Lapa, Parede, Painel. Distribuição geográfica das unidades estilísticas de grafismos rupestres do Vale do Rio Peruaçu e suas relações diacrônicas (Alto-Médio São Francisco, Norte de Minas Gerais). Dissertação de mestrado.

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA

Lapa, Parede, Painel distribuição geográfica das unidades estilísticas de grafismos rupestres do vale do rio Peruaçu e suas relações diacrônicas (Alto-Médio São Francisco, Norte de Minas Gerais)

Andrei Isnardis

Profa.

Dra.

Orientadora Marisa Coutinho Afonso

Dissertação para obtenção do título de Mestre em Arqueologia

SÃO PAULO - 2004

Andrei Isnardis Horta

LAPA, PAREDE, PAINEL DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS UNIDADES ESTILÍSTICAS DE GRAFISMOS RUPESTRES DO VALE DO RIO PERUAÇU E SUAS RELAÇÕES DIACRÔNICAS (ALTO-MÉDIO SÃO FRANCISCO, NORTE DE MINAS GERAIS)

Dissertação de Mestrado apresentada ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Marisa Coutinho Afonso.

Banca examinadora: Profa. Dra. Marisa Coutinho Afonso (orientadora) Prof. Dr. André Prous (membro) Profa. Dra. Fabíola Andréa Silva (membro)

2004

“De feito, diversa é a região, com belezas, maravilhal. Terra longa e jugosa, de montes pós montes: morros e corocovas. Serra e serras, por prolongação. Sempre um apique bruto de pedreiras, enormes pedras violáceas, com matagal ou lavadas. Tudo calcáreo. E elas se roem, não raro, em formas – que nem pontes, torres, colunas, alpendres, chaminés, guaritas, grades, campanários, parados animais, destroços de estátuas ou vultos de criaturas. Por lá, qualquer voz volta em belo eco, e qualquer chuva suspende, no ar de cristal, todo tinto arco-íris, cor por cor, vivendo longo ao solsim, feito um pavão. Umas redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando com vapor e empurram enxurradas mãos de rios, se engolfam descendo funis de furnas, antros e grotas, com tardo gorgôlo musical. Nos rochedos, os bugres rabiscaram movidas figuras e letras, e sus se foram.” João Guimarães Rosa, no Recado do Morro.

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às mariletas e borboposas às mirabolâncias abracadabrantes a Ana e o que será

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fernando deu o incentivo e o apoio sem os quais este mestrado não teria sido; abriu a trilha. a equipe do projeto sapo antonho - fernando, gilmar, lili, camila, dudu, jéferson, du - me relembrou o prazer de trabalhar em grupo; foi a ajuda de todos eles que tornou possíveis as idas e vindas pela fernão dias. lili e camila e cristiana também dividiram comigo algumas das maravilhas do peruaçu. gilmar e miguelito e eu navegamos por mares nunca dantes navegados, no ponta-pé inicial desta partida. marisa foi sempre, deste o primeiro contato, aberta ao diálogo e paciente com seu orientando sumido. andré foi quem me ensinou a manejar a colher de pedreiro e a maior parte do que sei de meu ofício; e me ajudou a aprender a ler; fez, e faz, parte de toda esta caminhada. luiz fernando foi um dos maestros da documentação dos conjuntos do peruaçu (ou, ao menos, de sua melhor parte) e o responsável pelos mais insanos levantamentos quantitativos, que têm sido e vão continuar sendo material valioso para nós. é dele uma das idéias em que se baseia este trabalho. ele é o cara que te chama para calcar o painel três bis de desenhos e atravessa o rio sobre dois banquinhos de madeira. os filhos de gomes, sempre, mesmo que em carreiras-solo. nami, e um lindo sorriso de boas vindas. ju e o grande osama, o prazer de sua amizade, o privilégio de curti-los e muitas portas abertas. loredana estava no peruaçu e está em muito deste texto, certamente nas suas melhores partes; seu sorriso foi companheiro nesta e em outras muito boas trilhas. o chico dos bonecos, muito mais do que dar o melhor pouso, fez soprar sapituca nas asas. vanessa fez possível a ladeira final desta trilha, colorindo o caminho. e novas trilhas se abrem. isnard, meu mais belo companheiro, meu pai. antonieta, apoio e amor incondicionais. e que o rio peruaçu continue rindo.

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SUMÁRIO Lista de Pranchas ---------------------------------------------------------------------------------- 8 Lista de Figuras --------------------------------------------------------------------------------- 10 Resumo ------------------------------------------------------------------------------------------- 11 I – INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------------- 12 I.a – Contextualização e objetivos da pesquisa ---------------------------------------------- 12 I.b – Sítios rupestres e unidades estilísticas na paisagem ---------------------------------- 15 I.c – O texto -------------------------------------------------------------------------------------- 18 II – CENÁRIO ------------------------------------------------------------------------------------- 19 II.a – O relevo e os abrigos naturais ---------------------------------------------------------- 19 II.b – Formações vegetais ---------------------------------------------------------------------- 29 III – ABORDAGENS

E PROBLEMÁTICAS EM

ARTE RUPESTRE: QUESTÕES DE TEORIA E

MÉTODO -------------------------------------------------------------------------------------------

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III.a – Problemática e metodologia de pesquisa do Setor de Arqueologia da UFMG - 32 Cronologia absoluta, cronologia relativa e a construção de uma crono-estilística ---------- 33 O uso do calque – seus objetivos, seu processamento em laboratório suas possibilidades e limitações, suas relações com as novas tecnologias --------------------------------------------- 39

III.b – Algumas reflexões teórico-metodológicas ------------------------------------------ 45 Cultura e expressão gráfica -------------------------------------------------------------------- 45 Unidade estilística x grupo cultural ----------------------------------------------------------- 46 O uso das unidades estilísticas ---------------------------------------------------------------- 48

III.c – Grafismos rupestres e arqueologia da paisagem IV- OS GRAFISMOS RUPESTRES E A PRÉ-HISTÓRIA DO ALTO-MÉDIO SÃO FRANCISCO -- 68 IV.a – Breve síntese dos conhecimentos sobre a Pré-História regional ------------------ 68 IV.b – As unidades estilísticas de grafismos rupestres do Alto-Médio São Francisco - 72 A tradição São Francisco ----------------------------------------------------------------------- 73 A complexo Montalvânia ---------------------------------------------------------------------- 86 A unidades estilística Piolho de Urubu -------------------------------------------------------- 90 A unidade estilística Desenhos ---------------------------------------------------------------- 93

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A tradição Nordeste ---------------------------------------------------------------------------- 96 A tradição Agreste ----------------------------------------------------------------------------- 98 Os demais conjuntos -------------------------------------------------------------------------- 101

V - A DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS UNIDADES ESTILÍSTICAS DO CÂNION DO PERUAÇU - 105 V.a – Preferências de sítio e suporte -------------------------------------------------------- 105 Tradição São Francisco ---------------------------------------------------------------------- 105 Tradição Agreste ----------------------------------------------------------------------------- 110 Complexo Montalvânia ---------------------------------------------------------------------- 112 A unidade estilística Piolho de Urubu ------------------------------------------------------- 114 A unidade estilística Desenhos --------------------------------------------------------------- 118 Tradição Nordeste ---------------------------------------------------------------------------- 120 V.b – Relacionando-se no suporte ----------------------------------------------------------- 124 Relações entre os momentos iniciais da tradição São Francisco ---------------------------- 124 Relações entre a tradição São Francisco e o complexo Montalvânia ----------------------- 125 Relações entre o Quarto Momento São Francisco e seus antecessores --------------------- 128 Relações entre a unidade estilística Piolho de Urubu e seus antecessores ------------------ 132 Relações entre a unidade estilística Desenhos e os demais conjuntos ---------------------- 133 Relações entre a tradição Nordeste e as demais unidades estilísticas ----------------------- 134 CONCLUSÃO ------------------------------------------------------------------------------------- 145 BIBLIOGRAFIA----------------------------------------------------------------------------------- 149 ANEXOS ------------------------------------------------------------------------------------------ 158

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LISTA DE PRANCHAS Prancha 1 – Feições naturais do carste do Peruaçu

pág. 20

Prancha 2 – Feições naturais do carste do Peruaçu

pág. 21

Prancha 3 – Esquema de evolução do carste do rio Peruaçu

pág. 22

Prancha 4 – Mapa 1, reduzido – Médio e baixo cursos do rio Peruaçu: os sítios arqueológicos e aspectos da geomorfologia cárstica pág. 24 Prancha 5 - Perfil esquemático do trecho inferior do cânion do Peruaçu

pág. 26

Prancha 6 – Perfil esquemático do leito seco em torno do qual se encontram os sítios rupestres Abrigo do macaco branco, lapa dos Desenhos e Lapa do Jorge (gruta de onde o leito seco se origina) pág. 28 Prancha 7 – Croquis representativo das formações vegetais do vale do Peruaçu

pág. 31

Prancha 8 – A técnica de reprodução das pinturas

pág. 40

Prancha 9 – Quadro síntese da crono-estilística do vale do Peruaçu

pág. 74

Prancha 10 – Temática da tradição São Francisco

pág. 75

Prancha 11 – Aspectos gráficos das ‘figuras caboclo’

pág. 78

Prancha 12 – Características gráficas das figuras da tradição São Francisco

pág. 84

Prancha 13 – Seqüência crono-estilística dos momentos da tradição São Francisco e do complexo Montalvânia nas lapas do Caboclo, dos Desenhos e dos Bichos pág. 87 Prancha 14 – Grafismos do complexo Montalvânia no vale do Peruaçu

pág. 89

Prancha 15 - Unidade estilística Piolho de Urubu

pág. 92

Prancha 16 – Fotos de figuras das unid. estilísticas Piolho de Urubu e Desenhos

pág. 94

Prancha 17 – Grafismos da u.e. Desenhos, no Painel I da Lapa dos Desenhos

pág. 95

Prancha 18 – grafismos da tradição Nordeste no vale do Peruaçu

pág. 97

Prancha 19 – Pinturas da tradição Agreste

pág. 100

Prancha 20 a – Grafismos recentes não atribuídos a unidades estilísticas

pág. 103

Prancha 20 b – Tradição Nordeste e outros conjuntos (grafismos não atribuídos) pág. 104 Prancha 21 – Abrigo do Janelão

pág. 111

Prancha 22 – Ocorrências de unidades estilísticas nos sítios do trecho centro-meridional da área de pesquisa pág. 113 Prancha 23 – Distribuição das unidades estilísticas na Lapa do Desenhos

pág. 116

Prancha 24 – Ocorrências das unidades estilísticas nos sítios do trecho centro- meridional da área de pesquisa (2a parte) pág. 123 Prancha 25 – Represent. esquem. da distrib. dos temas do Primeiro e do Segundo mom. da trad. S. Francisco e dos temas do compl. Montalvânia, no P. IIbis da Lapa dos Desenhos pág. 126 Prancha 26 – Lapa do Caboclo

pág. 136

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Prancha 27 – Lapa de Rezar

pág. 137

Prancha 28 – Painel I da Lapa dos Bichos: pinturas da tradição São Francisco e do complexo Montalvânia pág. 138 Prancha 29 – Lapas do Elias e do Veado

pág. 139

Prancha 30 – Lapa do Sol e Gruta Passa Vento

pág. 140

Prancha 31 – Lapas do Tikão, da Hora e Abrigo do Limoeiro

pág. 141

Prancha 32 – Lapa do Pedro Silva I e Abrigo do Lourenço

pág. 142

Prancha 33 – Lapa do Boquete e Gruta do Índio

pág. 143

Prancha 34 – Lapa do Piolho de Urubu e Lapa do Boi

pág. 144

Prancha 35 – Lapa dos Desenhos – Vistas parciais do abrigo

anexo

Prancha 36 – Lapa dos Desenhos – Painéis da área da gruta

anexo

Prancha 37 – Painel II bis da Lapa dos Desenhos – 1o momento de pinturas (SF 1)

anexo

Prancha 38 – Painel II bis da Lapa dos Desenhos – 1o e 2o momentos (SF 1 + SF 2)

anexo

Prancha 39 – Painel II bis da Lapa dos Desenhos – pinturas do 1o, 2o e 3o momentos da tradição São Francisco e do complexo Montalvânia anexo. Prancha 40 - Painel II bis da Lapa dos Desenhos – Todos os momentos de pintura

anexo.

Prancha 41 – Painel III bis da Lapa dos Desenhos: divisão em quadrantes (ausentes as figuras da borda inferior do painel) anexo. Prancha 42 – Painel III bis Desenhos – Pinturas do Primeiro Momento da tradição São Francisco anexo Prancha 43 – Painel III bis da Lapa dos Desenhos – Pinturas do Primeiro e Segundo momentos da tradição São Francisco anexo Prancha 44 – Painel III bis da Lapa dos Desenhos – Pinturas do Primeiro e Segundo momentos sanfranciscanos, do complexo Montalvânia e do Terceiro Momento sanfranciscana anexo Prancha 45 – Painel III bis da Lapa dos Desenhos – Pinturas dos quatro momentos sanfranciscanos e do complexo Montalvânia

anexo

Prancha 46 – Painel III bis da Lapa dos Desenhos – Todos os momentos de pintura (ausentes as figuras da borda inferior do painel) anexo LISTA DE FIGURAS Fig.1: Armas e objetos da tradição São Francisco

pág. 79

Fig.2: Antropomorfos e bio-antropomorfos da tradição São Francisco

pág. 80

Fig.3: Uso das cores nas figuras bicrômicas do Segundo Momento sanfranciscano

pág. 83

Fig.4: Grafismos do Segundo Momento sanfranciscano

pág. 85

Todos as fotos são do autor. As ilustrações de outros autores têm indicação de seus nomes nas margens.

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I - INTRODUÇÃO I.A - CONTEXTUALIZAÇÃO E OBJETIVOS DA PESQUISA

O rio Peruaçu, afluente da margem esquerda do rio São Francisco, nasce em planaltos areníticos e corre em direção a Leste-Sudeste, desenhando léguas e léguas de veredas - um rio de buritis. Cerca de 20 quilômetros antes de chegar à Depressão Sanfranciscana, o Peruaçu mergulha no pacote calcário Bambuí e o recorta dramaticamente, nele desenhando um espetacular relevo cárstico. Hoje parque nacional, o cânion do Peruaçu guarda, numa área de menos de 150 km2, mais de 80 sítios de pinturas e gravuras rupestres, alguns com milhares de figuras, e abrigos com riquíssimo material arqueológico. Um dos principais objetos de investigação arqueológica no Peruaçu, ao longo das últimas duas décadas, vem sendo seu precioso acervo de grafismos rupestres, para o qual está voltada parte significativa das pesquisas que, ali, tem desenvolvido a equipe do Setor de Arqueologia da UFMG, sob a coordenação do Prof. André Prous. Muitas regiões brasileiras apresentam sítios rupestres onde diversos conjuntos estilística e tematicamente distintos se sobrepõem num mesmo paredão, ou seja, vestígios de grupos humanos distintos apresentam-se aparentemente "misturados" (PESSIS, 1993; MARTIN, 1997; BERRA, 2001, SCHMITZ, 1997). Coloca-se, então, a necessidade de que se diferenciem esses conjuntos, sob pena de que se analisem, como sincrônicas, expressões gráficas produzidas por culturas distintas, muitas vezes separadas por séculos ou mesmo milênios. O vale do Peruaçu é uma região com essas características: grande diversidade de temas ocupa os paredões, incluindo desde grandes figuras geométricas bicrômicas pintadas até pequenos antropomorfos em crayon, passando por grandes zoomorfos e fitomorfos monocrômicos, antropomorfos 'dinâmicos', pequenos zoomorfos em baixo relevo, entre outros. Diante de tal cenário, o principal foco das pesquisas do Setor de Arqueologia da UFMG

tem

sido

a

crono-estilística,

ou

seja,

a

definição

de

conjuntos

temáticos/estilísticos e o estabelecimento de uma cronologia relativa entre esses. No atual estágio de desenvolvimento das pesquisas, temos já definidas seis grandes unidades estilísticas1 de grafismos rupestres no Peruaçu, que ocuparam sucessivamente

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Neste texto, assim como nas publicações da equipe do Setor de Arqueologia da UFMG, o termo "unidade estilística" é utilizado como categoria genérica de classificação, ou seja, designa todo e qualquer conjunto de grafismos para o qual se postula uma afinidade temática e estilística, podendo ser esse conjunto uma "tradição" ou uma unidade mais restrita, de menor extensão territorial e/ou cronológica.

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as paredes dos abrigos do cânion: a tradição São Francisco, a tradição Agreste, o complexo Montalvânia, a unidade estilística Piolho de Urubu, a unidade estilística Desenhos e a expressão regional da tradição Nordeste (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97). Vêm-se somar a esses cinco conjuntos diversos outros grafismos ainda não classificados, que se distribuem por vários dos sítios conhecidos. No traçado desses conjuntos estilísticos, uma questão se fez presente, embora ainda não tenha sido diretamente abordada de forma sistemática: a distribuição geográfica e topográfica das unidades estilísticas. Pode-se observar que a tradição São Francisco privilegia os grandes abrigos com grandes superfícies verticais lisas, cobrindo-os com várias centenas ou mesmo milhares de grafismos (como é o caso da Lapa dos Desenhos [31]2, da Lapa do Caboclo [54], do Abrigo do Malhador [16], da Lapa de Rezar [15]), ocupando também abrigos menores, com um número mais modesto de figuras. Sabe-se que as manifestações da tradição Nordeste se fazem presentes nos grandes sítios sanfranciscanos (mas não em todos eles), assim como em outros, com morfologias variadas. A chamada unidade estilística Piolho de Urubu, por sua vez, ocupou ricamente alguns grandes abrigos já ocupados pelas figuras São Francisco e Montalvânia (como a Lapa dos Desenhos [31] e a Lapa do Piolho de Urubu [50]), mas deixou outros quase intocados (como a Lapa de Rezar [15]). O Complexo Montalvânia pode ser visto tanto em meio aos grafismos dos grandes painéis pintados da tradição São Francisco, quanto em sítios onde essa tradição não ocorre. Esses diferentes comportamento das unidades estilísticas do Vale do Peruaçu sugerem que haja critérios diferenciados entre os conjuntos até agora reconhecidos no momento da escolha dos sítios a serem pintados. Essas escolhas distintas podem estar relacionadas ao papel que cada sítio desempenhou na vida de cada um dos grupos de autores e às normas de grafia propriamente ditas, que estabeleceriam onde se deveria pintar e o quê. Tais escolhas poderiam estar pautadas pelas características físicas e geográficas dos abrigos, condicionantes de determinadas atividades: seu tamanho, localização em relação ao rio, em relação a outros sítios e a outros locais relevantes na vida do grupos humanos (locais de caça, de coleta de matéria-prima, cemitérios, oficinas, por exemplo). Poderiam ser igualmente ou mais relevantes as características do suporte: as condições 2

As referências aos sítios são seguidas de um número entre chaves que correspondente à sua identificação no Mapa 1 (em anexo).

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de acessibilidade das superfícies lisas, dimensões das superfícies disponíveis, visibilidade, posição topográfica dos suportes no sítio. Com exceção dos pioneiros, todos os grupos humanos que realizaram pinturas e gravuras no Vale do Peruaçu tinham um aspecto a mais a considerar no momento de escolher onde compor seus grafismos: os grafismos anteriores. Ocupar os paredões com pinturas era também ocupar sítios já parcialmente ocupados por outrem e, deste modo, as formas de expressão gráfica revelam também elementos sobre as relações entre os sucessivos momentos de pintura e gravura (baixos relevos), ou seja, entre os sucessivos grupos culturais que as produziram. Os diferentes elementos apresentados acima sugerem padrões diferenciados de ocupação dos suportes dos abrigos para cada um dos conjuntos estilísticos. Portanto, o objetivo deste projeto é investigar os sistemas de ocupação e reocupação, através das pinturas e gravuras, do médio e baixo curso do rio Peruaçu, buscando os padrões de escolha dos grupos humanos autores de cada uma das unidades estilísticas definidas na região e investigando as relações que essas estabeleceram entre si. Deste modo, estaríamos acrescentando à caracterização desses conjuntos gráficos aspectos geográficos, a um só tempo incorporando aspectos comportamentais e ecológicos ao estudo dos grafismos rupestres e inserindo de forma mais concreta estes últimos no conjunto das análises do comportamento dos grupos humanos que ocuparam o vale do Peruaçu. Uma das perspectivas adotadas aqui é a de que as pinturas rupestres se constituem em formas de "domesticar" o ambiente, relacionadas com a percepção dos elementos naturais e antrópicos da paisagem. Pintar em determinados locais corresponderia, portanto, a formas de construção da paisagem, entendendo paisagem não apenas como o cenário onde a ação humana se desenvolve, mas como meio e produto da atividade humana (ASHMORE & KNAPP, 1999). Nesta dissertação, pois, procurarei empreender uma discussão com a bibliografia contemporânea que tem sido agrupada sob o epíteto de "arqueologia da paisagem", ou, no plural, arqueologias da paisagem (pois trata-se de abordagens bastante distintas), na medida em que essa bibliografia constitui-se num útil instrumento para pensarmos as seguidas ocupações dos painéis de pinturas e gravuras rupestres do vale do Peruaçu.

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I.B - SÍTIOS RUPESTRES E UNIDADES ESTILÍSTICAS NA PAISAGEM

Até o presente momento, pouca atenção se deu, na bibliografia arqueológica brasileira, à inserção dos sítios rupestres na paisagem e à distribuição geográfica desses. Não faltam referências à localização dos sítios e descrições sintéticas da forma e dimensões dos abrigos, uma vez que tais referências e descrições são parte dos procedimentos básicos adotados por todos os grupos de pesquisa ativos nesse campo (vide por exemplo SCHMITZ, 1997; KELLER, 1996; MUSEU

DE

ARQUEOLOGIA

DE

XINGÓ,

2000). S. Maranca propunha, já na primeira metade da década de oitenta, categorias

para a sistematização das características físicas dos sítios e de alguns elementos de sua inserção na paisagem, tendo em vista o enorme patrimônio que então se descobria no Sertão do Piauí (MARANCA, 1983/84), mas tal iniciativa não rendeu publicações posteriores com resultados da aplicação da proposta. Não há publicações na arqueologia brasileira, onde se sistematize a localização dos sítios rupestres e suas características físicas, que considere um conjunto de sítios como um sistema, como um todo articulado em si e articulado aos demais aspectos da vida do(s) grupo(s) humano(s) que o produziu(produziram) 3. Esta dissertação pretende explorar esse campo, tomando os sítios rupestres do Peruaçu como conjuntos articulados de expressões gráficas dos grupos humanos responsáveis por cada uma das unidades estilísticas delineadas regionalmente, tendo em vista que os grafismos rupestres constituem-se como intervenções na paisagem, na medida em que modificam, domesticam o aspecto dos locais, ou de alguns dos locais ocupados/utilizados pelos grupos humanos. As relações com os elementos naturais de uma dada paisagem dão-se através dos valores e significados a ela atribuídos por cada cultura. Ou mais, paisagem é, como propõem Knapp e Ashmore, “a arena na qual e através da qual memória, identidade, ordem social e transformação são construídas, experienciadas, re-inventadas e modificadas”4 (KNAPP & ASHMORE, 1999: 10). Deste modo, as intervenções que um povo promove sobre as feições naturais de uma determinada localidade – o que corresponderia à noção de “paisagem construída” de Knapp e Ashmore – encontram-se estreita e insofismavelmente associadas à percepção dessas feições e à atribuição de significados culturais a elas. Considerando essa “culturalidade” das relações entre um povo e as características naturais da região 3

Um exceção é a tese de P. Seda, entitulada, "A caça e a arte", sobre a Serra do Cabral (Minas Gerais), onde os sítios são considerados como um conjunto, e as pinturas rupestres são relacionadas ao padrão de ocupação local. 4 Tradução do autor.

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em que vive, os grafismos rupestres com que grupos ocupam determinados locais dentro de seu território são expressões culturais, não apenas na dimensão obviamente cultural da expressão gráfica, mas também na dimensão da relação desses grupos com a paisagem natural, ou, mais propriamente, na dimensão da construção da paisagem. Os significados atribuídos a determinados locais (ou ao conjunto dos locais) seriam motivadores da prática de grafar ou, no mínimo, condicionantes dela. Assim, se caracterizamos um modo distinto de ocupar com grafismos os paredões rochosos do cânion do Peruaçu para cada uma das unidades estilísticas ali delineadas, se delineamos padrões distintos de escolha, estaremos desenhando alguns traços de seus modos de construção da paisagem. Ainda que nos mantenhamos distantes dos significados culturais atribuídos aos elementos da paisagem e do papel que os grafismos rupestres desempenharam naqueles sistemas de transformação do ambiente, se conseguirmos estabelecer diferentes sistemas de construção da paisagem para cada uma das unidades estilísticas, estaremos atribuindo um relevante traço cultural a cada uma delas, aos grupos humanos que as realizaram. Mas como abordar as intervenções realizadas por diferentes grupos humanos numa paisagem quando se tem pouquíssimas referências sobre seu mundo simbólico? Trabalhos como o de Paul Taçon (TAÇON, 1999) contam com referências etnográficas que lhes permitem correlacionar pinturas rupestres pré-históricas ao universo mitológico de povos etnologicamente conhecidos. Em que pesem os problemas referentes à grande profundidade cronológica dos conjuntos de que o autor citado trata, os povos atuais da Austrália, ainda praticantes da pintura em paredes rochosas, podem fornecer elementos de análise extremamente valiosos para o estudo das práticas de seus ancestrais. No caso dos abrigos rochosos do cânion do Peruaçu, objeto deste trabalho, a situação é radicalmente diferente. As escavações de alguns desses abrigos forneceram numerosos e preciosos vestígios em contextos estratigráficos e cronológicos bastante bem definidos. Esses vestígios e estruturas nos permitem entender quais foram as atividades realizadas nos abrigos e muito de seu papel nas ocupações humanas do conjunto do vale. Temos, por outro lado, conjuntos de grafismos cujo delineamento e cronologia relativa encontram-se em avançado estágio de elaboração (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97). Contudo, a falta de um conjunto de datações absolutas para as pinturas dificulta, sobremaneira, o estabelecimento de correlações seguras entre as pinturas e gravuras rupestres e os demais vestígios, conforme se discutirá nesta dissertação (veja capítulo III). Nessas condições, os estudos sobre os conjuntos gráficos 16

não podem apelar a não ser para os próprios grafismos na abordagem de problemas. Em termos mais concretos, sabemos, por exemplo, que os abrigos foram local de sepultamento para os horticultores ceramistas da faixa cronológica entre 1.500 e 500 BP, mas não podemos associar a esse uso dos abrigos nenhuma das unidades estilísticas mais recentes, pois não sabemos, por exemplo, se a unidade estilística Piolho de Urubu corresponde ao período de 1.500 BP e a tradição Nordeste ao período de 300 BP ou se a unidade estilística Piolho de Urubu corresponde à faixa de 650 BP e a tradição Nordeste, à de 500 BP. Portanto, para investigarmos a construção da paisagem pelos grupos humanos autores das unidades estilísticas, devemos nos voltar primordialmente, ao menos por enquanto, para os próprios grafismos. Aliás, foi a análise deles próprios que nos indicou a possibilidade de haver sistemas diferentes de intervenção na paisagem atribuíveis às unidades estilísticas. O caminho a percorrer seria tomar, de um lado, as unidades estilísticas (suas caracterizações, que nos permite atribuir a cada uma delas os grafismos de cada sítio) e, de outro, a paisagem natural, ou melhor, os elementos naturais que poderiam ter sido percebidos e modificados pelos grupos humanos autores das pinturas. Para buscar as distinções que esses diferentes grupos fizeram dos locais – que, entre outros possíveis fatores, os levaram a pintá-los ou não – procuro estabelecer elementos de descrição de vários aspectos dos sítios (abrigos e grutas). O cruzamento desses elementos descritivos (combinados) com a ocorrência de cada uma das unidades estilísticas poderia revelar referências indicativas dos padrões de escolha dos autores.

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I.C – O TEXTO

Esta dissertação se estrutura em quatro capítulos, além desta introdução. No capítulo II, apresento o cenário natural do vale do rio Peruaçu, ressaltando alguns dos elementos do relevo que interferiram de forma significativa nas ocupações humanas do cânion, mais especificamente aqueles que podem ter influído na definição dos locais a receberem pinturas e gravuras rupestres. Destaco, nessa seção do texto, a caracterização dos abrigos e elementos para compreender sua inserção na paisagem. No capítulo II, apresento também as formações vegetais do cânion, sublinhando seu caráter diversificado e condicionado pelos compartimentos do relevo. O capítulo três é formado por discussões teórico-metodológicas. Compõem o capítulo uma apresentação da metodologia de análise de grafismos rupestres adotada pelo Setor de Arqueologia da UFMG (seção III.A), bem como a apresentação e discussão de alguns princípios teóricos e de alguns conceitos analíticos que norteiam este trabalho (seção III.B). O capítulo III conta também (seção III.C) com uma discussão a cerca da chamada Arqueologia da Paisagem e a apresentação de algumas de suas noções que procurei incorporar na elaboração desta pesquisa. A metodologia de campo e laboratório empregada nesta pesquisa para a análise da distribuição das unidades estilísticas corresponde à seção III.D. O capítulo IV apresenta breves elementos da Pré-História do Alto-Médio São Francisco para que, em seguida, tenha lugar uma caracterização das unidades estilísticas delineadas no vale do Peruaçu. Nesta apresentação das unidades estilísticas regionais reuni resultados das pesquisas dos últimos anos, sistematizando ou re-organizando informações já publicadas e consolidando alguns dos últimos produtos das análises dos sítios. No capítulo V, desenvolvo, na seção V.A, a análise da distribuição das unidades estilísticas, procurando caracterizar suas escolhas típicas de sítio e suporte. A seguir, na seção V.B, exploro os elementos que nos permitem investigar as relações que as unidades estilísticas estabelecem entre si, ao pintarem numa região já povoada de pinturas, e ao re-ocuparem suportes já utilizados pelos conjuntos estilísticos precedentes. Na Conclusão, procuro fazer uma avaliação dos resultados obtidos e da metodologia empregada, bem como colocações sobre os caminhos que a abordagem adotada deixa entreabertos.

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II - O CENÁRIO II.A – O RELEVO E OS ABRIGOS NATURAIS

O carste do Peruaçu é marcado pela magnificência e exuberância de suas formações. Grutas gigantescas, espeleotemas colossais, enormes abrigos, paredões verticais vertiginosos. O modesto volume de água do rio Peruaçu parece inofensivo a quem o vê, mas seu sistema de drenagens esculpiu, nos calcários do Grupo Bambuí, formas espetaculares (vide Pranchas 1 e 2, nas págs. 20 e 21). Descrito como fluviocarste na bibliografia geomorfológica, o cânion do Peruaçu desenvolve-se no sentido Noroeste-Sudeste por cerca de 20 quilômetros lineares. A formação do cânion se deu através da exposição das paredes interiores de um grande conduto subterrâneo. Por meio do processo químico de dissolução de rochas carbonáticas pela água, o rio Peruaçu forjou para si um extenso conduto no interior do pacote de rocha calcária. Esse conduto foi progressivamente ampliado e teve seu nível de base gradualmente rebaixado. Com o desenvolvimento de paredes cada vez mais altas, o teto dessa grande gruta foi perdendo sustentabilidade e desabando em diversos trechos (vide Prancha 3, na pág. 22). Hoje o curso do Peruaçu é predominantemente aéreo, entre as grandes paredes da antiga gruta e em meio às pilhas de sedimento e blocos que o desabamento do teto e paredes gerou. A dinâmica da paisagem é hoje, basicamente, a mesma, tendo continuidade, no presente, os processos químicos de dissolução das rochas carbonáticas pela água e os processos físicos de pequenos e grandes desabamentos. Ao longo do cânion atual, pode-se encontrar trechos nos quais o rio ainda desenvolve-se no subterrâneo, escoando sereno na base de grutas cujo teto, como no caso do Janelão, excedem os cinqüenta metros de altura. Os pequenos afluentes, que compuseram uma intrincada rede de cursos aéreos e subterrâneos, geraram, por sua vez, outros pequenos cânions ou produziram recuos expressivos nas paredes do cânion principal. Atualmente, o sistema não possui qualquer outro curso d’água perene, em superfície, além do próprio Peruaçu e do córrego dos Sonhos - afluente da margem direita, cuja barra está à jusante do último trecho subterrâneo -, sendo as demais drenagens superficiais todas pluviais. Nessa trama de antigos condutos e atuais cavernas e paredões, com grandes pilhas de blocos desabados e amplas frentes de erosão dos pacotes de calcário calcítico e dolomítico, o cenário natural oferece uma miríade de abrigos, de formas e tamanhos os

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Trechos do cânion principal, a jusante da gruta do Janelão (área objeto da etapa de prospecção de 2000)

Ressurgência abandonada em função de mudanças no curso do rio (uma das "saídas" da gruta do Janelão)

Trecho do cânion principal a montante da gruta de Troncos. A cavidade ao fundo é o Arco do André, sob o qual o rio Peruaçu percorre um trecho subterrâneo.

Prancha 1 - Feições naturais do carste do Peruaçu

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Feições ruiniformes em topo de afloramento próximo à Lapa do Boquete

Vista da Lapa dos Desenhos

Vista da entrada da gruta do Janelão (hoje o mais longo trecho subterrâneo do curso do Peruaçu) e da antiga sede da fazenda Terra Brava.

Prancha 2 - Feições naturais do carste do Peruaçu (2)

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conduto freático (1)

conduto vadoso (3)

Prancha 3 - Esquema de evolução do carste do rio Peruaçu

conduto freático/vadoso (2)

cânion (4)

(adaptado de MOURA,1997)

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mais diversos, não sendo raros aqueles de grandes dimensões, com mais de uma centena de metros de comprimento. A evolução da paisagem cárstica oferece também um sem número de paredes verticais amplas e restritas, tetos amplos ou escalonados: muitas possibilidades para aqueles em busca de suporte para realizar pinturas rupestres. Seguindo do nível atual do rio até o topo do pacote calcário, vencendo-se vertentes por vezes muito abruptas, se podem encontrar duas ou, algumas vezes, até três linhas de afloramentos com abrigos naturais. A feição dominante, porém, é de uma vertente íngreme que conduz ao sopé do paredão, no qual se localizam os abrigos. Essa vertente é breve em alguns trechos, onde há apenas o eixo do cânion principal (esse é o caso, por exemplo, do percurso que se faria da beira do rio até a Lapa do Sol ou da beira do rio até o Abrigo do Janelão – vide Prancha 45, na pág. 24), e longa em outros, onde se passa do cânion principal a cânions secundários6 (esse é o caso do percurso da margem do rio à Lapa do Boquete ou da margem do rio à Lapa de Rezar – vide Prancha 4). Nos trechos superiores do cânion, na região das lapas do Caboclo e da Hora, as vertentes são bem mais suaves, havendo menor diferença altimétrica entre o nível do rio e a base dos paredões rochosos. As feições ruiniformes dos cumes dos afloramentos calcários, os grandes arcos, grandes grutas e abrigos, os altos paredões, os túneis e as pilhas colossais de blocos desabados dão ao cânion feições espetaculares, que nos permitem tratar todo o seu conjunto como um local visualmente destacado, um marco geográfico nos sertões do São Francisco. Se olharmos para o interior do cânion poderemos destacar seguidos marcos visuais - como o Janelão, o Arco do André, a Lapa de Rezar, o Buraco dos Macacos. Pontos de destaque no relevo têm sido com freqüência objeto de comentários por parte da bibliografia arqueológica interessada nas interações entre os grupos humanos e o meio ambiente, no que se refere às diferentes percepções deste por aqueles. Os autores do campo da Geomorfologia destacam a organização do relevo em dois grandes compartimentos: o Compartimento de Cimeira e o Compartimento Carstificado (MOURA, 1997). O Compartimento de Cimeira é formado pelo pacote de siltito, com cobertura pedológica em alguns trechos, e morros residuais de arenito – ao menos em alguns trechos, estende-se, entre o siltito e o arenito,uma couraça ferruginosa, responsável pela manutenção de pequenos tabuleiros, como ocorre no grande sítio lítico a céu aberto do Judas. O Compartimento Carstificado é marcado pelos paredões, cavida5

Versão reduzida do Mapa 1, que se encontra, em formato maior, em anexo. Estou chamando aqui de ‘secundários’ os cânions formados pelas paredes de um antigo conduto de uma drenagem afluente do Peruaçu.

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des, pilhas de desabamentos, cones de dejeção de sedimento e blocos, vertentes íngremes, dolinas de desabamento, formações espeleológicas. O carste do Peruaçu apresenta extensas linhas de paredões, e os abrigos possuem morfologias diversas. Há amplos abrigos de pisos sedimentares planos junto a cavidades ricamente ornadas por espeleotemas, como a Lapa dos Desenhos e do Caboclo; vêem-se abrigos que correspondem à entrada de cavidades hoje obstruídas, como a enorme Lapa de Rezar e a Lapa do Boquete; há também paredões verticais de inclinação negativa, sem qualquer associação com grutas, em cuja base encontram-se vários metros de área abrigada, como a Lapa do Pedro Silva e a Lapa do Malhador; existem abrigos que correspondem a grandes túneis, amplos condutos de formação endocárstica associados a dolinas de desabamento, como a Lapa dos Bichos e a Lapa do Boi; existem também pequenas grutas obstruídas, de área restrita e paredes rochosas limitadas, como Passa Vento e Índio; encontram-se abrigos correspondendo à base de paredões verticais, cuja área é bem restrita, como os sítios do Pimpo, do Veado e do Itabaiana; enfim, pode encontrar, no carste do Peruaçu, uma acentuada diversidade de formações, que podem ter sido - e foram - usadas de variadas formas pelos grupos humanos que ocuparam a região, em função das possibilidades físicas que ofereciam e das diferentes intenções e necessidades dos ocupantes. A Prancha 5 (na pág 26) representa um corte esquemático do cânion na altura das lapas do Malhador e dos Bichos, a jusante da saída da Gruta do Janelão - mais longo e último trecho subterrâneo do curso do rio Peruaçu. Nesse corte, alinhei, para efeito didático, sítios que não estão de fato alinhados, mas que se encontram nas proximidades do que seria um corte topograficamente rigoroso. Feições como essa podem ser vistas em outros pontos do cânion, com a ressalva de que o trecho inferior (representado na prancha) apresenta uma maior altura dos paredões no cânion principal (as alturas tendem a diminuir no trecho superior, como dito anteriormente). O trecho representado inclui um cânion secundário e o cânion principal. Abrigos e grutas podem ser encontrados em ambos, em dimensões variadas. No perfil esquemático, estão representadas três linhas de afloramento ao longo da vertente da margem esquerda do cânion principal (o perfil é feito a partir da perspectiva de jusante para montante, portanto a margem esquerda do rio é o lado direito do perfil), o que de fato pode ser visto nesse trecho.

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No cânion secundário se vê a indicação da Lapa (ou Abrigo) do Malhador, paredão vertical de desenvolvimento linear que abriga uma ampla área de piso sedimentar plano. O Malhador apresenta figuras da Tradição São Francisco (tanto de seus momentos iniciais quanto finais), pinturas e gravuras do Complexo Montalvânia, da unidade estilística Piolho de Urubu (não muitas figuras), da Tradição Nordeste e outras figuras não atribuídas. Também consta do perfil a Lapa dos Bichos, que corresponde a um grande túnel formado por um antigo amplo conduto que hoje vai dar em um ponto elevado do paredão do cânion principal. Bichos conta com painéis ocupados pela tradição São Francisco (momentos tanto iniciais quanto finais), pelo Complexo Montalvânia, pela unidade estilística Piolho de Urubu (com presença discreta), pela Tradição Nordeste e pela unidade estilística Desenhos, destacando-se um teto muitíssimo elevado com pinturas Montalvânia e São Francisco (momento final) e um painel elevado com representações de armas. No terço médio da vertente da margem esquerda do cânion principal, vê-se a indicação da gruta Passa Vento, sítio com presença exclusiva de pinturas do Complexo Montalvânia. Em afloramentos como o do terço inferior da margem esquerda, pouco a jusante da localização do perfil, há sítios exclusivos da Tradição Nordeste. A Prancha 6 (na pág 28) apresenta um segundo perfil, este do cânion secundário onde se encontram a Lapa dos Desenhos e o Abrigo do Macaco Branco. Esses sítios localizam-se no sopé do paredão de uma área drenada por um pequeno afluente do Peruaçu, hoje seco, ao menos superficialmente, cujo leito tem origem na Gruta da Jorge – também um sítio com pinturas e gravuras. O Macaco Branco é um abrigo de piso predominantemente sedimentar, ocupado por figuras Piolho de Urubu (um grupo de três zoomorfos que sugerem macacos) e conjuntos de pontos e bastonetes (anteriores aos zoomorfos) de atribuição duvidosa7. Há uma parcela da vertente diante do sítio bastante abrupta, que obriga, hoje, a uma breve escalada para atingir seu piso rochoso. A Lapa dos Desenhos é um enorme abrigo de piso sedimentar plano, com paredes verticais muito amplas e regulares, que possui também uma gruta ampla e muito ornamentada. As paredes verticais de Desenhos foram ocupadas por todas as unidades estilísticas identificadas no Peruaçu, que formam o maior conjunto de grafis7

Os demais grafismos do sítio são demasiado simples para permitir sua associação segura com qualquer conjunto estilísitico.

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Lapa dos Desenhos Abrigo do Macaco Branco

leito seco

legenda maciço calcário piso sedimentar

aprox. 100 m

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Prancha 6 - Perfil esquemático do leito seco em torno do qual se encontram os sítios rupestres Abrigo do Macaco Branco, Lapa dos Desenhos e Lapa do Jorge (gruta de onde o leito se origina)

mos do cânion: quase 3600 figuras. O acesso ao abrigo é feito, a partir do leito seco, por uma vertente bastante suave e se pode ir desde o curso do rio (no ponto em que o leito seco “deságua” nele) até a base dos painéis sem qualquer obstáculo significativo. II.B – AS FORMAÇÕES VEGETAIS

Para a caracterização das formações vegetais do cânion do Peruaçu tomei por referência os elementos apresentados por M. T. T. MOURA (1997) em sua dissertação de mestrado. Em relação ao texto de Moura, procurei dispor os elementos da caracterização de modo a destacar sua distribuição em relação aos elementos descritivos gerais das feições do cânion que têm orientado esta pesquisa. A distribuição das principais formações vegetais no Peruaçu integra a marcada compartimentação da paisagem, compartimentação esta que se funda no desenho propriamente dito do relevo, nas variações do embasamento geológico e cobertura pedológica, assim como na grande diferenciação de graus de umidade (vide Prancha 7, na pág 31) O Compartimento Carstificado apresenta uma expressiva subdivisão no que se refere às formações vegetais. No interior do cânion, nos trechos entre os paredões de calcário, há duas variantes florestais: a Floresta Perenifólia/Subperenifólia e a Floresta Subcaducifólia. A primeira, a Floresta Perenifólia/Subperenifólia, corresponde à mata ciliar propriamente dita, ocorrendo geralmente em Solos Aluviais Eutróficos das planícies de inundação do Peruaçu, permanentemente úmidas; apresenta espécies de grande porte, entremeadas por lianas e arbustos. Já a Floresta Subcaducifólia ocorre nas vertentes que margeiam o rio, sobre coberturas pedológicas dos tipos Cambissolos Eutróficos, Latossolos VermelhoAmarelos Distróficos e Solos Aluviais Eutróficos. Compõe-se de espécies arbóreas, arbustos, lianas e ervas. Sobre os afloramentos calcários desenvolve-se a Floresta Caducifólia, a chamada mata seca, cuja variação na alternância entre período úmido e período seco promove uma radical mudança de tons no cenário do cânion, indo do verde intenso da temporada de chuvas ao cinza pálido dos meses de seca. A mata seca tem duas variantes, determinadas pela sua colocação diretamente sobre o Litossolo calcário ou sobre a cobertura de Cambissolos e Latossolos Vermelho-Escuros. Na primeira variante, apresenta uma combinação florística semelhante à Mata Atlântica, porém empobrecida; envolve os afloramentos rochosos com feições de mata aberta e espécies de porte 29

mediano e troncos finos, poucas lianas e espécies adaptadas a encostas abruptas. A segunda variante combina elementos de Mata Atlântica, Mesófila e Caatinga, com espécies de grande porte e inúmeras trepadeiras. Ainda sobre os afloramentos calcários pode-se encontrar uma Caatinga Hiperxerófila. Essa surge misturada à Floresta Caducifólia e à Caatinga Arbórea, mas vai se tornando dominante onde a umidade é insuficiente para sustentar espécies de maior porte. É formada por cactáceas suculentas e outras espécies adaptadas à dissecação, que se implantam diretamente sobre os blocos, lapiás e bordas íngremes de calcário. O Compartimento de Cimeira congrega a maior parte das formações não florestais, o Cerrado e o Campo Cerrado, a Caatinga Arbustiva Arbórea, além da Caatinga Arbórea.

O Cerrado desenvolve-se sobre as superfícies aplainadas,

apresentando espécies de troncos tortuosos, com sete a oito metros de altura, além de um estrato arbustivo e de um terceiro estrato, gramíneo-herbáceo, denso e de composição variável. No Campo Cerrado, o estrato arbustivo é dominante e reduz-se a freqüência de espécies de maior porte; nas vertentes mais inclinadas, o componente arbustivo diminui, predominando a feição de campo. A Caatinga Arbustiva Arbórea ocorre sobre os solos arenosos, Latossolos Vermelho-Amarelos, sendo formada por um estrato arbóreo esparso e arbustos geralmente espinhosos. Quando se faz um transecto no cânion, encontra-se uma grande variabilidade, num espaço bastante restrito. Pensando nas ocupações humanas pretéritas, tais aspectos disponibilizavam uma variabilidade considerável de recursos (combinando elementos de cerrado, caatinga e floresta), porém com uma forma variação sazonal. A diversidade das espécies vegetais aproveitáveis pode ser verificada nas escavações dos abrigos do cânion – especialmente favoráveis à conservação de vestígios vegetais (RESENDE & CARDOSO, 1995; PROUS et alii., 1994). Com relação aos recursos faunísticos, o Peruaçu

carece ainda de estudos sistemáticos, que só agora com o Plano de Manejo do Parque tiveram início. Nas escavações há uma grande variedade de fauna, mesmo que com uma presença relativamente discreta de espécies de maior porte (PROUS et alii, 1994). A variedade de nichos que a grande compartimentação do ambiente proporciona depõe, contudo, a favor de uma acentuada variabilidade de espécies, sobretudo aquelas de pequeno e médio porte.

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1

7

5 2

6

Formações florestais 1 - caatinga arbórea 2 - floresta caducifólia 3 - floresta subcaducifólia 4 - floresta perenifólia/subperenifólia Formações não florestais

Arenito Couraça ferruginosa Siltito

5 - caatinga arbustiva arbórea

Dolomito / Calcário

6 - caatinga hiperxerófila

Cobertura pedológica

7 - cerrado e campo cerrado

3

4

Blocos abatidos

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Prancha 7- Croquis representativo das formações vegetais do cânion do Peruaçu

reproduzido de MOURA, 1997 (desenho de M. Brito e M.T. Moura)

III – ABORDAGENS

E PROBLEMÁTICAS EM ARTE RUPESTRE: QUESTÕES DE

TEORIA E MÉTODO

III.A - PROBLEMÁTICA E METODOLOGIA DE PESQUISA DO SETOR DE ARQUEOLOGIA DA UFMG

A Missão Arqueológica Franco-Brasileira de Minas Gerais e, posteriormente, o Setor de Arqueologia da UFMG adotaram, nas regiões cujas pinturas e gravuras rupestres tomaram por objeto de estudo, um princípio metodológico semelhante àquele adotado por A. Leroi-Gourham e A. Laming-Emperaire em relação às pinturas rupestres do Paleolítico Superior: reunir a maior quantidade possível de informações, através da cópia integral dos grafismos de diversos sítios, a fim de adotar uma abordagem regional de orientação teórica estruturalista, em busca das regularidades e recorrências inter e intra-sítio8. Seguindo tal princípio, dezenas de abrigos do planalto cárstico de Lagoa Santa (na região central de Minas Gerais), a partir da década de 70, e do vale do rio Peruaçu (no Norte de Minas), a partir da década de 80, foram integral ou parcialmente reproduzidos através da técnica chamada "calque" ("relevé" na bibliografia francofônica). Assim, na segunda metade da década de 90, havia um extenso material gráfico disponível para análises regionais, além de algumas monografias de sítio, nos formatos de tese de doutorado, monografia de bacharelado, relatório de bolsas de iniciação e aperfeiçoamento científico e numerosos artigos (LEITE, 1985; RIBEIRO, 1996; entre outros). A década de noventa viu a expansão da área de estudos do Setor de Arqueologia em direção ao extremo Norte do estado, numa retomada do enorme potencial que a Missão Arqueológica Franco-Brasileira havia encontrado ainda nos anos setenta no município de Montalvânia9, no vale do rio Cocha (afluente do rio Carinhanha, por sua vez afluente da margem esquerda do São Francisco). A concentração dos trabalhos, na década de 90, no Alto-Médio São Francisco, no Norte de Minas, levou a equipe do Setor de Arqueologia a concentrar esforços nos 8

É interessante observar como essa abordagem estruturalista de caráter regional não é percebida pelos autores que, fazendo uma breve história da arqueologia brasileira, falam das escolas "francesa" e "americana". É já ponto "passivo", nestes históricos, que a dita "escola francesa" não desenvolve análises regionais, o que significa ignorar um dos campos que os pesquisadores da dita "escola" mais prezam e onde muito investem. Tanto Guidon quanto Prous deram início aos estudos de arte rupestre em suas regiões de trabalho por meio de abordagens regionais. O fato de não ser uma abordagem regional à moda anglo-saxônica (em termos de metodologia e objeto de análise) não deve nos impedir de enxergar a importância que essas análises regionais tiveram e ainda têm para a Pré-História brasileira. 9 A Missão fora levada a essa região por iniciativa do prefeito e fundador da cidade, Antônio Montalvão, que contratara um morador local, conhecido como João 'Geólogo', para realizar prospecções de sítios com gravuras e pinturas rupestres nas serras do município. Os levantamentos de Montalvão e João revelaram dezenas de sítios, visitados pela Missão, então representada por A. Prous, N. Orloff, P. Colombel, M. E. Solá e outros (SOLÁ, 1996/97).

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estudos de crono-estilística, uma vez que os sítios da região clamavam por uma abordagem que desse conta da grande diversidade de conjuntos estilísticos sobrepostos nas paredes dos abrigos. A crono-estilística tornou-se então tema central das análises, conforme se pode observar nos diversos artigos e apresentações em congressos de autoria da equipe da UFMG (RIBEIRO, 1998; MIRANDA, ISNARDIS & ANDRADE, 2000; RIBEIRO & ANDRADE, no prelo; ISNARDIS & MIRANDA, no prelo; RIBEIRO, 2000; PROUS & JUNQUEIRA, 1995). Simultaneamente, abordaram-se outros temas, em especial os padrões

de distribuição espacial e de associação temática das figuras (CASTRO E SILVA & RIBEIRO, 1996; RIBEIRO, 1996; RIBEIRO, 1997), além de questões mais específicas da estilística de

determinados conjuntos. A prática dos levantamentos intensivos possibilitou tais análises e, nos últimos anos da década de 90, foi modificada por elas: havendo uma extensa documentação disponível, os novos levantamentos foram direcionados a sítios que apresentavam um maior potencial informativo, ou através dos quais parecia possível abordar alguns elementos problemáticos específicos da seqüência crono-estilística regional. Assim, o calque da totalidade de um novo sítio já não se fez mais por princípio, sendo escolhidos para calque sítios ou painéis que poderiam acrescentar novos elementos à construção de um quadro regional. Novos elementos esses que, em certos casos, pareciam, na avaliação preliminar do sítio, lançar uma luz adicional sobre as relações entre determinados conjuntos e, em outros casos, pareciam pôr em xeque algumas relações que já nos pareciam claras. Sínteses preliminares sobre os conjuntos rupestres do Norte de Minas foram publicadas ainda na década de 80 (SOLÁ, PROUS & SILVA, 1981/82; PROUS, JUNQUEIRA & MALTA, 1984) e revistas em publicações ulteriores, conforme avançavam os trabalhos

(PROUS, 1994; PROUS & JUNQUEIRA, 1995). As análises empreendidas em alguns sítios considerados estratégicos para a construção de uma crono-estilística regional levaram, na segunda metade da década de 90, a uma revisão das definições anteriores das unidades estilísticas, refinando a distinção e incrementando as análises de relações entre os conjuntos gráficos, no Peruaçu e em Montalvânia (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97). Cronologia absoluta, cronologia relativa e a construção de uma crono-estilística Uma das necessidades amplamente reconhecidas entre pesquisadores de arte rupestre é estabelecer vínculos entre os conjuntos pictóricos e os demais elementos do registro arqueológico, mais especificamente com os vestígios e estruturas recuperados 33

nas escavações dos próprios abrigos e grutas que receberam pinturas, e daí com o conjunto das ocupações regionais. Essa necessidade é apontada pelos mais diversos autores (a título de exemplos: KINAHAN, 1999; MARTIN, 1997; PESSIS, 1992) e provém, seja da preocupação em tornar os estudos dos conjuntos gráficos mais solidamente sustentados, por integrá-los aos contextos que os produziram, seja da preocupação em incorporar a expressão gráfica ao conjunto dos elementos característicos das ocupações em determinada região, enriquecendo a compreensão desse conjunto com aspectos do universo simbólico dos grupos humanos, em tese acessível, ainda que superficialmente, através da arte rupestre. Estabelecer o vínculo entre os conjuntos gráficos rupestres e os demais vestígios de ocupações humanas nunca foi, não é e, ao que parece, continuará não sendo uma tarefa fácil. As conseqüências desta dificuldade são sensíveis e bastante nítidas, tanto na bibliografia brasileira, quanto na bibliografia sobre outras regionais do mundo (KINAHAN, 1999; TAÇON, 1999; TILLEY, 1991). Sem que se estabeleça uma relação entre a ocupação gráfica dos suportes rochosos e a ocupação dos sítios perceptível nos vestígios de superfície e sub-superfície, os pesquisadores se expõem ao risco de construir todo um cenário regional e problemáticas de pesquisa paralelos (no melhor sentido geométrico: linhas 'que se encontram no infinito'): de um lado os grafismos rupestres, de outro os demais vestígios. Além da própria inquietude e angústia pessoais experimentadas pelos pesquisadores diante desse cenário, perde-se a chance de somar, à caracterização das ocupações humanas e dos processos de mudança, aspectos do universo simbólico de seus autores e limitam-se as possibilidades de abordagem dos próprios conjuntos gráficos, em função do nosso desconhecimento de seu contexto de produção. Esse "drama", seja ele em maior ou menor escala um drama científico ou pessoal, não autoriza, afim de evitá-lo, que se force o estabelecimento de relações entre os conjuntos rupestres e os demais conjuntos de vestígios onde elas não são possíveis. Diferentemente de outras regiões do planeta, em especial da Austrália e de algumas áreas na África, no Brasil não dispomos de informações etnográficas ou etnohistóricas que nos permitam estabelecer vínculos entre os povos indígenas contemporâneos e os conjuntos rupestres. Se possível fosse, esse vínculo abriria enormes portas, permitindo-nos avanços tremendos no que se refere a todos os aspectos das análises dos grafismos. Mas infelizmente essa não é nossa realidade. Não dispomos de qualquer registro etnográfico ou etno-histórico da produção dos grafismos rupestres

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que nos permita atribuir qualquer conjunto gráfico rupestre a algum dos grupos étnicos indígenas conhecidos no Brasil. Em alguns sítios, foi possível estabelecer datações para pinturas e/ou gravuras em função de seu encobrimento por camadas sedimentares datáveis. Estabeleceram-se assim datações mínimas (aquela atribuída à camada que cobriu as figuras) para determinados grafismos e, por extensão, para os conjuntos de que eles parecem fazer parte (GUIDON, 1986; PROUS & BAETA, 1992/3). Contudo a datação segura é apenas a da camada, que se torna datação mínima das pinturas. Não se pode garantir afirmações de uma maior antigüidade pressupondo que os autores devam ter pintado as figuras no momento em que o piso do abrigo estivesse a algumas dezenas de centímetros abaixo (portanto, alguns séculos ou milênios antes da datação obtida) baseado na idéia de que eles "naturalmente" não pintariam as bordas do suporte disponível rente ao chão. Os próprios conjuntos rupestres brasileiros - que por vezes ocupam lugares bastante "ilógicos" para um pintor ocidental, como nichos escondidos atrás de concreções carbonáticas, tetos inatingíveis sem grandes estruturas de apoio (escadas, andaimes), tetos invisíveis para quem não esteja disposto a se contorcer por vãos estreitos entre blocos - não nos autorizam a presumir nenhum comportamento "lógico" a priori, caso não bastasse para tanto o bom senso antropológico. O que se obtém com pinturas enterradas é uma datação mínima - aquela da camada que cobre as figuras - e não mais do que isso. No grande abrigo de Santana do Riacho, na Serra do Cipó, em Minas Gerais, um conjunto excepcional de fatores possibilitou o estabelecimento de uma datação mínima para determinadas figuras pintadas sobre um bloco que se desprendeu da parede e caiu sobre uma camada arqueológica datável e, simultaneamente, uma datação máxima para outras figuras, realizadas na área da parede correspondente ao negativo do bloco caído (PROUS & BAETA, 1992/3). No Piauí, também se pôde estabelecer uma datação mínima para conjuntos enterrados (GUIDON, 1986) e em outras regiões essa é uma possibilidade bastante concreta para um futuro próximo. Datações mínimas, entretanto, acrescentam pouco às análises, uma vez que estabelecer que determinadas figuras e, portanto, o conjunto de que fazem parte, têm no mínimo 2.000 anos, por exemplo, não quer dizer que esse conjunto não tenha 4.000 ou 6.000 anos ou 2.010 anos; assim como não quer dizer que o conjunto que pode ser visto sobre ele nas paredes dos sítios tenha 1.950 ou 150 anos e que o conjunto que o antecede tenha 2.050 ou 7.000 ou 10.000 anos. Em outras palavras, uma datação mínima não só não permite uma datação absoluta confiável do conjunto, como também nada pode acrescentar sobre 35

as relações cronológicas absolutas desse conjunto com os demais conjuntos do sítio ou região. Apenas uma excepcional - e ainda inédita - combinação de datações mínimas e máximas permitiria a construção de uma cronologia consistente para regiões com conjuntos estilísticos superpostos. Em algumas regiões, a relação entre pinturas e gravuras rupestres e os demais elementos do registro arqueológico pode-se estabelecer sobre outras bases que não a datação de painéis e níveis arqueológicos. No vale do Illapel, no centro do Chile, por exemplo, os pesquisadores reconheceram nos painéis rupestres motivos gráficos muito semelhantes aos utilizados na decoração da cerâmica e, assim, determinados sítios rupestres dali foram atribuídos à unidade cultural denominada Cultura Diaguita (TRONCOSO, 2001). Na América Central, a abundância de registros gráficos em suportes diversos (edifícios, cerâmicas, códices) permitiram uma atribuição muito ajustada das pinturas rupestres maias a seu contexto (BRADY & ASHMORE, 1999). O mais notório caso, certamente, é a atribuição das pinturas do paleolítico superior da região francocantábrica, possível através da coerência estilística entre os grafismos rupestres e a arte mobiliária recuperada nas escavações. No Brasil não dispomos, ainda, de referências seguras dessa natureza. Ainda não se estabeleceu uma identidade estilística entre grafismos rupestres e grafismos realizados em outros tipos de suporte. Datações absolutas das tintas utilizadas na elaboração dos grafismos parecem ser o mais seguro e promissor caminho a ser trilhado nos próximos anos. Técnicas ainda em aprimoramento já permitiram algumas datações absolutas a partir de elementos orgânicos de amostras de tintas. Dentre essas temos uma datação para uma figura de um dos momentos tardios da tradição São Francisco, no vale do Peruaçu, área objeto desta dissertação (RUSS, HYMAN, SCHAFFER & ROWE, 1990). A datação obtida, através do uso de AMS, foi de 2.700 BP, o que coloca toda a tradição São Francisco, assim como ao menos os períodos iniciais do Complexo Montalvânia, num horizonte cronológico anterior aos mais antigos indícios de horticultura na região. Porém, uma única datação como esta pouco significa, pois não sabemos se a dita tradição São Francisco desenvolveu-se desde muito antes dessa data, ou desde poucos séculos antes dela. Tampouco a datação é útil para estabelecer a faixa que separa a tradição São Francisco dos conjuntos subseqüentes, podendo estar todos estes nos séculos imediatamente posteriores, ou espalhados regular ou irregularmente pelos 23 ou 24 séculos que separam a data obtida e o contato com a frente de expansão da sociedade colonial na região. Mas a data é significativa se comparada às informações obtidas nos abrigos, pois 36

podemos estabelecer uma correspondência entre a tradição São Francisco, ou melhor, entre os momentos tardios da tradição São Francisco e as ocupações dos abrigos desse período. Isto não só indica que a tradição corresponde à expressão gráfica de grupos caçadores-coletores, como também sugere a possibilidade da unidade estilística Piolho de Urubu, das gravuras da unidade estilística Desenhos, da expressão regional da tradição Nordeste e de outros conjuntos recentes ainda não claramente delineados estarem vinculadas (especialmente estas duas últimas, as mais recentes) às ocupações de horticultores que deixaram abundante material nos abrigos (associado à cerâmica da tradição Una). O fato é que uma única datação é muito pouco, inclusive para que essa seja tida como segura, como é obviamente insuficiente para preencher de datas absolutas o quadro de cronologia relativa para as unidades estilísticas da região. Contudo, trata-se de um primeiro passo que deixa claro o enorme potencial dos passos seguintes. Outras abordagens tentaram relacionar conjuntos gráficos rupestres e demais vestígios, mas o fizeram através de inferências extremamente frágeis, quando não absurdas. Uma dessas abordagens é a que pretende ver nos painéis representações de fauna extinta e, assim, ao verificar as datas conhecidas para a extinção do animal supostamente identificado, estender essa data para a realização das pinturas. Já me detive, em outro ponto, sobre os pressupostos aí contidos e os problemas decorrentes desse tipo de pretensão, portanto, não os repetirei aqui. Insistirei, contudo, em sublinhar a fragilidade dessas tentativas, acrescentado a lembrança da escassez de informações paleontológicas seguras sobre as datas precisas da extinção de cada espécie da megafauna pleistocênica. Em lugar de buscar soluções mirabolantes e insustentáveis, devemos nos debruçar sobre o próprio registro gráfico a fim de obter os elementos de análise. A incapacidade temporária de relacionar com segurança grafismos rupestres aos demais conjuntos de vestígios nos impossibilita de abordá-los? Respondendo negativamente a essa primeira pergunta, nos façamos outras duas: em que essa impossibilidade nos limita e qual é a cronologia possível para conjuntos estilísticos de representações rupestres? A possibilidade concreta oferecida pelos grafismos é a construção de uma cronologia relativa. Podemos delinear os conjuntos combinando informações sobre temática e estilística e informações sobre características das tintas, as sobreposições e os graus de pátina. Essa combinação permite, uma vez identificadas relações recorrentes e 37

coerentes, a construção de uma seqüência cronológica de ocupação dos painéis. Estendendo-se as informações obtidas em cada sítio e comparando-as, podemos construir hipóteses para seqüências crono-estilísticas regionais. Nos artigos e demais publicações do núcleo de pesquisadores vinculados à Universidade Federal de Pernambuco e à Fundação Museu do Homem Americano pode-se ver uma preocupação semelhante à da equipe do Setor de Arqueologia da UFMG em estabelecer distinções em termos de cronologia relativa entre os conjuntos estilísticos das áreas em que atuam. Tais áreas, especialmente o Sudeste do Piauí, lhes colocam uma realidade de pesquisa semelhante ao Alto-Médio São Francisco no que se refere à presença indubitável de sobreposições e co-habitação de conjuntos estilisticamente distintos nos suportes rochosos. Pessis observa, com propriedade, que prescindir de uma diferenciação cronológica levaria a “conclusões de utilidade muito limitada” (PESSIS, 1992: 40). Essa preocupação corresponde à que nos levou a investir nos estudos de cronoestilística, termo não empregado na bibliografia do núcleo da UFPE e FUMDHAM. Essa abordagem produziu, no Nordeste, em primeiro lugar, a distinção entre as tradições Agreste e Nordeste e, em seguida, a definição de sub-tradições e complexos no interior desta segunda, lembrando que não são apenas os atributos temático-estilísticos e os cronológicos que compõem essas sub-unidades, mas também sua distribuição geográfica. As pesquisas da equipe da UFMG, no Norte de Minas Gerais, têm demonstrado que os resultados que derivam de uma análise crono-estilística não se resumem à construção de uma estratigrafia dos painéis. Eles possibilitam que se vá mais longe: pode-se analisar o comportamento de um conjunto gráfico em relação aos seus antecessores. Com isso, é possível trabalhar com as relações entre os conjuntos sucessivos, examinando, sobre cada novo conjunto que chega a uma parede já pintada, indicações de reconhecimento e/ou apropriação dos grafismos anteriores, bem como indicações de continuidade ou ruptura, a partir do estudo dos retoques sobre pinturas anteriores, das associações temáticas diacrônicas, das sobreposições que ocultam as pinturas precedentes, do evitamento dessas sobreposições. Deste modo, uma análise crono-estilística pormenorizada pode levar a hipóteses sobre processos culturais: continuidade e mudança, influências e dispersão, unidade e variabilidade. A demarcação de áreas culturais, que seria uma das conseqüências

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imediatas do delineamento de unidades estilísticas, ganha assim dinamismo, passando de uma simples carta topográfica a um cenário de processos históricos. Esses são os objetivos e nessa direção tem caminhado os estudos de cronoestilística conduzidos pela equipe do Setor de Arqueologia da UFMG no Alto-Médio São Francisco, aos quais se alinha esta dissertação. No capítulo V as relações entre os conjuntos serão exploradas detidamente. O uso do 'calque' - seus objetivos, seu processamento em laboratório, suas possibilidades e limitações, suas relações com as novas tecnologias O princípio que norteia o uso do "calque" ou "relevé" é a idéia de reunir num documento a maior quantidade perceptível de informações referentes às formas, às cores, à distribuição espacial (relações entre figuras e elementos do suporte) e às sobreposições entre figuras. O procedimento é colocar um extenso plástico transparente sobre a área de ocorrência de grafismos e nesse plástico copiá-los, ou seja, sobrepor às figuras visíveis uma reprodução dessas, assinalando seus contornos e preenchimentos, suas cores, os pontos onde grafismos se sobrepõem com a indicação de qual pigmento está encima e embaixo, detalhes do suporte (como fissuras, pequenas diáclases, nichos, degraus, protuberâncias, espeleotemas) e medidas em relação a pontos do sítio referenciados em planta e cortes topográficos (vide Prancha 8, na pág 40). Com isso, disponibiliza-se uma documentação minuciosa para processamento em laboratório, possibilitando análises que incorporam todos os elementos registrados, ou seja, análises estilísticas, cronológicas (cronologia relativa), de associações temáticas e de distribuição espacial das figuras, bem como de possíveis relações com elementos do suporte rochoso. A fotografia, mesmo que minuciosa e completa de todo o acervo de um sítio, não é capaz de produzir uma documentação tão rica quanto o calque, especialmente sobre sítios onde abundam sobreposições entre grafismos. Numa ampliação fotográfica ou na projeção de um diapositivo, menos ainda num arquivo digital do tipo “mapa de pontos” (bmp, tif, jpg, cpt, gif, psd ou congênere), não é possível mudar o ponto de vista para buscar uma perspectiva que permita perceber melhor se os grânulos de pigmento vermelhos estão de fato sobre os amarelos, ou se essa é uma ilusão causada pela maior intensidade do vermelho. Numa ampliação, num diapositivo, ou num arquivo digital não é possível explorar a luz de uma maneira sequer próxima àquela que se pode fazer in loco, testando refletores em diferentes ângulos, fazendo uma sombra densa ou suave. 39

Numa reprodução fotográfica não se pode dispor da ampla variação de luz que um dia ou uma semana inteira de trabalhos de observação num sítio possibilitam. Tudo isso, pelo simples e óbvio motivo de que a reprodução fotográfica, seja qual for o equipamento que a produza, é um instantâneo, condicionada pelas lentes, condições de luz e resolução do meio utilizado naquele único e brevíssimo instante em que a abertura da cortina expõe a película ou os sensores eletrônicos são expostos à luz. A observação reiterada e atenta exigida na confecção de um calque não é substituível por recursos tecnológicos. Aquilo que numa ampliação fotográfica parece nitidamente uma perna do antropomorfo torna-se evidentemente um micro relevo do suporte quando pode ser observado in loco, variando-se o ângulo de observação. O que pode ser melhor método de observação: o pesquisador examinando, com sua mente e seus olhos, as pinturas na parede ou o mesmo pesquisador, com sua mesma mente e mesmos olhos, examinando uma reprodução das pinturas em grânulos ou píxels10? Os computadores de processamento de imagem disponíveis não são capazes de realizar qualquer tipo de alteração das possibilidades de visualização de pinturas e gravuras. O que os computadores podem fazer é alterar as propriedades do documento, do registro eletrônico que se fez das pinturas e gravuras ou de qualquer outra coisa. Portanto, um recurso de um programa para processamento de imagens não é capaz de revelar o que não seja visível pelo olho humano, ou melhor, um recurso de um programa eletrônico não lida com os elementos com que esse lida. Um programa não é capaz de manipular as características do objeto fotografado, ele apenas altera as propriedades do arquivo digital produzido sobre o objeto. Ele pode produzir um arquivo inteiramente novo, pela alteração ou substituição das propriedades do original e desse modo, sim, ele pode produzir algo inteiramente impercebido anteriormente, pois é algo que não guarda mais relação alguma com aquilo que foi visto em campo. Na prática, isso significa que operações corriqueiras dos programas de edições de imagem, do tipo "aguçar", "aumentar brilho" e "contraste", ou operações mais sofisticadas, como alterar "gama", "balanço de cores", "decomposição de cores", tão somente reorganizam os elementos gráficos que compõem os arquivos digitais - basicamente interferem na tonalidade dos píxels. Essa interferência pode produzir a impressão de uma maior nitidez quando píxels de tons próximos, mas distintos, têm sua distinção ampliada ou suavizada, ou de uma 'mágica' exposição de traços impercebidos, quando as cores que 10

O píxel é a unidade de resolução dos arquivos digitais de tipo "mapa de pontos", é o quadrado colorido que corresponde, no arquivo digital, ao grânulo da película fotográfica.

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se combinam para definir a cor do píxel11 são separadas em diferentes arquivos ou sistematicamente substituídas umas pelas outras. A modificação das propriedades dos arquivos digitais pode, sim, sugerir novos detalhes que não haviam sido percebidos, mas essa é apenas uma sugestão, que deve ser verificada no sítio, pois pode não passar de uma forma fantasiosa resultante do rearranjo de propriedades de píxels. Optar por fazer unicamente a documentação fotográfica é perfeitamente razoável, em função de características específicas do sítio e da disponibilidade de tempo e recursos. Optar por fazer unicamente a documentação fotográfica não é razoável por se crer numa 'mágica' possibilidade de 'retrabalhar as fotos' nos computadores do laboratório. Os recursos de processamento eletrônico de imagens podem ser muito produtivos, dada sua agilidade e facilidade de manipulação, desde que as técnicas empregadas atendam às exigências das condições dos registros rupestres e aos objetivos da pesquisa. A. C. Cavalheiro, por exemplo, tem empregado, com sucesso, técnicas de levantamento que utilizam programas de processamento de imagens para registrar pinturas rupestres dos Campos Gerais do Paraná (CAVALHEIRO, 2003). A técnica se mostrou bastante eficiente e adequada, como alternativa ao calque, tanto no que se refere às condições dos sítios, com poucas figuras e sem presença significativa de sobreposições, quanto às condições de realização da pesquisa. Uma qualidade da prática do ‘calque’ é o ótimo treinamento de observação dos grafismos que ele proporciona. O registro das informações sobre o plástico exige minúcia e o enfrentamento das dificuldades de visualização, o que leva os pesquisadores a uma observação insistente e demorada, que os qualifica como observadores. Além disso, a participação na etapa de levantamento através de calque cria uma familiaridade inicial dos pesquisadores com os grafismos do sítio, familiaridade que se mostra valiosa na condução das análises em laboratório. Fator importante para o aproveitamento do levantamento por meio do calque é a qualificação dos pesquisadores envolvidos na sua realização. Ao longo dos anos de pesquisas do Setor de Arqueologia, tivemos demonstrações cabais da melhoria da qualidade da documentação na medida em que o profissional se torna mais qualificado, à medida que seu olhar é treinado pela experiência e orientação dos demais membros da equipe Participando de calques em diferentes sítios (com diferentes temas, estilos, 11

Os sistemas de cores mais utilizados são compostos por magenta, ciano, amarelo e preto, o "CMYK", ou vermelho, verde e azul, o "RGB"

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texturas e cores de tintas, tipos de suporte, condições de luz e de postura), o pesquisador vai-se aprimorando e desenvolvendo suas habilidades. A preocupação foi sempre manter os mais jovens sob orientação constante e aproveitar todas as boas oportunidades para treiná-los, apresentado-lhes desafios progressivamente mais difíceis. Outro fator igualmente importante é que o calque exige recursos, demanda uma equipe treinada disponível no sítio por um tempo determinado - na verdade, com uma boa equipe pode-se fazer a reprodução de um grande sítio em poucos dias, não se demanda tanto tempo quanto pode parecer a princípio12. De todo modo, é preciso dispor, por alguns dias, de uma equipe treinada - condições difíceis no contexto da maior parte dos centros de pesquisa no Brasil, para não falar dos heróicos pesquisadores de grafismos rupestres que trabalham sem o apoio de uma equipe estruturada ou inteiramente sozinhos. Também importante é que se saiba como processar a grande quantidade de informações em escala real e fazer dela um material manipulável em laboratório - que não exija, para poder ser analisada, um galpão do tamanho do sítio arqueológico e um par de patins. A solução encontrada pela equipe do Setor de Arqueologia, durante toda a década de 80 e os primeiros anos da década de 90, para reduzir a escala dos calques (passando-os de 1:1 a 1:5, tamanho adotado como padrão) foi o pantógrafo, engenhoso sistema de réguas articuladas, hoje de aparência jurássica para o olhar dos estagiários. A partir da década de 90, o pantógrafo (e parte da imensa quantidade de horas que ele exigia) foi substituído por escâneres e/ou fotografias digitais, através dos quais os calques são digitalizados (sem perder qualquer das informações neles anotadas) de modo que a escala se reduz com relativa facilidade. Resta uma etapa final para dar uma aparência adequada à reprodução, hoje feita com programas que trabalham com imagens de tipo vetorial, o que nos permite transformar os píxels desagregados dos arquivos gerados pelos escâneres ou máquinas digitais em objetos com propriedades de preenchimento e contorno e coordenadas de localização. Essa etapa de vetorização também implica no dispêndio de algumas horas ou dias de trabalho, mas produz um documento facilmente manipulável, com figuras individualizadas ("objetos" no vocabulário dos programas) que podem ser distribuídas em camadas ou copiados e transpostos para pranchas explicativas ou publicações. O documento assim produzido 12

Cerca de meia dúzia de pesquisadores reproduziram, no tempo de uma semana útil (seis dias), painéis na Lapa dos Desenhos que somavam cerca de 2.500 figuras (predominantemente pinturas). Seis pesquisadores foram também suficientes para, no mesmo tempo, reproduzir integralmente as mais de 6.000 gravuras da Lapa do Posseidón.

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não é ainda definitivo, pois será objeto de conferência no sítio, onde, comparado aos grafismos in loco, será corrigido de suas imperfeições e nele se farão eventuais observações complementares (vide Prancha 8, na pág 40). Um dos pontos que se denuncia como fragilidade metodológica do calque é a sua "subjetividade". Nele, diz-se, o pesquisador está livre para cometer erros no momento de identificar os limites das figuras, confundir suporte e grafismo, misturar sobreposições. Mas de modo algum as possibilidades de erro são diminuídas pelo uso da película ou de instrumentos eletrônicos, pois os documentos que esses geram estão do mesmo modo sujeitos aos erros e à imaginação criativa dos pesquisadores, que devem olhar para eles e neles definir os limites das figuras, distinguir o que é grafismo e o que é suporte, distinguir as sobreposições. Aliás, o uso exclusivo de fotos ou imagens digitais está mais sujeito ainda a esses erros e a essa imaginação, pois não se dispõe diante deles dos recursos que enumerei anteriormente (aproveitar diferentes ângulos e condições de luz). Os meios eletrônicos, assim como certas metodologias quantitativas, revestem seu produto de uma aura de objetividade que não passa de mera ilusão positivista, na qual se crê que os programas de computador (ou as estatísticas) revelarão resultados "objetivos", através da "verdade" dos números (de aparência cabalística!). O que está em operação aí é o poder dos números ou dos bits de dissimular o sujeito da produção da pesquisa, o pesquisador. O sujeito está sempre no resultado da pesquisa, por mais que se tente esconder; está lá, na escolha das variáveis, na definição de seus valores, nos cruzamentos e associações entre elas, na programação informática, na escolha dos recursos dos programas de processamento de imagens. Portanto, havendo a possibilidade de fazê-lo, especialmente no caso dos sítios em análise conterem um número significativos de superposições e um grande número de figuras, considero a técnica de calque como a mais adequada a um levantamento minucioso. Agregar a essa técnica os recursos eletrônicos disponíveis é extremamente positivo e indispensável para poupar nossos escassos recursos de pesquisa. Do mesmo modo que é extremamente inadequado descartá-la pelo fato dela parecer “artesanal demais”

para

estes

tempos

de

micro-processadores.

Trata-se

de

assumir

conscientemente os riscos da técnica e beneficiar-se de suas qualidades, sem ilusões quanto à magia dos recursos eletrônicos.

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III.B - ALGUMAS REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Cultura e expressão gráfica A expressão gráfica de qualquer povo é não apenas condicionada, mas também motivada pelo seu universo simbólico, pela sua cultura. O repertório cultural, na mesma medida em que motiva, fornece os elementos de linguagem, fornece os meios para a expressão - seja ela gráfica, fonética, musical, corporal. Ainda que o conteúdo da expressão gráfica seja um retrato ou uma crônica do mundo que envolve seu autor aquilo que nossa cultura chamaria de "natureza", quando pensamos num grupo de caçadores-coletores ou de horticultores dos cerrados ou da floresta tropical -, esse retrato ou essa crônica é, em sua fundação, exercício da cultura do autor, uma prática cultural, uma vez que a maneira como ele observa o mundo é insofismavelmente cultural. São suas referências simbólicas que dirigem sua atenção para determinados aspectos do mundo que o rodeia, é sua compreensão desse mundo que o faz voltar sua atenção para determinados elementos dele. Ainda que sua atenção esteja em grande medida voltada para aquilo que se relaciona diretamente com sua sobrevivência, ainda que seu olhar seja marcado principalmente pelos aspectos econômicos de sua vida, a relação que esse caçador ou coletor ou horticultor estabelece com os elementos de sua dieta - os animais que caça, as plantas que coleta ou cultiva - é culturalmente construída; é através da mitologia e da cosmologia de seu povo que ele entende, que ele vê os bens "materiais" relacionados à sua subsistência; é através das normas sociais de conduta que ele se relaciona com a obtenção ou produção desses bens. Portanto, é a partir desses e outros aspectos de seu universo sócio-cultural que ele os representa graficamente. Alguns estudos de representações rupestres no Brasil tomam as pinturas como um retrato do mundo que rodeia seus autores. Desse modo, passa-se através dos grafismos para se atingir o mundo em que esses autores viviam. Há dois problemas básicos nessas abordagens. O primeiro, que compromete seriamente seus resultados, é o fato dessas análises suporem que aquilo que se pinta é o que se vê. O mundo que aparece pintado nos suportes rochosos pode muito bem não ser o mundo que se observa; não há como descartar a possibilidade, mesmo imaginando um conjunto rupestre muito naturalista em sua temática e estilo, de que aquilo que se representa seja o mundo não como ele é, mas como ele foi ou como ele deveria ser ou como ele será um dia. Assim, o fato de haver uma recorrência de figuras antropomorfas lançando dardos sobre uma

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grande figura de um cervídeo não quer dizer que seus autores sejam caçadores de cervídeos, muito menos que os cervídeos sejam sua principal caça. Há muitos séculos, a crucificação não é utilizada como pena no Ocidente, sendo que em algumas regiões do mundo ninguém nunca foi crucificado, mas uma figura masculina pregada numa cruz - inclusive com pregos introduzidos nas palmas das mãos, onde seriam incapazes de sustentar o peso do corpo - é um tema muitíssimo recorrente na iconografia de um enorme número de povos atuais. Assim como os cristãos não são crucificadores de gente, aqueles que pintam homens lançando seus dardos sobre um cervídeo podem não ser caçadores de cervídeo. A crucificação retratada nas paredes de casas, escolas, igrejas e fábricas não é um retrato das práticas sociais dos cristãos, ela é um referente a uma narrativa mítica, algo que aconteceu num passado mitológico e que simboliza a salvação da humanidade através do sacrifício de um herói mítico. Pode-se pintar cervídeos sendo caçados por um motivo semelhante a esse (a representação de uma narrativa mítica de uma prática que tinha lugar num passado mitológico) ou por qualquer outro motivo dessa ou de outra ordem. Outros vestígios arqueológicos, no caso, restos faunísticos, podem, porém, demonstrar que os autores das pinturas caçavam de fato cervídeos, caso se possa relacionar as pinturas a níveis arqueológicos, o que no Brasil até o momento se fez raramente de forma segura. Ainda assim, ainda que os cervídeos sejam encontrados entre os restos faunísticos, o que leva os autores das pinturas a pintar a caça ao cervídeo não é simplesmente o fato do cervídeo integrar sua dieta, mas sim o fato do cervídeo ser um personagem importante de seu universo simbólico - personagem importante das narrativas míticas ou nas relações entre os homens (ou grupos de homens) e os demais animais. Os cervídeos estão pintados na parede do abrigo porque estavam na cabeça dos autores, não porque estavam em seus estômagos. Unidade estilística X grupo cultural Não estou, de modo algum, supondo uma correspondência necessária entre unidade estilística e grupo étnico. Pretendo sim uma correspondência entre unidade estilística e grupo cultural, este último sendo usado como um conceito bastante amplo, podendo corresponder tanto a um grupo étnico, quanto a grupos étnicos distintos que compartilham algum repertório cultural ou ainda a conjuntos internos a um grupo étnico. Mesmo no campo da etnologia, a noção de etnia é bastante problemática em determinadas situações, especialmente neste momento em que se observam numerosos 46

casos, na América do Sul, nos quais se conclui que aquilo que era considerado um grupo étnico tradicional é o resultado de uma reunião recente de grupos consideravelmente distintos em muitos aspectos de suas culturas, e o que era considerado um arranjo recente é uma estrutura inter-étnica milenar, e as conseqüências dessas constatações para a arqueologia somente nos últimos anos começaram a ser exploradas de um modo sistemático (WÜST, 1999; HECKENBERGER, 2001). O que pressuponho é que haja uma expressiva afinidade cultural entre grupos de autores de uma mesma unidade estilística, e uma igualmente expressiva diversidade, diferença cultural, entre grupos humanos autores de unidades estilísticas diferentes. Anne- Marie Pessis, num dos artigos de apresentação da tradição Nordeste e da metodologia que a definiu, afirma que “as pinturas rupestres da tradição Nordeste são representações que correspondem a modos de apresentação gráfica próprios dos grupos culturais que as fizeram. Entendemos também que o procedimento grupo cultural” (PESSIS, 1988: 12) A seleção de temas a serem pintados é culturalmente condicionada, assim como o são as características gráficas, estilísticas da representação dos temas eleitos. Sendo assim, se encontro em duas regiões distintas conjuntos de representações semelhantes em termos de temática, estilística e organização espacial (podendo ser maior ou menor a semelhança em cada um desses três aspectos), acredito ser razoável supor, e suponho, que os grupos autores têm traços culturais suficientemente comuns para conduzi-los a se expressarem graficamente de modo semelhante, para levá-los a modos semelhantes de expressão gráfica. Da mesma maneira, se há conjuntos gráficos distintos em termos de temática, estilística e organização espacial - este último elemento tendendo a ter menor importância, caso haja diferenças temáticas e estilísticas expressivas -, suponho que os grupos de autores são diferentes entre si em aspectos significativos de suas culturas, que não compartilham um extenso repertório cultural ou ao menos não compartilham o repertório cultural diretamente relacionado à expressão gráfica, uma vez que suas formas de expressão gráfica são notavelmente diversas. É raciocinando deste modo que sou levado a crer que no Alto-Médio São Francisco, mais especificamente no Vale do Peruaçu, a chegada aos sítios de conjuntos de grandes zoomorfos e fitomorfos monocrômicos - a unidade estilística Piolho de Urubu - marca uma ruptura expressiva, possivelmente a chegada ao Vale de uma população culturalmente distinta, uma vez que os grafismos que os antecederam 47

imediatamente nos painéis dos sítios são figuras radicalmente diferentes, figuras quase exclusivamente geométricas e majoritariamente bicrômicas. Concluindo, por hora, a correspondência que pressuponho é entre unidade estilística e repertório cultural. O termo "repertório" talvez seja o mais adequado, na medida em que com ele podem ser contempladas situações diversas, como períodos culturais distintos numa mesma população, um compartilhamento de referências entre distintas etnias, um único grupo étnico ou grupos restritos dentro de uma mesma comunidade. O uso das unidades estilísticas Os problemas do uso pouco criterioso de unidades estilísticas são assinalados por Mário Consens e Paulo Seda (CONSENS & SEDA, 1990), assim como Irmhild Wüst (WÜST, 1991), preocupados com a profusão de tradições, fases e estilos, muitas vezes propostas

de modo impreciso e precipitado, que acabam por inviabilizar o debate científico. Contudo, o estabelecimento de unidades estilísticas, apesar de seus riscos, mostra-se uma ferramenta preciosa, na medida em que o Brasil se encontra numa situação ainda de carência de referências básicas estabelecidas criteriosamente, que possam permitir abordagens futuras e o estabelecimento de relações entre as ainda isoladas áreas de estudo. Conforme apresentado anteriormente, o termo unidade estilística é tomado nesta pesquisa como uma designação genérica de conjuntos gráficos, servindo para se fazer referência a todas as unidades propostas na bibliografia - tradições, complexos, fases, fácies, estilos. Entendendo o termo com esse sentido genérico, Prous e seus colaboradores designaram alguns conjuntos específicos como "unidade estilística tal", afim de não atribuir ao conjunto que delineavam, no caso a unidade estilística Piolho de Urubu, nenhum dos status hierarquizados de "tradição", "complexo", ou "estilo" conforme estabelecia a bibliografia. Neste caso específico, a unidade estilística Piolho de Urubu corresponderia a um conjunto identificado como tal, mas para o qual não havia elementos suficientes que permitissem tratá-lo como uma outra tradição nem como um sub-conjunto das tradições já propostas em outras regiões. Portanto, prosseguindo nesse uso do termo, unidade estilística designa aqui qualquer conjunto de grafismos rupestres, e é o termo usado para designar dois conjuntos específicos do Peruaçu - a unidade estilística Piolho de Urubu e a unidade estilística Desenhos - aos quais A. Prous e colaboradores não pretendem atribuir o status de uma nova tradição e 48

para os quais não dispõem, ainda, de elementos suficientes que permitam associá-los com segurança às tradições já definidas no Brasil. As unidades culturais criadas pela arqueologia brasileira para os conjuntos gráficos rupestres foram construídas essencialmente por contraste. Como afirma Prous: "Quer se trate de definir unidades a partir da análise de vestígios ósseos, de artefatos ou de registros gráficos, os pesquisadores precisam compará-los, buscando evidenciar as semelhanças e diferenças que apresentam entre si." (PROUS, 1999: 255) No início de sua história, as "tradições", os "complexos" e os "estilos" rupestres definidos pelos arqueólogos brasileiros se fizeram a partir de pequenas regiões onde se viam conjuntos de temática e estilo marcadamente diferentes de outros conjuntos definidos em áreas geográficas diferentes. Limites geográficos foram, assim, elementos importantes na definição dos conjuntos. Os núcleos de pesquisa identificaram e nomearam o que hoje se conhece por tradição Nordeste, tradição Agreste, tradição Meridional, tradição Planalto, tradição São Francisco, entre outros, a partir de sítios em áreas de pesquisa distantes centenas ou mesmo milhares de quilômetros umas das outras. Na medida em que os estudos avançavam e novas áreas de pesquisa adjacentes às primeiras eram "desbravadas", surgia a subdivisão das tradições em "estilos" ou "fácies" regionais ou cronológicas. O desenvolvimento das pesquisas no interior das áreas que motivaram as primeiras definições conduziu a uma sofisticação das unidades propostas e começaram a se colocar problemas sobre a co-habitação de unidades distintas em uma mesma área. Contudo, poucos centros de pesquisa levaram as análises muito além das classificações originais, o que resultou em uma certa estagnação das categorias, conduzindo muitos trabalhos ao mero enquadramento de novos sítios aos conjuntos propostos. Muitas das unidades acabaram por ser reificadas, deixando a condição de instrumentos de análise para passar à condição de conclusão das pesquisas. Nesse aspecto a "arte" rupestre no Brasil experimentou um fenômeno semelhante ao que aconteceu com outras categorias de vestígios, especialmente os conjunto líticos e cerâmicos

classificados

pelo

PRONAPA

(Programa

Nacional

de

Pesquisa

Arqueológica), onde, como muito bem demonstra A. Dias (DIAS, 1994), a classificação passou a ser o objetivo final dos estudos. O cuidado básico ao se lidar com unidades estilísticas é manter-se sempre em mente seu caráter instrumental (PROUS, 1999), evitando-se assim reificá-las. É preciso manter sempre presente a disposição para rever seus limites a partir do momento em que 49

novos resultados os puserem em xeque. Lidar com conjuntos muito rígidos, especialmente quando se trata de grandes unidades de análise, conforme bem demonstrou L. Ribeiro em comunicação recente no XI congresso da SAB, impossibilitanos de perceber variações mais sutis, que podem ser cruciais para o entendimento das mudanças ao longo do tempo no interior das tradições, para a percepção de influências entre estilos ou tradições diferentes e para a distinção de conjuntos com alguns elementos em comum (RIBEIRO, 2001). É igualmente importante não se perder de vista que a "arte" rupestre, assim como outros elementos de cultura material impregnados de significação, podem desempenhar papéis dinâmicos nas sociedades, como bem observou I. Wüst (op.cit.), a partir dos trabalhos de Ian Hodder (HODDER, 1982). As unidades estilísticas têm sido tratadas pela equipe do Setor de Arqueologia da UFMG na perspectiva exposta por A. Prous: enquanto instrumentos analíticos, úteis na medida em que se consegue estabelecê-los com clareza e em que se produz a partir deles sínteses e hipóteses de trabalho em nível local ou regional (PROUS, 1999). É também nessa perspectiva que as unidades estilísticas são tratadas nesta pesquisa, uma vez que em publicação recente procuramos estabelecer de forma sintética e nítida as características básicas definidoras das unidades delineadas no vale do Peruaçu (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97), acrescentando novos resultados àqueles apresentados em

publicações anteriores (PROUS et alii. 1984; PROUS & JUNQUEIRA, 1995).

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III.C - GRAFISMOS RUPESTRES E ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM

No campo das chamadas Ciências da Terra, "paisagem" é um termo de emprego antigo, embora não seja uma das categorias centrais de análise e não figure de forma expressiva no vocabulário dos pesquisadores, em função, sobretudo, de sua aplicabilidade restrita às feições contemporâneas. Nesse uso, "paisagem" corresponderia aos fenômenos de superfície, integrando aspectos geológicos (litologia e estrutura), geomorfológicos (relevo e sua dinâmica) e pedológicos (solos) (GOODWIN, MORAIS et alii, 2003). Corresponderia, portanto a aspectos físicos e à relação desses com o homem é discutida na medida em que haja interferências antrópicas sobre a dinâmica natural. Se passamos do campo da Geologia, da Geomorfologia e da Pedologia para o campo da Geografia Humana, encontramos formulações sobre paisagem que permitem estabelecer um diálogo mais profícuo com a perspectiva deste trabalho. Um dos mais eminentes geógrafos brasileiros contemporâneos, Milton Santos, em sua obra A Natureza do Espaço, procura estabelecer uma distinção entre "espaço" e "paisagem", distinção essa epistemologicamente estratégica para sua proposta. Santos define paisagem da seguinte maneira: “Paisagem e espaço não são sinônimos. A paisagem é o conjunto de formas que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O espaço são essas formas mais a vida que as anima.” (SANTOS, 2002: 103). Tomando a definição de Santos, pode-se dizer que, na esfera das relações “localizadas entre o homem e a natureza”, espaço seria a categoria de análise, por excelência, da Geografia, enquanto a paisagem seria a categoria de análise, por excelência, da Arqueologia. Não há nas formulações de Santos nenhuma referência direta à Arqueologia, nem pretendo simplesmente transladar categorias de análise de um campo científico a outro. O que pretendo é sublinhar que a investigação das relações entre o homem e o meio ambiente tem contemplado, em amplos e diferentes campos de pesquisa, a preocupação com o fato de que essas relações não se restringem à esfera da economia ou da ecologia. Essa investigação tem incluído, de modo crescente, a idéia de

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que diferentes culturas e sociedades percebem distintamente os elementos do que chamamos natureza, assim como os elementos antrópicos que compõem a paisagem onde habitam. “A atribuição de significados à configuração de feições naturais ou geográficas não é nunca auto-evidente, mas antes culturalmente determinada” (KNAPP & ASHMORE, 1999: 2) A partir desta constatação, todo um esforço tem tido lugar nas arqueologias histórica e pré-histórica contemporâneas. A paisagem sempre fez parte da temática da Pré-História, mas foi tratada e entendida de diversas maneiras pelas diferentes escolas e linhas de pesquisa. O próprio conceito de paisagem variou amplamente e continua variando de modo mundo significativo no cenário atual, embora sempre ocupando o território das relações entre as comunidades humanas e o meio natural. Sendo a Geografia o campo por excelência de desenvolvimento do tema, as mais variadas ciências humanas lhe encontraram uso e o termo "paisagem" serviu aos mais variados fins, assim como seu correlato "cenário". Apesar do amplo uso da idéia de paisagem, somente as últimas décadas viram surgir a expressão "arqueologia da paisagem", cunhada por pesquisadores interessados em abordar as relações entre meio natural e comunidades humanas de um modo que não pode ser chamado propriamente de inovador no campo das ciências do homem, mas que ainda não fora sistematicamente explorado pela arqueologia. O que se processou nas ciências humanas em geral e vem produzindo um impacto significativo na Arqueologia, na medida em que a idéia é tomada por um número crescente de pesquisadores, é a incorporação das relações humanas ao conceito de paisagem. Tradicionalmente, a Arqueologia tratou o meio natural como fator gerador de mudanças nas sociedades humanas, como fator condicionante dessas sociedades, como um conjunto de contingências com as quais os grupos humanos se viam obrigados a lidar, como um conjunto de recursos e limitações a serem explorados e administrados. Advinham daí teorias sobre processos de mudança, reconstituição de mecanismos adaptativos, estudos de padrões de assentamento, entre outras. Nessas diversas concepções, "paisagem" correspondia à realidade perceptível desse conjunto de fatores

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ou o pano de fundo contra o qual os sítios eram plotados. A preocupação crescente com o conceito, ou melhor, a ocupação crescente com o conceito que vem tendo lugar nos últimos anos deriva de sua reformulação, ou reformulações, uma vez que não há consenso à vista. Como comentam KNAPP & ASHMORE (1999), trata-se de uma expansão da visão das relações entre os grupos humanos e o ambiente para aspectos nãoeconômicos. Mesmo não havendo consenso, as novas conceituações do termo convergem ao considerar "paisagem" como algo que se relaciona à ação humana, à vida social, seja às diferentes percepções que culturas diversas têm do meio natural onde vivem, seja às diferentes modalidades de nele intervir, construindo a paisagem; seja, ainda, entendendo que a percepção e as intervenções são igualmente construtoras de uma paisagem. J. Bene! e M. Zvelebil, em análise sobre paisagens históricas da Boêmia, destacam que a “arqueologia da paisagem” (termo que usam para se referir genericamente às tendências contemporâneas de uso do conceito de paisagem na arqueologia e à arqueologia que eles mesmo praticam) olha a “estrutura contínua” do uso humano da paisagem e que os sítios arqueológicos, portanto, não são mais do que locais de concentrações de vestígios materiais (BENE" & ZVELEBIL, 1999). Knapp e Ashmore tecem considerações semelhantes, ao sublinhar que os novos usos da idéia de paisagem têm em vista a investigação de vestígios que não cabem bem na noção de sítio. O olhar dos pesquisadores estaria voltado para examinar a rede de significações atribuídas aos lugares e as práticas sociais que ali ocorreram, rede esta que envolve e articula diversos sítios, assim como espaços sem vestígios materiais. Segundo Knapp e Ashmore, contudo, o ponto-chave, marca desse renovado interesse sobre as interações entre sociedades humanas e ambiente que é congregado sob o epíteto de arqueologia da paisagem, seria a ênfase nas dimensões sócio-simbólicas da paisagem:

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“landscape [nessa perspectiva] is an identity that exists by virtue of its being perceived, experienced, and contextualized by people13” (KNAPP & ASHMORE, 1999: 1). Diversos contextos arqueológicos têm sido investigados a partir dessas preocupações da arqueologia da paisagem. Autores têm trabalhado com paisagens nas quais as ações de grupos pré-históricos promoveram intervenções muito marcantes e, em alguns destes casos, a idéia de que a paisagem é “construída” se faz mais evidente, com, de fato, estruturas edificadas (BUIKSTRA & CHARLES, 1999; GASPAR, 2000; PINTOS BLANCO, 2001; DARVILL, 1999). Paisagem construída, contudo, não pressupõe edificações

- a transformação dos significados dos lugares pode se dar por intervenções mais sutis, que não promovam mudanças radicais na topografia (KNAPP & ASHMORE, 1999:10). A idéia básica é de que um povo, qualquer povo, pelos mais sutis ou mais monumentais modos, intervem nos locais onde vive e, com isso, dá-lhes um aspecto mais familiar; as intervenções fixam, reforçam ou modificam os significados atribuídos aos lugares. As abordagens da arqueologia da paisagem têm proporcionado explorar, sob novo olhar, elementos já bastante bem conhecidos. Com um novo olhar, estruturas “velhas conhecidas” dos arqueólogos podem ganhar novas cores. Darvill, por exemplo, procura demonstrar como a estruturação espacial de um determinado sítio é expressiva de toda uma forma de perceber organizadamente o espaço, forma essa que se materializa na distribuição de todo um conjunto de diferentes categorias de sítio. Darvill toma a tantas vezes explorada orientação do sítio megalítico de Stonehenge, que se orienta conforme os eixos definidos pelos pontos de nascer e por do sol dos solstícios e equinócios, e procura relacionar esses eixos à distribuição dos cemitérios e outras classes de sítios contemporâneos das tão famosas pedras do Neolítico britânico. Observando que os diferentes quadrantes definidos por esses eixos no conjunto de sítios dos arredores têm usos específicos e distintos, Darvill consegue expandir aquilo que era o alinhamento de uma única estrutura para uma estruturação do espaço mais ampla, relacionada a diferentes ações e práticas sociais.

13

“Paisagem [nesta perspectiva] é uma entidade que existe em virtude de ser percebida, experimentada, e contextualizada pelas pessoas” (Trad. do autor).

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As aplicações das discussões da arqueologia da paisagem a problemáticas relacionadas a arte rupestre são consideravelmente diversas. Diferentes autores puseram em exercício, na análise de regiões com grafismos rupestres, algumas das idéias produzidas nas discussões sobre arqueologia da paisagem, sobretudo a noção de que a percepções dos grupos humanos a respeito de seu ambiente é de caráter marcadamente cultural e a percepção de que a relação entre as comunidades humanas e o meio constituem um sistema que transcende e integra os sítios. Em função de seus contextos específicos, tais estudos tomaram direções distintas. No caso, por exemplo, do núcleo da Universidade de Santiago de Compostela, vê-se o emprego das reflexões sobre paisagem na análise de gravuras da Idade do Bronze em Galícia. As investigações caminham no sentido de examinar as gravuras, analisando sua localização e seu padrão de distribuição (semelhanças, diferenças e posições relativas dos sítios), procurando demonstrar que os petróglifos poderiam funcionar como sinalações demarcadoras de territórios e espaços rituais (SANTOS ESTÉVEZ, 1999). Noutra direção, aí já não envolvendo apenas grafismos rupestres, os

autores daquele grupo de pesquisas sugerem elementos na paisagem que estabeleceram continuidades entre diferentes ocupações numa mesma área em Galícia. Paul Taçon, por sua vez, analisa a distribuição de sítios com grafismos rupestres no Norte da Austrália a partir das concepções aborígines tradicionais sobre as rotas de seus ancestrais míticos, que dão significação aos lugares e conformam toda uma geografia tradicional (TAÇON, 1999). Os sítios rupestres estariam articulados a locais as quais essa geografia

tradicional atribuiria significados especiais. Já BRADY & ASHMORE (1999) desenvolvem um estudo sobre a ocorrência de pinturas rupestres produzidas pelos maias e sua associação com grutas, montanhas e a água, elementos de significativo destaque nas concepções locais sobre o meio natural. É preciso destacar que, tanto Taçon quanto Brady e Ashmore, apóiam-se em informações etnográficas ou históricas, fontes não arqueológicas, que lhes permitem ir muito a diante nas significações atribuídas aos lugares e na lógica de entendimento do ambiente como um todo. As preocupações da arqueologia da paisagem envolvem, contudo, elementos de baixa ou nenhuma visibilidade arqueológica. Como, então, abordá-las?

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A possibilidades é a busca de regularidades que possam ser reveladoras de comportamentos. De inspiração estruturalista, o pressuposto e a abordagem são, conforme o formulam Santos Estévez e colaboradores: “Teniendo en cuenta que el paisaje, como todo producto humano, es la objetivación de una intención, sentido y racionalidad previa que se actualizan en elementos formales concretos y que, como tal esos elementos deben representar de algún modo (siquiera sea distante) los contornos de aquella racionalidad, se propone desarrollar una descripción del paisaje que deconstruya éste y permita aislar los elementos y relaciones formales que los constituyen. (SANTOS ESTÉVEZ, PARCERO OUBIÑA & CRIADO BROADO, 1997: 62) A abordagem que adorei aqui para investigar o padrão de escolha das unidades estilísticas afina-se com esta formulação. O pressuposto, de orientação evidentemente estruturalista, é que haja uma estrutura, uma lógica organizativa, e a estratégia de análise é a busca das regularidades, de relações recorrentes entre os elementos. Um dos pontos realçados pela arqueologia da paisagem é uma preocupação com a idéia de que o cenário em que um determinado povo ou uma “cultura arqueológica” viveu guarda inscritas em si ações dessa gente, assim como já guardava elementos ali deixados ou construídos por povos ou culturas anteriores. Assim, o cenário, já antropizado, contem elementos de diferentes períodos, que se combinam. Voltando ao campo da Geografia, nas considerações de Milton Santos: “A paisagem se dá como um conjunto de objetos reais-concretos. Nesse sentido a paisagem é transtemporal, juntando objetos passados e presentes, uma construção transversal” (SANTOS, 2002: 103) Mais do que isso, o meio seria, também ele, um elo de ligação entre diferentes ocupações e, portanto, a paisagem é não só meio e produto da ação humana num determinado contexto histórico, como também uma forma de uma dada população humana interagir com os produtos de ocupações humanas anteriores – sofrer influências destas, intervir em seus vestígios, tecer considerações sobre elas. Este é outro ponto enfatizado por Bene! e Zvelebil:

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“(…) landscape is seen as a surface where cultural and natural processes of one period leave traces that in turn constrain and influence the activities of subsequent inhabitants”14 (BENE" & ZVELEBIL, op. cit., p.74)

Esta perspectiva é especialmente interessante aqui: a paisagem dos autores das pinturas rupestres do cânion do Peruaçu inclui - com a exceção do caso dos pioneiros outras pinturas rupestres. Para os autores de todas as unidades estilísticas posteriores ao momento Agreste e/ou Primeiro Momento São Francisco, construir uma paisagem através de pinturas passava, necessariamente, por alguma forma de lidar com aquilo que já se via em alguns paredões. Nenhum grupo autor de nenhuma das unidades estilísticas do Vale desconheceu os grafismos precedentes, pois todos os sítios que foram inaugurados pelo Primeiro Momento São Franciscano ou pela Tradição Agreste receberam grafismos posteriores. Não há no cânion, com exceção desses dois conjuntos, nenhuma unidade estilística que não tenha compartilhado paredes pintadas com outras. Uma das questões que nesta dissertação pretendo examinar é como, ao intervir nas paredes do cânion, construindo uma nova paisagem, as unidades estilísticas se relacionaram com a paisagem que encontraram, tanto no que se refere às feições naturais, quanto aos grafismos anteriores.

.

14

“ (...) paisagem é vista como uma superfície onde processos culturais e naturais de um período deixam traços que por sua vez constrangem e influenciam as atividades dos habitantes subseqüentes” (Trad. do autor).

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III.D – A METODOLOGIA EMPREGADA NESTA PESQUISA

Para buscarmos os padrões de escolha das unidades estilísticas, seriam necessários esforços em duas direções básicas: a primeira é a reunião das informações sobre a localização, a implantação na paisagem e as características físicas dos sítios grafados, bem como sobre a distribuição dos grafismos no interior dos sítios; a segunda é a atribuição das figuras às unidades estilísticas estabelecidas. Já foi tratado, nos capítulos III e IV, o tema da atribuição dos grafismos às unidades estilísticas definidas no Peruaçu, restando tratar da metodologia de reunião de informações sobre os sítios.

Metodologia de campo e construção da amostra Enquanto determinadas áreas do cânion do Peruaçu eram bem conhecidas, em função dos repetidos anos de atividade de pesquisa que nelas se concentraram (como, por exemplo, a circunvizinhança da Lapa do Boquete), outras áreas foram objeto apenas de visitas rápidas para registro do conjunto pictórico de sítios localizados através de levantamento oportunístico. Há, ainda, determinadas regiões do cânion quase inteiramente desconhecidas, que foram visitadas apenas por equipes de espeleólogos, nunca tendo sido objeto de prospecções arqueológicas sistemáticas. Para o reconhecimento de eventuais padrões de ocupação do cânion pelas unidades estilísticas, é imprescindível um conhecimento pormenorizado das ocorrências arqueológicas. Na impossibilidade de realizar, no âmbito deste projeto, a cobertura exaustiva de toda a área do cânion do Peruaçu, optei por construir uma estratégia amostral ampla, que combinaria a sistematização das informações já disponíveis e trabalhos de prospecção, de modo a definir setores ao longo do cânion, onde pudesse ter um controle de todas as ocorrências de sítios rupestres, e setores com uma cobertura apenas parcial (as ocorrências já registradas). Na construção dessa amostra procurei selecionar setores do vale, que juntos constituíssem uma porção bastante ampla, onde se teria uma cobertura total15 dos suportes rochosos. As contingências do desenvolvimento da pesquisa - em especial a não obtenção de bolsa de pesquisa e a diminuição significativa de investimento em trabalhos de campo 15

Uma cobertura realmente “total” é uma impossibilidade lógica. A intenção era uma cobertura exaustiva, verificando sistematicamente todos as paredes encontradas que pudessem ser suportes para pinturas, consciente de que há de haver sempre uma margem de erro e alguns suportes potenciais sempre hão de passar despercebidos.

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por parte do Setor de Arqueologia, em razão do término dos financiamentos para a região impuseram uma modificação da proposta original. No projeto original, comporiam os setores a serem integralmente cobertos áreas que se encontravam nas três situações já descritas (a área já integralmente conhecida, as áreas parcialmente conhecidas e as áreas inteiramente desconhecidas). Para tanto seriam realizadas prospecções nas áreas com sítios conhecidos cujo entorno não foi intensamente explorado e nas áreas arqueologicamente desconhecidas, de modo a igualá-las, em termos de cobertura, àquelas já bem exploradas. A metodologia de prospecção nas áreas pouco, ou nada, conhecidas consistiria no caminhamento ao longo de todos os paredões rochosos dentro das áreas componentes da amostra. Uma vez localizados novos sítios, esses seriam registrados através de receptor GPS, croquis de sua planta baixa e perfis significativos, e de documentação fotográfica, que procuraria registrar os diferentes conjuntos gráficos encontrados e a inserção do sítio na paisagem. No mês de julho de 2000, percorremos, numa equipe de três pessoas16, um trecho arqueologicamente desconhecido do cânion: a margem esquerda do rio, a jusante da Lapa dos Bichos [17] e a montante da Lapa de Rezar [15]- ao longo de aproximadamente 2 km do curso do Peruaçu (vide Mapa 1 – em anexo). Verificamos toda a extensão dos paredões calcários nesse trecho, que muitas vezes apresentavam duas linhas de abrigos, uma próxima ao rio e outra mais elevada - em determinados pontos forma-se ainda uma terceira linha de abrigos, a meia vertente. Em dois dias localizamos 5 novos sítios (assinalados no Mapa 1 com pontos verdes), de tamanho e forma variados, que apresentavam grafismos atribuíveis a uma única unidade estilística (três casos), a duas unidades (um caso) e a todas as cinco unidades (um caso). Essa etapa não só demonstrou a viabilidade de se percorrer áreas inexploradas com uma pequena equipe cobrindo integralmente os paredões passíveis de receberem pinturas, como demonstrou também o grande potencial para revelar novos sítios de prospecções em áreas ainda desconhecidas arqueologicamente, sinalizando que pode haver ainda um grande patrimônio a ser descoberto no vale do Peruaçu. Inicialmente, os setores que comporiam a amostra seriam definidos contemplandose:

16

Pude contar com a colaboração, voluntária e preciosa, de Victor Paredes e Gilmar Henriques.

59

-

as áreas correspondentes aos mais longos trechos subterrâneos do rio (áreas assinaladas pelas letras B/C e E, no Mapa 1), que possuem um número reduzidíssimo ou mesmo nulo de sítios registrados17; em função de possuírem algumas peculiaridades em termos de características da paisagem, sobretudo a dificuldade de acesso à fonte permanente de água, parte desses trechos deveriam compor a amostra, para que essa contemplasse a maior diversidade possível de ambientes;

-

a região das lapas do Caboclo [54] e da Hora [61] (área cinza assinalada pela letra F, na Mapa 1), que no momento já possui um significativo número de sítios; essa área teria trabalhos de prospecção apenas complementares (afloramentos a Leste da Fazenda do Silu);

-

a área correspondente às imediações das Lapas do Boquete [29] e dos Desenhos [31], que já estou considerando como inteiramente explorada (área D, assinalada pela linha verde tracejada na Mapa 1); os trabalhos aí foram bastante intensos e todos os afloramentos foram investigados;

-

as áreas afastadas do cânion principal, na linha escalonada da serra, a Sudeste (área I, na Mapa 1), e nos conjuntos de afloramentos próximos aos topos areníticos a Leste (áreas G e H, na Mapa 1)

A metodologia de campo que foi adotada e a reformulação da amostra seguiram essas orientações, porém houve uma modificação quantitativa e qualitativa na amostragem. As limitações de recursos e infra-estrutura reduziram as cinco etapas previstas para apenas duas. Ainda tentando manter a atenção a áreas com diferentes graus atuais de cobertura na intenção de equilibrá-la, o objetivo das etapas de campo teve que ser revisto. Podendo realizar, em 2003, apenas uma etapa de campo, defini como prioridades a verificação e complementação de informações sobre alguns pequenos sítios específicos e uma expansão da área central do cânion em direção a Norte (assinalada no Mapa 1 pela área D’). Assim, muito distintamente do planejado, posso considerar como com uma cobertura completa apenas as áreas (vide Mapa 1) D, D’ e A (toda a margem esquerda e margem direita a jusante do sítio 78).

17

O que se deve especialmente às dificuldades de acesso, que deixaram essas áreas fora dos levantamentos oportunísticos

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Documentação utilizada e metodologia de laboratório Até o momento, 21 dos mais de 80 sítios tiveram seus grafismos inteiramente levantados18, o que, de imediato, disponibilizou grande quantidade de informações para o padrão de distribuição das unidades estilísticas dentro do espaço dos sítios. A imensa maioria dos sítios já registrados conta com informações sobre a área de ocorrência das pinturas e gravuras, reunidas em cadernos de campo e documentação fotográfica, depositados nos laboratórios do Setor de Arqueologia da UFMG. Portanto, uma etapa inicial do projeto consistiu na reunião e exame de toda a documentação referente aos sítios rupestres do vale do Peruaçu, depositada no Setor de Arqueologia da UFMG, para a sistematização dos dados já disponíveis e para um diagnóstico das diferentes áreas e sítios que orientasse as atividades de campo. Alguns pequenos sítios, sobre os quais a documentação depositada no Setor de Arqueologia era insuficiente ou nula, foram visitados na etapa de campo de 2003, a fim de coletar informações sobre sua topografia e sobre as unidades estilísticas que neles podem ser identificadas. Para a atribuição dos grafismos às unidades estilísticas, utilizei as reproduções em escala 1:5 dos sítios calcados e a documentação fotográfica (basicamente os diapositivos) do acervo do Setor de Arqueologia. A documentação cartográfica disponível, que serviu de base aos levantamentos de campo e às análises, inclui: -

fotos aéreas na escala 1:30.000;

-

a carta topográfica do IBGE, na escala 1:100.000;

-

ortofotocartas da RuralMinas, na escala de 1:10.000;

-

o "Cenário Morfológico do Carste do Baixo Curso do Rio Peruaçu, Januária/Itacarambi - MG", de autoria de L. B. Piló, em escala 1:50.000. Tal documento inclui uma caracterização das feições geomorfológicas do cânion e a localização dos sítios arqueológicos até então conhecidos, sendo, portanto, uma importante referência para localização dos sítios e caracterização de sua inserção

18

Estou considerando "inteiramente levantados" os sítios que tiveram seus acervos integralmente reproduzidos via calque, ou parcialmente calcados e sistematicamente registrados por outros meios (fotografias e croquis), como são os casos da Lapa do Piolho de Urubu e da Lapa de Rezar.

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na paisagem. M.T.T. Moura, em sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo, procedeu a uma revisão e atualização dos registros arqueológicos desse documento (MOURA, 1997).

Uso e significado dos abrigos como determinantes de seu uso para a expressão gráfica No momento em que se constata que diferentes grupos de autores escolheram diferenciadamente quais abrigos e quais locais em cada abrigo receberiam pinturas ou gravuras, se é levado a considerar que essa escolha pode passar pelo significado que os abrigos tinham para os autores e pelos usos que fizeram deles. Significado e uso aqui são categorias mutuamente dependentes: o uso pode decorrer do significado que o local tem para uma determinada cultura, assim como o uso que determinado grupo humano faz de um lugar pode determinar o significado que aquele local tem para sua cultura. Tomemos um exemplo, meramente hipotético, mas inteiramente razoável - uma vez que não possuímos qualquer informação sobre o universo simbólico dos pintores, estamos autorizados a uma ampla gama de suposições, diante do imensamente variável repertório de mitologias e ritos que os povos da América criaram19. Suponhamos que as entradas de grutas sejam entendidas (isto é somente um exemplo!) como um acesso ao mundo subterrâneo ou ao mundo espiritual20 e por isso os homens são levados a pintar nos suportes próximos a ela - quer sejam essas pinturas um discurso sobre esse mundo espiritual, quer sejam medidas mágicas para controle desse mundo ou quer sejam qualquer outra coisa relacionada a ele. Uma situação como essa - e podemos, sem muito esforço, imaginar diversas outras semelhantes ou, para que nosso exemplo não pareça por demais fantasioso, coletar diversos exemplos etnográficos semelhantes -, uma situação como essa corresponderia a uma determinação do significado do local sobre o uso que se fará dele através da pintura e de outros procedimentos. Imaginemos outro exemplo. Um determinado grupo usa o abrigo como pouso temporário durante expedições de caça nas quais se realizam cerimônias de iniciação dos jovens. Uma vez utilizado durante o período da caça, o abrigo assume o papel de cenário de 19

Que autoriza-nos, a priori, a qualquer suposição, ao mesmo tempo em que nos impede de formular, a priori, qualquer interpretação. 20 Inserir exemplos etnográficos.

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parte dos ritos de iniciação dos jovens e, nestes ritos, tem suas paredes pintadas. Outro exemplo: um grupo usa os abrigos como locais de pouso temporário quando transita nos limites de seu território e marca nele os grafismos característicos de seus clãs ou retratos de seus heróis míticos, para deixar claro, aos vizinhos que ali chegarem, de quem é aquele território. No primeiro exemplo, os locais passam a ser entendidos como cenário tradicional de parte das cerimônias de iniciação e no segundo, como os locais que indicam os limites do território (suas fronteiras). Nos dois casos teríamos uma determinação do uso sobre o significado do abrigo. Nos três exemplos, temos o uso e o significado cultural dos abrigos determinando a presença, ali, dos grafismos. Uma vez que a prática pictórica se estabelece, já não é possível e nem mesmo útil estabelecer uma precedência entre uso e significado na determinação dessas práticas. Significado e uso, se forem determinantes, tendem a sê-lo simultânea e indissociavelmente. Considerando a possibilidade do uso e do significado dos abrigos e grutas na determinação da escolha desses como local a ser pintado, nos vemos colocados diante da necessidade de estabelecer elementos descritivos que possam dar conta dessa possibilidade. Procurei criar, então, categorias que congregassem fatores possivelmente intervenientes no uso dos abrigos e elementos físicos de destaque - com potencial para serem significantes. Pensando em possíveis usos de um abrigo, procurei incluir aspectos que poderiam condicionar esse uso, tais como o tamanho do abrigo, sua iluminação, características de seu piso, conformação do espaço abrigado, entre outras. Ainda tendo em vista possíveis usos, considerando que os abrigos e grutas fariam parte do padrão de assentamento - e seu uso poderia estar relacionado à coleta de vegetais específicos, à caça, às facilidades e dificuldades para usá-lo como local de pouso ou moradia - procurei incluir elementos sobre sua disposição em relação ao compartimentado cenário do carste do Peruaçu. Assim constituiu-se o elenco de variáveis que se apresenta a seguir, incluindo informações sobre tamanho, topografia, posicionamento em relação a recursos (água, diferentes tipos de vegetação e fauna), inserção na paisagem, presença de cavidades naturais e acessibilidade.

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Características dos suportes como determinantes de seu uso para expressão gráfica Nos casos dos diferentes conjuntos pictóricos do Peruaçu, podemos também estar diante de formas de expressão gráfica onde o grafar em si seja o objetivo e o fator dominante, com uma importância inexpressiva das características do abrigo onde as pinturas serão colocadas. Nesse caso, podemos ter grupos de autores que pintam em determinados abrigos e grutas não em função de um significado específico que esses locais têm em suas culturas, nem tampouco em função desses lugares serem palco de atividades específicas às quais as pinturas estejam ligadas. Teríamos, nesse caso, basicamente, autores à procura de suporte. Esse tipo de atitude, inclusive, seria muito mais acessível por meios arqueológicos, já que é muito mais fácil encontrar recorrências entre uma unidade estilística e um tipo de suporte do que entre uma unidade estilística e uma atividade realizada "fora da parede". De todo modo, independentemente de sua acessibilidade, devemos considerar essa hipótese: os autores estão apenas buscando suportes e a eles pouco importa onde esses suportes estejam. Para cobrir essa alternativa, foram observados e classificados os tipos de suporte disponíveis em cada abrigo e gruta, através de variáveis independentes daquelas dedicadas à descrição dos abrigos. Variáveis para descrição dos abrigos As variáveis a seguir procuram cobrir os aspectos mencionados, sem pretender esgotar as características dos abrigos. A intenção que orienta sua seleção é operacionalizar os elementos físicos reconhecíveis, incluindo basicamente duas categorias de informações: as referentes à inserção do sítio na paisagem e as referentes às características físicas dos abrigos e grutas (sua morfologia, os suportes disponíveis). A seleção dessas variáveis resulta de um conhecimento qualitativo sobre os abrigos, acumulado ao longo dos anos de pesquisa na região21 e dos estudos individualizados dos sítios. As variáveis e valores escolhidos visam contemplar a diversidade e acentuar os contrastes observáveis nas descrições dos sítios, a partir de observações in loco e da

21

Foram de fundamental importância, portanto, as opiniões a respeito dos integrantes da equipe do Setor de Arqueologia e dos pesquisadores de outras áreas que conhecem bem a região, especialmente nos casos dos sítios que não pude visitar pessoalmente no âmbito deste trabalho.

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bibliografia disponível (publicações e relatórios de pesquisa da equipe do Setor de Arqueologia da UFMG).

1- Características físicas dos abrigos 1.1 - Tamanho Esta variável desdobra-se em duas descrições alternativas, em função da diversidade dos abrigos do cânion. São elas: 1.1.1 - Tamanho 1: variável quantitativa, correspondendo à área abrigada (eixo paralelo à parede de fundo multiplicado pelo eixo perpendicular à parede de fundo). 1.1.2 - Tamanho 2: variável qualitativa, agrupando os abrigos em quatro classes, tendo por base a área abrigada. Valores: - pequeno (até 30m de extensão) [p]22 - médio (entre 30 e 50m de extensão) [m] - grande (de 50m a 100m de extensão) [g] - muito grande (mais de 100m de extensão) [mg] 1.2 - Presença de gruta anexa. No caso de haver uma gruta, inclui-se uma avaliação do tamanho dessa, basicamente para distinguir as grandes grutas decoradas das pequenas "tocas" com pequeno volume e extensão. - Sem gruta [s] - Gruta pequena [p] - Gruta grande [g] 1.3 - Conformação em planta Formato da área abrigada, considerando sua projeção geral em planta. - Linear [l] - Quadrangular ou em "L": com uma parede longa e uma gruta colocada em um dos cantos [q] - Meia Lua : gruta sem paredes laterais externas [m] - Ômega: gruta, com paredes laterais externas [o] 1.4 - Perfil Formato dominante dos cortes transversais do abrigo. - Parede vertical (ou sub-vertical) e teto muito elevado [v] - Parede vertical restrita e teto horizontal [t] 22

Código correspondente ao valor da variável nos quadros e tabelas.

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- Parede vertical e teto elevado, mas não [b] 1.5 - Iluminação (pode vir a ser adotada para os painéis individualmente) Luminosidade média do abrigo no decorrer do dia. Observa-se, sobretudo, a existência ou não de penumbra que possa limitar a visibilidade dos painéis pintados. Claro: sem barreiras significativas à luz natural, o que permite ótima visibilidade dos suportes durante todo o dia [c] Médio: com barreiras que restringem a luminosidade em determinado momento do dia [m] Escuro: com barreiras que restringem a luminosidade durante todo o dia [e]

1.6 - Orientação do sítio Orientação cardeal da entrada da gruta ou da parede principal (Norte, Leste; Oeste, Sul e combinações possíveis, NE, NW, SE, SW). 1.7 - Voltado (o sítio) para o rio - Sim [s] - Não [n] 1.8 - Piso do abrigo 1- morfologia Descrição sucinta da regularidade ou da irregularidade do piso da área abrigada. - Regular e plano: domina uma superfície plana e regular [r] - Escalonado e/ou inclinado: dominam superfícies regulares mas inclinadas ou patamares [e] - Acidentado: dominam blocos e/ou desníveis abruptos [a] 1.9 - Piso do abrigo 2 - sedimentação Dominância das superfícies horizontais por um piso de tipo: - Rochoso [r] - Sedimentar [s] - Rochoso e sedimentar em proporções semelhantes [m] 1.10 - Suportes disponíveis Breve caracterização dos suportes disponíveis dominantes, admitindo combinações de valores. - Verticais amplos [va] - Verticais restritos [vr] - Teto escalonado ou restrito [tr] - Teto amplo [ta] 66

2 - Os abrigos na paisagem 2.1 - Distância em relação ao rio Distância a ser percorrida sem escalada de paredões verticais do abrigo ao ponto mais próximo do curso do Peruaçu. Os valores são uma classificaçãso em função dos acidentes a serem vencidos no percurso. - Distante: com duas ou mais vertentes a serem vencidas no percurso do sítio ao rio [d] - Acessível: apenas uma vertente a ser vencida [a] - Próximo: sem obstáculos significativos [p] 2.2 - Posição no cânion Localização do sítio em compartimentos da paisagem, tendo por referência o cânion principal (paredões que ladeiam o curso do rio) - No cânion principal [p] - Em cânion secundário [s] - No topo do pacote: sítio localizado no topo ou acessível a partir dele ou em dolina separada do cânion principal [t] - Em afloramentos afastados do cânion principal [a] 2.3 - Posição na vertente - Terço Inferior [i] - Terço Médio [m] - Terço Superior [s] - Topo do pacote calcário: no topo ou acessível a partir dele [t] - Em Dolina: sítio em afloramentos que margeiam dolinas descoladas dos cânions principal e secundários (dentro da dolina o sítio poderia estar em alta, média ou baixa vertente) [d] Todos os sítios do cânion, com essa ordem de informações, disponíveis foram descritos segundo essas variáveis. Foram compostas tabelas relacionando as ocorrências das unidades estilísticas aos elementos de descrição dos abrigos. Esses elementos, contudo, não foram utilizados apenas através das tabelas, outrossim serviram como guia para as análises e descrições qualitativas dos sítios.

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IV - OS GRAFISMOS RUPESTRES E A PRÉ-HISTÓRIA DO ALTO-MÉDIO SÃO FRANCISCO IV.A - BREVE SÍNTESE DOS CONHECIMENTOS SOBRE PRÉ-HISTÓRIA REGIONAL

O Vale do Rio Peruaçu vem sendo objeto de pesquisas do Setor de Arqueologia da UFMG, sob coordenação do Prof. André Prous, ao longo das duas últimas décadas. Nesse período realizaram-se escavações em diversos abrigos (PROUS, JUNQUEIRA & MALTA, 1984; PROUS, 1991) e o levantamento integral de dezoito sítios com grafismos

rupestres localizados no médio e baixo cursos do rio. Ao passo em que os períodos de ocupação e suas indústrias recuperadas nas escavações foram sendo caracterizados (PROUS, BRITO & LIMA, 1994; FOGAÇA & LIMA, 1991), as linhas gerais de unidades estilísticas das pinturas e gravuras e sua cronologia relativa foram delineadas. No presente momento, prepara-se uma síntese dos vinte anos de pesquisas na região, onde se publicarão as análises das indústrias líticas e cerâmicas, dos vestígios vegetais e faunísticos, dos reminescentes ósseos humanos, bem como os trabalhos de escavação dos abrigos e as análises das estruturas que esses revelaram. A Pré-História do Alto-Médio São Francisco construiu-se essencialmente através das escavações de sítios em abrigo e das análises de arte rupestre. As sondagens realizadas em diversos abrigos em Montalvânia e no Peruaçu, seguidas de escavações mais intensas em alguns deles - Lapa do Boquete, Lapa do Dragão, Lapa dos Bichos, Abrigo do Malhador - revelaram a grande profundidade cronológica da ocupação regional e disponibilizaram um rico material para o estudo das ocupações mais antigas (na faixa entre 12.000 e 9.000 BP), um material não muito expressivo para o período arcaico inicial (entre 9.000 e 5.000 BP), um conjunto de vestígios desigualmente representado dentro de cada uma das regiões para o arcaico final (5.000 a 2.000 BP) e um exuberante acervo de vestígios e estruturas para o período ceramista (2.000 BP até o período Colonial). Nos abrigos foi possível estabelecer seqüências regionais, com seguras referências cronológicas. Pouco se sabe, entretanto, sobre as ocupações a céu aberto e, portanto, a seqüência construída pelas escavações dos abrigos não está conectada ao delineamento de padrões de ocupação regional. Somente nos últimos anos os esforços foram orientados para sítios a céu aberto, mas esse direcionamento foi tímido e ainda se tem uma idéia muito imprecisa do patrimônio regional fora do cânion do Peruaçu e das serras de Montalvânia. Ainda não foi escavado nenhum sítio que

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pudesse ser caracterizado como um acampamento de caçadores-coletores a céu aberto (RODET, 2002) e apenas um assentamento cerâmico foi sistematicamente explorado - o sítio Russinho, no barranco da margem esquerda do São Francisco em Itacarambi (KOOLE, 2002) As indústrias líticas das ocupações mais antigas apresentam características que permitiriam sua "atribuição" à chamada tradição Itaparica, sendo que o conjunto dos níveis inferiores da Lapa do Boquete permitiu a construção de um dos mais consistentes estudos de tecnologia lítica do Brasil central, bem como uma crítica sólida à definição dessa "tradição" (FOGAÇA, 2001). O período correspondente ao Holoceno médio e médio-recente não foi objeto de análises aprofundadas, havendo tão somente caracterizações preliminares ou pontuais sobre suas indústrias líticas. Essa atenção reduzida aos caçadores-coletores do chamado período Arcaico se deve, certamente, à sua presença relativamente discreta nos abrigos, o que desviou a atenção dos pesquisadores para as camadas arqueológicas mais ricas1. Já as ocupações dos horticultores ceramistas renderam trabalhos mais minuciosos, em função, primordialmente, da abundância de vestígios vegetais, dispersos pelas camadas superiores dos abrigos (sobretudo da Lapa do Boquete) ou dispostos nas estruturas chamadas, insatisfatoriamente, de "silos". Tais estudos incluíram uma tese sobre características genéticas de alguns desses vegetais (o milho e o feijão) (FREITAS, 2003) e artigos sobre os "silos" (RESENDE & CARDOSO, 1995), mas a região ainda espera

por uma análise das ocupações ceramistas numa escala inter-sítios. Podem ser encontradas, de modo recorrente nos abrigos e intensamente associadas a sepultamentos datados do II milênio da era cristã (PROUS & SCHLOBACH, 1997), peças cerâmicas com características da tradição Una. Os ceramistas que sepultaram seus mortos (com ricos acompanhamentos) nas lapas do cânion e em algumas delas enterraram estruturas recheadas de vegetais seriam, portanto, autores da expressão regional da tradição ceramista Una, identificada em outras regiões do Norte de Minas Gerais (PROUS, 1992) O principal sítio cerâmico a céu aberto já estudado na região, denominado Russinho, encontrasse fora do cânion, no barranco do rio São Francisco, próximo à atual cidade de Itacarambi. O sítio se fez notar pela erosão do barranco provocada pelo próprio rio São Francisco, que expôs alguns esqueletos humanos. As intervenções da 1

J. Rodet, em sua dissertação de mestrado e agora em sua tese de doutoramento, na Universidade de Paris - Nanterre, é a pesquisadora que tem dado uma atenção sistemática a esse período, escavando, para tanto, sítios líticos a céu aberto.

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equipe da UFMG se fizeram com caráter de “resgate”, embora se tenham realizado num ritmo menos frenético do que aquele que normalmente se tem associado ao termo na arqueologia brasileira contemporânea. As características da cerâmica local são nitidamente diversas daquela dos sítios do cânion e não permitem sua filiação à tradição Una. Além da cerâmica, na prática de sepultamento a diferença em relação aos abrigos também é marcante, pois não há associação direta entre peças cerâmicas e os sepultamentos, cujos acompanhamentos, se existiram, foram inteiramente decompostos. Os elementos disponíveis apontam, portanto, para uma disjunção entre esse sítio e as ocupações ceramistas do interior do cânion (KOOLE, 2002).

As pesquisas sobre a pré-história da região reúnem uma equipe bastante ampla de professores, pesquisadores e estudantes, muitos dos quais engajados nos trabalhos na área há vários anos. Alguns desses pesquisadores produziram ou estão finalizando dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre temas da região, em diversas instituições do Brasil, França e Estados Unidos, como é o caso das teses de M. Schlobach, na Universidade de Paris X - Nanterre, sobre as indústrias líticas Abrigo do Malhador; de R. Kipnis, na Universidade de Michigan, a partir dos vestígios da Lapa do Bichos [17]; de E. Fogaça, na PUC do Rio Grande do Sul, sobre as primeiras indústrias líticas da Lapa do Boquete [29]; a de N. Leite, na USP, sobre as pinturas rupestres da Gruta do Índio [24]; e a de L. Ribeiro, no MAE-USP, sobre "arte" rupestre do Norte de Minas e regiões vizinhas; assim como as dissertações de M.T.T. Moura, no Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo, sobre a sedimentação da Lapa do Boquete [29]; a de J. Rodet, em Paris X - Nanterre, sobre a indústria lítica do sítio Terra Brava [81]; e a de M. M. Castro e Silva, na UNICAMP, sobre as gravuras da Lapa de Possêidon (em Montalvânia). Especificamente sobre as gravuras e pinturas rupestres, além dos já referidos trabalhos de M. M. Castro e Silva e N. Leite, outros sítios têm sido objeto de análises aprofundadas: a Lapa do Gigante (Montalvânia), a Lapa do Dragão (Montalvânia), a Lapa do Tikão [38] e a Lapa do Piolho de Urubu [50], sob responsabilidade de Loredana Ribeiro; a Lapa dos Desenhos [31] e a Lapa do Caboclo [54], por Andrei Isnardis e Luiz Fernando Costa Miranda; a Lapa do Boquete [29] e o Abrigo do Janelão [22], por Alenice Baeta. Os demais sítios têm sido objeto de estudos mais sintéticos, numa abordagem de perspectiva regional, onde se enfatizam suas correlações com 70

aqueles mais intensamente estudados, sobretudo, mas não somente, em termos de cronoestilística. Nesse processo, produziu-se uma ampla documentação dos grafismos do Vale do Peruaçu (e, mais recentemente, da região de Montalvânia), através da cópia integral das pinturas e gravuras de 18 sítios do cânion e da cópia parcial de outros 20, além de extenso registro fotográfico. Um dos principais caminhos que o estudo dos conjuntos rupestres do AltoMédio São Francisco tem tomado, no presente momento, segue no sentido de sofisticar a compreensão das unidades já reconhecidas, distinguindo momentos crono-estilísticos internos a elas e reconsiderando seus limites - especialmente nos casos da tradição São Francisco e do Complexo Montalvânia (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97; MIRANDA, ISNARDIS & ANDRADE, 2000; RIBEIRO & ANDRADE, no prelo, apresentado à Reunião

Científica da Sociedade de Arqueologia Brasileira, em 1999, no Recife; ISNARDIS & MIRANDA, no prelo, apresentado à Reunião Científica da Sociedade de Arqueologia

Brasileira, em 1999, no Recife).

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IV.B - AS UNIDADES ESTILÍSTICAS DE GRAFISMOS RUPESTRES DO ALTO-MÉDIO SÃO FRANCISCO

No último volume publicado dos Arquivos do Museu de História Natural da UFMG, foi apresentada uma síntese caracterizando as unidades estilísticas delineadas no Norte de Minas Gerais, especificamente no Peruaçu e em Montalvânia (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/971). Nessa síntese reunimos os elementos típicos e definidores de cada

unidade estilística e apresentamos, de forma preliminar, algumas das questões mais prementes que as envolviam naquele estágio da pesquisa. Neste texto farei uma nova apresentação das unidades estilísticas, acrescentando resultados posteriores e algumas reflexões amadurecidas desde então. Ainda na década de 80 vieram a público os primeiros trabalhos definidores de "tradições" de grafismos rupestres do Norte de Minas, que traçaram as linhas gerais das unidades estilísticas regionais e de sua cronologia relativa. Tais publicações propuseram a chamada tradição São Francisco, cujo aspecto de destaque era a predominância de pinturas geométricas, algumas bastante sofisticadas, executadas em bicromia ou mesmo em tricromia (PROUS, JUNQUEIRA & MALTA, 1984). Na década de 90, o desenvolvimento de pesquisas mais intensas no interior de sítios de referência no Peruaçu e a retomada das investigações sistemáticas em Montalvânia levaram à revisão das definições das unidades estilísticas, possibilitando a identificação de uma maior complexidade na crono-estilística regional. A sofisticação das unidades e a revisão de suas fronteiras que então se processou (e continua se processando, a diante retomaremos a questão) deveuse ao avanço das investigações intra-sítios e de uma maior articulação das informações intersítios. Para isso foram centrais as análises da Lapa do Gigante, da Lapa do Posseidon e da Lapa do Dragão, em Montalvânia, e das lapas de Desenhos [31], Rezar [15] e Ticão [38], no Peruaçu. A partir dessas análises, o hoje denominado Complexo Montalvânia foi delineado e separado da tradição São Francisco, com a qual se encontrava fundido nas primeiras análises na década de 80. A partir desses sítios, também se distinguiram com maior nitidez os momentos internos à tradição São Francisco e ao Complexo Montalvânia, salientando as sofisticadas relações entre esses momentos. Deve-se também às análises intensivas intra-sítio a visualização dos padrões 1

sendo que a edição ocorreu de fato em 2001, estando o texto bem mais atualizado do que sugere a data formal de publicação, que respeita a periodização da revista

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de distribuição espacial e de associações temáticas. Todos esses aspectos foram identificados nos referidos sítios e então verificados sistematicamente nos demais - o que ainda está sendo feito no presente momento. A seqüência estabelecida para a sucessão das unidades estilísticas no Peruaçu pode ser vista na Prancha 9, na pág 74 (reprodução parcial do quadro publicado em RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97). Os grafismos mais antigos são atribuídos à tradição São

Francisco e à tradição Agreste. No Peruaçu a primeira se divide em quatro subconjuntos cronológicos (que não se manifestam em todos os sítios). O Complexo Montalvânia corresponde à segunda unidade estilística a ocupar o Vale, sendo que seus grafismos chegam aos paredões após o segundo e antes do terceiro subconjunto da tradição São Francisco. A unidade estilística Piolho de Urubu é claramente posterior à tradição São Francisco e ao Complexo Montalvânia, correspondendo ao que no quadro se denomina período médio-recente. Posteriores à Piolho de Urubu, podemos encontrar tanto a unidade estilística Desenhos, quanto a tradição Nordeste, além de outros conjuntos ainda mal delineados e sem denominação. Entre a u.e. Desenhos, a tradição Nordeste e esses outros conjuntos não há relação cronológica estabelecida. As setas no quadro indicam influências de um conjunto sobre o outro - identificadas a partir de elementos temáticos ou estilísticos. A tradição São Francisco A tradição São Francisco carateriza-se pelo largo predomínio de grafismos geométricos (termo genérico que designa grafismos não figurativos, chamados por parte da bibliografia brasileira de "grafismos puros"), compostos, muito freqüentemente, em bicromia (vide Prancha 10, na pág 75). Parte numericamente expressiva das figuras tem grandes dimensões, estando a maioria dos grafismos por volta dos 30 a 40 cm de comprimento, sendo muito freqüentes aqueles de 50 ou 60 cm, alguns ultrapassando os 80 cm. Os autores da tradição pintaram intensamente os suportes amplos e lisos, produzindo painéis verdadeiramente espetaculares em alguns sítios, como nas lapas dos Desenhos, de Rezar e do Caboclo - vide fotos nas pranchas 26 (na pág 136) e 46 (anexo). Diversos sítios apresentam centenas de grafismos atribuídos à tradição e alguns (do Malhador, de Desenhos, do Caboclo e de Rezar) atingem a casa dos milhares de figuras sanfranciscanas.

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mais recente

grafismos em crayon

Tradição Nordeste

U. E. Desenhos

vermelhos recentes

zoomorfos brancos

Tradição São Francisco

U. E. Piolho de Urubu

SF (4)

SF (3)

SF (2)

SF (1)

Tradição Agreste

mais antigo

Tradição São Francisco

Complexo Montalvânia

convenções - linhas horizontais contínuas: relação diacrônica de sucessão (aquilo que está sobre a linha é posterior àquilo que está sob a linha) - linhas em ziguezague: relação diacrônica não estabelecida - setas vermelhas: influências estilísticas e/ou temáticas

Prancha 9- Quadro síntese da crono-estilística do vale do Peruaçu

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As figuras mais numerosas são os conjuntos de bastonetes (linhas curtas paralelas), tema bastante comum em muitos conjuntos por todo o Brasil, mas que na tradição São Francisco é realizado, predominantemente, justapondo-se traços de cor vermelha e amarela alternadamente. Presentes na maioria dos sítios, os bastonetes, em média têm 15 a 20 cm de comprimento e agrupam-se, em geral, em número de 3 a 6 traços, quando monocrômicos, e de 5 a 11, quando bicrômicos. PROUS, JUNQUEIRA & MALTA, 1984; PROUS, 1991

O segundo grupo mais numeroso é o dos "cartuchos", figuras chapadas ovais, com o preenchimento de uma cor e o contorno de outra; o cartucho pode ser tomado como a figura "emblemática" da tradição São Francisco no Peruaçu, uma vez que não ocorre em outras unidades estilísticas definidas no Brasil e que aparece em quase todos os sítios do Peruaçu que receberam pinturas da tradição2. Os cartuchos destacam-se muito nos sítios, tanto por serem grandes e inteiramente preenchidos, quanto pelo fato de serem freqüentes nos painéis altos e nos setores superiores dos painéis em geral. Em alguns sítios são muito numerosos, chegando a representar 15% de todas as figuras sanfranciscanas na Lapa dos Desenhos [31]. Também numerosas são as figuras formadas por conjuntos espaçados de bastonetes paralelos unidos nas extremidades por traços horizontais, a que chamamos "grades" - também estas são freqüentemente compostas em bicromia. Também presentes com freqüência nos sítios são as chamadas "redes", figuras compostas por vários traços diagonais cruzados, que, quando bicrômicas, têm seus traços de base realizados numa cor e os espaços entre esses traços preenchidos ou contornados de outra cor. Embora não muito numerosas, as "redes" chamam bastante a atenção nos sítios em razão de seu tamanho e exuberância. Outras figuras compostas por traços diagonais são o que chamamos figuras "losangulares", compostas em geral por dois traços em ziguezague que se entrecruzam, assumindo a aparência de elos ou losangos encadeados. Há ainda outros geométricos bastante exuberantes, em bi ou mesmo em tricromia, compostos por grandes superfícies pintadas (não raro 40 x 40 cm, chegando mesmo a 30 x 80 cm), formados por tramas irregulares preenchidas, por geométricos simples justapostos (losangos) ou compostas como "gregas". Na lapa de Rezar vê-se uma figura de composição quadricrômica, sendo que a própria parede de fundo é usada como cor, numa série de losangos concêntricos. 2

Os sítios sanfranciscanos sem cartuchos são aqueles onde se manifestam apenas os subconjuntos tardios dessa tradição. A divisão da tradição em subconjuntos crono-estilísticos será apresentada a diante.

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Completando o elenco das diversificadas figuras geométricas sanfranciscanas vêm os ziguezagues (linhas anguladas paralelas) mono ou bicrômicos; alguns pequenos geométricos lineares monocrômicos, semelhantes a aspas e asteriscos; as chamadas figuras "caboclo"; e outras figuras chapadas. Da mesma composição gráfica dos cartuchos (preenchimento chapado e contorno linear de outra cor), estas últimas apresentam quatro ou mais pontas, em geral em simetria bi-lateral. As figuras "caboclo" receberam seu nome em função do sítio epônimo [54] onde são muito numerosas e formam um conjunto absolutamente espetacular; correspondem a tramas complexas de traços diagonais, horizontais e verticais, formando grandes formas, predominantemente quadrangulares. Os traços que compõem a trama são realizados sempre em cor amarela e seus intervalos são preenchidos por tinta vermelha. O conjunto recebe um contorno linear vermelho, produzindo o efeito final de um fundo amarelo salpicado de pequenas figuras geométricas vermelhas (vide Prancha 11, na pág 78). Os grafismos figurativos da tradição São Francisco, sempre minoritários nos sítios, podem ser agrupados em três grandes categorias: as armas e instrumentos, os biomorfos/antropomorfos e os zoomorfos. Os zoomorfos correspondem unicamente a representações que sugerem peixes e lagartos, os primeiros representados em perfil (onde se vêem nadadeiras), em posição vertical ou horizontal, sendo a primeira bem mais freqüente. Já os lagartos são representados com indicações proeminentes das quatro pernas e da cauda, eventualmente com dedos nas pernas traseiras, mas sem qualquer outro detalhe; são vistos sempre em plongée. Em geral, os zoomorfos são chapados, monocrômicos nos subconjuntos mais antigos da tradição, bicrômicos no mais recente (preto contornado de branco, branco contornado de preto, de amarelo ou de vermelho); o momento sanfranciscano mais recente também pinta os lagartos somente contornados. As representações de armas são por vezes bastante realistas, permitindo a identificação de seus elementos funcionais básicos - como o gancho e a alça de preensão nos propulsores. Os dardos são representados com suas pontas e/ou farpas. Tais representações de armas encontram-se quase sempre em conjuntos de duas a cinco figuras dispostas lado a lado. São comuns em painéis altos, de organização horizontalizada, logo acima de patamares elevados. Outros objetos também longilíneos, cujos contornos não nos permitem uma identificação razoável, encontram-se em meio 77

As chamadas figuras ' caboclo' são formadas pela combinação das mesmas formas geométricas utilizadas na confecção de figuras sanfranciscanas bastante simples, como ziguezagues, redes e figuras losangulares

Lapa do Caboclo, Painel III

Detalhes da figura geométrica da foto à esquerda. Observe as linhas em tinta amarela, que compõem sua trama, e a tinta vermelha, que preenche os espaços vazios da trama.

Prancha 11 - Aspectos gráficos das ‘figuras caboclo'.

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aos dardos, seteiras3 e propulsores (vide Figura 1), o que nos leva a agrupá-los também como armas e instrumentos - entre esses estão as figuras apelidadas de "halteres". Sempre monocrômicas, as armas são quase sempre vermelhas, havendo poucas em amarelo, preto ou branco. Geralmente são bastante alongadas, com mais de 50 cm de comprimento.

Figura 1 – Armas e objetos da Tradição São Francisco Os biomorfos e antropomorfos da tradição São Francisco nunca são muitos numerosos num mesmo sítio e são representados quase sempre de modo muito esquemático, em geral com indicação apenas do corpo e dos membros. Nas publicações da equipe do Setor de Arqueologia adotamos a convenção de agrupar aqueles de corpo arredondado e sem indicação de cabeça na categoria de bio-antropomorfos, enquanto aqueles de cabeça distinta e com outros elementos anatômicos foram classificados como antropomorfos. Os bio-antropomorfos de corpo redondo são sempre pintados em conjuntos, quase sempre alinhados horizontalmente e monocrômicos, justapostos em número de dois a cinco indivíduos. Há bio-antropomorfos muito esquemáticos de corpos alongados ou quadrangulares, raramente ultrapassando 20 cm de comprimento, que são compostos em bicromia, sendo o amarelo a cor que desenha os corpos e o vermelho usado para o contorno, aberto nas extremidades; também estes apresentam-se em grupo, sendo vistos mais comumente em número de dois ou três indivíduos. Encontram-se também biomorfos semelhantes (corpo amarelo e contorno), acéfalos, bem mais alongados, atingindo 40 cm ou mais; estes em geral são vistos em pares ou

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"Seteira" é a denominação popular de pontas de projéteis com muitas farpas, assentadas sobre hastes longas (caniços). Um exemplar desse tipo de projétil foi, inclusive, encontrado entre o acompanhamento funerário do Sepultamento nº 4 da lapa do Boquete.

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sozinhos, próximos a cartuchos alongados, mas são muito pouco numerosos no Peruaçu (vide Figura 2).

Figura 2 – Antropomorfos e bio-antropomorfos da Tradição São Francisco A tradição São Francisco apresenta associações temáticas recorrentes, tanto sincrônicas quanto diacrônicas, o que nos dá indicações de sua "gramática", ou seja, de uma estruturação na distribuição das figuras umas em relação às outras. Além das associações já mencionadas entre figuras de mesmo tipo, outras podem ser observadas com recorrência em diferentes sítios. Os cartuchos monocrômicos tendem a se agrupar e ocupar porções menos elevadas nos painéis. As armas associam-se com freqüência a "asteriscos" e bio-antropomorfos, assim como a cartuchos alongados. Em três sítios há uma associação diacrônica virtualmente idêntica: cartuchos horizontais geminados sobrepostos a um antropomorfo monocrômico vermelho (vide Prancha 46, quadrante C6 [consulte Prancha 41], em anexo). Antropomorfos e bioantropomorfos tendem a se agrupar diacronicamente, havendo uma associação recorrente também de antropomorfos ou bio-antropomorfos e "redes", ou antropomorfos e figuras losangulares, conforme assinalou Ribeiro (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97). Pode-se notar, ainda, que há temas dominantes em determinados sítios. A diante (capítulo V) a questão será retomada, mas é notável como as figuras "caboclo" se concentram no sítio epônimo [54] e no Abrigo do Malhador [16], enquanto os cartuchos são, proporcionalmente, muito numerosos em Desenhos [31], Rezar [15] e Bichos [17]; as "redes" e as figuras losangulares são mais abundantes em Rezar do que em qualquer outro sítio; as armas sanfranciscanas são numerosas em Desenhos e nos Bichos, mas raras ou totalmente ausentes em outros sítios, como o Caboclo, Rezar, Índio [24] e Janelão [22]. Pudemos estabelecer, ao longo dos últimos anos de pesquisa, uma cronologia interna à tradição São Francisco (PROUS & JUNQUEIRA, 1995; RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97). Ela se baseou inicialmente na análise de alguns sítios de referência mais

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abundantemente pintados (especialmente nas lapas dos Desenhos e de Rezar), sendo em seguida revista e confirmada em diversos outros (Piolho de Urubu, Caboclo, Bichos, Malhador, Hora). Pudemos estabelecer quatro subconjuntos crono-estilísticos, cujas características podem ser reconhecidas em diferentes sítios. Crono-estilística interna à tradição São Francisco A partir dos sítios mais abundantemente pintados pelos autores da tradição São Francisco, foi possível estabelecer quatro momentos sucessivos de pinturas sanfranciscanas, com bastante segurança, pois abundam sobreposições, graus de pátina e elementos estilísticos e temáticos em relações recorrentes. Os sítios-chave para o estabelecimento dessa seqüência foram as lapas de Rezar e de Desenhos, havendo outros locais onde todos os quatro, ou ao menos três deles, se manifestam com suficiente clareza - como nas lapas do Piolho de Urubu, do Caboclo, da Hora, dos Bichos, da Boa Vista, do Malhador e do Boquete. O Primeiro Momento de pinturas sanfranciscanas é acentuadamente simples se comparado a seus sucessores, tendo a imensa maioria de suas figuras executadas em monocromia. A temática inclui uma pobre diversidade de zoomorfos, quase unicamente peixes e lagartos (os primeiros medindo em geral de 30 a 40 cm e os segundos variando de 20 até 80 cm), antropomorfos esquemáticos e bio-antropomorfos (com ou sem representação de cabeça) e geométricos simples (predominando bastonetes, ziguezagues e algumas poucas figuras de losangos encadeados). Cartuchos também fazem parte da temática, mas estes são monocrômicos, discretos (não excedem os 25 cm) e pouco numerosos (vide Pranchas 37 e 42, em anexo) Se for elencado seu repertório e suas características gráficas, esse Primeiro Momento sanfranciscano apresenta poucas das características que notabilizaram a tradição. Visto isolado, esse conjunto não seria imediatamente associado à tradição São Francisco e poderia ser situado como uma expressão duvidosa de outra tradição do Brasil Central (à Tradição Agreste ou aos conjuntos de Serranópolis, por exemplo). Contudo, esse Primeiro Momento apresenta diversos elementos básicos que o desenvolvimento posterior da tradição manteria, ainda que a eles viesse a agregar outros (notadamente o uso das cores e o grande investimento em diversificar os grafismos geométricos). Vêem-se no Primeiro Momento os agrupamentos horizontais de bioantropomorfos, os lagartos e peixes de grandes dimensões nos painéis elevados, os agrupamentos horizontalizados de bastonetes, a composição de geométricos a partir de 81

linhas entrecruzadas. Além disso, como será retomado no capítulo VI desta dissertação, a coerência entre este Primeiro e o Segundo (e "emblemático") Momento da tradição estende-se às escolhas de sítio e suporte. Deste modo, o Primeiro Momento pode ser tratado como um São Francisco inicial ou, se o leitor preferir, um "proto-São Francisco" (vide Prancha 13, na pág 87). Apenas nas lapas de Rezar, dos Desenhos, do Malhador e dos Bichos, esse Primeiro Momento pode ser visto com clareza. Na Lapa da Hora há uma indistinção e uma possível associação entre esse conjunto e figuras atribuíveis à tradição Agreste, sem que se tenha podido, até o presente momento, estabelecer a natureza dessa associação. Na Lapa do Caboclo o Primeiro Momento também parece se fazer presente, mas, para assegurar como, e se de fato ele ali se configura, o estágio atual das análises do sítio são ainda insuficientes. O Segundo Momento sanfranciscano é aquele que dá à tradição sua expressão mais típica, promovendo a explosão da bicromia nos grandes abrigos e uma prolífica exploração das formas geométricas. É este o conjunto que transformou as lapas dos Desenhos, do Malhador, de Rezar e do Caboclo em sítios exuberantemente pintados (exuberância esta que seria ampliada pelos momentos finais da Tradição). Em comparação com o Primeiro Momento, há uma grande expansão temática, com a inclusão de armas, de uma grande variedade de figuras chapadas e de outras formas geométricas, que combinam de modo mais diversificado as linhas paralelas e diagonais já presentes nas figuras do Primeiro Momento. Emblemático do Segundo Momento - e marca típica da tradição São Francisco como um todo - é o tratamento gráfico dado aos temas (tanto aos que já faziam parte do repertório tradicional no Primeiro Momento, quanto aos novos), que passam a ser tratados majoritariamente em bicromia. A combinação do amarelo e do vermelho em muitas figuras, de pequenas e de grandes dimensões, faz explodir o colorido nas paredes das grandes lapas do cânion. O uso das cores nas figuras bicrômicas é bastante sistemático. Parece haver normas bastante claras para a composição gráfica dos temas, no que se refere ao arranjo dos traços e ao uso das cores. O amarelo é quase sempre a cor de base das figuras e o vermelho é a cor de contorno (vide Figura 3). Pode-se, inclusive, observar recorrentemente que a tinta vermelha recobre a amarela, quando as bordas dos traços se tocam. Nos conjuntos de bastonetes, há uma alternância regular das cores, sendo que o primeiro e o último são vermelhos; nas "redes" o amarelo responde pela trama de linhas 82

diagonais cruzadas, enquanto o vermelho faz o contorno da figuras, e preenche os espaços entre as linhas; nos cartuchos, na imensa maioria dos casos, é o amarelo a cor de preenchimento e o vermelho, a de contorno; nos bio-antropomorfos bicrômicos o amarelo desenha o corpo da figura e o vermelho é usado nos contornos abertos, conforme dito anteriormente.

Figura 3 – O uso das cores nas figuras bicrômicas do Segundo Momento sanfranciscano Nos painéis elevados de Desenhos, onde se vê a maior reunião de cartuchos, grades, bastonetes e ziguezagues de todo o cânion, essa norma de combinação de cores do Segundo Momento expressa-se de modo notável. No Painel III bis, há pares de figuras formadas por uma figura monocrômica vermelha e uma figura bicrômica, de modo que se pode ver que a figura vermelha é muito semelhante à base amarela da figura bicrômica (vide Prancha 12, na pág 84). No Painel II bis, há um número significativo de grades, conjuntos de bastonetes e cartuchos com as cores fora do padrão (o vermelho no centro e o amarelo nas bordas), mas justapostas - quase todas - a uma figura semelhante, ou idêntica, composta dentro da norma (amarelo no centro, vermelho na borda) – vide Prancha 12. Não há figura alguma seguramente atribuível ao Segundo Momento pintada em outra cor que não seja vermelho e/ou amarelo. O Terceiro Momento, por sua vez, representa, em relação ao Segundo, uma redução temática e numérica expressiva. Embora menos numerosas, suas figuras destacam-se pela exuberância, envolvendo grandes superfícies pintadas e explorando as cores intensamente. São produzidas, então, as primeiras figuras tricrômicas, combinando vermelho, amarelo e preto (o branco não é utilizado por esse Momento). Há, inclusive, figuras quadricrômicas, sendo o suporte, que é deixado visível no espaço entre faixas pintadas, quem faz o papel de quarta cor. Desaparece, porém, o rigor típico 83

do Segundo Momento para combinar o vermelho e o amarelo, surgindo mais freqüentemente preenchimentos vermelhos e contornos amarelos, embora permaneça dominante o uso da tinta mais clara para preencher e da tinta mais escura para contornar (sejam elas, respectivamente, o amarelo e o vermelho ou o vermelho e o preto). Na pintura dos geométricos, que muito freqüentemente atingem ou ultrapassam a casa dos 60 cm de comprimento, vê-se uma composição gráfica diferenciada: não se vêem linhas de cores distintas justapostas, mas sim faixas - cuja largura é claramente maior que a largura do instrumento usado na pintura, seja ele dedo ou pincel4 - ou planos contíguos inteiramente pintados (vide, na Prancha 19 [na pág 100], a figura bicrômica sobre o tronco do antropomorfo Agreste vermelho; vide, na mesma prancha, as figuras bicrômicas logo à esquerda e imediatamente acima do antropomorfo Agreste preto). Em relação ao repertório temático anterior, o Terceiro Momento introduz novidades, em especial as "gregas" e figuras geométricas chapadas, além de ser o responsável pelo desenvolvimento das figuras 'caboclo' no sítio epônimo. Ao mesmo tempo, abre mão quase inteiramente dos bastonetes e parece menos interessado nos cartuchos que seus antecessores. A respeito dos cartuchos, no Terceiro Momento introduz-se uma variação deste tema que se pode ver em mais de um dos grandes abrigos: os cartuchos com um traço interno longitudinal, que com freqüência aparecem geminados (vide Figura 4). Também não há armas e são muito escassos os antropomorfos e bio-antropomorfos atribuíveis a esse subconjunto.

Figura 4 – Grafismos do Terceiro Momento sanfranciscano Não há, da parte dos autores do Terceiro Momento, uma preocupação em evitar sobreposições, sendo muito freqüentes os casos em que seus grandes geométricos bi ou tricrômicos recobrem parcial ou mesmo integralmente figuras sanfranciscanas mais antigas, figuras da tradição Agreste e do complexo Montalvânia. 4

Em algumas figuras observam-se estrias bastante finas, sugerindo o uso de material fibroso como pincel.

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O Quarto Momento de pinturas sanfranciscanas, referido em PROUS (1992) e PROUS & JUNQUEIRA (1995) como "estilo Rezar" promove uma explosão de cores e um

sensível enriquecimento temático do repertório da tradição, realizando também uma mudança de ênfase na seleção dos temas tradicionais. Há uma perda de interesse pelos bastonetes e ziguezagues, enquanto os cartuchos, as redes e as figuras losangulares passam a ser executados com freqüência. Na Lapa dos Desenhos, o Quarto Momento pinta intensamente os painéis elevados, privilegiando os cartuchos como tema. Em Rezar, os temas favoritos são as redes - muito vistosas pelo seu grande tamanho e pela sua diversidade cromática (que combina o branco como tinta de base ao preto, amarelo ou vermelho, como tinta de contorno) - e as figuras losangulares. Na Lapa do Caboclo, são as figuras caboclo o tema mais intensamente pintado, cujas dimensões e complexidade são magnificadas. Muitos são os sítios ocupados pelas pinturas deste Quarto Momento, em número bem maior que todos os momentos sanfranciscanos anteriores, parecendo haver também um interesse ainda maior pelos suportes elevados, conforme será analisado no capítulo VI desta dissertação. É o Quarto Momento que introduz, de forma mais marcante, a cor branca nas pinturas sanfranciscanas (apenas na lapa de Rezar, a cor branca se fazia presente entre os momentos iniciais). Outras características gráficas lhe são peculiares e merecem destaque: as figuras losangulares, as redes, grades e as ‘figuras caboclo’ são rigorosamente compostas por traços finos regulares - cuja espessura sugere a possibilidade de ser o dedo o instrumento de aplicação da tinta -, não ocorrendo, nesses grupos de figuras, faixas largas inteiramente recobertas de tinta como se pode ver nos grafismos do Terceiro Momento. Há uma ênfase ainda maior na bicromia, sendo recorrente a repintura de temas já presentes no suporte, com retoques que os transformam de mono a bicrômicos (vide Prancha 13, na pág 87). O Complexo Montalvânia O conjunto temático típico da região de Montalvânia, denominado Complexo Montalvânia, apresenta-se nas técnicas de pintura e gravura. No vale do Peruaçu, o Complexo Montalvânia manifesta-se quase exclusivamente em pinturas. Este conjunto se compõe de figuras antropomorfas e bio-antropomorfas, biomorfas e geométricas, “pés” e “objetos” (armas, “cestas” e outros possíveis instrumentos), revelando, assim, uma temática um tanto restrita, mas que é desenvolvida com uma significativa variabilidade de formas. Em alguns sítios, especialmente no vale do rio Cochá (região 86

de Montalvânia) podem ser encontradas ainda representações de sauros, “quelônios” (biomorfos de corpo redondo e pescoço curvo) e círculos radiados. As representações da figura humana (grafismos antropomorfos e bio-antropomorfos) e as figuras geométricas predominam numericamente em ambas as técnicas - gravuras e pinturas (vide Prancha 14, na pág 89). Os antropomorfos e bio-antropomorfos são executados com grande diversidade morfológica, sendo típicos os membros curvilíneos ou angulados (com variadas sugestões de posturas). A diversidade é também grande no que se refere à representação de detalhes anatômicos: podem ser vistas figuras muito esquemáticas e outras com dedos, genitália, cabeça, orelhas; essa variação não é, contudo, assistemática, pois as figuras mais esquematizadas têm nítidos padrões recorrentes (aparecendo quase sempre em conjuntos alinhados), enquanto aquelas com maior detalhamento correspondem a múltiplas combinações a partir de um repertório básico de elementos. Os grafismos geométricos, pelo contrário, são sempre muito simples, correspondendo sobretudo a linhas sinuosas, anéis, alinhamentos de pontos, grades, ziguezagues. Típico do complexo Montalvânia é a combinação de temas: pés, armas, antropomorfos e biomorfos têm seus elementos gráficos fundidos, e se pode encontrar um "pé" com pernas, um propulsor com pernas, um antropomorfo cujos pés são uma seta, uma seqüência horizontal de figuras que se vão modificando de um tema a outro etc. Tais combinações e "mutações" de temas encontram uma expressão mais acentuada nos sítios do vale do rio Cochá (espetacular em alguns casos, como na lapa do Posseidón e na lapa do Dragão), mas também podem ser vistas no Peruaçu. No vale do rio Cochá, foi possível estabelecer um ordenamento crono-estilístico para os subconjuntos executados em ambas as técnicas (pintura e gravura). Alguns sítios, sobretudo aqueles com gravuras, apresentam uma diferença muito acentuada de pátinas, o que sugere uma significativa profundidade cronológica entre os grafismos mais antigos e os mais recentes (RIBEIRO, 1996/97a). Também no vale do Cochá, em determinados sítios (lapas da Mamoneira e do Dragão, por exemplo) foi identificado um momento formado por geométricos bicrômicos que pode ser atribuído à tradição São Francisco, momento este antecedido e sucedido por figuras Montalvânia, o que sugere uma possível alternância naquela região entre autores das duas unidades estilísticas (RIBEIRO & PANACHUK, 1996/7; RIBEIRO, 1996/7 b).

No Vale do Peruaçu, encontram-se impressões de “pés”, gravados em tamanho próximo ao natural, em blocos abatidos ou grandes concrecionamentos carbonáticos (lapas do Malhador [16] e do Tikão [38]) que talvez pertençam ao complexo Montalvâ88

nia, uma vez que os “pés” são temas freqüentes entre as gravuras do vale do Cochá. Na lapa do Malhador aparecem ainda gravuras num piso estalagmítico naturalmente polido semelhantes às de Montalvânia. Porém, o conjunto de gravuras do vale do Peruaçu atribuíveis ao Complexo Montalvânia é muito pequeno. O conjunto Montalvânia pintado aparece no Peruaçu em alguns sítios com um número significativo de figuras (lapas de Rezar [15], Piolho de Urubu [50] e do Tikão [38]). Em outros é timidamente representado se comparado às demais unidades estilísticas presentes (lapas dos Desenhos [31] e do Janelão [22]). Desde o momento em que se delineou o complexo Montalvânia, ficou claro um interesse de seus autores por suportes desprezados pela tradição São Francisco, como tetos, paredes restritas e recantos escondidos dos abrigos. Apenas um momento de decoração do Complexo Montalvânia pôde ser encaixado na seqüência sucessória proposta para o Vale, inserido entre o segundo e o terceiro momentos sanfranciscanos. Até o presente estágio das pesquisas, somente a Lapa do Tikão [38] possibilitou a identificação de subdivisões cronológicas dentro do Complexo Montalvânia, não sendo possível relacioná-las às figuras São Francisco do sítio pela falta de superposições. A principal dificuldade em se articular subconjuntos Montalvânia e subconjuntos São Francisco advém do freqüente evitamento de sobreposições por parte dos autores das pinturas Montalvânia. Outro aspecto notável do Complexo Montalvânia no Peruaçu é o fato das pinturas Montalvânia incorporarem elementos técnicos e temáticos característicos das figuras sanfranciscanas, representando, em alguns sítios, figuras geométricas (sobretudo cartuchos) em bicromia. O uso de bicromia, contudo, não obedece aos padrões sanfranciscanos, pois o amarelo por vezes é colocado na área entre os membros dos biomorfos, outras como uma “sombra” ao lado da tinta vermelha, outras vezes como contorno. As armas que aparecem no Peruaçu, atribuídas a essa unidade, são também mais numerosas e diversificadas, assemelhando-se mais àquelas pintadas pelos conjuntos sanfranciscanos. A diante (capítulo V), retomarei a discussão das relações entre o Complexo Montalvânia e a tradição São Francisco. A unidade estilística Piolho de Urubu A unidade estilística Piolho de Urubu é composta por representações de seres vivos executadas em monocromia. Predominam os zoomorfos, incluindo também fitomorfos, antropomorfos e, em pequeno número, geométricos lineares (vide Prancha 90

15, na pág 92). Zoomorfos e fitomorfos se sobressaem em função de seu tamanho avantajado e seu estilo naturalista, que produzem forte impacto visual. Todas as figuras são monocrômicas chapadas, havendo uma ou duas cores predominantes em cada sítio preto na Lapa do Boquete [29], amarelo e vermelho na lapa do Caboclo [54], laranja e amarelo na Lapa do Piolho de Urubu [50], preto na Lapa dos Desenhos [31], vermelho e preto no Abrigo do Janelão [22]. Não há elementos que permitam a distinção, num mesmo sítio, de momentos no interior do conjunto Piolho de Urubu - não se vêem superposições, diferenciação de tintas ou graus de pátina em combinações recorrentes. Trato-o aqui, portanto, como um conjunto sincrônico. A unidade estilística Piolho de Urubu é claramente posterior à tradição São Francisco e ao Complexo Montalvânia em todos os sítios onde grafismos desses conjuntos se sobrepõem. Os grafismos Piolho de Urubu são pouco abundantes se comparados a seus predecessores, estando ausentes de alguns sítios e fazendo aparições bastante discretas em outros. Os autores dessa unidade estilística demonstram interesse por representar detalhes anatômicos nos fitomorfos e zoomorfos - galhadas e cascos nos cervídeos, nadadeiras nos peixes, curvatura do pescoço e joelhos nas aves pernaltas, ramos e folhas nos fitomorfos - e os volumes corporais são bem demarcados. Porém, esse interesse pelos detalhes não corresponde a uma preocupação em registrá-los com precisão "fotográfica", posto que é freqüente sua representação de uma maneira assistemática, na qual diferentes partes do corpo de um mesmo animal recebem tratamento distinto ou compõem-se figuras anatomicamente incoerentes - animais com dedos apenas nas patas dianteiras, quadrúpedes com joelhos em apenas duas das pernas, aves ou quadrúpedes com dedos ou cascos em apenas uma das patas, cervídeos com três chifres ou três dedos. Apesar dessa prática, figuras de grande naturalismo estilístico e coerência anatômica podem ser vistas em alguns sítios, notadamente na Lapa dos Desenhos [31]. Os antropomorfos são tratados de maneiras distintas, havendo aqueles muito esquemáticos, nos quais se vê tão somente tronco e membros, e outros com detalhamento anatômico (cabeça, genitália) e membros curvilíneos que sugerem movimento (vide Pranchas 15 e 16, nas págs. 92 e 94). De todo modo, a temática e o estilo marcam uma mudança muito significativa, uma descontinuidade que sugere a chegada de um grupo de repertório cultural distinto daquele dos autores da tradição São Francisco. 91

Em diversos abrigos há representações zoomorfas que colocam problemas à delimitação da unidade estilística Piolho de Urubu. Trata-se de figuras isoladas que se distinguem do padrão dos zoomorfos dessa unidade em razão da técnica e do estilo gráfico. Há, basicamente, dois grupos: o primeiro é formado por zoomorfos em crayon, que podem ser cuidadosamente detalhados (como no Abrigo do Janelão), de tamanho inferior a quarenta centímetros, ou grosseiramente traçados (como também no Janelão ou no sítio dos Cascudos [45]), ultrapassando os oitenta centímetros; o segundo grupo é formado por zoomorfos de grandes dimensões (mais de um metro de comprimento) e acentuado naturalismo estilístico (com um tratamento sistemático dos detalhes anatômicos), realizados com pigmentos em suspensão e associados diretamente a grandes antropomorfos, ausentes estes de qualquer conjunto típico Piolho de Urubu e que remetem à tradição Agreste (é o caso dos três grandes lagartos ou jacarés do abrigo do Pedro Silva [36], postos ao lado de três enormes antropomorfos – vide Prancha 32, na pág 142). Portanto, embora se possam elencar com clareza diversos conjuntos de figuras, em muitos sítios do cânion, que constituem o núcleo da unidade estilística Piolho de Urubu, possuindo suas características temáticas e estilísticas básicas, alguns de seus limites permanecem incertos. A unidade estilística Desenhos Recebe o nome de unidade estilística Desenhos o mais nítido conjunto de gravuras (petróglifos) do vale do Peruaçu, nome este que deriva do sítio epônimo, onde os autores dessa unidade estilística realizaram o maior conjunto de figuras. Caracterizada pela representação de zoomorfos através de picoteamento, a unidade estilística Desenhos tem temática bastante restrita, correspondendo majoritariamente a figuras de cervídeos e aves, com uma presença bastante limitada de antropomorfos e sem um conjunto significativo de figuras geométricas (vide Pranchas 16 e 17, nas págs. 94 e 95). Cronologicamente dispõe-se sobre as figuras São Francisco, Montalvânia e Piolho de Urubu, constituindo-se num dos conjuntos mais recentes do Vale. Alguns elementos nos levaram a considerar (RIBEIRO & ISNARDIS, 1996/97) a possibilidade da unidade estilística Desenhos corresponder a uma expressão tardia da unidade estilística Piolho de Urubu, realizada em técnica diferente (o picoteamento). O contraste visual entre os dois conjuntos é grande, pois um é formado por picoteamentos que raramente ultrapassam 20 cm de comprimento e o outro, por pinturas chapadas monocrômicas que não raro excedem 50 cm. Se observamos a temática, encontramos 93

uma grande correspondência, estando toda a temática da unidade estilística Desenhos incluída na temática Piolho de Urubu (vide Prancha 16, na pág 94) Além de serem dominantes numericamente, aves e cervídeos têm um outro elemento que estabelece um vínculo entre si. Na Lapa dos Desenhos, existe uma figura (vide Prancha 17, na pág 95) que reúne atributos dos dois grupos de zoomorfos: a figura tem corpo de ave e, no alto de seu pescoço, descomunalmente longo para o padrão das figuras, vê-se o que parece ser uma cabeça com galhada de cervídeo. Essa fusão dos dois temas sugere que haja alguma associação, por oposição ou de outra natureza, entre os dois temas, relação esta que o híbrido consubstanciaria. Impossível não pensar numa análise estrutural lévistraussiana, vendo o par ave : cervídeo como um mitema.

A tradição Nordeste A tradição Nordeste definida por N. Guidon no sertão do Piauí, com expressões regionais também em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Bahia, se faz presente no Norte de Minas e, mais especificamente, no vale do Peruaçu (Prancha 18, na pág 97). Sua presença no Peruaçu, contudo, é recente, ocupando as margens dos painéis pintados e nichos formados pela descamação dos suportes antigos pintados. Notável no Peruaçu é a baixa freqüência dos grafismos zoomorfos, embora alguns dos temas diagnósticos da tradição, os chamados grafismos “emblemáticos” (MARTIN, 1997) possam ser observados em diversos sítios: casais em cópula, as "cenas da árvore", antropomorfos entremeados por "tridáctilos". Em termos técnicos e estilísticos deve-se destacar a dominância dos grafismos feitos com pigmento seco (crayon) e a composição dos corpos dos antropomorfos, que com freq6uência combinam um corpo oval a membros filiformes (feitos com um só traço). É muito recorrente a construção de um emaranhado de traços aparentemente anárquicos margeando os grafismos figurativos realizados em crayon (vide Prancha 21, na pág 111). Estão ausentes do cânion os zoomorfos com cabeça em forma de “castanha de caju” (Martin, 1997), típicos de alguns conjuntos nos estados nordestinos. Há muito provavelmente subdivisões na expressão regional da tradição Nordeste, pois encontramos variações estilísticas significativas. Embora no momento ainda não tenha sido empreendida uma análise suficientemente detalhada para estabelecer quantos e quais seriam os subconjuntos, pode-se distinguir os pequenos, mas numerosos, agrupamentos das figuras de corpo oval referidas anteriormente das figuras 96

de composição linear (envolvendo alguns dos temas emblemáticos da tradição), mais escassos. Em alguns sítios no Peruaçu, a Tradição Nordeste distribuiu centenas de figuras, mas o vez de modo muito menos exuberante do que nos sítios do Piauí. Em geral, os grafismos desta tradição são visualmente discretos e, hoje, com seu presente estado de conservação, demandam do observador que as vá “descobrindo” ao longo dos suportes, muitos dos quais não utilizados pelos conjuntos estilísticos precedentes. Está inteiramente ausente dos sítios conhecidos no Peruaçu o estilo Serra Branca (PESSIS, 2003). As figuras do Peruaçu guardam maior semelhança com as figuras do estilo Serra da Capivara, pois, embora haja uma menor sugestão de dinamismo, os antropomorfos são bastante simples e o engajamento em cenas é bastante significativo. Atribuir as pinturas Nordeste do Peruaçu a esse estilo é, contudo, inadequado, posto que, além dos aspectos estilísticos, há uma enorme distância geográfica e, ao que tudo indica, profunda diferença cronológica (a Tradição Nordeste está entre os mais recentes conjuntos do Peruaçu, como já dito), sendo também expressivas a diferença na freqüência relativa dos temas. Tradição Agreste A tradição Agreste têm sido, nos últimos anos, identificada em diversos sítios do estado de Minas Gerais. Diferentes regiões do estado parecem ter expressões típicas dessa tradição, especialmente os grandes antropomorfos com detalhes anatômicos e linhas espessas (poderíamos dizer "grosseiras" se as comparássemos aos antropomorfos da tradição Nordeste e aos antropomorfos do Complexo Montalvânia). Primeiramente, Loredana Ribeiro assinalou sua presença na região de Montalvânia (RIBEIRO, 1996). Figuras atribuíveis a tal unidade estilística podem ser encontradas em outras regiões, sobretudo a partir das observações dessa mesma autora, como o Planalto de Lagoa Santa e a Serra do Cipó. Também o vale do Peruaçu apresenta figuras que se enquadram na tradição Agreste. O vale do Peruaçu apresenta, em alguns de seus sítios, conjuntos de antropomorfos antigos com características bastante típicas da tradição Agreste (para apresentações dessa tradição, ver MARTIN, 1997 e GUIDON, 1991): grandes dimensões, traço espesso e pouco "delicado", detalhes anatômicos (orelhas, dedos, genitália) e representações de possíveis adornos (brincos, braceletes, cocares ou chapéus), ou, nos termos de Martin: "a figura de um antropomorfo, às vezes de grande tamanho (pode 98

atingir mais de um metro de altura) de aspecto grotesco, estático e geralmente isolado"5 (vide Prancha 19, na pág 100). No Peruaçu, os antropomorfos com tais características são sempre pouco numerosos em cada sítio (até três figuras) e, quando se encontram em relação diacrônica com outras pinturas, são sempre eles as mais antigas figuras, anteriores aos grafismos São Francisco (é o caso das lapas do Caboclo, do Boquete e do Veado e do Janelão). Há, contudo, sítios onde esses grandes antropomorfos não se relacionam, em termos de sobreposições, com quaisquer outros conjuntos, o que impede que sejam encaixados nos quadros cronológicos (Pedro Silva e Janelão, por exemplo). Nos sítios do Nordeste do Brasil, a partir dos quais a tradição Agreste foi definida, têm papel de destaque também os zoomorfos, em arranjos que se compõem de uma ou duas figuras centrais de grande tamanho, margeadas por zoomorfos ou antropomorfos menores. No Peruaçu, apenas na Lapa do Caboclo há um grande zoomorfo contemporâneo dos antropomorfos (trata-se de um quadrúpede, com focinho alongado, quatro dedos nas patas, grande calda vertical, que se assemelha muito a um quati, tema nada usual nas pinturas da região ou dos sítios do Nordeste), o que caracterizaria uma especialização temática, na região, em torno dos antropomorfos. Outros zoomorfos podem ser encontrados no Vale em condições que permitem sua atribuição à tradição Agreste; são, porém, casos raros, com destaque para o trio de lagartos ou jacarés que acompanha um trio de antropomorfos com características Agreste típicas, na Lapa do Pedro Silva. O conjunto estilístico que pinta grandes zoomorfos no Peruaçu de modo sistemático é a unidade estilística Piolho de Urubu, apresentada anteriormente. Esta apresenta uma semelhança temática e estilística considerável com a tradição Agreste: zoomorfos de grandes dimensões, sobretudo aves e cervídeos, mas incluindo outros quadrúpedes, executados monocromicamente com traços espessos e de preenchimento chapado. Seria a unidade estilística Piolho de Urubu uma expressão tardia da tradição Agreste? Uma expressão que teria abandonado a composição de grandes antropomorfos?

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MARTIN, Gabriela. Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997.

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Os demais conjuntos Os zoomorfos brancos Nas lapas do Caboclo, dos Desenhos, do Piolho de Urubu e em outros sítios, pode ser encontrado, sobre figuras sanfranciscanas, Montalvânia e Piolho de Urubu, um conjunto de figuras produzidas em tinta (em geral muito rala e pouco contrastante) ou crayon branco. Trata-se de zoomorfos, incluindo, majoritariamente, quadrúpedes (cervídeos e outros) e aves (vides Pranchas 20-a e 20-b, nas págs. 103 e 104). Sempre pouco numerosos em cada sítio, esses “zoomorfos brancos” podem ser encontrados no Caboclo, em Desenhos, no Piolho de Urubu (todos abundantemente pintados) e em poucos outros sítios. É possível uma filiação à unidade estilística Piolho de Urubu em razão de sua temática. Há, porém, uma considerável irregularidade nas figuras no que se refere ao tamanho e a elementos gráficos (proporção entre os volumes corporais, espessura do traço) e técnicos (textura da tinta, instrumento utilizado) que deixam dúvidas sobre haver uma unidade entre os zoomorfos dos diferentes sítios. Em razão da atual indefinição do ‘conjunto’, os “zoomorfos brancos” não serão sistematicamente considerados nesta pesquisa Afiadores Alguns sítios no Peruaçu apresentam grafismos não figurativos com o aspecto do que se convencionou chamar na bibliografia brasileira de “afiadores”. Dispostos sobre blocos abatidos, os “afiadores” são linhas longas de profundidade variada, em grande número, com uma orientação dominante, porém sem formar figuras evidentes (vide Prancha 20-b, na pág 104). Podem ser vistos na Lapa das Laranjeiras, na lapa do Boquete, nos abrigos do Pulu I e II (nestes, as linhas localizam-se no paredão rochoso e não sobre blocos). Na Lapa do Boquete, um conjunto de afiadores foi evidenciado nas escavações na área central do abrigo. O nível sedimentar que recobria a base das linhas forneceulhe uma datação mínima de 9.000 BP. Sua baixa freqüência faz com que seja improdutiva sua inclusão entre os conjuntos analisados nesta pesquisa.

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Vermelhos recentes Um conjunto de grafismos pode ser encontrado, sobretudo no baixo curso do cânion, realizado unicamente em uma tinta vermelha muito viva. Sua temática inclui geométricos lineares simples, em dois sítios exclusivos seus na margem direita do rio, e, na Lapa de Rezar, cópias de figuras antigas (vide Prancha 20-a, na pág 103). Não se pode identifica-lo, contudo, em sítios à montante. Não dispondo de elementos para uma classificação mais segura, neste texto as referências a ele serão feitas com o epíteto de “vermelhos recentes”, pois, em Rezar, corresponde ao derradeiro momento de pintura dos painéis.

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V-A

DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS

UNIDADES ESTILÍSTICAS

DO CÂNION

DO PERUAÇU

V.A - PREFERÊNCIAS DE SÍTIO E SUPORTE

Tradição São Francisco A tradição São Francisco, como um todo, ocupa preferencialmente suportes regulares, amplos e verticais. Suportes muito compartimentados e muito marcados pelas linhas diaclásicas do calcário só são ocupados pelos momentos tardios, quando já pintados por autores do Complexo Montalvânia. Figuras sanfranciscanas estão presentes em alguns tetos, quando estes são amplos e elevados, geralmente desprezando tetos escalonados, baixos ou de área restrita. Além de suporte amplos, seus autores podem ocupar áreas lisas emolduradas por concreções carbonáticas em pontos elevados dos paredões. Não há figuras São Francisco em blocos sobre o piso ou sobre concreções, mesmo que muito lisas (lustradas natural ou antropicamente). Painéis com conformações e distribuições topográficas específicas possuem algumas temáticas preferenciais. Os cartuchos sempre estão presentes nos painéis mais elevados, sendo menos numerosos, mas não ausentes, naqueles mais baixos. As armas também se encontram sempre nos painéis altos, nunca nos baixos, havendo um padrão de executar armas nos que apresentam organização horizontalizada acima de patamares rochosos ou formados por concreções carbonáticas (como nas lapas de Desenhos, Rezar, Elias, Bichos). As "redes" ocorrem quase que exclusivamente nos suportes muito amplos, o mesmo podendo ser dito para as ‘figuras caboclo’. Os bio-antropomorfos e os bastonetes bicrômicos estão entre os temas que com maior freqüência são vistos em painéis horizontalizados e restritos. Todas as figuras sanfranciscanas se encontram em áreas iluminadas dos sítios, sempre visíveis à luz natural. Os sítios preferenciais do Primeiro e do Segundo momentos da tradição São Francisco, quando esta inaugura os sítios ou sucede apenas a tradição Agreste, são aqueles de piso sedimentar regular e com ampla área abrigada, com grandes suportes verticais lisos e iluminados, situados em cânions secundários ou em afloramentos consideravelmente afastados do curso do rio (são os casos das Lapas dos Desenhos, do Boquete, do Caboclo, de Rezar, da Boa Vista e do Malhador, enfim, de todos os sítios abundantemente pintados pelos dois primeiros momentos da tradição) – vide Pranchas

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26, 27 e 28, nas págs. de 10X a 10X. Conforme apresentei anteriormente, a tradição Agreste antecedeu os sanfranciscanos iniciais em alguns sítios, como nas lapas do Boquete, da Hora, do Caboclo e, possivelmente, na Lapa de Rezar. Estes sítios apresentam as características de suporte e topografia preferenciais dos autores sanfranciscanos (com exceção da Lapa da Hora, que não possui nenhum suporte vertical amplo), portanto, torna-se impossível eliminar qualquer uma das duas alternativas: os autores sanfranciscanos antigos podem tê-los escolhido em função de seu padrão de sítio, ou motivados pelos grafismos Agreste precedentes, ou ambos os motivos juntos. De qualquer modo, há sítios dentro do padrão apresentado que foram, sem dúvida, inaugurados pela tradição São Francisco, o que deixa claro que sua iniciativa de pintar não estava sempre condicionada pela preexistência das pinturas Agreste (vide Prancha 33, na pág 143). Na distribuição dos sítios com grafismos atribuídos ao Primeiro e ao segundo momentos, pode-se notar um considerável espaçamento, os grandes sítios não estão muito próximos uns aos outros (vide no Mapa 1 a localização das lapas de Rezar, Bichos, Malhador, Boquete, Desenhos e Caboclo). Poder-se-ia pensar que essa distribuição fosse um padrão de distanciamento, mas o fato é que não há, entre essas lapas, outros grandes abrigos com características similares (com grandes suportes verticais e amplos pisos sedimentares regulares). Outro atributo desses sítios poderia levar a conclusões incertas: não há, com uma única exceção – a Lapa dos Bichos -, sítios ocupados pelos dois primeiros momentos sanfranciscanos voltados para o rio. Mas o fato é que não há grandes abrigos de amplos pisos sedimentares voltados para o rio, com exceção de Bichos. Portanto, a escolha parece ser do tipo de abrigo mais do que de sua implantação. A preferência por sítios de grandes pisos sedimentares planos faz pensar em algum tipo de atividade, que requeira esse piso, associada à prática de pintar. A hipótese que ocorre imediatamente é a de uma associação com sepultamentos. Porém, temos alguns problemas para verificá-la. O principal é que a única datação absoluta para uma figura (2700 BP) da tradição São Francisco no vale é de um dos dois momentos finais, o que deixa uma margem incerta para a datação das pinturas dos momentos iniciais. O segundo problema é de amostragem – a limitação das escavações. Caso se considere, pensando que houve uma grande profundidade cronológica no desenvolvimento da tradição, os séculos ou milênios imediatamente anteriores à

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datação, ou seja, de 3000 BP a 5000 BP, vai-se chegar exatamente ao período onde os sepultamentos são mais escassos no cânion. O período em que os grandes abrigos (ao menos o Malhador e o Boquete, aqueles mais extensamente escavados) foram mais utilizados para sepultamentos é o das ocupações ceramistas, bem mais recente que a datação da pintura. Há também sepultamentos de outras datações, porém bem mais antigos que os 2700 BP (por volta dos 7.000 BP, na Lapa do Boquete). No Boquete há um único sepultamento que se enquadraria na faixa ampla que propus há pouco (entre 3000 e 5000 BP), o sepultamento de uma criança de menos de dois anos de idade (Sepultamento VI, datado de cerca de 4500 BP) (PROUS & SCHLOBACH, 1997). Na Lapa do Caboclo, as sondagens não revelaram qualquer sepultamento, assim como na lapa dos Bichos. A escassez de enterramentos do períodos intermediários deve ser, contudo relativizada, pois a Lapa dos Desenhos, o sítio mais pintado pelos autores dos dois primeiros momentos da tradição São Francisco, assim como a Lapa de Rezar, também abundantemente pintada e com a maior área dentre todos os abrigos, não foram objeto de escavações. Malhador, Caboclo (ainda que a área escavada ali não tenha sido muito extensa) e Bichos testemunham contra a hipótese. O Boquete lhe dá um pequeno alento. Restam Desenhos e Rezar zelando para que a hipótese não seja inteiramente descartada. O Terceiro Momento de pinturas da tradição São Francisco tem um comportamento distinto de seu antecessor, mas se distribuiu pelo vale quando este já havia sido fortemente modificado pela intervenção do Complexo Montalvânia. Não há um comportamento tão rigoroso quanto o do Segundo Momento a respeito da morfologia dos abrigos, pois há pinturas do Terceiro Momento em sítios de área restrita e piso irregular, como as lapas do Veado, do Tikão, do Pedro Silva, do Janelão (vide Pranchas 29, 31 e 32, nas págs. de 10X a 10X). Contudo, não há sítios em que possamos afirmar com segurança que tenham tido seus suportes inaugurados pelo Terceiro Momento. Os sítios nos quais ele se manifesta (onde pode ser identificado com clareza), sem que tenha sido precedido pelo Segundo Momento, são sítios cujos suportes foram inaugurados pelos autores do Complexo Montalvânia ou pela Tradição Agreste. Mas os autores do Terceiro Momento não pintaram em todos os sítios que o Complexo Montalvânia ocupou – sítios permaneceram exclusivos do Complexo (como Passa Vento e o Abrigo da Lua) ou foram re-ocupados em momentos posteriores, como Laranjeiras e a Lapa do Sol.

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O Terceiro Momento sanfranciscano, portanto, mesmo com um comportamento diferente daquele do Segundo Momento, não modifica significativamente o mapa dos locais pintados no Vale. Suas intervenções se fazem em paredes já transformadas, por outrem, em painéis. Contudo, suas intervenções nada têm de discretas, pois suas figuras são exuberantes, muito coloridas (eles introduzem em vários sítios, mesmo naqueles já muito pintados como Desenhos e Caboclo, novas combinações de cores, novas formas e uma maior freqüência de figuras de grandes dimensões – vide Prancha 44, em anexo) e, não raro se sobrepõem a outras comprometendo parcialmente a visualização destas. Há uma maior variabilidade quanto à implantação na paisagem dos sítios que receberam figuras do Terceiro Momento. É ele o primeiro conjunto sanfranciscano a ocupar abrigos no cânion principal (como o Abrigo do Janelão), mas ocupá-los não é algo que o Terceiro Momento faça sistematicamente, pois há sítios de painéis verticais amplos que não recebem pinturas desse momento. O fato de se expandirem em relação ao Segundo Momento, mas só ocuparem sítios já ocupados, deixando diversos sítios pintados sem figuras suas, fazem aventar a possibilidade de um uso mais restrito do Vale. Permanecem diferentes alternativas explicativas desse comportamento: os sítios que o Complexo Montalvânia pintou e que o Terceiro Momento não reocupou não teriam sido visitados por estes? A prática de pintar se definia por outros critérios além da presença de grafismos anteriores, critérios que fizeram os autores do Terceiro Momento desprezar alguns dos sítios e que não identifiquei com a metodologia empregada aqui? O momento final (Quarto Momento) da tradição São Francisco ocupou sítios não ocupados pelos momentos iniciais sanfranciscanos, mas que haviam sido pintados pelo Complexo Montalvânia. Em todos os casos conhecidos em que há pinturas do Quarto Momento, sem que haja pinturas sanfranciscanas anteriores, há pinturas Montalvânia nos abrigos. Essa reocupação, pelo Quarto Momento, de sítios pintados pelo Complexo Montalvânia é mais freqüente do que havia sido com o Terceiro Momento. O Quarto Momento pintou em todos os sítios que o Terceiro Momento pintara e em outros, como as lapa do Sol e de Laranjeiras. No rol de sítios que receberam pinturas do Quarto Momento, há muitos que escapam inteiramente aos padrões dos momentos sanfranciscanos iniciais. O Quarto Momento, além de ocupar os sítios amplos e de piso regular, já abundantemente

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pintados, pintou também em abrigos com piso restritos e/ou irregulares (como Janelão, Pedro Silva, Cavalos, Janelão da Margem Esquerda). Há pinturas do Quarto Momento em sítios com implantações na paisagem as mais diversas, tanto em cânions secundários e em vertentes curtas e suaves (como o Malhador, Desenhos e Caboclo), quanto no cânion principal e em vertentes muito abruptas (como o Sol). Também se vê uma flexibilidade maior quanto aos suportes exigidos, vendo-se uma disponibilidade para pintar em suportes verticais restritos (como no Índio e na Hora) e um expressivo interesse por tetos amplos (nos Bichos, em Laranjeiras, no Boquete). No caso do Quarto Momento, parece que se está diante de uma pintura sanfranciscana motivada pelos conjuntos anteriores. O momento final sanfranciscano não inaugura sítio algum, o que permite deduzir que um importante elemento de escolha de seus autores seria a preexistência de pinturas, especialmente de pinturas Montalvânia, que haviam inaugurado diversos sítios (em alguns destes, eram, ainda, a única presença). Contudo, os autores tardios da tradição São Francisco não buscaram sistematicamente todas as figuras Montalvânia, uma vez que há sítios Montalvânia onde não há nenhum grafismos São Francisco - é importante dizer que isso ocorre apenas em sítios muito pequenos, onde o único suporte é o teto. Desse modo, as escolhas do Quarto Momento incluem o padrão de sítios do Primeiro e do Segundo momentos (onde o Quarto Momento se manifesta mais intensamente) e se expandem largamente, buscando suportes já ocupados pelo Complexo Montalvânia e, em um número menor de casos, por este e pelo Terceiro Momento. Com o Terceiro e o Quarto momentos, a tradição São Francisco muda sua presença no Vale radicalmente. De menos de 10 sítios, passa-se a mais de 35 sítios com figuras sanfranciscanas. Mais que esse salto numérico, a Tradição passa a ocupar uma condição inteiramente distinta no cenário: ela rompe os limites dos amplos paredões dos grandes sítios para se esparramar pelos mais variados recantos do Vale. Diversas perguntas se colocam, sem que seja ainda possível dar-lhes respostas satisfatórias. Teria havido uma mudança na importância ou no lugar da prática de pintar entre os autores da tradição São Francisco nos seus momentos tardios? A pintura deixou de estar associada aquilo que só se fazia nos abrigos amplos? A presença de outras figuras era uma motivação suficiente para uma expansão da prática de pintar? Os autores dos momentos tardios eram exploradores mais assíduos dos recantos do Vale?

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Tradição Agreste Como foi dito na apresentação dessa tradição (vide capítulo IV), as pinturas Agreste no Peruaçu não são muito numerosas e ocuparam um número restrito de sítios. Onde é possível estabelecer uma cronologia relativa, a tradição Agreste corresponde ao horizonte mais antigo, anterior à tradição São Francisco, ou seja, foi a inauguradora dos suportes dos sítios que ocupou. Foi, entretanto, bastante 'econômica', pintando, na maioria dos casos, pouquíssimas figuras em cada sítio. As preferências da tradição Agreste são pelos suporte verticais, lisos, amplos e bem iluminados - esse é o caso na Lapa do Boquete, na Lapa do Caboclo, na Lapa de Rezar, por exemplo -, havendo também uma ocupação, bem menos freqüente, de tetos amplos - como no caso da Lapa da Hora. Em todos esses exemplos, temos sítios, de piso sedimentar regular amplo e de morfologia geral quadrangular ou em meia-lua, inseridos em cânions secundários, atingíveis, a partir do rio, por vertentes abruptas ou semiabruptas. Entretanto, nem todos os abrigos com essas características são ocupados pela tradição Agreste, pois ela se ausenta de alguns grandes abrigos, que mais tarde a tradição São Francisco ocuparia intensamente, como a Lapa dos Desenhos. Parece haver uma tendência Agreste que a tradição São Francisco mais tarde seguiria: são evitados os abrigos do cânion principal, voltados para o rio, estejam eles em qualquer altura da vertente - uma exceção importante a essa tendência é o abrigo do Janelão. Pode-se, igualmente, encontrar grafismos Agreste em sítios de suporte vertical amplo, mas de área abrigada restrita, com piso inclinado ou em patamares sedimentares entremeados a blocos, ou mesmo em sítios cujo piso atual dominante é um grande desmoronamento são esses os casos da Lapa do Veado, da Lapa do Pedro Silva I e, ainda, do Abrigo do Janelão, sendo este último, provavelmente, o sítio onde há o mais significativo conjunto atribuível à tradição Agreste. O Abrigo do Janelão (vide planta - Prancha 21, na pág 111) tem amplos suportes verticais e sua área abrigada é restrita em termos de profundidade, com um piso predominante sedimentar, porém inclinado (atente para as curvas de nível na planta do sítio). Localiza-se no cânion principal, no alto de uma vertente abrupta, mas não muito longa, voltado diretamente para o rio.

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Abrigo do Janelão

- planta baixa -

-1,0m

A-

0

+1,0m

- A'

N

- 4,5 m - 5,0 m - 5,0 m

0

2

Corte A - A'

5m

P

Legenda vegetação bloco desabado desnível abrupto (patamares rochosos) curvas de nível (eqüidistância de 0,5 m) cone de dejeção

P

limite do patamar abrigado desnível contínuo (vertente) piso sedimentar pinturas

topografia: equipe do Setor de Arqueologia da UFMG, 1985

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Prancha 21 - Abrigo do Janelão - localizado na margem direita do rio, junto à entrada da gruta de mesmo nome

Neste abrigo há um número significativo de grafismos atribuídos à unidade estilística Piolho de Urubu, assim como um número expressivo de figuras que escapam às características das unidades estilísticas do cânion, aproximando-se, em termos de temática e estilística, da tradição Agreste. Além de sua morfologia, sua implantação na paisagem o coloca fora dos padrões de escolha dos momentos iniciais (especialmente do 2º momento) da tradição São Francisco. Complexo Montalvânia O Complexo Montalvânia tem como suporte típico os tetos de área restrita, sendo, em geral, a única unidade estilística a pintar neles (vide Pranchas 30 e 31, nas págs. 140 e 141). Mas, embora típico, esse não é o único tipo de suporte utilizado por seus autores. São encontradas figuras Montalvânia em outros suportes restritos que não são tetos, como paredes compartimentadas e nichos entre concreções (vide Pranchas 32 e 34, nas págs. 142 e 144). Há igualmente pinturas desse conjunto em suportes amplos e verticais, em meio aos grafismos da tradição São Francisco. Nesses últimos casos, as figuras Montalvânia nunca chegam a dominar visualmente. Colocando-se no suporte depois do Segundo e antes do Terceiro momentos sanfranciscanos, o Complexo Montalvânia distribui suas pinturas de modo a evitar sobreposições e, muitas vezes, em função da distribuição temática precedente (sanfranciscana). A seguir, na segunda seção deste capítulo, discutirei as implicações desse comportamento. Os sítios inaugurados pelo Complexo Montalvânia são aqueles cujos únicos suportes disponíveis são tetos restritos ou sítios de suportes amplos desprezados pelos autores sanfranciscanos iniciais, em função de não atenderem suas exigências, conforme apresentado. Corroborando esta afirmação, pode-se verificar que os sítios de suportes amplos não utilizados pela tradição São Francisco e ocupados pelos autores do Complexo Montalvânia são, por exemplo, a Lapa do Sol (voltada para o rio e com piso escalonado), o Abrigo do Janelão (voltado para o rio, de piso inclinado e área abrigada restrita), a Lapa do Pedro Silva (em cânion secundário, mas de piso irregular), o Abrigo da Lua (no cânion principal, de suportes verticais restritos e sem piso sedimentar), o Lapa do Boi (de área ampla, plana e sedimentar, mas apenas com suportes verticais restritos ou tetos).

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Tradição Agreste

Complexo Montalvânia

SF 1 e 2

TERRA BRAVA

SF 3 e 4

TERRA BRAVA

TERRA BRAVA

TERRA BRAVA

0 l

0.5 l

1 km l

Legenda sítios sem a unidade estil. em questão

rio Peruaçu

dolina em abismo

canyon maior (>50m)

sítios com a unidade estil. em questão

trecho subterrâneo do rio

hume

canyon menor (50m)

sítios com a unidade estil. em questão

trecho subterrâneo do rio

hume

canyon menor (
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