Legitimidade e Efetividade como tensão constitutiva (conflito concreto) da normatividade constitucional

July 4, 2017 | Autor: Marcelo Cattoni | Categoria: Constitutional Law, Direito Constitucional, Teoria do Direito, Teoria da Constituição
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Legitimidade e efetividade como tensão constitutiva (conflito concreto) da normatividade constitucional1 Menelick de Carvalho Netto2 Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira3 A indeterminação estrutural do Direito moderno é um problema claramente detectado por Hans Kelsen já nos anos trinta do século passado. O Direito moderno, seja no civil law, seja no common law, só se dá a conhecer por intermédio de textos e a possibilidade de manipulação abusiva na aplicação desses textos desde então não mais pode ser ignorada. Na base do denominado “giro decisionista” de Kelsen, de 1960, encontra-se o seu reconhecimento do fracasso de sua tentativa, tipicamente neo-positivista , de solucionar esse problema mediante a elaboração de uma “Teoria Pura do Direito”, ou seja, a construção de uma linguagem asséptica, isenta de juízos valorativos, para que a ciência do Direito pudesse traçar de uma vez por todas para as autoridades encarregadas de aplicar normas com força cogente o quadro das leituras ou sentidos possíveis de cada um dos textos de direito positivo. Friedrich Müller foi capaz de aprender com esse fracasso e de , portanto, ao retomar o mesmo problema para propor o controle do risco, sempre presente, de interpretações abusivas dos encarregados de garantir a aplicação Direito, fazê-lo em bases inteiramente distintas, sólidas e produtivas, superando as ficções iluministas preservadas pelo positivismo, tanto a da norma como um dado prévio, capaz de por si só regular a complexidade da vida; quanto a do fechamento e da coesão unitária interna do ordenamento jurídico. A obra de Müller possibilita que nos libertemos, finalmente, do que Bloch denominou o “feitiço da evocação” [“Bann der Wiedererinnerung”], ainda presente e atuante tanto no positivismo quanto na perspectiva de Robert Alexy. Ao contrário da Teoria Pura e de uma teoria da argumentação jurídica que torna disponível para o aplicador a forma do Direito, uma teoria pós-positivista, nada pura e que afirma a indisponibilidade da forma do Direito, é que se faz capaz de contribuir decisivamente para uma compreensão

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Texto originalmente publicado na obra LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto e ALBUQUERQUE, Paulo de Menezes (orgs.) Democracia, Direito e Política: Estudos Internacionais em Homenagem a Friedrich Müller. Florianópolis: Conceito, 2006, p. 615-627. 2 Doutor em Filosofia do Direito (UFMG). Professor do Programa de Pós-graduação em Direito (Unb). 3 Bolsista de Produtividade do CNPq (1D). Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG). Estágio PósDoutoral em Teoria do Direito (Università degli studi di Roma 3). Professor do Programa de Pós-graduação em Direito (UFMG)

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estruturante de como se deve dar constitucionalmente o processo de concretização de programas normativos gerais e abstratos diante dos campos ou âmbitos normativos de aplicação, sempre ricos, complexos e particularizados que só podem ser definidos nos casos concretos. Assim é que, ao nosso ver, a obra de Friedrich Müller alcança uma dimensão democrática profunda ao fornecer, a partir de supostos teoréticos adequados ao nosso tempo, instrumental teórico apto a possibilitar o controle de legitimidade do processo de produção de decisões individuais e concretas pelos juízes e demais aplicadores do Direito, ao reconhecer a relevância do trabalho criativo desses mediadores, imprescindível para a efetiva produção da norma jurídica no nosso viver cotidiano, a partir de preceitos gerais e abstratos. É ao se deter sobre esse imprescindível trabalho que Müller, ao nosso ver, com razão, acredita poder garantir a possibilidade de se lidar com o permanente risco de abusos das autoridades e de se viabilizar a garantia da separação de poderes e dos demais princípios estruturantes do Estado de Direito. Todo processo de alteração de paradigma, quer seja na ciência, quer seja na vida, não se dá sem resistências. Afinal, não são todos os que, abertamente, reconhecem o esgotamento de uma concepção de mundo na qual construíram seu modo de compreender o trabalho científico, assim como a si próprios. O paradigma no qual nos movemos é constitutivo de nós mesmos. Ultrapassá-lo no sentido de sermos capazes de adquirir um novo horizonte de possibilidade de doação de sentidos à nossa auto-compreensão e à sociedade, ao mundo e à vida, mais amplo, rico e complexo do que o anterior, é saltar para além da linha de Rhodes, que um paradigma pode representar. Implica reconhecer, por um lado, o caráter finito, falível e precário da condição humana, algo que exige o aprendizado crítico e reflexivo em face de tradições sempre carentes de justificação, e requer o quase sempre doloroso abandono daquilo que mais óbvio, natural, certo e assentado até então nos parecia. Por outro lado, implica reconhecer, com Hannah Arendt, em The Life of the Mind, que o que caracteriza a condição humana, não é um ser-para-a-morte, como dizia Heidegger, inexoravelmente presente enquanto finitude, mas um ser-natal, em aberto, capaz de liberdade por seu poder de inovar, de dar início, de se reinventar, de fazer nascer e renascer um mundo intersubjetivamente construído entre e em nós. Precariedade, aprendizado e renascimento: não há, pois, outro modo de se garantir o prosseguimento, quer de uma ciência digna do nome, quer de uma

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vida autêntica, que só se constróem na luta, no reconhecimento recíproco e no debate intersubjetivo que as constituem. Percebe-se essa resistência ao novo, por exemplo, no tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal ao Mandado de Injunção. Na determinação sobre quais seriam os efeitos jurídicos de uma decisão concessiva de tal injunção, ao arrepio de uma reconstrução mais consistente da história constituinte e de uma doutrina constitucional comprometida com a efetividade dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal, no MI – 107, assentou o entendimento segundo o qual não caberia ao Judiciário regulamentar, para e em cada caso concreto submetido à sua apreciação, o exercício desses direitos, sobre a justificativa de que, se assim procedesse, estaria rompendo a separação dos poderes e assumindo o papel de legislador positivo. O pressuposto do qual partia o STF era o de que, sem a interposição legislativa, nada poderia fazer o Judiciário, a não ser informar ao legislador omisso da falta de regulamentação. Na expressão crítica de José Carlos Barbosa Moreira, o Supremo fez do Mandado de Injunção “um sino sem badalo”, uma garantia que nada garante. Vencia, mais uma vez, o entendimento tradicional segundo o qual “normas programáticas, dependentes de regulamentação legislativa” não teriam eficácia plena e aplicabilidade imediata, mesmo em face do enfático dispositivo do parágrafo primeiro, do art. 5.º, da Constituição. Tanto do ponto de vista dos pressupostos de legitimidade, quanto dos pressupostos metodológicos, acolhia o STF, mais uma vez, supostos dificilmente sustentáveis no horizonte de sentido constitucionalmente descortinado. Esse julgado, que passa a ser considerado o precedente na matéria, consagra não somente uma interpretação inadequada da separação dos poderes, como, em razão de uma compreensão da norma jurídica reduzida à regra, não reconhece ao ordenamento o seu caráter principiológico, carente não somente de concreção legislativa mas também jurisdicional, pois cada uma dessas distintas tarefas cumpre papel próprio e específico no processo de possibilitar que a liberdade e a igualdade que reciprocamente nos reconhecemos tenham garantida a chance de se enraizarem em nossa vida concreta cotidiana de tal sorte a efetivamente regerem as expectativas de comportamento internalizadas e por nós compartilhadas. Podemos afirmar que tal entendimento jurisdicional se encontraria assentado em jurisprudência do Supremo, fundada numa compreensão equivocada da chamada “doutrina das questões políticas” e na

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tradicional interpretação do que seria uma supremacia do interesse público (leia-se estatal e governamental) sobre o interesse privado, a justificar a não proteção de direitos pelo Judiciário. Em casos mais recentes, contudo, o Supremo Tribunal Federal estaria revendo sua jurisprudência, através daquilo que alguns doutrinadores têm chamado de “relativização do princípio da supremacia do interesse público”, com base numa nova compreensão, segundo a qual o raciocínio jurídico deve ser compreendido como uma “ponderação de valores”, em que os princípios constitucionais passam a ser tratados, seguindo a tradição da jurisprudência dos valores na Alemanha, como “comandos otimizáveis”, que colidem entre si para reger um caso concreto (Alexy). Esses “princípios” devem ser aplicados em diferentes graus, mediante a utilização de “regras de prioridade” e do princípio da proporcionalidade, a uma mesma decisão judicial, vista como um meio preferível, conveniente ou ótimo para a realização de um ideal totalizante de sociedade, que estaria pressuposto à Constituição: uma pretensa ordem concreta de valores, supostamente compartilhados por todos os membros da nossa sociedade política. Ou seja, a ponderação de princípios como valores, sob condições de prioridade e do princípio da proporcionalidade - que exige indagar pela adequação, necessidade e estrita proporcionalidade da decisão a valores e a finalidades pretensamente compartilhados submete a aplicação das normas a um cálculo de tipo custo/benefício, rompendo com a doutrina anteriormente assentada das questões políticas, mas não necessariamente com a sua compreensão do princípio da supremacia do interesse público. É de se perguntar quais são as conseqüências dessa perspectiva de compreensão do raciocínio jurídico, típico da jurisprudência dos valores, para a proteção dos direitos fundamentais. Tal “raciocínio” garantiria uma tutela jurisdicional, mais consistente e adequada, dos direitos fundamentais? Um exemplo de uso do raciocínio de ponderação proporcional é o julgamento do HC 82.424-2, Rio Grande do Sul, o chamado “HC sobre o racismo”. Nesse julgado, boa parte dos Ministros do Tribunal procurou compreender o caso a partir de uma colisão abstrata entre valores, liberdade de expressão contra dignidade da pessoa humana. Assim, buscou-se dar seguimento a esses princípios como valores, hierarquizando-os segundo o entendimento, por um lado, de que se tratava de uma violação à dignidade humana pelo exercício da liberdade de expressão, já que a dignidade seria um valor superior à liberdade

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e, por outro, de que a condenação por racismo e a conseqüente censura a uma publicação seriam melhores à promoção da dignidade humana do que o reconhecimento, em toda a sua extensão, da liberdade de expressão. Afinal, ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, criminosa, ou do exercício regular e não abusivo de um direito. Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito, como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita? Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito. E tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Judiciário definir o que pode ser discutido e expresso como digno desses valores, pois só haveria democracia, desse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham de um modo comunitarista os mesmos supostos axiológicos, os mesmos interesses, uma mesma concepção de vida e de mundo. A questão postulada nesse caso concreto não permite jamais a sua colocação nos termos de uma colisão abstrata entre valores ponderáveis, como se se tratasse de se fazer uma opção entre o princípio da liberdade de expressão e o da dignidade humana abstratamente considerados como se um pudesse ser melhor ou pior do que o outro, sem graves prejuízos para a nossa autocompreensão enquanto uma comunidade que assenta a sua vida em comum no respeito aos princípios constitucionais. A opção em abstrato, constituinte e legislativa, válida e legítima, já foi feita e por ambas as normas. Aí o que Friedrich Müller denomina o “limite do texto” das normas, impondo-se ao aplicador, de início, levar em conta ambos os princípios, os programas normativos, em face das especificidades do caso concreto, do âmbito ou campo normativo . Aliás, se no caso, há claramente uma concorrência no campo normativo ou de aplicação entre os dois princípios ou programas normativos válidos, fazendo-os aparecer a nós como contrários, isso não significa de modo algum que sejam contraditórios, ou seja, que teríamos que aplicá-los como regras, escolhendo, em abstrato, ou um ou outro, independentemente da análise que apenas o aplicador pode fazer do texto e do contexto normativo da aplicação concreta, sempre socialmente complexo, rico, único e irrepetível.

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Diversamente, o fato de princípios contrários poderem ser válida e legitimamente acolhidos simultaneamente no ordenamento significa apenas que são, a um só tempo, contrários e complementares um do outro. Que não podemos pensar em um sem o outro, uma vez que são reciprocamente constitutivos um do outro, pois se encontram em uma permanente tensão produtiva (“conflito concreto”) no sentido de se oferecerem de forma alternativa à aplicação concreta na vida cotidiana. Os princípios são, assim, programas normativos constantemente carentes de concretização nos campos normativos, na complexidade e irrepetibilidade da nossa vida comum diária. Nem mesmo em termos abstratos, podemos afirmar, de forma plausível, que haja qualquer liberdade de expressão sem o respeito à dignidade da pessoa humana, ou qualquer dignidade da pessoa humana sem que se assegure a liberdade de expressão. A redução do Direito a normas gerais e abstratas levada a efeito pela modernidade não significou, como desejavam iluministas e positivistas, a eliminação do problema do Direito moderno, mas, pelo contrário, apenas a condição para que se inaugurasse o problema com o qual ele deve ser capaz de lidar: o da aplicação (em um processo de concretização) de normas gerais e abstratas a situações sempre individuais e concretas. Dito de outro modo, não se reduziu, mas, ao contrário, se incrementou a complexidade social. Pretensões normativas abusivas podem ser levantadas pelos destinatários dessas normas simplesmente por elas estarem prefiguradas, quando, de fato, na situação de vida concreta específica as pessoas não se deixaram reger em momento algum pela norma que uma das partes pretende posteriormente lhe seja aplicada somente porque lhe traz mais vantagens, e que, em concreto, pode-se verificar, não regeu de modo algum aquela determinada situação de aplicação. Os elementos da própria situação de aplicação, do campo normativo, é que podem fundamentar ou desautorizar as pretensões normativas levantadas pelos envolvidos. A questão que, no caso, cabe decidir, portanto, não é qual, em abstrato, seria a melhor norma, ou como dizem o melhor valor, mas se, no caso concreto, ocorreu crime de racismo ou exercício regular do direito de liberdade de expressão do pensamento, levandose em conta a unicidade e a irrepetibilidade dos eventos humanos, ou seja, as especificidades dessa determinada e concreta situação de aplicação, para avaliar a adequabilidade das pretensões normativas levantadas na argumentação pelos envolvidos. Aí é que se torna possível separar o joio do trigo, torna-se clara a adequabilidade da pretensão

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normativa de um dos envolvidos à situação vivenciada por eles e, a outra pretensão, revelase descabida e interessada apenas em assegurar para aquele que a postula uma posição ainda mais vantajosa, um abuso de uma norma geral e abstrata que aparentemente até poderia ter regido aquela situação, mas que, de fato, não foi por ela que os envolvidos pautaram seu comportamento. No caso em questão, os elementos da situação concreta de aplicação, ou seja, do âmbito normativo, estão a indicar a prática do racismo e não o exercício da liberdade de expressão, sem que para isso tenhamos de renunciar ao caráter normativo, deontológico do Direito: deve-se reconstruir a argumentação apresentada pelas partes. Com isso, podemos afirmar que não se tratava de mera tese histórica revisionista, nem de outra espécie de discriminação, ainda que religiosa, mas da atribuição intolerante, estigmatizada, a todo um povo, de uma pretensa natureza corrupta e má a ser combatida, configurando claramente o abuso da liberdade de expressão prefigurado como crime de racismo. Se na decisão sobre o Mandado de Injunção n.º 107, o Supremo Tribunal raciocina em termos regra-excepção, passa a dar a esse raciocínio, como no Habeas Corpus n.º 82.424-2, um sentido axiologizante, o que lhe possibilitaria não somente efetuar um controle negativo das decisões jurídicas, legislativas, judiciais ou mesmo administrativas, mas também das escolhas políticas legislativas e executivas, assim como das concepções de vida digna dos cidadãos, à luz do que seus onze Ministros considerem ser o melhor - e não o constitucionalmente adequado – para a sociedade brasileira. A disputa de dois paradigmas jurídicos, torna-se, assim, explícita. Por um lado, o daqueles juristas formados na velha escola formalista, liberal conservadora, diga-se de passagem, e, por outro, o dos novos representantes de uma tardia jurisprudência dos valores. Os primeiros, fundados numa concepção privatista do Direito, compreendem os conflitos sociais como interindividuais, e a isso acrescentam uma concepção autoritária de Estado, para a qual, mesmo agindo em prol de “questões sociais”, assume caráter policialesco, ao apropriar-se paternalisticamente das demandas político-sociais. E, nesse sentido, uma postura excessivamente individualista combina-se com a velha “doutrina da segurança nacional” e das “razões de Estado”, em que direitos sociais devem ser concedidos “de cima para baixo”, os conflitos coletivos devem ser resolvidos de modo populista e peleguista, sem mobilização social autônoma, sem participação política, quando e como a tecnocracia assim

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o definir. Afinal, tratar-se-ia de “questões políticas” com as quais o Judiciário nâo deve se intrometer. Lavando as mãos para os problemas sociais, tal postura vê a política como uma questão de composição quase privada, entre Legislativo e Executivo, em que na maioria das vezes, o primeiro deve ceder ao segundo, e o Judiciário, sob a desculpa suicida de pretensamente estar garantindo a separação de poderes, assume um papel secundário de buscar garantir o mínimo, como se fosse possível garantir os princípios do Estado de Direito sem democracia. Já a segunda postura judicializa a política e a julga à luz de pretensos valores supremos da comunidade, a que os tribunais superiores teriam acesso privilegiado. Partidários desse tipo de ativismo judicial atribuem ao Judiciário o papel de tutor da política, um super-poder quase constituinte, e permanente, como pretensa e única forma de garantia de uma democracia materializada e de massa, sem, contudo, considerar os riscos a que expõe o pluralismo cultural, social e político próprios a um Estado de Direito. É o Judiciário, ou melhor, os Tribunais superiores e, na sua crista, o Supremo Tribunal Federal, quem deve zelar pela dignidade da política e sua orientação a uma ordem concreta de valores, paradoxalmente a única possibilidade de exercício de “direitos” e de realização da democracia. Assim, o Supremo Tribunal Federal converter-se-ia em guardião da moral e dos bons costumes, uma espécie de sucessor do Poder Moderador, ou, quem sabe, do Santo Ofício, a ditar um codex e um index de boas maneiras para o Legislativo e para o Executivo. Trata-se, pois, de uma postura que esconde uma intolerância extrema e preconceituosa para com os processos políticos, com a qual quem perde, mais uma vez, é a cidadania. Todavia, as duas visões podem ser compreendidas normativamente como alternativas concorrentes, embora equivocadas, de garantia dos direitos privados, que desconsideram o ponto central para a realização, no tempo, do projeto de constituição de um Estado Democrático de Direito: nas palavras de Jürgen Habermas, a coesão interna entre autonomia privada e autonomia pública, de que não se asseguram direitos privados sem direitos políticos, e vice versa. Pois, da mesma forma que cidadania não é algo natural, que se garante tão somente pelo reconhecimento de direitos privados e de uma esfera de livre-arbítrio, cidadania não se ganha nem se concede, mas se conquista. Exige luta, reconhecimento recíproco e discussão, através de todo um processo de aprendizado social, sujeito, inclusive, a tropeços. Ambas as posições estão cegas, portanto, para características

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estruturais da sociedade moderna e do Direito moderno, o que as impossibilita de lidar construtivamente com os riscos e com a complexidade de questões jurídicas, que envolvem uma concepção acerca da legitimidade e da efetividade constitucionais. Mais uma vez, estamos diante do esgotamento de perspectivas paradigmáticas de se tentar lidar com questões normativas, típicas das teorias jurídicas da “Velha Europa” (Niklas LuhmannRaffaele De Giorgi). Sob as condições modernas de um mundo da vida plural e de uma sociedade descentrada, em que competem com a mesma dignidade vários projetos do que seja o florescimento humano, tais compreensões paradigmáticas não somente chocam-se com o pluralismo político e de identidades individuais e coletivas, próprio da modernidade e da tradição do constitucionalismo, como colocam em risco, com seu desprezo por nossas próprias vivências de cidadania, a democracia entre nós. Pois a democracia, como já afirmado alhures, não pode ser concedida, nem realizada, mediante a tutela ou regência de quem quer que seja. Repita-se, não há autonomia pública sem autonomia privada, e viceversa, e as condições sob as quais o exercício da autonomia deve dar-se, como única fonte possível de legitimidade política moderna, só se estabelecem através de um processo de aprendizado social, sujeito a tropeços, a ser vivido pelos próprios cidadãos de uma República democrática. O constitucionalismo democrático necessita da atuação de uma jurisdição constitucional comprometida com a democracia, na garantia das condições processuais para o exercício da cidadania, que leva em consideração as desigualdades sociais e o pluralismo de identidades culturais e individuais, mas que não deve, nem precisa, ser um substituto para a cidadania que deve garantir. Mais uma vez, cabe explicitar e criticar aqui o enfoque pressuposto e tradicionalmente dado ao tema da legitimidade e efetividade constitucionais, que ainda se faz presente. Com a expansão mundial do constitucionalismo verificada após a Segunda Guerra Mundial, grandes doutrinadores do Direito Constitucional como, por exemplo, Biscaretti di Ruffia e Karl Loewenstein, sentiram a necessidade de criar categorias analíticas específicas para a classificação e a compreensão das “Constituições de Terceiro Mundo” (para usar a expressão de Biscaretti) e a sua condição “nominal” (na terminologia de Loewenstein). Para Biscaretti seria preciso destacar como um ciclo próprio, na segunda grande fase do constitucionalismo, a do constitucionalismo social, as Constituições desses países que, na vida cotidiana de suas populações encontravam-se muito apartados das

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tradições européias e norte-americanas que deram origem a esse fenômeno tipicamente ocidental e que agora tornava-se universal, elevado à índice de civilidade, condição para o ingresso desses novos atores internacionais que emergem dessa última onda de descolonização no concerto das “nações civilizadas.” É claro que a população de países como esses, tendo vivido por milênios e a ainda vivendo em condições tribais ou de estratificação em rígidas castas, não assimilaria facilmente a cultura constitucional de uma sociedade de indivíduos autônomos, livres e iguais que pactuam as normas estruturantes da base de sua vida em comum pela simples adoção de uma Constituição em que isso fosse afirmado e o poder e o seu exercício racionalmente organizado e controlado. A semelhança quase que absoluta dos textos constitucionais encobriria, na verdade, vivências muito distintas. Estudar as Constituições agora requeria reconstruir o texto tal como reconstruído em seu contexto próprio. Foi assim que Karl Loewenstein propôs a sua metodologia “ontológica” para o estudo das Constituições escritas. E nessa metologia, mediante o cotejo do texto com a realidade vivenciada, do “ideal” com o “real”, poder-se-ia chegar à classificação da Constituição como “nominal”, aquele tipo de Constituição que embora acolhesse de fato as aspirações de justiça daquela comunidade, portadora assim de legitimidade, não seria capaz, no entanto, de reger as relações por ela reguladas dado à dura realidade econômica e social muito distante da sonhada por todos, carecendo assim de efetividade. Assim, é que tanto Loewenstein quanto Di Ruffia, ao tratarem da expansão do constitucionalismo moderno no pós-guerra, irão preocupar-se com o modo com que princípios constitucionais, originalmente próprios aos Estados da Europa ocidental (França e Inglaterra) e aos Estados Unidos da América, seriam vivenciados no sul e no oriente, marcados por diferentes contextos sócio-econômicos e culturais. Para eles, haveria um hiato constante entre o ideal constitucional, importado do norte ocidental, e a realidade político-social concreta, posto que a própria realidade, quer meridional quer oriental, poderia constituir-se em obstáculo quase intransponível para a realização desses princípios. Todavia, cabe chamar atenção para o fato de que Loewenstein e Di Ruffia não estariam, ao denunciar o que seria esse hiato, ao sul e ao leste, propondo uma Teoria da Constituição ou do Direito Público que não pudesse ser universal, ainda que se considerassem as especificidades do sul e do oriente, pois, o critério normativo de referência para ambos

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permanecia sendo o constitucionalismo moderno ocidental. Loewenstein e Biscaretti não são, nesse sentido, Carl Schmitt, pois eles não têm a menor dúvida quanto àquela que seria a legítima função da Constituição e do Direito, própria do constitucionalismo moderno: a da garantia dos governados em face dos governantes. Eles permanecem, assim, diferentemente de Schmitt, como representantes da tradição do constitucionalismo liberal e social. Tradicionalmente, no Brasil e alhures, sempre se buscou explicar o que se via como distanciamento entre a prática e o texto constitucional, bem como a conseqüente desestima constitucional daí decorrente, pela oposição “real” x “ideal.” Oliveira Vianna, por exemplo, já qualificara a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891, de “idealista”. Para ele, seria preciso recuperarmos a nossa própria Constituição, a oriunda de uma tradição escravocrata, estamental e, também em termos políticos, organicamente centralizada na figura do Imperador. Assim, a oposição, ou melhor, as categorias analíticas simples e opostas que serviam não para apenas descrever, mas na verdade, para justificar a distância, o hiato, que era objeto, no mais das vezes, não somente do desejo de explicar, mas, sobretudo, de explicar para remediar, para que essa distância, esse hiato, pudesse ser suprimido no sentido de se garantir curso à normativa do texto contra a normativa da denominada “cruel realidade.” O problema de autores como Loewenstein e Biscaretti, mas também daqueles que seguiriam Oliveira Vianna, é que não perceber que o próprio modo com que colocam o problema da legitimidade/efetividade constitucionais, o hiato entre ideal e real, contribui ainda mais para o agravamento daquilo que se pretende denunciar. Ou seja, ao idealizarem tanto a realidade político-social dos países meridionais e orientais na forma quase-natural de um obstáculo intransponível, quanto ao sobrecarregarem os princípios constitucionais modernos, desconsideram exatamente o caráter vivido, ou melhor, o caráter hermenêutico das práticas jurídicas cotidianas. Por um lado, como bem afirma Ronald Dworkin, o Direito é uma prática social, interpretativa e argumentativa, de tal modo que não há como compreendê-la da perspectiva de um observador externo que não leva a sério o ponto de vista normativo dos implicados, das pretenções jurídicas levantas pelos próprios participantes dessa prática. A realidade social é uma construção histórica, dinâmica, hermenêutica e crítica, da qual o Direito faz

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parte. O Direito não está pairando estaticamente sobre uma sociedade estática. E, como tal, deve lidar, inclusive, com o risco próprio a ele mesmo de ser descumprido a todo e qualquer momento. Por outro lado, como demonstrado por Niklas Luhmann e desenvolvido em várias análises de Raffaelle de Giorgi, essas explicações antropológicas terminam por ser vítimas de sua própria armadilha conceitual, pois, ao buscarem descrever isso que visualizam como um hiato, terminam por justificá-lo a título de o descreverem. São explicações intrinsecamente incapazes de oferecer qualquer saída para o problema que tematizam, a não ser a sua própria justificação e eternização. Tomam a “idealidade” como algo oposto e oponível à “realidade”, como se qualquer “ideal” não estivesse profundamente mergulhado na “realidade social” em que surge e sobre a qual visa influir, e como se pudéssemos ter acesso a uma objetividade, que a atual filosofia da ciência certamente reconheceria como mítica, retratada em uma normativa absolutizada como o “real”. Padrões de comportamento social são assim elevados à condição de “realidade objetiva”, e desse modo, como resultado, passam a ser inquestionáveis não somente em sua suposta concretude comportamental majoritária, mas generalizados e absolutizados como o “real”. Esses padrôes de comportamento terminam, portanto, imunizados teoricamente contra os padrões socialmente concorrentes, desqualificados como “meras idealidades”. O tratamento constitucionalmente adequado dessa problemática requer certamente a sua recolocação em termos teoréticos mais complexos, capazes de dar contar da complexidade do próprio tema. Um autor como Jürgen Habermas, num diálogo, dentre outros, com a epistemologia pós-popperiana, sobretudo com Thomas Kuhn, introduz a noção de paradigma jurídico, que pode desempenhar, nessa discussão, um importante papel. Uma reconstrução paradigmática do Direito possibilita reconhecer a existência de um horizonte histórico de sentido, ainda que mutável, para a teoria do Direito e para a prática jurídica concreta, que pressupõe uma determinada “percepção” do contexto social do Direito, a fim de que se possa compreender em que perspectiva as questões jurídicas devem ser interpretadas, para que o Direito possa cumprir seu papel nos processos de integração social. Paradigmas do Direito constituem internamente a prática e a teoria do Direito, orientando seus desdobramentos. O reconhecimento desses paradigmas exige a superação

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da forma tradicional de lidar com questões normativas, rompendo com a dicotomia real/ideal, assim como exige uma reflexão hermenêutica crítica em face de nós mesmos, que não pode desconsiderar as pretensões normativas concretamente articuladas pelos próprios envolvidos em questões jurídicas.Nesse sentido, para Habermas, a perspectiva da Teoria do Direito e da Constituição que privilegia uma abordagem normativa deverá passar por um giro reconstrutivo, se quiser levar a sério o papel desempenhado pelo Direito nos processos de integração social. E ao se falar em tensão e não em hiato, oposição, contradição ou até mesmo em dialética, entre norma e realidade, reconhece-se que a realidade já é plena de idealidade, em razão dos próprios pressupostos lingüísticos contrafactuais presentes em toda interação comunicativa; mas, nesse sentido, a transcendência é imanente, é intramundana. Ao contrário de se dar continuidade à forma tradicional de teorias constitucionais especializadas em questões normativas que, por verem um hiato entre o Direito e a realidade, entre a “Constituição formal” e a “Constituição real”, mantêm-se cegas à tensão entre facticidade e validade, uma renovada Teoria da Constituição, ao assumir a tarefa fundamental de reconstruir, sob o paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, os diversos temas do Direito Constitucional, deve assumir a tarefa de resgatar os princípios constitucionais e democráticos já presentes na história do constitucionalismo e que possibilitam, inclusive, proceder a uma crítica em face do caráter intransparente dos processos políticos e sociais. Com certeza, portanto, o chamado problema da dessintonia ou dissonância constitucional é, indubitavelmente, um dos mais graves que enfrentamos na implementação de um Estado Democrático de Direito dentre nós. Friedrich Müller não é apenas um dos mais ilustres former professors da Universidade de Heidelberg, Alemanha. Ele é, certamente, graças ao reconhecimento que a sua obra lhe assegurou, um dos maiores constitucionalistas daquele país de luminares da Teoria e do Direito constitucionais. A sua Teoria Estruturante do Direito (Strukturierende Rechtslehre) busca precisamente superar as dicotomias simplificadoras da Modernidade, superando-as mediante a consideração de quatro perspectivas básicas que se apóiam e se constituem reciprocamente, como salienta Olivier Jouanjan, o mestre da Universidade Robert Schuman, Estrasburgo III.

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A complexa Teoria proposta por Friedrich Müller envolve as dimensões da dogmática, da metodologia, da teoria da norma jurídica e da teoria da Constituição, relacionando-as e articulando-as entre si. Essas quatro perspectivas de seu trabalho designam igualmente, pois, os terrenos materiais de operação da Teoria Estruturante do Direito. O processo metodológico estruturante nasce da constatação da inadequação das representaçôes tradicionais, inclusive da norma jurídica, como em Hans Kelsen, por exemplo, em face das exigências práticas que os princípios do Estado Democrático de Direito impõem ao trabalho com as normas. A dicotomia “norma” x “fato” conduziu ao reconhecimento de um decisionismo absoluto no que toca à aplicação dos textos jurídicos. A autoridade faria, ela própria, o Direito ao aplicá-lo, sem qualquer limite. É a partir desse estado de coisas que a reflexão de Müller vem retematizar a segurança e a certeza do Direito como garantias de cidadania em um Estado Democrático de Direito. A questão da legitimidade vista como um conflito concreto de Direito positivo, requer uma teoria metodológica dos modos de se colocar o Direito em operação, ou seja, uma teoria da normatividade tomada, a um só tempo, como determinação concreta e como ordem concretamente determinada. Esse tipo de análise constitucional que leva em conta a natureza discursiva do Direito Constitucional pode ser comprovada no livro, escrito a propósito de discussões acerca da soberania popular, Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Nessa obra, “legalidade” não é mais somente “a observância correta das formas e dos trâmites prescritos, mas um conceito enfático, não apenas um incômodo exercício de um dever “formal”, mas expressão da materialidade do ordenamento constitucional. Mesmo ´meras´ formas e “meros” trâmites têm o seu fundamento mais profundo nos objetivos e nas funções materiais [inhaltlichen Zielen] do ordenamento jurídico e da Constituição.” São essas próprias formas e trâmites condições discursivas inafastáveis da democracia. O conceito de legitimidade, penetra assim na própria legalidade, desnudando o aparente paradoxo do porque, na modernidade, a legalidade pode funcionar como uma possível fonte de legitimidade. A legitimidade, por sua vez, é aqui inteiramente redefinida, ela agora “qualifica a ação formalmente legal de um modo adicional, ou seja, denota que (a) ela é compatível com as regulamentações centrais do direito positivo (com os textos das normas) da Constituição (com a forma de

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estado, com os objetivos do estado, com as garantias dos direitos fundamentais, com o sistema do Estado de Direito); e que (b) ela permite continuar a discussão aberta e sem restrições por parte do Estado da questão de sua legitimidade ou ilegitimidade, ainda que a decisão formal (ato administrativo, texto legal, sentença judicial - no caso em epígrafe: a alteração da constituição) já tenha sido tomada.” Em outros termos, legitimidade remete agora para as condições a um só tempo formais e materiais de funcionamento democrático das própria instituições, das arenas de formação de opinião e vontade públicas, remete à idéia de soberania popular tomada como o fluxo da própria discussão democrática. Esse conceito de legitimidade, por sua vez, já pressupõe o de “constitucionalidade”, tomado em um sentido mais restrito do que o da simples conformidade com a Constituição, aqui ele “significa que um Estado só existe enquanto Estado constitucional, ou seja, define-se juridicamente conforme a sua constituição.” Em outros termos, a Constituição há de sempre ser tomada como normativa e não mais pode ser vista e estrategicamente empregada simbólica ou nominalmente. Essa tríade de conceitos que se imbricam e se pressupõem, legalidade, legitimidade e constitucionalidade, encontra seu ponto fulcral e , em um Estado Democrático de Direito, sua nota essencialmente distintiva, na legitimidade democrática, pois legalidade e constitucionalidade podem ser semântica e autoritariamente colonizadas. Podemos ver, então, como o mestre de Heidelberg emprega essas novas categorias analíticas de modo a apreender a tensão sempre constitutiva do empreendimento democrático não populista ao examinar, por exemplo, a aprovação da Emenda Constitucional n.º 16, a Emenda que autorizou a possibilidade de recandidatura do Presidente, e como essa aparente conquista das forças vinculadas às nossas mais autoritárias tradições pode ser vista como um passo à frente na consolidação do regime democrático dentre nós. A democracia é, pois, constituída de fugazes momentos e não é uma condição permanente e inabalável. Não há regime político no mundo que seja inteira e absolutamente democrático ou ditatorial todo o tempo, nem Constituição que seja absolutamente eficaz no sentido anterior. O importante é sabermos que somos homens e não deuses e, com todas as nossas imperfeições, bem como com as das coisas que criamos, vivermos o máximo possível dos momentos democráticos que alcançamos realizar.

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