“Lá e cá” histórias e projetos de vida de sorveteiros ítalo-brasileiros na Alemanha: ensaio e apontamentos de pesquisa

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Cadernos OBMigra V.2 N.1 2016

ISSN: 2359-5337

“Lá e cá” histórias e projetos de vida de sorveteiros ítalo-brasileiros na Alemanha: ensaio e apontamentos de pesquisa Diane Portugueis1 Resumo: O texto apresenta nossa proposta de investigação, com inserção das primeiras reflexões sobre a experiência em campo. A proposta tem sua relevância baseada na busca por contribuições para o entendimento das influências da transmissão cultural no campo dos estudos migratórios no que tange influências culturais mediadas pela relação entre três países- Itália, Brasil e Alemanha e por influências do Estado quanto ao acesso ao duplo passaporte e políticas de pertencimento. Nosso foco é a compreensão do processo de reformulação das crises implícitas aos movimentos e/imigratórios e o alcance da transmissão cultural na formulação de projetos de vida de descendentes de imigrantes italianos nascidos no Brasil que trabalham em sorveterias na Alemanha, fomentando novos modos de articulação de identidades. A metodologia se apoia na análise Biográfica e observação participante de base etnográfica. Passado e presente misturam-se ao cotidiano configurando um “entre lugares”, mas é o objetivo de ascensão no Brasil com o fruto do trabalho que serve de motor para lidar com as dificuldades. Viver “entre lugares” se mantém a escolha mais segura em meio aos desafios e à provisoriedade. O trânsito entre locais e identidades, o resgate de origens somados às experiências na Alemanha faz dos ítalo brasileiros cidadãos híbridos. (palavras chave: ítalo-brasileiros na Alemanha, dupla cidadania, identidade) Abstract: This paper presents our research proposal, with insertion of the first reflections on the experience in the field. The following proposal has its relevance based on the search for contributions to understanding of the influences of cultural transmission in migratory studies regarding cultural influences mediated by the relationship between three countries- Italy, Brazil and Germany and by state influences on access to double passport and citizenship policies. Our focus is the understanding of the process of reformulation of implied crises on translocal immigration and scope of cultural transmission in the formulation of life projects of Italian immigrants descendants born in Brazil that workrs in ice cream parlors in Germany promoting on this way new forms from identities. The methodology is based on Biographical analysis and participant observation. Past and present blend to everyday setting up a "in between spaces", but is the intention to rise in Brazil with the result of the work in ice cream parlours in Germany that serves as a motor to handle the dificulties.To live “in between" remains the safest choice through the challenges and temporariness their work condition. The transit between locations and identities mades the Italian Brazilians hybrid citizens. (Keywords: Italian-Brazilian in Germany, dual citizenship, identity)

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Doutoranda IMIS Institut Universidade de Osnabrück e Programa de Estudos Pós Graduados em

Psicologia Social Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Bolsista DAAD/Capes. Contato: [email protected]

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Introdução. Compreender os vínculos que relacionam a cidadania obtida por meio da obtenção de passaporte estrangeiro com a concretização de projetos de vida no exterior de descendentes de imigrantes italianos nascidos no Brasil e entender o valor desta estratégia imbricada ao pertencimento e constituição de identidades, mostra-se tarefa pertinente frente ao grande número de solicitações de dupla cidadania em consulados italianos por todo o Brasil. Tal fenômeno vem sendo debatido em redes sociais e na mídia em geral, sobretudo quanto ao tempo de espera2 para aquisição do documento, cerca de 20 anos, tamanha a procura. Dados do Itamaraty3 estimam em 25 milhões o número de descendentes de italianos no Brasil, dando margem à provável continuidade desta procura em termos numéricos. Apoiados em tais fatos interessa-nos a articulação do tema “dupla cidadania” com relação ao hibridismo cultural e sua influência na constituição de identidades, visando o processo constitutivo da identidade do sujeito brasileiro, quando possuidor do passaporte estrangeiro em sua nova condição de “europeu” (com a aquisição do passaporte italiano o cidadão brasileiro passa a ter status de europeu). As consequências de tal relação e influência cultural podem ser captadas através das vivências de desenraizamento, de acordo com SAFRA (1999): ruptura, desalojamento da continuidade e no caso da imigração, diferenças étnicas do sujeito podem não ser reconhecidas no novo ambiente e do enraizamento em uma nova cultura, bem como sua importância junto à formulação de projetos de vida influindo, ou até mesmo determinando, a constituição de identidades. Segundo WEIL (1979) “O enraizamento é talvez a necessidade mais desconhecida da alma humana. (...) o ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural, isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da profissão, do ambiente.” (p.347)

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http://consuladoitalianosp.net/consulado-italiano-sp-lista-de-espera/

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http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/ficha-pais/5270-republica-italiana

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Esta proposta tem sido estudada4 junto a uma população de descendentes de imigrantes italianos nascidos no Brasil, cujo contexto da obtenção de sua cidadania italiana visa um objetivo peculiar. Trata-se de uma imigração de trabalho, que de acordo com informações que tivemos acesso5, teria se iniciado na década de 1990. Esta imigração diz respeito aos descendentes de imigrantes italianos nascidos no Brasil, que atualmente emigram para a Alemanha com a finalidade de exercerem trabalhos em sorveterias, como vendedores de sorvete, ou mesmo na cozinha, no preparo do mesmo. Para tanto, adquirem a cidadania italiana – obrigatória para que possam se candidatar ao trabalho em sorveterias- por meio da obtenção de passaporte italiano6 em um processo que envolve alto investimento, tanto econômico como pessoal. A existência deste fenômeno, correlacionado às características acima descritas, chegou ao nosso conhecimento através de relatos de pessoas que vivem na Alemanha e notaram a presença de brasileiros trabalhando nas condições descritas. Chamou nossa atenção a peculiaridade com que tal imigração se dá. Os brasileiros descendentes de italianos trabalham na Alemanha, não falam o idioma alemão, tampouco o italiano fluentemente. Vivem na Alemanha durante a temporada da venda de sorvetes (quando as temperaturas se elevam) retornando ao Brasil no inverno europeu. Os brasileiros permanecem na Alemanha por cerca de oito meses, retornam ao Brasil e posteriormente reiniciam o novo ciclo, na reabertura da temporada de vendas de sorvete na Alemanha. Caracteriza-se assim uma relação de circularidade, cuja temporalidade do processo é um fator de escolha para o trabalho na Alemanha (e não em outros países, como Itália ou Londres, por exemplo) justamente para que seja possível o retorno anual para o Brasil. Na Alemanha as sorveterias fecham no inverno, o que não ocorre na Itália. No tocante à circularidade interessa-nos compreender o processo de enraizamento e desenraizamento, sobretudo do ponto de vista psicológico. Foram encontrados poucos sites na internet que retratam a existência desta 4

Doutorado em andamento desde 2014, com estágio doutoral e pesquisa de campo em Osnabrück, Alemanha, desde abril de 2015. 5

Não consta em documentos oficiais o início deste tipo de imigração de trabalho. Dados da Dissertação de Mestrado de Carla Nichele Serafim (2007) e Adiles Savoldi (1998) apontam o início da década de noventa, dado confirmado por um de nossos entrevistados. 6

Segundo o site da revista exame (2001), passam de 12 mil os inscritos na fila do consulado italiano no Brasil a espera do passaporte italiano. Fonte: http://exame.abril.com.br/revistaexame/edicoes/0741/noticias/mao-de-obra-absorvida-m0045521 acesso em 07/04/2014.

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imigração7. Nestes, o que capturou nossa atenção foi a descrição deste fato como possibilidade de ascensão social pelo trabalho na Europa, sendo o recrutamento da mão de obra exclusivo para pessoas que consigam obter o passaporte italiano. Dentre os sites mencionados, destacamos um que relata a existência deste processo de recrutamento de pessoas na cidade de Urussanga8(SC). A reportagem ressalta que estes trabalhadores fazem a diferença por seu atendimento cordial, diferindo, portanto, de trabalhadores de outras nacionalidades, também atuantes na mesma função. Destaca-se a alusão nos sites pesquisados de tal possibilidade imigratória como ascensão social e financeira, fator motivador para que muitas pessoas busquem o consulado italiano para a obtenção do passaporte europeu. A obtenção de documentos para o passaporte pode ser feita no Brasil ou em muitos casos, na Itália em um processo complexo e dispendioso9. De acordo com dados de PISCITELLI (2008), a partir da década de 1980 o Brasil passa de receptor de imigrantes internacionais para um grande exportador de emigrantes. Devido à séria crise econômica vigente à época, deu-se a emigração de descendentes de japoneses para o Japão, cujo movimento conhecido como dekassegui teve destaque na literatura científica sobre imigração (SASAKI, 1999). Tal movimento foi legitimado pelo critério da ascendência japonesa, cuja valorização da consanguinidade foi tomada como critério seletivo (KAWAMURA, 1999). Destaca-se ainda a imigração de trabalho para os Estados Unidos e, em menor escala, mas com aumento substancial a partir dos anos 2000, para a Espanha (ASSIS, 1995; PATARRA & BAENINGER, 1995, SALLES, 1999; PISCITELLI, 2008; AMORIM, 2013). Ressalta-se o movimento dekassegui como imigração de trabalho cuja forma de entrada no país dependia de laços sanguíneos, como também observado no caso dos sorveteiros brasileiros na Alemanha, cuja entrada na Europa se dá via passaporte italiano. PISCITELLI (2008) aponta que “a falta de oportunidades laborais e de possibilidade de mobilidade social, sobretudo para alguns setores das classes médias, 7

Sites encontrados a respeito dos sorveteiros brasileiros na Alemanha: http://panorama.sc/os-sorveteirosde-urussanga-nas-terras-de-bethoven/; http://exame.abril.com.br/revistaexame/edicoes/0741/noticias/mao-de-obra-absorvida-m0045521; http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3960378-EI6580,00.html/ http://g1.globo.com/jornalhoje/0,,MUL1132071-16022,00-DELICIA+DE+TRABALHO.html 8

Sorveteiros de Urussunga na terra do Beethoven. http://panorama.sc/os-sorveteiros-de-urussanga-nasterras-de-bethoven/ acesso em 07/04/2014. 9 Informação obtida em campo.

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alimentaram o fluxo de migração ao exterior” (PISCITELLI, 2008: 269). A autora ressalta que o fenômeno da emigração de brasileiros para o exterior, iniciado em 1980, teve motivação econômica e até a publicação de seu artigo, em 2008, ainda era o principal

motivo da saída do Brasil. Cabe, entretanto destacar que após a crise

econômica de 2008 muitos brasileiros que viviam no exterior retornaram . Logo, o tema brasileiros trabalhadores em sorveterias é interessante neste contexto, uma vez que os brasileiros escolhem o país menos atingido pela crise, a Alemanha. Um dado relevante, que ilustra esta problemática foi recolhido em nossa pesquisa de campo, em junho de 2016 e retrata a escolha pela Alemanha ligada a fatores econômicos e ainda facilitada e incitada por redes de contatos estabelecidos desde o início dos anos 90. As redes se fortaleceram, aumentaram e segundo o relato de uma entrevistada na sorveteria, muitos jovens de Urussanga e arredores que tinham decidido retornar e fixar residência definitivamente no Brasil resolveram voltar para a Alemanha, devido à crise política e instabilidade econômica do governo Dilma Rousseff.

Em seu texto, PISCITELLI (2008) propõe importante discussão sobre a tradução cultural da posição subalterna ocupada pelo Brasil nas relações transnacionais e destes como aspectos que influenciam as experiências destes sujeitos no exterior. Há ainda, mediado por razões econômicas, um suposto prestígio creditado aos brasileiros que vão morar na Europa, podendo este também ser um fator motivacional para a emigração, algo que mesmo frente á crise econômica vigente desde 2008, ainda pode ser considerado motivo de busca por elevação de status social. Com base em apontamentos de COSTA (2008, 2012) verificou-se a escassez de estudos relacionados ao fenômeno de coexistência interétnica em países como Brasil e Alemanha. O autor aponta a importância de iluminar-se tal fenômeno com base no contexto histórico e compreensão do Brasil enquanto nação “mestiça, harmônica e igualitária” (COSTA, 2012: 235). Segundo o autor, no Brasil a miscigenação daria espaço a outras formas de pertencimento e configurações identitárias. Contudo, aponta que a coexistência interétnica em ambos os países é uma discussão pró-forma, no sentido que “Cultura e etnicidade transformaram-se em campos políticos de batalha” (COSTA, 2012: 236) e não em interação plural que fomente que ambas as Nações se configurem como etnicamente heterogêneas. 42

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Desta forma, inspiramo-nos neste autor, sociólogo, catedrático da Universidade livre de Berlim, que aponta a relevância social e científica da complexa tarefa envolta na discussão dos desafios da coexistência interétnica. Levamos em consideração a importante posição econômica e geopolítica ocupada por ambas potências na Europa e América Latina (Alemanha e Brasil). Assim, a obtenção de informações pertinentes acerca do conflito instaurado pela questão migratória e coexistência interétnica entre Brasil e Alemanha pode indicar um caminho para o entendimento de atravessamentos do Estado na ordem sistêmica e também nos conflitos identitários, em alcance de nível global. COSTA (2012) ressalta a inexistência deste tipo de debate. Hibridismo, globalização- qual é o lugar dos sorveteiros? Com base em apontamentos resultantes de nossa dissertação de mestrado10, configurou-se compreensão acerca da vivência do hibridismo cultural em descendentes de imigrantes alemães no Brasil. De acordo com BHABHA o hibridismo cultural pode ser compreendido como negociação cultural, enquanto condição e processo, logo, uma negociação de sentidos e significados socioculturais (BHABHA, 2001). É na possibilidade de um entre lugares, instaurado pela vivência do hibridismo cultural, que o sujeito tem bases para atuações e escolhas criativas, para ser quem é em detrimento de escolhas identitárias socialmente impostas. (PORTUGUEIS, 2013). Foi possível verificar nos relatos de descendentes alemães no Brasil a confluência entre culturas, tanto a brasileira como a alemã, vivenciadas como positivas e emancipadoras, sendo assim percebidas pelos sujeitos em suas vivências no cotidiano. Os depoentes de nosso estudo referiram a relação existente entre experiências de militância política no Brasil e a imbricação destas com a constituição de suas identidades, relacionadas às culturas e tradições das quais fazem parte. Peter Burke, em ensaio intitulado “Hibridismo cultural”, propõe um panorama acerca desta questão, compreendendo esse conceito de modo multifacetado. Seja com o espectro da globalização, até apropriação e/ou empréstimos de elementos culturais diversos, propõe um futuro próximo composto pela reconfiguração de culturas em

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PORTUGUEIS, D. Quem somos nós, descendentes? Da História à socialização na constituição de identidades “teuto-brasileiras”. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2013.

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processo que nomeia como “crioulização11 do mundo” (BURKE, 2003:116), fenômeno a ser considerado ao se pensar a constituição de identidades na contemporaneidade do mundo globalizado. Neste contexto se insere nossa pesquisa, que pretende tratar de transformações que os indivíduos desenvolvem ao vivenciar o hibridismo cultural em suas práticas, gerando uma tendência de crescente ambiguidade nas chamadas identidades nacionais como ser a um só tempo brasileiro e italiano, por exemplo - e, talvez, também de volatilidade - com as possibilidades decorrentes de uma identidade supranacional, como a de cidadão europeu, que promete igualdade a brasileiros descendentes de italianos, frente a alemães na terra natal destes, por exemplo. Tudo isso ainda podendo permitir a avaliação de condições de emancipação ou de estagnação frente às opressões vivenciadas no processo imigratório de trabalho de ítalo-brasileiros para a Alemanha. Neste plano, nosso objeto de estudo trata a transmissão cultural e a construção de pertencimento e identidade enquanto parte influente na constituição e expressão de projetos de vida de descendentes de imigrantes e sua relação com as reformulações e resoluções frente ao processo de desenraizamento-enraizamento, no que tange a referida migração de trabalho dos brasileiros descendentes de italianos. O caminhar da pesquisa. Visando o estudo das questões supracitadas, esta pesquisa tem sido realizada através de estudos de caso com sujeitos jovens adultos, brasileiros, possuidores do passaporte italiano, com idade entre 18 e 36 anos, recrutados para o trabalho em sorveterias na Alemanha, conforme informações obtidas primeiramente através de sites da internet consultados. Os sujeitos são selecionados com base numa entrevista inicial, em que: 1. são obtidos dados básicos de identificação pessoal; 2. são avaliados o interesse e a disposição de cada um em colaborar na pesquisa; e 3. é colhido e analisado um breve depoimento de cada um sobre a questão: “Quem sou e quem eu gostaria de ser?”. Os 11

Burke denota o termo crioulização para referir “(...) à emergência de novas formas culturais a partir da mistura de antigas formas.” (JOYNER, 1989 apud BURKE, 2003: 62). O autor infere ainda que “(...) Pode-se dizer a mesma coisa do Brasil, onde diferentes culturas africanas se fundiram e se mesclaram com tradições nativas e portuguesas e produziram uma nova ordem.” (BURKE, 2003: 62).

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dados colhidos são analisados e, conforme os resultados iniciais escolhem-se casos considerados emblemáticos em relação à contemporaneidade da problemática identitária que envolve o estudo das questões já citadas. Estes casos selecionados passarão a ser estudados, aprofundando-se na continuação das narrativas das histórias de vida, bem como dos projetos de vida (ROSENTHAL, 2015), na busca por identificar peculiaridades de seu pertencimento pautado na relação que fazem com a transmissão oral da cultura e com os intercruzamentos sociais junto ao país de acolhimento e relação circular de trabalho – Alemanha; país de “pertencimento via aquisição de passaporte”Itália; e país de nascimento- Brasil. Isto posto, visamos compreender as crises que emergem do desenraizamento e ainda, a influência da transmissão da cultura para a formulação de projetos de vida, aliados à interferência do Estado, que indica ou direciona o pertencimento pela via jurídica da determinação da cidadania, juntamente com a constituição do que chamamos

“nova forma de articulação de identidades

nacionais”. Fica claro que o conflito exposto coloca questões identitárias em jogo, em processos de negociação que envolvem origem, cultura, pertencimento, influências do Estado, política e o reconhecimento do indivíduo em meio a todas estas variáveis. Outro ponto importante trata do “pertencimento pelos laços de sangue” ou “pertencimento pelo local de nascimento”, questões pertinentes ao trânsito do indivíduo na sociedade, bem como ao modo que sua cidadania lhe é conferida e é por ele exercida frente à obtenção do passaporte europeu. Assim, o enquadramento de nossa pesquisa tem caráter multi e interdisciplinar, abarcando fenômenos históricos, geográficos e sociais que propõe avaliar a proposição psicossocial proveniente das relações que o indivíduo estrutura em meio a tantos intercruzamentos. Nesse sentido, as crises suscitadas pelo desenraizamento e enraizamento estariam no centro de profundos questionamentos, reformulações e mudanças de posicionamentos dos indivíduos acerca de sua compreensão identitária (modo como se veem), sua relação com a apropriação ou não de tradições e também, sua relação com as pessoas e o local onde vivem em trânsito. No caso dos sujeitos desta pesquisa, há uma questão clara quanto ao tempo de permanência na Alemanha e também no Brasil, bem como a forma como são reconhecidos em ambos os países. Há que se considerar a dinâmica de enraizar ou desenraizar frente à forma como esta imigração de trabalho é articulada. Seriam estas pessoas “não cidadãs”, vivendo entre lugares, obrigadas por 45

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questões econômicas a emigrar, tendo sua inserção atrelada ao passaporte estrangeiro, com o qual não necessariamente se identificam ou orientam suas práticas e vivências? Um momento importante da pesquisa visa a compreensão pelo viés histórico e sociológico da imigração no Brasil. Assim, buscam-se elementos para a compreensão dos movimentos imigratórios atuais, vistos pela perspectiva histórica à constituição de identidades de sujeitos “transnacionais” e a importância da construção de redes de apoio, que mantém e retroalimentam as constantes “idas e vindas” de brasileiros neste nicho de mercado específico. Especificamente no campo da Psicologia Social, recorremos a autores que problematizam a construção da identidade, a fim de se compreender como a crise que envolve o desenraizamento-enraizamento e a influência desta enquanto transmissão oral mediada intersubjetivamente. Tais autores são CIAMPA (2005) em sua obra A estória do Severino e a história da Severina, ALMEIDA (2005), Sobre a anamorfose: identidade e emancipação na velhice e LIMA (2010) Metamorfose, anamorfose e reconhecimento perverso. Propõe-se, apenas para enquadramento da problemática suscitada, a seguinte citação de CIAMPA (2003): (...) a identidade de um povo se apoia no consenso que se estabelece em torno dos sentidos que constituem sua cultura. Ou seja, identidade é sempre a articulação atual (presente) da tradição (passado) com a inovação (futuro). (...) incorporados pela maioria da população, numa sociedade democrática, esses significados vão constituir os sentidos que orientam a vida das pessoas nessa sociedade, ou seja, constituem as subjetividades individuais. (CIAMPA, 2003:10- 11)

Para que se compreendam também as relações entre indivíduo e Estado, recorremos à concepção de Patriotismo Constitucional e a Teoria da ação comunicativa de HABERMAS (1987, 2001) e também aos trabalhos de BECK (1999, 2010) para que se elenquem elementos da globalização, capitalismo tardio e da sociedade compreendida como sociedade de risco no que concerne às mudanças dos deslocamentos humanos perpassados pela questão ambiental e pela luta por sobrevivência frente aos desafios impostos pelas condições atuais da sociedade multicultural. Outro autor a ser contemplado, é HONNETH (2011) cujo aporte teórico nos auxiliará na compreensão do reconhecimento do indivíduo frente às tramas sociais. Pode-se dizer, ainda que de maneira distinta, que todos os autores citados 46

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retratam as condições de desenvolvimento humano face aos movimentos sóciohistóricos da sociedade e assim a influência destes na constituição identitária dos sujeitos. Estima-se, que se possam utilizar os referenciais mencionados com a finalidade de compreenderem-se os movimentos de desconstrução ou reformulação de projetos de vida, frente ao enraizamento dos jovens trabalhadores de sorveterias e suas consequentes tomadas de decisão, bem como a influência do Estado neste processo. Delineando o objeto e questões de pesquisa. Como exposto nos itens anteriores, o objeto desta pesquisa são as reformulações e influências culturais transmitidas no que tangem às crises ligadas ao desenraizamentoenraizamento, permeando a construção dos projetos de vida descendentes de imigrantes italianos nascidos no Brasil, que trabalham como sorveteiros na Alemanha e neste âmbito como se dão as metamorfoses identitárias em contexto bi local. As crises provindas destes processos interferem em aspectos diversos da vida, como a maneira de formar vínculos e a qualidade dos mesmos, formulação de expectativas e, sobretudo, a relação a ser estabelecida com o mundo, com a cultura do país onde vivem, sendo desta forma a transmissão cultural ligação pertinente, que faz ponte entre o passado e o presente do indivíduo, configurando, também sua identidade, seu pertencimento. Cabe aqui, desta forma, a reflexão do que estes sujeitos configuram como pertencimento: Brasil? Alemanha? Itália? E o que isto influencia em suas escolhas e em seus projetos de vida. Compreender a influência da transmissão cultural na formulação de projetos de vida de descendentes de imigrantes é compreender como esta possibilita a resolução das crises do desenraizamento e ainda, até que ponto mantém o indivíduo descendente preso às identidades pressupostas e/ou continuação de projetos de seus ancestrais, ou reprodução de um modelo que compreendem como sendo de ascensão social. Não menos importante, compreender em meio a esta trama influências dos processos sóciohistóricos na atuação destes indivíduos no cotidiano. Em resumo, buscar-se-á compreender como descendentes de imigrantes italianos, cujas histórias de vida intercruzam Itália, Alemanha e o Brasil, lidam com a reformulação das crises causadas pela imigração, como configuram seu pertencimento constituindo enfim uma nova articulação de identidades nacionais. 47

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Problemas centrais pertinentes à pesquisa: 1) Quais seriam as respostas mais frequentes e significativas às crises do desenraizamento-enraizamento pela população escolhida? 2) Estas crises acompanham os descendentes na formulação de seus projetos de vida? De que forma? 3) Qual é a influência da transmissão cultural na formulação do projeto de vida do jovem imigrante trabalhador de sorveterias? 4) Como os sujeitos são reconhecidos em seu processo de imigração no contexto bi local e como lidam com tal reconhecimento? Parte-se do pressuposto que a crise provinda do processo de desenraizamento e enraizamento dos imigrantes afeta, de alguma forma, seus descendentes, perpetuando-se via transmissão cultural. Isto posto, há que se considerar tais transmissões no decorrer da vida dos sujeitos envolvidos, seus enfrentamentos mediante a cultura em que vivem e, também, a formulação de seus projetos de vida. Vislumbra-se, desta forma, que as crises interfiram no modo como o enraizamento à cultura se dá pelo descendente de imigrantes. Contudo, estas mediadas pela transmissão oral da cultura, podem servir como base, ou fio condutor para que o indivíduo siga com um projeto próprio ou para o cumprimento de um projeto familiar, ou mesmo, de seu entorno social. Questionam-se as formações e transformações identitárias face às transmissões orais, formulação dos projetos de vida, sofrimento psíquico e metamorfoses que deem vazão a formas de emancipação. Neste sentido, presume-se que as respostas a serem encontradas em nossa pesquisa vinculem-se principalmente às mudanças permeadas ora pelo desejo de ruptura de tradições (CAMPOS, 2013) ou na formulação de projetos de vida para realização dos projetos de ancestrais. Neste ponto, há que se questionar até onde o projeto baseado na ancestralidade aprisiona o indivíduo, impedindo-o de realizar suas próprias utopias emancipatórias. Nesta direção, é possível que a transmissão cultural tenha um papel importante na influência do projeto de vida do descendente e possa levá-lo ora a repetição da tradição e à mesmice, ora a quebra desta, buscando-se um caminho emancipatório via ressignificação de experiências passadas para formulação de experiências próprias como possibilidade. 48

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Finalmente, consideramos que teorias do desenvolvimento humano somadas às teorias da identidade ligadas ao arcabouço teórico da Psicologia Social Crítica possam dar conta de uma construção que visa a ampliação de respostas às questões que englobam os fenômenos migratórios e seu processo contínuo de (re)formulação de identidades, contexto especialmente relevante no mundo globalizado dito “sem fronteiras”. Será levado em consideração o espectro sócio-histórico no qual o indivíduo está inserido, na tentativa de se configurar perspectiva promissora para o entendimento do movimento migratório para além da perda de referências e estabelecimento de crises, mas das possíveis reformulações da identidade via transmissão cultural, partindo-se da compreensão de seu papel na formulação dos projetos de vida dos sujeitos a serem entrevistados e de como estes nos auxiliarão a compreender modulações e estratégias do reinventar-se frente ao contexto social em que vivem. Aprendendo a pesquisar pesquisando- primeiras impressões do trabalho com sorveteiros brasileiros na Alemanha Esta pesquisa se iniciou por um caminho que consideramos não necessariamente usual. A princípio a ideia era iniciar um levantamento bibliográfico das pesquisas realizadas no IMIS Institut12, bem como em diversas universidades brasileiras acerca do tema brasileiros na Europa . Contudo, percebemos que a tônica do contexto propiciado pelo problema específico de nossa pesquisa era inversa ao caminho do levantamento bibliográfico como estratégia primeira para reconhecimento do campo. Dada a escassa existência de estudos com o aspecto que focaríamos, seria o campo “vivo” e “ao vivo” a nos fornecer primeiras informações, impressões e dados. Tendo em vista a construção do saber em campo ainda não estudado, foi necessário delinear uma estratégia. Como encontrar e abordar os participantes do estudo? Como saber em quais sorveterias os brasileiros trabalham? Como abordá-los? A primeira ideia inspirou-se na técnica conhecida como bola de neve. Já utilizada em outros estudos, como demonstra ASSIS (2004) é uma técnica utilizada em pesquisas em que não se sabe o tamanho da população, não há dados que apresentem a priori uma amostra representativa de sujeitos. Desta forma, a partir desta técnica é 12

IMIS- Institute of Migration and Intercultural Studies.

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possível selecionar participantes a partir da indicação de conhecidos, ou amigos, que por sua vez indicam outros para entrevistar e assim, sucessivamente.

Vivendo o campo, ativamente... O campo nos ofereceu a chance de mergulhar, de certa forma, no contexto das experiências cotidianas vividas por nossos sujeitos. Nós experenciamos o contato com o desconhecido, assim como, provavelmente, tenha se iniciado o contato de nossos sujeitos com sua nova realidade social- a estadia e trabalho na Alemanha. Não sabendo exatamente como ou em quais sorveterias buscaríamos nossos contatos, iniciamos nossa busca fazendo algo bastante agradável e talvez não tradicional para uma pesquisa teórica-acadêmica: tomamos muito sorvete! Primeiramente fomos a diversas sorveterias e observamos o movimento. O modo como os funcionários estabeleciam contato com os clientes, a forma como falavam, o modo que faziam contato visual, ou mesmo se sorriam ou não. Nas primeiras quatro sorveterias que visitamos constatamos as características descritas, mas foi sobretudo a partir da escuta do acento ao pronunciar poucas palavras em alemão que foi possível reconhecer se tratavam-se ou não de brasileiros. Sem saber ao certo como descobrir se na cidade que visitamos trabalhavam brasileiros, partimos para um segundo plano. Inscrevemo-nos em um curso de danças (salsa e merengue) com o objetivo de estabelecer contato com latinos que eventualmente pudessem nos fornecer informações. Esta estratégia mostrou-se eficiente já no primeiro dia de curso. Após a aula de dança fomos convidados a uma festa latina em um bar brasileiro. Percebemos que a estratégia foi logo de início um sucesso, uma vez que não imaginávamos que a pequena cidade alemã13 onde estávamos tivesse um bar cujo dono fosse brasileiro e onde, logicamente, se dessem os encontros entre brasileiros. Assim que chegamos ao bar percebemos a atmosfera. A decoração, os drinks oferecidos e com lugar de destaque, a garrafa de Guaraná Antárctica. Sabíamos que ali

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Optou-se por não revelar a cidade, para preservar a identidade dos entrevistados.

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teríamos acesso às informações que buscávamos. Contudo, o que não esperávamos foi, além do grande número de brasileiros trabalhando no local, conhecemos outros, já na pista de dança, que por sua vez, escutaram do dono do bar “aqui tem uma nova brasileira”. Os contatos se deram então de forma muito rápida, espontânea e com uma característica que, após nossa vivência14 se mostra comum entre brasileiros- o olhar e sorriso abertos, a troca imediata e descomplicada de contatos pessoais, como endereço, e-mail ou telefone. Interessante ressaltar, uma vez que esta pesquisa se caracteriza na discussão do âmbito identitário, que neste primeiro contato nos foi colocada certa dúvida sobre nosso pertencimento. Por termos aparência física (loira, branca etc.) nos foi contestado por vezes se éramos de fato do Brasil (também estava em companhia de uma colega alemã, diferente da maioria dos brasileiros no local, que ou estavam acompanhados de outros brasileiros). Rapidamente, após esta pergunta, foi falado por um brasileiro na pista de dança que sim, éramos de fato do Brasil e que se podia perceber “pela forma como sorríamos”. Neste bar e após este interessante diálogo sobre sermos ou não do Brasil, recebemos grande reciprocidade e rapidamente nos foi dada a dica: “brasileiros que trabalham em sorveteria? Sim, conheci muitos! Mas acho que eles já voltaram para o Brasil, não sei... mas tem uma sorveteria que só tem brasileiro, vai la, na sorveteria L15”. A mesma reação obtivemos de outra brasileira, com quem na mesma noite conversamos: “Ah sim, tem muito brasileiro aqui e tem até uma sorveteria que só trabalha brasileiro, acho que é a sorveteria L. Cê pode ir lá, é tudo gente fina.” Assim fomos a tal sorveteria L, cuja visita, além de comprovar o que os informantes acima nos compartilharam, tem um excelente sorvete... A descrição de nossa aproximação com os brasileiros que trabalham na sorveteria L é pertinente. Envolve uma experiência objetiva de como funciona o cotidiano dos imigrantes brasileiros e também subjetiva, conforme as primeiras impressões que tivemos. 14

Anteriormente a esta pesquisa, vivemos e estudamos por alguns anos na Alemanha, onde conhecemos muitos brasileiros. 15

Optou-se não revelar o nome da sorveteria em questão.

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Em nossa primeira experiência no campo, encontramos cerca de 15 brasileiros, todos trabalhando na mesma sorveteria. Primeiramente adentramos o local e fizemos algumas perguntas em alemão, de modo a percebermos certa angústia, quando terminava o repertório de palavras conhecidas, estas, decoradas e ligadas somente aos produtos vendidos na sorveteria, expostos no cardápio. Quando nos revelamos brasileiros, foi possível perceber primeiramente alívio e depois um desabafo emocionado. “Ai que bom, é tão bom encontrar um brasileiro e poder falar português!”. Logo se constituiu uma atmosfera bastante agradável e aberta em que todos os brasileiros presentes nos contaram sobre suas experiências e o porquê da escolha pelo trabalho em sorveterias na Alemanha. Escolha esta, não desprovida de sofrimento e sacrifícios- maquiada pela atmosfera feliz e familiar da sorveteria- feita principalmente pelo retorno financeiro e pelo sonho de construir uma casa no Brasil. Os relatos nos mostraram uma grande diferença entre as expectativas, a imagem romantizada do trabalho em sorveterias na Alemanha, com a realidade. O trabalho é duro. São cerca de 12 a 13 horas em pé, todos os dias. As folgas são de apenas uma vez na semana (de acordo com o empregador podem também ser de apenas metade de um dia com menor movimento), a pausa para o almoço é curta, cerca de meia hora e muitas vezes no próprio local de trabalho, onde também é a moradia dos brasileiros. Moradia esta que se caracteriza uma república: todos os brasileiros moram juntos, trabalham juntos, retornam para as refeições juntos, assim como, no final do dia, voltam todos para casa. Trata-se de uma rotina extenuante, sem grande possibilidade de trocas outras que não com as mesmas pessoas diariamente. Aliada a barreira da língua e a falta de tempo hábil para se frequentar um curso de línguas, o contato com os clientes alemães também não pode se aprofundar. Neste sentido, uma entrevistada, coloca, com lágrimas nos olhos: “A gente sente saudade, saudade de casa, saudade do Brasil. Tem que pensar no objetivo, que é o dinheiro. Só o dinheiro e a casa que a gente ta construindo lá. Mas aqui, não é vida, é só trabalho e esperar o tempo passar logo pra gente ir de férias pro Brasil, mas ai, começa tudo de novo (...).” (R) Uma de nossas entrevistadas, comenta que viver na Alemanha é como um 52

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sonho: “quando você percebe, o tempo já passou e já são férias no Brasil” (M). Em seu relato o sonho, não tem caráter de algo almejado, mas sim o fato de viver em uma realidade totalmente diversa, como em um sonho. Como se não fosse parte de sua própria vida, uma vida ligada ao piloto automático, na quantidade de bolas de sorvete vendidas, na rapidez do atendimento ou na espera pela almejada folga semanal. M. demonstra com tal analogia a dificuldade e ao mesmo tempo a rapidez que o tempo se esvai durante o trabalho puxado, a rotina cansativa e o sentir- se isolado, pelas dificuldades com a língua. “Aqui a gente se vira, chega sem saber o alemão, no começo é muito difícil, eu sentia mesmo muita, muita, muita vergonha.” (M). Para BHABHA (2007) na interpretação de CARDOZO, 2013 o passado é um lugar que ficou distante do momento atual em que se vive, mas incide, ainda assim sobremaneira no presente. No caso de nossos entrevistados, o passado é presente no cotidiano, nas trocas entre os funcionários, todos brasileiros que buscam forças no longínquo Brasil para conquistarem seu sonho no dia a dia na Alemanha. Para CARDOZO (2013: 25) “os que vivem a diáspora sentem-se vivendo no além: rememorando o passado para construir o presente. Nem lá e nem cá, trazem à tona o lá por meio da memória, fazendo surgir imaginários.” CARDOZO (2013) ainda em sua interpretação de Bhabha salienta que, viver lá e aqui, é o reforço da constituição do espaço no entre-lugares e duplicação.

Acrescentamos que a construção de

“imaginários” surge como estratégia para lidar com as dificuldades no exterior e o tempo de espera pelas ferias no Brasil. Passado e presente se misturam ao cotidiano destes sujeitos, constituem um espaço “entre lugares” mas é o futuro e o objetivo de ascensão no Brasil com o fruto do trabalho na sorveteria que serve de motor para lidar com as dificuldades e desafios diários. Questionam-se quais são as perspectivas futuras dos sujeitos após anos vivendo entre o lá e o cá.. Nossos entrevistados- um total de 10, colocam que mesmo tendo conseguido poupar um bom dinheiro não se sentem seguros em retornar ao Brasil pela falta de perspectivas de emprego, e desta forma

retornam

anualmente para a Alemanha.

Alguns, mantém-se nesta relação bi local há 10 ou 8 anos, ja não sabendo dizer exatamente onde querem viver, ou como viver de outra forma. Aparentemente a relação

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de provisoriedade se torna constant e ainda que de modo aparentemente paradoxal, bastante segura. Afirmam sentirem-se pertencentes ao Brasil e não à Europa (pensando-se a relação com o passaporte italiano), mantém formalmente o plano de retorno, mas a continuidade da relação bi local, das idas e vindas Brasil e Alemanha se mostra uma opção a longo prazo e sem um plano concreto de encerramento, para todos os nossos entrevistados. Conforme SHINOZAKI, 2015 a ideia de retorno é constitutiva do plano de emigrar e no caso de nossos entrevistados este plano tende aparentemente ser uma forma de encorajamento para a saida do Brasil e enfrentar o trabalho e a vida no mundo desconhecido. Siamo tutti famiglia! Nossa pesquisa ainda não está em fase final, mas ja é possível estabelecer alguns questionamentos acerca das indefinições e angústias envolvidas no processo migratório do ítalo brasileiros. Cabe colocar que a questão identitária em si permeia todos os momentos deste processo- do início da tomada de decisão pela saída do Brasil e candidatura para o trabalho em sorveterias, que tem como prerrogativa principal a obtenção de passaporte italiano, até o processo e vivências no cotidiano,

na

materialidade do trabalho, e no modo como as relações se dão entre clients e patrões, a forma como são reconhecidos pelos clientes. Ora são os “simpáticos brasileiros da sorveteria”, ora são os “italianos, que trabalham todos em família” e garantem a autenticidade do comércio na gelateria“siamo tutti famiglia” representando um pedaço da doce Itália na Alemanha. Desde o acesso à comunidade européia pelo passaporte italiano, até o ressaltar da brasilidade no atendimento sorridente e descomplicado ao público, ou mesmo, o modo como estabelecem suas relações e mantém seus vínculos diários com o Brasil. Entretanto, em meio aos desafios encontrados e a indefinição do local de moradia “fixa” é o trânsito entre locais e identidades, o resgate de origens familiares somados às experiências atuais que os fazem cidadãos híbridos. Talvez seja esta a forma provisória e ideal encontrada para a (re)definição de papéis que os sujeitos (re)formulam e atualizam ao serem “apenas” sorveteiros ítalo brasileiros na Alemanha.

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