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May 28, 2017 | Autor: M. De Avila Todaro | Categoria: The Body, Conscience, Body Image
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LA CHOLA: RETRATO DE UM CORPO CONSCIENTE
Mônica de Ávila Todaro
Daniel de Aguiar Pereira

Introdução

Temos o direito de ser iguais quando a
diferença nos inferioriza; temos o direito de
sermos diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza (Boaventura de Sousa Santos).

Este capítulo tem como essência a possibilidade de aprofundar-se nas
discussões realizadas durante o Módulo Internacional de Doutorado,
oportunizado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Nove de Julho – Uninove/ PPGE.
Este foi um Módulo proposto a todas as linhas de pesquisa do Programa
de Pós-graduação em Educação, podendo ser realizado junto aos países e
universidades parceiras da Universidade Nove de Julho – Uninove, indicadas
pelos professores orientadores responsáveis por suas linhas de pesquisa. No
caso da Linha de Pesquisa em Educação Popular e Culturas, na qual nos
inseríamos na época, o módulo foi oferecido na Bolívia, cidade de La Paz,
na Universidad Mayor de San Andres – UMSA/CIDES, na intenção desse
intercâmbio intercultural, numa perspectiva de práxis formativa que se fez
na soma de encontros teóricos com docentes e pesquisadores da UMSA/CIDES e
de visitas técnicas a locais importantes para o (re) conhecimento da
cultura local.
Para os encontros, foram disponibilizadas referências bibliográficas
para o subsídio teórico das discussões. Em uma das aulas, o professor Jorge
Viaña, investigador do Instituto Internacional de Integração e Convênio
Andrés Bello, encaminhou a discussão sobre o tema "Descolonização,
interculturalidade e emancipação", organizada em três pilares: i) a
interculturalidade crítica em contraste à interculturalidade funcional; ii)
Estado plurinacional (projeto político, disputas pelo poder/ etnofagia e
auto representação social); e iii) projeto educativo. A leitura de textos
de teóricos latinos, como: Feberich, Freire, Galindo, Patzi, Rivera e
teóricos europeus: Adorno e Bourdieu oportunizou a ampliação do panorama
conceitual e de nossa leitura de mundo, despertando nosso interesse pela
chamada: interculturalidade crítica.


As visitas técnicas diurnas foram organizadas e monitoradas por uma
aluna de mestrado da UMSA/CIDES. Já as noites ficaram disponíveis para as
atividades livres, o que nos possibilitou conhecer um pouco mais do
território boliviano e estabelecer novas e outras relações com a cidade e
as pessoas. Com isso, ficou clara a compreensão de nossa incompletude,
inacabamento e inconclusão, frente à imensidão de lugares, pessoas e
experiências às quais estávamos sendo apresentados. Nas palavras de
Freire,


Gosto de ser gente, porque inacabado, sei que sou um ser
condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que
posso ir mais além dele. Esta é a diferença entre o ser
condicionado e o ser determinado [...] Gosto de ser gente
porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha
presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta da
influência das forças sociais, que não se compreende fora
da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo
social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo
mesmo (1997, p.53).


E foi em um desses momentos de imersão intercultural, sendo gente e
percebendo nossa presença num mundo diferente, que percebemos figuras
femininas que não conhecíamos e que pareciam representar uma das tantas
forças sociais daquele páis - as Cholas - mulheres emblemáticas e
paradoxais.
Destarte, a possibilidade de compreensão de quem são estas mulheres e
o seu lugar no mundo apresenta-se como objeto deste estudo, o que nos
permite refletir sobre consciências intencionadas ao mundo diante dos
inúmeros processos que herdamos social, cultural e historicamente. Por
isso, conhecer como essas mulheres, as Cholas, se configuraram ao longo do
processo histórico e, também, sua atual representação social, política,
econômica e cultural estão como cerne para o aprofundamento na concepção
freireana de "corpo consciente" e um ensaio inicial a respeito do conceito
de interculturalidade crítica.
Parece-nos importante ressaltar que o termo Chola sofreu um
deslocamento. Antes se referia de forma pejorativa às mulheres nativas
Aymarás[1] que iam para os grandes centros urbanos e se esqueciam de seus
costumes locais. Nos dias atuais, as Cholas são as mulheres que, nestes
grandes centros, se vestem de acordo com a tradição Aymará local e se
orgulham de sua origem. As Cholas movimentam grande parte do comércio
informal dos locais nos quais estão inseridas, fazem apresentações da
cultura Aymará e participam de um Movimento Cultural de luta livre, que
recebe o nome de Chola Westling.
Ao longo deste capítulo, será exposto o resultado da revisão
bibliográfica que realizamos acerca da vida das Cholas em suas relações
interculturais e de resistência, e a defesa de como intencionam sua
consciência ao mundo, para um existir feminino na contemporaneidade e como
corpo consciente. Daí a escolha do trecho de Boaventura de Sousa Santos
para abrir o texto e deixar claro nosso posicionamento que remete ao
direito humano presente na ação política de negar a padronização da beleza
da mulher boliviana e em um contexto mais amplo da mulher índia e das
mulheres em geral, o direito inquebrantável de sermos e de serem diferentes
quando a igualdade nos e as descaracteriza.

Cultura, multiculturalismo e interculturalidade: conceitos em tensão na
Bolívia

A primeira definição clássica de cultura nos foi dada por Tylor, em
1871, como um conjunto de conhecimentos, crenças, arte, moral, direitos,
costumes e hábitos adquiridos pelo ser humano como membro da sociedade.
Diante desta conjuntura, "cultura ou civilização", em seu sentido
etimológico lato, pode ser compreendida como a macro expressão existencial
de um indivíduo, grupo ou classe.
Brandão (2008) ao desenvolver suas ideias sobre cultura, cita um texto
escrito por Marx, no qual o autor denota que somos seres naturais, mas
naturalmente humanos, uma vez que sendo da natureza, exercermos força sobre
ela, para nos construirmos enquanto sujeitos sociais e produtores de uma
cultura. Para o autor, tudo aquilo que se cria a partir do que é dado,
quando se toma as coisas da natureza e as recria como os objetos e os
utensílios da vida social representa uma das múltiplas dimensões daquilo
que, em uma outra, chama-se de cultura (Brandão, 2002, p. 22).
A cultura, em uma perspectiva freireana, pode ser entendida como
atividade humana de trabalho que transforma e é produzido por diferentes
movimentos e grupos culturais, constituidores de um povo: homens, mulheres
que constantemente aprendem a dizer e redizer a sua palavra e leem e releem
o seu mundo de inserção. Freire (1969, p. 109) traz que "A cultura é o
acrescentamento que o homem faz ao mundo que não fez. A cultura como
resultado de seu trabalho. Do se esforço criador e recriador".
Cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender isso é
importante para atenuar o choque entre as gerações e evitar comportamentos
preconceituosos. Assim como é fundamental a compreensão da diferença entre
povos de culturas diferentes, também é necessário entender as diferenças
presentes no interior de um mesmo sistema (Laraia, 2014, p. 101).
Tal compreensão se faz necessária, pois opõe-se à ideia de uma
superculturalidade, práxis que acontece dada a multiplicidade de relações,
a autossuficiência e os asilos culturais, que produzem determinismos
estruturais os quais impedem o diálogo horizontal, a comunicação e por
consequência, a não tradução cultural.
Segundo Estermann (2013), a ideologia super-cultural pressupõe que a
super-cultura (neste caso: a ocidental[2]), por sua superioridade, não só
tem que ser árbitro entre as culturas, senão a meta ou ideal para todos os
povos pré ou não-ocidentais.
No Brasil, a temática cultura e multiculturalismo vêm à tona nos anos
90 e apresenta o discurso da diversidade cultural que foca as diferenças,
mas não problematiza as relações de poder. A respeito das tensões advindas
da sociedade multicultural, Candau (2005) tece uma importante crítica.
Conforme a autora, na América Latina há uma configuração própria em termos
de multiculturalismo, na medida em que a nossa formação histórica está
marcada pela eliminação e negação do outro pelo processo de escravização,
seja do índio, do afrodescendente ou de quaisquer sujeitos oprimidos,
marginalizados e discriminados socialmente. No mesmo sentido,


É interessante apontar, como salienta Sodré (1999), que
pode haver, até mesmo, uma lógica de hegemonia político-
econômica por trás de certos discursos multiculturais,
onde a dimensão mítica e comunitária é reconhecida,
protegida e promovida desde que não ameace a hegemonia
(Oliveira; Canen; Franco, 2000, p. 115).

Portanto, a problematização do termo multicultural, faz com que a
interculturalidade surja como proposta de uma convivência culturalmente
diversa e socialmente complexa com constantes relações contraditórias e
conflitivas nas quais a pluralidade se faz presente.
A interculturalidade deve significar, então, um novo enfoque diante do
que se quer e uma nova atitude que se toma. Faz-se necessário o
reconhecimento dos contextos onde se produz visões do mundo como conjuntos
holísticos (culturas), e, por conseguinte, a conclusão de que não existem
critérios universais superculturais que possam atuar como juízes na
validação de diferentes conhecimentos.
Cresce a urgência em se construir um projeto crítico à
superculturalidade, propondo-se um pensar profundo acerca das condições,
limites e potencialidades da interculturalidade. Como decorrência desse
novo projeto, poder-se-á superar o conceito de uma interculturalidade
conservadora, entendida como diálogo entre culturas diversas e que tem como
fundamento uma concepção de cultura que termina cerceando a potencialidade
efetiva do projeto Intercultural Crítico, já que a própria compreensão do
conceito de cultura apesar de útil para criticar a superculturalidade, tem
raízes conservadoras, dominantes e coloniais.
Viaña (2008), em seu artigo "Reconceptualizando la interculturalidad",
nos alerta a respeito de uma possível ingenuidade que se traduz na crença
de boas regras e leis presentes nos discursos governamentais que trazem a
interculturalidade em seu bojo. Segundo o autor, esta é uma compreensão
limitante que nos permite apenas a falsa consciência de uma inter-relação
de respeito e diálogo entre os diferentes para viver em harmonia, partindo
do pressuposto implícito de que a única importância está na vontade
subjetiva dos sujeitos em serem respeitosos no estabelecimento do diálogo
com seus pares e díspares.
O autor analisa os elementos constitutivos do uso dominante do
conceito de interculturalidade e apresenta a hipótese de que as culturas e
formas de existência não capitalistas são até hoje compreendidas como não
civilizadas, pela maioria dos que se consideram "interculturalistas".
Além disso, aponta que não existe predisposição em "respeitar" e
"dialogar" com os diferentes, dada as relações de dominação colonial e de
capital preestabelecidas, sejam elas econômicas, políticas, sociais e
cognitivas. Tais relações impulsionam o sujeito para uma situação absoluta
e real de desigualdade, presentes na sociedade, na língua, na
representatividade política e no poder econômico, produzindo por fim um
monólogo estrutural e monocultural intolerante, repleto de imposições do
poder.
Ao final de seu texto, Viaña traz a contribuição de Adorno e de
Boaventura Sousa Santos para afirmar que o sentido da cultura é a superação
da coisificação e que não há interculturalidade se não houver uma cultura
comum, compartilhada. Nessa linha de raciocínio, o autor defende que é
preciso que emerjam projetos sociais efetivos, a partir de uma posição
reflexiva e crítica das reais necessidades de um povo e por fim, a
construção de um projeto intercultural emancipatório, entendido pelo autor
como


una herramienta más de emancipación que visibiliza y
denuncia la situación real de desigualdad, de opresión y
aspira a subvertirla en todos sus niveles y formas para
crear - al menos como proyecto político de transición - un
mínimo de paridad de condiciones entre los hoy subalternos
y oprimidos, y los dominantes, para abrir la ruta de un
nuevo proyecto societal (Viaña, 2008, p. 91).


Por isso, o desafio atual está em estabelecer um diálogo
descolonizante-intercultural que rompa a tolerância passiva mútua e a
agressão ativa para passar a uma coexistência interativa e dinâmica
(Medina, 2012, p. 4). Assumir a interculturalidade crítica como princípio
se faz necessário num mundo em que a multiplicidade cultural é cada vez
mais intensa, porque ela
orienta processos que têm como base o reconhecimento do
direito à diferença e a luta contra todas as formas de
discriminação e desigualdade social. [...] Não ignora as
relações de poder presentes nas relações sociais e
interpessoais. Reconhece e assume conflitos, procurando
estratégias mais adequadas para enfrenta-los (Candau,
2005, p. 32).


Por isso, a interculturalidade crítica manifesta-se como luta contra
hegemônica que busca a redefinição do conceito "interculturalidade" em sua
noção e uso dominantes, para além de um substituto do conceito de
"multiculturalismo", negando, deste modo os mesmos horizontes e fundamentos
conservadores (Viaña, 2008).
Na América Latina, a interculturalidade é, conhecidamente, resultado
de lutas políticas dos povos para romper com o não reconhecimento, o
silêncio e a invisibilidade e, portanto, pelo direito a ser. Revela, então,
a busca por uma sociedade mais justa na qual se reafirma a identidade
indígena e afroamericana. Mais que um simples conceito de inter-relação, a
interculturalidade implica em processo de construção de conhecimentos
distintos em sua forma de atuar e pensar; um paradigma que é pensado por
meio da práxis política e a partir da diferença.
Na Bolívia, segundo a análise crítica de Estermann (2013), há no
momento atual uma situação de muitos antagonismos e contradições internas
tanto no discurso como na prática. Em nível de discurso, a Constituição e
os pronunciamentos oficiais do governo trazem os termos desenvolvimento
sustentável, preservação, culturas e descolonização, e os mesmos se repetem
de maneira coerente e muito luminosa. Na prática, há um paradoxo entre duas
visões supostamente indígenas: a concepção dos povos indígenas de terras
baixas versus uma racionalidade Aymará, Quéchua. A interculturalidade é
atravessada e se subordina ao discurso da economia, desenvolvimentista, não
muito distinto de outros projetos de outros países.
A conhecida diversidade étnica e cultural da Bolívia foi coroada com a
vitória eleitoral de Evo Morales, um indígena da etnia Aymará que pela
primeira vez na história do país chega à presidência. Desde 2005 há, então,
um rompimento com a secular hegemonia dos descendentes europeus nos postos
de poder. Hoje, no estado plurinacional e pluricultural, como é chamado,
considera-se todas as culturas e identidades que lá coexistem. A
pluralidade cultural, na Bolívia, parece demarcar ideologicamente uma
identidade nacional. Isso se revela, por exemplo, na existência de uma
Secretaria de Culturas, no plural.
A interculturalidade crítica é, nesse cenário, um enfoque transversal
que se articula com outros como, por exemplo, gênero e igualdade e que se
plantou como um projeto alternativo, sem cair em um relativismo
paralisante, e é justamente esta tensão que existe entre o universalismo e
o relativismo, que de certa maneira caracteriza este projeto alternativo
localizado entre os conceitos de cultura, multiculturalismo e
interculturalidade.
Por isso, pergunta-se: existem culturas que coisificam o ser humano?
As Cholas personificam uma posição ingênua da mulher boliviana? As
manifestações da cultura corporal, na perspectiva das Cholas, apresentam
uma concepção de mundo que se contrapõe à cultura hegemônica de fato? Ou,
ainda, sua imagem corporal revela a dominação colonial? Como afirmar uma
pluralidade de produções de significado cultural sem renunciar a ideia da
comunicação condizente a um consenso dominante?

Cholas: imagem corporal da interculturalidade crítica?

Seeger e seus colaboradores (1979) trazem que "considerar o lugar do
corpo humano na visão que as sociedades indígenas fazem de si mesmas é um
dos caminhos básicos para uma compreensão adequada da organização social e
cosmologia destas sociedades" (p.3).
A diferença sexual se constitui num ponto chave no qual se constrói a
categoria de análise sexo-gênero. As diferenças entre os seres humanos, de
acordo com Laraia (2014, p. 24), não podem ser explicadas em termos das
limitações que lhe são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio
ambiente. Como proclamava Simone de Beauvoir em 1949 no livro O Segundo
Sexo, "nós não nascemos mulher, e sim nos tornamos mulher", denunciando as
diferenças nas relações entre homens e mulheres em sociedade.
O modo de ler o mundo em termos binários, dicotômicos e polares nos
limita. O lugar e a posição em que se encontram homens e mulheres estão
determinados pelas interações sociais e culturais. Para Estermann (2014),
articular o debate de classe social com o debate de equidade de gênero e
estes com o debate sobre cultura e etnia são articulações que poderiam nos
ajudar a construir uma filosofia intercultural crítica e emancipadora.
Na Bolívia, especificamente em La Paz, o mestiço indígena se designa
como "cholo", palavra que designa o povo de Madrid (Dicionário Real
Academia Espanhola). De acordo com a língua Aymará, a palavra "chulu"
designaria a pessoa que não reconhecia obrigações com o cacique, autoridade
imposta pela Coroa espanhola nas comunidades indígenas. Afirma-se, também,
que o termo "cholo" derivaria da palavra "capichola", nome de um tecido
utilizado na vestimenta feminina do século XVIII (Barragán 1992).
Ser mulher e ser Chola no século XXI, na Bolívia e, especialmente em
La Paz, implica em uma (re) valorização do feminino ou numa subordinação
das mulheres dentro da sociedade boliviana? Revela-se num corpo consciente
ou como um tolo útil? Expressa uma luta de gênero ou uma visão sexista do
mundo?
A filosofia andina, segundo Estermann (2013), nos ensina que a
construção de uma identidade própria é subordinada a do (da) outro (a), se
dá justamente na relação, e não é autoconstruída a partir da
autoconstituição. Pensando desse modo, ser Chola e ser mulher é construir
dia a dia uma identidade. Ver e "ler" as Cholas como pessoas exóticas,
talvez numa perspectiva reducionista e ingênua, esteja ocultando uma forma
colonial de trata-las incompatível com uma posição progressista e uma
prática realmente intercultural.
Enquanto uma dimensão estética, uma das características das Cholas de
La Paz é que possuem uma identidade marcada pelo uso da "pollera". O
interessante é que parece que só no caso das mulheres, a identidade mestiça
é delimitada pelo uso específico de uma indumentária.
As Cholas optam pelo uso de partes da vestimenta espanhola como uma
forma de diferenciar-se do (a) indígena. O uso da "pollera" implica na
ressignificação da mestiçagem, mas ao mesmo tempo, marca sua posição
ideológica, quando o uso de mantas indígenas se faz presente, interferindo
na "imagem ocidental socialmente construída".




A imagem das Cholas representa, assim, não só a ruptura da dualidade
índios versus espanhóis, mas também a interferência dos valores entre ambos
os mundos e a criação de uma identidade conflitiva que leva no seu seio a
tradição e a modernidade simultaneamente (Barragán, 1992).
Esta mesma ruptura da dualidade - índios versus espanhóis - apresenta-
se também como projeto intercultural, uma possibilidade de vida, de um
projeto distinto do projeto dominante e "natural" de ser mulher. Revela a
possibilidade de um projeto alternativo que questiona profundamente a
lógica irracional e instrumental do capitalismo em que vivem inseridos,
constituindo uma nova objetividade-subjetiva por meio da inter-relação e da
rearticulação dos elementos culturais deslocados. Para Walsh (2002),


Más que un simple concepto de interrelación, la
interculturalidad señala y significa procesos de
construcción de conocimientos "otros", de una práctica
política "otra", de un poder social "otro", y de una
sociedad "otra"; formas distintas de pensar y actuar con
relación a y en contra de la modernidad/colonialidad, um
paradigma que es pensado a través de la praxis política.


A produção da contextualidade de uma razão (ou de uma racionalidade
Chola que não se quer oprimida) que não produza "ilhas de razão" sem "zonas
de tradução" (Fornet-Betancourt, 2003) nos fez pensar que o horizonte
'racional', contextual, destas mulheres e de todos vai crescendo,
precisamente por essa forma singular de relações, que é a tradução, o
diálogo e a interculturalidade.

Corpo consciente: uma introdução à racionalidade Chola


Paulo Freire defende em suas obras a ideia de que a consciência é
consciência de corpo. O corpo e a consciência, juntos, como corpo
consciente, constituem-se dialeticamente num mesmo movimento – numa mesma
história. "Corpo consciente é a consciência intencionada ao mundo",
escreveu Freire, na obra "Comunicação ou extensão" (1969, p.51).
A tal falada conscientização, para o autor, consiste no
desenvolvimento crítico da tomada de consciência. Quanto maior é a
conscientização, mais se revela e desvela a realidade.
Ao ampliar o entendimento da condição das Cholas, não se pode aceitar
sua consciência como algo localizado, como se fosse uma parte destas
mulheres, um fragmento. Muito menos como uma consciência-mente colonizada a
receber incessantemente os depósitos que os "impérios" lhe fizeram, e que
se vão transformando em seus conteúdos. Mas sim, como corpo consciente das
inter-transformações, das intra-transformações e das trans-transformações.
Nesta compreensão de um existir consciente e de uma consciência
existenciada, a consciência do mundo e a consciência de si caminham juntas
e em causa direta; uma é o cerne da outra. A relação entre ser mais e fazer
o mundo mais humano, torna o ser mais humano, mais consciente de si e de
seu corpo no mundo. Corpo consciente que a pessoa assume ao comportar-se
frente ao meio que a envolve, transformando-o em mundo humano e humanizando-
se em meio ao mundo (Todaro & Pereira, 2015). Assim,

O homem é um corpo consciente. Sua consciência,
"intencionada" ao mundo, é sempre consciência de em
permanente despego até a realidade. Daí que seja próprio
do homem estar em constantes relações com o mundo.
Relações que a subjetividade, toma corpo na objetividade,
constitui, com esta, uma unidade dialética, onde se gera
um conhecer solidário com o agir e vice-versa. Por isto
mesmo é que as explicações unilateralmente subjetivistas e
objetivista, que rompem esta dialetização, dicotomizando o
indicotomizável, não são capazes de compreendê-lo (Freire,
1969, p. 51).


Compreende-se, então, que não se chega à conscientização por uma via
psicologista, idealista ou subjetivista, pois o corpo consciente não se dá
nos homens isolados, mas enquanto travam entre si e o mundo relações de
transformação. Assim, e tão somente desta forma, pode a conscientização
instaurar-se e corporificar-se (Freire, 1969, p.56).
Ao ser e estar Chola, essas mulheres habitam o mundo e, portanto,
estão com o mundo e com os outros, como seres concretamente situados e num
processo de mútua construção e reconstrução, ou seja, consciências
intencionadas da práxis, da existência vivenciada, de sua corporeidade,
sendo corpo e mente em interação, vivenciando o mundo.
Para nós, a figura de uma mulher diferente, forte e orgulhosa de sua
origem se soma a uma identidade forjada na luta para afirmar sua cultura e
sua história. As Cholas parecem não se submeterem às propagandas
ideológicas, políticas e comerciais presentes, por exemplo, em outdoors
espalhados em La Paz que convidam as mulheres bolivianas a se tornarem
loiras e a usarem roupas e acessórios produzidos por marcas
internacionalmente conhecidas. Sua imagem rompe à lógica normalizadora do
padrão de beleza imposto pela mídia e pela sociedade e amplia a
possibilidade de ser mulher no século XXI, na América Latina.
Sendo Cholas, negam um etnocentrismo europeu pautado na superioridade
ocidental e branca. Sua imagem é a da cidadania que vai integrando a
Bolívia, ajudando na formação de uma nação que se pretende homogênea.
Podemos dizer que representa por um lado às tradições populares e por outro
o projeto modernizador do Estado Nacional Boliviano. Uma cultura que se
mantém e emerge mesmo em frente ao constante crescimento de um movimento
etnofágico mundial.
Aprende-se que as Cholas se decifram a si mesmas como mulheres e leem
em seus corpos e nos corpos das outras a sua e nossa humanidade, à medida
que se percebem mais conscientes de suas disposições. Como seres da práxis,
refizeram-se com base em disposições a que se propuseram, criando novas
realidades, produzindo ineditismos, transformando seu entorno e se
transformando – tomando consciência de seu corpo e estando "corpo
consciente". A cultura do opressor, do colonizador, imposta, não conseguiu
calar as expressões culturais das Cholas manifestas em seus corpos.
São mulheres que corporificam um projeto cultural compartilhado que
busca a recriação das culturas a partir da prática do reconhecimento
recíproco. Uma nova tomada de consciência cada vez mais nítida de que todas
as culturas estão em um processo de gestação de seus próprios universos de
sentidos, e que não existe a possibilidade teórica de subjugar
completamente a outra cultura em um mesmo sistema de interpretação (Salas,
2006).
Cholas, em nossa leitura e interpretação, são mulheres que não se
limitam ao reconhecimento, respeito e eliminação de discriminações. Estando
imersas em um processo de intercâmbio e comunicação, partem dos padrões
estruturadores de cada cultura superando o prepotente prejuízo de que a
verdade é patrimônio de tal ou qual cultura e que, como possuidora, tem a
"carga" de transmiti-las as outras.
Ao produzirem um pensar respectivo, as cholas não se relativizam,
tornando-se isoladas e incomunicáveis, mas também não se universalizam, já
que a ideia de universalização é monocultural. Desvelam-se, aos nossos
olhos, enquanto mulheres que conscientes de si tomam a universalidade como
ponto de partida e não de chegada. Pessoas-corpos que pensam a
universalidade da coexistência a partir do diálogo intercultural crítico,
já que inter, por fim, significa necessariamente uma mútua relação entre
culturas inicialmente separadas, momento no qual duas ou mais culturas se
encontram e se comunicam horizontal e transversalmente.

Considerações finais


Conhecer a vida das Cholas pareceu-nos um exercício importante para
pesquisadores que compreendem os homens e mulheres como seres de inter-
relações, da práxis. É também uma tarefa desafiadora para aqueles que
concebem que o indivíduo re-cria-se, re-descobre-se, re-faz-se, na medida
em que vai se desvelando, manifestando e configurando-se como corpo
consciente. Temos em Freire (1983), ainda nesse sentido, que os homens (e
as mulheres, no caso das Cholas) são seres do quefazer, porque seu fazer é
ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. É teoria e prática.
Hoje, enquanto pesquisadores em construção, inacabados e inconclusos,
e que se sentindo oprimidos buscam libertar-se de uma racionalidade
acadêmica quantitativa e produtivista, defendemos a ideia de que a Chola é
uma atriz social que em sua ação histórica é capaz de problematizar a
cultura alienada e alienante. E, além disso, é uma consciência intencionada
ao mundo, um corpo consciente, uma categoria essencial extraída do legado
freireano, para a resistência cultural feita por seres abertos a indagações
e que pensam com o corpo inteiro.
Pode-se dizer, por fim, que a escolha do tema surgiu tanto da
observação dessas mulheres tão aparentemente diferentes das brasileiras,
quanto de nós mesmos, de nossas vidas e das marcas da opressão em nossos
corpos, nem sempre, conscientes. A escrita também se fez necessária como
revelação de nossa leitura de mundo.
Desejamos ter não somente o direito de ser iguais quando a diferença
nos inferioriza e de reconhecimento das diferenças, mas principalmente ter
o direito de sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza.
Buscamos um outro mundo possível no qual o respeito verdadeiro à identidade
cultural do outro apresenta-se como finalidade, tal qual aprendemos com o
que ousamos agora a chamar de racionalidade chola.




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[1] Aymará é nome de um povo, estabelecido desde a Era pré-colombiana no
sul do Peru, na Bolívia, na Argentina e no Chile.
[2] Para Fornet-Betancourt, ocidental "se refere aqui a tradição cultural
dominante que se impõe aos processos de institucionalização e que resulta
opressora, inclusive para outras tradições ocidentais" (2003).
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