LACAN, PECHÊUX, WITTGENSTEIN E A QUESTÃO DO SUJEITO E DO SIGNO EM SANTO AGOSTINHO.docx

May 27, 2017 | Autor: Breno Wilson | Categoria: Análise do Discurso, FILOSOFIA DA LINGUAGEM, Subjetivação
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Graduado e Mestre em Letras pela Universidade de São Paulo – USP. E-mail: [email protected]
Realizou estágio doutoral pela Stockholm University (SU). Cursou doutorado pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected]
DOR, 1989, p. 9.
AGOSTINHO, 1973.
Ibidem, op. cit., p. 55.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem, op. cit., p. 57.
Ibidem.
Ibidem.
PÊCHEUX, 2009, p. 123.
Ibidem.
PÊCHEUX, 2009, p. 275.
Por solicitação de M. Pêcheux, o anexo III foi introduzido na edição inglesa de 1982 de Les Vérités de la Palice. O anexo III também foi inserido na edição brasileira da obra, com tradução por Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio (pela editora da Unicamp).
PÊCHEUX, 2009, p. 276.
PÊCHEUX, 2009, p. 276.
PÊCHEUX, 2009, p. 277.
HENRY, 1977, p. 144.
Sobre o assunto ver algumas análises de Michel Foucault que oferecem a possibilidade de retificar a distinção althusseriana entre interpelação ideológica e violência repressiva, colocando à mostra o processo de individualização-normativização no qual diferentes formas de violências do Estado assujeitam os corpos e asseguram materialmente a submissão dos dominados.
PÊCHEUX, 2009, p. 278.
LACAN, 1986, p. 283.
Ibidem, p. 284.
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem, op. cit., p. 285.
Ibidem, op. cit., p. 286.
Ibidem.
Ibidem, op. cit., p. 288.
Ibidem, op. cit., p. 291.
Ibidem, op. cit., p. 294.
Ibidem, op. cit., p. 295.
Ibidem.
Referência original: LACAN, 1966, p. 461-446.
DOR, 1989, p. 90.
Ibidem.
Ibibem, p. 38.
Ibidem, p. 39.
LACAN, 1986, p. 270.


CAPÍTULO 4

LACAN, PÊCHEUX, WITTGENSTEIN: A QUESTÃO DO SUJEITO E DO SIGNO EM SANTO AGOSTINHO

Breno Wilson Leite Medeiros
Lucas Nascimento
Universidade de São Paulo – USP


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O capítulo está organizado em partes, do seguinte modo:

Em 1. Pêcheux e Wittgenstein: a Nomeação, o Signo e o Sujeito, apresenta-se a questão da opacidade da língua e da interpretação da intenção como o espaço investigativo dos autores Pêcheux e Wittgenstein. A função do vazio e da contradição e os seus efeitos de reorganização cognitiva, de fato, estuda a língua como algo não transparente.
Em 2. As Três Interpretações, a seção centra a atenção no livro De Magistro, que permite entender que Santo Agostinho busca responder a seguinte questão: Quando ensinamos-aprendemos? Destaca-se que Santo Agostinho provavelmente partiu da Teoria Platônica das Reminiscências, transferindo-a do mundo antigo para o mundo novo. Ainda são apresentadas três interpretações desta tradição resgatada.
Já em 3. Alguns Ecos dessa Tradição na Linguística, por exemplo, discorre-se sobre a tradição estar presente conscientemente através da mesma argumentação platônica: a contenção do "fluxo mítico" da significação nas "margens" de uma oposição: langue x parole.
Em 4. Ecos da Tradição Clássica em Pêcheux são apresentadas algumas de suas leituras, estando elas afetadas por Wittgenstein e por Lacan, para citar algumas, cujo contexto propiciou uma teoria não-subjetiva da subjetividade: (1) a concepção do processo de metáfora como processo sócio-histórico; (2) a distinção do sujeito ideológico; e, (3) os processos de "imposição/dissimulação" que constituem o sujeito. Esses três elementos compõem uma teoria não-subjetivista da subjetividade.
Em 5. Jacques Lacan: o Retorno a Santo Agostinho, é discorrida a convocação lacaniana da voz de Santo Agostinho no livro O seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Curiosamente, refere-se ao conceito mestre como uma metáfora do super-ego.
Por fim, em 6. Enunciação, Texto e o Problema do Nome é tomada a referenciação em Ingedore Koch, cuja autora retoma vários dos termos das três interpretações da filosofia da linguagem de Santo Agostinho, além de afirmar concordância com a ideia de que nome é o centro organizador do sentido e com a ideia de que a referência é uma presença na memória discursiva.

1. PÊCHEUX E WITTGENSTEIN: A NOMEAÇÃO, O SIGNO E O SUJEITO

A fluidez dos conceitos e a negação constante de toda e qualquer transparência da linguagem em Pêcheux pode incomodar aos estudiosos da língua, principalmente àqueles que se atém às estruturas linguísticas, sintática ou morfológica, por exemplo. Uma alternativa a leituras concomitantes de textos de Pêcheux, frente à sensação do vazio epistêmico das suas leituras, foi recorrer à leitura de dois filósofos, Lacan e Santo Agostinho. Além da leitura desses autores, recorreu-se ao livro de Introdução à Psicanálise Lacaniana, de Joel Dör, pelo fato de Dör reconhecer o paradigma estruturalista. Assim, permitiu-se encontrar uma forma de entrada no problema.
O exórdio do livro de Dör surpreende, já que o desejo de ler Santo Agostinho surge a partir da leitura da terceira e última parte do livro Seminário 1 de Jacques Lacan. A surpresa está na introdução, pois um dos seus objetivos é o de contribuir para com a desmobilização ao "culto iniciático da reverência lacaniana, onde conceitos, expurgados de suas conotações teóricas são doutamente convocados para ornamentar insípidas perorações escolásticas, ou, então, selvagemente brandidos sob a forma de navalha interpretativa".
Estamos sempre avisados de que as leituras a respeito de Lacan e Santo Agostinho não são fáceis. Mesmo assim, investimos na leitura do livro "De Magistro" e em seus comentadores, por exemplo. O comentador da versão da obra agostiniana que tivemos acesso convoca a voz de L. Wittgenstein na epígrafe do livro, através de uma citação da obra Investigações Filosóficas, pois tal filósofo era um admirador da obra de Santo Agostinho. A epígrafe do seu livro Investigações Filosóficas é uma passagem do livro Confissões. Trata-se da mais bela descrição do ato de nomeação que podemos ler. Pode parecer exagero, mas não é! Confira:

Quando os adultos nomeavam um objeto qualquer voltando-se para ele, eu o percebia e compreendia que o objeto era designado pelos sons que proferiam, uma vez que queriam chamar a atenção para ele. Deduzia isto, porém, de seus gestos, linguagem natural de todos os povos, linguagem que através da mímica e dos movimentos dos olhos, dos movimentos dos membros e do som da voz anuncia os sentimentos da alma, quando esta anseia por alguma coisa, ou segura, ou repele, ou foge. Assim, pouco a pouco eu aprendia a compreender o que designavam as palavras que eu sempre de novo ouvia proferir nos seus devidos lugares, em diferentes sentenças. Por meio delas eu expressava os meus desejos, assim que minha voz se habituara aos signos.

Ao lermos o De Magistro, entendemos que Santo Agostinho busca responder à pergunta da possibilidade de se atingir a verdade infalível através da oposição ensinar x aprender. Quando ensinamos, aprendemos? Por isso, aceitamos a interpretação consensual a respeito do pensamento de Santo Agostinho: a de que ele partiu da Teoria Platônica das Reminiscências, transferindo-a do mundo antigo, que se declinava, para o mundo novo, medieval, que emergia.
Ainda segundo os comentadores, localizamos três interpretações da resposta agostiniana para a sua questão inicial, embora saibamos, claramente, que para ele, no final do "De magistro", Cristo é o verdadeiro mestre e é a sua figura que preenche o vazio e dissolve a contradição.

2. AS TRÊS INTERPRETAÇÕES

A primeira interpretação entende que "Signum est res, praeter speciem quam ingerit sensibus, aliud aliquid ex se faciens in cogitationem venire", ou seja, "o signo é a coisa que, além da imagem que imprime nos sentidos, faz vir à mente uma realidade diversa de si mesmo".
Nesta interpretação, o signo não está em antagonismo com o seu referente, ou seja, a coisa. O simbólico e o real não são estranhos um ao outro. Entre eles há uma relação de igualdade de natureza. Uma vez que o signum está ligado naturalmente à res, o pensamento é capaz de atingir o Ser como resultado da capacidade humana natural de ser inteligente e livre. Ainda nesta primeira interpretação, o signo é composto da vox articulata (o componente sensível) e de um Significatum (a parte mental). Parte-se da voz para o significado. A união entre as duas partes do signo dá-se convencionalmente. A capacidade de falar, porém, é natural.
A segunda linha interpretativa não associa as palavras e as coisas diretamente, mas inclui um terceiro elemento no processo da comunicação: o portador. Ele é um objeto exterior ao referente e se encontra em correspondência com a intenção da palavra. A res co-ocorre com o portador, ou seja, o referente é "o percebido pelos sentidos (sentitur), concebido pela razão (intellegitur), ou o que permanece oculto, quando nem sentitur nem intellegitur." O significante é a emissão fônica. O significado é "o que a voz expressa, o que compreende o que conhece a língua, e não compreende quem a ignora". O termo verbum significaria tanto o som vocal significante, como o seu conteúdo representativo, "ou seja, a coisa exibida pelo som."
Esta segunda interpretação baseia-se nas considerações de Santo Agostinho presentes em da "Doutrina Cristã" de forma que "uma coisa é um signo precisamente enquanto está para alguma coisa em vista de algo." O signo é um objeto bidimensional, mas a comunicação é um processo tridimensional, em que o referente existe apenas em relação com a presença de um terceiro elemento, o portador e o seu ponto de vista.
A terceira interpretação é quadrimensional: há a palavra (verbum), o exprimível (dicibile), o uso ordinário da palavra (dictio) e a coisa significada (res). O verbum é a matéria sensível do signo (o som, as sílabas). O dicibile é a ideia presente na mente. A dictio é a composição do verbum (do sensível) e do dicibile (com a imagem do sensível). O dictio inclui o ponto de vista, bem como a res como uma garantia de referência. O dicibile é a imagem presumida por todos os participantes da interação como comum, ele é o lugar-comum. Nesta terceira interpretação, tem-se em conta o uso ordinário e o extraordinário da palavra devido à existência de um lugar comum para o uso do verbum.
Nesse contexto, vimos que a reflexão filosófica sobre a linguagem, desde a Antiguidade, é rica e complexa e é rastreável por meio de metáforas geométricas. Essas metáforas baseiam-se na quantidade de partes que o problema (seja ele qual for) é dividido. A argumentação filosófica, por excelência, é utiliza-se da dissociação. As quantidade de partes que o problema da semiose ou da linguagem recebe pode sim ser utilizada para identificarmos os fundamentos filosóficos das muitas correntes e linhas existentes sobre a linguagem.

3. ALGUNS ECOS DESSA TRADIÇÃO NA LINGUÍSTICA

Ao retomarmos a interpretação binária de Santo Agostinho, localizamos as fontes de duas grandes escolas linguísticas modernas: o estruturalismo e o gerativismo. A "natureza" da fala é o objeto desta, a "convenção" que une as duas faces do signo é o daquela. No meio disso, há o problema político da fala. Um problema inquietante.
Se refletirmos um pouco sobre a diferença entre a primeira e a segunda interpretação, concluimos que a presença de um "portador" que "co-ocorre" com a referência não é a garantia de fato do referentes, pois o portador não é necessariamente o objeto no mundo, mas o ponto-de-vista sobre este objeto. Porque a referência pode ser aquela percebida pelos sentidos ou concebida pela razão, bem como o vazio. A terceira e última interpretação retoma claramente a questão do uso ordinário e do uso extraordinário da palavra através da postulação da existência de um lugar presumido para o uso da palavra, de tal forma que ela não é livre, porém o verbum é extraordinário, ela é a fonte de tudo.
Segundo Neves (1987), a divisão tridimensional do problema da significação é obra de Aristóteles. Ele foi o primeiro a tatear a língua em seu lugar separado da fala. Porém, o referente, o Ser, em Aristóteles, é, sabidamente, expresso de múltiplas formas. Neste ponto, estamos diante do problema universal da forma, do conteúdo e da matéria do Discurso.

4. ECOS DA TRADIÇÃO CLÁSSICA EM PÊCHEUX

Tratando-se de Semântica e Discurso: uma crítica a afirmação do óbvio, no capítulo Sujeito, centro e sentido, Pêcheux, estando afetado por Wittgenstein e Lacan, para citar algumas de suas leituras, propõe uma teoria não-subjetiva da subjetividade com os seguintes elementos:

A concepção do processo de metáfora como processo sócio-histórico que fundamenta a "apresentação (donation) de objetos para sujeitos" não como um dado "natural", pré-social e pré-histórico.
A distinção do sujeito ideológico em: a) a forma da identificação-unificação do sujeito consigo mesmo; b) a identificação do sujeito com o universal, "por meio do suporte do outro enquanto discurso refletido (...) que fornece a "garantia especulativa" (...) que introduz a ideia da simulação especulativa do conhecimento científico pela ideologia".
E o desenvolvimento de uma teoria não-subjetivista da subjetividade que designa os processos de "imposição/dissimulação" que constituem o sujeito, "situando-o" através da significação para ele do que ele é, ao mesmo tempo em que dissimula a "situação" na qual o sujeito de fato se encontra.

Até onde conseguimos nos apropriar do modelo teórico de Pêcheux, dessa época da AD de 1975, o efeito ideológico fundamental, o sujeito, ocorre de tal forma que a ideologia capitalista interpela o indivíduo como sujeito livre para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto, livremente sua submissão ao Outro.
Já que "o inconsciente é o discurso do outro", Pêcheux afirma que o recalque e o assujeitamento ideológico estão materialmente ligados. Esses dois processos, associados à supremacia do significante sobre o significado, realizam as condições ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção. Porém, uma vez que as condições materiais de existência são diferentes entre os homens, e já que são elas que determinam as suas consciências, Pêcheux faz uma autocrítica.

cheguei, assim, no fim de Les Vérités de La Palice a delinear o fantasma de um estranho sujeito materialista que efetua a 'a apropriação subjetiva da política do proletariado' (...) cheguei finalmente a um paradoxal sujeito da prática política do proletariado cuja simetria tendencial com o sujeito da prática política burguesa não era questionada!
(...) eu me apoiava em uma exterioridade radical da teoria marxista-leninista para desvendar o ponto em que o absurdo reaparece sob a evidência, determinando, assim, a possibilidade de uma espécie de pedagogia da ruptura das identificações imaginárias em que o sujeito se encontra, logo a possibilidade de uma "interpelação às avessas" atuando na prática política do proletariado (...).

Em "Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: início de uma retificação", Pêcheux retifica "o retorno idealista de um primado da teoria sobre a prática". Esse primado é herança do marxismo-leninista. A retificação leva a considerar uma dificuldade por parte da Psicanálise: a relação entre o ego e o sujeito. É preciso abandonar a ideia de um ego-sujeito-pleno, em que nada falha.
Retifica-se, então, que:

o fato de que o non-sens do inconsciente, em que a interpelação encontra onde se agarrar, nunca é inteiramente recoberto nem obstruído pela evidência do sujeito-centro-sentido que é seu produto, porque o tempo da produção e o do produto não são sucessivos como para o mito platônico, mas estão inscritos na simultaneidade de um batimento, de uma "pulsação" pela qual o non-sens inconsciente não pára de voltar no sujeito e no sentido que nele pretende se instalar.

Exatamente o efeito de interpelação captura a falha do sujeito. Por isso a busca de Pêcheux em Lacan: Só há causa daquilo que falha. "O que falta é essa causa, na medida em que ela se "manifesta" incessantemente e sob mil formas". As formas materiais da causa do que falha são o lapso, o ato falho, o equívoco, entre outras, que trabalham o binômio sentido x não-sentido. Reconhece-se o sujeito como sujeito-dividido, conceito explorado por Paul Henry (em Le mauvais outil: langue, sujet e discours) e por Jean Jacques-Courtine (Le discours communiste adresseé aux chretiéns, de 1981).
Sujeito dividido compreende que:

(…) o sujeito não pode ser pensado com base no modelo da unidade de uma interioridade, como uno. Ele é dividido, como aquele que sonha, entre a posição de 'autor' de seu sonho e a de testemunha desse sonho. Como observa Safouan, 'é fazendo alguma violência ao espírito que o sonho, considerado sob a perspectiva freudiana, impõe a distinção entre o sujeito que verdadeiramente fala (aquele que está atuando no sonho) e aquele a quem se pode chamar o locutor ou o 'moinho de palavras', aquele que nos relata, acordado, esse mesmo sonho'. Ele é dividido como aquele que cometeu um lapso: não foi ele quem o cometeu, ele disse uma palavra por outra etc... Mas é preciso que haja o sonho, o lapso, o singular de uma conduta, a neurose ou a psicose para que isso apareça. Com exclusão desses casos, eu me penso espontaneamente como fonte de meus pensamentos, de meus atos e de minhas palavras.

Pêcheux afirma que a relação sentido/não sentido do sujeito dividido separa o conceito de "recalque" psicanalítico da ideia filosófica platônica de "apagamento" e de "esquecimento", noções bastante empregadas em análises discursivas. Continua a dizer que o sentido é produzido no non-sens pelo deslizamento, por um primado da metáfora sobre o sentido.
Alerta que esse deslizamento deixa marcas na forma-sujeito ideológica, identificada com a evidência de um sentido. Na forma-sujeito ideológica, "a ordem do inconsciente não coincide com a da ideologia, o recalque não se identifica nem com o assujeitamento nem com a repressão, mas isso não significa que a ideologia deva ser pensada sem referência ao registro inconsciente".

5. JACQUES LACAN: O RETORNO A SANTO AGOSTINHO

A convocação lacaniana da voz de Santo Agostinho dá-se no livro O seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Curiosamente, a voz de Lacan é marcada linguisticamente somente no final do primeiro livro e de forma indireta como o mestre.
Esse livro divide-se em três partes. A última delas é integralmente dedicada ao tema da "A palavra na transferência". Nessa parte, há o capítulo "De Locutionis Significatione" o qual é inteiramente dedicado à primeira parte do "De Magistro". Nele, Lacan e um padre chamado Beirnaert debatem a respeito da Teoria do signo de Santo Agostinho. Lacan e o Padre Beirnaert iniciam o seu diálogo de forma clássica: Padre Beirnaert apresenta-se inferior à posição que fora colocado como debatedor. Lacan lança a primeira pergunta. Padre Beirnaert responde e Lacan concorda parcialmente. Em seguida, inicia-se um jogo de imagens.
Eles concordam que "Locutio" significa palavra. O padre afirma que "Oratio" é discurso. Lacan afirma que "Locutio" não é uma palavra plena, mas uma palavra eloquente. E pergunta: como se chama a palavra plena? O Padre responde: "sententia plena". Em seguida, Lacan apresentou a diferença entre "usar" e "mencionar" palavras para provar que a significação não existe fora do circuito da fala.
Lacan afirma que todas as palavras são nomes e que Santo Agostinho "mostra que é o uso na frase, que define a qualificação de uma palavra como parte do discurso". O Padre nega, pois "a linguagem transmite a verdade de fora pelas palavras que soam fora, mas que o discípulo vê sempre a verdade dentro (...). Porque se ensina àquele a quem nos endereçamos que direção se quer saber".
Platonicamente, Lacan observa a circularidade do processo de significação do signo e fundamenta a diferença entre as línguas de sinais e as línguas naturais, pois:

Toda interrogação é essencialmente uma tentativa de acordo das duas palavras, o que implica que haja inicialmente acordo das linguagens. Nenhuma troca é possível senão através da identificação recíproca de dois universos completos da linguagem. É por isso que toda palavra é já um ensinar. Não é um jogo de signos, situa-se não no nível da informação, mas no da verdade.

O padre retoma a palavra e afirma que "falamos ou para ensinar, ou para fazer relembrar, seja aos outros, seja a nós mesmos." Rezar, porém, é um discurso cujo Outro não pode ser ensinado e "portanto nos exprimimos senão em relação àqueles que podem nos ver nesse diálogo."
Em seguida, o Padre cita um verso da Eneida citado no De Magistro. Esse verso é composto de oito palavras. O padre chama a atenção para a conjunção, para a preposição e para a palavra "nada". Para o Padre, a referência da palavra nada é espiritual. Diante da impossibilidade de se mostrar o vazio, Lacan reafirma que o significado de uma palavra é sempre reenviado para outro significado e questiona-o se ele tem certeza disso: de que a referência do vazio é espiritual?
O Padre afirma que acredita nisto, pois a respeito do significado da palavra nada, "o que é significado aqui é a reação da alma diante de uma ausência de algo que poderia estar lá."
Lacan discorda dizendo que:

Quando Freud quer em Mal-estar na civilização, definir o inconsciente, fala dos monumentos da Roma desaparecida. Aqui e lá, trata-se de coisas que desaparecem na história mas que, ao mesmo tempo, ficam aí, presentes, ausentes.

Para Lacan, "interpretamos sempre as reações atuais do sujeito enquanto tomadas no discurso. (...) Quando Freud interpreta os movimentos, os gestos, e pretensamente as emoções, é disso que se trata". "Falar" é um ato que se mostra enquanto se faz, porque é uma ação que se mostra pelos signos. Padre Beirnaert enumera os três tipos de significações que podem ocorrer através de palavras:

Por nomen, apontando para as coisas mesmas (res ipsas) do mundo.
Por verba¸ quando podemos utilizar palavras para falar de outras palavras.
Ou através de signos como gestos e letras.

Lacan afirma que o nome ocorre no plano do reconhecimento: "A dialética do reconhecimento é essencialmente humana e, como Santo Agostinho, se situa numa dialética que não é ateia." Entretanto, no momento em que o debate atinge a questão da relação dos signos com as coisas significáveis, Lacan e o Padre divergem em definitivo.
Lacan afirma que o conhecimento é anterior ao nome que, por sua vez, é anterior à coisa. O signo está para o conhecimento, não o conhecimento para o signo. Fala-se para conhecer. O Padre discorda:

(...) ao que se poderia responder que, de alguma maneira, o que se pode mostrar sem signos já é significativo, porque é sempre no seio de um universo, no qual já estão situados os sujeitos que os procedimentos do passarinheiro tomam sentido.

Lacan responde afirmando que a intenção de Santo Agostinho:

não é levar a preeminência das coisas sobre os signos, mas fazer duvidar da preeminência dos signos na função essencialmente falante de ensinar. (...) É porque Santo Agostinho quer nos engajar na dimensão própria da verdade que ele abandona o domínio do linguista para tomar este logro que eu lhes falava há pouco. A palavra, desde que se instaura, se desloca na dimensão da verdade. Só que, a palavra não sabe que é ela que faz a verdade.

Para Lacan, a dialética de Santo Agostinho apoia-se na potência do erro, do equívoco e da ambiguidade. Lacan parece que faz uso do vazio com um objetivo oposto ao de Santo Agostinho, pois a significação da palavra nada remete para outro signo, da mesma forma que os outros. Para Santo Agostinho, a significação da palavra nada é de natureza espiritual. Diante desse debate, retemos que a questão da significação fica cada vez mais complexa quanto mais ela for dividida e que nome é um signo que tem garantia de referência para a tradição cristã.

6. ENUNCIAÇÃO, TEXTO E O PROBLEMA DO NOME

No capítulo sobre referenciação do livro Introdução à linguística textual: trajetórias e grandes temas, de Ingedore Koch, a autora retoma esta questão em um parágrafo citando vários dos termos das três interpretações da filosofia da linguagem de Santo Agostinho. Além disso, ela concorda com a ideia de que nome é o centro organizador do sentido. Decidimos, então, continuar a investigação a respeito da questão da significação na perspectiva da psicanálise. Sabemos que para esta autora a referência está presente na memória discursiva. Por isso, decidimos investir em leituras de ordem psicanalíticas.
Segundo Dör, a interpretação lacaniana do conceito de "trabalho do sonho" é a de que o inconsciente estrutura-se como uma linguagem. Assim, os processos de estruturação do inconsciente seriam idênticos aos processos linguístico-discursivos da metonímia e da metáfora "e aos pontos de apoio nos quais esta dimensão se sustenta através da transferência." (DOR, 1989, p. 11).
A prática analítica dividir-se-ia em dois polos: linguagem e transferência. De um lado, há a transferência que "em sua essência, a transferência eficaz de que se trata é, simplesmente, o ato de palavra. Cada vez que um homem fala a outro de maneira autêntica e plena, há, no sentido próprio, a transferência simbólica; alguma coisa se passa que muda a natureza dos dois seres em presença." Do outro lado, Lacan inverteu do conceito de signo de Saussure. Por mais sedutor que fosse a proposta de que a significação parte do conteúdo para a forma; o significante tem a primazia sobre o significado e sobre o sujeito. O sujeito encontra-se tomado pelo significante "que a técnica da psicanálise exercendo-se sobre a relação do sujeito ao significante", observa que "tudo o que ele conquistou de conhecimento não se situa além de uma ordenar-se em torno" do significante. "Esta intrincação referencial do inconsciente nas malhas do discurso será desenvolvido por Lacan até as suas mais extremas consequências fazendo mesmo com que apareça como uma propriedade induzida pela estrutura do sujeito falante" (DOR, 1989, p. 14-16).
Os conteúdos latentes no inconsciente emergem no texto do pensamento através de condensações ou deslocamentos. No caso das condensações, diversos significantes se unem em uma única forma permitindo uma série de associações e, ao mesmo tempo, uma elisão.
No caso do deslocamento, há uma inversão do sentido. O processo de deslocamento é o produto principal do trabalho do sonho. Uma vez que a relação entre o significante e o significado é arbitrária e imotivada, a sua função é preencher o vazio existente entre o imaginário e o real, entre a coisa e a ausência da coisa. O falar é um processo composto de duas séries simultâneas. Primeiro, o indivíduo seleciona da memória unidades léxicas. Em seguida, ele combina-as na fala de forma linear. O eixo da seleção lexical, ou paradigma, é responsável pelo efeito metafórico. O eixo da contiguidade ou da sintaxe, o metonímico.
Assim, cada vez que o sujeito seleciona uma palavra do paradigma e a projeta no fio do discurso, todas as outras palavras que pertencem ao mesmo campo semântico da palavra escolhida atuam inconscientemente pressionando a semiose. Essa pressão cria o contraste necessário para a saliência da significação na percepção a partir da memória.
Do ponto de vista cognitivo, o primeiro ato de nomeação do indivíduo é fundamental e Lacan nomeou-o como "Nome-do-Pai". Pois ele é responsável pela aquisição da capacidade simbólica e do seu controle. O nome permite a criança acessar o universo do simbólico ao estabelecer a sua primeira relação com o "vazio". Este é causado pela ausência do objeto de desejo primário: a mãe. Segundo Dor, Freud foi o primeiro a descrever este processo que tem no seu término a colocação da criança na posição de sujeito e ele o apresentou através da metáfora de um jogo: o fort-da. Neste jogo, a criança brinca com um carretel. Ela o move de forma que ele desaparece do seu campo de visão. Em seguida, o move de volta para dentro do seu campo de visão e vibra.
A interpretação dessa metáfora é a de que a mãe e a criança estão vinculadas como a criança está por um fio ao carretel. A ausência – controlada pela criança – do carretel e o seu retorno simbolizam os retornos e as partidas que a criança experiencia em sua relação com a mãe. Nas outras palavras de Dör:

Em outras palavras, o fort-da nos indica que ela consegue doravante controlar fundamentalmente o fato de não ser mais o único e exclusivo objeto do desejo da mãe, isto é, o objeto que preenche a falta do Outro, o falo. A criança pode então mobilizar seu desejo, como desejo de sujeito, para objetos substitutivos ao objeto perdido. (...) é o advento da linguagem (o acesso ao simbólico) que irá tornar-se signo incontestável do controle simbólico do objeto perdido.

O recalque originário é a primeira experiência do vazio.
Caso a criança recuse-se à castração (a ausência da mãe), ela se tornará perversa. Caso não conclua o processo, ela não conseguirá distinguir a palavra da coisa. Quando bem-sucedido, a castração transcorre pelo avançar da criança no processo de simbolização, culminando na "substituição do significante fálico pelo significante Nome-do-pai" e na colocação da criança na posição de "sujeito".
O advento deste sujeito opera-se pela inauguração da linguagem, cuja criança designa, simbolicamente, sua renúncia ao objeto perdido. A função do símbolo é evocar o objeto primário do desejo através de uma designação que se efetua através do desconhecimento do sujeito. A metáfora do "Nome-do-Pai" inaugura a alienação do desejo do sujeito na linguagem.
Após ser alienado pelo simbólico, o desejo do sujeito será um reflexo de si mesmo. Em seguida, o desejo de ser é recalcado no de ter, "engajado na via da metonímia". O "Nome-do-Pai" intima a criança a tomar a parte (objeto substitutivo) pelo todo (objeto perdido). O ponto de estofo é o constituinte elementar do grafo do desejo. "O ponto de estofo é a operação pela qual o significante detém o deslizamento, de outra forma indeterminado e infinito, da significação." Não existiria, "na realidade um fluxo de significantes. É a intervenção do corte que faz nascer a ordem significante, ao mesmo tempo em que a associa a um conceito".
A experiência psicanalítica provocou a inversão da tese saussuriana do signo porque para a psicanálise ele é "sempre fluido, sempre prestes a se desfazer" de tal forma que um signo só faz sentido retroativamente, na medida em que a significação de uma mensagem só advém ao final de sua própria articulação significante.
Para Lacan, há um movimento circular na base da significação, uma vez que "vocês se engajarão em vias sem saída, o que se vê muito bem nos impasses atuais da teoria analítica, se ignorarem que a significação não envia nunca senão a ela mesma, isto é, a uma outra significação" a qual, por sua vez, surge da primeira experiência com o vazio.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lacan, Pêcheux, Wittgenstein: A Questão do Sujeito e do Signo em Santo Agostinho tem por objetivo centrar a atenção à questão da opacidade da língua e da interpretação da intenção, investigando a nomeação, o signo e o sujeito em Pêcheux e Wittgenstein, além de se centrar também no livro De Magistro, em que Santo Agostinho apresenta três interpretações, provavelmente a partir da Teoria Platônica das Reminiscências, que transfere muitas heranças do mundo antigo para o mundo novo.
Em consequência, alguns ecos dessa tradição ressoam não só na Linguística, na tradição platônica em uma oposição entre langue x parole, mas também ressoa em Pêcheux, cujo autor apresenta algumas influências de Wittgenstein e Lacan, contexto de pensamento teórico-filosófico de elaboração de uma "teoria não-subjetiva da subjetividade", acerca do (1) processo de metáfora, (2) da distinção do sujeito ideológico, e (3) dos processos de "imposição/dissimulação" constitutivos do sujeito.
O capítulo ainda apresentou a seção "Jacques Lacan: o Retorno a Santo Agostinho", em que demonstrou a convocação lacaniana da voz de Santo Agostinho em O seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Já no final do capítulo, os autores – em seção 6. Enunciação, Texto e o Problema do Nome, – apresentam também a "referenciação" em Ingedore Koch, que ganha a cena pela autora retomar vários dos termos das três interpretações de Santo Agostinho, bem como discorrer sobre "nome" como responsável da organização do sentido além de discorrer sobre a referência como constitutiva na memória discursiva.
Neste contexto, pôde-se mapear as diferentes metáforas geométricas do discurso. Iniciando-se nas divisões resgatadas por Santo Agostinho, tem-se um leque de diversas tradições que são muitas vezes convocadas no debate teórico do discurso. A representação de quatro partes não contêm o vazio, uma vez que o nome tem sempre garantia de referência e, nesta perspectiva, a emergência de um nome como "Jesus" é suficiente para que a referência exista, não comportando assim o vazio no jogo da linguagem. A tradição triangular, por sua vez, concebe a existência de uma referência vazia, mas tal vacuidade de significado é limitada pelo "portador", o qual projeta a sua visão de mundo no processo semiótico. Por fim, tem-se a visão circular, a qual até concebe uma referência vazia inicial, mas que, em algum momento, precisará ser cognitivamente saturada, a fim de ser um signo. No bojo desta interessantíssima discussão, percebemos que as malhas do discurso são extremamente sutis e que poucos de nós temos a capacidade de moldá-las em função do nosso desejo original, uma vez que este desejo é, necessariamente, preenchido em algum momento pelo próprio discurso.


REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. De Magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
COURTINE, Jean-Jacques. Le discours communiste adresseé aux chretiéns. Langages, 62, 1981.
CORACINI, Maria José. A celebração do outro: arquivo, memória e identidade. Campinas: Mercado de Letras, 2007.
DÖR, Joel. Introdução à Psicanálise Lacaniana. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1972.
HENRY, Paul. Le mauvais outil: langue, sujet e discours. Paris, Klincksieck, 1977.
KOCH, Ingedore Villaça. Introdução à linguística textual: trajetórias e grandes temas. 2. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 4. ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009.
WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. São Paulo: Editora da USP, 1994.



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