência, sua masculinidade, não estão em risco. Neste sentido, os dados deste estudo mostram que a análise de Dundes é válida, embora não em todos os casos. A respeito do conteúdo da vitória sobre o adversário ser decorrente de uma "penetração" simbólica deste, o que acarretaria a sua redução à condição feminina, acredito igualmente que é uma afirmação que pode ser relativizada, já que o reconhecimento social a esse respeito só chega efetivamente a "feminilizar" o contendor derrotado em alguns casos. Não é em toda luta que se diz que um dos contendores "deu um pau" no oponente, ou "fodeu com ele". É claro que, para usarmos outros esportes, "meter um gol" nas redes adversárias, "enterrar" uma bola na cesta da outra equipe ou mesmo "entrar" na guarda do oponente e "dar uma porrada" nele são expressões usuais referentes a fatos esportivos que manifestam este evidente conteúdo de "penetração simbólica" do adversário. Minha discordância decorre de que, no futebol, por exemplo, "tomar um gol" não é o fim do jogo, nem da "dignidade" ou masculinidade dos jogadores, contanto que o time se recupere deste revés e faça gols no adversário. A respeito do simbolismo existente no futebol, Suárez-Orozco (1982) interpreta o sentido simbólico do futebol para os torcedores argentinos de modo análogo ao de Dundes, como uma disputa por masculinidade, a goleira de cada time sendo uma versão simbólica do ânus (interessante lembrar que a goleira de um time fica "atrás" de seus jogadores). Fazer um gol, neste sentido, significa submeter simbolicamente o adversário à penetração anal, privando-o assim da masculinidade, e adquirindo por esta via um acréscimo na própria masculinidade à custa desta "feminilização" do adversário (Suárez-Orozco, 1982: 23). Acredito que esta interpretação seja igualmente válida, mas que da mesma forma pode ser relativizada. No caso do futebol, por exemplo, em uma vitória por dois gols a um,

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ambos os times foram "penetrados" desta forma simbólica; então, para manter os termos desta interpretação, ambos os times foram, a seu tempo, "feminilizados" pelo oponente. Neste caso, seria "mais macho" o time que foi "menos penetrado"? Assim, creio que tal "feminilização simbólica", conforme descrita nas análises de Dundes e Suárez-Orozco, seja efetivamente uma interpretação procedente, embora ela seja aplicável com mais propriedade em alguns casos. Mantendo o exemplo do futebol, no caso de um time levar cinco gols no próprio estádio (fato muitas vezes chamado pela crônica esportiva de "perder em casa") sem fazer nenhum gol é uma situação bastante diferente da descrita acima. Este foi o resultado de uma partida disputada entre as seleções da Argentina e a da Colômbia em setembro de 1993, nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1994. Um cronista esportivo argentino na época comparou uma derrota desta ordem em pleno Estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires, a "um homem que leva um tapa na cara no meio da rua, na frente da esposa e dos filhos", ou seja, uma situação hipotética em que um indivíduo é completamente desonrado em público, perante sua própria família. Cabe lembrar a associação estabelecida por Pitt-Rivers (1979) entre a honra e sua localização corporal, o rosto. No caso, "a mulher e os filhos", os dependentes de um homem, nesta alegoria, seriam a torcida argentina, que, "na própria casa" teve que assistir, sem nada poder fazer, o espetáculo vergonhoso de sua seleção nacional sendo humilhada. A natureza desta "desonra" (que, ao fim e ao cabo, não passou de um jogo de futebol) e de sua associação com a humilhação pública de um pai de família pode ser entendida como a perda dos atributos masculinos. É interessante lembrar que, entre as atividades que, segundo Gilmore (1990), definem em quase todas as sociedades o que seja "ser homem" inclui-se a defesa de seus dependentes. Na linguagem corrente, a seleção nacional daquele país, num processo de metonímia ocorrente também no Brasil, assume o

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lugar do próprio país ("A Argentina jogou hoje contra a Colômbia"). Assim, usando dos termos da análise de Suárez-Orozco, naquela ocasião "a Argentina" foi simbolicamente "feminilizada" pela Colômbia, perdendo, além do jogo, um importante fator simbólico da sua identidade masculina. Como no campo de jogo, único local onde a "vingança" desta "ofensa" poderia ocorrer, a seleção argentina não fez mais do que ser dominada pelo time adversário, a analogia do cronista tem sua razão de ser. Assim, uma "desonra" esportiva destas, no meu entender, pode ser considerada (neste caso concordando com Dundes e Suárez-Orozco) como uma "feminilização" simbólica do oponente, associando a perda da honra com a perda da masculinidade. O conteúdo simbólico da "penetração" do adversário a cada gol ganha, neste caso – dadas as demais circunstâncias que cercaram a partida –, uma nova dimensão. Algumas partidas de futebol terminam empatadas em um a um; no caso de um combate, os lutadores a um tempo "dão" e "levam porrada" do oponente. Dos dados de campo obtidos para este estudo, pode ser dado como exemplo deste aspecto o seguinte depoimento, no qual um praticante fala da importância que tem para ele, além dos treinos, a prática efetiva do combate dentro do ringue: "Teoria é uma coisa, a prática é outra. A prática é melhor que a teoria. Tu sabe que tu tem que dar o soco de um tal jeito, mas se tu nunca sentiu um soco, tu não sabe se ele faz efeito ou não. Tu não precisa apanhar, tu precisa é aplicar aquilo que tu aprendeu em cima de alguém e também aquele alguém vai aplicar em cima de ti, porque não é só tu bater: tu vai bater, mas também vai levar, então tu vai ter que saber defender, sair, tu vai ter que ter resistência." (Lúcio, 30 anos, porteiro) Neste trecho de entrevista fica claro que em uma luta o normal é "bater" e "levar", ou, como foi dito anteriormente, "dar" e "tomar porrada". Seria

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isto suficiente para afirmar que estes eventos esportivos na verdade simbolizam uma relação entre dois homossexuais em que ambos são "penetrados"? Não creio. Assim, os dados de campo deste estudo me fazem acreditar que o "entrar em campo", seja numa quadra, num rinhadeiro ou num ringue, traz consigo uma das maneiras de provar publicamente a própria masculinidade: aceitando riscos. O risco de ser derrotado corresponde como simétrico oposto à glória de ser o vencedor. Ser derrotado, mesmo por nocaute, (ou, no caso de uma briga de galos, morrendo na luta) a meu ver, não implica necessariamente em perder os atributos masculinos. O que pode levar a essa "feminilização" é a maneira como se é derrotado. Se um lutador é derrotado enfrentando o adversário (cabe recordar a etimologia de "enfrentar" no sentido de "fazer frente a"), que, na luta, é facilmente perceptível pelo fato de o lutador estar sempre "de frente" para o oponente, buscando o combate, não há nenhuma "desonra" nem "feminilização" nisso. Se, pelo contrário, o lutador perde a luta fugindo do combate, isto é, dando as costas para o oponente (a expressão "dar as costas", usual nos esportes de combate, pode ser entendida neste sentido como portando também uma referência simbólica à posição passiva em uma relação homossexual), ou recorrendo ao clinch, em outros termos, "ficando de agarramento" com o adversário (expressão que, como já vimos, também tem uma conotação de contato sexual), neste caso, então, acredito que se possa falar de uma "feminilização" do oponente. Como pode ser percebido, a "feminilização" simbólica produzida pela derrota, nestes casos citados não se deve ao valor demonstrado pelo vencedor, senão pela "fraqueza" do perdedor em sustentar sua "dignidade" durante o combate. Mais uma vez pode ser traçado o paralelo com o jogo das bolinhas de vidro: o menino "mulherzinha" não adquire este status por perder o jogo, mas por não sustentar sua "dignidade" diante da derrota. O valor moral associado à "valentia" de um lutador, além do mais, independe da vitória

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ou derrota no combate: um lutador pode acertar um único golpe e ficar "agarrando" seu oponente para não deixá-lo lutar e, assim, vencer a luta. Um professor de full-contact queixava-se, durante uma entrevista, de um lutador que vencera seu aluno desta forma: "Tem professor que só sabe ensinar isso: dá um soco no cara e agarra, dá um soco e agarra, pra evitar levar. Ele sente que o outro é mais forte, ele só dá uma e te agarra pra não levar, às vezes até ganha a luta, mas só porque não deixa o outro lutar. É a mesma coisa que uma partida de futebol, o cara não te ataca, só se defende, só passa a bola pro lado, o público não gosta, a mesma coisa é a luta." (Daniel, 43 anos, professor de full-contact) O público presente a esta luta hipotética provavelmente não vai atribuir o papel de "valente" a este lutador e se surgirem vaias no decorrer da luta, não será nada surpreendente. Acredito que a relação simbólica entre "vitória no combate" e "masculinidade confirmada" não é tão direta e sem ressalvas como Dundes supõe, pelo menos no meio social que envolve os esportes de combate. A meu ver, a conquista pública dos atributos de masculinidade em jogo dependem mais da performance dos oponentes do que simplesmente do resultado.

Capítulo 4. Homens de Ferro: a Construção do Corpo

4.1 O Uso e a Percepção Social do Corpo Uma primeira abordagem teórica a respeito do uso social do corpo foi realizada por Mauss (1974). Num esforço de sistematização das por ele chamadas "técnicas corporais", Mauss define este termo como sendo "as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos" (Mauss, 1974: 211). Segundo este autor, a semelhança entre as diversas culturas quanto ao uso do corpo reduz-se a uma dimensão puramente fisiológica: todos os homens comem, dormem, copulam, etc. A forma que cada um destes atos tomará em cada uma das diferentes culturas, entretanto, é completamente determinada pelas particularidades de cada cultura, não existindo nenhuma técnica corporal comum a todas elas. Para Mauss, a apreensão da natureza das técnicas corporais requer um ponto de vista que inclua, além dos aspectos anatômicos e fisiológicos, aspectos psicológicos e sociais (Mauss, 1974: 215). A partir do conceito de "técnica" a incorporação destes aspectos psicológicos e sociais se torna clara: Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisto não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. É nisso que o homem se distingue sobretudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral. (Mauss, 1974: 217) Desta forma, vemos a fundamental importância do aprendizado na determinação da forma de uma determinada técnica corporal. Na dinâmica do

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aprendizado, que se baseia na imitação de condutas exitosas de outras pessoas, encontram-se os componentes psicológicos e sociais de cada técnica corporal, produzindo-se assim as idiossincrasias que são características a cada uma destas técnicas (Mauss, 1974: 215). Outros autores assinalam essa natureza social dos fenômenos corporais preconizada por Mauss. Rodrigues (1986) considera o aprendizado de uma técnica corporal como parte da construção do corpo, dotando-o de uma prática cultural por sobre uma base fisiológica,. O autor denomina a este processo de interferência cultural sobre o corpo (anatômico e fisiológico, em princípio) "apropriação social do corpo", e considera "estrategicamente importante" seu estudo por parte das ciências sociais (Rodrigues, 1986: 47). Outra abordagem que se refere à natureza social da experiência física do corpo é dada a partir da obra de Douglas (1970), que considera a existência de "dois corpos", um físico e outro social, em profunda interação: O corpo social determina o modo segundo o qual o corpo físico é percebido. A experiência física do corpo, sempre modificada pelas categorias sociais através das quais ele é percebido, sustenta uma visão particular de sociedade. Há um câmbio contínuo de significados entre os dois tipos de experiência corporal, de modo que cada um reforça as categorias do outro. (Douglas, 1970: 65) *

As representações e práticas associadas ao corpo não variam apenas de sociedade para sociedade. Dentro de uma sociedade complexa como a nossa, as diferentes classes sociais tendem a apresentar usos, representações e consumos diferenciados com relação ao corpo. Boltanski (1984) além de, a exemplo de Mauss, sugerir a utilização de múltiplos pontos de vista (anatômicos, fisiológicos, sociais, etc) no estudo desses aspectos associados à dimensão social da corporalidade, estabelece uma diferenciação entre as diversas classes sociais no * No

original: "The social body constrains the way the physical body is perceived. The physical experience of the body, always modified by the social categories through which it is known, sustains a particular view of society. There is a continual exchange of meanings between the two kinds of bodily experience so that each reinforces the categories of the other."

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que se refere aos usos e consumos sociais referentes ao corpo, não apenas em termos de necessidade e consumo médicos, mas também em atividades de lazer, como o uso do tempo de férias e a prática de esportes (Boltanski, 1984: 117). Para este autor, o consumo de bens e serviços esportivos será diferenciado em função do pertencimento a diferentes classes sociais: A prática de um esporte, utilização lúdica, intencional e regrada do corpo, cuja freqüência cresce quando se passa das classes populares às classes superiores, ou seja, quando decresce a atividade física de uso profissional, constitui talvez o melhor indicador da inversão dos usos do corpo e da inversão correlativa das regras que regem a relação com o corpo quando se sobe na hierarquia social. (Boltanski, 1984: 171) A abordagem de Boltanski é bastante próxima à de Bourdieu (1983), quando este afirma que existe, no "campo da prática esportiva", uma relação do tipo "oferta e procura" entre as diversas modalidades esportivas e seus praticantes em potencial. O fato de um agente escolher determinada prática esportiva em vez de uma outra pode ser compreendido através da relação particular deste agente com o próprio corpo, que vai variar de acordo com o habitus deste agente, e que está na origem de seu estilo de vida. (Bourdieu, 1983: 148) 22

O "campo esportivo", conceito de Bourdieu que já foi tratado anteriormente, é hoje em dia muito mais importante e autônomo do que originalmente era, uma prática de lazer destinada aos filhos das classes dominantes de fins do século XIX. Existe hoje todo um mercado de produção e consumo de produtos esportivos, que atinge praticamente todos os segmentos da sociedade; a amplitude conferida pela indústria cultural aos eventos esportivos tornou o resultado de certas competições um assunto que ultrapassa em larga medida as linhas demarcatórias do campo de jogo. Cabe lembrar que cada modalidade esportiva não é mais que uma "técnica corporal lúdica", com tradição 22

Sobre os conceitos de campo e habitus, ver Bourdieu, (1989: 59-73).

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e eficácia próprias, com toda uma estrutura de reprodução de seus valores, como as "escolinhas" de futebol e as academias de arte marcial. O praticante de esportes possui uma relação de trabalho com o próprio corpo, que deve ser "moldado" para alcançar o desempenho desejado na prática esportiva escolhida. A esse respeito, Magnane (1969) afirma: Como o operário, o esportista deve operar em si próprio, no seu sistema muscular e nervoso, uma transformação completa, sofrer uma aprendizagem que exige atenção, perseverança, uma progressão sutil entre os excessos de indulgência a si próprio e um rigor imprevidente que negligenciaria as particularidades individuais e os dons naturais. (Magnane, 1969: 60) Esta relação "profissional" estabelecida pelo praticante de esportes com o próprio corpo, visto como um instrumento de trabalho ou como uma "máquina", também é salientada por Wacquant (1989), no caso referindo-se especificamente ao corpo dos pugilistas: O corpo do pugilista é ao mesmo tempo seu instrumento de trabalho (arma de ataque e escudo de defesa) e o alvo buscado por seu adversário. (Wacquant, 1989: 62) *

Destarte, pode ser percebido que uma arte marcial, a exemplo de outros esportes, é antes de tudo uma técnica corporal. Assim, do mesmo modo que cada sociedade cria e transmite, de acordo com seus padrões, técnicas corporais que determinarão sua maneira de comer, andar ou dormir, também são criadas e transmitidas diferentes maneiras de lutar.

4.2 A Utilização do Corpo para a Luta Como vimos anteriormente, a construção do corpo visando à prática esportiva exige um trabalho árduo e perseverante. Para a prática de uma técnica *

No original: "Cela parce que le corpos du pugiliste est à la fois son outil de travail (arme d'attaque et bouclier de défense) et la cible de son adversaire.

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de combate, uma série de modificações na utilização do corpo são necessárias. Não se trata apenas de bater no oponente com o punho fechado, mas de aprender a controlar a movimentação do corpo inteiro, desde uma posição firme das pernas até o balanço dos ombros, projetando o golpe com a máxima eficácia. Wacquant (1989) afirma que a técnica corporal necessária a um pugilista nada tem de "natural", e que os movimentos corporais empregados no combate devem ser aprendidos à custa de muito esforço físico e até mesmo mental: a simplicidade aparente dos gestos de um boxeador é enganadora: longe de serem "naturais" e evidentes, os golpes de base (jab, direto, cruzado e uppercut) são difíceis de executar corretamente e supõem uma "reeducação física" completa, uma verdadeira remodelagem na coordenação motora e mesmo uma conversão psíquica. Uma coisa é visualizá-los e compreendê-los em pensamento, outra é realizá-los e, mais ainda, encadeá-los no calor da ação. (Wacquant, 1989: 50) *

No full-contact, modalidade de luta eminentemente esportiva, é dado grande valor ao preparo físico e ao apuro técnico dos atletas. Na medida em que a luta se desenvolve em rounds de três minutos por um minuto de descanso, o treino também se dá nesse ritmo. Com um peso de um quilo em cada mão, treina-se a guarda alta, jabs, diretos e uppercuts, sozinhos ou em seqüência, durante três minutos, por um de descanso. Ou então em duplas, um atleta coloca um colchonete em torno do tórax e o outro aplica chutes laterais durante o tempo de um round, depois revezam-se. Alunos novatos demoram um certo tempo para adequar-se ao ritmo dos treinos, bastante puxado. Esse aprendizado lento e progressivo, entretanto, é apreciado pelos praticantes que, na sala de treinos, cheia de espelhos, admiram um golpe *

No original: "La simplicité de façade des gestes du boxeur est on ne peut plus trompeuse: loin d'être "naturels"et évidents, les coups de base (jab, crochet, direct, uppercut) sont difficiles à exécuter correctement et supposent une "rééducation physique" complète, un véritable remodelage de sa coordination gymnique, et même une conversion psychique. Une chose est de les visualiser et de les comprendre en pensée, une autre de les réaliser et, plus encore, de les enchaîner dans le feu de l'action."

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bem realizado como indício de progresso técnico. Os participantes encontram uma espécie de "satisfação estética" associada à perfeição técnica dos movimentos, valor comumente chamado de "técnica". A finalidade estética do full-contact, para os praticantes, confunde-se com um ideal de perfeição técnica a ser buscado, de modo a otimizar a utilização do corpo para a luta. A construção do corpo, neste sentido, não é um fim em si, mas um meio de atingir esse objetivo, sendo mal vista quando utilizada apenas com essa finalidade estética, sem aplicabilidade no combate, como por exemplo, na modalidade chamada fisiculturismo. O depoimento de um praticante ilustra bem este aspecto: "A pessoa que faz fisiculturismo, ela não pratica artes marciais, acho muito difícil, fica muito dura, endurece muito, ela fica lenta. (...) Fisiculturismo pra disputa termina ficando grande só em cima, e em baixo fica fininho, as pernas ficam grossas, só que fica lento, eu acho que não vai ter desenvoltura nenhuma em artes marciais, seja qual for." (Lúcio, 30 anos, porteiro) A relação dos praticantes com o combate inclui a prática de lutas entre colegas de academia, e a ocorrência de acidentes não é rara. Os relatos de lábios cortados com um chute, dentes quebrados "por um descuido" e hematomas de todo tipo são freqüentes, bem como a imediata concordância de que foi acidental, e a não-interferência de tais incidentes nas relações interpessoais. Os praticantes entrevistados julgam muito mais a intenção do que o ato em si, e se não foi "por maldade", está tudo bem. Um exemplo desta atitude acerca das lesões decorrentes da prática do full-contact pode ser visto no seguinte trecho de entrevista: "... eu já fiz uns hematomas, mas nunca quebrei nada, só tomei umas pancadas, resolve com um pedaço de gelo. Normal, eu não esquento a cabeça com isso, faz parte, tu pode acertar um colega e machucar como pode ele te acertar e machucar, eu levo tudo no coleguismo, porque eu sei que ele não vai me machucar por querer, e eu também ajo da mesma forma." (Benedito, 24 anos, funcionário público)

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Como foi visto no segundo capítulo, os testes de passagem de faixa de full-contact têm, como última prova, uma luta. Em faixas inferiores, os praticantes lutam entre si, para mostrar sua técnica à banca examinadora. Em um teste observado, o examinador, o professor Guaraci, exortava os praticantes a baterem uns nos outros: "vamos lá, isso aqui é uma luta, tem que se bater, depois toma uma cervejinha junto, faz as pazes, mas agora tem que se bater". Já no teste seguinte, os praticantes, lutadores faixa-branca, tentavam compensar a falta de técnica com agressividade nos ataques. Como no teste de faixa branca para azul a luta é "sombra", isto é, sem os equipamentos de proteção, o risco de um "acidente" mais sério tornou-se maior, e o examinador teve que chamar a atenção dos participantes: "Olha lá pra fora, tá um sábado lindo, tem uma piscina me esperando, se eu perder a tarde de sábado pra levar um cara no HPS pra tomar ponto, esse cara vai 'tomar um pau' tão grande que é melhor nem sair de lá!" (Guaraci, 29 anos, professor de full-contact) Dessa forma, vemos que a prática do combate oscila entre o "tem que bater" e o "não pode sangrar", um limite estreito, mas que os praticantes reconhecem e mantêm-se inseridos nele. Entre todos os participantes entrevistados, existe um consenso sobre a idéia de que eventuais lesões decorrentes da luta "fazem parte", assim como a resistência à dor, "assimilar o golpe", é uma virtude necessária a um bom lutador.

4.3 O Desprezo à Dor Em algumas academias, o exame de luta do candidato à faixa preta, o chamado "Homem de Ferro", além de exigir preparo físico, técnica e determinação, possui inclusa a necessidade de sofrimento por parte do candidato,

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que deve mostrar estoicismo durante sua realização. Este dado é recorrente em entrevistas, especialmente dos faixa-pretas mais antigos, que realizaram este teste em São Paulo, sob a supervisão do próprio Sérgio Batarelli, criador desta prova. Apesar do candidato estar treinado e, é claro, disposto a não ser surrado, sua desvantagem em relação a três adversários descansados e que, além disso, não arriscam nada, é mais do que evidente, como mostra o depoimento de um professor entrevistado, que prestou este exame em São Paulo: "O objetivo deste exame é ver se o cara está preparado. E também faz pra sofrer, tem que sofrer, porque depois que passa o exame, a coisa fica mais fácil. (...) Tem que saber os limites, ver até onde o cara agüenta." (Nicolau, 44 anos, professor de full-contact) O depoimento de um praticante graduado, que está prestes a realizar o mesmo exame revela uma outra instância da passagem por esta prova, vista por ele como um "ritual" necessário. Já que, após obter a faixa preta o praticante está oficialmente autorizado a lecionar, este praticante vê a prova como uma espécie de "ritual de passagem", onde o candidato deve demostrar publicamente a sua capacidade de suportar os golpes de três adversários e resistir de pé até o final da luta, embora considere a realização deste exame um ritual "sádico", embora paradoxalmente "prazeroso". Concordo com o depoente quando ele afirma que esta prova tem o seu tanto de ritual. Como já afirmei anteriormente, um combate de full-contact pode ser considerado como possuidor de "instâncias ritualizadas", onde poderiam ser caracterizadas as etapas de "separação, margem e agragação", conforme descritas por Van Gennep (1978). A realização deste exame, da forma como é feita nas academias pesquisadas, possui características ainda mais marcantes de um processo ritual, principalmente quanto ao período "liminar", onde o "colega" torna-se um "adversário" a ser espancado, para, superada a provação, ser novamente admitido entre os seus pares, já com seu novo status de "faixa-preta":

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"É como se fosse uma provação, como se fosse assim uma cerimônia, no final quase se torna uma cerimônia. (...) É um ritual assim, sádico; sadismo ou não, prazeroso, só pra tu chegar no final vendo que tu conseguiu passar por aquilo ali. Passar por aquilo é necessário, é a prova." (Lúcio, 30 anos, porteiro) A resistência à dor como prova de virilidade é comum a várias culturas, que usualmente submetem seus jovens à tortura, em rituais com o objetivo de, além de avaliar a resistência pessoal do indivíduo, proclamar o seu pertencimento social (Clastres, 1978). Segundo Clastres, a tortura em sociedades primitivas possui, além das características citadas, uma função didática: através do sofrimento suportado silenciosamente, a tribo ensina sua lei ao indivíduo, utilizando-se de seu corpo, que portará para sempre as marcas desse pertencimento social. A partir da passagem por este ritual, o iniciado adquire um novo status perante seu grupo. Após suportar a tortura ritual, ele deixará de ser um menino e passará a ser um homem, nem melhor nem pior do que ninguém, "um dos nossos" (Clastres, 1978: 129-130). Helman (1994), referindo-se ao aspecto social da dor, considera que a "dor privada", com a recusa do indivíduo em torná-la pública é, em muitas sociedades, um dos sinais distintivos da masculinidade: o estoicismo e o autocontrole diante do sofrimento (...) é a reação mais esperada de homens, especialmente de jovens e de guerreiros. Em algumas culturas, a capacidade de suportar a dor sem esquivarse, isto é, sem manifestar o comportamento da dor, pode ser um sinal de virilidade, e faz parte dos rituais de iniciação que marcam a transição do menino em homem. (Helman, 1994: 166) Desta forma, vemos que o exame para a passagem à faixa preta, nestas academias, mutatis mutandi, apresenta várias das características associadas a rituais de iniciação de sociedades primitivas, como a valorização social do estoicismo, a submissão às regras tradicionais e o pertencimento social decorrente da passagem pela "prova".

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O valor dado à resistência em relação à dor, entretanto, não ocorre exclusivamente nos testes à faixa-preta. Nos treinos e demais testes de passagem de faixa, o estoicismo é valorizado. Para Wacquant (1989), a resistência à dor é parte integrante da prática de esportes de combate: Só há uma maneira de resistir à dor, de habituar o organismo a receber os golpes, que é recebê-los regularmente. Este aprendizado da indiferença à dor é inseparável da aquisição do tipo de sangue-frio próprio ao pugilismo. (Wacquant, 1989: 55) *

Nas sessões cotidianas de treino, como já vimos, são freqüentes as séries de 500 exercícios abdominais. Conseguir cumprir uma seqüência destas exige que o praticante abstraia da dor nos músculos serráteis ventrais, ou pelo menos, que não a manifeste. Igualmente ocorre nos exercícios de alongamento, praticados exclusivamente por sobre a dor do tendão sendo alongado. Se não doer, o exercício não cumpre qualquer efeito.

$$$ Foto 21: Sessão de alongamento, Centro de Lutas Ferlinghetti.

A valorização do desprezo pela dor aflora de frases ditas com intenção jocosa, como certa vez, quando dois lutadores inexperientes lutavam "sombra", um deles com as mãos abertas, ao que o professor falou: "fecha esta mão, rapaz, senão tu vai acertar um olho dele, e aí vai ter que arrancar o olho e jogar no chão". O desprezo à dor transparece no discurso dos praticantes, que referem-se a narizes e dentes quebrados, hematomas e hemorragias de modo natural, sem manifestar nenhum desagrado por isso. Pelo contrário, a maneira como os praticantes se referem às lesões decorrentes do combate parece conter uma ponta de orgulho, as cicatrizes tendo o seu tanto de "condecorações de batalha". Este *

No original: "... il n'y a qu'une manière de s'endurcir au mal, d'habituer son organisme à encaisser des coups, c'est d'en encaisser régulièrement. Cet apprentissage de l'indifférence à la doleur est inséparable de l'aquisition de la forme de sang-froid propre au pugilisme."

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orgulho em demonstrar as cicatrizes de antigas lesões decorrentes do combate encontra paralelo em Jardim (1991). Segundo esta autora, os homens de classes populares por ela pesquisados consideram as "marcas no corpo como emblemas de sua coragem, provas da atitude masculina" (Jardim, 1991: 157). É freqüente, em entrevistas, os praticantes ilustrarem a narrativa de lesões obtidas nos combates mostrando-me a cicatriz que ficou no local, nem que para isso tenham que expor a face interna dos lábios ou erguer a calça até o joelho. A cicatriz é a prova de que ele passou por aquilo, é, nos termos de Clastres, a "memória escrita" por sobre o próprio corpo do lutador. A cicatriz demonstra de modo incontestável que ele "agiu como homem" na circunstância onde ela foi adquirida: ele aceitou o desafio de enfrentar outro homem, entrou no ringue e lutou. Um bom exemplo destes aspectos é o relato de um lutador relativamente experiente, faixa-verde, que em sua primeira luta oficial teve dois dentes afrouxados com um golpe adversário: "Eu já me machuquei lutando, na minha primeira luta eu ganhei, mas afrouxei os dois dentes, nunca machuquei sério, mas já fiz uns roxos [hematomas] e uma vez levei um chute no nariz, sangrou... (...) Machucar [na luta] não me incomoda, porque se tu tá ali, tu tá sabendo, mas isso faz parte, e eu sou muito controlado, acho que o bom da arte marcial é isso, tu consegue ter um bom auto-controle." (Salomão, 22 anos, padeiro) A valorização do controle sobre a dor não é exclusividade do fullcontact, a maioria das artes marciais traz ensinamentos nesse sentido. São freqüentes os relatos de lutadores de karatê, shaolin ou taekwondo que golpeiam árvores com os punhos em seus treinamentos, até estarem cobertos de sangue (Hyams, 1992). Na verdade, o controle sobre a dor é fundamental para a sobrevivência de um guerreiro (Helman, 1994). Como já foi visto anteriormente, as diversas artes marciais foram desenvolvidas como forma de treinamento militar, e, antes do advento do esporte moderno, o aprendizado de técnicas de luta

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tinha por objetivo salvar a vida do praticante em situações de confronto contra salteadores ou inimigos (Virgílio, 1986). A crescente penetração do esporte na sociedade ao longo do século XX "esportivizou" muitas técnicas originalmente voltadas ao uso pragmático. A esgrima, por exemplo, que antes do século XIX era ensinada tendo em vista sua utilização em duelos, para ser considerada "esporte" teve que ser submetida a regras e incluir o uso de diversos equipamentos de proteção e espadas com ponta esférica. Da mesma forma, a luta esportiva, derivando das artes marciais, assumiu este caráter esportivo a partir da submissão a regras e equipamentos de proteção.

4.4 A Aceitação das Regras Outra característica importante da prática do full-contact e outras modalidades de luta, que transparece no discurso de seus praticantes, é a aceitação integral das normas referentes àquela prática. Esta aceitação sem ressalvas das regras deriva da influência das artes marciais orientais, profundamente marcadas pelo zen-budismo. O full-contact, surgido nos Estados Unidos exclusivamente em função do combate, guarda muito pouco dessa influência oriental, derivada do karatê. Os sinais mais visíveis são a hierarquia determinada por faixas, a denominação "Dan" para os diversos graus da faixapreta e o cumprimento praticado ao iniciar e terminar a sessão de treinos, uma leve inclinação do tronco à frente, com os braços estendidos ao longo do corpo. Fora isso, os entrevistados são unânimes em concordar que o full-contact é só um esporte que inclui lutas, não havendo em suas regras nenhuma alusão a qualquer "benefício espiritual" proveniente de sua prática, salvo uma eventual "higiene mental" (presente em qualquer esporte, convém acrescentar).

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Um aspecto, entretanto, que transparece do discurso dos praticantes é a submissão sem discussão às normas do treino e às palavras do professor. Em japonês, o mestre de artes marciais chama-se "sensei" (literalmente, "o que nasceu antes") e a atitude do aluno perante ele é de total receptividade. O mestre é detentor de um conhecimento que o aluno não possui. Suas palavras e atos referentes àquela arte marcial são, portanto, indiscutíveis (Hyams, 1992: 41). Na verdade, não existe uma relação do tipo mestre-discípulo strictu sensu entre o professor e seus alunos no full-contact. Impera a cordialidade, e os professores são chamados pelo nome. A admiração dos alunos por seus professores, entretanto, é inegável. Quando um professor troca de academia, via de regra os alunos o acompanham até a nova academia, mesmo que precisem fazer um trajeto bem mais longo para treinar. É freqüente ouvir-se afirmações do tipo: "esse véio é o que sabe tudo de full-contact", ou "o que eu sei de fullcontact, aprendi com ele". Assim, embora o relacionamento entre professores e alunos seja bastante informal e cordial, na atitude dos alunos perante a disciplina da luta pode ser encontrada a origem do estoicismo que foi referido anteriormente. Em um trecho de entrevista, um praticante, referindo-se ao teste de luta para a faixa preta, colocou a questão nos seguintes termos: "essa parte é meio bruta, mas eu acho certo. Eu nunca parei pra pensar nisso, eu nunca questionei. Na verdade, eu penso assim, se eu estou nesta arte marcial, eu estou aqui pra obedecer às regras que me foram impostas, então por exemplo, eu estou pensando em entrar pro taekwondo, tem um cara que é faixa-preta, que eu conheço, o cara me disse que pra faixa-preta ele quebrou não sei quantas telhas. Eu nunca dei soco em madeira, tô me imaginando quebrando telha, pra ti ver que estranho, mas é uma característica da arte deles, se pra ti ser preta, tem que fazer aquilo, então se faz." (Severo, 20 anos, funcionário de transportadora)

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Assim, as características da prática do full-contact que foram abordadas, o árduo treinamento visando à construção do corpo para a luta, a resistência estóica à dor, e mesmo a participação em uma luta da qual já se sabe de antemão que é mais provável apanhar do que bater, fazem parte de uma mesma disposição a respeito dessa prática esportiva. Essa disposição é, como já vimos, comum à maioria das artes marciais de origem oriental, e, no full-contact, encontra-se sob uma espécie de "forma mínima", dado o intenso caráter de prática esportiva que cerca esta modalidade, bem como sua "origem ocidental", surgida nos Estados Unidos com semelhanças ao boxe e voltada exclusivamente para os resultados dentro do ringue. A disciplina, embora não seja formalizada na interação entre professores e alunos, está presente na aceitação irrestrita das regras por parte de uns e outros. Para que se "entre no jogo" – qualquer jogo – é preciso primeiro estar de acordo a respeito das regras.

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Conclusão

Conforme pôde ser visto ao longo deste trabalho, a abordagem antropológica de uma prática esportiva pode ser reveladora de aspectos não apreensíveis de imediato a respeito da construção social da identidade do ser masculino, como foi o caso deste estudo realizado entre os praticantes de fullcontact da cidade de Porto Alegre. A partir da história das técnicas corporais chamadas de artes marciais, vimos que o seu desenvolvimento sempre esteve associado à prática da guerra, nas mais diferentes sociedades. Como uma atividade eminentemente masculina, as "artes do combate", mesmo em suas variantes "esportivas", mantiveram-se como um espaço onde, entre outras coisas, se prova socialmente a posse de valores considerados masculinos em muitas sociedades, como a aceitação de desafios e o estoicismo diante do sofrimento. Em nossa sociedade, a demanda por confrontos competitivos é em boa parte suprida pelas diversas práticas esportivas. Dentre elas, as modalidades chamadas "esportes de combate" representam de modo particularmente intenso estes aspectos da construção da identidade masculina, a virilidade de um homem sendo simbolicamente medida e confirmada através da prática do combate com outro homem. No caso específico do full-contact, esta modalidade foi escolhida como representativa deste universo das artes marciais por representar uma espécie de "termo médio" entre as artes marciais tradicionais e os esportes de combate mais ocidentalizados. Apesar da predominância dos aspectos esportivos nesta prática, características herdadas das artes marciais que estiveram na origem do full-contact conferem-lhe este caráter de "forma híbrida".

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Além disso, a "visibilidade" deste esporte promovida por produtos da indústria cultural, se por um lado promove a sua prática, por outro, apresenta-o ao público de uma forma bastante distorcida, tornando-se necessário elucidar o que realmente acontece nas academias, de modo a evitar preconceitos e interpretações tendenciosas ligadas ao senso-comum. Um fato social interessante, a prática deste esporte por pessoas provenientes de grupos sociais diferenciados, também é um dos aspectos que me chamaram a atenção e despertaram o meu interesse neste tema. Traçando-se uma divisão entre os praticantes por critérios de origem sócio-econômica, pode ser percebida a grande disparidade entre os dois grupos em diversos aspectos, provenientes desta diferença de origem social. Em termos de projeto, a aspiração à profissionalização dentro do esporte, uma motivação relativamente freqüente no grupo dos praticantes mais ligados à Federação – em geral, proveniente das camadas populares – é completamente descartada no outro, associado ao chamado "Guaraci Vargas Team" e freqüentado por praticantes oriundos das camadas médias. Neste grupo, a valorização da conquista de degraus hierárquicos dentro do esporte – simbolizada pela posse de diferentes faixas coloridas – é extremamente acentuada entre os praticantes oriundos das camadas médias, e freqüentemente vista apenas como uma formalidade pelos praticantes oriundos das camadas populares, que valorizam muito mais o currículo de um lutador, isto é, a quantidade de combates e seu desempenho neles. Esta diferença fica manifesta no teste para a obtenção da faixa-preta, que no grupo oriundo das camadas médias é cercado de instâncias ritualizadas para a conquista desta faixa, obrigando o praticante a se tornar um "homem de ferro" para "merecê-la". O esforço e o sacrifício despendidos nesta prova dão a noção do valor que ela tem para os praticantes. O contraste fica particularmente claro quando se observa o mesmo teste sendo aplicado no outro grupo: uma luta simples de três rounds e

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uma aula ministrada pelo candidato. Ao fazer o teste para a faixa-preta nestas academias, em geral o lutador já possui diversas passagens "oficiais" pelo ringue da federação. Seu objetivo não é a faixa em si, mas a busca do "cinturão" de sua categoria de peso e, mesmo a associação do exame a uma aula manifesta uma relação "profissional" com o esporte, na qualidade de professor, alternativa profissional considerada válida entre os praticantes deste grupo. Estes dois grupos tão diferentes em termos de origem social, entretanto, mostram-se bastante similares a respeito de uma série de aspectos que dizem respeito à construção social da identidade masculina. Conforme as análises de Chodorow (1979) e Gilmore (1990), a identidade masculina não é algo naturalmente conferido a um menino, mas que deve ser conquistado por ele, através de demonstrações públicas de determinadas condutas socialmente atribuídas ao "ser homem" em cada sociedade. Segundo Gilmore (1990), estas características associadas à posse da identidade masculina podem colocar a masculinidade em termos de uma escala hierárquica, cujos parâmetros de mensuração variam para cada sociedade, mas que são exigidos dos homens através de determinados "jogos", formas lúdicas que manifestam quais atributos serão exigidos dos homens, e onde se pode estabelecer este ranking simbólico da masculinidade. Assim, uma das "medidas" – seguramente não a única – desta identidade masculina em nossa sociedade já é a própria aceitação do risco: entrar em campo, aceitar uma aposta ou entrar num ringue, são, neste sentido, demonstrações públicas desta identidade masculina, construída por sobre a capacidade do indivíduo de correr riscos. O risco de ser derrotado é sempre presente a quem entra em um jogo. Relativizando a interpretação antropológicopsicanalítica de Dundes (1994), vimos que a derrota em uma competição em que o valor "identidade masculina" esteja simbolicamente em jogo não implica em uma necessária "feminilização" do derrotado. Na minha opinião, esta

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"feminilização" simbólica ocorre quando um dos contendores manifesta a perda de sua "dignidade" (no sentido empregado por Leal (1994), significando coragem e estoicismo) ao fugir do confronto com o adversário. No caso do full-contact, este comportamento pode tomar a forma de "fugir da luta" ao "dar as costas" ao oponente ou então "ficar de agarramento" com ele, evitando os seus golpes segurando-se no seu corpo o tempo todo. Como vimos, tanto "dar as costas" como "ficar de agarramento" são termos com um sentido dúbio que permitem uma interpretação destes termos como referências a uma prática homossexual simbólica, "feminilizante", neste caso. Quando um lutador "perde lutando", entretanto (e vem daí minha discordância da abordagem de Dundes), seu valor pessoal não é colocado em questão, bem como sua honra e sua identidade masculina. Ao contrário, um lutador que, mesmo perdendo uma luta, não deixa de enfrentar o seu oponente, opondo resistência até o soar do gongo será reconhecido como "valente" pelo público e pelos colegas, um valor claramente masculinizante, associado a coragem e estoicismo, a "dignidade". Em relação às rinhas de galos, Leal (1994) afirma o mesmo, um lutador (no caso, um galo) que perde lutando não tem sua honra ameaçada, nem o seu possuidor, e sua derrota é respeitada pelo silêncio da platéia. A "feminilização" ocorre quando o galo "pia feito galinha" ou um lutador foge do adversário durante o combate, o que nem sempre acontece. Na minha opinião, o conteúdo simbólico mais associado à derrota em um combate é a morte do oponente derrotado. Por vezes esta "morte simbólica" é quase explícita, como no caso de uma derrota por nocaute. Mesmo em uma derrota por pontos, a declaração pública do vencedor por parte do árbitro, levantando o braço do vencedor e mantendo baixo o braço do derrotado pode ser associado à dicotomia "potência/impotência" ou, como proponho, "vida/morte". O conteúdo da derrota no jogo implicando na "morte" do

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derrotado é freqüente em diversos mitos, conforme Lévi Strauss (1976). Considero que o conteúdo simbólico da "morte" do derrotado manifesta-se pela alusão à "impotência" do vencido. Este conteúdo é particularmente manifesto no gesto que assinala a vitória em um combate: o braço/arma/falo do vencedor erguido em público, e o do derrotado mantido abaixado, "impotente" perante a vitória de seu adversário. Outro aspecto desta construção social da masculinidade que abordo é a competitividade. Como foi visto, a prática de disputas e competições é um aspecto fundamental na construção desta identidade masculina nas mais diversas sociedades. Na nossa sociedade, um espaço privilegiado para a realização de competições é a prática de modalidades esportivas. Cada modalidade cria uma hierarquia de valor referente a um certo quesito, como velocidade, força, habilidade com a bola, etc. Em um combate de full-contact, o valor que se afere é a capacidade de luta de cada contendor. Os praticantes referem-se basicamente a dois grupos básicos de valores necessários a um lutador: sob o valor denominado "força", além da força física propriamente dita, estão incluídas a resistência física do lutador e sua "garra", que significa a determinação do lutador de prosseguir mesmo sob resultado adverso; associo este grupo de valores ao domínio do "corpo", ligado ao universo da "natureza". O segundo valor é denominado "técnica", e se refere à habilidade, velocidade e variabilidade do repertório de golpes usados por um lutador, além de uma série de atributos associados ao "usar a cabeça", como inteligência e sagacidade; associo este grupo de valores ao domínio da "mente", valor ligado fundamentalmente ao universo da "cultura". Os praticantes de full-contact aprendem técnicas de luta bastante perigosas que, em princípio, deveriam ficar restritas ao recinto da academia. Por vezes, entretanto, acontece de se usar destas técnicas em brigas de rua, numa manifestação pública do poder adquirido na academia. A legislação a respeito

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considera a prática de artes marciais como uma circunstância agravante ao crime de lesões corporais. Os professores e vários alunos têm consciência deste fato e estabelecem um limite simbólico para a sua ação agonística fora do recinto da academia: o contato físico. Os praticantes são instruídos a não reagirem a provocações, mas, se houver contato físico ("se alguém encostar um dedo em ti, aí tu desmonta", segundo a frase citada de um praticante) a agressão ao oponente passa a configurar legítima defesa. No discurso dos praticantes aparece por vezes o desejo velado de ver o limite ultrapassado para poder usar das técnicas de combate em público. A respeito da construção do corpo entre os praticantes de full-contact, são notáveis três aspectos: a utilização do corpo para a luta, o desprezo à dor e a aceitação incondicional das regras. O corpo de um lutador é construído com exercícios próprios para fortalecer os grupos musculares responsáveis pelo ataque e defesa na luta. Assim, além de um trabalho de alongamento e abertura das pernas visando à máxima eficiência nos chutes, os praticantes também realizam longas séries de quatrocentos a quinhentos exercícios abdominais por sessão de treino, visando enrijecer a musculatura ventral para proteger os órgãos internos dos golpes do oponente, formando uma espécie de "escudo" muscular cuja função é sofrer o golpe adversário e resistir. Este trabalho, como o de alongamento e abertura das pernas, é freqüentemente doloroso, e os praticantes constróem, por sobre a dor, um corpo preparado para o combate. Desprezar a dor é um dos símbolos de masculinidade mais freqüentes nas mais diversas sociedades. Para muitas sociedades, o ritual de iniciação dos meninos inclui torturas a que os jovens devem se submeter sem manifestar a dor de forma alguma, sob pena de cair em desonra perene, ele e os de sua linhagem (Gilmore, 1990). No full-contact, como em quase todas as artes marciais, um lutador é incentivado a não manifestar a dor, e "assimilar um golpe" (uma das

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qualidades valorizadas num lutador) nada mais é do que agir como se o golpe não tivesse ocorrido, ou seja, desprezar a dor. Freqüentemente, os praticantes referem-se a contusões e lesões diversas derivadas do combate, mas com um vago desinteresse, e mostram as cicatrizes obtidas na luta com orgulho, como medalhas de guerra, emblemas de uma atitude masculinizante. O respeito incondicional às regras está presente não só no full-contact como também na maioria das artes marciais. Ele implica em aceitar as ordens do professor durante os treinos, e, no ringue, em aceitar lutar contra qualquer adversário que se apresente. A atitude de submissão dos alunos perante as regras pode ser relacionada à construção da identidade masculina na medida em que reclamar das regras ou pretender escolher um adversário "mais fácil" é, de uma certa forma, pedir a proteção do professor ou do organizador da luta. Como vimos, a atitude submissa de solicitar a proteção de outrem fere o princípio social que associa a atitude masculina com a busca por autonomia. Ao agir no sentido inverso, um praticante estaria se expondo à possibilidade de ter sua conduta masculina colocada em dúvida, pela acusação de "homossexualidade". O próprio grupo, em geral, pela via do chiste, se encarrega de evitar este tipo de atitude, numa forma jocosa de coerção. Assim, vemos como a construção da identidade do gênero masculino em nossa sociedade pode encontrar em uma prática esportiva um campo fértil para desenvolver e valorizar os atributos socialmente considerados como masculinos. Um ringue de full-contact, desta forma, mais do que um simples espaço de jogo, é também uma possível "arena simbólica" onde homens provam e defendem publicamente a sua própria masculinidade.

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combate

Índice Remissivo A

academia

descrição etnográfica, 58-62 relação dos nomes, 49

Apinayé, 113 Aranguren, J. L., 115; 117 Arapesh, 111 artes marciais

diferença dos esportes de combate, 26 esportivização, 22; 43; 161 etimologia, 19 história, 19 jiu jitsu, 51 judô, 23 karatê, 24; 161 na indústria cultural, 28 organização política, 43 orientais, 21 shaolin, 21; 61 taekwondo, 161 zen-budismo nas, 26

B

Ballery, L., 20; 107; 115 Benach, J. A., 42 Boltanski, L., 42; 151 Bourdieu, P., 36; 40; 42; 152 Brandes, S., 96; 103 brigas de galo "piar feito galinha", 141; 144 comparação com o boxe, 139

Bruce Lee, 61 buanyin, 111

C

Caillois, R., 118; 123 campo esportivo, 37 Carvalho, J. J., 99; 119 Chodorow, N., 56; 93; 98; 100; 130; 144; 166 Chulupi, 112 Clastres, P., 19; 112; 130; 158 clinch, 134

com um amigo, 108 descrição etnográfica, 86-91 fora da academia, 106

Cook, H. B., 139; 141 cumprimento, 109; 142

D

Da Matta, R., 96; 113 Denich, B. S., 95 derrota "perder lutando", 135; 144 amenização da, 75 como "feminilização simbólica", 143; 147 como "morte simbólica", 125; 131; 167

desvalorização da feminilidade, 99; 130; 144 dignidade, 141; 144; 148; 167 dojô, 60; 66 dor controle da, 70; 73 desprezo à, 157-61 desprezo como índice de masculinidade, 158; 169 visando "abertura", 70

Douglas, M., 151 Duarte, L. F. D., 101 Dundes, A., 57; 139; 141; 143; 144; 149; 166 Durantez, C., 21; 116 esporte

E

ascensão social através do, 53 e origem social, 42

esportes de combate

boxe, 24; 26; 27; 51 como destruição simbólica, 125 diferença das artes marciais, 27 história, 20

Evans-Pritchard, E. E., 113

F

fair play, 40; 109 faixas hierarquia, 138; 161

179

teste para passagem de, 159

183

Jardim, D. F., 73; 98; 115; 136 Jean Claude Van Damme, 30; 32; 35; 61 jogos bolinhas de vidro, 120 de competição, 118 e hierarquia, 123 teoria dos, 111-19

Jogos Olímpicos

Estocolmo, 1912, 41 pancrácio e pugilato, 115 técnicas marciais nos, 20

K

Klein, A. M., 70; 99; 122 Kregel, W., 42

L

Leal, O. F., 101; 114; 116; 120; 126; 139; 141; 143; 167 Leczneiski, L., 80 Lévi-Strauss, C., 114; 123; 125 lutadores "valentia", 126; 132; 144 construção dos, 142 covardia, 134 descrição etnográfica, 83-86 equipamentos, 86-89 interações, 85-86 relação com os treinadores, 82; 142 relação vitória/derrota, 110

M

Magnane, G., 42; 120; 153 Malinowski, B., 8 Mauss, M., 112; 150 Mead, M., 111 Mehinaku, 96; 126 Muggiati, R., 22; 29

N

Nambikwara, 114 Nuer, 113 nunchaku, 62

O

Ortner, S., 93

P

papéis sexuais, 92 Parlebas, P., 124 Pirsig, R., 26 Pitt-Rivers, J., 95; 102; 126; 146 potlatch, 112 Proni, M., 22 público conduta, 78 interações, 82

R

Radcliffe-Brown, A. R., 102 Rapoport, A., 27; 37; 115 regressão, 97 revanche, 108 Rodrigues, J. C., 151 Rosaldo, M., 92

S

Schüler, D., 115 Schutz, A., 52 sensei, 162 Suárez-Orozco, M. M., 101; 145

T

Tchambuli, 112 técnica como valor êmico, 136 relação com o âmbito da cultura, 137

técnicas corporais, 150; 164 Teixeira, S. A., 139; 141 Timbira, 113 Toba, 112 treinadores

e a construção dos lutadores, 142 relação com os lutadores, 82; 142 vitória de seus lutadores, 143

treino

abdominais, 70 descrição etnográfica, 64-74 exercícios físicos, 69

Trukeses, 132 Turner, V., 119 Turner, V. W., 88

V

184

Van Gennep, A., 88; 157 Velho, G., 52 Virgílio, S., 27; 161

W

Wacquant, L. J. D., 68; 100; 154

Z

Zen-budismo, 26; 161

Anexo: Glossário de Termos Usuais no Full-Contact

ASHIBARAI: Golpe que consiste em uma rápida rasteira pelo lado interno do pé do oponente, aplicado no pé que está à frente do lutador. É usado visando provocar uma queda por desequilíbrio. ASSALTO: ver ROUND CANTO NEUTRO: O ringue tem quatro cantos. Em dois deles, diametralmente opostos, ficam o treinador e o "segundo" (v.) de cada lutador. Os outros dois são os cantos neutros, para onde vão os lutadores quando se abre uma contagem protetora. (v.) CHUTE GIRATÓRIO: É um chute alto, aplicado com o peito do pé, que atinge o adversário após o lutador completar uma volta completa sobre si mesmo, de modo a acrescentar velocidade ao chute. CHUTE GIRATÓRIO COM SALTO: Semelhante ao anterior, com a diferença que o lutador, antes de começar o giro, salta, de modo a realizar todo o movimento enquanto está no ar. Golpe difícil de ser aplicado com sucesso. CHUTE POR COBERTURA: Consiste em um chute alto, com um pé apoiado no chão. O pé que chuta descreve um movimento circular lateral, visando atingir o adversário com a lateral do pé. CLINCH: Recurso de defesa que consiste em "abraçar" o adversário, agarrando seu corpo e braços de modo a evitar a continuação de um ataque ou para quebrar o ritmo de uma luta. CONTAGEM PROTETORA: Interrupção de uma luta pelo árbitro, quando um lutador é derrubado ou está sem condições de se proteger do ataque adversário. Os lutadores são levados para os "cantos neutros" (v.) do ringue e o árbitro conta de um até oito. Se, ao chegar a oito, o lutador manifestar condições de prosseguir na luta, erguendo os punhos, a luta prossegue. Caso contrário, é declarado o nocaute (v.)

186

CRUZADO: Soco que se aplica em diagonal, por exemplo, o braço direito cruzando à esquerda. Em geral, visa o rosto do adversário. DIRETO: Soco que se aplica em linha reta, com a mão que, em relação à linha dos ombros, está atrás, visando o rosto do adversário. FULL-CONTACT: Expressão em inglês que significa "contato pleno". Como termo genérico, refere-se a modalidades de luta em que os golpes são aplicados com toda a potência possível, visando atingir efetivamente o adversário. O termo é também usado para denominar uma das modalidades de Kickboxing (v.) GUARDA: Posicionamento defensivo de um lutador durante o combate. Consiste em colocar os antebraços unidos, do cotovelo ao punho, de modo a proteger o rosto e o abdômen dos ataques adversários. HOOK: Soco baixo e curto que visa o abdômen do adversário. É aplicado com as costas da mão para baixo, e é empregado em lutas a curta distância. ISKA: International Sports Karate Association, uma das entidades internacionais que organizam a prática do full-contact. JAB: Soco alto, aplicado em linha reta com o braço que, em relação à linha dos ombros, está na frente. É usado para manter a distância do adversário, ou em seqüências, para acertar a distância correta. KICKBOXING: É toda a modalidade de luta esportiva que empregue mãos enluvadas e golpes com as pernas, como o full-contact, o muai-thai, (boxe tailandês) e o savate, (boxe francês). KICKBOXER: Praticante de kickboxing (v.) KNOCKDOWN: É uma queda causada por um golpe adversário, na qual se abre a contagem protetora (v.) mas que não resulta em nocaute (v.). LOW KICK: Uma modalidade de kickboxing (v.) na qual são válidos chutes abaixo da linha de cintura, pelo lado de fora da coxa do adversário. LUVA, FAZER: "Fazer luva" é uma expressão que indica praticar a luta "real", com todos os equipamentos de proteção e golpes "full". É usada em oposição a "fazer sombra". (v.) NOCAUTE: Grafia portuguesa de "knockout". Significa que, em conseqüência dos golpes recebidos, um lutador não tem mais condições de prosseguir em um combate.

187

ROUND: Intervalo de tempo em que acontece o combate. É também chamado de "assalto". No full-contact, um round dura três minutos, seguido por um minuto de intervalo. SEGUNDO: Auxiliar de um lutador, que fica fora do ringue durante o combate e entra nos intervalos, para lavar o protetor de dentes, dar água, secar o suor e reanimar o lutador. SEMI-CONTACT: Termo que se refere a determinadas modalidades de luta em que o contato entre os lutadores é apenas indicado pelo toque no corpo do adversário. Os jurados avaliam, neste caso, a virtualidade dos golpes. SEQÜÊNCIA: É uma combinação de golpes diferentes com socos e chutes combinados. São treinados juntos, para, na hora do combate, terem sua eficiência aumentada pela velocidade resultante. SOCO GIRATÓRIO: É um soco aplicado com as costas da mão, que atinge o adversário após o corpo do lutador ter dado uma volta completa sobre si mesmo. SOMBRA, FAZER: "Fazer sombra" significa praticar o combate com um colega sem os equipamentos de proteção e sem contato físico. A distância entre os lutadores é maior e é usada como treino antes de "fazer luva" (v.) UPPERCUT: É um soco curto e rápido, similar ao hook, mas aplicado de baixo para cima, que, entrando por baixo da guarda (v.) do adversário, visa atingir o seu queixo. WAKO: World Association of Kickboxing Organizations, uma das entidades internacionais que organizam a prática do full-contact.

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