Legitimidade Democrática da Justiça Constitucional

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LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL1

Francisco Lisboa Rodrigues2

INTRODUÇÃO O tema da Jurisdição Constitucional3 ocupa na atualidade uma das maiores preocupações científicas na Teoria do Direito Constitucional. Não poderia ser diverso, visto que os Tribunais Constitucionais vêm decidindo questões relevantes da nossa sociedade, inclusive na seara das chamadas questões políticas. Por outro lado, não menos importante é a interveniência dessas Cortes no controle da constitucionalidade das leis, como se observa no caso brasileiro. No Brasil, a jurisdição constitucional está cada vez mais forte e sedimentando tendências para as gerações futuras, bastando tomar como exemplo o processo de objetivação do controle concreto da constitucionalidade. Por tais razões, tem-se que o tema acerca de sua legitimidade é de suma relevância, colocando em lados complementares (não antagônicos) o Poder Legislativo e o Poder Judiciário. No decorrer do presente estudo apresentar-se-á o papel dos Tribunais Constitucionais como guardiões da constituição e, posteriormente, sua legitimidade, esclarecendo que a fundamentação democrática para a mesma não é a única possível, embora a mais festejada e perseguida neste escrito. Divide-se o texto em duas partes: a primeira trata dos Tribunais Constitucionais, relevando-se o famoso embate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt; a segunda da sua legitimidade. Ao término pretende-se ter comprovado a legitimidade democrática da justiça constitucional.

2

O

TRIBUNAL

CONSTITUCIONAL

COMO

GUARDIÃO

DA

CONSTITUIÇÃO 1

Texto publicado em: SILVA, Lucas Gonçalves da, LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto, Albuquerque, Newton de Menezes. (Coords.) Teoria da democracia. Legitimidade democrática da justiça constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2015, pp. 87/102. 2 Mestre e Doutor em Direito Constitucional. Pós-Doutorando pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor de Direito Constitucional da FANOR e FAC. Procurador do Município de Fortaleza. 3 Para os fins deste artigo não serão consideradas as distinções entre justiça constitucional e jurisdição constitucional.

O tema da Justiça Constitucional representa uma das maiores preocupações modernas da Teoria do Direito Constitucional, qual seja, o processo de consolidação do Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela discussão em torno do papel das Cortes Constitucionais no sistema jurídico instituído pela Constituição do Estado. No entanto, para que se possa ter uma ideia mais adequada do tema, mister indagar-se sobre um pressuposto lógico de imposição teórica irresistível: afinal, “quem deve ser o guardião da Constituição?” Esta indagação, que constitui o título de um escrito de Hans Kelsen4, nos conduz à compreensão segundo a qual, num regime democrático, deve-se ter no povo a titularidade do poder. A questão não é de simples elucidação pelo que se observa da famosa polêmica travada entre Hans Kelsen e Carl Schmitt. Após observar a ausência do legislador para o controle de constitucionalidade, Schmitt é enfático ao defender que “a independência dos juizes não tem, no Estado atual, de forma alguma o objetivo de criar um titular da correta volição política, mas delimitar e garantir uma esfera da justiça vinculada à lei dentro de um ser estatal ordenado.”5 E arremata, ao final, que “o fato de o presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, apenas também ao princípio democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar.”6 A questão sobre o controle da constitucionalidade, portanto, colocou em pontos opostos Hans Kelsen e Carl Schmitt, iniciando quando este, em 1931, publicou seu Der Hüter der Verfassung – Beiträge zum öffentlichen Recht der Gegenwart7, no qual defendia que a proteção da Constituição deveria ser de atribuição ao Presidente do Reich, como visto acima. Hans Kelsen, por sua vez, publicou Wer soll der Hüter de Verfassung sein?, com o intuito de demonstrar os equívocos da teoria Schmittiana, erigindo para a guarda da Constituição um Tribunal independente. A maioria dos autores, seguindo a orientação kelseniana, advoga um Tribunal Constitucional como o legítimo defensor da Constituição. Este fato ocorre em virtude de que se aceita a atividade Tribunal como sendo jurisdicional e não política como pensou Carl Schmitt quando coloca no Reich a

KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional; tradução do alemão de Alexandre Krug. – São Paulo: Martins Fontes, 2003, pp. 237-298. (Wer soll derHüter der Verfassung sein?, in Die Justiz. 1930-31, Helf 11-12, vol. VI, pp. 576628). 5 SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho – Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 229. 6 SCHMITT, Carl. Op. Cit., p. 233. 7“La defensa de la Constitución – Estudio acerca de las diversas especies y posibilidades de salvaguardia de la Constitucion. Madrid: Editorial Tecnos, 1983.” 4

titularidade da defesa da Constituição. Kelsen rebate a posição de Schmitt com notável maestria. Vale a transcrição de parte de seus argumentos:

A Constituição da monarquia constitucional tem um acentuado caráter dualístico. Ela divide o poder político em dois polos: Parlamento e governo, sendo que este já de antemão possui uma certa preponderância sobre o primeiro, de modo algum apenas de facto, mas sim de jure. Que o governo, particularmente o monarca que o encabeça, seja tanto na realidade política quanto nas normas da Constituição, um órgão que como o Parlamento exerce o poder estatal – e mesmo em maior medida que este – não pode ser posto em dúvida; tampouco se pode duvidar de que o poder confiado ao governo esteja em permanente concorrência com o do Parlamento. Portanto, para tornar-se possível a noção de que justamente o governo – e apenas ele – seria o natural guardião da Constituição, é preciso encobrir o caráter de sua função. Para tanto serve a conhecida doutrina: o monarca é – exclusivamente ou não – uma terceira instância, objetiva, situada acima do antagonismo (instaurado conscientemente pela Constituição) dos dois pólos do poder, e detentor de um poder neutro. Apenas sob esse pressuposto parece justificar-se a tese e que caberia a ele, e apenas a ele, cuidar que o exercício do poder não ultrapasse os limites estabelecidos na Constituição. Trata-se de uma ficção de notável audácia, se pensarmos que no arsenal do constitucionalismo desfila outra doutrina segundo a qual o monarca seria de fato o único, porque supremo, órgão do exercício do poder estatal, sendo também, particularmente, detentor do poder legislativo: do monarca, não do parlamento, proviria a ordem para a lei, a representação popular apenas participaria da definição do conteúdo da lei. Como poderia o monarca, detentor de grande parcela ou mesmo de todo o poder do Estado, ser instância neutra em relação ao exercício de tal poder, e a única com vocação para o controle de sua constitucionalidade? A objeção de que se trata de uma intolerável contradição seria totalmente descabida, pois seria aplicar a categoria do conhecimento científico (ciência jurídica ou teoria do Estado) àquilo que só pode ser entendido como ideologia política. Num sistema intelectual cujo profundo parentesco com a teologia não é ignorado hoje por ninguém, o princípio de contradição não tem mais lugar. O que importa não é estabelecer se as teses de tal teoria constitucional são verdadeiras, mas sim se alcançam seu objetivo político: e de fato o fizeram em medida máxima. Dentro da atmosfera política da monarquia, essa doutrina do monarca como guardião da Constituição era um movimento eficaz contra a busca, que já então aflorava de quando em quando, por um tribunal constitucional.8

Pelo constatado acima a argumentação kelseniana é na defesa de que o monarca, como imaginou Schmitt, não pode ser instância neutra no exercício do poder, posto que ele não teria vocação genuína para o controle de constitucionalidade. Daí a necessidade de um Tribunal Constitucional. A teoria de Kelsen tomou amplitude com o passar do tempo, sendo hoje adotada na quase totalidade dos países, quer dizer, a ideia de um Tribunal Constitucional competente para o controle da constitucionalidade consagrou-se.

8

KELSEN, Hans. Cit., pp. 241/242.

Outra questão de não menos envergadura surge no cenário: se um Tribunal Constitucional deve ser o guardião da Constituição, como se resolveria o problema de sua legitimidade? Esta legitimidade estaria relacionada, necessariamente, com a opção democrática? Existiriam outras instâncias possíveis de legitimação para a Jurisdição Constitucional? Por não ser objeto central do tema aqui proposto o desenvolvimento pormenorizado do debate entre os dois juristas acima, cabe dizer que para se chegar à legitimidade do Tribunal Constitucional, deve-se revisitar as teorias existentes, notadamente a democrática que caracteriza boa parte dos Estados modernos.

3. LEGITIMIDADE DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL A opção democrática aparece, modernamente, como a principal base de legitimação da Jurisdição Constitucional. O historiador Heródoto, na sua História, refere-se a uma discussão entre três reis persas – Otanes, Megabises e Dario – na qual discutem as formas de governo. Otanes, na sua defesa da democracia, afirma:

Não se dá o mesmo com o governo democrático (vícios do governo monárquico), que chamamos de isonomia, que soa como o mais belo de todos os nomes. Neste, não é permitido nenhum dos abusos inerentes ao Estado monárquico. O magistrado é eleito por sorte, e torna-se responsável pelos seus atos administrativos, sendo todas as deliberações tomadas em comum. Sou, por conseguinte, pela abolição do governo monárquico e pela instauração do governo democrático, pois todo poder emana do povo.9

Dizer que há democracia é defender que sua existência e funções encontram fundamento na soberania do povo. Mas o que se deve entender por soberania? A resposta vem de Rousseau:

Como a natureza dá ao homem um poder absoluto sobre os seus membros, o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus; e é este mesmo poder que, encaminhado pela vontade geral, tem o nome de soberania.10

9

HERÓDOTO. História – São Paulo: Ediouro, 2001, pp. 376-377. ROUSSEAU, J. J. Do contrato social; tradução de Pietro Nassetti. – São Paulo: Editora Martin Claret, 2003, p. 43.

10

É esta vontade soberana do povo que sustenta e dá vida à democracia. No entanto, a questão não para por aqui. Se a justiça constitucional possui assento na democracia, deve-se admitir que a vontade da maioria – que não se confunde com a vontade geral no pensamento de Rousseau -, prevalece na base de sua legitimidade. Caracterizado por uma vontade soberana, o princípio da maioria indica a presença de uma minoria que se vê, ao menos em tese, desprivilegiada no que tange as decisões políticas. Assim, não se trata de estabelecer a decisão do corpo político, apenas. Exige-se, também, que haja a proteção das minorias. Esta proteção da maioria é a função essencial dos chamados direitos fundamentais e liberdades fundamentais, ou direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares.11 Proteger-se a minoria através de uma proclamação de direitos não quer dizer, efetivamente, que tais direitos sejam realizados, que alcancem a todos na sociedade. Estaríamos convivendo com duas situações, com duas vontades: a da maioria e a da minoria. O povo jamais poderia fazer representar sua vontade, pelo simples fato de que a vontade não se representa. Daí o pessimismo de Rousseau no que tange à ideia moderna de representação. Esta problemática não vai atormentar Sieyès. Para o abade, a soberania do povo se confunde com a soberania nacional. Observa Simone Goyard-Fabre: “Sejam quais forem as diferenças de apreciação que Sieyès e Rousseau fazem sobre a ideia de representação, estão de acordo sobre um ponto: a soberania pertence ao povo”.12 E, pertencendo ao povo a soberania, logicamente continua o povo atuando como legítimo titular do poder. Surge, neste ponto, uma outra problemática, desta feita levantada por Kelsen:

Se se aceitar o princípio da maioria para o desenvolvimento da ordem social, a ideia de liberdade natural não mais pode realizar-se integralmente; só uma aproximação desse ideal será possível. O farto de a democracia ainda ser vista como auto-determinação e de sua liberdade ainda significar que todos só estão sujeitos à sua própria vontade, ainda que a vontade da maioria seja coercitiva, representa mais um passo na metamorfose da ideia de liberdade.13

KELSEN, Hans. A democracia; tradução de Vera Barkow. – São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 67. GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno; tradução de Irene A. Paternot. – São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 182. 13 KELSEN, Hans. A democracia; tradução de Vera Barkow. – São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 178. 11 12

Fica claro, portanto, que democracia não significa cada um sujeito à própria vontade; quer dizer, sim, que a vontade da maioria determina as decisões políticas e, no caso em destaque – o da justiça constitucional -, alicerça sua legitimidade. O debate acima referido longe está de alcançar seu termo final. No entanto, já se percebe que há uma quantidade expressiva de autores que veem na democracia a legitimidade da justiça constitucional. Para o objetivo deste trabalho importa admitir, neste átimo, que a justiça constitucional deve reverências ao princípio democrático, aqui entendido no seu viés principal de decisão da maioria. Portanto, cabe agora dizer como a justiça constitucional cumpre o papel de resguardar os ideais democráticos. É que no exercício da jurisdição constitucional, enquanto poder estatal, o Tribunal – ou órgão equivalente -, pode fiscalizar, e até mesmo impedir, que os demais poderes pratiquem atos em desacordo com as regras e princípios constitucionais. Vieira de Andrade, em pronunciamento no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional, em Lisboa – Portugal -, realizado nos dias 28 e 29 de maio de 1993, teve a oportunidade de afirmar que:

[...] existe a possibilidade de um verdadeiro conflito entre a função fiscalizadora do Tribunal Constitucional e a função do legislador: essa possibilidade existe, desde logo, porque o Tribunal Constitucional tem poderes para controlar efectivamente o respeito pelo princípio da constitucionalidade, mas existe sobretudo na medida em que se entenda que o legislador não é um mero executor da Constituição. 14

A possibilidade de conflito ressaltada por Vieira de Andrade está no fato de que o Legislativo possui origem na vontade da maioria, enquanto que o Tribunal Constitucional normalmente é composto por pessoas escolhidas pelo Executivo com a participação do Legislativo, tema este que será desenvolvido em tópico separado. Desta forma, como poderia o Tribunal Constitucional declarar inconstitucionais ou afastar a aplicação de leis advindas de um Poder legitimado pela escolha popular inconstitucionais? José de Albuquerque Rocha, sobre o tema aqui em destaque, observa com rara percepção:

14ANDRADE,

J. C. Vieira de. Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria. In Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional – colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993 -: Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 76.

Inicialmente, por transformar-se em intérprete da vontade do constituinte que é a mais alta manifestação da soberania popular; depois, por assumir a função do sensor do Legislativo, sem dúvida o mais democrático dos Poderes. Diante disso, surge a questão de saber até onde seria legítimo atribuir a um órgão de origem não representativo da soberania popular, como o Judiciário, simultaneamente, a função de intérprete supremo da mais alta manifestação da vontade popular que é a Constituição e de sensor do Legislativo, o mais democrático dos Poderes. Parece evidente que o Judiciário, justamente por sua origem não representativa, é o órgão menos indicado para o papel de intérprete da vontade do povo, consubstanciado na Constituição e, por consequência por sensor do Legislativo. Efetivamente, é inadmissível que um órgão sem ligações com a vontade popular seja encarregado de traduzir, exprimir, compreender e dar significação a esta vontade. Certamente, aqui, temos uma das explicações para não aplicação das regras consagradoras dos valores democráticos e sociais da Constituição: a origem não democrática do Judiciário a transformá-lo em uma instituição distante do povo e próxima das elites.15

Parece evidente que a justiça constitucional sofre de uma crise de legitimidade do ponto de vista democrático. Superar tal crise é tarefa árdua que tem ocupado boa parte da doutrina constitucional e necessária a uma adequada compreensão do papel da jurisdição constitucional. E quando se fala de correta compreensão do tema, entenda-se buscar no momento histórico que caracteriza a pós-modernidade os fundamentos da ordem jurídica constitucional em vigor. O principal indicador desse problema é a tensão entre Judiciário e Legislativo que deve ser solucionada com base nos princípios democráticos, na forma encaminhada até aqui. André Ramos Tavares, citando vários autores, observa:

Noutra linha argumentativa, há quem como Raúl Canosa Usera, vá buscar diretamente na Constituição a legitimação dos atos do Poder Judiciário. Segundo este pensamento, é na Constituição que se dividem os poderes do Estado, o que se pode ser levado a efeito pode um poder que lhe seja superior, e que é o poder constituinte originário. Nessa medida, todos os poderes são democráticos, já que procedem de um ato de soberania popular que é a aprovação de uma nova ordem constitucional, e isto independentemente da forma de sua estrutura.16

O mesmo pensamento é exposto por Dalmo de Abreu Dallari, ao asseverar que o juiz recebe do povo, através da Constituição, a legitimação formal de suas decisões,...17 Conforme tal pensamento, a justiça constitucional encontraria legitimidade, em última análise, no princípio da maioria, posto que é pela maioria que o poder soberano se realiza. O

ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o poder judiciário – São Paulo: Editora Malheiros, 1995, p. 80. André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional – São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998, p. 78. 17DALLARI, Dalmo de Abreu. O controle de constitucionalidade pelo supremo tribunal federal. In O Poder Judiciário e a Constituição – Porto Alegre: Ajuris, 1977, p. 187. 15

16TAVARES,

poder constituinte originário, em constituindo uma nova ordem jurídico-política, reservaria à justiça constitucional legitimidade para o controle da constitucionalidade dos atos normativos, inclusive e mais propriamente, os do Poder Legislativo. Importante destacar que a legitimação da jurisdição constitucional não encontra fundamento unicamente na concepção democrática. A democracia, enquanto governo do povo e para o povo, é uma das várias tentativas para se identificar o manancial lógico-doutrinário do qual emana apontada legitimidade. Sergio Fernando Moro oferece excelente síntese sobre o tema em obra específica. A exposição seguinte é deste autor.

A jurisdição constitucional pode ser justificada como uma opção política não necessariamente democrática. Nega-se, nessa perspectiva, que a compatibilidade entre democracia e jurisdição constitucional seja questão problemática, admitindo-se, desde logo, a incompatibilidade. A jurisdição constitucional estaria justificada com base em outros objetivos políticos. Os contemporâneos Estados Democráticos e Sociais de Direito não teriam por base apenas o princípio democrático, mas também o princípio do Estado de Direito e do Estado Social. Enquanto o último se desenvolveu durante os séculos XIX e XX e não passa de um aprofundamento do próprio princípio democrático – afinal significa, em síntese, a submissão do status quo à deliberação democrática -, o princípio do Estado de Direito e o princípio democrático encontram suas bases no pensamento político do século XVIII.18

Nesta linha de pensamento, pode-se afirmar que o Poder Judiciário estaria legitimado para o exercício da jurisdição constitucional, já que fruto de uma vontade soberana. Todavia, tal argumento não é convincente em sua totalidade, considerando-se que esta concepção é extremamente elitista e transforma o juiz numa pessoa portadora de especial qualidade, a de interpretar e ofertar o fundamento das normas. Exatamente neste espaço aparece a posição de Peter Häberle em sua sociedade aberta dos intérpretes da constituição. É ele que alarga o círculo dos intérpretes: “O conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la (Wer die Norm “lebt” interpretiert sie auch (mit)”.19 O argumento institucional de Häberle indica que a jurisdição constitucional não pode ser monopólio de um único órgão ou poder. Se é inegável que a Constituição submete todos aos seus Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 121. 19HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Contribuição para interpretação pluralista e `procedimental` da Constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes – Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, p. 13. 18MORO,

comandos, nada mais lógico que se atribuir a um poder – preferencialmente o mais fraco – a guarda a Constituição. Relevante perceber que não se faz uma supervalorização do Judiciário, mas inversamente, apela-se para suas deficiências para justificar seu papel de guardião da Constituição e, mais ainda, para os desacertos das democracias. Apontando, ainda, para as deficiências do regime democrático, a teoria procedimental, capitaneada por John Hart Ely, afirma que a “função da jurisdição constitucional seria policiar o processo democrático e não os resultados substantivos dele decorrentes.”20 Entende-se a compreensão procedimentalista de Ely quando se verifica que suas ideias forma desenvolvidas com base na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, cuja Constituição contém normas de direito substantivo não relacionadas com o processo democrático. Percebe-se, desta forma, que a legitimidade democrática da jurisdição constitucional não é lugar comum no pensamento jurídico, co-existindo com outras tantas teorias. Todavia, parecenos a que melhor responde ao modelo de pós-modernidade exigente de uma cultura humanista e democrática. Num Estado Democrático de Direito, além do princípio da maioria para a realização adequada do regime democrático, urge a necessidade de se preservar os direitos das minorias que evidencia

a

sobrevivência

do

próprio

Estado

de

Direito.

Tem-se,

portanto,

uma

complementaridade entre democracia e Estado de Direito. E não se diga que o Poder Judiciário possui um déficit de democracia e que, portanto, não teria legitimidade para o controle dos atos do Poder Legislativo, este representante da vontade popular. Goffredo Telles Júnior, numa síntese lapidar afirma que “o Poder do Congresso Nacional não é um Poder originário, nem autônomo, nem incondicionado. Ele não se rege por si mesmo, uma vez que sua atuação é pautada pelas normas da Constituição. Ele não leva em si a lei de seu próprio exercício. Não é um Poder soberano. O Poder Legislativo, considerado como Poder do Congresso Nacional, é um Poder constituído, um Poder exercido em conformidade com o que manda o Poder constituinte”.21 Sem um ambiente democrático não se torna possível a realização da jurisdição constitucional. As possibilidades de interpretação pluralista só são adequadas num território

20

MORO, Sergio Fernando. Ob. Cit.., p. 144. Goffredo Telles. A Constituição, a Assembléia Constituinte e o Congresso Nacional. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 51. 21JUNIOR,

semântico permeado pelos efeitos da democracia, pela presença de valores os mais diversos. Portanto, nos aliamos aos que defendem a legitimidade democrática da jurisdição constitucional.

CONCLUSÃO Após o desiderato percorrido neste trabalho, observa-se a importância da jurisdição constitucional no asseguramento do Estado Democrático de Direito. Considera-se com razão Hans Kelsen quando defende que o papel deve ser exercido por um Tribunal Constitucional para evitar, o mais possível, as ingerências dos demais Poderes. Quanto à legitimidade democrática desta especial jurisdição, optou-se por sua vertente democrática por ser ela a mais adequada no ambiente de mundo globalizado e multicultural. Sem a base democrática, estaria a jurisdição constitucional correndo o risco de cair nas mãos de oportunistas do e no poder, transformando-a em instrumento de dominação.

REFERÊNCIAS ANDRADE, J. C. Vieira de. Legitimidade da justiça constitucional e princípio da maioria. In Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional – colóquio no 10º Aniversário do Tribunal Constitucional – Lisboa, 28 e 29 de maio de 1993. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. DALLARI, Dalmo de Abreu. O controle de constitucionalidade pelo supremo tribunal federal. In O Poder Judiciário e a Constituição. Porto Alegre: Ajuris, 1977. GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. Tradução de Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 1999. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Contribuição para interpretação pluralista e procedimental da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997. HERÓDOTO. História. São Paulo: Ediouro, 2001. JUNIOR, Goffredo Telles. A Constituição, a Assembleia Constituinte e o Congresso Nacional. São Paulo: Saraiva, 1986. KELSEN, Hans. A democracia. Tradução de Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1993 KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Tradução do alemão de Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MORO, Sergio Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

ROCHA, José de Albuquerque. Estudos sobre o poder judiciário. Malheiros, 1995.

São Paulo: Editora

ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Editora Martin Claret, 2003. SCHMITT, Carl. O guardião da constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. TAVARES, André Ramos. Tribunal e jurisdição constitucional. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1998.

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