LEITE, M. E. . Espaço Urbano e Representação Social nas Fotografias do Século XIX. In: VANCONCELO JR, R. E. de P. ; SEEMANN, J.; SILVA, J. F. da S. et al. (Org.). Hierópolis: o sagrado, o profano e o urbano. Fortaleza: Editora da Universidade Federal do Ceará, 2013, v. 1, p. 381-397.

July 24, 2017 | Autor: M. Leite | Categoria: Historia, São Paulo (Brazil), Fotografia
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Hierópolis

o sagrado, o profano e o urbano

II SINECGEO – Simpósio Nacional de Estudos Culturais e Geoeducacionais V ECEGE – Encontro Cearense de Geografia da Educação

Presidente da República Dilma Vanna Rousseff Ministro da Educação Aloizio Mercadante Universidade Federal do Ceará Reitor Prof. Jesualdo Pereira Farias Vice-Reitor Prof. Henry Campos Conselho Editorial Presidente Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães Conselheiros Profa Adelaide Maria Gonçalves Pereira Profa Ângela Maria Mota Rossas de Gutiérrez Prof. Gil de Aquino Farias Prof. Italo Gurgel Prof. José Edmar da Silva Ribeiro Diretor da Faculdade de Educação Maria Isabel Filgueiras Lima Ciasca Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação B ­ rasileira Enéas Arrais Neto Chefe do Departamento de Fundamentos da Educação Adriana Eufrásio Braga Sobral Série Diálogos Intempestivos Coordenação Editorial José Gerardo Vasconcelos (Editor-Chefe) Kelma Socorro Alves Lopes de Matos Wagner Bandeira Andriola

Conselho Editorial Dra Ana Maria Iório Dias (UFC) Dra Ângela Arruda (UFRJ) Dra Ângela T. Sousa (UFC) Dr. Antonio Germano M. Junior (UECE) Dra Antônia Dilamar Araújo (UECE) Dr. Antonio Paulino de Sousa (UFMA) Dra Carla Viana Coscarelli (UFMG) Dra Cellina Rodrigues Muniz (UFRN) Dra Dora Leal Rosa (UFBA) Dra Eliane dos S. Cavalleiro (UNB) Dr. Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Dr. Emanuel Luís Roque Soares (UFRB) Dr. Enéas Arrais Neto (UFC) Dra Francimar Duarte Arruda (UFF) Dr. Hermínio Borges Neto (UFC) Dra Ilma Vieira do Nascimento (UFMA) Dra Jaileila Menezes (UFPE) Dr. Jorge Carvalho (UFS) Dr. José Aires de Castro Filho (UFC) Dr. José Gerardo Vasconcelos (UFC) Dr. José Levi Furtado Sampaio (UFC) Dr. Juarez Dayrell (UFMG) Dr. Júlio Cesar R. de Araújo (UFC)

Dr. Justino de Sousa Júnior (UFC) Dra Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (UFC) Dra Lia Machado Fiuza Fialho (UECE) Dra Luciana Lobo (UFC) Dra Maria de Fátima V. da Costa (UFC) Dra Maria do Carmo Alves do Bomfim (UFPI) Dra Maria Izabel Pedrosa (UFPE) Dra Maria Juraci Maia Cavalcante (UFC) Dra Maria Nobre Damasceno (UFC) Dra Marly Amarilha (UFRN) Dra Marta Araújo (UFRN) Dr. Messias Holanda Dieb (UERN) Dr. Nelson Barros da Costa (UFC) Dr. Ozir Tesser (UFC) Dr. Paulo Sérgio Tumolo (UFSC) Dra Raquel S. Gonçalves (UFMT) Dr. Raimundo Elmo de Paula V. Júnior (UECE) Dra Sandra H. Petit (UFC) Dra Shara Jane Holanda Costa Adad (UFPI) Dra Silvia Roberta da M. Rocha (UFCG) Dra Valeska Fortes de Oliveira (UFSM) Dra Veriana de Fátima R. Colaço (UFC) Dr. Wagner Bandeira Andriola (UFC)

Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior Jörn Seemann Josier Ferreira da Silva Christian Dennys Monteiro de Oliveira Stanley Braz de Oliveira O r g a n i z a d o r e s

HIERÓPOLIS: O SAGRADO, O PROFANO E O URBANO ANTÔNIA CARLOS DA SILVA JÖRN SEEMANN ANTÔNIO BILAR GREGÓRIO PINHO JOSÉ EDVAR COSTA DE ARAÚJO ANTONIO CARLOS QUEIROZ FILHO JOSÉ GERARDO VASCONCELOS ANTÔNIO IGOR DANTAS CARDOSO JOSIER FERREIRA DA SILVA ANTÔNIO KINSLEY BEZERRA VIANA KEILA ANDRADE HAIASHIDA CARLOS AUGUSTO VIANA MARCELO EDUARDO LEITE CARLOS ROBERTO CRUZ UBIRAJARA MARIA DE LOURDES CARVALHO NETA CHRISTIAN DENNYS MONTEIRO DE OLIVEIRA NAIANA PAULA LUCAS DOS SANTOS CÍCERO JOAQUIM DOS SANTOS OTÁVIO JOSÉ LEMOS COSTA EDNÉA DO NASCIMENTO CARVALHO PAULO WENDELL ALVES DE OLIVEIRA EDSON SOARES MARTINS RAIMUNDO ELMO DE PAULA VASCONCELOS JÚNIOR EMANOEL LUÍS ROQUE SOARES REJANE MARIA DE SOUZA FERNANDA LIMA FERNANDES ROMEU DUARTE JUNIOR FRANCISCA KARLA BOTÃO ARANHA SAYONARA CARDOSO COPQUE FRANCISCO ARI DE ANDRADE STANLEY BRAZ DE OLIVEIRA FRANCISCO EGBERTO DE MELO ZENY ROSENDAHL GLAUCO VIEIRA FERNANDES

Fortaleza 2013

Hierópolis: o sagrado, o profano e o urbano © 2013 Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Jörn Seemann, Josier Ferreira da Silva, Christian Dennys Monteiro de Oliveira e Stanley Braz de Oliveira (Organizadores) Impresso no Brasil / Printed in Brazil Efetuado depósito legal na Biblioteca Nacional TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Editora Universidade Federal do Ceará – UFC Av. da Universidade, 2932, Benfica, Fortaleza-Ceará CEP: 60020-181 – Livraria: (85) 3366.7439. Diretoria: (85) 3366.7766. Administração: Fone/Fax (85) 3366.7499 Site: www.editora.ufc.br – E-mail: [email protected] Faculdade de Educação Rua Waldery Uchoa, No 1, Benfica – CEP: 60020-110 Telefones: (85) 3366.7663/3366.7665/3366.7667 – Fax: (85) 3366.7666 Distribuição: Fone: (85) 3214.5129 – E-mail: [email protected] Normalização Bibliográfica Perpétua Socorro Tavares Guimarães – CRB 3/801 Projeto Gráfico e Capa Carlos Alberto A. Dantas ([email protected]) Leitura e Revisão de Texto Leonora Vale de Albuquerque

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará – Edições UFC

Hierópolis: o sagrado, o profano e o urbano / Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Jörn Seemann, Josier Ferreira da Silva et al [...] Fortaleza: Edições UFC, 2013.

486 p. Isbn: 978-85-7282-603-7

1. Sociologia da Educação  2. Sagrado e Profana  I. Vasconcelos Júnior, Raimundo Elmo de Paula,  II. Seemann, Jonn  III. Silva, Josier Ferreira da CDD: 370.711

SOBRE OS AUTORES Antônia Carlos da Silva – Graduada em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (1993) e mestre em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (2000). Trabalhou como orientadora pedagógica e coordenadora de área do ensino fundamental, e como professora de Geografia no ensino médio. Atualmente é professora do curso de Geografia na Universidade Regional do Cariri – URCA. Tem experiência na área de ensino de Geografia, atuando principalmente nos seguintes temas: formação de professores – ensino e pesquisa – cartografia escolar – livro didático – metodologia – avaliação. E-mail: [email protected] Antônio Bilar Gregório Pinho – Graduação em Direito pela Universidade Regional do Cariri. Pesquisa em Cultura Popular com ênfase na Dança de Coco, Umbanda, Candomblé e demais manifestações caririenses. E-mail: [email protected] Antonio Carlos Queiroz Filho – Professor de Geografia (Graduação e Mestrado) da Universidade Federal do Espírito Santo UFES. Líder do Grupo de Pesquisa RASURAS – Imaginação Espacial, Poéticas e Cultura Visual. Tem artigos publicados nessas correlações em periódicos de qualidade reconhecida, tais como: "A Edição dos Lugares", na Revista ETD-UNICAMP (Qualis A), "Imaginação Espacial no filme A Vila", na Revista Rua-UNICAMP (Qualis A), "Sobre Política e Território no Espaço da Narrativa Fílmica", na Revista Terra Livre-AGB (Qualis A) e "Desviando Olhares: estéticas-políticas dos relatos de viagem", na Revista Geograficidade-UFF. E-mail: [email protected] Antônio Igor Dantas Cardoso – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará –

UFC. Especialista em Ensino de Geografia pela Faculdade Juazeiro do Norte – FJN. Graduado em Licenciatura em Geografia pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Geografia Agrária – GEA. Pesquisador dos aspectos culturais da Festa de Santo Antônio, em Barbalha, Ceará. Membro do Centro Pró-Memória Josafá Magalhães de Barbalha, entidade promotora da valorização da cultura popular do município. E-mail: [email protected] Antônio Kinsley Bezerra Viana – Mestre em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará. Graduado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará. Integrante do grupo de pesquisa sobre Geografia da Educação, da linha Espaço e Educação, cadastrado no Diretório dos Grupos de Pesquisas do Brasil – CNPq. Atualmente é professor de geografia da rede estadual de educação básica. E-mail: [email protected] Carlos Augusto Pereira Viana – Graduado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará (1985) e Mestre em Letras por essa mesma universidade (1995). Doutorando em Educação na UFC. Professor da Universidade Estadual do Ceará, onde atua na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, ocupando-se principalmente dos seguintes temas: poesia, literatura, crítica, jornalismo cultural. Atua ainda como professor de Literatura no ensino Médio e como jornalista junto ao Diário do Nordeste, onde é editor de cultura. É membro da Academia Cearense de Letras e da Academia de Letras e Artes do Nordeste e Membro Honorário da Academia Fortalezense de Letras. E-mail: [email protected] Carlos Roberto Cruz Ubirajara – Doutorando em Geografia – UECE. Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (2001). Licenciado em Geografia pela Universidade de Pernambuco. Professor assistente da Universidade de Pernambuco. Atua principalmente nos seguintes temas: Dinâmica Sócio-Espacial,

Função Turística, Região e Regionalização, Gestão Educacional , Legislação e Política Educacional, Metodologia do Ensino. E-mail: [email protected] Christian Dennys Monteiro de Oliveira – Pós-Doutor em Geografia Humana pela Universidade de Sevilha (Espanha) em 2011; e em Turismo, pela Universidade de São Paulo (Brasil), em 2005. Mestre (1993) e Doutor (1999) em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras (FFLCH) da USP.Professor Adjunto (Nível IV – Classe C) no Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado). E-mail: [email protected] Cícero Joaquim dos Santos – Professor do Departamento de História da URCA. Doutorando em História pela UFC. Pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Ensino de História e Cidadania (NUPHISC/URCA), e do Laboratório Imagem, História e Memória (LABIHM/URCA). E-mail: [email protected] Ednéa do Nascimento Carvalho – Licenciada e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (1998). Especialista em Educação pela UNICLAR(2000) e mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia (2008). É doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará. É professora no Programa de Geografia da Universidade Federal do Oeste do Pará. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em ensino de geografia. E-mail: [email protected] Edson Soares Martins – Possui graduação (1996), mestrado (2001) e doutorado (2010) em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professor Adjunto de Literatura Brasileira, na Universidade Regional do Cariri (URCA). Tem experiência na área de Literatura, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos

seguintes temas: literatura brasileira, poesia, narrativa moderna e contemporânea, romances de Clarice Lispector e Osman Lins e psicanálise. Também manifesta crescente interesse pelas literaturas africanas. Editor-geral de Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli. E-mail: [email protected] Emanoel Luís Roque Soares – Professor de Filosofia da Educação da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Centro de Formação de Professores, Amargosa -BA,pós-doutor em Educação Universidade Federal da Paraíba/FACED(2012), doutor em Educação(2008) Universidade Federal do Ceará/FACED. Mestre em Educação(2004) Universidade Federal da Bahia/FACED, Especialista em Estética, Semiótica, Cultura e Educação(2001): Universidade Federal da Bahia/FACED. Bacharel em Filosofia(1999): Universidade Católica do Salvador. E-mail [email protected] Francisca Karla Botão Aranha – Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará (2011.2). Foi bolsista Pibic/ UFC e Pibic/CNPq em sua graduação e desde então participa do grupo de estudo e pesquisa História e Memória da Universidade Federal do Ceará – NIHME, no qual hoje é mestranda e pesquisadora na área de História da Educação tendo o seu projeto financiado pela FUNCAP (2012). E-mail: [email protected] Fernanda Lima Fernandes – Graduanda do curso de Letras pela Universidade Regional do Cariri (URCA). Membro do corpo discente do Núcleo de Estudos em Teoria Linguística e Literária e do Ateliê de Tradução Inglês – Português do NETLLI. Atualmente, desenvolve o projeto “Poética Sistemática dos Cocos no Crato-CE”, sob a orientação do professor doutor. Edson Soares Martins. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. E-mail: [email protected]

Francisco Ari de Andrade – Professor Adjunto – DE do Departamento de Fundamentos da Educação, da Faculdade de Educação – FACED, da Universidade Federal do Ceará – UFC. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira – PPGE (Mestrado e Doutorado), da linha de pesquisa História e Memória da Educação, do eixo História da Educação, Política e Sociedade brasileira do PPGE-FACED-UFC. Doutor em Educação Brasileira pelo PPGE-FACED-UFC. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação do Ceará – GEPHEC. Desenvolve pesquisa sobre História da Educação, Instituição Escolar e Cultura Escolar. E-mail: [email protected] Francisco Egberto de Melo – Possui graduação em História pela Universidade Federal do Ceará (1993), especialização em Teoria e Metodologia do Ensino de História (UECE-2003), mestrado em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC-2006) e doutorado em Educação Brasileira no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará. É professor assistente da Universidade Regional do Cariri (URCA). Tem experiência na área de Educação e História, com ênfase em História da Educação e História e Ensino de História, atuando principalmente nos seguintes temas: história; ensino; formação de professores, educação; cultura, história, educação, metodologia, educação e estado – Ceará; política e educação. E-mail: [email protected] Glauco Vieira Fernandes – Possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Ceará (1997) e mestrado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (2001). Atualmente é professor adjunto da Universidade Regional do Cariri – URCA. Tem experiência na área de Geografia e Cinema, com ênfase em Geografia Urbana, tendo interesse nos seguintes temas: paisagem e corporeidade, representação da cidade no cinema, paisagem e territorialidades em representações culturais. Coordena o grupo Imago – pesquisa em

cultura visual, espaço, memória e ensino, vinculado ao Laboratório de Estudos e Pesquisas em Espaço Urbano e Cultura – LEPEUC, na URCA. Atualmente, cursando doutorado na Universidade Federal Fluminense – UFF/Niterói-RJ. E-mail: [email protected] Jörn Seemann – Possui mestrado em Geografia (Universität Hamburg, 1994) e doutorado em Geografia (Louisiana State University, 2010). Atualmente é professor adjunto da Universidade Regional do Cariri. Seu maior foco de pesquisa é a interface entre cartografia e cultura. Jörn se interessa particularmente pelos seguintes assuntos: perspectivas culturais na cartografia, mapas e sociedade, geografia cultural, educação cartográfica, mapas mentais, percepção ambiental e pensamento geográfico/cartográfico. O Nordeste Brasileiro lhe serve como espaço para suas pesquisas empíricas. Ele faz parte do conselho editorial de várias revistas brasileiras e contribui para a Comissão sobre Mapas e Sociedade da International Cartographic Association (ICA). Desde julho de 2011, é membro do Comité Diretor da Conference of Latin Americanist Geographers (CLAG). E-mail: [email protected] José Edvar Costa de Araújo – Graduado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará (1982), mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará (1994) e doutor em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2009). Professor Adjunto do curso de Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA/Centro de Filosofia, Letras e Educação. Líder do MEDUC – Grupo de Pesquisa História e Memória Social da Educação e da Cultura. Colaborador do NIHME – Núcleo de História e Memória da Educação e da LHEC – Linha de História da Educação Comparada, da UFC.Exerce a docência, a pesquisa e a extensão a partir da disciplina Princípios e Métodos da Pesquisa em Educação, com ênfase nos temas: processos culturais e educação, formação e prática docente, história das instituições educativas, cultura escolar, memórias e autoformação de educadores. E-mail: [email protected]

José Gerardo Vasconcelos – Possui Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (1988), Bacharelado em Filosofia Política pela Universidade Estadual do Ceará (1989), Especialização em Filosofia Política pela Universidade Estadual do Ceará (1990), Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (1993), Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (1997), Pós-Doutorado em Artes Cênicas, pela Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (2002) e Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Paraíba (2011 – 2012) . Atualmente é professor associado IV, do Departamento de Fundamentos da Educação, da Universidade Federal do Ceará. Tutor do PET Pedagogia da UFC. É lider do Grupo de Pesquisa de História e Memória da Educação do CNPq – NHIME. Coordena a Linha de Pesquisa de História e Memória da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Filosofia da Educação, História da Educação e Antropologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Filosofia da Educação Contemporânea (Nietzsche e Foucault) e História e Memória da Educação (Biografias, Memória/Esquecimento) e Antropologia da Educação (disciplinamento do corpo, sexualidade/prostituição e Práticas de escrita na cadeia e cultura negra/capoeira).Editor da Revista Educação em Debate do PPGEB/FACED/UFC e da Coleção Diálogos Intempestivos da EUFC. E-mail: [email protected] Josier Ferreira da Silva – Licenciado em Geografia (1989), Licenciado em História (1995) pela Universidade Regional do Cariri – URCA. Especialista em Análise Ambiental Urbana pela Universidade Estadual do Ceará – UECE e em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente – pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UERN/URCA. Mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN/ PRODEMA, (2001) e Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pós-doutorando em Educação pela

Universidade Federal da Paraíba – UFBA. Professor Associado da Universidade Regional do Cariri – URCA. E-mail: [email protected] Keila Andrade Haiashida – Possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará (1999) e Mestrado em Educação também pela Universidade Federal do Ceará (2004) é doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará, professora assistente da Universidade Estadual do Ceará. Tem experiência na área de Educação, principalmente em educação especial, gestão e avaliação do Ensino Superior. Atualmente pesquisa espaço, cultura e educação. E-mail: [email protected] Marcelo Eduardo Leite – Professor de estudo em Fotografia e Fotojornalismo na Universidade Federal do Cariri. Possui Bacharelado em Ciências Sociais pela UNESP (1998), Licenciatura em Ciências Sociais pela UNESP (1997), Mestrado em Sociologia pela UNESP (2002) e Doutorado em Multimeios pela UNICAMP (2007). É filiado à Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. E-mail: [email protected] Maria de Lourdes Carvalho Neta – Possui graduação em Geografia (Licenciatura Plena e Bacharelado) pela Universidade Federal do Ceará e mestrado em Geografia pela mesma instituição. Atualmente é professora do Departamento de Geociências/Curso de Geografia da Universidade Regional do Cariri e Coordenadora do Laboratório de Geoprocessamento – LABGEO. Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia instrumental, atuando principalmente nos seguintes temas: geotecnologias e ensino. E-mail: [email protected] Naiana Paula Lucas dos Santos – Geógrafa graduada em Licenciatura pela Universidade Estadual do Ceará. Atualmente mes-

tranda do Programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da Universidade Estadual do Ceará- PROPGEO e membro do Grupo de Pesquisa em Espaço, Cultura e Educação – GPECED. E-mail: [email protected] Paulo Wendell Alves de Oliveira – Graduado em Licenciatura de Geografia pela Universidade Regional do Cariri – URCA (2012), atualmente Discente de Mestrado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, participante do Laboratório de Pesquisa em Estudos do Espaço, Cultura e Educação (LAPECED – UECE), do Laboratório de Pesquisa em Espaço, Memória e Cultural aplicado a Educação (LAPEMCE – URCA) e do Laboratório de Narrativas, Fotoetnográficas e de Fotografia Documental – Campus Cariri (UFC). Tem experiência na área de Geografia, com ênfase nas áreas: Memória das cidades, Geografia Histórica, Educação (Ensino de Geografia); Espaço e Cultura e Educação Ambiental, atuando principalmente nos seguintes temas: Memória das Cidades, educação, ensino de geografia, Geopark Araripe, educação ambiental , espaço e cultura e PIBID. E-mail: [email protected] Otávio José Lemos Costa – Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Possui Mestrado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual do Ceará, lecionando no curso de graduação e no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UECE. Desenvolve pesquisas na área de Geografia Cultural, especificamente voltado para as temáticas da religião, paisagem, lugar e patrimônio cultural. E-mail: [email protected] Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior – Possui graduação em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (1992), Mestrado em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (1999), Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Ceará (2006) e Pós-Doutorado em Educação pela Universidade Federal da Paraí-

ba (2012). É Professor Adjunto do curso de Graduação em Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará. E-mail: [email protected] Rejane Maria de Souza – Atualmente é aluna do curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em geografia na Universidade Estadual do Ceará e partcipa do Laboratório de Pesquisas em Espaço, Cultura e Educação da mesma universidade. E-mail: [email protected] Romeu Duarte Junior – Graduado em Arquitetura e Urbanismo pelo curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará-UFC em 1985. Possui Mestrado (2005) e Doutorado (2012) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. É Professor Adjunto Nível 1 do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, onde ensina desde 1991 e orienta trabalhos finais de graduação. Tem experiência nas áreas de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em História da Arquitetura e do Urbanismo, Teoria de Arquitetura e Urbanismo, Projeto de Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio Cultural Edificado. É também compositor, escritor e cronista. E-mail: [email protected] Sayonara Cardoso Copque – Graduanda em Geografia da Universidade Estadual da Bahia, colaboradora do Grupo Recôncavo. Bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) 2012-2013. Trabalha com a temática Geografia, Candomblé e Meio Ambiente. Trabalhos apresentados em eventos nacionais e internacionais, a exemplo do I Simpósio Nacional de Estudos Culturais e GeoEducacionais ( I SINECGEO) UECE em Fortaleza- CE e o VI Fórum Internacional 20 de Novembro UFRB em Cruz das Almas-BA. E-mail: [email protected]

Stanley Braz de Oliveira – Doutorando em Geografia pelo Programa de Pós- Graduação em Geografia- PROPGEO da Universidade Estadual do Ceará, Mestre pelo Programa de Pós- Graduação em Geografia- PROPGEO, da Universidade Estadual do Ceará- UECE ,Especialista em Ciências Humanas e e suas Tecnologias, pela Faculdade Internacional de Curitiba – FACINTER, Educação, Trânsito e Meio Ambiente pela Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade Montenegro,Graduado em Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade Estadual do Piauí (2004). Diretor Editorial da Revista Focus Insight. Possui experiência em Gestão de Instituição de Ensino Superior, Coordenação de Curso, Afinidade com a disciplina de Metodologia da Pesquisa Cientifica, Sociologia, Sociologia da Educação, Área de pesquisa: Espaço, Cultura e Educação. E-mail: [email protected] Zeny Rosendahl – Professora Associada do Departamento de Geografia Humana – UERJ. Coordenadora do Programa de Estudos Avançados em Geografia, Religião e Cultura – PEAGERC e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Espaço e Cultura – NEPEC. E-mail: [email protected]

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior..........................21 O RITUAL DA PROCISSÃO SACRALIZANDO O ESPAÇO: A PAISAGEM RELIGIOSA Zeny Rosendahl...........................................................................25 CAPÍTULO 1 Diálogos entre Educação, Geografia, História e Arquitetura NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO NO CEARÁ Romeu Duarte Junior.................................................................37 FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DE PATINHO FEIO À MUSA COBIÇADA Francisco Egberto de Melo.........................................................55 COMO OS MITOS ACERCA DO CEARÁ E DO SER CEARENSE CIRCULAM ENTRE AS FESTAS COMUNITÁRIAS E A CULTURA ESCOLAR José Edvar Costa de Araújo...................................................... 68 O SERTÃO, AS FAZENDAS DE GADO E A OCUPAÇÃO ESPACIAL DA CAPITANIA DO CEARÁ Francisco Ari de Andrade...........................................................79 CORPO, PROSTITUIÇÃO E EDUCAÇÃO SEXUAL NO TERRITÓRIO DO PRAZER José Gerardo Vasconcelos Francisca Karla Botão Aranha................................................. 96 CAPÍTULO 2 Espaço, Religião e Festas Populares TEMPOS DE FESTA: ESPACIALIDADES E SIMBOLISMOS Otávio José Lemos Costa.......................................................... 115 A CIDADE E A CONSTRUÇÃO DA CULTURA NOS ESPAÇOS FESTIVOS CATÓLICOS Josier Ferreira da Silva............................................................128

PEREGRINAÇÃO RURAL AO SANTUÁRIO METROPOLITANO: O LUGAR DA RELIGIOSIDADE TURÍSTICA DE NATÉRCIA-MG EM APARECIDA-SP Christian Dennys Monteiro de Oliveira...................................146 A ORGANIZAÇÃO DOS AFRODESCENDENTES ATRAVÉS DO CANDOMBLÉ Emanoel Luís Roque Soares Sayonara Cardoso Copque ......................................................165 (IN)VISIBILIDADES DE ESPAÇOS FESTIVOS: A CENTRALIDADE DA FESTA DE SANTO ANTÔNIO E AS MANIFESTAÇÕES PERIFÉRICAS DE BARBALHA – CEARÁ Antônio Igor Dantas Cardoso..................................................179 CAPÍTULO 3 Fotografia, Paisagem, Literatura e Geografia GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR Antonio Carlos Queiroz Filho...................................................199 PAISAGENS EM MOVIMENTO DA CICERÓPOLIS DOCUMENTAL Glauco Vieira Fernandes.......................................................... 211 BEIRA-SOL: A POÉTICA DE UMA CIDADE Carlos Augusto Viana.............................................................. 236 A PAISAGEM E A FOTOGRAFIA ATRAVÉS DE NOVOS ESTUDOS DA GEOGRAFIA CULTURAL Naiana Paula Lucas dos Santos.............................................. 254 O BENFICA DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA PAISAGEM ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS Rejane Maria de Souza Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior....................... 269 PAISAGEM, MOVIMENTO, PERFORMANCE Jörn Seemann.......................................................................... 287

CAPÍTULO 4 Políticas Educacionais na Dinâmica Espacial A EDUCAÇÃO COMO PRÁXIS TEOLÓGICA NA CONSOLIDAÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO PRESBITERIANISMO EM GARANHUNS-PE Carlos Roberto Cruz Ubirajara............................................... 307 AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DA IGREJA CATÓLICA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DA CIDADE DE TERESINA-PI Stanley Braz de Oliveira.......................................................... 334 AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DESBRAVANDO A FLORESTA Ednéa do Nascimento Carvalho.............................................. 350 UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL Keila Andrade Haiashida........................................................ 362 CAPÍTULO 5 Cidade, Memória e Patrimônio ESPAÇO URBANO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL NAS FOTOGRAFIAS DO SÉCULO XIX Marcelo Eduardo Leite.............................................................381 A CIDADE É A ROÇA: POLÍTICA E CULTURA NO CARIRI CEARENSE DE HOJE Edson Soares Martins Antônio Bilar Gregório Pinho Fernanda Lima Fernandes...................................................... 398 OS TRILHOS E O URBANO: A GEO-HISTÓRIA DO MUNICÍPIO DE CEDRO-CE Antônio Kinsley Bezerra Viana................................................414 ESPAÇO E MEMÓRIA NA REPRESENTAÇÃO HISTÓRICOCULTURAL MATERIALIZADA NA PAISAGEM DO NÚCLEO DE FORMAÇÃO HISTÓRICO DA CIDADE DE JUAZEIRO DO NORTE – CE Paulo Wendell Alves de Oliveira............................................. 428

CAPÍTULO 6 Prática de Ensino e Livro Didático ATLAS ESCOLAR MUNICIPAL: PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO-PEDAGÓGICO PARA OS ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA Antônia Carlos da Silva Maria de Lourdes Carvalho Neta........................................... 447 POR OUTRAS PRÁTICAS DE ENSINO DE HISTÓRIA Cícero Joaquim dos Santos.......................................................461

APRESENTAÇÃO O leitor tem em mãos uma coletânea formada por textos que contemplam, numa perspectiva transversal e pluralista, a complexidade dos fenômenos culturais e geoeducacionais, apresentados na reunião anual do Grupo de pesquisa do CNPq de Espaço, Cultura e Educação – GPECED que se consubstancia no II Simpósio Nacional de Estudos Culturais e Geoeducacionais e no V Encontro Cearense de Geografia da Educação (ECEGE). Percorre-se, aqui, da via da pesquisa geo­ gráfica, agregando às reflexões nela colacionadas, achegas da percepção do geógrafo à do educador, ao lado de tantas outras contribuições das mais diversas áreas de conhecimento. As páginas que se seguem reúnem textos sobre a cultura nos seus mais variados aspectos prestigiando, também, a produção acadêmica sobre a temática geoeducacional, incluindo o exame de uma diversidade temática que vai do ensino de geo­grafia e livro didático; instituições e políticas educacionais; metodologias da pesquisa e outros campos do conhecimento humanístico, inseparáveis da educação, conforme os eixos temáticos do Grupo de Pesquisa em Espaço, Cultura e Educação do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UECE. O GPECED nasceu no Programa de Pós-Graduação em Geografia, tendo realizado, anualmente, encontros regionais e, agora, o nosso segundo nacional, eventos relacionados a cultura e educação e sua relação com o espaço geográfico. Os eventos anteriores realizaram-se em Fortaleza (2009/UFC), Sobral (2010/UVA), Fortaleza (2011 e 2012/UECE) e agora, Crato (2013/URCA). As múltiplas percepções teóricas e metodológicas com as quais o leitor irá se deparar resultam do esforço de superação dos estudos verticais e fragmentados, como dito, empre-

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endido pelo GPECED, dos obstáculos epistemológicos a que aludiu Gastón Bachelar, objetivando romper a segregação dos paradigmas descrito por Thomas Kuhn, perigo sempre presente. O referido esforço foi estimulado pelo reconhecimento da complexidade do fenômeno educacional, seja na perspectiva geográfica, seja pelo prisma da história. O objeto dos estudos relatados neste analecto é a cultura e a educação em sentido restrito e também em sua acepção ampla, contemplando-se assim os mais diversos escaninhos do aprendizado da cultura, da descoberta de limitações e potencialidades do educando, com vistas à superação das primeiras e reforço das últimas. Tal orientação ensejou a reunião de um amplo e variado leque de estudos. Os mais diversos interesses de educadores, geógrafos e historiadores e das pessoas letradas em geral, certamente estarão presentes entre os textos reunidos neste espicilégio, abrangendo desde a cultura popular até a erudita. Apresentamos, agora a programação do II SINECGEO e V ECEGE: yy Conferência de abertura com o tema: o ritual da procissão sacralizando o espaço: a paisagem religiosa, tendo como conferencista a professora doutora Zeny Rosendahl; yy Diálogos entre Educação, Geografia, História e Arquitetura, tendo como palestrantes os professores Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Romeu Duarte Junior, Francisco Egberto de Melo, José Edvar Costa de Araújo, Francisco Ari de Andrade e José Gerardo Vasconcelos; yy Espaço, Religião e Festas Populares, tendo como palestrantes os professores Otávio José Lemos Costa, Josier Ferreira da Silva, Christian Dennys Monteiro de Oliveira, Emanoel Luís Roque Soares e Antônio Igor Dantas Cardoso;

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yy Fotografia, Paisagem, Literatura e Geografia, tendo como palestrantes os professores Antonio Carlos Queiroz Filho, Glauco Vieira Fernandes, Carlos Augusto Pereira Viana, Naiana Paula Lucas dos Santos, Rejane Maria de Souza e Jörn Seemann; yy Políticas Educacionais na Dinâmica Espacial, tendo como palestrantes os professores Carlos Augusto de Amorim Cardoso, Carlos Roberto Cruz Ubirajara, Stanley Braz de Oliveira, Ednéa do Nascimento Carvalho e Keila Andrade Haiashida; yy Cidade, Memória e Patrimônio, tendo como palestrantes os professores Marcelo Eduardo Leite, Edson Soares Martins, Antônio Kinsley Bezerra Viana e Paulo Wendell Alves de Oliveira e finalizando, yy Prática de Ensino e Livro Didático, tendo como palestrantes os professores Maria Adailza Martins de Albuquerque, Maria Soares da Cunha, Cícero Joaquim dos Santos e Antônia Carlos da Silva. yy Ressalte-se o decisivo apoio da Reitoria da Universidade Regional do Cariri, à frente a professora Antonia Otonite de Oliveira Cortez, Expresso Guanabara, Viação Urbana e FLATED – Faculdade Latino-Americana de Educação. yy Registre-se o esforço e a dedicação dos coordenadores do evento, professores Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior (UECE), Jörn Seemann (URCA), Josier Ferreira da Silva (URCA), Christian Dennys Monteiro de Oliveira (UFC) e Stanley Braz de Oliveira (UESPI/UECE), juntamente com o apoio da administração do Magnífico Reitor da UECE, professor doutor José Jackson Coelho Sampaio. Fortaleza, 14 de novembro de 2013. Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior

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O RITUAL DA PROCISSÃO SACRALIZANDO O ESPAÇO: A PAISAGEM RELIGIOSA1 Zeny Rosendahl Olha lá vai passando a procissão Se arrastando que nem cobra pelo chão As pessoas que nela vão passando Acreditam nas coisas lá do céu As mulheres cantando tiram versos E os homens escutando tiram o chapéu Eles vivem penando aqui na Terra Esperando o que Jesus prometeu E Jesus prometeu coisa melhor [...] (Gilberto Gil)

A letra da música “A procissão”, de Gilberto Gil, músico baiano, retrata e nos fornece a noção da dimensão simbólica do poder do sagrado no espaço. A poesia representa o ponto de vista do artista ao ver a paisagem religiosa materializada no espaço. Na análise geográfica “a espacialidade é uma condição fundamental ao fenômeno da visibilidade” (GOMES, 2013, p.36). As lições de Paulo Cesar da Costa Gomes sobre as condições gerais da visibilidade espacial podem ser reunidos em três principais elementos de análise: primeiro “dependerão das leituras do sentido que emergem da associação entre o lugar e o evento”; em segundo “dependerão também da possibilidade da morfologia do espaço do espaço físico” onde se mostra e “que deve ser capaz de garantir uma convergência dos olhares e a desejada captura da atenção”; e o terceiro elemento de análise é “que este lugar deve garantir a presença 1 Este artigo contem parte da fala apresentada no II Colóquio Literatura e Paisagem

(18 de outubro de 2013).

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de observadores sensíveis aos novos sentidos nascidos da associação entre o lugar e o evento que se apresenta.” (GOMES, 2013, p.37-38). Com base nos elementos de análise da visibilidade acima citado, e com a escolha do evento religioso a procissão, daremos neste artigo, importância à dimensão devocional impressa na paisagem religiosa. Na literatura brasileira destacamos autores que descrevem o cortejo da procissão nas cidades, especialmente nas cidades mineiras, destacando o desfile religioso e seus participantes. A dinâmica do estudo geográfico está em analisar o local escolhido, como também o lugar que ocorre o desfile, quem participa da procissão e quem aprecia o caminhar da procissão. Ao pensar literatura e paisagem para esse encontro e a sua relação entre a geografia e a religião, temática que gosto e venho me dedicando já algum tempo, resolvi seguir nesta reflexão. Escolher uma narrativa em que a paisagem religiosa estivesse presente foi o primeiro passo metodológico. O desafio estava bem visível no ver e sentir o religioso em Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, bem descrito em seu capitulo XVII intitulado D. Maria. Neste artigo vamos priorizar a paisagem religiosa com seus limites e suas relações com a sociedade da época do conto de Memórias de um sargento de milícias. Será uma reflexão geográfica da visibilidade do sagrado, em suas diferentes formas espaciais, que são marcas da religiosidade do grupo social que as constrói no espaço e tempo sagrado. O romance representará o exemplo empírico de nossa análise, ou seja, abordaremos a paisagem religiosa criada durante a procissão em Memórias de um Sargento de Milícias. Manuel Antônio de Almeida (1996) fala:

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Um dia de procissão foi sempre nesta cidade um dia de grande festa, de lufa-lufa, de movimento e de agitação; e se ainda é hoje o que os nossos leitores bem sabem, na época que viveram as personagens desta história a coisa subia do ponto.

A procissão é um ato de culto externo em que se manifestam com mais exuberância o sentimento religioso e a devoção popular, ela se destaca como o momento mais importante de uma festa religiosa na cidade ou durante uma romaria ao santuário visitado. As solenes procissões são práticas devocionais católicas impostas, ao longo do período colonial, como estratégia de conversão pelo clero, cujos membros eram considerados agentes oficiais da religião e auxiliares da Coroa na preservação da fé entre o povo. A procissão representa a passagem da Eucaristia pelas ruas da cidade. Essa solene celebração litúrgica do Corpus Christi destinava-se a exteriorizar os sentimentos religiosos de louvor, súplica, penitência ou agradecimento de modo a realçar a pompa das solenidades em torno do sagrado. A promoção da festa sagrada vem sendo ao longo dos séculos vinculada à Igreja Matriz. A paróquia fornece a função religiosa e valoriza a cidade ou o lugar do evento. A procissão foi e é um exercício da devoção que une sacerdotes e população num ritual que melhor concretiza o simbolismo de comunhão religiosa, cultural e social no espaço. O autor no texto destacado, ao falar de lufa-lufa e de agitação no dia da procissão refere-se ao cenário que acompanha a devoção. O comércio, a dança, e a feira livre coexistem, até hoje, no espaço profano diretamente vinculado ao sagrado (ROSENDAHL, 1996, 2012). Manuel Antônio de Almeida (1996) continua sua narrativa: Enchiam-se as ruas de povo, especialmente mulheres de mantilhas, armavam-se as casas, penduravam-se

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às janelas magníficas colchas de seda, de damasco de todas as cores, armavam-se coretos em quase todos os cantos. E quase tudo o que ainda hoje se pratica, porém em muito maior escala e grandeza, porque era feito por fé, como dizem as velhas desse bom tempo, porém nós diremos, porque era feito por moda, era tanto do tom enfeitar as janelas e portas em dias de procissão ou concorrer de qualquer outro modo para o brilhantismo das festividades religiosas, como ter um vestido de mangas de presunto, ou trazer à cabeça um formidável trepa-moleque de dois palmos de altura.

Na paisagem religiosa da procissão não era somente o desfile, a rua por onde passava as calçadas, as casas com suas janelas abertas com toalhas brancas dependuradas, como véus limpos e engomados, mostrando a beleza, o gesto refinado de seus moradores. A dimensão econômica e social do habitar, do morar da elite, na maioria das vezes uma maneira de compor e harmonizar o cenário do ritual da procissão fornecendo uma unidade visual à paisagem. A escolha do itinerário é e era fundamental ao sucesso da procissão. As ruas escolhidas tinham algum tipo de poder social e/ou político e retratavam este poder na paisagem. A paisagem religiosa que a procissão impõe pode ser compreendida em primeiro lugar por sua relação com a sociedade ou com o grupo social que a produziu, em segundo na ação dos que observam a procissão, em alguns casos não são os que têm a vestimenta da a “roupa da missa” como foi descrito, e nem foram selecionados para o desfile. Aqui temos aqueles que só querem conferir o evento. Enfim, todos têm sua posição e sua função na paisagem. Como ocorre nas festas religiosas, a procissão que imprime marcas da cultura local: os costumes alimentares, o baile, as vestimentas, os cantos e as músicas identitárias do

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lugar são práticas religiosas que compõem o evento. Neste sentido, esclarece-se que o fantástico da manifestação cultural herdada pela colonização portuguesa foi de ter transmitido as crenças e costumes religiosos pela propaganda da fé e o grupo religioso ter permitido que se preservasse o singular do lugar. Manuel Antônio de Almeida (1996) em continuação relata: Alguns haviam tão devotos, que não se contentavam vendo-a uma só vez, andavam de casa deste para a casa daquele, desta rua para aquela, até conseguir vê-la desfilar de principio a fim duas, quatro e seis vezes, sem o que não se davam por satisfeitos. A causa principal de tudo isto era, supomos nós, além talvez de outras, o levar esta procissão era uma coisa que não tinha nenhuma das outras: o leitor há de achá-la sem dúvida extravagante e ridícula, outro tanto nos acontece, mas temos obrigação de referi-la. Queremos falar de um grande rancho chamado das – Baianas – que caminha adiante da procissão, atraindo mais ou menos como os santos, os andores, os emblemas sagrados, os olhares dos devotos; era formado esse rancho por um grande número de negras vestidas à moda da província da Bahia, donde lhe vinha o nome, e que dançavam nos intervalos dos Deo-Gracias uma dança lá a seu capricho.

A paisagem, de fato, é uma maneira de ver, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma cena indicando uma relação entre os seres humanos e seu ambiente (COSGROVE, 2012). A compreensão das expressões impressas por uma cultura em sua paisagem é necessário ao decodificar a linguagem simbólica e os seus significados. Comungamos com as ideias da geografia cultural pós-80 ao afirmar que todas as paisagens são simbólicas, por menos aparentes que possam ser. No estudo da paisagem religiosa, consideramos a narrativa do texto fundamental para fazermos uma leitura a partir

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de várias dimensões de análise, oferecendo ao leitor a possibilidade de leituras diferentes e igualmente variadas do simbolismo impregnado na paisagem da procissão. Vamos destacar os estudos do geógrafo Augustin Berque (1998 [1984]). Para este autor é de fundamental importância nas ciências humanas e sociais o estudo da paisagem do ponto de vista cultural. A paisagem é marca, pois é reflexo do comportamento de um determinado grupo social, mas é também uma matriz, porque participa dos esquemas de percepção, de concepção e de ação, ou seja, é meio e condição de reprodução da cultura na paisagem. Insistimos no ver e sentir a procissão como marca e matriz das procissões portuguesas. O posicionamento dos integrantes da comunidade; dos visitantes no evento; dos fiéis e dos devotos na procissão é, ainda hoje, repetido no mundo católico, notadamente no catolicismo popular brasileiro (ROSENDAHL, 2012). Ao analisar as procissões portuguesas, Barroso (2004) elaborou um esquema hierárquico dos membros que delas participam e reforçam a ideia da fé aglutinada em diferentes funções e em alas. O esquema a seguir reflete essas alas. Na narrativa de Manuel Antônio de Almeida, ao se referir a ala das baianas, localizadas na frente da procissão, em posição ordenada de ala das baianas, oferece certa preocupação com a descrição do grupo social. As marcas da cultura no desfile dessas representantes da Província da Bahia estão na prática da dança e da vestimenta dos componentes da ala na procissão. Manuel Antônio de Almeida (1996), nos diz: As chamadas Baianas não usavam vestido: traziam somente umas poucas de saias presas à cintura, e que chegavam pouco abaixo do meio da perna, todos elas ornadas de magníficas rendas; da cintura para cima

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apenas traziam uma finíssima camisa, cuja gola e mangas eram também ornadas de renda; ao pescoço punham um cordão de ouro ou um colar de corais, os mais pobres eram de miçangas; ornavam a cabeça com uma espécie de turbante a que davam o nome de trunfas, formado por um grande lenço branco muito teso e engomado; calçavam umas chinelinhas de salto alto, e tão pequenas, que apenas continham os dedos dos pés, ficando de fora todo o calcanhar; e além de tudo isto envolviam-se graciosamente em uma capa de pano preto, deixando de fora os braços ornados de argolas de metal simulando pulseiras. [...] Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa.

Sem dúvida, a característica mais marcante destacada pelo autor foi a narrativa deslumbrante da extravagância da ala das baianas, pois para o viver religioso daquela época era essa pompa e o esplendor que possuíam enorme valor. O vestiário, não se pode negar, também pertencia à moda, ao status social, à arte e na paisagem. Faz parte da própria finalidade das roupas que a pompa e o esplendor prevaleçam sobre a beleza. A vaidade pessoal puxa a arte da moda para a esfera da sensualidade, do desejo do participante ser visto e apreciado. As festividades promovidas pela Igreja, na época do Brasil colônia tinham esse estilo graças à própria liturgia. A dignidade sagrada e a nobre solidez da cerimônia não são destruídas pelo transbordamento dos detalhes festivos do grupo social. A Igreja Católica Apostólica Romana teve a função social, política, além da religiosa no Brasil. As solenidades religiosas valorizavam o arraial e o povoado. Paralelamente, acentuava-se o catolicismo mais pessoal trazido pelos colonos portugueses: o da devoção. A Igreja Matriz era o território para a ação de conversão e a festa completava a função. O padre, à frente com o turíbulo prepara o caminho, qualifica o lugar do quotidiano, das práti-

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cas do profano em um lugar sacralizado pela procissão ao passar. A folia é parte integrante da procissão. A devoção é prática de intimidade com o extraordinário. Estudos demonstram que, além dos preparativos na paróquia, existe a seletividade espacial na construção do itinerário simbólico do cortejo. A paisagem retrata a procissão como um cortejo religioso público, com elementos do clero e do povo disposto de forma ordenada em alas que desfilam por um trajeto predeterminado: ruas, praças, avenidas, retornando para a igreja de que partiu ou encaminhando-se para outra que está à espera da chegada da procissão. Os visitantes e os observadores têm seu lugar fora das alas que compõem a procissão. Eles estão nas partes laterais ocupando uma possível moldura da paisagem religiosa, atentos à passagem do cortejo. Ao construir a paisagem religiosa tendo como base o conto XVII de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida podemos concluir com a cantiga tocada pelos músicos e cantada pelo povo: O Divino Espírito Santo É um grande folião, Amigo de muita carne, Muito vinho e muito pão.

Referências Bibliográficas ALMEIDA, M. A. de. Memórias de um sargento de milícias. 25. ed. São Paulo: Ática, 1996. BARROSO, P. Romarias de Guimarães: patrimônio simbólico, religioso e popular. Guimarães: Universidade do Minho, 2004. BERQUE, A. “Paisagem Marca – Paisagem Matriz: Elementos da Problemática para uma Geografia Cultural”. In: R.L. COR-

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RÊA e Z. ROSENDAHL (Orgs.). Paisagem, Tempo e Cultura Rio de Janeiro, EdUERJ, 1998, p.84-92. COSGROVE, D. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, Roberto Lobato e ROZENDAHL, Zeny (Orgs.). Geografia cultural: uma antologia, v. 1. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. p.219-237. GOMES, Paulo Cesar da Costa. O lugar do olhar: elementos para uma geografia da visibilidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. GIL, Gilberto. A procissão. Disponível em: http://letras.mus. br/gilberto-gil/46237/. Acesso em: 17 set 2013. ROSENDAHL, Z. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996 ______. História teoria e método em geografia da religião. Espaço e Cultura, n. 31, p.24-39. Rio de Janeiro, 2012.

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CAPÍTULO 1

Diálogos entre Educação, Geografia, História e Arquitetura

NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO EDIFICADO NO CEARÁ Romeu Duarte Junior

Os atos oficiais da preservação do patrimônio histórico-cultural no país1 se iniciaram em 1933, com o tombamento, por decreto presidencial, da cidade de Ouro Preto, uma das mais destacadas do ciclo do ouro havido no século XVIII em Minas Gerais. Deflagradas no âmbito federal sem o concurso de uma instância ou órgão especificamente voltados à sua promoção, mesmo assim, desde o seu nascedouro, as ações de proteção dos acervos culturais no Brasil, notadamente os de natureza edilícia, serão marcadas pelo cunho estatal, de clara inspiração francesa. Somente em 1937, com a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN (posteriormente Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN) no primeiro governo de Getúlio Vargas, é que o país passou a ter, na esfera federal, um órgão encarregado diretamente dessas responsabilidades. Criado como a base legal para a operação do recém-nascido órgão, o Decreto-Lei Nº 25/372, gerado no bojo da constituição outorgada de 1937, continua detendo essa condição, tendo sido mantido em vigor por todos os diplomas constitucionais subseqUentes. O caldo de cultura patrimonial 1 Anteriormente, dignos de nota, somente alguns poucos eventos: em 1920, Bruno

Lobo, presidente da Sociedade Brasileira de Belas Artes, encarrega o professor Alberto Childe, do Museu Nacional, da elaboração do anteprojeto de lei de defesa do patrimônio artístico nacional; em 1923, Luiz Cedro, deputado por Pernambuco, apresenta à Câmara dos Deputados o primeiro projeto com vistas a organizar a defesa dos monumentos artísticos e históricos do país; e em 1927, Francisco Góis Calmon, presidente estadual da Bahia, organiza a defesa do acervo histórico e artístico do Estado, criando a Inspetoria Estadual de Monumentos Nacionais. 2 Legislação esta que estabelece o tombamento como forma adequada de proteção para o patrimônio material.

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à sua volta é curioso: quem vai se ocupar da preservação do patrimônio cultural brasileiro, batendo ponto diariamente na repartição federal, serão os intelectuais que já respondiam pela renovação de nossas expressões artísticas. Com efeito, serão os pioneiros modernistas, em sua maioria mineiros, reunidos em torno do prestígio de Gustavo Capanema, então Ministro da Educação e Saúde, e em boa medida simpáticos às propostas do comunismo, que vão dar concretude às ideias do IPHAN. Começarão pelos inventários da arquitetura religiosa do período colonial, que lhes revelará a imensidão e a urgência de sua tarefa. De outra parte, será o conceito de “cidade-monumento”, elaborado a partir de sua própria condição de refinados estetas, que animará seu trabalho. Por este prisma, só serão alçadas à condição de patrimônio nacional aquelas manifestações arquitetônicas e urbanísticas produzidas sob o risco português, os materiais locais e o braço escravo, filiadas estilisticamente ao barroco. As cidades protegidas nesta etapa serão contempladas como obras de arte perfeitamente acabadas e consagradas, dignas de estudo e reverência, relegando-se a patamar bastante inferior as realizações de períodos posteriores, considerados como espúrias. Este era um momento em que os nossos pioneiros do IPHAN repudiavam o emprego no presente das linguagens historicistas europeias (neoclássico, ecletismo, Art Nouveau, Art Déco etc.) e procuravam encontrar nexos entre a produção construída dos séculos coloniais e a modernista, num esforço de continuidade de uma tradição construtiva e espacial. Como bem disse Castriota (2009, p.74), nesse período, considerada como expressão estética privilegiada, a cidade é abordada segundo critérios puramente estilísticos, ignorando-se completamente sua característica

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documental, sua trajetória e seus diversos componentes como expressão cultural de um todo socialmente construído...com isso, instaura-se ali, como de resto em todo o Brasil, uma prática de conservação orientada para a manutenção de conjuntos tombados como objetos idealizados, desconsiderando-se, muitas vezes, sua história real.

Serão os primeiros documentos preservacionistas de escala internacional, posteriormente conhecidos como cartas patrimoniais, que, de certa forma, balizarão o ideário e a ação dos modernistas preservacionistas brasileiros. A Carta de Atenas de 1933, um dos principais produtos teóricos do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM, apresenta em seu escopo, noções que estruturam essa forma de conceber o patrimônio construído. Baseando-se no princípio funcional das quatro “chaves do urbanismo”, a saber, habitar, trabalhar, recrear-se e circular, a carta vai tratar a preservação do patrimônio edificado por uma ótica higienista e a-histórica característica do Modernismo, já que, para seus redatores, a morte, que não poupa nenhum ser vivo, atinge também as obras dos homens...Nem tudo que é passado tem, por definição, direito à perenidade; convém escolher com sabedoria o que deve ser respeitado (apud CURY, 2004, p.52),

o que deixa claro que esta última ação caberia somente aos técnicos envolvidos com a construção da nova cidade industrial. É mister também reconhecer que a linha interpretativa dos grandes feitos e da contribuição dos “heróis” de nossa história, o que passou a ser conhecido como “história oficial”, determinou fortemente a compreensão e interpretação da trajetória histórica brasileira, na qual o povo, em sua miscelânea de classes sociais, raças, origens e credos, ainda não era reconhecido como seu principal protagonista. Daí a construção da

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imagem de um Brasil idealizado, com manifestações artísticas próprias, entendidas como dignas de proteção e valorização por parte dos pioneiros, em detrimento de outras não reconhecidas por estes como tal. As ações do IPHAN, consentâneas com essa orientação teórico-conceitual, vão, portanto, se concentrar nas regiões brasileiras que, para os intelectuais do patrimônio, expressavam de forma eloquente esse cenário imaginado. As cidades da administração colonial e imperial (Salvador e Rio de Janeiro) e as dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar (Recife, Olinda, João Pessoa), do ouro e das tropas (as urbes mineiras, paulistas e goianas), com sua diversificada, rica e por vezes suntuosa arquitetura, serão aquelas escolhidas para atendimento prioritário pelo órgão federal de preservação. Outros Brasis, seja pela ocupação territorial recente ou por manifestarem, ao ver desses estetas, valores arquitetônicos e urbanísticos de menor relevância, terão que aguardar na fila até que estes sejam compreendidos e aceitos como legítimos, operação que consumirá tempo razoável. É o que aconteceu, dentre outros estados-membros da federação situados nesta zona cinza, com o Ceará. O patrimônio edificado cearense só mereceu menção federal no final da década de 19503, com o tombamento em 1957, pelo IPHAN, da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Rosário, em Aracati. Emblemático do posicionamento teórico-conceitual anteriormente descrito é o tratamento concedido ao monumento por Lúcio Costa em seu parecer de tombamento, o que evidencia também os “cuidados” dispensados pelas instâncias administrativas locais ao acervo teoricamente posto sob a responsabilidade destas: 3

O primeiro bem tombado pelo IPHAN no estado foi a coleção arqueológica do Museu da Escola Normal, em 1941, atualmente sob a guarda do Museu do Ceará.

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Arquitetonicamente, a Matriz de Aracati não tem qualidades que justifiquem a sua inclusão nos Livros do Tombo Artístico como monumento nacional. Excetuados, externamente, o conjunto das portadas e internamente a banca de comunhão, é obra destituída de qualquer significação artística. Embora edificada no século XVIII, o seu interior só foi concluído no século XIX, quando também foi acrescentada a volta redonda às janelas do coro. O retábulo singelo do altar-mor, mandado vir de Pernambuco, data de 1814. O varandão do coro foi posto em 1852, pelo tesoureiro Capitão Melquíades da Costa Barros, etc. Contudo, como os governos estadual e municipal não se interessam pela preservação do patrimônio regional ou local, o recurso à intervenção federal visaria, no caso, unicamente impedir as obras desfiguradoras que se anunciam, dando-se assim satisfação ao louvável empenho demonstrado pela população e ao interesse manifestado pelo Dr. Gustavo Barroso4, sempre atento na defesa das obras antigas da sua terra (COSTA, apud PESSÔA, 2004, p.147).

Neste momento, o patrimônio não despertava o interesse dos escassos arquitetos existentes no estado, este destituído ainda de escolas de arquitetura ou de qualquer outra instituição de pesquisa nessa área. Em meados da década seguinte, essa situação iria se alterar. Mediante a condução do arquiteto José Liberal de Castro5, então professor da Escola de Engenharia da UFC, o 4

Gustavo Barroso (Fortaleza/CE, 1888 – Rio de Janeiro/RJ, 1959) exerceu as atividades de advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista. Ideólogo destacado da Ação Integralista Brasileira, foi diretor do Museu Histórico Nacional. Membro da Academia Brasileira de Letras, presidiu-a por diversas vezes. Em 1941, foi designado para coordenar os estudos e pesquisas relacionados ao folclore brasileiro, juntamente com Afrânio Peixoto e Manuel Bandeira. 5 José Liberal de Castro (Fortaleza/CE, 1926) é arquiteto e urbanista formado em 1955 na Faculdade Nacional de Arquitetura (atual FAU/UFRJ), ex-presidente do Departamento do Ceará do Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB/CE, fundador da Escola de Artes e Arquitetura da UFC, professor emérito da UFC e pioneiro do

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­ eará daria seus primeiros passos no sentido do reconheciC mento federal do seu acervo construído dotado de interesse cultural. Com bom trânsito junto às autoridades do IPHAN, foi comissionado pelo seu presidente, doutor Rodrigo Melo Franco de Andrade6, para cuidar do patrimônio cearense de valor nacional. Os trabalhos tiveram início em 1964 com os tombamentos do Theatro José de Alencar e da Casa Natal de José de Alencar, o primeiro remetendo aos experimentos de portabilidade da arquitetura metálica produzida na Europa, na esteira da Revolução Industrial, e exportados para o Brasil na passagem do século XIX para o XX, e o segundo, relacionado a uma singela edificação vernácula, verdadeiro repositório de técnicas construtivas retrospectivas. Em 1965, com a criação e o pleno funcionamento da Escola de Arquitetura e Artes da UFC7, Liberal de Castro passou a contar com apoio institucional e humano para realizar suas pesquisas relativas ao patrimônio construído cearense, de que é exemplo o notável esforço de inventariação de nossa arquitetura antiga, por ele conduzido até meados da década de 1980 com a ajuda dos seus muitos alunos. Data deste ano também o tombamento federal do Passeio Público, a velha Praça dos Mártires de Fortaleza, tipologia urbanística típica do Império e associada às transformações havidas nas cidades brasileiras decorrentes da vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808. Como elemento balizador dos tombamentos da arquitetura cearense, Liberal de Castro elegeu o processo sócio-histórico de ocupação do território da província, com suas patrimônio cultural edificado no Ceará. 6 Rodrigo Melo Franco de Andrade (Belo Horizonte/MG, 1898 – Rio de Janeiro/ RJ, 1969) exerceu as atividades de advogado, jornalista e escritor. Presidiu o IPHAN de 1937 a 1967. 7 Atual Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFC, ligado ao Centro de Tecnologia desta universidade.

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penosas lidas civilizatórias ligadas à formação e evolução dos núcleos urbanos. Enfatizando o papel aglutinador dos ciclos econômicos havidos nos séculos XVIII e XIX, respectivamente o do charque e o do algodão, e das ribeiras dos principais cursos d’água (Acaraú e Jaguaribe), desenvolveu uma linha de raciocínio e operação arrimada tanto no modus faciendi da “fase heróica”8 do IPHAN quanto em uma história feita por homens sem rosto, nome ou sobrenome, na linha da narrativa histórica de um Capistrano de Abreu9. Sob essa ótica, passam a ser investigadas nossas primeiras aglomerações humanas, com destaque para Aracati, Aquiraz, Fortaleza, Icó e Sobral. Em 1968, o governo do Estado do Ceará cria a Secretaria Estadual da Cultura, que já nasce com um serviço de patrimônio dotado de atribuições técnicas, legais e administrativas estruturadas pela Lei Nº 9.109/6810. Portanto, mesmo antes da realização dos Compromissos de Brasília e Salvador, promovidos pelo IPHAN respectivamente em 1970 e 1971, os quais, claramente influenciados pelos ditames preservacionistas constantes das Normas de Quito11, motivaram os governos estaduais a criarem secretarias estaduais de cultura e órgãos específicos de patrimônio cultural, o Ceará passou a contar com uma instância voltada especialmente para esta tarefa no âmbito estadual. Como se verá, por uma série de razões, será 8

Para Lima (1997), “Até os anos 1960, a idéia que se fazia da arquitetura como patrimônio cultural era ortodoxa e calcada sobre conceitos estratificados na fase “heróica” do IPHAN, onde as estéticas do colonial, do barroco, do neoclassicismo e do Movimento Moderno representavam um sólido modelo”.  9 Capistrano de Abreu (Maranguape/CE, 1853 – Rio de Janeiro/RJ, 1927) é notável historiador brasileiro, com produção registrada também nas áreas de etnografia e linguística. As principais características de sua obra são a rigorosa pesquisa das fontes consultadas e uma visão crítica dos fatos históricos. 10 Substituída pela Lei Nº 13.465/04. 11 Evento realizado pela Organização dos Estados Americanos – OEA na capital equatoriana, em 1967, que teve como objetivo discutir a “conservação e utilização de monumentos e sítios de interesse histórico e artístico” (apud CURY, 2004. p.105).

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bastante deficiente a ação do Estado neste campo, gerando uma dívida para com o reconhecimento e a salvaguarda de suas legítimas manifestações culturais. A década de 1970 se inicia com a liderança do órgão federal de preservação. Como reflexo da política nacional de patrimônio, consubstanciada nas ações do Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas – PCH12, são elaboradas, de modo preliminar, propostas de tombamento por parte do IPHAN para os sítios históricos de Aracati e Icó, as quais só foram realmente finalizadas e levadas a efeito no final da década de 1990 e no início da década de 2000. São tombadas as casas de câmara e cadeia de Quixeramobim (1972), Caucaia (1973) e Icó (1975)13, programas edilícios do período colonial relacionados à administração e à segurança das vilas. O prédio da antiga Assembléia Provincial14, em Fortaleza, projetado por Adolfo Herbster15, completa a lista de imóveis públicos protegidos pelo IPHAN naquele período (1973), revelando o pendor de então pela preservação de edifícios de inequívoca relevância histórica, estética e social, mas com funções que, por si sós, já garantiriam, de certa forma, sua integridade física. A nota pitoresca vai para o tombamento, em 1974, da fachada da Igreja Matriz de Sant’Anna, em Iguatu, solicitação 12

O PCH foi criado em 1973 e incorporado à estrutura administrativa do IPHAN em 1979. Primeiro programa oficial de preservação urbana no país, visava prioritariamente à recuperação das cidades históricas do Nordeste pela via da atividade turística como fator de revitalização urbana. 13 Todas mantendo, no período assinalado, as funções de Câmara Municipal e cadeia pública. 14 À época, ocupado pela Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, e hoje pelo Museu do Ceará. 15 Adolfo Herbster (Pernambuco, 1820 – Fortaleza/CE, 1893), arquiteto, exerceu as atividades de engenheiro da Câmara e da Província, tendo produzido notável documentação cartográfica sobre Fortaleza, tais como as suas plantas de 1852 (Planta da Cidade de Fortaleza), 1859, 1875 (Planta Topográfica da Cidade de Fortaleza e Subúrbios) e 1888 (Planta da Cidade de Fortaleza Capital da Província do Ceará).

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de conterrâneos de prestígio intelectual16 face à iminente execução de obras de reforma no templo, que o descaracterizariam completamente, propostas pelo titular da Diocese17. Os anos de 1980, no âmbito da proteção do patrimônio edificado cearense, serão marcados por várias novidades. A primeira delas é a implantação, em 1983, de uma delegacia regional do IPHAN no estado, a 3ª DR18, com jurisdição também no Rio Grande do Norte, cuja direção caberá ao arquiteto Domingos Linheiro19. A arquitetura vernácula cearense será objeto de inventariação por parte da 3ª DR/IPHAN, iniciando-se pela encontrada na Região Metropolitana de Fortaleza. A repartição recém-criada começará também a executar exemplares obras de restauro, tais como as efetuadas na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Almofala, em Itarema, e no Mercado da Carne, em Aquiraz. Os tombamentos federais realizados na década em apreço dão continuidade à práxis do período “heróico”: são protegidos o Mercado da Carne (1984), em Aquiraz; a Casa de Câmara e Cadeia de Aracati (1980); a Igreja de Nossa Conceição de Almofala (1983), em Itarema; o Palacete Carvalho Mota (1983), em Fortaleza; e o açude do Cedro (1984), em Quixadá, este de cunho paisagístico, talvez a grande ousadia do momento. A atividade de proteção, por parte da representação do IPHAN no Ceará, só será retomada 14 anos depois, com os tombamentos dos sítios históricos. Mas a boa notícia do período é o começo das atividades de proteção do patrimônio cultural na esfera estadual, com os 16

Alcântara Nogueira e Cláudio Martins, conforme depoimento do professor arquiteto José Liberal de Castro. 17 Dom José Mauro Ramalho de Alarcón y Santiago, primeiro bispo de Iguatu. 18 Posteriormente 3ª Superintendência Regional do IPHAN, abrangendo os estados do Ceará e Piauí, e atualmente IPHAN/CE. 19 Domingos Cruz Linheiro (Taperoá/BA, 1945), é arquiteto e urbanista formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia em 1969.

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tombamentos da antiga Casa de Detenção (1982), da Secretaria da Estadual da Fazenda (1982), da Estação Ferroviária João Felipe (1983), do Farol do Mucuripe (1983), da Igreja de Nossa Senhora do Rosário (1983), da Agência Centro da Caixa Econômica Federal (antigo Palacete Ceará) (1983), do Palácio da Luz (atual sede da Academia Cearense de Letras) (1983), em Fortaleza; da Casa de Câmara e Cadeia (atual Museu Sacro São José de Ribamar) (1983) e da Igreja de São José de Ribamar (1983), em Aquiraz; do Museu Jaguaribano (1983), em Aracati; do Hotel Casarão (1983), em Barbalha; do Teatro da Ribeira (1983), em Icó; e do Teatro São João (1983), em Sobral (1983). A grande quantidade dos atos de proteção não esconde os mesmos propósitos e conceitos empregados nesse mesmo mister pelo órgão federal: são sempre imóveis destacados, em sua maioria públicos ou pertencentes à Igreja Católica, exemplares de uma arquitetura culta e relacionados às elites. A década de 1990 se abre com a consideração da relevância da cultura e, por conseguinte, da preservação do patrimônio cultural, como função ligada à dinâmica urbana e ao desenvolvimento econômico e social, não mais como algo acessório ou mero enfeite administrativo. As obras de restauração do Theatro José de Alencar, levadas a efeito em 199020, até hoje a intervenção do gênero de maior vulto realizada no estado, evidenciaram essa nova condição, mesmo assim, às vezes esquecida pelas gestões municipais e estaduais. Seguem-se os tombamentos no âmbito estadual: o Arquivo Público (antigo Solar Fernandes Vieira) (1995), o Banco Frota & Gentil (1995), o Cinema São Luiz (1991), a sede do IPHAN/ 20

Executadas durante a gestão de Violeta Arraes quando Secretária Estadual da Cultura, na primeira administração de Tasso Jereissati como governador do estado do Ceará.

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CE (antiga Escola Normal) (1995), a Praça General Tibúrcio (1991) (também conhecida como Praça dos Leões) e a SUCAP/ COELCE (antigo Hotel do Norte) (1995), em Fortaleza; a Casa de Câmara e Cadeia de Barbalha (1995); e a Igreja de Nossa Senhora da Soledade (1991), em São Gonçalo do Amarante. Com a criação, em 1997, da Lei Nº 8.02321, a Prefeitura Municipal de Fortaleza formaliza a sua responsabilidade quanto à proteção do patrimônio cultural com um diploma legal específico, decorrência da Constituição Federal de 198822. Anteriormente, os atos de proteção eram realizados por leis municipais específicas, abordando a preservação caso a caso. Dessa forma, foram protegidos a Capela de Santa Therezinha (1986), o Estoril (1986), os espelhos das lagoas de Messejana e Parangaba (1987), o Riacho Papicu e suas margens (1988), o Teatro São José (1988) e a Ponte dos Ingleses (1989), na gestão da prefeita Maria Luiza Fontenelle23; o Parque da Liberdade (também conhecido como Cidade da Criança) (1991), na gestão do prefeito Juraci Magalhães24; e a Feira de Artesanato da Beira-Mar (1995), na gestão do prefeito Antônio 21

Posteriormente substituída pela Lei Nº 9.347/2008. “Título III – Da Organização do Estado – Capítulo II – Da União – Art. 23 – É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens, naturais e os sítios arqueológicos; IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural; V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência; Capítulo IV – Dos Municípios – Art. 30 – Compete aos Municípios: IX – promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988). 23 Maria Luiza Menezes Fontenelle (Quixadá/CE, 1942), socióloga e professora universitária, exerceu o mandato de prefeita municipal de Fortaleza no período de 1986 a 1989, tendo sido a primeira mulher a ser eleita para o cargo, bem como a primeira gestora de uma capital brasileira eleita pelo Partido dos Trabalhadores. 24 Juraci Vieira de Magalhães (Senador Pompeu/CE, 1931 – Fortaleza/CE, 2009), médico, exerceu o mandato de prefeito municipal de Fortaleza em três períodos, a saber, de 1990 a 1992, de 1997 a 2000 e de 2001 a 2004. 22

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Cambraia25. Esses tombamentos revelam uma intenção de valorizar, além de paisagens notáveis de Fortaleza, espaços utilizados no cotidiano pelos moradores da cidade, todos de essência simbólica e afetiva, alguns mesmo de forte apelo popular, não se centrando propriamente em seus predicados arquitetônicos ou urbanísticos. Cumpre destacar também que, apesar da determinação constitucional, são ainda muito poucos os municípios cearenses que desenvolvem gestões oficiais no sentido da preservação do seu patrimônio cultural26, razão da diminuta importância que a cultura ainda detém nas administrações municipais em nosso estado. Os anos de 1990 vão ser marcados também pela emergência, no Brasil, do conceito de patrimônio imaterial no cenário da preservação cultural. Consideradas desde o início dos trabalhos do IPHAN nesse campo, merecendo inclusive a realização de extraordinárias pesquisas por parte de intelectuais do porte de Mário de Andrade e de Luís da Câmara Cascudo, suas manifestações (celebrações, formas de expressão, saberes e fazeres e lugares) e os meios necessários à sua salvaguarda, apesar da menção constante da Constituição Federal de 198827, ainda não tinham um diploma legal específico, o que irá ocorrer em nível federal com a criação do Decreto Nº

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Antônio Elbano Cambraia (Senador Pompeu/CE, 1942), economista e administrador, exerceu o mandato de prefeito municipal de Fortaleza no período de 1993 a 1996. 26 Itapipoca, Maranguape e Sobral são exemplos de municípios que têm leis específicas de preservação do patrimônio cultural e bens protegidos. 27 “Título VIII – Da Ordem Social – Capítulo III – Da Educação, da Cultura e do desporto – Seção II – Da Cultura – Art. 216 – Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I – as formas de expressão; II – os modos de criar, fazer e viver; III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988).

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3.551, no ano de 200028. Em 1997, em Fortaleza, o IPHAN promove o seminário internacional “Patrimônio imaterial: estratégias e formas de proteção”, evento que balizará a elaboração do decreto anteriormente mencionado e que teve no documento intitulado “Carta de Fortaleza” a sua expressão máxima. Contudo, serão os tombamentos federais dos sítios históricos cearenses a realização de maior envergadura da década. Efetuados de forma tardia e protegendo trechos de cidades já bastante prejudicadas pela descaracterização e destruição de vários edifícios e espaços significativos, iniciam-se com o de Icó, em 1998. Posteriormente, em 1999, o de Sobral, reclamado por um abaixo–assinado com mais de duas mil assinaturas encaminhado ao IPHAN/CE. Na sequência, os de Aracati (2001) e Viçosa do Ceará (2002), este precedido em poucos meses pelo tombamento da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção. Se os tombamentos de Icó, Aracati e Viçosa do Ceará foram efetuados tomando-se por base os processos sócio-históricos de formação e evolução dessas cidades e o seu rebatimento em tipologias arquitetônicas e morfologias urbanas de maior interesse, com rigor na seleção do acervo edificado passível de proteção, o de Sobral foi marcado pela vinculação do urbano à sua dinâmica funcional, à sua forma atual e às principais referências culturais aí existentes, elementos estes definidores da preservação. Com efeito, partiu-se do princípio que o patrimônio a ser preservado em Sobral não se compunha apenas das expressões materiais dos processos históricos e culturais aí ocorridos mas também das manifestações culturais produzidas por esses processos (DUARTE JR., 2012, p.336), 28 Legislação esta que estabelece o registro como forma apropriada de salvaguarda

do patrimônio imaterial.

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o que diz da complexidade da pesquisa elaborada como base para a efetuação do tombamento do sítio histórico sobralense, muito inspirada nos cânones da Nova Historiografia29 e nos moldes da “cidade-documento”30. As proteções dessas especiais áreas contribuíram sobremaneira para a problematização das questões urbanas no estado, colocando a preservação como uma função a ser considerada de forma obrigatória nos processos de planejamento urbano municipal. O novo século se inicia com a intensificação dos processos de proteção, principalmente no âmbito do município de Fortaleza. Procurando tirar o atraso do protagonismo da atuação municipal, a administração Fortaleza Bela, tendo à frente a prefeita Luizianne Lins31, deflagrou suas ações tombando os bens imóveis existentes na cidade protegidos nas esferas estadual e federal. Com o apoio do Conselho Municipal de Patrimônio Histórico e Cultural – COMPHIC, procedeu ao tombamento de diversos imóveis de escalas, tipologias e essências arquitetônicas variadas e à abertura de uma grande quantidade de processos de proteção edilícia32, estes em boa medida prejudicados pela falta de regulamentação de instrumentos urbanísticos de mediação entre a preservação e o mercado imobiliário e a atuação desconexa das instâncias 29

Corrente historiográfica surgida por volta de 1970 na França e correspondente à terceira geração da Escola dos Annales. Recusa a abordagem da História como simples narrativa e considera a participação efetiva dos indivíduos como elementos explicativos para os eventos históricos, enfatizando a objetividade. Seus principais nomes são Jacques Le Goff e Pierre Nora. 30 Conceito elaborado para a abordagem das áreas urbanas de interesse histórico-cultural que preconiza “o estudo das etapas de formação e desenvolvimento da cidade e a identificação das marcas dos processos históricos deixados no espaço” (SANT’ANNA, 1995, p.73). 31 Luizianne de Oliveira Lins (Fortaleza/CE, 1968), jornalista, exerceu o cargo de Prefeita Municipal de Fortaleza em dois períodos, a saber, de 2005 a 2008 e de 2009 a 2012. 32 Para conhecimento do acervo mencionado, consultar http://www.fortaleza. ce.gov.br/cultura/bens-tombados-em-nivel-municipal.

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municipais. O estado, mesmo à mercê de uma equipe técnica insuficiente, da inexistência de um órgão específico dotado de maior estrutura e de melhores condições de trabalho e da falta de uma política pública de patrimônio, ou melhor, da carência de vontade política para com este assunto, registrou um aumento de bens tombados33 no período da gestão do governador Lúcio Alcântara34, esforço este sem continuidade no governo posterior de Cid Ferreira Gomes35, expresso pelo funcionamento errático do Conselho Estadual do Patrimônio Cultural – COEPA. Na órbita federal, registrou-se apenas os tombamentos do conjunto de monólitos de Quixadá (2004), da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção (2008) e do Sítio Alagadiço Novo (2012), este em complementação à proteção da Casa de José de Alencar. Quais os desafios à proteção do patrimônio cultural edificado cearense? Se estas manifestações de arte e história ainda permanecem desconhecidas da maior parte do público é porque não há ainda obras de referência ou outros meios de promoção do acervo à disposição do interesse geral. Numa palavra: sabe-se ainda muito pouco sobre os marcos arquitetônicos e urbanísticos do Ceará. Permanecendo dissociado dos processos de desenvolvimento socioeconômico, o patrimônio não cumpre a sua função de “instrumento” (DUARTE JR., 2012, p.429) para a melhoria das condições de vida das comunidades, principalmente aquelas mais carentes, o que faz com que seja impositiva a sua consideração como ativo e 33 Para conhecimento do acervo mencionado, consultar http://www.secult.ce.gov.

br/index.php/patrimonio-cultural/patrimonio-material/bens-tombados. 34 Lúcio Gonçalo Alcântara (Fortaleza/CE, 1943), médico e escritor, dentre outras atividades como político, exerceu o cargo de Governador do Estado do Ceará no período de 2002 a 2005. 35 Cid Ferreira Gomes (Sobral/CE, 1963), engenheiro civil, exerceu o cargo de Governador do Estado do Ceará no período de 2006 a 2009, tendo sido reeleito para cumprir o mandato no período de 2010 a 2013.

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recurso fundamental, conforme estabeleceram as Normas de Quito, de maneira a que possa se consolidar como eminente função urbana e influir nos rumos dos planejamentos das cidades. Para tanto, faz-se mais que necessário que os municípios se organizem e estruturem para a montagem de uma política pública de patrimônio, que deverá se iniciar com um amplo trabalho de inventariação dos seus acervos, em largo escopo, pois, como disse muito bem o doutor Rodrigo Melo Franco de Andrade, “só se conhece o que se preserva e só se preserva o que se conhece”. Essa operação, realizada com o apoio do estado e do IPHAN, trará a lume expressões de arte, história e técnica que confirmarão a riqueza e a diversidade do nosso acervo construído, num momento em que o patrimônio se expande cronológica, tipológica e geograficamente, ampliando-se também o público interessado em seus assuntos. Para tanto, as ações dos conselhos municipais e do COEPA conformam-se como um ponto-chave, de forma a garantir essência democrática às decisões sobre o que proteger e preservar. De modo específico, a criação de um órgão estadual de patrimônio, nos moldes dos institutos existentes na Bahia e em Minas Gerais, autônomos e bem estruturados, preencherá a preocupante lacuna atual, resolvendo a dívida do estado para com essa faceta de nossa cultura. Na mesma linha, a atualização ou a criação das legislações patrimoniais, reconhecendo as peculiaridades e a complexidade das manifestações culturais e as maneiras apropriadas de salvaguarda, tendo em vista a existência do tombamento, do registro e da chancela36. Por fim, reconhecer que proteger e preservar são verbos de significados diferentes, mesmo operando sobre o mesmo 36 Forma específica de proteção das paisagens culturais, no âmbito federal, expressa

pela Portaria IPHAN Nº 127/2009.

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objeto; o primeiro se refere a um ato legal e distintivo que impõe uma tutela legal estatal sobre um determinado bem. O segundo diz respeito à manutenção e ao uso deste mesmo bem, à sua passagem pelo tempo e ao seu usufruto pela comunidade. Saibamos distingui-los e bem utilizá-los.

Referências Bibliográficas CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio cultural – conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo: Annablume, 2009. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: UNESP, 2002. CURY, Isabelle. Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro: Edições IPHAN, 2004. DIÓGENES, Beatriz Helena Nogueira e DUARTE JR., Romeu. Guia dos bens tombados do Ceará. Fortaleza: SECULT, 2006. DUARTE JR., Romeu. Novas abordagens do tombamento federal de sítios históricos – política, gestão e transformação: a experiência cearense. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2005. (Mestrado) ______. O Ceará e o patrimônio cultural. In Bonito pra chover – ensaios sobre a cultura cearense, CARVALHO, Gilmar de (Org.). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003. ______. Sítios históricos brasileiros: monumento, documento, empreendimento e instrumento – o caso de Sobral-CE. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2012. (Doutorado) FONSECA, Cecília Londres da. O patrimônio em processo; trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: edições UFRJ/IPHAN, 1997. LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Preservação do patrimônio: uma análise das práticas adotadas no Centro do Rio de

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Experiência e expectativa são os dois aspectos fundamentais utilizados por Koselleck (2002) para pensar o passado e o presente de um determinado tempo histórico e creio que são úteis para nos ajudar a refletir um pouco sobre o momento histórico que estamos vivendo no que diz respeito ao ensino das disciplinas escolares e sua relação com as ciências correlatas, especialmente quando pensamos na relação que se estabelece entre os cursos de licenciatura como espaços formação de professores e lugar de pesquisa. O artigo que vos apresento é resultante de uma reflexão sobre esta conturbada relação à luz das experiências de um passado recente com permanências bastante presentes na ­atualidade. É inegável que as áreas de ensino das diversas licenciaturas como História, Geografia, Matemática, Física, dentre outras, vêm se afirmando nos últimos anos nos espaços acadêmicos, não só como área de formação, mas, também, como objeto de pesquisa. De início, as pesquisas no campo ficaram concentradas nos programas de pós-graduação em educação. Não resta dúvida que a Educação ainda tem este domínio sobre estas pesquisas, mas, aos poucos, os programas de pós-graduação nas áreas específicas começam a desenvolver pesquisas no campo do ensino. O mesmo pode-se dizer nos cursos de graduação, quando os alunos dão seus primeiros passos como pesquisadores e professores. Em boa medida, esse diálogo teve seu crescimento nos últimos anos, notadamente nos governos Lula e Dilma, com os investimentos do governo federal em projetos de incentivo às licenciaturas, como, por exemplo, o Programa Institucional de

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Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e o Prodocência. Difícil, hoje, participarmos de eventos nos quais não identificamos pesquisas e/ou relatos de experiências resultantes destes e outros programas de valorização na formação do professor. Não faz muito tempo, havia um considerável desprezo por parte dos próprios professores dos cursos de licenciatura e dos programas de pós-graduação em relação ao ensino. Os alunos que se preparavam para a docência acabavam pagando o preço, e muitas vezes, um preço muito alto, das pesquisas que seus professores queriam desenvolver em outros áreas. Muitos entendiam que para formar seus alunos bastavam as leituras das teorias e pesquisas mais recentes, alguns preferiam identificar os melhores alunos e prepará-los para as seleções das pós-graduações nos campos mais diversos, menos no ensino. No entanto, observa-se que, nos últimos tempos, tem havido um deslocamento para os projetos governamentais voltados para a docência, de pesquisadores que tradicionalmente se dedicaram às pesquisas em diversos campos do conhecimento das licenciaturas enquanto viam o ensino como um apêndice da formação profissional, ainda que isso ocorresse em cursos de formação de professores. Aparentemente, isso pode significar que o ensino passa a ocupar o lugar sempre reivindicado pelos que sentiram no dia a dia as dificuldades pelo envolvimento com esta área, ou por serem professores da escola básica. Resta saber qual a medida de envolvimento destes pesquisadores com o novo nicho das licenciaturas. Normalmente, quando as águas do sertão nordestino começam a secar, muitas aves de arribação voam em busca de áreas mais verdes. Mas ali não fazem ninho, preferem retornar ao seu habitat de origem quando a seca passa. Talvez estejamos vivenciando um momento sazonal de envolvimento com o ensino. Dizendo de outra forma, não vislumbro que o

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namoro dos pesquisadores e cientistas com o ensino se transforme em casamento, me parece que são apenas flertes passageiros, enquanto o poço de verbas não seca. É difícil acreditar que uma tradição de discriminação de longas datas tenha sido quebrada, ainda que tenhamos um campo que vem se afirmando pela organização, luta e produção acadêmica. É fácil perceber isso quando se observa que professores de graduação e pós-graduação disputam os projetos governamentais para o ensino e formação docente, como o PARFOR, PRODOCÊNCIA, PIBID, PROCAMPO, Mestrados profissionais, dentre outros, mas na hora de abrirem concursos para preencher os seus quadros, inclusive na área de ensino, dão prioridade aos candidatos que têm uma formação verticalizada (graduação, mestrado e doutorado), quando não excluem completamente os que mesclam sua formação com a Educação, apesar de serem estes os profissionais predominantes que têm atuação e pesquisa nas áreas de ensino em nível superior. A experiência do passado demonstra que esta contradição é fruto de uma cultura de longa duração que se arrasta por anos em nossa formação como professores e historiadores que necessita ser visitada para possamos compreendê-la melhor. Fazendo, assim, talvez possamos rever algumas ideias e marcos cristalizados de tanto se repetirem, como sugere a professora Margarida Maria Dias de Oliveira, por exemplo, no que diz respeito às generalizações feitas com relação aos Estudos Sociais, impedindo que sejam observadas as experiências diferenciadas do modelo da ditadura militar, inclusive as positivas (OLIVEIRA, 2013, p.232). Aceitando esta provocação, resolvi ler os anais da ANPUH,1 para identificar a medida da resistência entre os his1 Até 1977, a ANPUH – Associação Nacional de Professores Universitários de His-

tória, hoje Associação Nacional de História – vetava a participação dos professores da escola básica em suas atividades (FONSECA, 1995).

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toriadores nos anos de 1970 às imposições do regime no que diz respeito à substituição da História e da Geografia pelo ensino dos Estudos Sociais e até que ponto posições sobre a relação ensino e pesquisa, teoria e prática, licenciatura e bacharelado, presentes nos dias atuais eram postas naquele momento. Para este artigo, trabalhei com os Anais do Simpósio da ANPUH, em 1977, um dos momentos cruciais em que o ensino era o patinho feio da academia, apesar de algumas manifestações em sentido contrário. Na História, temos os artigos da professora Emília Vioti da Costa (1957, 1959, 1960 e 1963) e os livros de Mirian Moreira Leite (1969) e Terezinha Deusdará (1972), por exemplo. Na segunda metade dos anos de 1970, a preocupação com o ensino nos cursos universitários de História começava a dar os primeiros passos em busca de um lugar no espelho do lago das vaidades acadêmicas. Dois fatos de 1977 marcam, portanto, esse novo olhar para o ensino de História. Em dezembro, foi a publicação da Revista de História da USP (v. LVI, n° 112, Ano XXVIII, de 1977) com uma seção que trazia o título Questões Pedagógicas. Neste caso, era um artigo de Antonio Alberto Banha de Andrade com o título A Reforma Pombalina dos estudos menores em Portugal e no Brasil (linhas gerais para um livro que importa escrever). O outro fato foi a participação dos professores da escola secundária no IX Simpósio da ANPUH, posto que até o Simpósio anterior era vetada. Ou seja, até 1977, os professores do ensino secundário eram chamados para a academia apenas para ouvir e não para falar, ou decidir. Mesmo naquele ano, quando os professores da escola básica somados aos alunos da graduação eram a maioria dos participantes do Simpósio Nacional, estes foram discriminados conforme se pode observar nos Anais do IX Simpósio Na-

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cional do Professores Universitários de História, realizado em Florianópolis, entre os dias 17 e 23 de julho de 1977. Naquele ano, se inscreveram, conforme os anais2: quinhentos e trinta e dois (532) interessados, assim categorizados: 225 professores universitários, 62 professores secundários e 245 estudantes; dos quais somente aos primeiros, de acordo com os Estatutos da entidade, era facultada a participação efetiva, tanto nas comunicações, como nas discussões que se lhe seguiram, enquanto aos demais, deveriam permanecer, apenas, como observadores (ANPUH, 1977, p.15).

Destaque-se que para garantir a efetivação do determinado, a Secretaria do Simpósio providenciou “distintivos diferentes para cada categoria de participantes” (ANPUH, 1977, p.45). Evidentemente, que esta posição da ANPUH sempre foi contestada, ainda que de forma isolada. No entanto, em 1977, a inserção dos professores da escola básica na entidade ganhou o apoio de cerca de cem associados, que subscreveram uma moção que teve a adesão do presidente Eurípedes Simões de Paula, votada, aprovada e publicada na Assemblea Geral, no dia 20 de julho de 1977. Pela moção apresentada por professores como Fernando Antonio Novais, Maria Stella Bresciani, Dea Ribeiro Fenelón, Edgar De Decca, Antonio Torres Montenegro, José Jobson de Arruda e Alice Canabrava, para citar os mais conhecidos entre nós, e aprovada na Assembleia por 73 votos a favor, 4 contra e 5 abstenções, os § 1° e § 2° do Art. 20, foram substituídos por um único § com a seguinte redação: A ANPUH assegura o direito a participação de professores secundários, professores de matérias afins, estudantes de pós-graduação e graduação em todas as 2

Anais do IX Simpósio Nacional da ANPUH, Florianópolis, julho de 1977.

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reuniões de seus Simpósios, salvo o direito de voto na Assembléia Geral. (ANPUH, 1977, p.16).

Observe-se que a deliberação mantém o poder de decisão exclusivo para os professores de Institutos de Ensino Superior e somente teria validade para o Simpósio seguinte, o de 1979, uma vez que o Simpósio de 1977 seguiu o regulamento definido em Aracaju, no encontro anterior, em seu Artigo 4°: “A apresentação das comunicações ao IX Simpósio é reservada aos professores de História dos institutos de ensino superior participantes do certame” (ANPUH, 1977, p.45). Em todos os espaços do Simpósio os professores do ensino secundário eram silenciados. Na Assembléia Geral, somente poderiam fazer uso da palavra e votar, os “professores de História dos institutos superiores de ensino, inscritos no certame (art. 11, § segundo, ANPUH, 1977, p.49). Apesar do caráter limitado, a decisão de inserir os professores da rede básica de ensino nas atividades do Seminário Nacional gerou uma “crise face às mudanças estruturais recém aprovadas” (ANPUH, 1977, p.18), a preocupação em abrir os espaços da Associação maior dos historiadores evidencia a tradição deixa muito clara a tradição bacharelesca de nossa formação. A outra novidade do Seminário de 1977 foi definir para o encontro seguinte a realizar-se em Niterói uma ampliação do debate sobre o ensino de História, uma vez que um dos três temas para o X Simpósio Nacional era “Metodologia e Técnica do ensino e da pesquisa Histórica” (ANPUH, 1977, p.16), isto porque abria-se o debate para os diversos níveis de ensino, ao contrário do que ocorrera no IX Encontro, em Florianópolis, de 1977, quando o tema sobre o ensino, definido em 1975, em Aracaju, era bem mais restrito: “Metodologia do ensino de História em nível superior” (ANPUH, 1977, p.26).

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Neste caso, o tema recebeu a inscrição de 12 trabalhos, enquanto os outros dois, O homem e a técnica teve 36 trabalhos (17 de História Geral e 19 de História do Brasil) e Levantamento de fontes primárias, 55 comunicações. (ANPUH, 1977, p.27-28). Os números demonstram claramente o desinteresse pelo tema do ensino, mesmo que específico para o ensino superior. Quanto aos minicursos, foram ofertados cinco, nenhum deles voltado para o ensino, apesar de serem ministrados no período noturno em estabelecimentos de ensino de Florianópollis, de onde se conclui que havia a intenção de atingir os professores da escola básica. Era o saber acadêmico se sobrepondo ao escolar. Caberia aos professores secundários ouvir os iluminados da academia e fazerem a transposição didática para os sues alunos. Dos minicursos do Seminário da ANPUH de 1977, o que mais recebeu inscrições foi Política econômica e monarquia ilustrada – a época pombalina, ministrado por Francisco José Calazans Falcón, com 162 inscritos, de onde se tem uma ideia dos temas de maior interesse dos participantes. Nenhum dos minicursos voltava-se para o ensino, apesar de serem ministrados no período noturno em estabelecimentos de ensino de Florianópolis, de onde se conclui que havia a intenção de atingir os professores da escola básica. Quanto às mesas-redondas, de 1977, das quatro apresentadas, 3 se dedicavam ao ensino de História e ao currículo, no entanto, mais uma vez, a preocupação era com o nível superior e a pesquisa, como se pode observar pelos títulos: História no Currículo da Graduação das Faculdades de Filosofia, A História e o problema dos Estudos Sociais, As Novas Técnicas do Ensino de História em Nível Superior. (ANPUH, 1977, p.29).

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Dos doze trabalhos inscritos nos Simpósio sobre o ensino de História no ensino Superior, merecem destaque as comunicações da professora Antonieta de Aguiar Nunes da Faculdade de Filosofia Carlos Pasquale, São Paulo, com o título O Ensino de História em Faculdades de Estudos Socais (ANPUH, 1977, p.967) e História e Estudos Sociais um estudo comparativo dos guias metodológicos do MEC, de Raquel Glezer, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (ANPUH, 1977, p.863) Para pensarmos um pouco o lugar social da professora Antonieta vale destacar que era licenciada em História pela Universidade Federal da Bahia, desde 1963, e estava concluindo o bacharelado em Serviço Social na Faculdade Paulista de Serviço Social. Vinha de uma trajetória profissional aberta a outras possibilidades de trabalho do historiador, tendo em vista que 1975, no VII Simpósio, fizera uma comunicação sobre um trabalho interdisciplinar do qual participara com o título A participação do historiador numa equipe interdisciplinar de restauração de monumentos e obras de arte (VIII Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História, 1973, Belo Horizonte. ANPUH, São Paulo, 1974). Quanto à sua comunicação, em 1977, abre espaço para repensarmos o ensino de Estudos Sociais, tradicionalmente visto como o grande vilão e carrasco da História da Educação Básica no Brasil. Segundo Antonieta Aguiar Nunes, o problema dos Estudos Sociais não foi o propósito da lei que o criou, mas a forma como a mesma foi utilizada, pois a Lei de 1971 “criou uma área multidisciplinar denominada Estudos Sociais que abrangia como conteúdos específicos História, Geografia e Organização Social e Política do Brasil” (ANPUH, 1977, p.979). O proble-

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ma foi que na hora de contratar os professores para ministrar os conteúdos, muitas escolas preferiram contratar apenas um professor, por uma questão de economia. E daí, várias faculdades viram nesse campo um excelente nicho para investir na formação rápida de professores e aquisição de lucro fácil. O artigo de Antonieta nos fornece algumas evidências contrárias a duas interpretações extremadas sobre a criação e o ensino dos Estudos Sociais que foi sedimentado no final doa anos de 1980 e início de 1990: primeiro que os Estudos Sociais resultou do autoritarismo ideológico de Estado da Ditadura Militar – neste caso, os professores e alunos da Escola Básica e do Ensino Superior foram meros coadjuvantes, obrigados a aceitar as imposições do Estado; segundo, em pesquisas e interpretações mais recentes de que os professores da escola básica foram resistentes e que se contrapunham ao ensino dos Estudos Sociais e burlavam em suas práticas cotidianas as determinações do governo militar, enquanto havia uma ampla mobilização da ANPUH para a derrocada dos Estudos Sociais. Não estou negando estes fatos e não podemos ser ingênuos em acreditar que não havia interesses de hegemonização da Ideologia de Segurança Nacional à frente dos Estudos Sociais, nem tampouco posso negar o papel dos professores que fechavam as portas das salas para que os olhos e ouvidos do regime não lhes escutassem as aulas, ou de alguns professores universitários que armaram suas barricadas em suas associações e Departamentos. Mas temos que considerar que havia aqueles que viam os Estudos Sociais com bons olhos e defenderam por acreditarem que era o melhor para a aprendizagem de seus alunos. Além disso, parece haver uma supervalorização da resistência aos Estudos Sociais nos anos de 1970, a considerar o que afirma Raquel Glezer de que existiam professores preocupados

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com o “problema dos Estudos Sociais e de História, mas que até agora [1977] não encontrou nenhum trabalho impresso (GLEZER, ANPUH, 1977), o que lhe incentivara a fazer aquela comunicação. Raquel Glezer faz diversas críticas enfatizando o fato dos dois manuais, tanto para os Estudos Sociais como para a História, serem escritos e prefaciados pelas mesmas pessoas e de que havia um direcionamento para que o professor de História se sentisse superado e, mesmo permanecendo na especificidade da História, se rendesse aos novos tempos contemplados pelos Estudos Sociais e afirma: Com tudo que acabamos de dizer, não somos contra o material didático fornecido pela FENAME. Ao contrário, consideramos este material de alta qualidade, oferecendo grandes oportunidades de trabalho com alunos, e pelo baixo preço acessível a todos; mas queremos ressaltar a responsabilidade do professor de História, que não pode ser um mero transmissor da Ideologia pronta, e sim um elemento crítico do material didático colocado à sua disposição (ANPUH, 1977, p.877-878).

O Simpósio de 1977 da ANPUH, realizado um ano após a publicação da portaria 790 de 1976, reservava exclusivamente aos professores formados em Estudos Sociais o direito de ensinar Estudos Socais nas escolas de 1° Grau, excluídos, portanto, os formados em Geografia e História. Apesar do momento, não encontramos nos Anais do Simpósio, manifestações em sentido contrário, de forma mais efetiva. A comunicação mais relevante que encontramos é da professora Antonieta que discorda não da criação da Lei, mas do fato da mesma ter sido desvirtuada e seu espírito não ser atendido, mas sim o interesse comercial de diretores de escolas particulares (ANPUH, 1977, p.970).

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Para a professora, havia duas possibilidades de se formar em Estudos Sociais: “profissionais com visão crítica ou integradora, ou profissionais superficialmente polivalentes” (idem). Para a professora, o tempo de quatro anos era pouco para formar “professores críticos, capazes de ter o domínio regular de cada área e de síntese e integração necessária aos Estudos Sociais” (idem). Mesmo fazendo a crítica, no entanto, a professora, em nenhum momento, propõe o fim dos Estudos Sociais, mas saídas que possam superar as dificuldades encontradas nas disciplinas históricas como o trabalho conjunto entre os professores, como forma de facilitar ao aluno da licenciatura de Estudos Socais a capacidade integradora. Mas, destaca que esta ação se torna difícil à medida que os professores são mal remunerados e por não terem disponibilidade os alunos ficam abandonados. Ao fazer a crítica, a comunicação ressalta o papel do professor das instituições de ensino superior no processo de formação de professores. O interessante de se observar na fala da professora é que as questões levantadas por ela, em 1977, parecem extremamente atuais. Se não vejamos quando levanta uma problemática, que muitas vezes se pensa ser recente: Face a este aluno despreparado e aflito, nem sempre consciente do peso da tarefa que lhe cabe, como deve proceder o docente de História? ... Em primeiro lugar, devemos pensar que estamos formando professores de Estudos Sociais e não pesquisadores em História e, portanto, preocupar-se em fornecer uma bibliografia onde o aluno encontre os mais recentes pontos de vista sobre cada assunto de forma já sintetizada e coerentemente organizada (ANPUH, 1977, p.973).

Veja-se, portanto, que havia uma clara desvalorização da formação do professor. Este não precisava desenvolver ha-

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bilidades de pesquisa, o trabalho com as fontes e documentos seria dispensável, caberia apenas uma formação de acúmulo enciclopédico adquirido. As mudanças que ocorreram dos anos de 1970 para cá em relação ao ensino de história na escola básica foram consideráveis, tanto em pesquisas como na produção historiográfica, No entanto, ainda temos muitos cursos de bacharelado disfarçados legalmente de licenciaturas. Mesmo com todo debate e produção acadêmica que se expressam nas pesquisas e encontros, como no Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História, realizado desde 1988, o Encontro Nacional de Pesquisadores em Ensino de História, realizado desde 1993, e dos diversos Simpósios Temáticos presentes nos encontros da ANPUH e da Associação Nacional de Geografia (AGB), ainda se repete que a história e a geografia na escola básica são decorebas e que não mudam, ocultando os esforços e silenciando o trabalho de professores que se desdobram para um ensino de qualidade capaz de formar alunos que sejam capazes de questionar a realidade social, espacial e histórica na qual estão inseridos. Soma-se a isso a concepção hierarquizada dos saberes e conhecimentos que envolvem o ensino. Nossa tradição perpetuou a ideia de que é na academia e nos institutos que se produz conhecimento, cabendo à escola básica sua repetição de forma vulgarizada. E tudo isso num momento em que se articulam nas esferas do MEC uma reforma curricular para o Ensino Médio que aposta num retorno ao ensino por áreas. Este filme nós já vimos e não gostaríamos de assisti-lo novamente.

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Referências Bilbiográficas ANDRADE, Antonio Alberto Banha de. A Reforma Pombalina dos Estudos Menores em Portugal e no Brasil. Revista de História, v. LVI, n. 112, Ano XXVIII, 1977, out./dez., São Paulo. ANPUH, SIMPÓSIO NACIONAL DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS DE HISTÓRIA, 8, Anais... Belo Horizonte, 1973. São Paulo: ANPUH, 1974. ANPUH, SIMPÓSIO NACIONAL DOS PROFESSORES UNIVERSITÁRIOS DE HISTÓRIA, 9, Anais... Florianópolis, 1977. São Paulo: ANPUH, 1977. COSTA, Emília Vioti da. Os objetivos do ensino de História. Revista de Pedagogia, XIII, São Paulo: USP, 1957. ______. O material didático no ensino de História. Revista de Pedagogia, X, São Paulo, USP, 1959. ______. Sugestões para melhoria do ensino da História no curso secundário. Revista de Pedagogia, Ano Sexto, v. VI, 11/12, 1960. ______. O problema da motivação no ensino de História. Revista de Pedagogia, XIII, São Paulo, USP, 1963. FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas, SP: Papirus, 1993, KOSELLECK, Reinhart. O futuro do passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora da PUC Rio. 2002. OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de. “Ensino de História: (dês) caminhos na construção de um objeto de pesquisa”. In: SILVA, Crisitani Bereta da e ZAMBONI, Ernesta (Orgs.). Ensino de História, memória e culturas. Curitiba, PR: CRV, 2013.

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COMO OS MITOS ACERCA DO CEARÁ E DO SER CEARENSE CIRCULAM ENTRE AS FESTAS COMUNITÁRIAS E A CULTURA ESCOLAR1 José Edvar Costa de Araújo

Mitos sobre o Ceará e o Ser Cearense Existe uma cearensidade, entendido este termo como um conjunto de características, atributos e valores que caracterizam um típico indivíduo do universo físico e cultural do estado do Ceará? Existe um Ceará profundo, compreendido como um determinado ambiente humano, como um modo de ser vinculado a certos arquétipos paisagens que possam ser considerados genuínos em comparação com outro Ceará, litorâneo ou superficial? Existe um Ceará Moleque assinalado por um modo particular e inconfundível de interpretar e de se posicionar diante do mundo e da vida, fazendo troça da própria desgraça ou sendo capaz de zombar do estabelecido? Talvez seja impossível defender e afirmar peremptoriamente qualquer um destes vieses interpretativos ou de outros assemelhados que circulam entre os considerados especialistas ou autoridades em algumas das áreas de conhecimento e entre pessoas comuns. No entanto, é incontestável que tais ideias circulam e fundamentam o pensamento e as ações de muita gente que pensa e que constrói o Ceará no plano factual ou imaginário. É verdade também que estas perspectivas são fortes no plano das crenças, das ideologias e das paixões telúricas. O 1

Texto da palestra apresentada no II Simpósio Nacional de Estudos Culturais e Geoeducacionais – SINECGEO, na mesa-redonda Diálogos entre Educação, Geografia, História e Arquitetura.

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que não significa dizer que não tenham alguma legitimidade e alguma importância do ponto de vista do conhecimento sistemático; e que desempenhem um papel indiscutível na construção de uma imagem e de um perfil civilizatório, por mais que muitas vezes possa parecer absurdo ou fique ao sabor da imaginação de cada um. Também é verdade que outras vertentes interpretativas construídas com base na lógica das ciências têm surgido e ocupado espaços. Ao lado, junto, concordando ou discordando destas primeiras vertentes, em parte ou no todo. Refiro-me às contribuições que, nas décadas mais recentes, alguns dos campos de conhecimento científico têm produzido sobre o Ceará: entre eles, a sociologia, a antropologia, a educação, a geografia, a história as artes visuais e a arquitetura. A oportunidade deste evento e desta mesa parece assim propícia para traçar algumas reflexões e desenhar alguns pontos de vista sobre as possibilidades de provocar diálogos da Educação, Geografia, História e Arquitetura entre si com outras disciplinas; diálogos que têm como moldura o Ceará, o ser cearense, o construir do ser cearense.

O Ceará das Festas Comunitárias Do meu lugar e da minha experiência tento fazer este exercício a partir de descrições e comentários que venho acumulando, ao longo de algumas décadas, sobre as festas que ocorrem em diferentes lugares do estado do Ceará, muitas vezes denominadas de festas populares pelos estudiosos dos campos da educação, da cultura e da comunicação e que, nesta oportunidade, vou chamar de festas comunitárias. As observações e as especulações que pretendo fazer poderiam ser feitas em torno de outros eventos, mas um dos

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meus lugares e experiências na sociedade cearense tem sido o do estudo sobre as culturas populares e, neste campo, as festas comunitárias têm sido objeto de contínua observação. Além de apresentarem uma vantagem adicional: nelas estão presentes muitos outros elementos que de alguma forma podem revelar modos de ser, de fazer, de contar, de aprender e ensinar das populações e dos setores sociais do Ceará que muitas vezes estão associados às interpretações sobre a cearensidade, o Ceará profundo, o Ceará moleque e outros que tais. Nestas festas estão presentes as histórias e as paisagens dos lugares e de seus habitantes; histórias que registram, escondem ou exageram seus feitos, virtudes e defeitos. Feitos que estão ligados ao modo de ocupar e usar os espaços, “dominando-o” ou por ele “sendo dominado”. Dominação que implica na consideração de arquiteturas naturais ou criadas e recriadas, teatros e anfiteatros naturais e construídos, casas grandes e cabanas, cercas e quintais. A partir do exame como são criadas, produzidas e consumidas; dos rituais e personagens que as envolvem com inúmeros sentidos e finalidades; a partir dos espaços que as conformam ou dos espaços que seus fabricantes criam; a partir dos saberes e valores que são expressos, transmitidos, negados ou negociados; a partir dos modos de organização, produção e consumo de lazer e de significação; a partir dos modos de repousar, de se alimentar, de se vestir, de reverenciar as figuras e os panteões divinos; por todos estes e outros elementos constituintes, a festas são universos incomparáveis para compreender, observar, aprender, transmitir e arriscar interpretações e construções de sentido em relação às interpretações mencionadas no início deste texto. Considero necessário, antes de ir adiante, esclarecer o uso da expressão festas comunitárias. Desde certo tempo ob-

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servo que a expressão festa popular não corresponde mais ao modo pelo qual meu olhar capta estes eventos socioculturais. O uso dos termos cultura popular ou festa popular inúmeras vezes tem produzido interpretações dicotômicas, como se fosse possível operar uma separação definitiva entre os elementos próprios ou de uso de uma e de outra classe social, geralmente classificadas como a elite e o povo. A observação e a experiência vivida tem mostrado que tais elementos se misturam. E atualmente esta mistura não diz respeito apenas ao que vem de classes sociais distintas, mas também das gerações distintas e de muitos outros sujeitos coletivos que tem surgido no cenário social. De modo que as festas originadas há bastante tempo, fora do circuito da indústria cultural, são cada vez mais oportunidades de manifestações de um tipo de arranjo comunitário: em que a expressão e a criação de significados envolvem a participação de diversos segmentos e sujeitos sociais, provocando intensas relações de convergência e divergência, de semelhanças e diferenças, de disputas, acordos e conflitos. Neste intenso movimento de sociabilidade estão implícitas relações entre conhecimentos, saberes e práticas surgidas em contextos passados e conhecimentos, saberes e práticas originadas em contextos contemporâneos, e cujo estudo e compreensão transitam por campos e disciplinas como a pedagogia, a geografia, a história e a arquitetura e outras áreas não incluídas no título desta mesa. Da minha experiência pessoal de observação e estudo selecionei algumas festividades para iniciar alguma reflexão perceptiva e especulativa. Diversas: pelos sujeitos sociais e as motivações que as sustentam ao longo de um determinado período; pelos desdobramentos e evoluções nas formas de organização e de diálogo com o público, considerando os tempos

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passados e os dias atuais; os espaços naturais em que se realizam e que influenciam suas formas de existência e mudanças; os espaços construídos para sua realização tradicional ou incorporação de novos significados. Em termos do estado do Ceará são festas associadas a algum tipo de relação com o domínio do sagrado ou do sobrenatural, mas fundadas em diferentes relações com os ditos domínios; localizadas em regiões naturais e culturais que em sua diversidade expressam a multiplicidade que se oculta por trás da convenção de um Ceará aparentemente homogêneo: ocorrem em municípios litorâneos, sertanejos ou serranos; em pequenas localidades interioranas, em cidades médias ou na metrópole capital. Independentemente das relações que estabelecem com o cotidiano e com o sagrado, da região onde acontecem, de serem grandes ou pequenas, de serem comunitárias ou massificadas, recentes ou muito antigas, atraem pessoas de todos os lugares e simultaneamente são acontecimentos locais e universais.

Sucintas Descrições de Festas Comunitárias do Ceará yy Os caretas de Jardim Jardim, sede do município do mesmo nome, está localizada no cimo da chapada do Araripe, fronteira com o estado de Pernambuco, fazendo limites com os municípios cearenses de Barbalha, Missão Velha, Porteiras e Jati e com o município pernambucano de Serrita. Em certas localidades rurais, brincam os moradores ao dizer que uma parte de suas casas está em Pernambuco e outra no Ceará; de acordo com as descrições bem-humoradas, até as águas das chuvas aí se dividem; caindo de um dos lados dos telhados correm para o Ceará, caindo do outro, correm para Pernambuco.

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Anualmente acontece no município de Jardim, disseminada por todas as localidades rurais e urbanas, centralizada na sede do município, a Festa dos Caretas. No artigo A Festa dos Caretas – parte II, publicado no dia 2 de abril de 1991 no jornal O POVO destaquei a hipótese segundo a qual “os acontecimentos que hoje formam a Festa dos Caretas reúnem três elementos da tradição popular: os caretas, o roubo durante a Semana Santa e a malhação do Judas”. Em outra passagem do texto afirmava que “ganhando adeptos e enfrentando oposições, a Festa dos Caretas faz concessões ao mesmo tempo em que cria as condições para a transgressão nos limites sociais aceitáveis. Uma das concessões foi o fim do saque ao sítio do Judas pouco antes da sua derrubada. Este era um dos momentos de maior violência e causa potencial de conflitos. Em compensação, a organização da festa, atualmente soba a responsabilidade da Sociação dos Karetas de Jardim – SKJ, dá total assistência aos caretas que são perseguidos por causa dos “roubos” de perus, galinhas, feijão, cana e outros alimentos que servem de alimentação para os brincantes”. Bem próximo da cidade de Jardim, embaixo, no sopé da chapada do Araripe, está Barbalha, cujo calendário religioso e civil destaca no mês de junho a Festa Santo Antônio, Padroeiro do município por imposição do catolicismo quando este considerava toda a população como parte da comunidade católica. ƒƒ Santo Antonio e o pau da bandeira Escrevia no mesmo ano de 1991 que a Festa de Santo Antônio padroeiro de Barbalha se multiplica em festas, cada uma com sua face própria; esferas distintas no conjunto das relações da comunidade, inter-relacionadas pela história pas-

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sada e pelo destino futuro: a festa religiosa, a festa social e a do pau da bandeira. A festa religiosa está indissoluvelmente ligada ao surgimento da povoação, conforme o testemunho dos estudiosos Marchet Callou e Napoleão Tavares Neves, ancorados aos estudos de outros tantos historiadores regionais. A povoação inicial, depois município e cidade surge em redor da capelinha do sítio da Barbalha de propriedade do capitão Francisco Magalhães Barreto e Sá, que consagra seus domínios materiais e humanos ao santo padroeiro da localidade de origem em Sergipe. A festa do Pau da Bandeira também tem origem antiga. Não havendo documentos ou informações precisas, os dois estudiosos da história local já citados concordam que as referências mais antigas ao cortejo do mastro podem estar ligadas à passagem do padre Ibiapina pela região do Cariri. O padre mestre aconselhava o hasteamento da bandeira do Santo Padroeiro nos dias de festa diante das igrejas ou das casas onde houvesse comemoração. Independentemente desta especulação, o cortejo do pau como um momento destacado da festa de Santo Antonio em Barbalha, com algumas das características atuais, tem seguramente mais de 60 anos. Esta certeza se baseia em que há mais de 60 anos a árvore vem sendo doada pelo doutor João Filgueira Teles e retirada de seu sítio São Joaquim. A chamada festa social, onde tem lugar quermesses, leilões e em épocas mais recentes os shows e forrós, também se origina da festa religiosa. Inicialmente eram apenas as barracas no patamar e ao lado da Igreja onde aconteciam os leilões em benefício da paróquia; em torno delas os partidos, o Azul e o Encarnado, disputavam o mérito da maior arrecadação. A festa social cresceu e passou de acontecimento de natureza familiar para o parque de diversões amplo e diversificado montado na praça Engenheiro Dória; depois agigantou-se no Par-

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que da Cidade e nos dias atuais divide-se entre a característica inicial de festa familiar ao lado da matriz e a existência de numerosas festas espalhadas por inúmeros recantos da cidade. Os estudos sobre a Festa de Barbalha assinalam o ano de 1975 como o momento da passagem da pequena festa local marcadamente comunitária para a Festa de consumo turístico. Naquele ano o prefeito Fabriano Sampaio colocou em execução a ideia de realizar a festa social na praça ao lado da Igreja do Rosário e a ela incorporou os produtos artesanais, as comidas típicas e os grupos folclóricos. Estava iniciada a era de atenção ao potencial turístico da Festa de Santo Antônio. ƒƒ São Pedro no mar do Mucuripe Em artigo intitulado No revolto mar da vida, publicado no jornal O POVO de 4 de julho de 1991, descrevo aspectos de uma festa distante do Cariri rural: a festa de São Pedro, o pescador, típica de comunidades ribeirinhas ou praianas. “Termina o terço na Igreja de Nossa Senhora da Saúde. O Mucuripe desce para a praia. À frente, São Pedro nos ombros de velhos companheiros do mar. Em volta, o pessoal da Casa do Idoso, com suas batas azuis, e os moradores. Cantando, rezando, batendo palmas, soltando fogos, eles restauram a si próprios e ao bairro. Reconhecem em cada palmo daquele chão o trabalho e a vida de gerações. O Bráulio, com seus noventa e tantos anos, pernambucano das praias de Olinda aportado no Ceará, aponta com toda certeza o lugar onde foi sua casa e que agora é calçadão”. “Antes da missa, selo da religião oficial sobre o tecido da religiosidade popular, o encontro da comunidade com o Estado. Governador, Secretários, Prefeito, Parlamentares buscam a legitimação através do contato direto com a praça ou através da intermediação das lideranças formais e infor-

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mais. As autoridades reconhecem em seus discursos o valor do povo; as lideranças locais aproveitam o momento propício a compromissos e tentam acordos no sentido das aspirações sentidas. A assistência ouve os dois e aplaude. Esperança. Fé. Persistência. O que ela pensa mesmo de tudo isso?” ƒƒ Procissões de São Sebastião na Barra do Ceará Na mesma cidade, em outro bairro, Barra do Ceará, caracterizado pelo encontro do rio Ceará com o Oceano Atlântico, na tarde do dia 20 de janeiro de 1990 acontece o encerramento da Festa de São Sebastião. A festa estava anunciada para iniciar às 17 horas, embora os organizadores já estejam no local cerca de uma hora antes. O local é a praça Nova Lisboa, exatamente no entroncamento da Avenida Perimetral com a avenida Beira-Rio. Ali, fica o ponto terminal de diversas linhas de ônibus interbairros: Perimetral Messejana – Barra, Barra do Ceará – Aldeota, Barra do Ceará – Vila Betânia, Leste-Oeste, Barra – Mucuripe, além da linha que sai do bairro para o centro da cidade. É antigo ponto de convergência: pescadores e vendedores de peixe, oficinas de construção e consertos de barcos e a antiga parada do “ônibus da verdura” na época das festas de término de curso no Clube de Regatas Barra do Ceará. O encerramento da Festa de São Sebastião começa no ancoradouro localizado no fundo da praça, onde estão 14 barcas enfeitadas e prontas para receber as pessoas que querem ir à procissão fluvial. Dali, as barcas saem enfileiradas até o ancoradouro localizado em frente ao Clube de Regatas Barra do Ceará. Ao mesmo tempo em que o cortejo dos barcos se desloca pelo rio inicia-se a procissão terrestre pelas ruas. O carro de som da paróquia centraliza a coordenação. A irmã Leo fala pausadamente; pede fé e silêncio; orienta a formação de duas

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filas. Avisa que os integrantes da procissão de terra não podem entrar nos barcos quando se iniciar a procissão fluvial. ƒƒ Festa de finados em Ocara No universo das festas comunitárias no Ceará, entre as primeiras horas da noite do dia 1º de novembro e as primeiras horas da madrugada do dia 2, anualmente se repete na localidade de Ocara um acontecimento que desperta curiosidade. Centenas de pessoas das mais diferentes localidades, vilas, distritos e cidades, se dirigem para lá e neste intervalo de tempo que dura apenas uma noite enchem com seu movimento o largo em redor da igreja, algumas ruas vizinhas e o caminho do cemitério. Em anotações de campo relativas ao ano de 1991 registrei que “Françui Correia, agricultor, nascido e criado na vizinha Vila São Marcos, conhecedor da festa como todos os moradores locais, mostra-se surpreendido ao enumerar de cabeça os lugares de onde o pessoal vem para a festa: Quixadá, Pacajus, Chorozinho, Serragem, Novo Horizonte, Borges, Piancó, Barreira, Redenção, Aracoiaba, Passagem Funda, Vazantes, Ideal, Lagoa de São João, Vage da Onça, Vage da Abelha, Vage Queimada, Carnaúba, Sereno de Cima, Sereno de baixo, Croatá, Córrego do Facó, Placa do Zé Pereira, Pirangi, Boa Vista, Córrego das Vacas, Curupira, Placa da Ocara, lagoa do Riacho, Lagoa do Velho, Barro, Seis Carnaúbas, mato Queimado, Foveira, Cristais, até de Fortaleza vem”. Acrescenta o mesmo depoente que “As festas religiosas de Santo Antonio e de Nossa Senhora de Fátima definharam. Elas também atraíam muita gente de todos os lugares em redor. Mas, aos poucos, foram diminuindo, foram ficando reduzidas às celebrações estritamente religiosas. Desapareceram as noitadas animadas, os leilões fartos. Relembra Françui: ... na década de 70, quando iniciaram as festas da Igreja

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elas foram animadas. Porque não existia diversão nenhuma e quando a “radiadora” chegava aí que botava a primeira música quem tava no roçado apanhando algodão ficava tudo doido. A festa era animada, o dinheiro que se adquiria era para gastar na festa... todo mundo rematava o que tinha. De bolo, de cabidela... e não era só rico que comia não. O pobre também participava. Agora, hoje... é arroz com farinha”.

Diálogos, Mitos, Festas e Escola: “Informal” e o “Formal” Para as possibilidades de diálogo, o estudo das festas pode contribuir muito para a reflexão acerca do ser cearense, tanto do ponto de vista dos mitos fundadores quanto do ponto de vista de mitos explicativos contemporâneos. A reflexão sobre o ser cearense se constituiu inicialmente através da literatura de ficção, dos cronistas e memorialistas; mais recentemente recebeu a contribuição dos sociólogos, folcloristas, historiadores e educadores; filiada a diferentes correntes de pensamento e apresentada como desinteressada, está vinculada a interesses concretos de setores, grupos e categorias sociais e a necessidades de posicionamento nos embates ideológicos, políticos e intelectuais. A reflexão apresentada aqui tem também um interesse definido no âmbito da atual produção no campo da história da educação no Ceará; é rascunho de um projeto de estudo sobre a história da educação escolar na região norte do Ceará, associando a formação das redes de ensino com a educação não formal presente no contexto: identificando nas festas comunitárias os elementos que influenciam as demandas por escolarização, os ambientes e interesses da organização escolar, a formação dos professores, os programas de ensino e outros aspectos do universo da cultura escolar.

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JOSÉ EDVAR COSTA DE ARAÚJO

O SERTÃO, AS FAZENDAS DE GADO E A OCUPAÇÃO ESPACIAL DA CAPITANIA DO CEARÁ Francisco Ari de Andrade

Introdução O presente texto traz uma reflexão acerca da ocupação política, econômica e social do espaço sertanejo cearense, a partir do último quartel do século XVII, quando se iniciam os empreendimentos das fazendas de gado na ribeira dos principais rios desse território, com destaque para o Jaguaribe. A história política e econômica da Capitania do Ceará tem sua gênese na base das fazendas de gado assentadas nas margens de rios que cruzam o sertão em direção ao litoral. Ao ser eleito tal tema para se discutir a origem do poder no Ceará, não há nenhuma pretensão de formulação de uma teoria política em busca de um entendimento de tal fenômeno, mas, apenas, lançar um olhar criterioso compreensivo dessa evolução política, que não seja arrogante e nem fechado em si mesmo, mas que abra espaço para o debate sobre o conjunto de fatores que vieram a contribuir, sobremaneira, na metodologia de se fazer política nessas paragens brasileiras. Com destaque para famílias poderosas do sertão, envolvidas com fazendas de gado, agenciadas na figura de um coronel, potentado da política local, na busca do domínio político mais amplo. A legislação portuguesa estabeleceu limites entre as áreas agricultáveis para cana-de-açúcar e aquelas destinadas à criação bovina. Reservou-se a faixa litorânea para plantação de cana e produção de açúcar. Ali se instalaram os engenhos, marco da organização política e social colonial brasileira. No

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sertão, o “país das caatingas”, faixa de terra que desce das chapadas úmidas em direção ao litoral, instalar-se-iam as herdadas de rebanhos bovinos. A partir de uma revisão bibliográfica, procura-se trazer à baila uma reflexão sobre o percurso e o itinerário do processo de ocupação espacial e política da Capitania do Ceará, que se originou no sentido oposto ao processo institucional da maioria das capitanias nordestinas, isto é, do litoral para o sertão. Aqui na Capitania do Ceará, o processo se constrói do sertão para o litoral. E, precisamente, a historiografia local atribui às fazendas de gado o papel de ocupação espacial do território sertanejo e do delineamento político e institucional do Ceará. Ao prosperarem as fazendas de gado no sertão pastoril surge a classe social dos fazendeiros, em contraposição a dos senhores de engenho do litoral. Por conseguinte, o criatório bovino dará origem à agroindústria da carne seca, a chamada charqueada, na cidade litorânea de Aracati. Não obstante, a origem e a apropriação primitiva do poder política na capitania são tributárias das fazendas de gado.

As Fazendas de Gado na Origem do Poder Local no Sertão Cada fazenda era um microcosmo social no sertão. Era a grande propriedade. Uma unidade econômica e moral que se configura politicamente pelo pater família. O título honorífico de fazendeiro era dado ao sesmeiro pela Coroa portuguesa. Significava antes de tudo homem de bens, criador bovino. Toda a vida na fazenda girava em torno da criação de gado. Aos poucos, cada proprietário foi se transformando num chefe político em torno de sua órbita geográfica, por demais limitadas, a intervir nos destinos e na vida de muita gente, apesar das relações sociais serem caracterizadas pela mão de obra livre.

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Nessa base econômica e social do sertão nordestino surge uma aristocracia territorial, endinheirada, prestimosa e politicamente forte a intervir na dinâmica regional. Apesar de seu domínio político ser demarcada pela área geográfica de onde se situava a fazenda, as prósperas cidades do litoral se tornaram acuadamente dependentes da economia dos estabelecimentos rurais. Nessa relação de subordinação da litoral ao sertão reside uma das explicações para o fenômeno do coronelismo nordestino (FERNANDES, 1977, p.60).

Não obstante, o processo civilizatório cearense acontece do sertão para o litoral. Através dos rios Jaguaribe e Acaraú uma perspectiva de vida é levada às populações mestiças do semiárido. Do Vale do São Francisco, em busca de pasto nas caatingas verdurosas, desceram as boiadas que se fixaram nas margens dos rios dando origem, anos mais tarde, às principais cidades cearenses. Com o surgimento das fazendas de gado, a partir de meados do século XVIII, nas ribeiras cearenses, decorre a gênese do nosso mandonismo local. Cada proprietário de terra, possuidor de uma patente militar, dada pela Coroa portuguesa, passara a legislar seu território pelo poder da força. Demarcam um espaço territorial e passam a impor seus interesses acima dos coletivos. Fica o meio rural reduzido a um ambiente produtivo, mas, também, num cenário de disputas políticas, de lutas entre os próprios fazendeiros e, destes, com a resistência silvícola, que se vê ameaçada devido a invasão de seu território. Os potentados criadores de gado ambicionam, também, o controle do mandonismo local. E chegam, no decorrer do processo cearense, a se projetar como lideranças junto às forças que esboçaram o sistema político brasileiro.

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Das unidades criatórias do sertão cearense, originou-se no Litoral, principalmente na vila de Aracati, a indústria e o comércio da carne salgada seca ao sol, conhecida por charque. Não foi à toa que o historiador cearense do século XIX, Capistrano de Abreu (1988), na sua crônica resolver chamar a civilização do couro, aludindo ao desenvolvimento de indumentárias decorrentes da indústria pastoreira. As fazendas de gado foram evoluindo ao longo do nosso processo civilizatório. De microcosmos políticos independentes vieram a se constituir em vilas e cidades. Foram peças-chaves, na medida das exigências históricas, do esboço da nossa geografia política. No desenrolar do contexto histórico, foi sendo gestada uma classe social, de traços aristocráticos, territorialmente importantes que, paulatinamente, fora se apropriando do poder político na região.

A Emergência da Aristocracia Territorial Sertaneja A classe social aludida, constituíra-se, num primeiro momento, empreendedora de gado e, num segundo, como consequência do primeiro, principalmente, detentora do controle das diretrizes políticas locais. Assim, fora surgindo um poder local, arraigado pela tradição e de base familiar, caracterizando-se pela presença central de um coronel, como entidade máxima, que incorpora a política e a justiça, guardiã da manutenção da “ordem”. Detentora da produção material da sociedade, devido à montagem de um sistema produtivo, que apesar de requerer uma mão de obra especializada no trato com os animais, entra em cena o trabalho dos vaqueiros, estivera submissa aos seus interesses, sendo o ponto crucial dessa incorporação o absoluto controle dos direitos sobre a vida e a sobre o destino final de todas as criaturas a seu alcance.

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A respeito de tal fato, são importantes as considerações feitas por Sucupira: No Ceará, as rédeas do governo, desde os primórdios da sua formação política, estiveram sempre na dependência de poderosos grupos familiares.Isso começou com a família Castro, atuando desde os tempos coloniais, seguindo-se com as famílias Alencar, Pompeu, Feitosa, Fernandes Vieira, Paula Pessoa etc. Na monarquia as famílias Pompeu e Paula Pessoa, embora dissidentes, formavam as duas alas do Partido Liberal (SUCUPIRA, 1987, p.138).

Pelas alusões de Sucupira, denota-se uma relação de famílias cuja historiografia veio a identificar como poderosas durante o processo de evolução social cearense, que delas tenham começado a apropriação do poder no Ceará, fazendo surgir uma elite política profundamente identificada com a terra. Tal elite territorial, agenciadora do ritmo e da dinâmica do mandonismo local, com influência, em larga escala, no poder nacional, tanto no período colonial e imperial quanto nas primeiras décadas da fase republicana cearense, apropria-se, decisivamente, da capital, sede do governo, tendo em vista que é neste espaço onde rolam as transações financeiras e os serviços decorrentes da dinâmica da vida comercial e política da Província. A necessidade de debruçar um olhar sobre a forma primitiva de apropriação do poder no Ceará, longe da pretensão de descortinar as teorias que discutem a origem do político no mundo moderno, busca-se, apenas, seu entendimento a partir das fazendas de gado. Tal visão, talvez, contribua para uma melhor aproximação com as nossas raízes e, a partir dela, se possa perceber

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com maior nitidez as contradições sociais que tão fartamente têm caracterizado o nosso processo histórico.

A Territorialidade Cearense à Luz da Sua Crônica Histórica Segundo Yaco Fernandes (1977), a colonização do Ceará começa, verdadeiramente, com a presença de empresas criadoras de gado voltadas para a exploração das terras do sertão. Para tal investimento, fora de fundamental importância o “trilho ribeirinho”, com ele destaca, principalmente o rio Jaguaribe, pois sem tal caminho, as especulações teriam ficado reduzidas, por algum tempo, a uma significante faixa costeira sem condições de penetrar no espaço interiorano. Essas estradas, que os vaqueiros reinauguram, quase sempre, de jusante para montante, são a glória e a servidão das cidades sertanejas cogumeladas ao longo de seu traçado. E explicam como ninguém a maneira por que se processa a formação da sociedade cearense, particularista, familiar, excessivamente mediterrânea, – sem um pingo do universalismo que lhe daria a extensa faixa costeira, se fosse mais abordável e se se comunicasse, de modo efetivo, com as regiões do interior (FERNANDES, 1977, p.57).

Aludindo aos rios como estradas, percebe-se a preocupação do autor em demonstrar que, na origem do Ceará, está o papel desempenhado por eles. Como destaque para o Rio Jaguaribe, que vai ser considerado a ”estrada geral do Jaguaribe”, pois nas suas margens vão surgir as primeiras unidades de criação de gado. O recorte apresenta aquilo que já havia se apresentado anteriormente, que o estudo da nossa formação social nos remete à necessidade de se compreender a dinâmica das fazendas na consolidação e integração do sertão e do litoral.

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Um contato com o poema “Jaguaribe” do jornalista cearense Demócrito Rocha, remete-se, também, àquele rio. Nos primeiros versos, verificam-se imagens atribuídas, pela força poética do autor, um canto de louvor por onde correria o sangue do Ceará. É-lhe atribuída a fonte da vida do nosso povo que, ao contrário disso, não poderia ter existido. Assim se expressa o poeta: Rio Jaguaribe é uma artéria aberta por onde escorre e se perde o sangue do Ceará O mar não se tinge de vermelho Porque o sangue do Ceará É azul [...]1

Pelas imagens apresentadas, tal personagem da paisagem cearense é comparado a um organismo vivo. Daí a sua importância para a história cearense, porque a seu favor cantam e decantam os versos melodiosos de poetas, as palavras adocicadas dos cronistas da terra, além das análises sociológicas, quando se debruçam na compreensão da nossa gênese histórica. Ao procurar apresentar ao leitor uma clareza acerca dessa faixa de terra que recebeu o título de capitania, eis o seguinte trecho trazido por Antônio Bezerra: Situado ao norte do continente sul-africano, o atlântico deu ao seu território quase que a mesma configuração e relevo do continente africano, que lhe fica fronteiro, e grande parte do interior, aberto em extensos taboleiros que aos ardores do sol do estio se despem da ligeira vegetação , semelha em muito por esse tempo aos campos do continente negro. 1

ROCHA, Demócrito. O Rio Jaguaribe. In: SECULT. Terra da Luz. Antologia. Fortaleza: Secretaria da Educação e Cultura do Ceará, 1966. p.33.

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Há lugares que são verdadeiros desertos, e em geral, o terreno tem feição diversa da dos outros Estados (BEZERRA, 2001, p.1).

Na sequência, o autor veio a classificar o território cearense em três zonas: litorânea, sertaneja e agrícola. A partir dessa classificação, procura apontar algumas características psicológicas de cada habitante. Nota-se, pelo recorte, que o autor apresenta um quadro geográfico com semelhanças com o território africano. Noutra passagem da obra, ele indagaria se os primeiros europeus que tomaram contatos com esta terra, a serviço do Estado português, no caso a expedição de Pero Coelho de Souza e depois as missões dos padres Francisco Pinto e Luis Figueira, não teriam despertado a terminologia Ceará, associando-a ao termo Saara, ou seja, o deserto? É notório assinalar, os contrastes naturais reservados ao Ceará. Renegado a um naco de terra com variações e irregulares estações climáticas, tendo toda extensão do seu litoral, ao contrário da Capitania de Pernambuco, contornado por dunas de areias brancas, leves e soltas à mercê da direção dos alísios, marcado por vegetações rasteiras destacado pela exuberância de altos coqueiros, sob os raios do sol escaldante, impingira aos primeiros colonizadores os castigos inclementes, durante a travessia em direção à Ibiapaba. Por conta disso, a nossa experiência colonizadora fora retardada, ficando à espera dos empreendimentos na segunda metade do século XVII, quando começam os registros das primeiras fazendas de criar. Os estudos de Pompeu Sobrinho (1966) acerca dos aspectos fisiográficos e antropológicos do Ceará vão de encontro ao ponto de partida dessa discussão, em que se procura descortinar o passado social cearense. Seus apontamentos nos colocam diante uma realidade das mais contraditórias possíveis:

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O Ceará constitui vasta região intertropical, encantonada no extremo nordeste do Brasil, intimamente articulada, tanto sob o aspecto físico, como sob o social, aos estados do Piauí, Pernambuco, Rio Grande do Norte e da Paraíba. Terra do Sol e irregular umidade, sofre os percalços destas condições e goza também os favores delas decorrentes ( POMPEU SOBRINHO,1966, p.11).

A partir do que está posto, verifica-se o aspecto natural do nosso território em situação diferenciada daqueles por onde foram empreendidos, por exemplo, os engenhos da cana-de-açúcar. Por aqui, a natureza não fora tão favorável à montagem daquelas empresas de exploração do açúcar. O nosso litoral não ofereceu condições naturais favoráveis, pois “acompanhando de perto a linha do mar, elevam-se dunas de areias movediças à feição dos ventos dominantes.”, é, precisamente, por trás destas elevações movediças que” se estendem os tabuleiros, também arenosos, sulcados pelos rios que descem do sertão, para logo em seguido “cortados por lombadas e elevações” se projetarem as famosas “terras mais altas do sertão”. (POMPEU SOBRINHO, p.12) E naquelas paragens altas e longínquas do litoral, vai acontecer a revolução da terra cearense: o florescimento das fazendas de criar bois. O sertão vai demandar a expansão demográfica do território cearense, por força da pecuária. Voltando a Pompeu Sobrinho, este considera que, diante das contradições geográficas do espaço cearense, fora a única atividade econômica possível naquele processo de colonização. Segundo ele, alguns fatores contribuíram para o desenvolvimento dessa atividade no solo cearense. A começar pela atividade em si que não requeriria um aviltado n ­ úmero de trabalhadores. Além disso, dispensaria a montagem de uma engrenagem bem como de um conhecimento ­especializado,

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(uma ciência), capaz de fazê-la funcionar. Sem levar em conta que o gado se transportava por si e não precisava de estradas. As condições físicas da região, finalmente, ganham uma apreciação louvável pelo referido autor, principalmente no que facilita ao deslocamento e a fixação dos rebanhos: Corroborando tal discussão, Fernandes (1977), também, procura apresentar uma descrição daquela realidade seguindo o mesmo viés de raciocínio do autor, anteriormente apreciado. Para este, toda dinâmica do processo cearense giraria em torno da água. Daí a importância dos rios, pois dos sopés das chapadas úmidas brotam essas fontes, que ao descerem a procura do litoral, vão recortando, quase que em linha reta , o solo do sertão, e trazendo durante as cheias periódicas a fertilização ao solo, brotando neste a vegetação típica da região, vindo a integrar o chamado “ o sistema-Nilo do Ceará”. Pelo olhar do cronista: Da raiz das chapadas, as terras descem para o mar, num plano inclinado de ondulações sempre mais ligeiras, que os agentes físicos e químicos laboriosamente vão nivelando num desmarcado e único pléneplain: é o sertão, país das caatingas.

Com tal investida, o sertão vai contornando a linha da civilização cearense. Vai aos poucos sendo moldado aquilo que tornaria o reduto de famílias abastadas. Os sesmeiros vai construindo as primeiras, porém primitivas, edificações no espaço sertanejo. E da forma como o meio rural ia sendo deflorado, as populações nativas eram dizimadas ou empurradas mais para dentro daqueles confins. Qualquer reação por parte das tribos que habitavam o sertão, que se vira atingida pelo usufruto de suas terras, entrava em ação o poder da força delegado aos sesmeiros pelo Estado lusitano.

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As Relações de Poder na Sociedade Sertaneja Ergue-se tal sociedade a se configurar numa nova dinâmica da geografia política nordestina, como aquela em que pesa a seu favor a existência de classes sociais compostas por homens supostamente livres, articulados, direta ou indiretamente, com os negócios da lida do gado. Nas relações de trabalho numa fazenda de gado, como é destaque na análise sociológica, não se aplica a metodologia escravista dos engenhos, mas as relações livres embora rígidas e estreitas. O critério da obediência ao dono da fazenda era uma das exigências aos agregados da estância. O não cumprimento das regras estabelecidas pelo fazendeiro, de acordo com as matrizes advindas da celebração do pacto colonial, cabia punições que iam da prisão à decretação de morte. O gado no pasto é criado às soltas. O trabalho dos vaqueiros, na lida com o gado, era livre. Os currais de confinamento serviam aos animais apenas durante o período de estiagem. Mas, a fazenda mantém pessoas sob as intenções do proprietário. Índios convertidos ou mamelucos compunham uma classe subalterna, ao lado do fazendeiro, do padre, da guarda de segurança, dos mercadores e agregados. Eis que assim se descortina uma nova perspectiva social para o Ceará. Por assim lentas e trabalhosas as viagens, ao sabor caprichoso das necessidades bovinas, e porque o sertão pulula da indiada hostil, os homens se reúnem em grupo numerosos, verdadeiras caravanas, para a realização das jornadas; convencionam-se locais certos e épocas determinadas para esses encontros: tal como no cruzamento das grandes estradas e nos vaus mais difíceis dos rios (quando correm), nesses pontos de reunião surgem ranchos onde demoram os viandantes e para os quais acorrem os selvagens circunvizinhos e os desinquietos

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negociantes que andam acima e abaixo traficando as suas mercadorias. O pouso dos tangerinos transforma-se num posto de trocas e de intenso comércio sexual; aparecem as primeiras vendas e bodegas: é uma cidade que nasce. A fórmula conserva-se e aperfeiçoa-se: na seqüência, quem quer fundar uma cidade instala à beira da estrada, num lugar de águas fáceis e próximas, uma tasca onde haja aguardente, uma casa de raparigas e, se possível, uma capela. É o quanto basta. (FERNANDES, 1977, p.58)

O recorte ilustra bem as classes sociais que manifestam dentro do processo histórico enfocado. Como podemos notar, apesar das colocações grosseiras que aos olhos de uma nova interpretação sociológica não reduz os silvícolas cearenses a selvagens, aparecem fazendeiros, tangerinos, comerciantes, prostitutas de ganho etc. Na sequência de tal identificação, o autor apresenta outro recorte de tal realidade em que podemos perceber a dinâmica do mundo do sertão, em processo, possível de se compreender a questão das classes que se aglutinam em torno do processo de produção implantado na região naquele período. A população dessas aldeias é extremamente flutuante, seu número está na razão direta da importância das estradas que se servem. Seus elementos fixos são um diverso refugo humano: terrível malta de mestiçozinhos semi-selvagens, vagabundos e desordeiros [...]. Com o tempo, acomodam-se às aldeias artistas de variados ofícios, prosperam os acanhados comerciantes, a população vai-se estabilizando. Já cidades, entretanto, esses aglomerados humanos se compõem de artífices, negociantes, funcionários da administração, trabalhadores braçais e uma amálgama informe de indivíduos sem profissão conhecida ou honesta.(FERNANDES, p.59)

A descrição do referido autor é precisa por aproximar uma compreensão micro das classes sociais dentro de tal sis-

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tema. A ressalva pertinente da análise destaca pessoas à margem daquela sociedade, que se configurava no sertão. A miopia sociológica impediria uma leitura mais crítica do processo de acumulação de riqueza na região, sobretudo naquele momento de apropriação primitiva de poder e de capital, em que as relações de mando se davam através da força física pelo uso da violência do mais forte sobre o mais fraco. Mesmo assim, feito tal comentário, a geografia política do espaço sertanejo vais sendo esboçada como a presença de tais personagens. Uma compreensão da nossa história sem levar em conta a apreciação do campo de força a existir entre as camadas sociais que disputam o direito à vida num território, naturalmente adverso, porém transformado pela ação humana, num mundo político extremamente conservador aos interesses da elite emergente, tornando-a fosca aos olhos ansiosos por uma análise mais compreensiva. Como critério de discernimento acerca da discussão, que vem sendo desalinhada do novelo que entrelaça a história cearense, debruça-se uma apreciação sobre as fazendas de gado no sertão naquele contexto. Tal olhar se monta a partir de uma apreciação da literatura de ficção, tida como regionalista, pois dela é possível identificar as imagens expressa pelo senso de produção estético de seu autor. Para tal apreciação fora eleita a obra O sertanejo do romancista cearense José de Alencar. Pelo enredo da obra se passar numa fazenda no interior do Ceará, permite ao leitor uma aproxima e compreensão das relações sociais, tanto numa escala ampla quanto particular, do microcosmo político que representara a fazenda de gado no espaço sertanejo nordestino. É, precisamente, à cata das imagens existentes no enredo da narração em destaque que o presente estudo se direciona agora. Nele verifica-se a dinâmica interna ao mundo

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das fazendas como tentativa de rever a base onde se origina o mandonismo político cearense. A fazenda de gado fora um microcosmo político no semiárido cearense. Dito isso, tal terminologia sugere que na base de sua organização, além da atividade econômica, há, também, um poder politicamente constituído, que opera dentro de uma demarcação geográfica. O campo de força girava em torno do território de domínio da fazenda e fora representado na figura central de seu proprietário, que viera a receber do próprio Estado português uma patente militar. De posse de tal poder na capitania, que lhe corresponderia a responsabilidade pela preservação da unidade territorial dos domínios lusitanos, mediante a defesa da posse contra as invasões de outros Estados europeus, principalmente franceses e holandeses, passa ele, então, a legislar, também, em defesa dos valores exauridos do que fora estabelecido pela celebração do pacto colonial. O absoluto controle de tal ordem impõe um sistema político-jurídico na colônia onde essa figura, em nome da Coroa portuguesa aplicaria, radicalmente, o poder de julgar e decidir sobre a vida e a morte dos súditos. Um olhar atencioso sobre alguns recortes da obra alencarina O Sertanejo, sem a pretensão de transformá-la em depoimento histórico, mas ao mesmo tempo apresentá-la como suporte na reconstrução do real, observamos algumas situações que nos remete a refletir a dimensão da ostentação do poder que emana a partir das fazendas. A Fazenda Oiticica de propriedade do capitão-mor Campelo ficava no sertão do Ceará. A descrição do espaço ocupado por ela segue a narrativa do autor: A morada da Oiticica assentava a meio lançante em uma das encostas da serra. Erguia-se do centro de um terreno revestido de marachões de pedra solta. Por diante, além

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do terreiro, descia a rampa com suave ondulação até a planície; atrás da habitação, remontava-se ao dorso de uma eminência donde caia abrupta sobre um vale profundo que a separava do corpo da montanha. Na frente elevava-se no terreiro, a algumas braças da estrada, a frondosa oiticica, donde viera o nome à fazenda. Era o gigante da antiga mata virgem , que outrora cobria aquele sítio.[...] As casas da opulenta morada eram todas construídas com solidez e dispostas por maneira que se prestariam sendo preciso, não somente à defesa contra um assalto como à residência em caso de sítio. Ocupava a maior área do terreiro um edifício de vastas proporções que prolongava duas asas para o fundo, flanqueando um pátio interior, bastante espaçoso para conter horto e pomar. À extremidade de cada uma dessas asas prendiam-se outros edifícios menores, alguns já trepados sobre os píncaros alpestres, porém ligados entre si por maciços de rochedos que formavam uma muralha formidável (ALENCAR, 1982, p.24).

Percebem-se na narrativa aqueles edifícios construídos no sertão por força do novo ciclo da economia nordestina, o ciclo do couro, a representar um novo ambiente social e político, com suas contradições e embates internos.

Apreciação Final Aqui não se encerra essa discussão. Pode-se assegurar um primeiro passo, como uma tentativa de compreender a origem do nosso estado e das suas relações sociais e políticas. Retratar a história das fazendas de gado no sertão cearense é não desconsiderar as nuances dos grupos políticos que vão estar à frente dos destinos políticos da nossa sociedade,

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no limiar da consolidação do Estado brasileiro, por todo o século XIX. Estudar a nossa história é ficar atento ao modelo social que se descortina a partir da segunda metade do século XVII, com a expansão das fazendas de gado. Porque daquele modelo de unidade produtiva, mesmo que pese contra si a falta de uma racionalidade capaz de usar conhecimentos para prever e prover as consequências das intempéries naturais, tão adversas, que poria fim àquele ciclo novidadeiro na economia colonial, não se deve deixar de enxergar que daquele modelo econômico e social brotou o modelo institucional da sociedade cearense, que veio a se consolidar a partir do ultimo triênio do século XVIII e até a segunda metade do século XIX, tendo Fortaleza como sede do governo a representar a centralidade do poder político e pela via parlamentar a congregar, na Assembleia Provincial, os representantes políticos dos interesses da aristocracia territorial do sertão. Finaliza-se estas traçadas linhas pedindo licença para reafirmar ser sempre desafiante diante daquilo que se pretende apresentar em sintonia com o ponto de vista de quem o lê, que na maioria das vezes busca encontrar, nas suas páginas, respostas às inquietações latentes que carecem de caminhos. Nesse sentido, tal empenho esbarra na necessidade de se reconhecer que há algo mais a ser dito, principalmente se tratando de olhares sobre universo contraditório como o em apreço.

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CORPO, PROSTITUIÇÃO E EDUCAÇÃO SEXUAL NO TERRITÓRIO DO PRAZER José Gerardo Vasconcelos Francisca Karla Botão Aranha O verdadeiro homem quer duas coisas: perigo e jogo. Por isso quer a mulher: o jogo mais perigoso. (Friedrich Nietzsche)

Era mais ou menos umas oito horas da noite, saíamos da Faculdade de Educação, da Universidade Federal do Ceará e seguíamos para outro espaço de aprendizagem, no centro do cidade de Fortaleza. Na avenida Imperador, entre as ruas Pedro Pereira e Pedro I avistávamos o nosso lócus de pesquisa. Uma casa de prostituição denominada de Gata Garota. Logo, somos barrados por um segurança, vestido de preto que ocupava toda entrada de um longo corredor que nos levaria ao coração de nosso território. Faz cara de mal, solicita com cara de poucos amigos a documentação e, talvez para ganhar respeito, ou marcar território, olha atento para nossos corpos, certificando-se que não causamos, pelo menos à primeira vista, perigo ao recinto. Após a realização desse ato, a entrada é enfim liberada para que se penetre nesse ambiente recheado de mistério e cheio de volúpia. O citado salão é constituído de imensos cartazes de dançarinas em trajes menores. Nesse mesmo espaço podemos visualizar um bar situado à esquerda atrelado ao caixa, e sobre o bar, o comando de som. Muitas cadeiras e mesas no devido espaço, e no meio desse, um pequeno palco, e do lado do pequeno palco um compartimento minúsculo, lugar esse onde as dançarinas profissionais do sexo se preparam com trajes insinuantes, seja uma roupa inventada pela própria garota ou uma fantasia comprada em lojas do centro da cidade.

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No final do corredor uma luz vermelha chama a atenção dos clientes, nela escrita a palavra MOTEL, lugar esse reservado para os programas contratados pelos clientes no referido território de prazer. Ao lado podemos encontrar dois banheiros, um masculino e um feminino. Mulheres e homens circulam nesse território. Saltos femininos exibem compassos e exaltam as curvas femininas ao som da música que invade nossos ouvidos. O cheiro de bebida invade todo o território. Entre as mesas as dançarinas exibem as suas formas em traços de volúpias e movimentos. Foi nesse território que conhecemos uma de nossas entrevistadas, que hoje diz ser uma ex-prostituta, a qual nos informa como ela concebe o puteiro: O puteiro é um ambiente muito alegre, possui o dinamismo da música, as atenções são voltadas para as mulheres. Por mais que a prostituição tenha seu lado ruim, não se pode esquecer que é nesse ambiente que as putas sentem-se em seu território. Lá elas são desejadas, aplaudidas, escolhidas mesmo que por alguns instantes é despertado o sentimento de atenção.

Sob o olhar de uma autora pesquisadora, eis a definição de um prostíbulo. Sousa (2000): O ambiente de um prostíbulo é algo lúdico, no qual tudo é, aparentemente, permitido, lá se espera concretizar as fantasias sexuais que, por uma série de razões, não têm lugar apropriado e não são permissíveis no lar com a esposa (SOUSA, 2000, p.103).

Nesse mesmo território onde o prazer é exaltado, pode-se também localizar marcas de descompassos que desencadeiam cuidados referentes ao corpo, sobretudo, os esmeros realizados pelas profissionais do sexo em relação a uma preservação contra DST (Doença Sexualmente Transmissíveis).

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Abordar a educação sexual não é novidade, principalmente quando se pensa a questão da sexualidade vista de forma histórica, entretanto faz necessário lançar nosso olhar ao grande alvo. Produto e efeito do poder. Aquele que desperta nossos instintos mais primitivos: o corpo. Os cuidados com o corpo vão se desenvolvendo em conexões múltiplas. Espaços, territórios e lugares lampejam em plena apropriação e possibilidades de controle. São modos impactantes nem sempre caracterizados de acordo com a época, mas inseridos em momentos de territorialidades que se desmancham nas teias de uma sociedade, cujas marcas estão introduzidas, em compartilhamento de signos estéticos, espaços de sempre novas conceituações ou lugares que se desarrumam para considerar novos aspectos de “pura” beleza. Vale ressaltar que o corpo é teia de significados espaciais. Transgride o tempo e o espaço e se esmera em sempre novas construções territoriais, pelas quais são aferidos em distintas marcas ou diferentes congraçamentos espaço-temporais. Para evocar incertezas impactantes, ou recobrir com o manto da vergonha as curvas sinuosas, o corpo sofre transformações, ou seja, é mutável e mutante, apto a inúmeras intervenções de acordo com o desenvolvimento científico e tecnológico de cada cultura e suas máquinas de controle. De acordo com Del Priore (2000), foi no transcorrer do século XX que a mulher se despiu. Visto que o nu dos corpos apresentados na mídia, ou seja, na televisão, nas revistas, nas praias, interferiram para que o corpo, desvelasse em público e, consequentemente, fosse se banalizando para atender os impulsos sexuais. Para tal exposição, foram necessários muitos cuidados com o corpo, como uso excessivo de cremes, vitaminas, silicones e colágenos. Assim, revela Del Priore (2000):

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Uma estética esportiva voltada ao culto do corpo, fonte inesgotável de ansiedade e frustração, levou a melhor sobre a sensualidade imaginária e simbólica. Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da rejeição social (DEL PRIORE, 2000, p.11).

Quando se faz necessário expor a sensualidade à flor da pele, praticar exercícios envolventes e inovadores, buscar atividades corporais em outros estados de pureza ou campartilhamento que acelere a performance corporal a busca da plenitude da beleza se justifica. Nossa entrevistada fala da chegada da arte do Poli Dance1, ou seja, como essa foi aderida: Fui a São Paulo em 2001, lá as meninas já faziam essa dança, porém, lá é diferente daqui, pois o show delas é pago pela casa como se fossem uma miniestrela, tem empresário, as meninas ganham bem, podem cuidar melhor do corpo. Aqui, coitadas, só se o cliente pagar, e ainda é muito pouco.

A entrevistada revela a importância da valorização da profissional do sexo, pois com essa atitude há uma maior intensidade de estímulo aos cuidados com o corpo e, consequentemente, a saúde do mesmo, fazendo com que o número de clientes também possa aumentar nos cabarés. Ela ainda nos revela que: Cada noite que passava a concorrência ia aumentando, e é aquela coisa, tem a oferta e a procura. E a oferta tem que ser a atração, tem que ter o atrativo. Então, meu dia era todo dedicado a cabelo, roupa, a beleza, e o dinheiro dos meus programas cobria todos esses gastos.

A importância com a estética era, cada vez mais, necessária, mesmo porque o instrumento de trabalho da profissio1 Poli Dance – Trata-se de um cano localizado no pequeno palco onde são pratica-

das danças sensuais e requer esforço físico para fazer manobras no referido cano.

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nal do sexo é o corpo. É com ele que elas poderão satisfazer sexualmente o cliente. Sendo bela, ou constantemente bela, ou simplesmente bela para que sempre desperte o desejo em território recheado de sensualidade. Porém, é necessário ressaltarmos que, segundo Del Priore (2000), o corpo feminino sofreu uma revolução silenciosa nas ultimas três décadas. A pílula anticoncepcional permitiu-lhe fazer do sexo, não mais para satisfazer uma problema moral, mas de bem-estar e prazer. Com isso a mulher tornou-se mais exigente em se tratando do seu parceiro, proporcionando assim uma sexualidade mais ativa e prolongada. Entre ambos surgiram normas e práticas mais igualitárias. Porém, a corrente de igualdade não varreu, contudo, a dissimetria profunda entre homens e mulheres na questão da atividade sexual. Quando da realização da ação, desejo e excitação físicos continuam compreendidos como domínio e espaços de ordens masculinas. Visto que, o casal quase nunca reconhece a existência e a autonomia do desejo feminino, fazendo com que seus desejos mais primitivos, seu gozo, suas pulsões possam se esconder atrás de uma capa de afetividade. A ditadura da perfeição física empurrou a mulher, não para a busca de uma identidade, mas de uma identificação fincada em múltiplos espaços. Fazendo com que a mulher seja vista como um objeto de prazer sexual e que ela possa ­tornar-se mais bela para que seja desejada. Porém, com a revolução sexual eclipsou frente aos riscos da AIDS. Portanto se faz necessário cuidado com o corpo, mas, sobretudo, a saúde e o bom funcionamento das atividades corporais. Podemos revelar que a ideia sugerida por uma sociedade consumista, é que a história das mulheres passa pela história de seu corpo. Então, referindo-se à beleza, revela Del Priore (2000):

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A mulher tem uma beleza considerada perigosa, pois capaz de perverter os homens. Sensualidade mortal, pois comparava-se a vagina a um poço sem fundo, na qual o sexo oposto naufragava. As noções de feminilidade e corporeidade sempre estiveram, portanto, muito ligadas em nossa cultura (DEL PRIORE, 2000, p.14).

O que deve e como deve expor. Isso é uma escolha. O que poderá esconder em relação ao corpo? Para dar respostas a essas perguntas o olhar deverá estar fixado nas mudanças e impactos culturais. Ou se voltarmos a nossa atenção aos territórios de prazer vislumbraremos que muitos desses aspectos dependerão não somente de determinada cultura, ou época em que a sociedade está inserida, mas, sobretudo, das novas práticas culturais, educativas e territoriais. Atualmente, após séculos de ocultação, nossa sociedade se desprendeu de uma legítima sacralização dos corpos. No que se refere à higiene e o esporte, primeiro reabilitaram os homens, porém os corpos femininos, rapidamente, seguiram esse mesmo ritmo. Até porque se faz necessário o cuidado com os corpos, visto que, a mulher é objeto de desejo em todas as culturas. Os cuidados com a higiene podem ser apreendidos no próprio espaço privado, passados de gerações a gerações no âmbito público, através das mídias, ou seja, em qualquer lugar. Podemos perceber que existe um processo mimético no decorrer, em alguns caos, dessa prática de higienização. Segundo as ideias de Wulf (2004): Ainda que toda definição sistemática do conceito dessa forma insuficiente, almeja-se agora revelar outras características da mimesis. Antes de tudo, mimesis significa imitação. Enfim, ela significa a reprodução de um quadro ou de uma imagem de uma pessoa ou de uma coisa em sua forma material (WULF, 2004 p.350).

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O processo mimético refere-se à imitação de comportamentos individuais ou de um grupo para ampliá-lo ao conjunto da sociedade. No ambiente profissional, o prostíbulo não é diferente, também se caracteriza como um lugar de aprendizagem, no qual se destaca o aprender a cuidar do corpo, a higienização, conforme nos relata uma das entrevistadas: Aprendi no cabaré a fazer ducha, utilizada antes e após o ato sexual. Essa higienização consiste em dar um jato de líquido dentro da vagina. Esse líquido é composto da dissolução de um sachê de LUCRETIM. Esse é um pó utilizado para higienização feminina, adicionado com água morna, na qual a menina introduz na vagina. Essa substância funciona como um desodorante para amenizar o odor da genitália feminina, servindo para a preservação de bactérias, pelo fato da camisinha possuir um óleo industrial que pode favorecer a proliferação de bactérias, preservando também rachaduras no útero, consequente de um intenso ato sexual.

Os cuidados com os corpos eram necessários dentro do cabaré, pois, para algumas pessoas, o prostíbulo é considerado um ambiente sujo, sem a higienização. Porém, através de várias visitas realizadas aos prostíbulos do centro da cidade de Fortaleza, podemos verificar que as profissionais do sexo estão sempre muito preocupadas com os cuidados corporais, pois esse é o seu instrumento de trabalho. Certa vez, em conversas informais sobre a questão da aparência física, uma das prostitutas nos revelou que no momento que dançam para o cliente, quando o mesmo paga para que aquela profissional do sexo se insinuasse para ele, elas se sentem poderosas, pois os olhares se voltam para seu desempenho no pequeno palco. Nesse momento é marcada a importância de ter o “corpo em forma”, ser atrativa para então poder surgir, quem sabe, uma saída até o motel, que

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se encontra no mesmo território, como uma opção para o cliente. A responsabilidade do cuidar com o corpo está presente em todas as culturas. Por exemplo, desde o início do século XIX, na Europa, multiplicavam-se os ginásios, os professores de ginástica, os prontuários de medicina que abraçavam a atenção para as vantagens físicas e morais dos exercícios. A elegância feminina começou a combinar com a saúde, ser bela era essencial para seduzir o homem, então cuidar da beleza era consequência do cuidado com a saúde. Porém no Brasil, nessa mesma época em que o corpo feminino começava a se movimentar rumo aos esportes, já era o início da República, no qual as cidades trocavam a aparência paroquial por ares cosmopolitas, segundo Del Priore: Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se a um templo se evadisse um ídolo. É como se um frasco se evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada em banalidades é um criminoso esbanjamento de energia. A família se dissolve e perde a urdidura firme e ancestral dos seus liames (DEL PRIORE, 2000, p.64).

Pode-se perceber que o cuidado com a forma física estava relacionado com a aparência em que se queria dar ao corpo, para que esse seja desejado, e que preenche os requisitos da sociedade. Então, a revolução dos costumes começou a subir saias. A cintura de vespa, herdada em alguns séculos, continuava aprisionada em espartilhos. A medicina evoca a importância de exercícios físicos e vida saudável para preservar, não somente a saúde, mas também, a pele saudável, o corpo firme e jovem, mas em aspectos relacionados à vida higiênica, Del Priore informa:

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As feias [...] não devem fingir-se belas. Contentem-se em ser feias, tratar de educar seus espíritos, de viver higienicamente para adquirir saúde, de nutrir-se convenientemente, de ser simples, bem-educadas e meigas. A vida higiênica, a boa nutrição, os esportes garantir-lhes-ão a saúde, a boa pele, os bons dentes, a harmonia das formas, o desembaraço dos gestos e a graça das atitudes; a leitura sã, o cultivo do espírito, dar-lhes-ão inteligência e a fronte; a bondade, a simplicidade, a meiguice torná-las-ão perturbadoramente simpáticas. Deixarão, pois de ser feias; ou, se continuam feias, valerão mais do que as belas, terão mais prestígio pessoal, impor-se-ão às simpatias gerais. (DEL PRIORE, 2000, p.72).

Mas quando o objeto de trabalho é a exposição do próprio corpo, como é o caso das prostitutas devem ser utilizados cuidados excessivos com o corpo e responsabilidades com o mesmo. A questão da imagem é um fator importante para a busca da autoestima das prostitutas. É com o corpo que elas despertam desejo, mas também insegurança proveniente do descuido da autoimagem. De acordo com uma de nossas entrevistadas a uma revelação de o quanto ela se sentia bem quando alguém a elogiava. Gostava quando alguém a tratava como uma pessoa “normal” 2, ou seja, quando era aceita pela sociedade. É justamente através da imagem e do cuidado com ela que se destaca uma prostituta. Com o decorrer dos anos, a cultura feminina das aparências foi se modificando e, desde o século XVI, se foram moldando cuidados diferentes com a beleza, segundo Del Priore (2000): A depilação das sobrancelhas, a pintura dos olhos e dos lábios, a coloração das maças do rosto, o relevo dado à fronte atestavam uma nova representação da mulher. 2

Normal – Refere-se a uma mulher que não seja profissional do sexo.

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Preparações variadas desdobravam-se em maquilagens pesadas, muito parecidas a máscaras (DEL PRIORE, 2000, p.23).

É justamente através dos cuidados com a pele e com o corpo que a prostituta tem de estar preocupada, pois esses são fontes principais da sua profissão, estar bonita, estar provocante para ganhar em uma concorrência em relação a outras meninas. A quantidade de programas realizados está também relacionada ao modo como se ajeita, se provoca, se comporta mediante um pequeno palco, onde a menina possui alguns minutos para convencer o cliente de que seu programa valerá à pena. Porém, vale ressaltar que a prostituta também pode interpretar as questões de uma beleza ilusória, que usam a carência da sua vida privada, junto à família, para buscar a devida atenção, muitas vezes, dentro de um prostíbulo, podemos perceber essa passagem na fala de uma das entrevistadas: As meninas transferem a falta de atenção da família e a aplicam em uma atenção ilusória, onde as profissionais do sexo são personagens, são notadas, admiradas, fatores esses que nos faz sentirmos importantes, porém, uma importância ilusória, visto que, ao mesmo tempo que nos sentimos um máximo, sabemos que para aqueles clientes, não temos valor algum, somos objetos de prazer, da paixão momentânea de homens que procuram alguns minutos ou horas de desejos alcançados.

Nossa entrevistada mostra o quanto a beleza física pode influenciar na sua autoestima. Naquele instante em que a prostituta está no centro do pequeno palco e as luzes estão todas voltadas para ela, a sua minifantasia está despertando os olhares arregalados, a palpitação excessiva dos clientes e a vontade de se apoderar do corpo da profissional do sexo, fazem com que essas notem o quanto são dominadoras, envol-

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ventes, e o poder de ter trazido aquele cliente até seu lócus de trabalho. Porém, esse mesmo sentimento se choca com o acabar daquela noite, em que todos saem satisfeitos ­carnalmente, e a prostituta sente-se então usada, o objeto de prazer. Vale revelar, a partir de entrevistas realizadas, a existência de algo a mais que desejo somente carnal, mas casos de uma paixão do cliente com a prostituta e vice-versa, fazendo com que esse envolvimento deixe de ser apenas em seu âmbito público3, mas, sobretudo fazendo parte da vida privada4 dessa prostituta. Em se tratando do zelo e do cuidado com o corpo, pode-se ampliar ainda mais sua importância para a vida social ou profissional da prostituta, a partir de um breve contexto, irei abranger um desses cuidados com o corpo, que caracteriza o foco dessa pesquisa, a chamada Educação Sexual. Essa é, sem dúvidas, de uma relevância social indispensável, visto que esse tema vem possibilitando, cada vez mais, discussões não somente no âmbito escolar, mas também nos ambientes extraescolares. Pois, a Educação Sexual tem como objetivo, preparar as pessoas para a vida sexual de forma segura, sendo notório o aumento de DST5, de gravidez indesejada e aborto. Porém, a preocupação com o sexo não é fator recente, pode-se notar que a apreensão do sexo no setor colegial, mais precisamente no século XVIII, já era discutida, assim nos revela Foucault (1985): O sexo do colegial passa a ser, no decorrer do século XVIII, e mais particularmente do que o dos adolescentes em geral, um problema público. Os médicos se dirigem aos diretores dos estabelecimentos e aos professores, também dão conselhos às famílias; os pedagogos fazem projetos 3

Âmbito público – refere-se ao ambiente de trabalho da prostituta, ou seja, sua vida profissional. 4 Vida privada – constitui a vida pessoal da profissional do sexo. 5 DST – sigla utilizada para referir-se a Doenças Sexualmente Transmissíveis.

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e os submetem às autoridades; os professores se voltam para os alunos, fazem-lhes recomendações e para eles redigem livros de exortação, cheios de conselhos médicos e de problemas edificantes (FOUCAULT, 1985, p.30-31).

É claro, através dessa passagem, que existe uma forma de discurso concentrado nesse tema, ou seja, na Educação sexual, constituindo pontos de implantações diferentes, codificando os conteúdos e qualificando os locutores. Se julgava importante falar do sexo das crianças, fazer com que falem dele os educadores, os médicos, os administradores e os pais, ou então, falar do sexo com as crianças, fazer falarem elas mesmas, encerrá-las numa teia de discurso que ora se dirigem a elas, ora falam delas, impondo-lhes conhecimentos. E também no contexto atual, uma de nossas entrevistadas reforça a importância de se falar da Educação Sexual nas escolas e como deveria ser feito esse diálogo: Para se falar de Educação Sexual entre pais e filhos, precisa-se que haja um diálogo sem juízo de valor e sem preconceitos. Temos que compreender que os adolescentes são quase adultos e estão construindo seus próprios valores, que podem ou não vir a ser iguais aos de seus pais. É também de muita importância que os pais escutem os jovens, pois, muitas vezes, aqueles impõem seus valores e não deixam os jovens exporem suas ideias como se essas fossem equivocadas, porque é justamente através dessa conversas entre pais e filhos, que os adolescentes podem colocar suas dúvidas e receios.

Essa passagem vem a reforçar que é preciso, antes de tudo, quebrar os tabus acerca da sexualidade, possibilitar que esses jovens tirem suas dúvidas, questionem, obtenham informações adequadas que sirvam de base para um sexo seguro. Lapate (2006) nos esclarece que apesar de ocorrerem alguns questionamentos acerca da forma como a sexualida-

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de é negada em nossa sociedade, estando referente, também, porque até alguma parte dos educadores acreditam que a sexualidade não é importante para ser tratada em uma sala de aula e muito menos não constitui um tema cogitado no trabalho pedagógico escolar. No entanto, o autor assume que essa educação se faz necessária para o educando adquirir acesso às informações e consequentemente possa passar a refletir sobre outros assuntos polêmicos, como o uso das drogas, a questão dos tabus e a própria Educação Sexual. A entrevistada apresenta-se para a questão da Educação Sexual e revela: Aprendi a me cuidar através da curiosidade, mesmo porque nem meus pais, nem a escola que estudei me orientaram sexualmente. Minhas amigas falaram para eu usar sempre camisinha, está sempre prevenida, andar com ela na minha bolsa.

O contato com profissional do sexo e por nós entrevistada revela a importância da Educação Sexual e deve ser vista desde a infância, com a ajuda da família e da escola, pois poderá despertar a conscientização de que é necessário se prevenir de questões postas pelo risco ou curiosidade. Foucault (1985) revela que no século XVIII, que havia certa organização de uma escola experimental cujo objetivo principal no controle e numa educação sexual tão bem planejado que nela o pecado universal da juventude nunca deveria ser exercido. E a partir desses fatos mostrarem que a criança não deveria ser um objeto mudo e inconsciente de cuidados decididos, exclusivamente por adultos, impunha-se-lhe certo discurso razoável, restrito, canônico e verídico sobre o sexo. A questão do sexo tornou-se tão intensa no século XVIII, que Foucault (1985) ressalta: Diante do público reunido, um dos professores, Wolke, formulou aos alunos questões selecionadas sobre o mis-

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tério do sexo, do nascimento, da procriação: levou-os a comentar gravuras que representavam uma mulher grávida, um casal, um berço. As respostas foram esclarecidas, sem embaraço, nem vergonha (FOUCAULT, 1985, p.31).

Foucault (1985) ressalta que a partir do século XVIII, o sexo das crianças e dos adolescentes passou a ser um importante foco em torno do qual se dispuseram diversos dispositivos institucionais e estratégias discursivas. Existe a possibilidade de ter sido escamoteado, aos próprios adultos e crianças, certa maneira de falar em sexo, desqualificada como sendo direta curta e grosseira. Porém, isso não passou da contrapartida e, talvez da condição para trabalharem outros discursos, múltiplos, entrecruzados, sutilmente hierarquizados e todos estreitamente articulados em torno de um feixe de relações de poder. Desde o século XVIII, o sexo não deteve de provocar uma espécie de erotismo discursivo generalizado. Em tais discursos acerca do sexo nota-se que não se multiplicaram fora ou contra o poder, porém onde ele se desempenhava e como meio para seu exercício, ou seja, existe um jogo de interesse que permeiam para que tal assunto seja explorado. Então, se criaram em todos os lugares estímulos a falar sobre o sexo, em todos os cantos dispositivos a fim de escutar e registrar, processos para observar, interrogar e formular. Do singular imperativo que impõe a cada um fazer de sua sexualidade um discurso fixo, aos diversos mecanismos que, na ordem da economia, da pedagogia, da medicina e da justiça, incitam extraem,organizam e institucionalizam o discurso do sexo. É interessante revelar que, talvez, nenhum outro tipo de sociedade do século XVIII, jamais tenha acumulado, e no período histórico, consideravelmente tão curto, tal

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quantidade de discurso sobre o sexo. Porém, podemos chegar a uma conclusão que jamais falaremos o suficiente a respeito do sexo, porque somos demasiadamente tímidos e medrosos, as quais esconderam a deslumbrante evidência, por inércia e submissão. Segundo Foucault (1985): O segredo do sexo não é, sem dúvida, a realidade fundamental em relação à qual se dispõe todas as incitações falar de sexo, quer tentem quebrá-lo quer o reproduzam de forma obscura, pela própria maneira de falar. O que é próprio das sociedades modernas não é o terem condenado o sexo a permanecer na obscuridade, mas sim o terem devotado a falar dele sempre, valorizando-o como segredo (FOUCAULT, 1985, p.36).

De acordo com Foucault (1985), o discurso sobre o sexo, já existe há três séculos, tem se multiplicado em vez de rarefeito, e que se trouxe consigo interditos e proibições. Durante séculos a verdade do sexo foi encerrada, pelo menos, quanto ao essencial, com relação a essa forma discursiva e não na do ensino, visto que a Educação Sexual se limitou aos princípios gerais e as regras de prudências. Ainda existe certo tabu ao se falar sobre as questões que envolvem sexo. Mas com a vida sexual iniciando-se, cada vez mais cedo, é necessário se falar, retratar a Educação Sexual. Esse conceito teve como precursora, a França. Abordar a educação sexual não é novidade, principalmente quando se pensa a questão da sexualidade vista de forma histórica. Segundo Lapate (2006) temos a concepção de que: Na moderna Educação sexual projetada para o terceiro milênio abrange todo aspecto de informação científica, atitudes culturais e aprendizagem que estão implícitas no homem e na mulher [...]. A educação sexual abrange o aspecto total do comportamento humano, a compreensão das necessidades básicas no que diz respeito

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a pertencer, a amar e ser amado, respeitando-se os direitos dos outros (LAPATE, 2006, p.50).

Sobre a questão do respeito e do amor referente, ou como estímulos para a importância da Educação Sexual, diz uma de nossas entrevistadas, que devemos amar uns aos outros para educar corretamente. Ela ressalta que, dentro desse tema acerca da educação sexual há todo um jogo de saberes e poderes que marcam a questão da sexualidade e têm que entender a questão da sexualidade como uma forma de cidadania. Lapate (2006) revela a importância da discussão de todos os ângulos que diz respeito à Educação Sexual, do que permeia ao redor do respeito, amor próprio, preocupação com doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada, entre outras preocupações cabíveis. A Educação Sexual, desde seu debate inicial acerca da sexualidade, sofreu várias formas de repressão, sendo marginalizada e perseguida pela moral. Somente com o passar do tempo é que essa discussão adquiriu espaço, importância e credibilidade, vistas nos dias de hoje como necessidades básicas para a sobrevivência do ser humano, visto que um indivíduo sem informação pode engravidar em uma hora indesejada, pode adquirir doenças e até chegar à morte.

Referências Bibliográficas DEL PRIORE, Mary. Corpo a Corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: Editora SENAC, 2000 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1985.

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LAPATE, Vagner.  Educando para a vida, sexualidade e saúde.  São Paulo: Ed. Sttima, 2006. SOUSA Ilnar de. O cliente: O outro lado da prostituição.Secretaria de Cultura e deporto. São Paulo: Annablume, 2000 WULF, Christophe. Antropologia da educação. Campinas: Alinea, 2004.

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CAPÍTULO 2

Espaço, Religião e Festas Populares

TEMPOS DE FESTA: ESPACIALIDADES E SIMBOLISMOS Otávio José Lemos Costa

Introdução A abordagem de temas marginais à geografia tem favorecido uma dupla observação. Primeiro, o olhar enviesado daqueles que ainda estranham o olhar dos geógrafos para os fenômenos os quais supostamente eram considerados pertencentes à seara de outras ciências humanas, por outro lado, a adoção daqueles temas por geógrafos que enxergavam a presença dos mesmos na explicação de paisagens, na definição de lugares e na formação de territórios e territorialidades. A geografia atual deleitando-se com temáticas como religião, literatura, música, cinema, gênero entre outras, deve render um tributo àqueles geógrafos que a partir da década de 1970, travaram intensos debates epistemológicos, teóricos e metodológicos e pelos quais emerge a geografia cultural renovada, elegendo o significado como palavra-chave para o fazer-acontecer em nossas realidades cotidianas. O entendimento pelo qual se faz do real enseja a compreensão da produção e reprodução da vida material, sendo esta mediada na consciência e sustentada pela produção simbólica, convergindo, portanto, para a já tão conhecida afirmação de Cosgrove (1998), “a geografia está em toda parte”. O presente texto trilha por uma temática já algum tempo adotada por geógrafos, os quais interessados na abordagem cultural elegeram a festa como objeto de suas pesquisas. (Sobre os geógrafos interessados nessa temática ver quadro apresentado por Correa e Rosendah) (2012, p.95). A nossa contribuição esteia-se numa compreensão da festa enquanto fenômeno

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de uma espacialidade associada a uma manifestação cultural inserida em um contexto da religiosidade popular, na qual a festa se reveste em um território lúdico marcado por utopias (PRIORE, 2000), bem como paisagens e lugares definidOs por ações que eclipsam a rotina de seus participantes. Para a discussão do presente texto, elegemos três momentos: o acontecer festivo, a estruturação de lugares simbólicos bem como a perspectiva de uma paisagem cultural atrelada às festas religiosas. Para essa discussão, nos pautamos em uma abordagem teórica referenciada nos temas elencados pela geografia humanística e cultural, sobretudo, aqueles que se referem à temática em tela. Entendemos também que a nossa compreensão ao falar de festa e suas manifestações espaciais, nos conduzem a um olhar pelo qual deva ser contextualizado em uma teia de significados e, conforme Cassirer (2001), faz-se necessário ir além de sua organização, constituição e estrutura. Portanto, nos valemos da existência dos significados que fazem parte da festa, dos personagens e suas práticas sociais pelas quais constroem sua própria realidade.

O Acontecer Festivo A Geografia Cultural vem ultimamente destacando em sua agenda de pesquisas o temário da festa enquanto manifestação espacial. Manifestação esta considerada um fenômeno de natureza sociocultural, e que permeia toda a sociedade, significando uma trégua no cotidiano rotineiro e na atividade produtiva. Sua natureza é intrinsecamente diversional, comemorativa, pautando-se pela alegria e pela celebração. Em meio a uma pluralidade do olhar por parte daqueles interessados no tema, consideramos a festa como uma necessidade social e espacial, pela qual se opera uma superação das con-

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dições normais da vida. Trata-se de um acontecimento que se espera, criando-se assim uma tensão coletiva agradável, na esperança de momentos excepcionais. A festa é, portanto, a expressão de uma expansividade coletiva, uma válvula de escape ao constrangimento da vida quotidiana. Nossa proposição aqui é compreender a festa e seu tempo festivo, na perspectiva da religiosidade popular, uma vez que esta apresenta diversas manifestações do sagrado e também do profano. Devemos, portanto, voltar nossa atenção não só para o significado simbólico da religiosidade e seus múltiplos aspectos, mas também verificar o papel da festa enquanto momento de celebração e que reatualiza o tempo sagrado. Assim, compreendendo a festa pelo viés da religiosidade popular, observamos que ao falarmos de lugar, de paisagem, de território, encontraremos neste contexto, manifestações socioespaciais pelas quais estão imbricados não só com a produção, mas também com os meios de trabalho, exploração e distribuição, ela é, portanto consequência das próprias forças produtivas da sociedade, por outro lado é uma poderosa força de coesão grupal, reforçadora da solidariedade vicinal cujas raízes estão no instinto biológico da ajuda, nos grupos familiares. Assim, a preocupação do homem em se esforçar para reatualizar o calendário sagrado e o tempo das festas irá marcar, conforme Eliade (1996), o “tempo de origem de uma realidade” e que, segundo este autor, o homem busca reencontrar este tempo de origem, ou seja, a reatualização periódica dos atos criadores efetuados pelos seres divinos in illo tempore, ou seja, o tempo primordial em que se realizou a hierofania por uma divindade, por um antepassado ou por um herói. A reatualização periódica da festa, que ocorre no “tempo original” é o momento em que os gestos simbólicos se voltam para a reverência dos deuses, onde os partici-

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pantes da festa tornam-se os contemporâneos de um acontecimento mítico. Nesse momento é fundamental nos voltarmos novamente para Mircea Eliade (2000) e entendermos a festa como um fenômeno pelo qual se apresenta como uma transgressão. Em “O Mito do Eterno Retorno”, há uma apropriação do conceito filosófico proposto por Nietzsche, que nos fala dos ciclos repetitivos da vida, nos quais estamos sempre presos a um número ilimitado de fatos. Portanto, o “eterno retorno” que nos fala Eliade irá tratar, do tempo cíclico (mitológico e sagrado), e o linear atemporal e profano. Eliade se preocupa em dirimir de maneira breve qual o significado daquilo que chamamos de arquétipos e repetições. A festa dessa forma pode ser considerada um modelo que se revela ao homem em tempos míticos e sagrados.

Nas festas, o homem procura honrar seus deuses, estabelecendo um calendário festivo, em que durante aqueles dias, somente reinará o sagrado. Nesse momento, os trabalhos terrenos são esquecidos e todo o pensamento se volta para a adoração divina. Coulanges (1981) estudando a religião da cidade, nos mostra que todas as urbes haviam sido fundadas segundo rituais que no pensar dos antigos, tinham como efeito fixar, dentro de seus muros, os deuses nacionais e para tanto “era preciso renovar todos os anos, para nova cerimônia, as virtudes deste ritos” (COULANGES, 1981, p.166). A festa também é a ocasião para a fusão de reencontros e sentimento. Nela vamos reencontrar a dimensão sagrada da vida e no dizer de Eliade é a dimensão sagrada da existência, ao se aprender novamente como os deuses ou os antepassados míticos criaram o homem e lhe ensinaram os diversos comportamentos sociais e os trabalhos práticos (ELIADE, 1996, p.86).

O sentido de reencontro na festa é pleno de significados, de valores e sentimentos. Os participantes da festa buscam a

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nostalgia, um refazer de gestos e comportamentos. Esta nostalgia pode ser percebida nas festas de padroeiro, por exemplo, quando as pessoas retornam aos seus lugares de origem, para pagar promessas ou simplesmente para vivenciar seus rituais festivos, rever parentes e amigos, andar pela cidade, reconhecer velhos lugares. O retorno para a festa também faz parte do mundo ritual e como afirma Maia (2001, p.182) “o deslocamento aí realizado assume um significado ímpar, pois, enquanto na vida cotidiana, o que importa é a saída de casa e a chegada de no trabalho e vice-versa”. Essa irrupção no cotidiano promove esse sentido de retorno pelo qual estar na festa é deixar-se levar pelos caminhos da emoção. A festa é um momento em que o reencontro das pessoas é carregado pela emoção, sendo analisado como um excesso vivido e praticado, um remédio para o desgaste do tempo humano. Nesse sentido, a festa marca sempre o retorno ao passado, realizado por meio de técnicas e ações simbólicas precisas, que é um retorno a uma idade do ouro. Desta forma, a festa atua como memória (MESLIN, 1982, p.118).

No que diz respeito aos elementos simbólicos, a festa traz consigo uma forte carga simbólica. O simbolismo tradicional que existe na religiosidade popular é analisado por Cipriani (1989) ao ser evidenciado na festa, alternativas às novas posições iconográficas da modernidade, mesmo se às vezes ele copia os caracteres e utiliza tais instrumentos. Nesse ponto de vista, o confronto pelo qual nos fala Meslin (op.cit), a respeito do antigo e do moderno, pode ser verificado nas diversas manifestações culturais, como as festas religiosas. Estas manifestações mesclam elementos do passado com elementos do presente e simbolicamente se fundem no binômio da espontaneidade e do sentimento nos quais pode ser encontrado habitualmente nas festas e na vida cotidiana.

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Nas festas são encontrados os simbolismos religiosos. Configuram-se como símbolos visíveis e ativos, estabelecendo um vínculo, uma nova relação entre os homens. Podemos afirmar que esses símbolos estabelecem uma relação com o espaço vivido e assim pode-se vincular estreitamente à análise dos símbolos religiosos a toda uma tradição doutrinal interna que lhes confere uma significação específica, porem também ao entorno cultural que essa tradição tem se desenvolvido (MESLIN, 1978, p.205).

O simbolismo presente nas festas, sobretudo aqueles presentes no catolicismo popular enquanto catolicismo rural caracteriza-se pela presença marcante dos leigos enquanto agentes estimuladores da vida religiosa, representados e mantidos pelas irmandades, romarias, santuários, procissões e conforme Chaui (1990:73) entra em conflito com a imposição da romanização, isto é, do catolicismo tridentino que privilegia a autoridade sacerdotal. Entretanto, é importante salientar que os símbolos designam a expressão de uma manifestação de fé e adoração. Reverenciar o santo padroeiro, por exemplo, indica o desejo de recuperação de uma solidariedade, de uma vivência intensa, de um exercício de fantasia.

Festa e Lugar Simbólico A espacialidade da festa provoca uma irrupção da rotina. No seu tempo festivo, os lugares são redimensionados e tornam-se pontos de partida para uma agitação que é promovida por aqueles que participam da festa. Neste sentido Isambert (1982, p.126) nos lembra que “a festa é a transgressão das regras que o sagrado impõe à vida cotidiana, uma maneira de reconhecer o sagrado”. Neste momento, percebe-se que o

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tempo da festa se apresenta muitas vezes como um tempo de excessos permitido. Surge o lugar onde emerge o desejo coletivo, de contraordem. O lúdico ganha espaço para dimensionar o profano. Aqui observamos a existência de relações as quais são mediatizadas pelos símbolos que podem ser uma realidade material e une-se a uma ideia a um valor e a um sentimento. No contexto simbólico da festa, o lugar se torna fundamental enquanto parâmetro para ações reveladoras de singularidades a afeições. Neste sentido, Entrikin (1991), nos chama atenção para conceito geográfico de lugar, fazendo referências ao contexto de uma área que inclui objetos e ações. Neste contexto também estão presentes os elementos relacionados à natureza bem como aqueles representados pelas ações humanas. O interesse em descrever e compreender o contexto natural associado com as distintas formas de vida pode ser ampliado no sentido de envolver a dimensão simbólica estabelecida a partir das relações criadas entre o homem e seu meio. O simbolismo das festas no âmbito do lugar é revelador de práticas pelas quais os lugares são centros onde são atribuídos valores e também são satisfeitas as necessidades para as realizações primeiras do homem. Neste propósito, necessitam ser complementados por dados experienciais que possam coletar e interpretar suas características diversas, com fidelidade, porque, segundo Tuan (1983), temos o privilégio de acesso a estados de espírito, pensamento e sentimentos. Ao participar da festa, percebemos os significados que os indivíduos atribuem aos lugares, estes associados com o cotidiano, movimentos e atividades dos mesmos no lugar. Explorando o significado dos lugares na perspectiva do acontecer festivo e sua dimensão simbólica, especificamente na esfera do sagrado, pretendemos mostrar que não existe

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um único significado para o lugar, mas sim pluralidades interpretativas. Entendemos ainda que as relações intersubjetivas engendram a produção do lugar e esse universo plural de interpretações coaduna-se ao pensamento de Merleau-Ponty (1999, p.328), que ao considerar o espaço como uma espécie de éter no qual todas as coisas mergulham, ou de concebê-lo abstratamente com um caráter que lhes seja comum, devemos pensá-lo como potência universal de suas conexões. Dessa forma, o mundo, enquanto lugar de vida não é apenas o ambiente real e lógico nas quais as coisas se tornam possíveis, mas um palimpsesto de experiências vividas e partilhadas em evidências de um mundo subjetivo. Tomando como esteio teórico as filosofias do significado, especialmente a fenomenologia e o existencialismo, a geografia humanista será definida através de parâmetros que se assentam na subjetividade, na intuição, nos sentimentos, na experiência vivida e no simbolismo. Compreender, portanto, o acontecer festivo tomando por base os estudos fenomenológicos, consideramos uma apreensão do significado do lugar, não apenas algo que é objetivamente dado, mas como algo que é construído pelo sujeito no decorrer de sua experiência. (SILVA, 1986). Portanto, a realidade não é apenas um dado objetivo, mas inclui a percepção do meio ambiente enquanto experiência vivida e sentida. O privilégio que a geografia humanista dá ao lugar revela-se através dos pressupostos calcados nos sentimentos e nas ideias do sujeito a partir de suas experiências. Portanto, na ambiência das festas, as experiências pessoais, os sentimentos, a subjetividade fazem com que o lugar envolva as ações humanas e no dizer de Fremont (1980, p.46) “este espaço participa de seus sonhos, a imagem do universo vibra sob suas pulsões.

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Festa e Paisagens Simbólicas A imaginação criadora estimulou o homem a desenvolver um sentimento religioso, favorecendo a busca incessante pelo sagrado e pela experiência religiosa. A tentativa de captar o sagrado a partir das primeiras manifestações pelas quais ele usou a imaginação criadora é classificada por Mircea Eliade (1993) como um período da vida religiosa que ele denominou como etnográfico. A ideia de reproduzir nas paredes das cavernas, elementos como símbolos, ideogramas, mitos cosmogônicos, entre outros, expressam uma série de sinais, objetos e locais que evocam, marcam e definem o encontro, a manifestação do sagrado, a hierofania que atesta a experiência religiosa. Pensar a paisagem representada pela festa em suas múltiplas dimensões estimula um exercício no qual são revelados aspectos da materialidade aí presente como também por seu caráter subjetivo que irá definir formas simbólicas e que segundo Corrêa (2012, p.137) “tornam-se espaciais quando estão diretamente vinculadas ao espaço, constituindo-se em fixo e fluxos, isto é localizações e itinerários”. O tempo de festa enseja a formação de uma paisagem simbólica e esta será constituída de realidades e signos que foram inventados para descrevê-la e verbalizá-la. Neste sentido Claval (2001), nos fala das práticas que modelam o espaço são desenvolvidas no sentido de utilizá-lo, misturando o ato, a representação e o dizer, visando ao mesmo tempo o ambiente natural e o círculo social. Assim, as festas religiosas, por exemplo, trazem consigo uma trama de territórios vivos carregados de cultura, símbolos e afetividades. As festas enquanto expressão da paisagem adquirem uma grande importância pois estampam a dinâmica cultural,

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exprimem o modo de vida, alteram o cotidiano, imprimindo significados ao espaço vivido. Enquanto dimensão do cotidiano que se altera, as festas são permeadas por gestos e sentimentos afetivos que se abrem à idealização dos sentimentos e ampliam a sociabilidade e a solidariedade. Tais significados estão presentes seja na Festa de Santo Antonio em Barbalha-CE, seja na Festa de São Francisco das Chagas em Canindé-CE, cujos participantes exprimem e realizam um desejo de participar e dessa forma estabelecem as regras e os ritos cerimoniais, contribuindo para a formação e delimitação de um espaço sagrado e profano. Compreender a festa na dimensão de uma paisagem simbólica nos remete ao conceito de paisagem vernacular na qual tal caráter se expressa no conjunto de representações tanto das paisagens antigas quanto atuais. Os saberes e fazeres daqueles que fazem este momento lúdico passam ser mediados pela memória, engendram transformações espaciais, produzindo uma ruptura instauradora (DE CERTEAU, 1994). Assim, a paisagem que a festa enseja indica a relação que um determinado grupo social mantém com o lugar, expressando através de práticas culturais que podem ser representadas por danças, cânticos, roteiros devocionais, cores, sonoridades. Cada um desses exemplos enunciados apresenta uma variedade de elementos associados a uma prática cultural que define uma paisagem simbólica, assim expressando a vida dos lugares. Costa (2003, p.35) estabelece uma compreensão entre paisagem e o simbólico dos lugares, afirmando que “simbólico presente na paisagem pode também ser definido como um elemento mediador entre os diferentes registros da experiência e a comunicação humana”. Neste sentido, no ambiente festivo, por exemplo, de uma festa religiosa, o binômio experiência-

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-comunicação apresentam uma dimensão espacial pelo qual o mundo conhecido e imaginado é convertido em um complexo de significados, manifestos em uma realidade geográfica evidenciada por uma paisagem simbólica. A paisagem simbólica que uma festa anuncia indica também uma propositura de uma imagem poética e necessariamente não precisa estar ligada a um passado longínquo, nem precisa estar sujeita a um impulso. Não é um eco do passado (BACHELARD, 1993). Portanto, compreende-se que momentos festivos contribuem para a manutenção de uma paisagem vernacular, plena de significados e que geralmente não é legitimada oficialmente como patrimônio histórico em sua imaterialidade, entretanto, como ressalta Jackson (1984) a importância em examinar o histórico e o presente da paisagem, aqui contidos os elementos representados pela arquitetura doméstica, práticas agrícolas, costumes locais, crenças entre outros, observamos que o vernacular está presente nas atividades diárias. Os ritos presentes nas festas nos remetem a uma melhor compreensão do vernáculo dessa paisagem, pois a paisagem enquanto memória se alia a um sentido identitário do sujeito com e formata uma relação mediatizada e no dizer de Gomes (2001, p.132) “é realizada pelas práticas sócio-espaciais que irão envolver aculturamentos e adaptações por meio de artificializações da natureza e naturalização do artificial”. Assim, o entendimento de uma paisagem simbólica representada por uma festa possui significados simbólicos, os quais são referências básicas para seus participantes e suas relações com o cotidiano. Torna-se importante o registro desse cotidiano, o exercício de nossa imaginação geográfica em direção às representações no que concerne à memória e configuração de paisagens simbólicas.

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A CIDADE E A CONSTRUÇÃO DA CULTURA NOS ESPAÇOS FESTIVOS CATÓLICOS Josier Ferreira da Silva

Culto ao Santo: uma Dimensão Simbólica na Demarcação e Legitimação do Território Apropriado A religiosidade católica acompanhou a ocupação territorial da América como fator orientador da cultura e da vida social em sintonia com as pretensões políticas e econômicas estabelecidas pelo mercantilismo. A legitimação da apropriação propriedade da terra, na condição de o colonizador ser católico, demarca de forma categórica a importância política da religião no processo ocupacional do Brasil, intervindo na produção da espacialidade enquanto representação da cultura materializada. As expressões simbólicas do catolicismo efetivadas pela religiosidade católica expressam uma concepção de mundo e de vida inerente ao modelo colonizador europeu, cujo poder político, se expressa nas relações de dominação e de estabelecimento de padrões morais que contemplam o modelo de exploração territorial sob a lógica do capital. Assim, o catolicismo, enquanto cultura religiosa introduzida pela ocupação territorial, cumpre o papel de assegurar do ponto de vista normativo os preceitos morais que se identificam com o estabelecimento de uma sociedade agrária, e se sobrepor à tradição milenar de crenças e rituais que representavam a concepção de vida e de vida dos nativos. As festas de padroeiros remetem à necessidade do entendimento do aspecto religioso católico na composição da formação e apropriação territorial do Brasil. Neste caso, a religião católica aparece historicamente como fator de unidade e colaboração no processo de aplicabilidade de normas entre a

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população, regulando a vida social no processo do estabelecimento de vilas e povoados. Essa conjuntura social se consolida numa base territorial, que recepciona os rituais e símbolos como expressão da vista sentimental e espiritual. Nestas condições, a espiritualidade manifestada em ritos se agrega aos lugares, que ganham importância simbólica na composição de uma paisagem cultural. Inicialmente, é bom lembrar que as festas urbanas de padroeiros, como o próprio meio urbano, onde se operacionaliza seus rituais mais significativos, tais como missas e quermesses e hasteamento da bandeira em louvor ao santo cultuado, tem a sua origem forjada nas articulações sociais da sociedade agrária. Nestas condições, o urbano que se contextualiza na modernidade, é apropriado pela tradição, cujas raízes derivam do passado social camponês, e que, se mantém secularmente, operacionalizadas pela população em seus respectivos lugares, orientadas pela especificidade dos fatores históricos e sociais de cada município. Tratando-se das festas de padroeiros, no Cariri cearense, é importante ressaltar essa relação, entre o presente festejado e o passado que lhe deu origem. A religiosidade que se expressa na contemporaneidade, tem a sua origem no fator da indissociabilidade entre apropriação da terra e catolicismo, como elemento legitimador da sua apropriação e exploração, conforme a lógica da exploração territorial vinculada à dinâmica comercial. A dimensão religiosa acompanha e integra a produção espacial dos estabelecimentos rurais, cujos surgimento e desenvolvimento das atividades agrárias, se fundamentam na unidade socioideológica entre o colonizador e a Igreja Católica. Na inserção do catolicismo no serão, Hoornaert (1989), refere-se à dimensão festiva das “santas missões” efetivadas pelos padres no interior cearense.

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O vaqueiro, que lidava com o gado, era um homem solitário, pois o proprietário do gado vivia nas cidades do litoral e o seu vizinho mais próximo vivia a uns três quilômetros de distâncias pelo menos: cada curral tinha meia légua de extensão, no mínimo. Daí porque a visita do padre é esperada com muito carinho e que não devemos exagerar a influência da pregação missionária sobre a alma do povo: ela teve também seu aspecto muito positivo, sobretudo possibilitando momentos de lazer e encontro no mundo desolado por currais e das fazendas. Assim continua sendo até hoje: a Igreja possibilita o encontro entre pessoas, abre espaços festivos no meio da rotina da vida cotidiana, lembra ao povo que não se vive só para trabalhar e sofrer mas também para alegrar-se e festejar (p.57-58).

O fato da legitimidade da posse da terra, ser historicamente vinculada à condição do requerente ser católico, sinaliza o grau de comprometimento das articulações entre o Estado e a Igreja Católica no processo de formação territorial. Nessas condições, a coroa portuguesa busca da efetivar a colonização, optando pela doação do seu território aos fidalgos da Europa, cuja estabilidade econômica, sinalizava ser capaz de atender as expectativas de exploração da área ocupada. Assim, transferência da terra se efetiva no Brasil tendo como sujeitos, homens de posse, que encarnam o poder político e econômico em suas localidades norteadas ideologicamente pelo catolicismo, que legitima os valores morais e sociedade. O fato de dotar as áreas ocupadas de infraestrutura, tais como lavouras, currais, engenhos, casa de morar, atendendo as exigências de exploração do Estado português para se manter no cenário político e econômico mundial, vai criando as bases para o adensamento demográfico que resulta na formação dos primeiros núcleos urbanos do interior nordestino. Esses processo, ocorrem sob a vigilância ideológica do catolicis-

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mo e define o estabelecimento de relações amistosas entre o poder político-econômico representado pelos fazendeiros e o poder atemporal representado pela Igreja. Nestas condições, esta última participa da efetivação da produção espacial das fazendas através da materialização da fé, expressada na construção de templos católicos. Nessa relação amistosa, é a Igreja, agraciada pelos proprietários rurais, com bens materiais, tais como terra, gado, escravos e outros, que passam a integrar seu patrimônio, inaugurando a implantação da religiosidade católica nas localidades em torno da devoção de santos europeus introduzido pelos colonizadores nos povoados. Essa dimensão religiosa ganha uma expressão simbólica, comunitária, capaz de manter em torno do santo, a unidade do grupo social e colabora na legitimação das relações entre o Estado e a Igreja na vivência cotidiana. A introdução de um santo católico nas localidades rurais, no momento da gênese de sua formação, demarca a dimensão religiosa, materializada, no processo da sua produção espacial. Isso também se manifesta nos ritos que passam a integrar a espiritualidade da população local. Vale ressaltar, que nesse processo, que as comunidades rurais, no futuro, se transformam em povoados, vilas e cidades, cujo santo introduzido como referência do exercício, não são escolhidos por elas, e sim pela vontade do colonizador. O santo a ser cultuado nas áreas colonizadas geralmente corresponde ao santo de devoção da propriedade de origem dos proprietários que se estabelecem nas localidades, como uma espécie de extensão cultural da religiosidade da sua terra natal. Essa condição é de grande importância, no entendimento a prática histórico-social e coletiva da fé católica da população, em torno dos seus santos padroeiros. O próprio nome padroeiro vem do termo padroado, que consiste no estabelecimento do sistema de padroado, introduzido pela constituição

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de 1824, que legitima o Catolicismo como religião oficial do Brasil, onde a Igreja se vincula institucionalmente ao Estado e com ele compartilha a vida política, condicionando o clero às ações do Estado.

O Urbano como Lócus da Interatividade Política e Eclesiástica No aspecto urbano, o surgimento de povoados, vilas e cidades deriva de antigos ambientes rurais, caracterizados pela pratica da agricultura e da pecuária, como principio básico do estabelecimento e fixação dos colonizadores, não obstante, também ocorram o surgimento de núcleos urbanos decorrentes de aldeamentos indígenas, sob a orientação do clero que exerciam atividades catequéticas. Assim, os núcleos urbanos surgem como um elemento, historicamente vinculado das propriedades rurais, cujo desenvolvimento, marcado pelo adensamento populacional e pelo fortalecimento da dinâmica das relações de produção vigentes são assistidos culturalmente pelo catolicismo. Nesta perspectiva, a religião emerge como um elemento regulador da vida social, dos princípios morais e de comportamento que caracterizavam a sociedade agrária e patriarcal, sendo a Igreja Católica uma instituição necessária na operacionalização e ordenação das ideias, em consonância com os padrões sociais desejados pela colonização. Do ponto de vista cultural, a construção de capelas rurais, representa a materialização mais expressiva das ideias, da espiritualidade, de concepção de vida e de mundo que orienta a comunidade. Como um componente simbolicamente expressivo na espacialidade, ela a partir dos seus rituais católicos, converge a sociedade, como lócus de monitoramento da orientação da vida, amparada na dimensão mística da Igreja.

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Neste sentido, o santo padroeiro adotado pelo colonizador tem o papel de ordenar e fortalecer a unidade da fé católica entre os habitantes do lugar em sintonia com os padrões e valores da sociedade agrária. Nesse processo, o sistema de padroado projeta e legitima a articulação entre o poder eclesiástico e poder político, respaldando os padres como funcionários públicos, cuja nomeação, para o exército das atividades religiosas nas paróquias, se realiza por determinação de leis estatais. Essa unidade político-ideológica, ente Igreja e Estado, que se afirma no surgimento e consolidação dos grupos urbanos, é notória na forma de operacionalização da política, onde a paróquia torna-se a forma de organização do eleitorado, e os templos se constituíam em sedes de votação, com suas respectivas mesas paroquiais de recepção de votos. Do ponto de vista censitário, a população nas áreas ocupadas era contada por “almas”, num indicativo de que o reconhecimento e afirmação do sujeito como habitante, pelo Estado eram condicionados ao fato de ser batizado, bem como, o reconhecimento da sua morte, pela certidão de óbito, declarada junto a paróquia. Os padres, não raro, se constituíam ao mesmo tempo, agentes políticos e religiosos de suas localidades. O foco nesses fatores históricos evidencia o nível de comprometimento político e ideológico entre as instituições públicas, religiosa e familiar na orientação sociocultural da população. Neste cenário histórico-social de recepção, buscamos entender como se projetam as festas dos padroeiros das localidades, como um marco de fortalecimento da fé católica aliada à administração pública e que promove a unidade espiritual dos habitantes em torno de um santo. Nestas condições, evidenciamos que tanto a população subalterna, na luta pela superação da sua condição de explorados, bem como, as elites

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no desejo de manutenção dos padrões morais e sociais estabelecido pelo modelo de sociedade vigente, tem na religião o ponto de apoio de suas expectativas. Apesar de o catolicismo se constituir no ponto de convergência de praticas espirituais, os templos se caracterizam como um espaço de segregação, onde os negros eram proibidos de frequentar. Esse fato faz com que eles os negros se organizem em irmandades religiosas, sob a devoção de um santo católico, com eles identificados, tais como São Benedito ou Nossa Senhora do Rosário, e construíssem seus próprios templos para o exercício da sua espiritualidade. Independentemente das classes sociais, a religiosidade é um fator presente na vida social das localidades, que elegem um período do ano, como momento de intensificação do culto aos seus respectivos padroeiros, fortalecendo a unidade de ações e de pensamento norteados pelos valores religiosos, como um componente social. Assim, as festas dos padroeiros das localidades exercem o papel normativo nas relações sociais, de unidade de reflexão do povo, como momentos de promoção do exercício coletivo da sensibilidade da espiritualidade, e que, integram o universo cultural da comunidade.

Festas de Padroeiros no Cariri: o Rural Dominado pelo Urbano Tomando os municípios do Cariri cearense como referência de análise, convém lembrar que suas festas de padroeiros não se impõem como sinal de modernidade, ao contrário, a modernidade busca a sua promoção pela tradição, intervindo sobre ela atribuindo-lhes novo significado cultural. Os antigos estabelecimentos rurais se desenvolveram no Cariri e no nordeste, de forma geral, dando origem a evolução dos núcleos urbanos no semiárido. A projeção urbana em

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áreas correspondentes aos antigos sítios e fazendas não aboliu as características socioculturais marcadas por valores sociais agrários, patriarcal, que continuou a ser exercida no cotidiano dos povoados, vilas e cidades. Dessa forma, os núcleos urbanos surgem preservando a sua matriz ideológica da sociedade rural na orientação política das relações sociais estabelecidas no ambiente urbano. Não obstante a intenção de se implantar a modernidade pela via industrial ou tecnológica, o cotidiano dos lugares sertanejos se manteve entre gerações, preservando os padrões culturais dos ambientes agrários que lhes deram origem. Neste aspecto, a religiosidade consiste num fator que orienta a permanência de padrões e de concepção de vida e de mundo, onde as festas e ritos religiosos continuam inalterados, ignorando a projeção do ambiente urbano sobre os antigos ambientes rurais. Assim, a cidade surge preservando suas relações socioculturais e de poder, numa conexão histórica com o passado, que lhe recepcionou. Num confronto com a modernidade, talvez as festas de padroeiros sejam quem melhor exemplificação de permanência da tradição rural no mundo contemporâneo, executada no ambiente urbano, que mesmo resultando da intervenção da técnica, elege os costumes e tradições como forma de promoção econômica a partir do turismo. Vale ressaltar, que não é o fator religioso orientado por princípios e rituais que se agrega à modernidade, mas, ao contrario, é a modernidade que se aproveita da tradição para promover o espírito comercial e a massificação da cultura. É ela que se apropria do calendário religioso, dos momentos de convergência da movimentação social em torno das festividades dos municípios, para se promover a partir do espírito comercial. Isso evidencia um paradoxo, visto que ao mesmo

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tempo em que a lógica do capital intervém na originalidade dos festejos, busca a sua projeção midiática como forma de fortalecer suas expectativas econômicas. Um dos fatores que colaboram com o processo de resignificação das festas orientada pela dimensão econômica é o turismo, que aproveitando as manifestações populares como potencialidade de atração de visitantes aos lugares. Não raro, a incorporação da tradição ao turismo ocorre com ênfase eminentemente na dimensão econômica, ignorando as suas condições de inestabilidade cultural e ambiental, sobretudo a dimensão humana dos sujeitos envolvidos que matêm a tradição. Nessa ótica, tomando o município de Barbalha, ao sul do Ceará, como referência, é perceptível que a gestão pública da cultura tem tomado as manifestações culturais de origem rural como expressão de identidade cultural e religiosa do município, para fortalecer turisticamente a festa do seu padroeiro Santo Antônio, sem, no entanto, promover ações no campo da preservação das tradições rurais, a quem recorrem, em suas localidades de origem. Isso se evidencia no fato de se promover o deslocamento de grupos religiosos e de brincantes da zona rural para compor um “desfile” por ocasião da abertura dos festejos juninos do padroeiro, onde se percebe a cada ano uma menor participação dos grupos de tradição, decorrente da falta de incentivo para valorizar e garantir a sobrevivência das suas tradições culturais. Trata-se da falta de perspectiva de incorporação dessa potencialidade turístico-cultural a proposta política de desenvolvimento local regional. Muitas vezes, a dimensão midiática e a ênfase aos festejos marcados por sua espetacularização faz os gestores da cultura, ignorar brincadeiras e brincantes, como elementos simbólicos da originalidade agrária dos festejos. Nesta condição,

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exemplificamos o esquecimento por alguns anos consecutivos, da brincadeira do “pau de sebo”, como um componente dos festejos juninos, na festa de Santo Antônio de Barbalha. Da mesma forma, o falecimento dos mestres vai esvaziando os rituais, fazendo desaparecer determinadas manifestações agregadas à festa. É o caso da ausência do mestre Zé Velozo, conhecido como Pavão, que após a sua morte, deixou a condução do ritual do carregamento pau da bandeira de Santo Antonio de Barbalha, desprovido do espírito contagiante dos seus cantos e brincadeiras. O urbano como palco das manifestações rurais, centrado na festa dos padroeiros no contexto de modernidade, recepciona alem dos interesses comerciais, os interesse políticos, que dialoga com o espírito de espetacularização dos festejos e promovendo facções políticas e comprometendo ainda mais a sustentabilidade cultural das tradições. Exemplificando essa realidade, tem sido é comum, o carregamento de pessoas sobre o mastro de Santo Antônio de Barbalha, na busca de ganhar visibilidade política perante a população que participa da festa. Uma prática que se agregou ao rito e que ate a década de 1970, era restrita apenas à lideranças dos carregadores do mastro, devotos de Santo Antônio.. Podemos então, identificar que a cidade, no espírito de modernidade recepciona as tradições, cada vez mais desarticuladas da sua originalidade, e que passa a ser retomada quando se objeto de investigação em trabalhos acadêmicos. A incorporação de interesses e aspectos da modernidade aos rituais festivos urbanos passa a se constituir em objetos de discussão entre os que aprovam as festas meramente como espaços de promoção da econômica, e, que para isso, recorre a cultura de massa, sobretudo bandas urbanas de forró, e, os que, numa leitura histórico e antropológica, atentam para

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a perda da identidade do lugar, como um contraponto a sua origem que deita raízes na tradição rural. Tal fato tem provocado de forma visível a redução e extermínio das tradições populares, que geralmente são marcadas pela simbologia do catolicismo popular.

Fé e Diversão: as Festas e a Produção de Espaços Híbridos Tratando-se do urbano como ambiente receptivo aos festejos religiosos, é importante, no contexto de modernidade, perceber as diversas funções que nele se manifestam por ocasião das festas religiosas. O comércio e os lazeres se impõem como fatores atraídos pelo ambiente festivo, demarcando suas presenças nos arranjos espaciais que se constroem por ocasião da festa. Nesse sentido, o ambiente urbano, fixo, dotado da materialidade de residências, urbes, igrejas, praças, passam temporariamente a recepcionar outros serviços, tais como atividades tais como barracas de bebidas, jogos de azar, barracas de tiro ao alvo, parques de diversão e palcos de apresentações artísticas. Esse arranjo espacial constituído de intervenções antrópica permanentes e efêmeras se articula com o imaginário coletivo, que elege o santo festejado como referencia e justificativa da especificidade da organização socioespacial da fé e do lazer. O sentimento religioso interage com o sentimento festivo que se articula e dialoga com a materialidade urbana, fixa e móvel, que lhe recepciona. Apesar de separados por funções diferenciadas, o espaço do lazer e religioso interagem, como se um fosse a extensão do outro na efetivação da dinâmica do ambiente festivo. Nestas condições quando se fala na festa do padroeiro, as lembranças reivindicadas pelos devotos é a da complexidade de movimentos em torno do santo.

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Essa complexidade de funções festivo-religiosas leva, inclusive, a uma dificuldade de delimitação de territórios entre o profano e a sagrado, em que quermesses, barracas de comidas e bebidas, apresentações artísticas ocorrem no entorno da Igreja, como extensões do ambiente físico que sedia o exercício da fé e que tem a mesma motivação religiosa para sua existência. Assim, a espacialidade projetada nos ambientes festivos traduz, simultaneamente a dinâmica religiosa e comercial nela envolvida. Quando se trata de uma manifestação religiosa, marcada pela permanente mobilidade de romeiros no entorno de santuários, se vislumbra uma manifestação espontânea do comércio nos locais onde elas ocorrem, que resistem e ignoram à disciplina imposta da legislação urbana. Nesse caso, o poder público local tem encontrado dificuldade em impor a sua ordem reordenação do espaço sob a lógica técnica da legislação. Acontecimentos e fenômenos religiosos tais como atribui­ ções de milagres a pessoas contemporâneas da ­população em determinadas épocas, como no caso do padre Ibiapina e do Padre Cícero, promovem de forma impactante a mobilidade de pessoas em torno dos fenômenos ocorridos. Esses eventos elegem e delimitam um território sagrado, projetando uma ­organização espacial articulada com a fé, materializada em templos, obeliscos, arcos, túmulos, cruzeiros que se projetam nas ­cidades. Pintaudi (1997) expõe que a a materialidade da cidade tem importância não apenas porque permite que ela exista e funcione, porque o concreto adquire um valor simbólico. Compreender o imaginário significa compreender, na escala da vida cotidiana, a procedência social das imagens (a que grupos pertencem, que experiência carregam), itinerários, relações passadas e presentes, e, portanto, desde logo significa entender que ele não é um só (p.217).

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Imperceptivelmente a dimensão física do espaço é reivindicada pelo imaginário que ganha uma dimensão simbólica e interage com o imaginário que lhe respalda, seja no meio urbano ou rural, como no caso dos locais de vivência do padre Cícero e do padre Ibiapina, nas localidades do Horto e no Caldas, respectivamente nos municípios de Juazeiro do Norte e Barbalha. Locais respectivamente correspondentes aos espaços vividos e receptivos às manifestação de fé, expressada nas romarias. A frequência aos locais e a intensificação de deslocamentos de devotos a uma determinada área depende do conhecimento histórico de fatos relacionados com a fé, por parte da população. A propagação em larga escala desses acontecimentos entre as gerações delimita a convenção dos lugares como sagrados e à intensidade de movimentos de acesso. É possível que a falta de transmissão do conhecimento de fatos religiosos, que ganharam no passado o status de milagres pelo povo, e que, no passado, tenham impulsionado peregrinações e romarias a um lugar, no presente tenha perdido a representatividade pela falta de propagação dos acontecimentos entre as futuras gerações. É o caso do Caldas, em Barbalha – CE, cuja fonte, admitida como miraculosa, na cura de enfermidades no século XVIII, e que resultou em romarias para a localidade e construção da Capela do padroeiro, hoje, se tornou inexpressiva no aspecto de fomento religioso, passando a integrar um espaço comercial de lazer representado por um balneário, cujas gestões administrativas desconhecem e ignoram a memória religiosa do lugar. O deslocamento de pessoas ou exercício de rituais motivados pela crença permite dotar as vias de acesso e lugares de uma simbologia representativa do imaginário católico. Nestas circunstâncias, o exercício do catolicismo popular, seja em ro-

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marias, grupos de oração de penitentes, danças e folguedos rurais sintonizados com a religiosidade permitem a interatividade e articulação de espaços, centrados na mesma lógica de fé católica. Assim, o catolicismo tradicional se manifestado no meio rural, pela dimensão universal do exercício da fé cristã, se articula com outros espaços tendo a fé e a simbologia religiosa, materializada em cruzeiros, cemitérios, como pontos de convergência do mesmo imaginário católico. Na lógica da modernidade e a incorporação da cultura ao turismo, adota esses elementos materiais e imateriais do espaço como referenciais de atração de pessoas, passando a constituir imagens de folders, cartazes e revistas, expressando especificidades locais. Nessa lógica, as festas de padroeiros são incorporadas ao turismo, como uma atividade econômica, que num contexto de globalização, ganham novos significados que dialogam com a atividade comercial. Estamos vivendo uma nova referência de mundo, um mundo globalizado onde o volume e a velocidade da informação circulam instantaneamente em várias partes da Terra, acelerando os processos culturais e dando novos sentidos às identidades culturais. Identidades estas que estão em permanente movimento de negociação e articulação nos limitados fluxos de inter-relações das sociedades, que com suas artimanhas simulam e modelam novas experiência culturais. No mundo atual, as identidades culturais são menos rígidas, estão em permanente (re)processamento, mesmo as mais resistentes como as familiares e religiosas só para citar dois exemplos fortes da região nordestina (TIGREIRO, 2004, p.73).

Nessa proposta, religião e comércio são componentes dos festejos, independentemente ou não da posição oficial da Igreja que apela para a separação destes fatores. A festa como expressão turística é vista como um todo, e a sua dimensão

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religiosa é articulada com a dimensão econômica que nela se faz presente. Muitas vezes a concepção de festa difere entre os agentes clericais e os agentes culturais, econômicos e administrativos que se envolvem na sua realização. Não raro, os primeiros, na intenção de fugir do foco dos questionamento sociais relacionados ao ambiente festivo, tais como a violência e impactos ambientais, fortalecem a dimensão religiosa como única característica que legitima os festejos, ignorando as expressões profanas que neles se manifesta.

As Festas de Padroeiros como Saberes Herdados A festa revela a alegria, a vida em comunidade em torno do santo. É o momento de expor as angústias e o agradecimento ao santo pela sua intervenção na superação de problemas, através do pagamento de promessas alcançadas pelos fieis por ocasião das procissões. O pipocar dos fogos, bandas de música e quermesses são representações sociais da alegria vivida em torno do santo cultuado. Assim, no ambiente festivo, a dimensão religiosa, espiritual não ocorre desarticulada e descontextualizada do clima de contentamento dos fiéis, que também buscam a diversão por ocasião dos festejos nas comunidades, como forma de expressar suas alegrias. Ela é simultaneamente exercida como forma de comemorar a esperança, de expressão de vida e de fé, momentânea ou duradoura, como contraponto as adversidades. A procissão do santo se constitui no momento de pedir e agradecer as graças ao santo, assim se torna um espaço de manifestações de alegrias e tristezas, que se converte em esperança, que existe por tradição entre sucessivas gerações. Nessa condição, a população ao adotar o santo como protetor de suas vidas, deixa ocorrer, de forma implícita, a

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transmissão de saberes e práticas culturais religiosas que se constituem em elementos da sua devoção. A fé, apesar de ser pessoal e individual, toma o padroeiro como uma referência herdada de uma memória coletiva religiosa e que contribui para a sua manutenção das tradições. É importante lembrar que as gerações que festejam os santos em suas localidades no presente, assim o fazem por tradição, e essa tradição se mantém pela transferência de valores, saberes, e práticas culturais, relacionada a uma concepção de vida e de mundo amparada na religiosidade em torno do santo cultuado. Daí, não se poder abolir desse contexto religioso o caráter popular dos festejos. Mesmo diante de imposições normativas da Igreja que possam ocorrer, o povo, indiferente às teorias teológicas, exerce a sua fé da sua maneira, expressando conforme a sua percepção de mundo e de vida, a sua devoção junto ao santo, que recorre como protetor de suas vidas. A sustentabilidade cultural das tradições depende da propagação e manutenção do imaginário religioso católico em torno do santo de devoção pelas comunidades onde eles são cultuados. Essa condição permite a permanência das festividades e dos sentimentos religiosos no decorrer do tempo. As novas gerações, ao comemorar seus padroeiros, assim o fazem como expressão de valores culturais herdados, transferidos por seus ancestrais. Trata-se de um saber repassado entre os membros da comunidade, condicionado pela inserção nas praticas culturais coletivas, motivados no âmbito familiar e social. Nesse contexto, em sua abordagem sobre geografia regional, aponta características da cultura como motivos para que as fronteiras possam construir limites geográficos. Séculos de vida em comum dentro de um confronto bem definidores forçam a personalidade de um povo. E com ela muitos aspectos da sua vida ma-

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terial – a casa, os instrumentos, o traje, as maneiras (RIBEIRO, 1987, p.59).

O culto ao santo se faz no cotidiano, porém, a festa do padroeiro se efetiva como um momento que dá projeção e visibilidade a fé exercida em comunidade em relação a ele. Projeta de forma intensificada o santo como referência da formação do imaginário coletivo religioso e que norteia o sentimento de se pertencer ao lugar. O espaço vivido da fé em torno do santo caracteriza a identidade cultural do lugar. No entanto, massificação e a espetacularização dos festejos, norteadas pelos interesses comerciais e turísticos, ao se sobrepor à originalidade das relações historicamente construídas ente a população local e a devoção festivo-religiosa, compromete a existência da categoria de lugar. Passa a se evidenciar um não lugar, desarticulado da vida de quem nele habita, que não mais se reconhece na nova dinâmica e movimento da festa. O lugar, enquanto espaço de vivência religiosa herdada por seus habitantes, passam a ter suas vivências e singularidades se dilaceradas e ofuscadas como composição festiva do ambiente sob a orientação da lógica do capital, dando aos festejos outro patamar, muitas vezes justificados no espírito de ­modernidade. Assim, é importe entender as festas urbanas de padroeiros como expressão histórica de um processo colonizador que articula os poderes temporais e atemporais, respectivamente representados pelo estado e a Igreja. Essas articulações de poderes ocorrem em diversas conjunturas e se projetam no ambiente festivo que caracterizam lugares no aspecto religioso e cultural. Esses fatores se projetam nas espacialidades construídas para recepcionar os ambientes festivos e que merecem ser motivos de investigação acadêmica

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Referências Bibliográficas HOORNAERT, Eduardo. O processo de ocupação do Território Cearense: Catequese e Aldeamento, In: SOUZA, Simone (Org.). História do Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1989. JUNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade regional. Recife: Edições Bagaço, 2008. LEMOS, Amália Inés de & GALVANI, Emerson. Geografia, tradições e perspectivas: interdisciplinaridade, meio ambiente e representações. São Paulo: Clasco/Editora Expressão Popular, 2009. PINEIRO, Irineu. O Cariri. Fortaleza: Edições UFC, 2010. PINTAUDI, Silvana Maria. Cidade Cotidiano e Imaginário. In:. BORZACCHIELO, José. et al (Org.). A cidade e o urbano. Fortaleza: Edições UFC, 1997. RIBEIRO, Orlando. Introdução ao estudo da geografia regional. Lisboa-Portugal: Editora João Sá da Costa, 1987. SILVA, Josier Ferreria. Gênese urbana: a formação do Município de Barbalha no Contexto Regional (MONOGRAFIA) Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará – UECE, 1992. TIGREIRO, Osvaldo Meira. Mídia e Folclore – Uma relação de conflito. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE FOLCLORE, 10, Anais... São Luis: Tipologia Elante, 2004.

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PEREGRINAÇÃO RURAL AO SANTUÁRIO METROPOLITANO: O LUGAR DA RELIGIOSIDADE TURÍSTICA DE NATÉRCIA-MG EM APARECIDA-SP Christian Dennys Monteiro de Oliveira

Introdução Todos os anos, em períodos muito específicos, caravanas de romeiros partem para sua visita habitual – e ritual – a algum centro de peregrinação tradicional, polarizado por alguma construção eclesial e/ou seu complexo ao redor, formando o que conhecemos por santuário. Na maioria das vezes, temos ali uma “vida normal” alterada, apenas, nestes momentos especiais pelo aumento significativo do fluxo de visitantes, que fazem daquele lugar santo um espaço privilegiado de fé e festividades. No Brasil, especificamente, existem centenas de lugares com o mesmo perfil. Se fizéssemos uma relação exclusiva para o mundo católico, encontraríamos hoje mais de 200 santuários, nas cinco regiões, oficializados pela Igreja com esse status. Mas não se pode ignorar que em termos populares a ideia de visitar e venerar uma localidade mística não depende de oficialização; santuários são erguidos e mantidos pelas comunidades e fiéis, até de forma independente das autorizações clericais. Quando essa visitação é combinada a outros eventos e atividades festivas – tradicionais para o lugar e a região – tal aspecto ganha uma autonomia ainda maior, fazendo crescer a representatividade cultural do santuário para além dos aspectos estritamente religiosos. Entretanto, mesmo num país considerado “religioso”, existe uma diversidade muito grande de rituais, valores e comportamentos que alimentam as práticas habituais dessas

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romarias. Não se trata apenas de enfatizar diferenças macrorregionais dos catolicismos populares que ocorrem no país. Gostaríamos, neste breve artigo, de demonstrar a diferenciação de romarias de origem rural que se dirigem a um dos mais tradicionais santuários do país – o de N. S. da Conceição Aparecida, localizado a 170 km da cidade de São Paulo e polo receptor do maior movimento anual de turismo religioso no Brasil. Tal diferenciação requer o levantamento de características peculiares a algumas romarias e roteiros, com nítidas marcas do universo rural: presença maciça de camponeses, trabalhadores rurais e seus parentes e agregados; utilização de veículos ainda expressivos da produção rural; reprodução de rituais, convenções e atividades muito ligadas aos costumes daquela comunidade; e um certo grau de resistência ou adaptação parcial aos novos serviços urbanos diretamente ligados à modernização que atinge o Santuário de Aparecida desde a década de 1970. A grande maioria de romarias organizadas que se destinam ao Santuário de Aparecida provêm de um raio de 600km, envolvendo os estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná – cerca de 90% das visitas. São representativos também os deslocamentos que partem de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo, Goiás, Brasília e Bahia; embora não ultrapassem 10%, a não ser em ocasiões muito especiais. Isso nos conduz a lembrança de que a capacidade de atração turística de Aparecida, em termos físicos, permanece circunscrita, efetivamente, aos arredores das grandes metrópoles brasileiras do Sudeste, com especial influência nas regiões do Vale do Paraíba e no sul de Minas Gerais. Por conseguinte, é importante reconhecer que as áreas rurais dessas regiões têm sofrido consideráveis processos de reorganização espacial.

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Por outro lado, não ignoramos o fato de que a representatividade simbólica da Imagem da Padroeira do Brasil e sua Basílica Nacional trazem para esse romeiro, venha de onde vier, um sentimento de “monumentalidade”, uma atitude de reverência toda “especial”. O motivo central disso encontra-se no marketing do próprio Santuário. Vir a Aparecida é mais do que visitar um lugar sagrado. Significa ir à Roma brasileira; à casa imperial da Mãe de Deus na Terra. É visitar o Santuário de todos os santuários da Igreja desse país. A marca mais expressiva dessa reverência popular encontra-se na qualificação do ritual da peregrinação. O importante para o romeiro da zona rural é harmonizar o esplendor do “contato” com a Santa – o encontro – com o sacrifício da própria caminhada até Ela – a busca. Por isso, torna-se relevante vivenciar uma mística durante a própria viagem ao santuário. O quê, na maior parte das romarias urbanas, acaba sendo desvalorizado pela lógica moderna da velocidade, do tempo que não pode ser perdido, por ser pouco e cada vez mais caro. Para pensar essa valorização do ritual de peregrinações vamos nos ater aos meios de transporte e as formas de deslocamento usadas, ainda hoje, pelas romarias mais tradicionais provenientes dos municípios da Serra da Mantiqueira, especialmente a da cidade de Natércia-MG. O leque de características rurais dessas romarias alia três aspectos decisivos para confirmar a ideia de que a metropolização do Santuário de Aparecida 1 não eliminou ou excluiu as formas populares de peregrinação, identificadas com um “catolicismo rural”. São eles: yy A ideia de comunidade como sujeito de todo processo de peregrinação, distanciando-se, portanto, daquele quadro 1 Tese

de doutoramento com o título Um Templo para Cidade-Mãe defendida pelo autor em outubro de 1999 na FFLCH da Universidade de São Paulo.

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predominante das “romarias de domingo”, feitas por famílias e/ou indivíduos isoladamente. yy As etapas rituais da passagem do profano ao sagrado, propostas por Mircea Eliade, e retomadas pela Zeny Rosendhal (1994), que marcam o tempo das festividades e reforçam os laços de sociabilidade dessa mesma comunidade. yy O alerta para que a reflexão sobre o chamado turismo religioso não fique aprisionada pelas referências modernas e pós-modernas do mundo do lazer e do ócio. Isso porque o comportamento dessas romarias, embora não reduzidas às obrigações mítico-religiosas, não absorvem outras atividades socioculturais próprias do fazer turístico. E o elemento geoeducativo da visita cênica, que reedita a trama rural/ urbano na aprendizagem do mito de encontro de “sacralidades” no templo. O que nos permite imaginar o elemento símbolo retorno ou volta como indispensável à compreensão da prática da religiosidade turística como alternativa aos limites do turismo religioso. Vejamos como o exemplo da 60ª Romaria de Natércia – que atualmente encontra-se em sua 76ª edição – pode nos auxiliar na interpretação de uma das mais notáveis simbologias da religiosidade cristã de matriz católica diante da espacialidade geográfica contemporânea:

A Reverência da Comunidade de Natércia – MG Em 1997, a edição de nº 4.820 do jornal Santuário de Aparecida2 publicava uma reportagem, de uma página inteira, dedicada a romaria de Natércia, que entre 7 e 8 de julho 2

Semanário editado pela Congregação do Santíssimo Redentor pela editora Santuário – Aparecida-SP

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chegou a Aparecida para completar seus 60 anos de existência3. A descrição, feita pela imprensa oficial do Santuário, chama atenção para a tradicional devoção expressa naquela festividade religiosa, que sempre foi marcada pela simplicidade e pelo envolvimento de toda comunidade municipal e, na ocasião, dedicou suas missa em agradecimento aos fundadores da Romaria: cônego Francisco Fortes Bustamantes e João de Souza e Aplínio Arantes. Segundo a reportagem, naquele ano a peregrinação contou com a participação de oito ônibus, 130 cavaleiros, 50 bicicletas e motos, uma centena de carros e inúmeros romeiros que vieram a pé. Isto consumiu dois meses de preparação, envolvendo a visita da imagem peregrina de N.S. de Aparecida em 15 comunidades rurais do município, entre os dias 14/05 e 27/06. Do dia 28 de junho ao dia 6 de julho, realizou-se uma novena na igreja matriz de Santa Catarina. E, neste período, alguns romeiros já se puseram a caminho de Aparecida, antecipando a partida para um novo encontro, no próprio Santuário. Segundo Maria Marta de Souza Teixeira, diretora de uma das seis escolas locais e coordenadora da Pastoral Familiar: Estamos comemorando 60 anos de romaria com uma peregrinação iniciada nas comunidades rurais, no mês de maio. Nossa Senhora Aparecida peregrinou e abençoou toda área rural de Natércia. Para nós o motivo é de muita alegria. Inclusive a missa de encerramento contou com a participação de crianças, jovens, adultos e idosos, numa confraternização muito bonita entre os cidadãos (jornal Santuário de Aparecida, 19-25/07/1997, p.16).

A coordenadora que também é filha de um dos fundadores da romaria, afirma ainda que a verdadeira tradição da 3 Em 2012 o portal do Santuário de Aparecida http://www.a12.org.br notícia a visita

de 75 anos (jubileu de platina) da comunidade, demonstrando que as romarias de Natércia continuam seu ciclo anual, nos meses de julho

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romaria concentra-se na capacidade das famílias de Natércia em transmitir a necessidade da participação contínua, como uma “herança para seus filhos e netos”. Por outro lado, o perfil agrário da localidade – com uma população total de aproximadamente quatro mil e quinhentos habitantes (ver tabela) e uma economia ligada a produção de café, banana e lavoura branca (feijão, arroz e milho) – tem colaborado para a manutenção dessa continuidade cultural e religiosa; principalmente quando se percebe que o mecanismo de transmissão dos valores e ideias, mantém-se bastante relacionado ao cultivo das lendas, “causos” e histórias que reivindicam a mediação de Nossa Senhora. Lembrando algumas declarações do ministro da eucaristia e membro da coordenação, Luiz Rodrigues de Souza, o jornal destaca que: Algumas pessoas, segundo Souza, têm motivos especiais para peregrinar e agradecer a Nossa Senhora Aparecida. Um de seus parentes, por exemplo, quando ainda era menino, foi pego por uma tempestade enquanto trabalhava no campo junto com outro garoto. Assustados fugiram da forte chuva e abrigaram-se num estábulo. Durante a tempestade, caiu um raio no local e matou dois animais. Os meninos, no entanto, nada sofreram. “Foi Nossa Senhora Aparecida que os salvou da morte”, disse Souza. Este ano, já adulto e casado, o parente de Souza (o menino da história) participou da romaria juntamente com seu filho pequeno. “Venho todo ano agradecer o dom da vida, a oportunidade que Deus me deu de continuar vivendo e poder ter meus filhos, criá-los e vê-los crescer” (Jornal Santuário de Aparecida, 19-27/07/1997, p.16)

Relatos envolventes como esse permitem engrandecer as ligações entre a comunidade rural de Natércia na caracterização mais significativamente geográfica da reconstrução anual de seus itinerários. A Mãe Aparecida traduz o ponto

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geográfico mítico-existencial dos fluxos de partida e chegada para renovação da vida devocional, fundada na permanente gratidão. As imagens seguintes (Figuras 1 e 2) retratam a caracterização geográfica desse vínculo simbólico de Natércia com Aparecida, por intermédio dos dados – precários como de qualquer município limitado pela economia da dependência primária – do ciclo da viagem peregrina. Mas cada vivência devocional, direta do fiel ou por acompanhamento social (parentes e amigos) corresponde a uma reedição das motivações de Souza (acima mencionado). Ainda que o estudo não tenha trabalhado relatos colhidos primariamente em campo, tal percepção permite construirmos, em futuras pesquisas sobre a irradiação devocional uma “geografia do devoto peregrino”, na circularidade rural-urbana dos lugares turístico-religiosos: o que demanda e o que oferta os bens simbólicos da fé. Tabela 1 – Caracterização de Natércia-MG Itens de Referência do Município/Cidade de Natércia-MG População estimada 2013 4.802 (55% urbana / 45% rural) População 2010 4.658 População Católica 4.303 (92% do total) Total de Veículos 1.919 Área da unidade territorial (km²) 188,719 Densidade demográfica (hab/km²) 24,68 Matrículas no ensino médio (2012) 166 IDH. (2010) 0,693 (posição 2105º) Rendimento mensal médio (rural) 410 reais Taxa de Crescimento 0,28 Distância relativa até Aparecida SP 163km

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2013). http://www. ibge.gov.br/cidadesat/xtras/perfil.php?codmun=314440&search=minas-gerais|natercia

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Figura 1 – Intercâmbio da religiosidade turística Ida peregrina e volta espiritual: realização do dever turístico

Volta turística e ida missionária: completude do ciclo religioso

Fonte: Elaboração do autor 2013

Para finalizar a reportagem, é lembrado o empenho da própria Prefeitura em garantir a presença maciça dos natercianos em Aparecida, justamente porque toda peregrinação já esta inserida na cultura local como um evento de primeira ordem e capaz de mobilizar todo município pelo maior período de tempo possível. Vale lembrar que Natércia compõe um dos 11 municípios da microrregião de Santa Rita do Sapucaí, na faixa de divisa entre os estados de São Paulo e Minas Gerais. Portanto, não sendo exceção entre as cidades da serra da Mantiqueira, recebe influências significativas das funções urbanas exercidas pelos principais centros do Vale do Paraíba, incluindo a função religiosa. Sendo assim, podemos avaliar a dimensão regional de todo ritual dessa peregrinação (FICKLER, 1999) considerando a profundidade dos elementos culturais que ela contém. Da mesma forma que as comunidades rurais foram – pela 60ª vez – “convocadas” pela imagem milagrosa para aquele ritual. Todo “sacro-ofício” era um gesto mínimo de agradecimento coletivo que se poderia esperar daquela gente humilde e daquele lugar tão simples. Contudo, no momento de realizá-lo, não se pode negar sua grandiosidade proporcional.

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A romaria rural, acima de qualquer outra, traduz a imensa distância entre o espaço sagrado e os níveis de espacialidade profana, conforme as classificações de qualitativas de santuários cristãos (ROSENDHAL,1999). Mas em sua rea­ lização, a condição hierárquica das próprias comunidades é mantida e produzida, até nos meios “escolhidos” para o deslocamento. O antropólogo Rubem César Fernandes, em seu trabalho sobre as romarias para o santuário de Pirapora do Bom Jesus, deixa bem claro que a ideia da separação simbólica entre nobreza e plebe que se estabelece na relação entre os romeiros a cavalo e os que vão a pé: Temos então o perfil da romaria: heterogênea quanto aos meios – com a predominância do gênero cavalar, acompanhado em contraponto pelos pedestres, acomodado apesar dos acidentes com os ciclistas, irritados pelos veículos motorizados... É um conjunto que contrasta com a norma medieval portuguesa, em que o cavalo era distintivo das ordens nobres da sociedade, associado, sobretudo, com a arte guerreira. No Brasil foi estendido para outras classes, graças à importância do gado e do vaqueiro na colonização. Tornou-se acessível também ao “comum”, dando lugar inclusive a uma segunda definição de “peão”, exclusivamente brasileira, segundo o Aurélio: “amansador de cavalos, burros e bestas” (FERNANDES, 1982, p.64).

Muitos outros componentes devocionais se destacam no conjunto de uma romaria como a de Natércia, além dos tradicionais “meios de transporte”. Provavelmente o componente mais significativo do cerimonial permaneça no “êxtase” de uma das missas celebradas no Santuário; ou, individualmente, no momento em que o peregrino cumpre seus votos diante da Santa, no altar, na capela das velas ou na sala dos milagres (das promessas). Trata-se de um instante e de um ponto de vista místico, profundo; que verdadeiramente trans-

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cende a dicotomia sagrado/profano, posto pela maioria dos cientistas e estudiosos dos fenômenos religiosos. Ainda que concordemos com essa progressiva passagem, não podemos admitir a ideia de que uma participação efetiva naquele espaço sagrado fique encerrada assim que a comunidade deixe o local. Segundo Paul Fickeler (1999) um traço fundamental do sagrado – além da pureza e da atração/repulsão – encontra-se na possibilidade de sua transferência, santificação. De certa maneira, ao retornarem para Natércia os romeiros irradiaram a energia espiritual que renovaram no Santuário de Aparecida. Portanto, sacralizaram o profano de alguma forma. Este é o ponto que dá a questão do retorno/volta à complexidade necessária e relativa ao entendimento da religiosidade turística: sem garantir “volta” – tanto na aparente ida à “casa” da divindade, lócus da morada espiritual, quanto no consequente retorno ao ponto de partida, agora sujeito ao bom contágio dos devotos.

A Reverência de Outras Regiões: ”Renovando” a Tradição Boa parte da devoção das comunidades rurais, nos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, teve sua expansão com o incremento de dois fatores espaciais simultâneos: o desenvolvimento dos meios de transporte rodoviários (ônibus, automóveis e estradas) e o fortalecimento nacional do mar­ keting da imagem da Padroeira através das comemorações do 250º aniversário de sua pesca milagrosa, nas águas do Paraíba do Sul (1717- 1967). Não só municípios vizinhos como Natércia, Três Pontas (MG), Resende (RJ), São Sebastião e São Luiz do Paraitinga (SP), entre inúmeros outros, foram estimulados a continuar aumentando as romarias que já promoviam. Outros, um pouco ou bem mais distantes (na Bahia,

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Mato Grosso ou Rio Grande do Sul), em diferentes períodos e formas de organização, também incrementando fluxos de peregrinos, atendendo de maneira considerável os apelos de muitos camponeses e trabalhadores rurais. A Sala das Promessas, no subsolo da Basílica Nova de Aparecida, reúne uma densa simbologia da religiosidade popular. Nela, podem ser notadas representações significativas de pedidos e doações ligadas ao mundo rural. Há fotos de alimentos armazenados como lembrança do agradecimento pela boa safra de milho, de feijão, de algodão etc. Há objetos relacionados à montaria e a criação de equinos, em que a gratidão se faz presente pela doação de uma cela, de um pedaço da crina de um cavalo ou de uma ferradura, indicando o sucesso da criação. Mas também há imagens de calamidade (pequena maquete de um sítio devastado pela seca ou pela geada) e as frases de intenção para que aquela situação seja revertida por Deus, com a mediação de Nossa Senhora. Em qualquer um desses casos é fundamental perceber que o romeiro das áreas rurais, em condições habituais da própria romaria a qual está integrado, desenvolve seu ritual de visita como se todas as atividades e localidades fizessem parte de sua via-crúcis pessoal. Dificilmente vem à tona uma possibilidade de que ele possa aumentar sua racionalidade do tempo da visita por intermédio de um exercício tipicamente turístico ou de lazer. E neste campo de ocupações, quando as “tarefas estritamente religiosas” – no reduzido espectro de atividades que essa noção contém no interior do catolicismo – já se realizaram, fica disponibilizada a oportunidade do lazer turístico, dentro ou fora de um “certo” comprometimento religioso. Ir às lojas, bazares e lanchonetes, na área central de Aparecida, na Feira dos fins de semana ou no “Shopping da

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Fé” (como é também conhecida a parte comercial do Centro de Apoio ao Romeiro) significa ocupar-se de atividades não religiosas. Para alguns autores, indica apenas um uso “profano” do contexto que se desenvolveu à margem da função religiosa. Entretanto, seu desenvolvimento na maioria dos santuários de grande porte como Aparecida, não se originou nem por força de outras modalidades de turismo, comércio ou demais serviços nem por demanda das romarias de tradição rural. O entendimento deste fenômeno perpassa a lógica da expansão da rede metropolitana e as estratégias político-eclesiais de organização de santuários regionais e nacionais. Congressos intercontinentais de reitores de Santuário, como o que se realizou na Polônia, de 23 a 25 de setembro de 1999 (junto ao Santuário de N. S. de Czestochowa, padroeira nacional) retomam as preocupações de cientistas e teólogos que veem, na modernização acelerada dos grandes santuários, um perigo à transformação (desvirtuamento) da fé em “consumismo religioso”. Pode-se fazer tal raciocínio, desde que sejam discriminados três aspectos anteriores às mudanças arquitetônicas e funcionais que vêm ocorrendo nestes santuários: a) em termos geográficos, nenhum processo de metropolização elimina as particularidades locais e regionais; assim como não há cidade mundial que não tenha peculiaridades exclusivas, nenhum templo metropolitano – no âmbito do catolicismo – corre o risco de perder, por si só, os costumes mais tradicionais e populares das manifestações de fé; b) em termos comportamentais é preciso lembrar que são as demandas sociais – velhas e novas, autóctones ou estrangeiras – que moldam, em primeiro lugar as exigências de reorganização dos cerimoniais religiosos (sagrados ou profanos); portanto, nada impede que o romeiro da área rural

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selecione qual aspecto “moderno” do urbano – entre eles o turístico – deva ser incorporado a cultura religiosa; c) e, no plano político, o decisivo para a instituição católica não está na coerência de práticas e discursos que separariam, radicalmente, “o joio do trigo”, isto é, “o mal do consumismo do bem da devoção”, mas na capacidade de conciliar a aliança entre poder imperial da evangelização e viabilidade material da instituição. Neste sentido, nenhuma modalidade de turismo, nos santuário, pode ser ignorada. Diante dessas premissas, podem ser organizados estudos a respeito da caracterização e evolução das romarias rurais, sem engessar os aspectos devocionais mais autênticos dos camponeses. Modelos fechados de comportamento daqueles “peregrinos” (“estrangeiros” ou alóctones conforme a raiz da palavra) não permitem compreender a receptividade das romarias às inovações urbanísticas que vêm ocorrendo em Aparecida nos últimos anos. Ainda que pessoas, famílias e grupos tenham deixado de fazer suas viagens à terra da Padroeira ou abandonado a regularidade dessa visita, não se tem notícia de qualquer romaria rural que tenha substituído a devoção à Santa do Rio Paraíba do Sul, em razão da “turistificação” ou da “comercialização” dos espaços correlatos ao santuário. Ao contrário, os relatos registram a renovação e ampliação de velhas romarias e a criação de novas. Um exemplo bastante significativo é o da Romaria Masculina a pé de Três Corações – MG, que se realiza há 48 anos e, em 1980 ganhou sua versão feminina, embora ambos os grupos tenham que enfrentar os mesmos 240 km de caminhada, no período de inverno. Outro exemplo é a 15º romaria de Paraibuna-SP, que congrega caminhantes, cavaleiros, ciclistas e motociclistas, num total aproximado de 150 romeiros,

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reunindo integrantes de comunidades urbanas e rurais. Assim como a anterior, a referência do “sacrifício” de outras romarias acaba sendo uma motivação de novas pessoas e grupos se integrarem àquele movimento. Isto sem falar nos Grupos de Jovens, Vicentinos, Apostolados Marianos, Grupos Sindicais, Entidades Recreativas e Esportivas etc. que continua reinventando práticas cerimoniais, nas quais o morador ou trabalhador da área rural não sente a menor dificuldade em participar. Precisamos lembrar ainda, que para essa integração continua concorrendo positivamente as missões de evangelização dos padres redentoristas pelo interior do País e as transmissões da Rádio Aparecida. Esta tem sua programação sintonizada em todas as frequências, alcançando a maior audiência entre as rádios católicas do Brasil e da América Latina. Dificilmente este vigor da fé em N. S. Aparecida poderia ser convertido em tamanha reverência sem o trabalho prévio e constante dessa “mídia” institucional, principalmente no alcance e envolvimento das comunidades rurais.

Uma Pista para Compreender Tamanha Reverência A noção de “irradiação da sacralidade” (FICKELER, 1999) talvez indique um caminho, uma pista para interpretarmos o crescimento dessa reverência do mundo rural ao espaço urbano, polarizado por uma manifestação milagrosa. A ideia central, que poderia motivar pesquisas específicas visando sua melhor representação demonstração seria: ir ao santuário é buscar ao “ouro” simbólico que permitirá a riqueza real (o desenvolvimento) de nosso lugar de origem. A romaria rural, neste sentido, é uma busca mais funcional e concreta do que do que as peregrinações advindas dos grandes centros metropolitanos. Estes últimos têm muitos outros caminhos – ma-

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teriais e espirituais – para se desenvolver e oferecem muitas opções à sua população, podendo assim diluir os interesses de seus indivíduos e comunidades. Já para um lugar demarcado por uma vida rural nos limites da sobrevivência, o Santuário é um “garimpo”, “um paraíso de fartura”, fonte única de energia para o abastecimento da vida naquele “pedacinho do mundo”... Mas até que ponto, geograficamente, esta relação desigual e ritual do romeiro para com esses dois espaços existenciais – meu lugar e o lugar da Santa – não seria uma simples inversão do que ele inconscientemente considera sagrado? Neste sentido, nada é mais sagrado do que o “mundo” contextualizado por seu lugar de origem, posto que nenhuma outra realidade (incluindo pessoas, motivos ou situações) faria o romeiro forjar tamanho sacrifício. Ao partir para a romaria, nas condições que vimos pelos exemplos anteriores, a comunidade de romeiros comunga um desafio espiritual em nome de sua identidade, que inclui a dimensão territorial (HAESBAERT, 1999) por manifestar-se concretamente num espaço mítico, isto é, um espaço que veicula o compromisso cerimonial. Por isso, o grande objetivo da romaria – chegar ao Santuário – pode ser reconhecido com a roupagem de um objetivo menor, porém mais essencial: voltar dele, ou melhor, trazer dele o lugar santo que em que pode ser convertido o santo lugar onde o sacrifício começou. Vejamos este último relato, questionando a perspectiva posta há pouco.

Um Mês de Caminhada para Chegar a Aparecida... e Voltar A versão de 2012 da mesma romaria Natércia-Aparecida-Natércia, noticiava a presença de 400 peregrinos fazendo

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a caminhada por 30 dias. E as páginas on line da diocese de Campanha destacava o marco festivo da Paróquia Matriz de Santa Catarina Alexandria de Natércia, noticiando, com um texto de Paulina Orsi, a ligação entre comemorações eclesiais (Figura 2), da Matriz (190 anos) e da Romaria (75 anos). Tal associação ainda recordava em um trecho os 250 anos da construção da primeira capela e o envolvimento das comunidades filiais na romaria que atingiu o total de 1600. O que equivaleria a aproximadamente 1% dos habitantes do município. Não dispomos, no entanto, de informações publicadas na web que denotem o retorno desses peregrinos e a expressividade vivenciadas pelos moradores no receptivo do retorno turístico desses devotos. Em geral a invisibilidade dos momentos festivos é favorecida pela superexposição da monumentalidade urbana e massiva, tão presente em Aparecida, quanto nas grandes metrópoles e regiões de forte apelo midiático. Apenas neste sentido, pode-se cair na armadilha insana de afirmar que o rural, as tradições, as crendices populares, os veículos de tração animal e as formas comunitárias provincianas tendem ao desaparecimento. Mas na atenção redobrada para a trama de processos culturais interdependentes, capaz inclusive de reunir em sucessivos anos uma progressiva irrupção de efemérides – veja que só Natércia teve três comemorações em 2012 – há como evitar correlações extremistas. É nesse sentido que a conclusão deste trabalho sinaliza os estudiosos a observar a relação entre a ruralidade e a urbanidade no bojo de uma geografia simbólica dos ritos de peregrinação. Para se garantir a força ritualística que empreende o investimento cultural e espiritual da visita ao Santuário, é indispensável ter a certeza latente de que o retorno (a volta da “volta mística”) permanecerá energizando os devotos em sua chegada.

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Neste sentido, a religiosidade é turística pela capacidade de conciliar ou responder o que as “peregrinações sagradas” ou os “turismos profanos”, em si, não respondem: a) porque a festa permanece tão forte ou melhor para quem, apenas no retorno a suas respectivas “Natércias”, encontra o sentimento do dever plenamente cumprido; b) porque a paga da devoção não se encerra na paga da promessa e cria um vinculo de continuidade entre gerações descendentes e colaterais; c) e porque é cada vez mais difícil compreender a monumentalidade de Aparecida metropolitana de 11 milhões de peregrinos anos sem as centenas de ruralidade que refundam Aparecidas no imaginário pós-moderno de tantos camponeses. Figura 3 – Fotocomposição Mais uma grande e alegre data! Nos idos de 1937, precisamente na primeira segunda-feira do mês de julho, um grupo de natercianos (então catarinenses) sob o incentivo do saudoso senhor João de Souza, organizou uma romaria rumo a Aparecida – SP, para venerar a pequenina imagem da querida Mãe Aparecida. A Romaria, ao longo dos anos, diversificou-se. Formaram-se grupos de: pedestres, ciclistas, motociclistas, cavaleiros e amazonas, de ônibus e carros particulares. No dia 2 de julho de 2012, comemoram-se os 75 anos de agradáveis e santas visitas a Casa da Mãe Aparecida. Agradecemos a Deus por ter iluminado os Padres a fim de manterem, incentivarem e participarem desta belíssima tradição; por ter concedido a graça

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da perseverança aos organizadores e, sobretudo por não ter negado aos romeiros as graças da fé e da coragem, para enfrentarem o terrível frio do inverno na Serra da Mantiqueira e a chuva; a todos a graça de acreditarem que, através de Maria, chegaremos a Jesus. Fonte: Elaboração do autor (2013), com informações coletadas dos sites http://www.diocesedacampanha.org.br/component/content/article/940-paroquia-santa-catarina-de-alexandria-de-natercia-comemora-190-anos. html e http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/5f/Natercia. jpeg. Acesso em 20 de setembro de 2013.

A irradiação devocional, na complexa religiosidade turística que articula os lugares um dia foi lida apenas em termos de funcionalidade. A demanda de sua leitura atual engendra um pouco mais: nenhum espaço geográfico brasileiro pode ser pensado culturalmente sem esta poderosa chave-mestra na abertura de tantas portas.

Referências Bibliográficas ANDRADE, José Vicente de. Turismo: fundamentos e dimensões. S. Paulo: Ática, 1997. BRUSTOLONI, Júlio. História da Imagem de N. S. da Conceição Aparecida. Aparecida-SP: Ed. Santuário, 1987. CLAVAL, Paul. Geografia cultural. Santa Catarina, UFSC: 1999. FERNANDES, Rubem César. Os cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução às religiões populares. São Paulo: Brasiliense, 1982. FICKELER, Paul. Questões fundamentais de Geografia da Religião. Espaço e Cultura, n. 7, dez. 1999, Rio de Janeiro: UERJ/NEPEC, 1999. HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais. In: Manifestações da Cultura no Espaço Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. OLIVEIRA, Christian D. M. de Oliveira. Religiosidade popular na pós-modernidade: um ritual turístico? In: “Da Cidade

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ao Campo: a diversidade do saber-fazer turístico”. Fortaleza/ CE: Editora FUNECE, 1998. OLIVEIRA, Christian D. M. de. Um templo para cidade-mãe: a construção mítica de um contexto metropolitano no santuá­rio de Aparecida (SP). Tese (Doutorado), Universidade de São Paulo, São Paulo: USP, 1999. ROSENDHAL, Zeny. Porto das Caixas: Espaço Sagrado da Baixada Fluminense. Tese (Doutorado). Departamento de Geografia – Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1994.

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A ORGANIZAÇÃO DOS AFRODESCENDENTES ATRAVÉS DO CANDOMBLÉ Emanoel Luís Roque Soares Sayonara Cardoso Copque Milagres do povo Tudo chegou sobrevivente num navio Quem descobriu o Brasil? Foi o negro que viu a crueldade bem de frente E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente (Caetano Veloso)

A música de Caetano Veloso “Milagres do povo”, letra esta que surge de uma inspiração a partir de uma conversa com o escritor Jorge Amado, em que o cantor tinha a curiosidade de saber se o escritor Jorge Amado tinha fé no candomblé1. Ele responde que não tinha fé por ser materialista, mas que ele tinha presenciado o candomblé fazer muitos milagres, chamados pelo escritor de “milagres do povo”. Esta música nos traz uma reflexão sobre o processo do tráfico negreiro e a resistência cultural do povo negro escravizado, inclusive a formação do candomblé e o processo de organização sócio-espacial dos afrodescendentes dentro deste continente. O terreiro de candomblé pode ser concebido como um espaço sagrado e cultural que guarda as tradições dos orixás, nkisis e voduns2 que se instalaram aqui no Brasil através dos negros escravizados vindos de várias nações da África. Cada um deles trazendo as suas culturas e seus deuses, que lá cultuavam nas diferentes regiões da África. Ao se estabelecerem 1

Segundo PRANDI: “O candomblé é o nome dado a religião dos orixás, formada na Bahia, no século XIX, a partir de tradições de povos iorubas ou nagôs, com influências de costumes trazidos por grupos fons, aqui denominados jejes e, residualmente por grupos de africanos minoritários”. 2 Refere-se ao modo de como são chamados os deuses nas três diferentes nações fundadoras do candomblé, ex: no jêge (vodun), na Angola(nkisi) e no ketu(orixá).

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no Brasil houve a junção desses povos e consequentemente a dos seus deuses e assim formou-se o candomblé3 – uma religião de matriz africana, porém brasileira, mas que mantém as tradições dos cultos aos orixás, nkisis e voduns. A história das irmandades e confrarias, que data desde o império romano, nos ajuda a melhor perceber como vai se dar a formação da identidade negra no Brasil principalmente na Bahia que vai levar o povo negro do banzo ao xirê com a invenção do candomblé e a criação do espaço que aqui conhecemos como terreiro. Elas tinham funções assistencialistas para com seus membros, além de política e religiosa, iriam ocupar lugar de destaque na igreja como instrumento de difusão do cristianismo, e no Estado como espaço de cidadania. Deste último, herda a forma burocratizada das suas autarquias, com seus livros de registro e contabilidade e os cargos hierarquizados dos quais podemos destacar o de juiz ou juíza suprema, tesoureiro(a) e secretário(a). Vivem, basicamente, das joias pagas por cada membro ao entrar, de contribuições mensais dos mesmos, de doações e heranças além de verbas governamentais e a utilização de prédios públicos. As irmandades não trabalhavam de graça por seus membros. Estes as sustentavam por méis de jóias de entrada, anuidades, esmolas, coletadas periodicamente, loterias, rendas de propriedades legadas em testamentos. Os recursos auferidos por várias fontes eram gastos nas obrigações com os irmãos e em caridade pública; na construção, reforma e manutenção das igrejas, asilos, hospitais e cemitérios; na compra de objetos do culto, como imagens, roupas, bandeiras, insígnias; na folha de pagamento de capelães, sacristãos, funcionários; 3

Na África cada clã ou família africana cultuava somente um único deus. A junção dos cultos é um fenômeno brasileiro decorrente da importação de escravos, estes agrupados nas senzalas nomeavam um babalorixá (pai de santo) ou uma yalorixá(mãe de santo).

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e não pouco, nas despesas com festas anuais (REIS, 1991, p.59).

O papa Gregório I foi o autor de uma posição estratégica de grande significado para o futuro do cristianismo: para desvincular-se radicalmente da estagnada política bizantina, voltou sua atenção para os novos reinos bárbaros do Ocidente, fundados na Inglaterra, na Gália, na Germânia, na Hispânia, todos eles carentes de estrutura administrativa e quadros qualificados, como terrenos mais propícios para a expansão do Cristianismo romano. Gregório é pratico e defende a eficiência do culto às imagens, argumentando que, para um povo bárbaro e pagão, uma imagem vale mais que mil palavras, e que esta imagem não é o fim e sim apenas o meio de se chegar a Deus. Ele sabia que para controle das massas é necessário o uso da imagem, e através delas introduz a culpa, antes inexistente nos povos pagãos, e que, para o convencimento de ignorantes à fé cristã é imprescindível; ele também sabia da eficácia de ser maleável e permitir prazeres físicos limitados, como festas, procissões, banquetes e outros, agregando e substituindo as datas tradicionais pagãs por datas do calendário católico que era uma maneira de manter o povo sob controle mais eficaz que o fundamentalismo irlandês. Todas estas medidas de propaganda estavam contidas nas irmandades leigas, espalhadas por todas as camadas sociais, que tinham como base o culto aos santos e uma comunicação social educativa que tinha como alvo os iletrados. O objetivo estratégico da política cultural gregoriana era portanto manter e propagar a ordem estabelecida. Neste sentido, o pastor deveria manter uma ritualística solene diante das imagens, estimulando “com insistência”, recomenda Gregório, a “compunção”. Eis o conteúdo político do novo ensinamento: nos seus textos

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de teologia moral, ele nos explica que a compunção é um sentimento de humildade dolorosa da alma que se descobre pecadora”. A alma é que deve ser fustigada, parece nos dizer Gregório, não o corpo, porque a função da imagem cristã é ajudar a inocular nas mentes bárbaras o sentimento de culpa, inexistente na religião pagã, o qual predispõe a obediência. Assim psicologicamente a imagem desempenha um papel relevante no dispositivo colonizador, ao contribuir para a formação da mentalidade submissa; e sociologicamente é o ponto de atração para a reunião do “rebanho disperso” na confraria: a existência da imagem é portanto uma condição fundamental para a aglomeração das ovelhas em uma instituição em que as mentalidades possam ser convenientemente condicionadas (SILVEIRA, 2006, p.133).

Os fundamentalistas reagiram, porém foram vencidos pelas ideias midiáticas de Gregório que além de serem tolerantes as manifestações de fé que estivessem fora das liturgias as incorporou e transformou-as em festas católicas enriquecendo este ciclo, de tal maneira que às vezes, estes festejos vão fugir do controle da igreja abrindo caminho para que fosse contestada a ordem estabelecida, através de reivindicações além do enorme precedente que tanto os fundamentalistas temiam que fosse a tolerância ao sincretismo no seio da santa igreja como argumento para o aumento da popularização do cristianismo. Alguns cultos como, por exemplo, o de Nossa Senhora do Rosário, como conta Renato da Silveira (2006), por ser fácil na organização de rezas públicas foi introduzido na África e no Brasil, tornando-se protetora dos escravos, passando a se chamar Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e aqui na Bahia esta instituição vai promover a fundação do primeiro terreiro de candomblé no Brasil, o da Barroquinha. No entanto, quando os escravos ou libertos negros começam a adentrar as confrarias, as contradições vêm à tona, pois,

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se ser cristão e participar de uma irmandade é sinal de prestígio, liberdade e cidadania, além de amparo social, como posso continuar escravo? Na confraria liberto-me, reivindico para mim e para os outros a condição de cristão livre, alforrio-me. Aqui está clara a inversão, uma vez que a irmandade foi criada para conter os ânimos, arrefecer e acomodar as almas sob a égide do cristianismo colonizador consolidando a escravidão passa ela ser o local de onde os negos vão clamar por liberdade. Tal inversão é recíproca, pois neste movimento os sujeitos trazem consigo seu mundo existencial, deslocando-o na figura do outro seu confrade livre branco que, às vezes, fazia parte da mesma irmandade, no caso das mistas, onde brancos e negros conviviam juntos ou em irmandades puramente de negros que requeriam o status igual ao das puramente brancas. Tal deslocamento é uma mudança de ponto de vista, de foco dentro de um mesmo jogo. Se sou cristão, então quero os direitos do cristianismo e tal direito me dá liberdade para até professar minhas crenças. Oprimido, desloca-se na figura do opressor e agradece a liberdade, cavando trincheiras no campo de batalha do inimigo. Quando me torno cristão me desloco de mim, torno-me diferente, não sou mais escravo, sou cidadão livre e, agora, coopero para liberdade total dos outros meus iguais, por isto torna-se quase impossível viver fora das irmandades de leigos que na Bahia colonial antiga era o único acesso à cidadania, a troca da identidade pagã pela cristã. Vai agora invertidamente reconstruir a identidade africana, conforme Reis (1991, p.55):

Esta identidade reinventada vai inclusive ser vital para o nascimento do candomblé na igreja da Barroquinha no seio da irmandade através das “famílias de santo” que substituirá importantes funções e significações da família consanguínea desbaratada pela escravidão e reconstruída na diáspora atra-

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vés dos séculos, ora construído por Gregorio. Foi na mesma brecha institucional que a irmandade penetrou. Os irmãos de confraria formavam uma alternativa ao parentesco ritual. Cabia à “família” de irmãos oferecer a seus membros, além do espaço de comunhão e identidade, socorro nas horas de necessidade, apoio para conquista de alforria, meios de protestos contra abusos senhoriais e, sobretudo rituais fúnebres dignos. O candomblé é uma religião que possui uma cultura muito rica cheia de símbolos e tradições, e o espaço do candomblé pode ser percebido como lugar de cultura e fonte de aprendizado. Sendo assim, o terreiro pode ser considerado como espaço de produção do conhecimento, que contribui para a construção da identidade do individuo afrodescendente. Permitindo uma reflexão a este sobre sua convivência no mundo e na sua comunidade. Ainda dentro deste contexto, o candomblé promove a igualdade social em seu aspecto acolhedor na inclusão dos diferentes, respeitando a diversidade. O espaço do terreiro pode ter um papel social relevante na vida dos adeptos e da comunidade local. Dentre vários outros aspectos de aprendizado busca-se dentro dessa cosmovisão africana trazer equilíbrio entre o homem, a natureza e a sociedade em que vive. Portanto é de fundamental importância conhecer o candomblé e a importância da religião para a formação da cultura do Recôncavo Baiano e da espacialidade do terreiro para desmistificar os mitos negativos que geraram o preconceito e a discriminação sobre esta cultura religiosa. O candomblé é uma religião que durante toda sua história foi demonizada, marginalizada e muito perseguida pela polícia e pelas igrejas. Que luta pelo seu reconhecimento e sua legitimação religiosa na conservação dos cultos sagrados aos orixás, inkices ou voduns. No candomblé não existe pecado,

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tem um caráter acolhedor que valoriza e exalta o ser humano e a vida. Nisto percebe-se a importância do seu papel social com o indivíduo, independentemente da cor de sua pele, sexo, idade, religião ou opção sexual. Para que este espaço seja percebido como um lugar que tem um papel social relevante na sua comunidade local, para a afrodescendência e até mesmo na sociedade, é preciso que haja um cuidado por parte dos adeptos pela preservação destes espaços de terreiros. Sendo assim este trabalho nos coloca o seguinte problema: será que os candomblecistas têm percebido a importância do papel social que o terreiro de candomblé pode promover tanto para afrodescendência quanto para a sua comunidade? E na sua criação encontramos pistas para elucidarmos este problema na invenção do xirê, que é a grande roda onde os Orixás de nações diferentes dançam e cantam nas festas públicas, é o símbolo máximo da união sincrética dos orixás que vai dar origem ao que conhecemos por candomblé, onde pela ordem se começa com canto para Ogum, passando por todos Orixás e terminando com Oxalá. Tais pensamentos são frutos de duas constatações; uma é que o xirê é a grande saída para a criação do candomblé, uma vez que a formação circular acaba com a hierarquia que possibilita o nascimento da religião, formada por vários Orixás de nações diversas, dando um exemplo de tolerância e diplomacia, gerida por Exu, que convoca a todos para o culto em um ritual anterior ao xirê que é o padê sendo que é que o próprio Exu significa, conceitualmente aquilo que é redondo e por isso circular assim como o xirê, é o redondo e circular Exu que convida a todos para dançar em círculo. Para os nagôs dos candomblés tradicionais da Bahia, Èsù ou Exu – escrito na sua forma abrasileirada – é a

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principal entidade, não só do culto aos Orixás em que ele é a força dinâmica que move o sistema mítico ancestral, como também na vida, no dia-a-dia que, segundo a crença do povo de santo, é a energia que vitaliza as pessoas e de tudo o que existe. Em resumo, sem Exu não tem movimento, logo sem ele não teríamos culto aos orixás, nem vida para os seres (SOARES, 2008, p.37)

Estudar o xirê enquanto obrigação que faz parte de um ritual religioso, em que estão presentes a música, dança, encenação, saída política de forma circular pode contribuir para entendermos uma filosofia da educação afrodescendente, entrevistas com a Yalorixá do Terreiro Ilê Axé Yepandá Odé, localizado na Baixa do Morro, zona rural de Santo Antônio de Jesus-BA que são evidenciadas na estrutura do trabalho foram essenciais para entender como o candomblé pode contribuir para o fortalecimento da cultura afrodescendente. Nesse sentido, o artigo busca entender as relações sociais no candomblé como uma organização sócio-espacial da afrodescendência através da metáfora do xirê, que é a grande roda onde os orixás dançam nas festas públicas, representando a grande festa em louvor e enaltecimento da ancestralidade afrodescendente. A palavra banzo significa saudade e tristeza, era como se chamava o sentimento de melancolia em relação à terra natal e de aversão à privação da liberdade praticada contra a população negra no Brasil na época dos processos escravistas. Foi também uma prática comum de resistência à escravidão, portanto, o título do trabalho Do Banzo ao Xirê traz uma ideia de tristeza convertida em alegria. Para isso, o trabalho está organizado em dois momentos. No primeiro, aborda-se a importância do candomblé para o enaltecimento da cultura afro. No segundo momento trata da relação dos adeptos com o candomblé. Os diferentes grupos étnicos possibilitaram os

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confinamentos das senzalas a junção de diferentes culturas dos povos africanos. Cada um com seus costumes, religião e diferentes línguas Munanga (2009). Dentro desse contexto em que se encontravam os negros escravizados, houve uma resistência cultural dos modos de vida africano. Mesmo com todas as dificuldades possíveis, como as condições desumanas com que eram tratados, os negros escravizados resistiam a duras penas contra o abandono das suas origens africanas deixando legados importantes para formação da cultura afrobrasileira do Recôncavo Baiano como o candomblé, como nos afirma Munanga (2006): No campo da religiosidade, as contribuições dos povos da área ocidental, particularmente do chamado Golfo do Benin, se destacam. Eles legaram ao Brasil um panteão religioso organizado segundo o modelo cultural jêje-nagô, conhecido como candomblé da Bahia (MUNANGA, 2009, p.94).

Um dos processos mais marcantes dessas resistências culturais foi a criação do candomblé. Para os negros escravizados foi uma forma de continuar praticando no Novo Mundo a sua fé. Fé esta que contribuía para aliviar os pesares da escravidão. O culto aos deuses africanos pelos negros escravizados serviu para perpetuar costumes e tradições africanas que contribuiriam mais tarde para a formação de espaços que valorizam a afrodescendência, de acordo com Sousa Júnior (2011): Já há algum tempo vários autores se ocuparam em demonstrar a importância dos espaços terreiros como mantenedores de uma identidade, não necessariamente fragmentada pelo drama que representou a escravidão aos povos africanos, mas também uma identidade reconstruída de forma criativa a partir do vários elementos simbólicos fornecidos por matrizes culturais diversas

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que desde cedo marcaram a formação de nossa cultura (SOUSA JÚNIOR, 2011, p24).

O terreiro, portanto se configura como um legado importante na construção de identidades ricas em cultura. A musicalidade, as danças, as roupas e toda estrutura desse espaço são símbolos fortes que contribuem para o bem-estar, o prazer de estar presente neste lugar. As regras no candomblé como, por exemplo, as quizilas, a hierarquia, os resguardos, o vestir-se de branco ou vestir-se com roupas luxuosas não só mantêm uma ordem. Mas estas regras de comportamento são aceitas e entendidas pelos filhos de santo como uma maneira de dar importância as pessoas que pertencem a este universo místico, alegre, festivo e sagrado. Os cargos de babalorixá, yalorixá, ekedes, ogãs, dão certo status aos que ocupam estas posições nos terreiros. O status social, no interior do candomblé não traduz apenas ou principalmente uma hierarquia de direitos; não se define tampouco por “papéis”, como os sociólogos têm o costume de considerar hoje, ou pela simples posse de encargos, de poderes estabelecidos e admitidos pelos subordinados, nem por normas institucionais. É a imagem do lugar, ocupado pelo indivíduo na escala da existência. O status mais ou menos elevado sem dúvida alguma se manifesta exteriormente pelo poder, pelo mando, pela autoridade sobre os indivíduos de status baixo; mas essa autoridade não passa de irradiação do ser que o orixá possui no indivíduo (BASTIDE, 2005, p.228).

Pertencer ao candomblé é pertencer ao orixá, que é a força, a energia emanada através do sobrenatural. Este pertencimento é o que confere aos adeptos do candomblé certo poder de se manter forte através do orixá que lhe protege e que o ajuda na sua sobrevivência, mantendo a força vital, influenciando em todos os aspectos da sua vida.

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Com o processo de escravização no Brasil, negros de várias partes do Continente africano passam a fazer parte da população brasileira a partir do século XVI. “A partir de 1570, os engenhos de açúcar começam a dividir espaços entre a mão de obra indígena e a africana” (ARAÚJO, 2006, p7). O tráfico negreiro é considerado, como uma das maiores tragédias da humanidade, por seu longo processo de duração e milhares de africanos escravizados mortos pelas más condições de saúde decorrentes da forma de como eram transportados na diáspora África-Brasil. Segundo Araújo (2006 ): Altas taxas de mortalidade caracterizavam o tráfico atlântico. Desde seu embarque em feitorias africanas, os escravizados estavam expostos a diversas doenças. Nos navios negreiros conhecidos como tumbeiros por causa das inúmeras mortes ocorridas ao longo da travessia atlântica esses escravos enfrentavam trágicas jornadas. Com elevadas taxas de mortalidade, aqueles que sobreviviam chegavam aos vários portos e às praias nas Américas em péssimas condições de saúde: magros, debilitados, com problemas de pele ou com doenças mais graves (p.15).

As junções dos africanos e de suas culturas serviram também para a construção de um elo que os fortalecia e iam criando caminhos para uma possível espacialidade firmada na legitimação da cultura africana no território brasileiro, de acordo com Sodré: Do lado dos ex-escravos, o terreiro (de candomblé) afigura-se como a forma social negro-brasileira por excelência, porque além da diversidade existencial e cultural que engendra, é um lugar originário de força ou potência social para uma etnia que experimenta a cidania em condições desiguais. Através do terreiro e de sua originalidade diante do espaço europeu, obtêm-se traços fortes da subjetividade históricas das classes subalternas no Brasil (SODRÉ, 1988. p19).

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O terreiro de candomblé se diferencia de outros espaços religiosos porque a espacialidade do terreiro é vivenciada de modo familiar. O terreiro é a casa da família de santo, os adeptos são chamados de filhos, os filhos de santo e dentro desse espaço praticam certas atividades do seu cotidiano como comer, dormir, dentre outros. Os filhos de santo interagem com seus irmãos e são responsáveis pela manutenção do terreiro. [...] O candomblé é mesma coisa, candomblé requer uma responsabilidade muito grande, quando não está presente, onde o iniciado estiver ele sempre deve pensar no coletivo do seu terreiro, seus irmãos e mãe (SOARES, 2008).

O candomblé é uma religião que exige compromissos e um deles é esse laço familiar e afetivo entre seus adeptos e o espaço do terreiro. Então esse trabalho pra gente é importantíssimo porque nós podemos levar isso á frente na demonstração do que é possível se fazer dentro da religião de matriz africana. Não é só o culto e o culto é importantíssimo porque tudo parte disso aí, mas nós podemos agregar valores outros. À nossa religião, às nossas práticas, ao nosso ambiente religioso, estendendo isso pra que sirva de exemplo pra outras entidades, que possa fazer, que possa desempenhar esse trabalho também... e que o candomblé possa ser levado cada dia com mais seriedade, com mais fundamentação. O que é mais importante num terreiro de candomblé é o ser humano em si, é o fortalecimento das suas raízes, da sua identidade, a valorização do ser humano por si só. Porque quando se entra num terreiro de candomblé não se pergunta de onde você veio, quem você, o que você tem. Então essa valorização do ser humano que em algumas religiões não se encontra, mas na nossa isso é fundamental. Nós estamos de braços abertos, sempre recebendo as pessoas, acolhendo, principal-

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mente num terreiro como nosso, que é um terreiro de Oxum, e tem um colo enorme onde as pessoas podem ser acolhidas como filhos...4

Por isso é importante pensar como o espaço do terreiro de candomblé ajudou na reorganização familiar e afetiva dos negros que foram escravizados, retirados da sua pátria e que viram sua família dispersada nesse processo de escravidão, devolvendo a cidadania. As religiões de matrizes africanas são, assim, lugar de reconhecimento e construção de cidadania ao menos para homens e mulheres negras (SOUSA JÚNIOR, 2011, p.25). ... Essa é a nossa base, é a nossa essência né, essa cultura, a valorização do que nós recebemos dos nossos ascendentes africanos, a valorização de tudo que eles passaram pra nós e que nós demos uma feição nossa brasileira, mas seguindo essas matrizes, seguindo essa base, essa cultura, a preservação de tudo isso é de suma importância pra que o negro continue sendo ele mesmo, responsável pelo culto aos orixás, ele mesmo sendo responsável como preservador dessa cultura, de toda sua cultura, da cultura de sua raízes, e que eles veem as práticas e que a cada dia mais essas práticas se tornem necessárias na vida de pessoas e pessoas. E que hoje graças a nossa resistência, graças a nossa força, graças aos orixás hoje já nós vemos colhemos os frutos disso porque outras pessoas já frequentam a religião. “É muito forte para nossa descendência afro e nossa religião a preservação dos valores da cultura do nosso povo.” 5 4

Depoimento da Yalorixá Mãe Nilza de Oxum em maio de2013, do Terreiro Ilê Axé Yepandá Odé, localizado na Baixa do Morro-zona rural em Santo Antonio de Jesus-BA, educadora, mãe, mulher negra que possui grande influência na cidade de SAJ como sacerdotisa e fundadora da Associação Ilê Axé Yepandá Odé, que tem o intuito de promover ações sociais e valorizar a cultura de matriz africana. Dentro desta associação ela desenvolve vários projetos como o Tecendo Renda Colhendo esperança que promove cursos de dança afro, percussão, culinária, costura e bordado, projetos que contam com apoio do Governo da Bahia. 5

Ibdem

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E que até hoje as religiões de matriz africana acolhe pessoas que por algum motivo vêm de famílias onde não experimentaram laços afetivos de uma família carnal, mas que encontram dentro destes espaços de terreiros uma referência de família, de afetividade com direito a pai, mãe e irmãos e outros graus de parentesco que não discriminam sexo raça ou outra religião responsável por retirar os afrodescendentes do banzo para lúdica e educativa forma circular e inclusiva do xirê.

Referências Bibliográficas PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. REIS, João José Reis. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras. 1991. SILVEIRA, Renato da. O candomblé da Barroquinha: processo de constituição do primeiro terreiro baiano de keto. Salvador: Ed. Maianga, 2006. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1988. SOARES, Emanoel Luís Roque. As vinte e uma faces de Exu na Filosofia Afrodescendente da Educação: Imagens, Discursos e Narrativas. Tese (Doutorado), UFC/FACED. Fortaleza,2008. SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida. 2. ed. Rio de Janeiro: F. Alves Editora, 1988

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(IN)VISIBILIDADES DE ESPAÇOS FESTIVOS: A CENTRALIDADE DA FESTA DE SANTO ANTÔNIO E AS MANIFESTAÇÕES PERIFÉRICAS DE BARBALHA – CEARÁ Antônio Igor Dantas Cardoso

Introdução O município de Barbalha, localizado na região do Cariri, sul cearense, constitui um “celeiro” da cultura popular que assume grande expressividade no lugar. Aí estão presentes grupos folclóricos e espaços de memória, os quais nos remetem a uma historicidade eminentemente agrária, enquanto consequência do processo de colonização ocorrido nestas terras. Entre tais formas, as festas de devoção aos santos, as danças, a culinária, as crenças, dentre outras, são destaques e marcas de projeção dos grupos sociais fixados nessas áreas. Contudo, uma das maiores expressões culturais do município manifesta-se na realização da Festa de Santo Antônio de Barbalha. Com mais de oito décadas de festejo, refletindo o sentimento de um povo, de origens agrárias, mas que mantém a cidade como palco e cenário da sua tradição. É uma festa vinculada a uma diversidade de rituais, dentre os quais, os que acontecem em torno de uma árvore: escolha, corte, cortejo e hasteamento, na Festa do Pau da Bandeira. Como toda manifestação da cultura imaterial, ao longo do tempo, novos elementos vêm sendo inseridos a esta tradição, movidos por concepções sociais, ambientais, culturais, econômicas, políticas e espaciais mais diversas. Todas em movimentos descontínuos de reorganização e adequação, dando aos bens culturais novos significados, sem anular os fatores vinculados à sua originalidade.

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Assim, analisar a diversidade de elementos constituintes da festa torna-se fundamental para a compreensão dos fundamentos desta tradição popular, em busca da pluralidade que ela oferece (e oculta) como componente indispensável à sua continuidade. Nesse sentido, os aspectos histórico-festivos, a convergência das políticas culturais, os investimentos público-privados, o marketing da espetacularização, passam a caracterizar o que denominamos de centralidade visível. Atreladas, aos atores sociais que a realizam, como os “carregadores do pau”, as identidades territoriais percebidas, as diversas atividades à festa vinculadas, como o turismo e suas modalidades. É partindo dessa premissa, que a festa se constitui como alvo central à patrimonialização institucionalizada, tanto na esfera municipal, estadual, quanto federal. O que a torna de grande importância e visibilidade no tratamento dado à cultura popular. E diante desse caráter patrimonial da Festa de Santo Antônio, e do jogo visível/invisível ­(MERLEAU-PONTY, 1980), podemos refletir sobre suas dimensões territoriais. O “confronto” entre as centralidades e as periferias festivas, constituindo visibilidades momentâneas e invisibilidades permanentes, direcionou-nos a pensar o município de Barbalha, a partir desses territórios, das quais abrangem outros espaços e manifestações, periféricas a esta, e invisíveis aos processos de patrimonialização: Sítios Santa Rosa, Cabeceiras e Riacho do Meio, no município de Barbalha. Essa patrimonialização, de caráter institucional, emerge como desafio progressivo ao apelo cultural dos últimos séculos, XX e XXI. No entanto, a esta dinâmica inserimos o seu par de oposição: a patrimonialidade (POULOT, 2009), na qual se gesta pelo reconhecimento e apropriação do bem pelos sujeitos que o vivenciam e o representam.

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Logo, estes espaços e manifestações periféricas se inserem na análise ora trabalhada a partir da patrimonialidade dos rituais festivos (as festas de padroeiro) realizada nas localidades: Sítios Santa Rosa (São Sebastião), Cabeceiras (Nossa Senhora de Lourdes) e Riacho do Meio (São José). Segundo Peirano (2003, p.10), os rituais se caracterizam como [...] um fenômeno especial da sociedade que nos aponta e revela representações e valores de uma sociedade, [...] Rituais são bons para transmitir valores e conhecimentos e também próprios para resolver conflitos e reproduzir as relações sociais.

Seguindo essas representações e valores de grupos, as referidas localidades apresentam, nas suas estruturas festivas, desenhos rituais que nos remetem à imagem essencial da Festa de Santo Antônio. Destacam, emblematicamente, o sacrifício ritual da árvore: escolha, corte, cortejo e o hasteamento da bandeira do padroeiro. A opção por estas localidades está embasada nas representatividades histórico-geográficas que as mesmas compõem, numa dinâmica têmporo-espacial da qual nutre o município como importante polo memorial da Região do Cariri, seja o Cemitério dos Fuzilados (Alto do Leitão) do Sítio Santa Rosa, os rituais do grupo de Penitentes Irmãos da Cruz do Sítio Cabeceiras, ou delimitação do Parque Ecológico do Riacho do Meio. Estas localidades e manifestações indicam visibilidades efêmeras e pontuais, que podem traduzir-se por invisibilidade, enquanto espaços pouco midiatizados, em relação à Festa de Santo Antônio. Mas, que refletem o caráter mnemônico, mantenedor da tradição material e imaterial das comunidades, e passível de uma valorização que considere a cultura rural como aspecto peculiar e intrínseco ao município de Barbalha.

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Nesta perspectiva, o bem cultural para cumprir sua função social e política, dando sentido identitário à preservação das memórias coletivas (JEUDY, 2005, p.26), deve metodologicamente, instigar valores, identidades, religiosidade, reconhecimento das práticas comunitárias no fazer festivo, nestas localidades, buscando (re)criar e dinamizar os espaços, concomitante ao caráter de patrimonialidade aí inseridos, através da sensibilidade e identificação ao lugar.

A Centralidade Visível da Festa de Santo Antônio de Barbalha A potencialidade patrimonial da Festa de Santo Antônio de Barbalha a redimensiona a uma visibilidade em escala nacional, exigindo maior controle sobre sua preservação e manutenção, valorizando, sobretudo, os aspectos intrínsecos a ela: a Festa do Pau da Bandeira, e seus rituais, as trezenas litúrgicas de celebração ao santo, e a procissão do orago; assim como os atores que realizam essas manifestações: os carregadores do pau da bandeira e demais devotos. Sendo a festa a principal representação identitária do município, essas manifestações, conforme Amaral (1998, p.7), [...] ocupam um espaço privilegiado na cultura brasileira [...] adquirindo, no entanto, significados particulares. Tendo sido, desde o período colonial, um fator constitutivo de relações e modos de ação e comportamento, ela é uma das linguagens favoritas do povo brasileiro. [...] Ela é capaz, conforme o contexto, diluir, cristalizar, celebrar, ironizar ou sacralizar a experiência social particular dos grupos que a realizam [...].

É nesta perspectiva que a festa se torna um fator catalisador de diferentes sociabilidades, tornando o tempo festivo uma experiência de partilha dos espaços, de transgressão da ordem, impondo-se como uma espécie de caos planejado, in-

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dispensável e representativo. Nesse sentido, a Festa de Santo Antônio se insere em um processo não particularizado, mas de ativa complexidade. Ela deixa transparecer, a partir dos diversos elementos que a compõem, um cenário parcial e total. De um lado traduz “[...] uma relativa autonomia de significação e de estruturação organizativa. Por outro lado só podem ser integralmente captados e compreendidos como parte de um todo.” (ARAÚJO, 1994, p.15). São esses aspectos de ­complexidade inerentes a festa que nos faz (re)pensar a sua centralidade. A Festa de Santo Antônio de Barbalha é classificada como uma festa sacro-profana, da qual tem conteúdo mítico-religioso de base, envolvendo festejos profanos de alta relevância (AMARAL, 2008, p.443). A princípio o que seria uma homenagem ao santo padroeiro, com o hasteamento da bandeira, ao longo dos anos passou a agregar outros festejos, sobretudo, a Festa do Pau da Bandeira (Foto 1), na simbologia sagrada da árvore, como elo entre a terra e o céu.

Foto 1 – Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio 2013. Autor: Antônio Igor Dantas Cardoso.

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O acompanhamento do cortejo da floresta do Araripe à Igreja Matriz tornou-se a via crusis da simultaneidade do sagrado e do profano, onde orações e aguardente são indispensáveis ao cumprimento de renovação da fé. Outros aspectos são a inserção do desfile dos grupos folclóricos do município, destacando-se como uma festa à parte, na abertura dos festejos, no último domingo de maio ou primeiro domingo de junho. Também dá-se início às trezenas, quermesses no adro da matriz, e shows no Parque da Cidade, finalizando com a procissão de Santo Antônio, no dia 13 de junho, da qual comungam todas as capelas, com os andores dos padroeiros, filiadas à paróquia de Santo Antônio e São Vicente de Paula. À justificativa da centralidade da Festa de Santo Antônio atribui-se, além dos investimentos financeiros, turísticos, de mercado, à promoção da mesma pelos anseios dos participantes locais, Poder Público (municipal, estadual, federal, judiciário), entidades religiosas, mídia, patrocinadores, dentre outros agentes relacionados à produção espacial da festa (MAIA, 1999, p.206). Seu caráter peculiar de comemorar o santo: diversas festas dentro da festa, composta por rituais de celebrações que nos remetem ao catolicismo oficial, e ao popular, integra as especificidades dos festejos, enquanto característica local e relevância regional. E, mais recentemente, podemos atribuí-la como alvo de forças vetoriais dos lugares simbólicos, das quais, associadas ao simbolismo, torna-se decisivo para a interpretação das intencionalidades sociais no espaço (OLIVEIRA, 2011), favorecendo à sua espetacularização. As forças vetoriais nos lugares simbólicos, enquanto lugar excepcional, incomum, fazem convergir fatores culturais

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e ambientais diversos, uma profusão de alteridades, dinamizando, de forma associativa o lugar mítico-religioso, político-turístico, mediático-ecossistêmico (Ibidem). E na festa abordada correspondem: à polêmica ambiental entorno do corte da árvore, dos investimentos financeiros para festa e o registro do festejo pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Perante o caráter da originalidade, peculiaridade, identidade e memória, a Festa de Santo Antônio, hoje, integra as políticas patrimoniais, enquanto registro como Patrimônio Imaterial Nacional, vinculadas às tramas sociais, no que diz respeito às celebrações, os ofícios, as formas de expressão, os lugares, e os edifícios à festa associados, compondo o processo de inventário e passíveis de serem inseridos no rol dos investimentos culturais.

As (In)Visibilidades Periféricas A dimensão patrimonial da Festa de Santo Antônio de Barbalha, pode ser apreendida enquanto parâmetros na inserção de outras manifestações periféricas aos processos de valorização, que nos remetem também às estruturas simbólicas e espaciais, e aos valores culturais do presente. No município, conforme já anunciado, tais manifestações se apresentam nos festejos dos padroeiros de localidades rurais, dentre estas: Sítios Santa Rosa (São Sebastião), Cabeceiras (Nossa Senhora de Lourdes) e Riacho do Meio (São José). Na qual têm sua importância minimizada em detrimento de uma cultura e vida urbanizada, tornando-os subjugados a uma valorização pontual e inexpressiva. Além das festas dos padroeiros dessas comunidades, elas também se respaldam com elementos histórico-geográ-

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ficos representativos, conferindo ao lugar um caráter memorial. Cada um refaz partes relevantes da história do município de Barbalha: o movimento do cangaço materializado no cemitério dos fuzilados (Alto do Leitão) do Sítio Santa Rosa, a força do tradicionalismo devocional com os Penitentes Irmãos da Cruz do Sítio Cabeceiras, e os ícones da proteção ambiental da Chapada do Araripe com o Parque Ecológico do Riacho do Meio. A análise desses elementos dá-se eminentemente em conformidade com o entorno da festa, como forma de integração da patrimonialidade (POULOT, 2009), uma vez que a estrutura organizativa e o desejo de manter a tradição e o caráter memorial do lugar partem da própria comunidade, da qual atribui certa visibilidade às suas manifestações, embora, invisibilizados pelas políticas culturais do município. Dessa forma, os elementos contidos nestes lugares, remetem-nos à valorização da sua constituição histórica, inseridos em escala municipal, e o quanto a estas manifestações agregam-se às relações de pertencimento, fruto das espacialidades construídas nestes lugares. Salienta-se como justificativa de que não podemos considerar o caráter de visibilidade patrimonial da Festa de Santo Antônio como o principal motivo da invisibilidade das demais manifestações. O desafio em pauta parte desta festa-espetáculo principal, para encontrar em outros espaços, periféricos à festa, formas de inseri-los nos processos culturais de valorização, integrando-os aos processos da constituição histórica e memorial do município. Neste aspecto cabe refletir: os processos patrimonializáveis de visibilidade podem ser um mecanismo de perda, enquanto que a invisibilidade pode nos garantir uma certa continuidade?

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Porém, outra realidade se faz presente nestas festas. Quando analisada em relação à festa auge do município, a Festa de Santo Antônio, os processos de organização, de apoio, de políticas culturais pelos quais as mesmas enfrentam nos mostram outra face festiva. O caráter de cooperação entre Associações de Moradores, Conselhos das Capelas, e os demais habitantes das localidades, os diferem da face estritamente institucional/concentradora presente na festa maior do município. A apropriação desta pela Prefeitura Municipal, através de empresas terceirizadas, suprime as qualidades da realização de uma festa mais popular, de participação e organização democráticas feita pelos segmentos sociais do próprio município: sindicatos, associações, ONGs, juntamente com apoio do governo municipal. Dessa forma, as festas dos sítios supracitados adquirem um viés mais simplório, familiar e comunitário, uma afeição com o seu lugar, uma vez que a organização, composta pelos próprios moradores, veem nesse momento festivo uma congregação de solidariedade, de valorização do seu espaço. Nas suas composições estão a Festa do Pau da Bandeira (Foto 2), enquanto elo maior com a Festa de Santo Antônio, as novenas, quermesses, procissões. Neste âmbito, o lugar internaliza um conjunto amalgamado de sentidos, experiências, desejos, dos atores que o praticam, na realidade cotidiana, atribuindo-lhe, assim, novos significados, à medida que desvendam o próprio lugar. Indo além da experiência individual de cada sujeito, o lugar se torna mediador da experiência vivida do outro, denominado pelos fenomenologistas como intersubjetividade (HOLZER, 2003, p.120). Organizadas pelas próprias instituições locais, os conflitos não são inexistentes. Apresentam adversidades quanto

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Foto 2 – Festa do Pau da Bandeira das localidades e suas representatividades histórico-geográficas, respectivamente de cima para baixo: Sítios Santa Rosa/Cemitério dos Fuzilados, Cabeceiras/Penitentes e Riacho do Meio/Parque Ecológico, 2013. Autor: Antônio Igor Dantas Cardoso.

aos processos de organização entre os moradores, alguns enfrentam o trabalho, outros apenas esperam a festa. Daí a concepção não homogênea de comunidade (BAUMAN, 2003), onde diversos interesses, de diferentes sujeitos são colocados a postos, diante dos interesses comuns a esta. Coincidentemente consecutivas, as festas se respaldam enquanto trabalho coletivo das comunidades, na estrutura organizativa das mesmas, como forte elemento que estimula a (des)construção das espacialidades dos sujeitos ai envolvidos. A realização dos mesmos rituais da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, traz uma (re)significação das territorialidades simbólicas, onde a influência da grande festa passa também a revesti-las do teor sacro-profano. Como se a repetição os colocasse em um patamar de igualdade cultural, devocional e diversional, qual ocorre naquela. Neste aspecto, o momento de corte do “Pau da Bandeira”, sofreu coibição, uma vez que a ampla demanda festiva,

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com esses mesmos rituais, respondiam por cortes de árvores sem nenhum aparato técnico-jurídico, ferindo a legislação ambiental. Vale ressaltar que no município de Barbalha essas práticas festivas se apresentam nas diversas capelas filiadas à Paróquia de Santo Antônio e São Vicente de Paula. Assim, com respeito à hierarquia das Paróquias, e de certa forma ao meio ambiente, as capelas continuam a festejar o pau da bandeira utilizando-se de espécies que não são endêmicas, e que não estão em vias de extinção, como o eucalipto. Muitas vezes o mastro é cedido, como empréstimo, a outras comunidades para a realização de suas festas: o mastro itinerante, ou mesmo utiliza-se o da festa anterior. As celebrações religiosas, das novenas ao dia do santo(a), complementam os dias festivos, homenageando diferentes setores da vida social: agricultores, profissionais da saúde, educação, aposentados, dentre outros. Realizam diversas atividades que possam gerar renda, e assim, custear as despesas da capela: taxa das celebrações, pagamento de energia, reformas, limpeza, enfim. Dessa forma, a realização dos festejos nas localidades, ora analisadas, só é possível porque o caráter voluntário das Associações de Moradores e Conselhos da Capela, enquanto instituição organizada na comunidade, prezam para que as mesmas aconteçam, mesmo com as adversidades impostas. Estas entidades submetem projetos à Secretaria de Cultura do município, e a outras instituições como o Serviço Social do Comércio – SESC, procuram empresas e/ou vereadores que possam patrocinar parte do evento, ou apenas na doação de camisas para os Carregadores do pau; além das rifas e bingos realizados para os mesmos fins. Contudo, a ênfase atribuída à análise dos Sítios ­Santa Rosa, Cabeceiras e Riacho do Meio e suas festas, pauta-se

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­ elos aspectos comunitários, de como se organizam para a reap lização dos festejos, visto que as práticas do festejar culminam diretamente nas relações de sociabilidade do lugar, de conhecimento do seu território, das relações com outras comunidades, enquanto participantes ou organizadores das festas. A inserção destas nas políticas culturais da municipalidade, resgata as práticas simbólicas ai proporcionadas, de rememoração dos tempos na produção do cotidiano vivido, na afirmação da continuidade de suas práticas culturais, expandindo para além do lugar, mas também, em escala municipal e regional. As representatividades históricas desses espaços periféricos fazem elo com as festas a partir dos aspectos das espacialidades memoriais inerentes a ambos. Fragilizados pelo não alcance efetivo das políticas culturais ficam às margens das próprias comunidades, como é o caso do Parque Ecológico do Riacho do Meio e o Cemitério dos Fuzilados (Alto do Leitão) no Sítio Santa Rosa. Mesmo os que recebem algum “investimento”, no caso dos Penitentes do Sítio Cabeceiras, estes se restringem apenas às práticas culturais como grupo tradicional do município, desvinculando-os das suas práticas cotidianas, e dos seus espaços de manifestação, como grupo religioso. Ou seja, as políticas culturais são tratadas como fatos isolados da conjuntura sócio-espacial nas quais se inserem, e nem mesmo são associadas a outras políticas. Não contemplar outras demandas inerentes é negligenciar a práxis cotidiana dos sujeitos. Assim, a cultura, nesse caso, tem uma função pouco reconhecida e estimulada nesses tempos: transformar realidades sociais e contribuir para o desenvolvimento humano em todos os seus aspectos. Algo que identifica o indivíduo em seu espaço, lugar, época, tornando-o capaz de sociabilizar e formar espírito crítico (BRANT, 2009, p.?).

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Forçar uma duvidosa valorização desses aspectos memoriais, sem os da autonomia de uso e apropriação pelas comunidades que as possuem, fragiliza qualquer tentativa, de posteriormente, inseri-los nestas políticas, quando já não há motivação para tais ações.

Viabilidade das Políticas Culturais da Municipalidade Sendo a dinâmica festiva a experiência, individual e coletiva, lúdica e racional, na partilha dos espaços, mobilizando contingentes, como fator catalisador de diferentes sociabilidades, indispensável e representativo, os anseios clamam por uma emergência cultural mais efetiva, que levem em consideração tais aspectos. Os “jogos simbólicos”, as representações, os valores, o lazer, a transgressão, o uso dos espaços, interpenetram no imaginário dos sujeitos a partir das transmissões da linguagem festiva, como um campo fértil para se entender as estruturas sociais aí expostas. E as políticas culturais, através de leis e ações voltadas para o setor cultural têm papel revelador dentro dessas conjunturas. As diversas formas de uso (ou desuso) implicam diretamente no modo como os festejos são realizados, sobretudo quando se trata das manifestações culturais do município, dentre estas, as festas das localidades, ora analisadas. Convém enfatizar que essas mesmas festas, ao almejarem apoio por parte da Prefeitura Municipal, através da Secretaria de Cultura, devem-se apresentar, por meio de convênios, projetos e orçamentos, dos quais são analisados pelos representantes legais. Os recursos financeiros e/ou logísticos são direcionados de acordo com a disponibilidade de dotação orçamentária

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da respectiva secretaria, na cooperação de uma porcentagem do orçamento submetido, como também da disponibilidade da estrutura logística: palco, transporte, entre outros. Os sujeitos manifestam o desejo e as perspectivas de verem suas festas e suas representatividades histórico-geográficas inseridas aos processos culturais do município de forma efetiva e abrangente, sem a perda do caráter comunitário, das quais são manifestadas. O intuito não é torná-las potencialmente uma festa pautada pelo “espetáculo”, ávida por turistas, mídias e efemeridades, tal qual ocorre, hoje, na Festa de Santo Antônio, mas, fomentar a necessidade do festar, na identificação dos sujeitos aos seus espaços, e mesmo em tempo de festa, transformar a realidade, impulsionando o desenvolvimento humanístico das localidades. Enfim, se desvenda a possibilidade de o mesmo empenho dado à organização do festejo, ser transferido para o empenho na luta por melhorias sociais e políticas das localidades. E as representatividades histórico-geográficas, enquanto patrimonialidade fazem elo com as diversas atividades que delas podem se desmembrar. Assim, as políticas culturais, quando democraticamente efetivadas, passam a agregar tais manifestações, inerentes à constituição da vida, porém aplicadas isoladamente. Conforme Canedo (no prelo), Como sujeitos e produtores da cultura, os indivíduos devem participar da elaboração das políticas de cultura para a sua comunidade. Neste sentido, o conceito de democracia cultural nos parece mais adequado para pensar a promoção do desenvolvimento sócio-cultural. Esta concepção de gestão das ações culturais está preocupada com a promoção da participação popular e a organização autogestiva das atividades. [...] Nesta concepção política

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o público é mais do que espectador. [...], o “trinômio consumidor-produto-espectador” é ampliado para “a criação/fruição-processo- participação”.

Às margens das políticas públicas, em geral, estas comunidades rurais enfrentam os dilemas intrínsecos aos seus espaços. E as festas, enquanto aspecto da cultura e fator social inserem-se nestes processos políticos, embora sejam vistas como última instância de fomento. Tratar estas demandas como algo supérfluo ou minimizá-la, não viabiliza o entendimento da sociedade na qual estão inseridas, uma vez que consideramos as festas, e analisamo-las a partir desse sentido, como sendo um ponto de partida, para se pensar novos modos de lidar com as realidades espaciais ali expostas.

Para não Concluir... pois, no Próximo Ano Tem Mais Festa Efêmero e simbólico, o espaço da festa define lugares e territorialidades idem. O primeiro é exposto enquanto um conjunto amalgamado de sentidos, experiências, desejos, dos atores que o praticam, na realidade cotidiana e na festa, onde se intensifica, atribuindo-lhe, assim, novos significados, à medida que desvendam o próprio lugar. O segundo, busca superar as barreiras da apropriação do poder político, enfatizando a apropriação simbólica do território, construída pela multiterritorialidade do vivido, dos valores de uso, enquanto processo do espaço socialmente construído (HAESBAERT, 2007, p.21). A festa legitima essa diversidade de lugares, num espaço territorializado por configurações simbólicas. O que se vivencia no cotidiano, se transmuta em novas vivências festivas. A partir do encontro do “eu” com o “outro”, essas manifestações simbólicas (re)afirmam a memória coletiva e a certeza do devir.

(IN)VISIBILIDADES DE ESPAÇOS FESTIVOS: A CENTRALIDADE DA FESTA DE SANTO ANTÔNIO E AS MANIFESTAÇÕES PERIFÉRICAS DE BARBALHA – CEARÁ

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Dessa forma, as interações que emanam do fenômeno da festa se pautam por processos relacionais, de controle, normatizações, legitimação, ratificadas pelos rumos históricos da humanidade. Desmembrada em outras correlações, sobretudo simbólicas, espaço/tempo, sagrado/profano, cultura/natureza, devoto/santo, enfim, exige-se uma pluralidade de pensamentos, para se compreender as tramas e os dramas festivos. Assim, interpretar os caminhos e os obstáculos das políticas culturais frente aos desafios da (in)visibilidade para a valorização das manifestações populares são reflexões pertinentes, como forma de compreensão dos fatos tratados, servindo de base para outras formas de pensar as questões culturais da municipalidade, tão relevantes à constituição da identidade local.

Referências Bibliográficas AMARAL, Rita de Cássia de Melo Peixoto. Festas, festivais e festividades: algumas notas para a discussão de métodos e técnicas de pesquisa sobre festejar no Brasil. In: COLÓQUIO FESTAS E SOCIABILIDADES – CIRS/CASO/CEFET. 2, Anais... Natal, 2008. ______. Festa à brasileira: Significados do festejar, no país que “não é sério”. Tese de doutorado em Antropologia. Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1998, 403p. ARAÚJO, José Edvar Costa de. O papel político-pedagógico das manifestações da cultura popular na construção de modelos e conceitos de relações sociais – o caso da Festa do Pau da Bandeira, de Barbalha. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal do Ceará – UFC. Fortaleza, 1994.

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BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Zhar Editores. Rio de Janeiro, 2003. BRANT, Leonardo. Cultura é Poder. In: BRANT, Leonardo. O poder da Cultura. Editora Peirópolis, 2009. Disponível em: . Acesso em: 06/05/13. CANEDO, Daniele. Democratização da Cultura. Mais Definições em Trânsito. < http://www.cult.ufba.br/ wordpress/?page_id=823 > Acesso em: 13/05/2013. HAESBAERT, Rogério. Território e multiterritorialidade: um debate. GEOgraphia, ano IX, n. 17, 2007. p.19-45. HOLZER, Werther. O conceito de lugar na Geografia Cultural-Humanista: uma contribuição para a Geografia contemporânea. GEOgraphia, ano V, n. 10, p.113-123, 2003. JEUDY, Henri-Pierre. Espelhos das cidades. Tradução Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005. MAIA, Carlos Eduardo Santos. Ensaio interpretativo da dimensão espacial das festas populares. In: ROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato. Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999. p.191-218. MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1980. OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Festas Religiosas, Santuários Naturais e Vetores de Lugares Simbólicos. Revista da ANPEGE, v. 7, n. 8, p.93-106, ago./dez. 2011. PEIRANO, Mariza. Rituais: ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2003. PUOLOT, Dominique. Uma história do patrimônio no ocidente séculos XVIII –XXI: do monumento aos valores. Tradução de TEIXEIRA, G. J. de Freitas. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

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CAPÍTULO 3

Fotografia, Paisagem, Literatura e Geografia

GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR Antonio Carlos Queiroz Filho

Primeiro Movimento Terminava a disciplina de seminários, em que dois alunos que oriento no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo apresentaram suas pesquisas. Durante a sessão de perguntas, das muitas questões instigantes que ali aconteceram, uma foi a que mais me tocou: “onde vocês querem chegar com isso”? Aquele tipo de indagação já havia ocorrido noutras ocasiões. Mais até do que eu gostaria. Isso porque o tom desse tipo de pergunta sempre tinha um caráter inquisitório, como se estivessem pedindo prova de que estávamos fazendo – realmente – Geografia. Diante dessas ocasiões, sempre reagia entrando nesse jogo da Verdade Geográfica, como se aquele pressuposto não pudesse, por si só, me indicar outra perspectiva de olhar para o próprio saber geográfico como algo menos arrogante. E foi exatamente isso que ocorreu na ocasião do seminário dos meus alunos. A questão feita por uma professora, colega do programa, não teve como objetivo desqualificar nossas balizas conceituais e metodológicas. Foi, de fato, uma curiosidade. Na ocasião, apresentamos duas pesquisas que tratam, de maneira geral, sobre a relação Imagem-Cidade. Ambas buscam provocar as estruturas codificadoras das paisagens clichês concernentes às cidades inseridas na lógica do turismo. São cidades, como outra mercadoria qualquer, que lançam mão de uma identidade visual – marca – para subsidiar uma experiência capturada para o consumo na relação paisagem-lugar. Estou me referindo a um conceito muito caro para a Geografia Contemporânea na tentativa de lidar com essas

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questões em que busco analisar, compreender e problematizar o papel político que as imagens têm efetivado na relação das pessoas com os lugares, com as coisas e com elas mesmas, numa perspectiva que toma a Geografia como uma Grafia, uma escrita, uma linguagem que dá a ver, dá existência a algo, nesse caso, uma imaginação espacial. Esse é o termo que nos interessa. O vi pela primeira vez no livro “Pelo Espaço”, da geógrafa inglesa Doreen Massey. Massey está preocupada com as novas políticas da espacialidade, e argumenta que os modos de imaginar têm papel fundamental para o pensamento espacial e para as políticas no território, problematizando as “conexões entre a imaginação do espacial e a imaginação do político” (MASSEY, 2008, p.30). Tomei emprestado o caminho pelo qual a autora realiza suas reflexões. Ela parte de três considerações (o que chamei de consequências), na qual se realiza um diagnóstico das estruturas imagéticas que configuram uma dada imaginação espacial estabelecida. Massey faz proposições a essas constatações, espécie de alternativas para aquelas imaginações que foram verificadas antes, o que denominei nas nossas pesquisas de problematizações. Nossas pesquisas, portanto, sempre partem de uma imaginação espacial hegemônica, onde realizamos num primeiro grande movimento reflexivo – diagnóstico – a seguinte trajetória: consequências-problematizações, na análise 1; e a imagem que se repete, na análise 2 (ver Fig. 1 e Fig. 2). PROBLEMATIZAÇÃO 1 CONSEQUÊNCIA 1 IMAGINAÇÃO ESPACIAL HEGEMÔNICA

ANÁLISE 1

CONSEQUÊNCIA 2 CONSEQUÊNCIA 3

Figura 1 – Mind Map Analítico: análise 1 Fonte: elaborado pelo autor

200  d ANTONIO CARLOS QUEIROZ FILHO

PROBLEMATIZAÇÃO 2 PROBLEMATIZAÇÃO 3

A principal característica da “consequência” é o seu caráter reducionista, totalitário, dicotômico e de verdade absoluta. Identificar como o pensamento hegemônico promove essas questões é pauta dessa etapa. ANÁLISE 2

IMAGINAÇÃO ESPACIAL HEGEMÔNICA

IMAGEM QUE SE REPETE

REFLEXÃO

Figura 2 – Mind Map Analítico: análise 2 Fonte: elaborado pelo autor

Todo pensamento estabelecido tem uma grande imagem que lhe é correspondente. A maneira de conseguirmos identificá-la é pela redundância/repetição, o famoso “clichê”. Para isso, procuramos pelas imagens associadas ao nosso tema/categoria no maior banco de dados existente no mundo de hoje, o Google Imagens. Depois dessa etapa de coleta, identificamos qual é a forma visual que se repete e, na sequência, problematizamos. Com essas duas análises, encerramos o primeiro movimento analítico da pesquisa. Restam ainda outros dois, de que falarei adiante. Antes, retomando a questão inicial: onde se quer chegar?

Segundo Movimento No mundo de hoje, em que as chegadas e partidas já estão todas semiprontas, eu diria que a melhor pergunta talvez seja: quer? Retiraria, de início, esse caráter utilitarista e finalista da ciência – chegar – bem como, do caminho já traçado, definido, fechado – onde, tal como nos sugeriu Clarice Lispector no seu livro, Água Viva, quando ela diz: “Para onde vou? E a resposta é: vou” (LISPECTOR, 1998, p.27) O “ir” clariceano tem um componente que muito me interessa. Ele trata do “é” das coisas, que implica, ao mes-

GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR

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mo tempo, lidar com o presente e apenas ele, o que seria o “histórias-até-aqui” da Massey (2008) quando ela se refere ao pensamento espacial como algo do agora, portanto, aberto; bem como, a perspectiva do devir deleuziano, tal como nos esclarece o filósofo Eduardo Pellejero no seu livro “A postulação da Realidade” (2009) quando nos explica que Deleuze não é um idealista. Digamos que, simplesmente, se nega a fazer da expressão um efeito impassível e estéril das condições materiais, um resultado da história (PELLEJERO, 2009, p.79).

Ele continua dizendo que: [...] para Deleuze, nunca foi questão de escapar do mundo que existe (nem pela destruição da verdade da qual se reclama nem pela postulação de uma verdade superior), mas de criar condições para a expressão de outros mundos possíveis, por sua vez, capazes de desencadear a transformação do mundo existente (PELLEJERO, 2009, p.80).

Eis então o desafio: a possibilidade do outro como possível e para a Geografia, esse outro seria qualquer coisa que a deslocasse para além do paradigma representacional, onde sua grafia pudesse expressar algo que atravessasse o ilustrativo, o informativo, ou seja, uma imaginação espacial menos capturada pelos dispositivos que constituem as grandes “ficções hegemônicas” (PELLEJERO, 2009). É importante dizer desse caminho como uma travessia: Não se trata para Deleuze de decidir quem tem razão, quem está em possessão da verdade, detém o direito ou merece justiça. Porque a desabilitação das ficções hegemônicas não tem por objeto estabelecer uma verdade diferente [...] (PELLEJERO, 2009, p.87).

Travessia incerta, “porque são os passos que fazem os caminhos” (QUINTANA, 2012, p.22), diz Mario Quintana no

202  d ANTONIO CARLOS QUEIROZ FILHO

livro A Cor do Invisível. Isso não significa o mesmo que dizer “sem rumo”, “sem objetivo”, “sem perspectiva” e sim, uma abertura para a experiência e experimentação, que nada mais são do que uma escolha política de estar no mundo, para além das “doutrinas do consenso” (PELLEJERO, 2009, p.76). Essa abertura implica numa multiplicação dos possíveis sobre o plano da expressão que desafiam os pontos de vista consagrados e sentidos já dados pelas narrativas únicas (PELLEJERO, 2009). Chegamos ao segundo grande movimento da pesquisa: o tensionamento (ver Fig. 3).

A DI

Ó GN

IC ST

EXP

O

ER

IM

EN

TA Ç

ÃO

P.H.

P.M.

Rasura = Identificar + Tensionar + Desterritorializar

Figura 3 – Sobre a Rasura Fonte: http://www.periodicos.ufgd.edu.br/index.php/entre-lugar/article/ viewFile/2675/1521

O que fazer com o diagnóstico? Proponho uma travessia que suspeita. Intermeio. Inquietude. Incômodo. Tensionamento. Sem ser modelo, a problematização que permeia esse momento da reflexão toma como “método” os pressupostos – talvez esteja cometendo um equívoco em chamar dessa forma – da poesia de Manoel de Barros. Desde “o livro das ignorãnças” (2007), passando pelo “o guardador de águas” (2006), a “gramática expositiva do chão” (2004), e chegando nas “me-

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mórias inventadas” (2008), Manoel nos ensina, mesmo não querendo, a brincar com as palavras. Ele faz com a linguagem poética uma ética do dizer, em que o que importa não é a regra, nem a simetria, menos ainda o sentido último – moral – da fazer sentido. Tensionar, portanto, é uma preparação para o movimento seguinte, que é o da desterritorialização da imaginação espacial. A passagem do diagnóstico para a experimentação, que seria o ato poético propriamente, é fundamental para que grafia inventada se efetive a partir dos deslimites, do desinteressante, do pouco eloquente, do delirante Seria, por assim dizer, os primeiros passos, aqueles bem desajeitados, do passarinho que tenta levantar voo, não porque ela vai conseguir em pouco tempo “voar certo” e sim, porque ela irá “voar fora da asa” (BARROS, 2007, p.21). É, nesse momento, que a Geografia faz sua imaginação hegemônica “pegar delírio” (BARROS, 2007, p.15).

Pausa? Duas referências importantes têm me acompanhado nesse percurso com as imagens a suas geografias. Deleuze e Guattari, com as obras Mil Platôs, volume 2, em especial o trecho em que tratam dos postulados da linguística e Kafka: para uma literatura menor; e mais recentemente, Giorgio Agamben, com os livros Ideia de Prosa (2012) e O que é o Contemporâneo? e outros ensaios (2009). Deles retiro as ideias de pensamento menor, fabulação, dispositivo, linguagem, que alimentam outros conceitos que são adjacentes, tais como imaginação, poética, rasura. Com eles, tenho companhia solidária, inspiração perene nas travessias já feitas e naquelas muitas que ainda estão por vir. Apenas citando:

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Ir cada vez mais longe na desterritorialização... à força da sobriedade. E dado a aridez do léxico, fazê-lo vibrar na intensidade. Deleuze e Guattari, Kafka: para uma literatura menor, p.43. A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto. Deleuze e Guattari, Mil Platôs, v. 2, p.14. [...] tanto o dito como o não dito, eis os elementos do dispositivo. Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo? e outros ensaios, p.28. É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda verdade última formulável num discurso objetivante, ainda que em aparência feliz, teria necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à verdade. Giorgio Agamben, Ideia de Prosa, (p.46).

Terceiro Movimento Quero compartilhar agora, no terceiro movimento, ainda que de forma breve, uma das grafias-experimentações que tenho desenvolvido no corpo de algumas pesquisas que oriento. Ela toma a fotografia como uma superfície linguística para ser rasurada, ou seja, destituída do seu caráter representacional (ver Fig. 4) e, com isso, possibilitar outras imaginações e grafias possíveis.

GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR

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206  d ANTONIO CARLOS QUEIROZ FILHO

Cidades Slogans

Análise 02

Análise 01

Google Imagens

A Imagem “Reduzida” da Cidade

Nomes Oficiais

Redução da Experiência

São Paulo

Rio de Janeiro

Salvador

Supermodernidade

Ideal Turístico

Iconografia, Clichês e Slogans

Nomes Usuais e Narrativas do Cotidiano

Polifonia e Redução Narrativa

Pensamento Menor

Fonte: elaborado pelo autor

Poesia Visual

Poesia e Edição Fotográfica

Figura 04 – Mind Map do percurso da pesquisa sobre “cidades slogans”.

São Paulo “NoFilter”

Pão de Açúcar, vende-se.

Salvador, Bom Fim.

Aqui temos a poesia visual como elemento atuante no processo de desterritorialização dos slogans visuais que se pretendem como tradução máxima, imaginação espacial única, das cidades, a saber, Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Para cada uma delas, foi produzido um poema visual, os quais compuseram suas referidas paisagens clichês com outros elementos narrativos e estéticos. O poema em devir-fotografia e a fotografia em devir-poema. Quando misturadas, ocorreu um movimento simultâneo: o de abertura da fotografia para algo além do representacional, bem como o da poesia como algo puramente aberto ou subjetivo. Tomamos a imagem mesma, aquela já desgastada pelo uso e a intensificamos, fazendo-a dizer de cada uma daquelas cidades para além do slogan, a exemplo do poema visual que apresenta São Paulo:

Figura 5 – Poema Visual de “São Paulo”. Poesia: Vitor Bessa Zacché. Idealização: A. Carlos Queiroz Filho. Edição de Imagem: Rafael Borges

GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR

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Cada letra, cada palavra, é o próprio “pixel” da fotografia digital. Esse é um poema visual que dialoga diretamente com os aplicativos presentes nos telefones celulares dos dias de hoje, onde o ato de fotografar passou a ser mais importante que a própria experiência vivida diretamente. Aliás, divulgar a imagem nas redes sociais tornou-se a experiência máxima das pessoas com os lugares. Há aqui uma alusão clara a isso quando o poema visual é uma fotografia “postada” numa famosa rede social de compartilhamento de imagens. Uma referência direta à perspectiva da gramática e ética do ver que trata Susan Sontag no livro Sobre Fotografia (2004)1. Outro aspecto tratado nessa rasura diz respeito aos índices que compõem uma imagem para que a aceitemos a própria realidade. A exemplo da famosa pintura de René Magritte, em que ele fazia uma provocação ao paradigma representacional quando “legendou” o quadro com a seguinte expressão: “isso não é um cachimbo”, nós resolvemos dizer os índices fotográficos tais quais eles são, em palavra. Por isso as afirmações: “Aqui é uma rua”, “prédio”, “Av. Paulista”. Como se fosse um mapa, na perspectiva mais usual possível do termo. Desfiguração da fotografia, da palavra, da poesia, da concepção dura de mapa, da visualidade, do ilustrativo, do referenciado, da paisagem mesma, tudo isso, não inventando um outro estatuto de verdade, uma outra imagem autoritária. Queríamos desnaturalizar, desacostumar nossa imaginação espacial já tão autossuficiente, autoexplicativa. Com uma fuga para dentro da própria matéria constituinte do pensamento espacial hegemônico, assumimos essa grafia como devir, assim como fez Mario Quintana quando escreveu o Epitáfio para Catulo da Paixão Cearense: 1

Ver artigo “A Edição dos Lugares”, de Queiroz Filho (2010). In: http://www.fae. unicamp.br/revista/index.php/etd/article/view/2116

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Catulo não morreu, luarizou-se. Mário Quintana, A Cor do Invisível, p.114.

Deixemos a Geografia devir. Ela quer...

Referências Bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. Ideia de prosa. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. ______. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Tradução de Vinicius Nicastro Honesko. Chapecó, Argos, 2009. BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008. ______. O livro das ignorânças. Rio de Janeira: Record, 2007. ______. O guardador de águas. Rio de Janeiro: Record, 2006. ______. Gramática expositiva do chão. Rio de Janeiro: Record, 2004. DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003 ______. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, v. 02. Tradução de Ana Lucia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Ed. 34, 1995. LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeira: Rocco, 1998. MASSEY, Doreen. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Tradução de Hilda Pareto Maciel e Rogério Haesbaert. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. PELLEJERO, Eduardo. A Postulação da Realidade: filosofia, literatura, política. Tradução de Susana Guerra. Lisboa: Edições Vendaval, 2009. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

GEOGRAFIAS INVENTADAS: TRAVESSIAS, RASURAS, DEVIR

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QUEIROZ FILHO, A. Carlos. A Edição dos Lugares: sobre fotografias e a política espacial das imagens. Revista Educação Temática Digital – ETD, 2010. Disponível em: Acesso em: 22 set. 2013. QUEIROZ FILHO, A. Carlos; DAMIANI, Hadassa. P.e BORGES, Rafael F. Rasuras e Experimentações: apontamentos sobre Cidade-Imagem-Experiência. In: Revista Entre-Lugar, 2013. Disponível em: Acesso em: 22 set. 2013. QUINTANA, Mario. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

210  d ANTONIO CARLOS QUEIROZ FILHO

PAISAGENS EM MOVIMENTO DA CICERÓPOLIS DOCUMENTAL Glauco Vieira Fernandes

Paisagens da Cicerópolis moderna Uma cidade tensionada entre o progressismo e a religiosidade popular, é uma das questões essenciais a nos convocar à leitura e à investigação da realidade espaço-temporal de Juazeiro do Norte em seu processo de construção material e simbólica. A recente tomada de estruturação da chamada Região Metropolitana do Cariri – RMC1, tendo a cidade de Juazeiro como centralidade urbana da metrópole adventícia, é outra questão a nos chamar a atenção para a investigação do espaço da cidade (ver mapa abaixo). Entre tais questões justapõe-se outra, que se constitui, propriamente, o objeto de nosso estudo: o diálogo entre a representação e experiência da cidade tendo como eixo de reflexão a relação entre a paisagem construída pelas imagens nos documentários sobre Juazeiro e a paisagem corpórea dos sujeitos que nela realizam suas vivências e experiências no/do espaço da cidade. Vamos, a seguir, discutir algumas reflexões que consideramos relevantes e introdutórias para as questões citadas, tendo em vista a construção deste objeto de estudo geográfico.

1

A  Região Metropolitana do Cariri  (RMC) está localizada no  estado do  Ceará. Foi criada por uma Lei Complementar Estadual nº 78 sancionada em  29 de junho de 2009. A região metropolitana surgiu a partir da conurbação entre os municípios de Juazeiro do Norte,  Crato e Barbalha, denominada Crajubar. Somando-se a eles, foram incluídas as cidades limítrofes situadas no Cariri cearense: Caririaçu, Farias Brito, Jardim, Missão Velha, Nova Olinda e Santana do Cariri. Tem como área de influência a região sul do Ceará e a região da divisa entre o Ceará e Pernambuco.

d  211

Fonte: Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará, 2010.

Juazeiro do Norte2 está localizada ao extremo sul do Ceará, na região do Cariri; é uma cidade média de expressivo dinamismo urbano na hinterlânia cearense, abrigando mais de 250.000 habitantes. Juazeiro é uma cidade religiosa e progressista ao mesmo tempo. Desde o início de seu processo de formação territorial a cidade vai abraçando uma lógica desenvolvimentista tendo a figura do padre Cícero Romão Batista, ou simplesmente padre Cícero, como referencial principal e permanente na construção de uma organização de sociedade urbana. Cícero, em uma só pessoa, une várias atribuições: o homem, o orientador espiritual, o mentor político, o santo, o taumaturgo, o primeiro censor de imagens sobre a cidade, o ícone da fé e do progresso. Por esse conjunto de atributos ligados à figura de Cícero, a paisagem de Juazeiro ganha um estatuto de cidade sagrada, tendo a fé e o trabalho como fórmula de progresso. Dito de outra forma, em sua produção só2

A toponímia Juazeiro é uma alusão à árvore homônima, típica do Nordeste, que servia de abrigo aos viajantes e boiadeiros. A designação “do Norte” faz diferençá-la de outra cidade intitulada Juazeiro da Bahia.

212  d GLAUCO VIEIRA FERNANDES

cio-espacial o consenso de cidade sagrada atribui a Juazeiro do Padre Cícero o sinônimo de sociedade, cultura, política, e economia baseada na religiosidade. A isto se deve o fato de ser atribuído ao Padre o caráter de milagreiro, a partir do fenômeno da hóstia que virou sangue quando ele, celebrando uma missa, deu a comunhão à beata Maria de Araújo. Tal fenômeno, ocorrido em 18893, promove até hoje a cidade como um dos principais centros de peregrinação do Brasil, pois além de ser o maior centro do catolicismo popular da América Latina é o segundo maior centro de romarias do Brasil, depois de Aparecida, no interior de São Paulo. Nos dias atuais, Juazeiro recebe quatro romarias principais, propiciando um ciclo anual de peregrinações, atraindo levas de romeiros que chegam de todos os lugares do país, sobretudo das cidades do Norte e Nordeste. Tal mobilidade espacial faz adensar, a cada ano, o número de habitantes de Juazeiro, tornando-a cidade mais populosa da emergente Região Metropolitana do Cariri. Dentre os atributos já citados do padre Cícero, podemos acrescentar, por certo, sua função mais aparentemente contraditória, senão a que mais instiga à investigação: aquela que promove a um só tempo uma utopia e realização de uma sociedade urbana baseada na fusão entre fé e trabalho, estendendo-se a uma possibilidade de convívio que, aparentemente contraditória, permite o encontro do sagrado e do profano, do material e do sobrenatural, da identidade e da diferença, e entre os sujeitos e seu espaço de vivência as diversas formas de representação e de experiência da paisagem da cidade. O trabalho como realização, longe de ser puramente 3

O milagre da hóstia aconteceu em  1o de março de 1889. Ao receber a hóstia, em uma comunhão oficiada por padre Cícero, na capela de Nossa Senhora das Dores, a beata não pôde degluti-la, pois a hóstia transformara-se em sangue. O fato repetiu-se, e o povo achou que se tratava do sangue de Jesus Cristo e, portanto, era um milagre.

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uma predisposição da moral cristã católica, incorpora-se ao discurso pastoral de Cícero como principal ferramenta para a estruturação de Juazeiro que fora, ainda enquanto povoado submetido à dependência da cidade vizinha denominada Crato, emancipada a vila no ano de 19114. Ainda sobre a fé e trabalho, é necessário entender como o modus operandi de Cícero em sua atividade pastoral e ao mesmo tempo de planejador e mentor político da cidade veio a funcionar como instrumento para a defesa do progressismo à cidade. Para aqueles diversos romeiros que iam buscar sua orientação bem como para aquelas famílias inteiras que passavam a se fixar em Juazeiro, ele estimulava que a prática religiosa estivesse consorciada com a ocupação nalgum ofício. Desse modo, em cada casa, da maior parte dos habitantes da cidade constituída pelos moradores pobres e adventícios, havia um altar na sala de estar e uma oficina de trabalho aos fundos do terreno. Observamos que esta prática perpetua-se até hoje depois de quase oitenta anos de falecimento de seu propositor. Juazeiro, portanto, destaca-se no cenário do Nordeste como a cidade da fé e do trabalho. Este progressismo, aparentemente contraditório, herdado da figura representativa de padre Cícero, constitui uma espécie de conservadorismo católico moderado justificado pelo trabalho associado à religiosidade. 4

Neste ano de 1911, Juazeiro emancipa-se de Crato, passando de povoado a Vila. Geraldo Barbosa em seu livro História de Juazeiro ao alcance de todos informa-nos o seguinte: No ano de 1905, o povoado contava com mais de 12 mil habitantes, mais de 20 ruas, várias escolas, agência telegráfica, banda de música e um largo comércio que se estendia ao longo das ruas. Lojas de tecidos, miudezas, mercearias, armazéns de gêneros alimentícios e um intenso movimento artesanal de barro, couro, palha, flandres, ouro, prata, corda e ferragens [...] Observa-se, entretanto, que nenhum benefício público era prestado ao povoado fcando toda a renda do comércio de Juazeiro para os cofres da prefeitura do Crato. O povoado crescia graças ao prestígio e dedicação do Padre Cícero, com apoio total do povo que alargava as ruas, preparava as praças e construía casas [...]. (apud WALKER, 2010, p.55-56)

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A segunda questão que mencionamos, que trata da recente tomada de estruturação da chamada Região Metropolitana do Cariri – RMC, tem a cidade de Juazeiro como centralidade urbana. Não poderíamos, portanto, deixar de situá-la neste novo contexto espacial no qual ela se insere no processo de mudanças em curso no espaço urbano do Cariri, cujas feições mais evidentes podem ser facilmente notadas no complexo urbano-regional do CRAJUBAR5. Ressalte-se a atração de novos investimentos públicos (Trem do Cariri, Hospital Regional, Centro de Convenções, Ceasa etc) e privados (Faculdades, Carrefour, Lojas Americanas etc) nas cidades da região; a emergência de novos atores sociais (públicos e privados), novas espacialidades (decorrente de mudanças nos padrões de assentamento e requalificação de espaços e paisagens), institucionalidades e novas relações de poder); e o incremento demográfico e expansão do tecido urbano (intra e interurbano). Diante do quadro exposto, pode-se admitir que as cidades da região experimentam um complexo e dinâmico processo de reestruturação tanto de suas bases produtivas (produção, circulação e troca) e da configuração sociopolítica, territorial e simbólica no e do conjunto urbano-regional, além dos problemas e desafios nos âmbitos local e regional. E Juazeiro, portanto, apresenta-se protagonizando a estruturação da RMC adventícia. Entretanto, a metropolização capitaneada por Juazeiro emerge como uma estratégia do estado; como uma possibilidade da expansão do mercado, da reprodução do capital, e que seja, na verdade, uma estratégia de poder, de governar o território. Trata-se da experiência de criação de regiões metropolitanas em que a organização do território brasileiro e latino-americano se realizou enquanto espacialidades 5 Denominação abreviada relacionada à conurbação das três principais cidades do

Cariri: Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha.

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concentradoras, e também que se estendem às pessoas: concentração de rendas, de recursos, de investimentos, e sobretudo de poder. Entretanto, antes de um entendimento sobre a região metropolitana cuja centralidade espacial é relacionada a Juazeiro, deve-se entender o sentido da metrópole, o sentido da metropolização, o que nos parece ser um investimento que desejamos fazer em termos de devir de uma metrópole que nasce imposta, sob a bandeira do projeto inacabado da Modernidade. Afinal, como nos lembra Bruno Latour, jamais fomos modernos, e certamente, jamais fomos metropolitanos, pois o sentido utópico de metrópole perdeu-se no curso da história. Nesta perspectiva de análise, queremos nos debruçar sobre a imagem da cidade, ou seja, de como ela se vê e de como ela é vista, que passa a ser um dado importante de investigação para a compreensão da protagonista da nova metrópole em gestação. O poder da imagem e/ou da representação sobre Juazeiro como cidade do progresso, como vimos, é notório desde sua gênese histórica associada a um de seus principais ícones, o padre Cícero. Se nos deparamos com uma sociedade urbana em vias de um projeto estratégico concentrador (de metropolização), argumentamos, então: os sujeitos que se fazem presentes ou dotados de visibilidade nos espaços de representação da cidade nem sempre participaram efetivamente de sua construção imagética nem das políticas de desenvolvimento urbano. Portanto, identificar os sujeitos que se insurgem6 no espaço da cidade ontem e hoje, sobretudo nos 6 Aqui partilhamos da ideia de espaços de cidadania insurgente proposta por James

Holston (1996). Segundo este autor, a cidadania muda a medida em que novos membros emergem para fazer suas reivindicações, expandindo seu alcance, e em que novas formas de segregação e violência se contrapõem a esses avanços, erodindo-a. Os lugares da cidadania insurgente são encontrados na intercessão desses processos de expansão e erosão (p.249)

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espaços públicos ou de celebração é um desafio metodológico para se pensar a paisagem da cidade, o qual se constitui enquanto objeto de estudo desta pesquisa. Partimos, então, do pressuposto que a paisagem de Juazeiro do Norte assume duas escalas de representação distintas, porém complementares, uma de ordem visual hegemônica e outra pela experiência enquanto vivência e corporeidade de seus sujeitos. A primeira é de natureza ocularcêntrica e totalizante da paisagem da cidade, justificada pelos discursos, textualidades e sentidos, ao mesmo tempo geográficos e ideológicos, que ordena e disciplina uma visualidade da cidade perspectivada e dimensionada pela sociedade urbana capitalista; a segunda é a da experiência da cidade, na qual o espaço se diferencia e se singulariza a partir de deslocamentos e de interações de seus sujeitos sociais, os quais trazem novos sentidos à cidade a partir de sua corporeidade. Dentre as imagens que participaram para a construção de uma representação da cidade, temos desde o início do século XX até nossos dias mais de quatro dezenas de filmes. Para tanto, o curso desta pesquisa propõe uma análise dos filmes representativos de cada período de documentação dessa cidade ao mesmo tempo em que se faz a leitura da cidade vivida ou experimentada. Tratar do diálogo entre a cidade representada, suas imagens e a cidade corpórea, sua experiência, é o caminho de reflexão crítica adotado, tendo na relação paisagem-imagem-corporeidade seu fundamento principal de investigação. Trata-se, enfim, de um desafio de contribuição metodológica para a Geografia. A seguir, discutiremos os aportes teóricos para a pesquisa em tela. E no tópico posterior discutiremos o plano metodológico, além de apresentar algumas atividades de pesquisa já realizadas.

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As Paisagens Friccionadas entre Representação/Experiência [...] a natureza que fala à câmara é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente [...]; nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo. (W. Benjamin)7

A leitura geográfica do mundo – poderíamos compreender desta forma – , possui três grandes representações científicas: a do mapa, a do arranjo e a da fisionomia. Se olharmos para uma janela, por exemplo, iremos buscar o mapa que faz uma retratação (ou retradução) do arranjo espacial, embora não se consiga capturar a fisionomia da área mapeada, devido à diferença das escalas de representação. O arranjo retratado, geralmente é difícil de ser traduzido na fisionomia do espaço, e o mapa, no máximo, traçaria o arranjo. Ou seja, a Geografia tem essas três grandes ferramentas de ver o mundo, e muitas vezes não dialogam entre si, embora elas busquem representar uma na outra. O mapa tenta representar o arranjo; o arranjo sinaliza a fisionomia, mas não há um diálogo mais próximo entre elas. Se tomarmos o exemplo de uma cidade como Juazeiro do Norte, no sul do estado do Ceará, no contexto territorial brasileiro, onde as formas e as práticas urbanas e rurais estão interpenetradas, como então representar o arranjo desta cidade, se é urbano ou rural? Qual mapa é possível produzir daquela cidade, e em que escala? Numa escala do arranjo, 7

O epígrafe aqui apresentado, de Walter Benjamin, foi extraído da segunda versão (de 1955) do ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, traduzido por José L. Grünnewald (1969, p.86-87).

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da fisionomia ou da paisagem? A tentativa de construir esse diálogo de representar o mundo busca uma veracidade para alguns, e para outros a verossimilhança. E muitas vezes veracidade e verossimilhança não possuem o mesmo sentido, significação, consciência, e que não necessariamente é o mundo. A fisionomia, enquanto representação da realidade se constituiu, como vimos, numa possibilidade de leitura geográfica do mundo. A idéia de fisionomia está associada ao conceito de paisagem desde a gênese da geografia moderna a partir da herança humboldtiana. Segundo Jean-Marc Besse (2006), tanto Vidal de La Blache e Jean Brunhes perseguem tal herança, promovendo consequências epistemológicas consideráveis, desencadeadas pelo conceito de fisionomia. Segundo Besse (2006): [...] falar da paisagem em termos de fisionomia significa que se atribui à paisagem uma densidade ontológica própria. Se ela possui uma fisionomia, é preciso compreendê-la como uma totalidade expressiva, animada por um ‘espírito do interno’, do qual se pode extrair o sentido (p.72).

Nesta perspectiva, a ciência geográfica, desde sua gênese moderna, parece se definir como uma arte da percepção visual, tendo como principal ferramenta de representação da paisagem a ideia de fisionomia. Não é por menos que Brunhes (1962) situa em sua obra A Geografia Humana a questão da identidade da ciência geográfica, relacionada na sensibilidade do olhar. Indagando-nos em que consiste o espírito geográfico, ele adverte: Quem é geógrafo sabe abrir os olhos e ver. Não ver quem quer. Em matéria de Geografia Física, como em matéria de Geografia Humana, a aprendizagem, à visão das coisas positivas da realidade da superfície da terra será o primeiro estágio e não o mais fácil (p.416).

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Em La Blache, que entendia a paisagem como tudo o que o olhar abraça, vamos entender que essa fisionomia da paisagem é o princípio de totalidade expressiva, que como bem observa Besse (2006), traduzindo esta compreensão lablacheana, tal expressão ou fisionomia da paisagem “é animada por um espírito interno [...] tudo se passa como se houvesse um ‘espírito do lugar’, do qual a aparência exterior do território visado seria a expressão” (p.72). Em resumo, essa ideia de fisionomia tinha como elemento ordenador a percepção visual. Portanto, a geografia vai se constituindo como uma ciência da percepção visual, embora no itinerário do pensamento desta ciência, no período denominado “geografia crítica”, a idéia da percepção como entrada do real, evidentemente, sofreria críticas dos geógrafos que se alinhavam mais radicalmente ao pensamento de Karl Marx. A geografia crítica, portanto, quando se debruçava em obras como a de Brunhes e de La Blache, interpretava o exercício do método de tais geógrafos clássicos antes com o traço principal do positivismo, quando, na verdade, estes mesmos geógrafos trabalhavam com uma diversidade de concepções filosóficas, incluindo a perspectiva psicológica, no exercício de suas metodologias. Portanto, a crítica foi profunda sobre o conceito de paisagem, ao ponto de nesse período, no interregno dos anos 1960 a 1970-80, a geografia chegou a abandonar tal conceito como objeto de análise do espaço da sociedade. Falar em paisagem era relacionar à aparência das coisas, de modo que a ideia de fisionomia ficou restrita à aparência das coisas, a um discurso das formas, dada a sua forte carga empirista. De modo que se acabou perdendo, nesse período, a oportunidade de um aprofundamento da discussão conceitual da paisagem, não levando às últimas consequências sua dimensão epistemológica e ontológica.

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Nas últimas décadas, entretanto, a paisagem volta a ser discutida na geografia, tanto pelo viés cultural quanto pelo viés ambiental. No primeiro caso, dos anos 1980 até os nossos dias, a emergência da questão da cultura vem tomando um papel crucial na discussão da mercantilização das imagens. No dizer de Guy Debord (1992), a cultura se torna inclusive uma mercadoria, pois o capitalismo transforma tudo em imagem. E na análise de Frederic Jameson (2006), toda a realidade tornou-se profundamente visual, tornando-se cada vez mais difícil conceituar uma experiência específica da imagem que se distinguiria de outras formas de experiência. Entretanto, reaproximando-se da dimensão sensível do mundo, Maurice Ronai, ainda nos anos 1970, retoma o debate da percepção, da visibilidade, da visualidade do mundo e da paisagem, discutindo a questão do olhar, afirmando que o olhar não é somente o exercício de um sentido (visão), é também uma produção de sentido (significação) (apud Barbosa, 2010, p.3). Há, portanto, um olhar intencional e consciente humano que se dirige à paisagem, dotando-a de significado, pois a paisagem é construída por sujeitos sociais que a percebem e a concebem. A percepção, portanto, é uma entrada fundamental para a cognição, para o entendimento, compreensão, leitura e interpretação do mundo, não podendo ser prescindida como categoria de análise geográfica. Deste modo, como alerta Augustin Berque (1998), a paisagem é uma marca que exprime um significante (simbólico) e, ao mesmo tempo, é também uma matriz de significados (experiências tempo-espaciais), porque representa a expressão de uma “experiência” da sociedade. Entendida desta forma, a dimensão da visibilidade está presente na paisagem mediando o mundo das coisas e o mundo da subjetividade humana. A ideia de representação é mais uma vez evocada e relacionada à paisagem, embora numa perspectiva que recupera

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um sentido de dobradura, de fricção. Retomando a idéia de La Blache vimos que a paisagem é tudo o que o olho abraça. Podemos então compreender que o sentido de olhar possui uma dimensão corpórea, e abraçamos aquilo que tem significado para nós, o que pressupõe vê-la intencionalmente, portanto não se trata apenas de percebê-la, mas de concebê-la, ou seja, olhar a paisagem implica construir uma relação corpórea prenhe de sentidos. A paisagem, por essa sua dimensão corpórea, provoca uma fricção naquilo que percebo e naquilo que experimento no espaço social, promovendo um “conflito” ou uma fricção entre a percepção e a experiência daquilo abraçado pelo olhar. Nesta perspectiva, “abraçar” é uma dimensão corpórea, porque a paisagem possui também cheiro, sabor, texturas que somente a nossa visualidade (percepção sensível visual) não daria conta, apenas a representaria recorrendo à mímesis. Mas nossa visibilidade, que se distingue da visualidade, destina-se prová-la ou experimentá-la, assimilando seus símbolos aparentemente invisíveis através da experiência corpórea, pelos quais nos apropriamos e construímos sentidos sempre renovados pela experiência tempo-espacial, ao mesmo tempo em que é uma experiência histórica e intersubjetiva, produzida socioculturalmente. Tal entendimento, sobre “paisagem friccionada”, mais recentemente, tem sido pensada e trabalhada por Jorge Luiz Barbosa (2002), que aprofunda o debate: As paisagens mobilizam e se realizam através da produção e reprodução de signos. A paisagem aparece, então, como uma dimensão [...] dos encontros do inconsciente com o consciente, do real com o imaginário, do visível com o invisível. A paisagem se revela, portanto, como tensão entre a experiência e a representação solicitando o entendimento do sentido subjetivo do espaço na complexidade de sua dimensão social (p.54).

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Esta ideia de paisagem friccionada nos orienta à leitura do mundo como um espaço das representações e das experimentações. Pois nosso olhar intencional promove visibilidade ao que se encontra ausente, se entendemos que a representação é uma construção de uma reconstrução do mundo; sendo ela historicamente construída, conforme o pensamento de Henri Lefebvre (1983). Ou seja, a representação com foco na visibilidade se distingue das representações formais, alicerçadas no campo da visualidade, “ocularcêntricas”, resultantes de posturas estruturalistas e produzidas pelos discursos de hegemonia. E como ressalta Barbosa (2009), é a paisagem, portanto, um campo semântico a nos oferecer um texto da vida com o outro, com o diferente e com o desigual (p.54). Nos perguntamos, então, com quais outras leituras, outras gramáticas de visibilidade e outras linguagens e semânticas poderiam ser parceiras da geografia, valorizando o entendimento e a interpretação das paisagens friccionadas? Cremos que o cinema seja uma boa companhia, e em especial através dos filmes documentais.

Paisagens “Corpóreas” em Cidades Fílmicas O cinema desde seus primórdios surgiu como registro documental da cidade. E na atualidade, passados mais de cem anos de reprodução desta arte, ela continua a ser o grande cenário de construção de imagens. O documentário, que se constitui uma forma que não participa do mesmo circuito de divulgação midiática dos filmes de ficção, constitui ser um gênero marginal do cinema, muito embora estabeleça uma relação mais direta, mais colada e imediata com o mundo em vivemos. O gênero ficção, contrariamente, se constitui como forma hegemônica, portanto mais valorizada pela indústria cultural.

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Entretanto, podemos compreender que tanto o gênero documentário quanto o ficcional são formas de representação da realidade, e portando não contrárias, mas complementares, que se articulam de diversos modos. Há ficção no documentário, assim como há “impressão de realidade” buscada pela ficção, embora a ficcionalização documentária, como alerta Johan Van Der Keuken (2004), não acontece pela separação e substituição do mundo vivido ou “real” (como faz, parcial ou totalmente, o cinema de ficção), mas pelo seu entrelaçamento, apreensão e transformação num mundo “imaginário”. Por outro lado, antes de ser um experimento documental, o próprio documentário é uma experiência de geografia de cinema. Maria Helena Bras Vaz da Costa desenvolve algumas ideias sobre os textos e as intertextualidades entre as paisagens reais e fílmicas: A cidade como cinema existencial (2006) e O Cinema e a Imagem Urbana: novas tecnologias e novas especialidades (2005). Helena Costa nos situa sobre a discussão em torno do movimento da imagem da cidade versus a cidade da imagem, argumentando que o espaço geográfico tem um potencial de estruturar a representação e, por extensão, a experiência de personagens, vivida indiretamente pela audiência, mesmo em situações estereotipadas (COSTA, 2006). Acrescenta ela que o cinema tanto influencia quanto reproduz sensações e sentimentos relacionados à experiência cotidiana no espaço. Ana Francisca de Azevedo (2009a), geógrafa que vem trabalhando e trazendo novas questão às “geografias de cinema”, dialoga sobre essa dimensão ontológica do espaço fílmico e suas geograficidades. Segundo ela, a base intersubjetiva da comunicação cinemática irradia da corporização subjetiva e da natureza sensitiva do meio, ou seja, a experiência corporizada do mundo – enquanto dimensão ontológica da ação humana –,

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vem fundar a experiência cinemática e, retroativamente, esta redimensiona a experiência direta do espaço e da relação factual. E falando do cinema enquanto linguagem alternativa para o processo de formação identitária, a autora argumenta que a tentativa de afirmação de geografias hápticas associa-se, portanto, à enunciação do corpo como o mais próximo do lugar da experiência [...] que nos conecta com uma miríade de outros corpos em relação (AZEVEDO, 2009b, p.49).

Conforme as ideias apresentadas dessas autoras, questionamos sobre o debate das imagens de cinema ou paisagens/ imagens em movimento da cidade, fazendo uma imersão no conceito de paisagem, em especial a paisagem cinemática e real das cidades. Jorge Barbosa (2000), em A arte de representar como reconhecimento do mundo: o espaço geográfico, o cinema e o imaginário social, chama-nos atenção para se pensar sobre essas cidades cinemáticas: se por um lado o cinema se constitui como um espaço narrativo, ou seja aquele que se institui através de um jogo de relações entre significantes (imagens) e significados (conteúdos), apresentando-se como um discurso, como um enunciado que estabelece vias diferenciadas de leitura do espaço da representação; por outro, o cinema e as concepções urbanísticas que redimensionaram o sentido da “corporeidade” da cidade, de forma que a vida real, o espaço-tempo real, a cidade real e os personagens reais vão se confundindo cada vez mais com as imagens da tela do cinema. O cinema, então, não é apenas mera representação do real, e nem as paisagens das cidades cinemáticas são apenas ressignificações do espaço da cidade, possuindo a paisagem várias dimensões – como representação ou como ícone – mas também como dimensão essencial, ontológica, cuja “arte de

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representar nos oferece um caminho de reconhecimento do mundo, da vida, da memória e dos sonhos que pulsam do/no espaço geográfico” (BARBOSA, 2000, p.86). Nesta perspectiva de entendimento da representação/ experiência da paisagem da cidade nos filmes, podemos pensar Juazeiro enquanto carne e pedra, no dizer de Richard Sennett (2008), ou seja, na relação corpo e cidade. Segundo este autor, a geografia da cidade moderna, assim como a tecnologia mais avançada, põe em relevo problemas já estratificados na sociedade ocidental, ao imaginar espaços alternativos em que um corpo humano poderia estar atento a outros (SENNETT, 2008, p.19).

Pelo menos nos filmes sobre a cidade de Juazeiro, produzidos no período contemporâneo, a relação representação/ experiência é bem distinta dos primeiros filmes no período dos anos 1920 a 1950. É nossa hipótese inicial: a partir da primeira visualisação dos documentários produzidos sobre a cidade, as mesmas paisagens da cidade real que são utilizadas como paisagens da cidade fílmica, reaparecem na cena contemporânea prenhe de novos sentidos, divergindo da representação dos primeiros filmes. Nestes, se tomarmos o exemplo da praça central da cidade, seu maior espaço de convergência, a paisagem representada tende a coincidir com a paisagem hegemônica da cidade (espaço de celebração cívica; de desenvolvimento urbanístico etc), entretanto nos filmes contemporâneos a paisagem representada nem sempre coincide com a paisagem hegemônica, surgem novos sujeitos à cena que passam a emitir outras experimentações e vivência daquela mesma locação8, é o caso da presença dos travestis no período das romarias. 8

Locação é um determinado local onde a cena do filme é produzida.

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A Cidade e o Cinema: Juazeiro Obra/Produto Em O Direito à Cidade, Henri Lefebvre (2008) analisa a cidade associada à expansão urbana da sociedade pós-industrial capitalista, e a denúncia como uma nova utopia. Do ponto de vista do “progresso” ou da “religiosidade”, Juazeiro do Norte permanece como uma utopia/distopia, conforme a perspectiva dessa análise. Pela lente do progressismo político defende-se que o desenvolvimento econômico, social e cultural da cidade é condição básica e relevante para a melhoria do nível econômico e educacional da população. Este é o discurso da cidade enquanto “produto”. Uma cidade-produto que atenda ao progresso civilizatório, ordenado, disciplinado, de modo que as formas, feições e práticas da cidade obedeçam a um plano racionalizado de desenvolvimento urbano. A antevisão que Walter Benjamin (1989) há muito reivindicava sobre o “direito à cidade”, corroborada posteriormente por Lefebvre (1999), compreende que a cidade, antes de um produto (valor de troca) deve ser essencialmente uma obra (valor de uso). A cidade-obra é o espaço-tempo urbano que obedece à lógica do encantamento, da dimensão sensível, de múltiplas significações, polissemias e polivocalidades. Para Benjamin, o confronto da cidade-produto, planejada, racional, de formas e práticas disciplinares, é feito com a figura do flâneur. Jorge Barbosa (2002) abrevia este entendimento articulando uma reflexão que contrapõe cidade-obra-produto versus utopia. Parafraseando-o, o flâneur repõe nos objetos a aura perdida no processo de reprodução capitalista, mas revivida nos artefatos de ilusão visual. Atraído pelas avenidas, pontes, praças, estações ferroviárias, monumentos e passagens, o personagem de Baudelaire/Benjamin percorre a cidade como se esta fosse uma “floresta de símbolos” até atingir

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o limite entre o real e o sonho. Este itinerário da flanêrie nos conduz na direção do desaparecido da cidade como obra. O filmes sobre a cidade de Juazeiro podem por nos convocar a uma flânerie pela cidade e, portanto, evoca o sentido da cidade em meio ao labirinto de sua floresta de símbolos. Ana Fani (2004, p.61), argumenta que o filme vai revelando o cotidiano pelos signos que coloca cada um no seu lugar. Signos estes expostos nas vitrines das lojas e shoppings que modificou o estatuto da mercadoria e, com isso, significação de uma nova ordem de troca que cria um novo modelo de vida [...]

As mídias ao mesmo tempo que ocultam também revelam o cotidiano da cidade? É uma questão a se aprofundar. Ainda em Walter Benjamin (1989; 1994) vamos entender como ocorreu de fato uma alteração da percepção humana no espaço urbano das grandes cidades, sobretudo graças ao advento das tecnologias midiáticas. Na análise de Rita Velloso (2005, p.395-396), Benjamin afirmava que, ao viver em uma grande cidade, compreendemos o mundo por meio de uma apropriação tátil das coisas, somada ao olhar distraído a estas. Além de propor que tais conceitos (engajamento corpóreo, intersubjetividade, distração, apropriação tátil, comunicabilidade) ajustam-se bem a experiência [...] que resulta do uso dos variados equipamentos tecnológicos no ambiente urbano.

Benjamin (1994) reconhece o cinema como linguagem artística capaz de reler, a aura perdida da cidade. Apesar de ser uma arte que nasce com a cidade, portanto essencialmente urbana, e associada à indústria cultural, o cinema, de outro modo, é capaz também, dentro de sua ambiguidade instrumental/estética ou técnica/artística, assim como o flâneur, de envolver os sentidos inexplorados da paisagem como dimen-

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são simbólica e sensível, não se limitando como mero esteticismo distanciado das experiências na/da cidade. Pensando na cidade, em Juazeiro do Padre Cícero (aproveitando o título homônimo de um de seus filmes documentais), e em suas paisagens no movimento das imagens fílmicas, percorremos por dois momentos de visualizações nos filmes, e que se intercruzam como leituras complementares: uma Juazeiro-produto, e uma Juazeiro-obra. Nos primeiros filmes, há uma cidade que é documentada e montada, visualmente, sob uma leitura do progressismo. Nesta perspectiva, Juazeiro é um espaço urbano em desenvolvimento ordenado, tendo a figura do padre Cícero como aporte de progresso e de primeiro “censor” de imagens9, aquele que concede o direito à imagem da cidade enquanto progresso e emancipação político-civilizatório, concedido, de direito, ao produtor das imagens fílmicas existentes e que vierem a existir a partir daquele momento. Entretanto, é o realizador Reis Vidal10 que enxerga a cidade como um produto de reprodução para o lucro comercial, que cumprirá a mesma lógica até a década de 1950 com o registro documental de Alexandre Wulfes11, outro realizador-produtor de imagens. 9 Conforme Firmino Holanda (2000, p.25), somos informados que em 1921, em carta

ao jornalista cearense, Lauro Reis Vidal, ali residente [em Juazeiro], Padre Cícero concedia-lhe o direito de uso exclusivo de sua própria pessoa e de sua cidade, em filmes que viesse a obter, portanto a exibir, “em qualquer parte do País ou fora dele.” [...] O que há de significativo no documento [tendo sido lavrado em cartório de Juazeiro] é a idéia de que Padre Cícero adotava um recurso técnico da modernidade como instrumento de propaganda política. Prática, aliás, já disseminada no resto do mundo: o registro em celulóide dos que detêm alguma forma de poder (político, econômico ou religioso) confunde-se com o próprio nascimento do cinema. 10 Dois anos após a morte de Padre Cícero, em 1934, o jornalista, exibidor/realizador de filmes, Reis Vidal, publica seu livro Joaseiro visto de perto, o Padre Cícero Romão Batista, sua vida e sua obra (RJ, 1936).Trata-se de uma publicação que além de enaltecer a figura do Santo do Sertão, posiciona a cidade como resultante do trabalho e diligência do padre Cícero. 11 Cachoeira do Sul, RS, 1901-1974. Fotógrafo, produtor, diretor. Realizou em 1955 o filme Padre Cícero, o patriarca de Juazeiro.

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Entretanto, vamos encontrar outras abordagens nos filmes inclinados a ler a cidade como obra, a partir da mitologia indígena herdada dos Cariris, e de toda a cultura popular impregnada nos símbolos da cidade. A cidade é reencantada com a figura do padre Cícero, entendendo-se que ele é referenciado ao conjunto de símbolos que, antes de ser um tutor político e religioso do povo, é um elemento central (e/ou de coesão) para a reconstrução da utopia da cidade agora não apenas como progresso e ordenação urbana, mas principalmente como promessa de um futuro onde as diferenças sejam pacificadas com o projeto de uma Nova Jerusalém12. Não é à toa a cristalização de um imaginário relativo a uma geografia sagrada relacionando os espaços e os tempos da cidade aos códigos da cultura cristã e ao mesmo tempo sertaneja. Juazeiro do Norte, pode-se dizer, é uma cidade que abraça todos os sertões em seu espaço urbano, embora percorra espacialidades e temporalidades outras que passam, oportunamente, e de forma singular, a ser exploradas nos filmes. Sobre a produção contemporânea dos filmes documentais que se debruçam sobre a cidade, anuncia-se outra leitura que evoca as duas anteriores – mas que passa a confrontá-las –, misturando-as ou extraindo delas elementos que funcionam não mais essencialmente como simples representações, mas agora como experimentações das novas espacialidades/ temporalidades da cidade, tematizadas pelos sujeitos nela insurgentes. A insurgência é daqueles que estavam invisibilizados nas representações anteriores da cidade, mas que agora se apresentam e se inscrevem na imagem fílmica como tentativa de direito à visibilidade; dito de outra forma, os sujeitos insurgentes no espaço de Juazeiro que reclamam visibilida12

Alusão ao filme Juazeiro, a Nova Jerusalém, de Rosemberg Cariry (2001).

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de, pelo fato essencial de cidadania ou de direito à cidade, e que nela habitam o seu ser e estar no/do espaço13. A nova filmografia da cidade captura essa pulsão ontológica do espaço-tempo urbano a partir da experiência dos sujeitos que, mesmo ausentes do discurso real das imagens hegemônicas da cidade, se insurgem nela na presença dos filmes, aqui legitimando na cidade diegética14 um anseio segregado do mundo da vida. O cinema, nesse registro constitui um espaço-tempo audiovisual que recompõe o sentido da cidade subjacente às experimentações desses sujeitos percorrendo uma flanêrie capturada pelos filmes e vídeos que perscrutaram os interstícios da cidade. Dito de outra forma, o cinema contemporâneo sobre Juazeiro é uma presença do autor ausente, que nos permite acessar pela ficção fílmica, mas sobretudo documental, as realidades da experiência – dos sujeitos descorporificados nas representações anteriores. O imaginário social, a memória, a fantasia, a utopia e a corporeidade são elementos recorrentes ou recuperados, não mais dissociando a representação da experiência, nessa filmografia hodierna, atualizando o sentido e a representação da cidade não apenas enquanto produto, mas, sobretudo enquanto obra humana, portanto obra/produto social. Joan Nogué (2007, p.14) nesta perspectiva, em sua leitura da paisagem como construto social, como resultado de uma transformação coletiva da natureza e como projeção de uma sociedade em um determinado espaço, argumenta: 13

Mais uma vez aqui nos reportamos à ideia de espaços de cidadania insurgente desenvolvida em Holston (1996). 14 Diegético aqui enquanto realidade que funciona dentro da própria obra audiovisual, e não necessariamente em verossimilhança com a cidade real, embora o filme documental tenha uma diegese que diverge, por sua própria natureza e gênero de produção, diferenciada da obra de ficção, portanto mais colada com o real, e neste caso, no cotidiano da cidade.

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as geografias da invisibilidade – aquelas geografias que estão sem estar – marcam nossas coordenadas espaço temporais, nossos espaços existenciais, tanto ou mais que as geografias cartesianas, visíveis e cartografias próprias das lógicas territoriais hegemônicas. Contudo, aí estão em nossos sonhos e quimeras e também persistente cenário de nossa cotidianidade. São ‘outras’ geografias: as que contém ‘outras’ paisagens.

Para não Concluir Podemos provocar a continuidade deste debate em torno da representação e ao novo entendimento que ela nos traz sobre o mundo quando tensionada ou friccionada com o olhar concebido, leitura do mundo que também o geógrafo pode intencionar, evocando a noção de estética além de sua acepção puramente mimética, e reorientando o foco para uma estética da paisagem que é construída socialmente na imbricação entre o simbólico cultural, as práticas sociais e a corporeidade. Isto com a contribuição das imagens cinematográficas que, como vimos, em sua forma documental propiciam um encontro ou um abraço com a realidade e o cotidiano dos sujeitos da/na sociedade urbana. Portanto, a idéia de paisagem friccionada, na qual se vê como em dobradura, ao mesmo tempo, coexistindo uma representação e uma experiência de mundo, provoca uma tensão que no fundo pode estabelecer posições, justaposições, sobreposições ou contraposições. Daí podermos dizer que a paisagem – sob a percepção/concepção dos sujeitos-corpóreos, no dizer de Merleau-Ponty (2009) –, abre a possibilidade de “abraçarmos” o mundo que nos envolve. E não sendo ela só uma dimensão do visível ou do imaginário, ela tem uma dimensão corpórea, e por ser corpórea ela também nos abraça.

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BEIRA-SOL: A POÉTICA DE UMA CIDADE Carlos Augusto Viana

A escritura de Adriano Espínola enquadra-se, esteticamente, na tendência pós-moderna, daí sua preocupação em recolher os estilhaços da vida cotidiana, configurando, assim, uma atmosfera caracterizada pelo caos e pela desfiguração, ao mesmo tempo em que se alimenta da “maciça arqueologia imaginativa do passado”1, justificando, desse modo, a sua inscrição estética.

A Expressão Literária Especialmente em Beira-Sol2, alicerça seu discurso poético através do uso da metáfora, da sinestesia e da prosopopeia. O livro compreende uma série de postais-líricos da cidade de Fortaleza, constituindo fragmentos de sua paisagem física, (“Ao lado, o marazul./ Silêncio./ Jangadas levitam/ lentas”, p.21) social, ( “São as favelas das dunas/ que já faço levantar:/ aqui, o Morro do Teixeira/ que sobe sem se mostrar;/ ali, o Castelo Encantado/ que navega sem sonhar”, p.24) humana, (“Duas mulheres na areia,/ retalhando pargos/ cantam uma canção vermelha”, p.15) histórica (“Ali fundou um forte de colunas/ destemidas. Sonhou na areia ardente/ uma cidade lusa”, p.20) artística, (“Controla a sua forma/ a mão de Chico da Silva”, p.35) e cultural ( “O jangadeiro/ repete antigos gestos de outras vidas”, p.31). Percorre, com a mesma habilidade, diversos metros e formas de composição. Nos poemas de versos livres há, curiosamente, a presença, mesmo que fortuita, do ritmo dos decassí1 2

CONNOR. 1993. p.99 ESPÍNOLA, 1997.

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labos, bem como rimas ocasionais; já os sonetos, com variadas disposições de estrofes, são, em sua totalidade, decassílabos. Há, em Beira-Sol, algumas heranças da experiência concretista: valorização da palavra solta (som, forma visual, carga semântica) que se fragmenta e se recompõe na página, tendo o poema o espaço como agente estrutural, em função de que deverá ser lido e visto, bem como a utilização de recursos topográficos, como, por exemplo, no poema “Os pássaros” (p.68) Beira-Sol aponta, no autor, a preocupação com a depuração da linguagem: a palavra é explorada em todas as suas potencialidades – formais, semânticas e visuais -, possibilitando a criação de imagens rigorosas, enxutas, livres de elementos supérfluos. Os versos, muitas vezes curtos, são um constante desafio à sensibilidade do leitor que deverá preencher os espaços vazios (mas cheios de sugestões) que os cercam.

Da Composição do Livro A divisão da obra em duas partes: “Claridade” e “O cão dos sentidos” obedece a um projeto: o de traçar um perfil múltiplo da cidade de Fortaleza, revelando-lhe as duas faces: a da claridade (aquela que, naturalmente, imprime-se nos cartões-postais, através de motivos marinhos ou históricos) e uma outra: (marginal, obscura, que acolhe os excluídos, aqui sintetizados pelo espaço e por personagens do centro e da periferia: O poeta fala de várias coisas e de uma só: o universo da cidade. É uma cidade em movimento, que é histórica, pois é de Fortaleza que o poeta fala, mas simbólica e mítica, porque povoada de elementos que ultrapassam suas individualidades e adquirem o estatuto do símbolo. O engraxate, o jangadeiro, a prostituta, os vendedores, os biscateiros etc. são personagens de todos os tempos.3 3

PARDAL, 2003, p.78-79.

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Dessa maneira, se, em “Claridade”, o eu lírico apreende, em suas retinas, a cidade e suas transfigurações; em “O cão dos sentidos”, deixa-se contaminar muito mais pelo real palpável: como um cão noturno, percorre os corredores obscuros da cidade, seus becos e suas vielas, para recolher-lhe o lixo social.

Leitura dos Poemas Claridade Nessa primeira parte, o poema de abertura se intitula “Pesca”4: A aurora se desamarra do cais. Um barco singra o peito rosado do mar. A manhã sacode as ondas e os coqueiros. O azul estica a linha do horizonte. Na praia, um pescador arrasta um sol de algas. Em suas mãos, um peixe salta: ó palavra escamosa, espírito agitado das águas. (BS, p.13).

“Pesca” constitui uma síntese feliz entre elaboração formal e exercícios lúdicos. Dividido em três estrofes, cada uma delas comporta um movimento, cuja demarcação é dada pela sugestão da progressiva passagem do tempo: amanhecer, plenitude do dia e entardecer. 4

Para a análise dessa obra, a partir de seu primeiro poema, “Pesca”, a disposição dos versos na página não segue o padrão até aqui adotado, pois, procura aproximar-se da diagramação original do livro Beira-Sol, cujos poemas são alinhados de diversas maneiras, conforme o ritmo ou a função da palavra.

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Na primeira estrofe, a metáfora (“A aurora se desamarra do cais”) une às primeiras luzes do amanhecer o início das atividades no cais; a indeterminação do barco ( “um barco...) reforça seu papel metonímico (um representa muitos), e o seu deslocamento lembra-nos, também, o das horas, sob a variação de suas cores: “rosado”, “manhã”. A segunda estrofe, formada por apenas um verso, de ritmo decassílabo, estende-se sobre uma única linha exatamente para sugerir a ideia do encontro ilusório, na plenitude do dia, do céu com o mar, implicando, assim, um único “azul”. A última estrofe funde contemplação do cotidiano e tom confessional. O eu lírico, a princípio, depara, na praia, a pesca de arrastão. Inscreve-se, nesse momento, uma metáfora de rara plasticidade: “um sol de algas”, cujo jogo de esconder e revelar tanto associa a forma da alga marinha à representação icônica do sol quanto remete, também, ao sol em queda, implicando o entardecer. O ponto alto do poema é a exclamação abissal: “ó palavra escamosa”, pois, imprime uma identificação entre o eu lírico e o pescador: se deste o peixe escapa, a palavra, por sua vez, também daquele foge. Trata-se, a rigor, de uma experiência epifânica: conscientiza-se o eu lírico de que, em sua “pesca”, a perda é inexorável: de volta às águas do mar, o peixe, um dia, poderá ser repescado; o mesmo, porém, não ocorrerá com a palavra, para sempre perdida nas águas da criação. Ainda seguindo a temática da metapoesia, lê-se o poema “Língua-Mar”, escrito sob a forma de soneto: A língua em que navego, marinheiro, na proa das vogais e consoantes, é a que me chega em ondas incessantes à praia deste poema aventureiro.

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É a língua portuguesa, a que primeiro transpôs o abismo e as dores velejantes, no mistério das águas mais distantes, e que agora me banha por inteiro. Língua de sol, espuma e maresia, que a nau dos sonhadores-navegantes atravessa o caminho dos instantes, cruzando o Bojador de cada dia. Ó língua-mar, viajando em todos nós. Em teu sal, singra errante a minha voz (BS, p.14).

Associa o ato de fazer poesia ao de navegar, pois, o poeta, assim como o marinheiro, também pode chegar a praias desconhecidas, que são as imagens poéticas. O neologismo do título sugere que, com as grandes navegações portuguesas, houve a difusão da Língua em outros continentes. A composição, em 14 versos decassílabos, prima pelo uso do recurso da metáfora, em passagens, tais como: “A língua em que navego, marinheiro / na proa das vogais e consoantes”; “Língua de sol...”; “Ó língua-mar, viajando em todos nós”. O último verso sedimenta-se no compromisso do eu lírico em lutar pela conservação da Língua Portuguesa, – o que nos permite inferir que esta, sendo falada por povos economicamente dominados, sofre, por conta disso, a investida de estrangeirismos, tendo, portanto, a tarefa de vencer um “Bojador” a cada dia. Serve-se, também, o poema do uso da intertextualidade com Fernando Pessoa, quando relembra que as conquistas marinhas exigiram sacrifícios e sofrimentos do povo português, aqui sintetizados pelas “dores velejantes”, antes apontadas por aquele poeta em “Mar Portuguez”: “Ó mar salgado, quanto de teu sal/ são lágrimas de Portugal!/ Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / quantos filhos em vão resa-

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ram! / Quantas noivas ficaram por casar / para que fosses nosso, ó mar!” 5 O poema Beira-Sol constitui, por sua vez, uma sucessão de quadros: Nasce da luz solar um pescador. Sobre uma pedra, fisga a carne prateada. Duas mulheres na areia, retalhando pargos, cantam uma canção vermelha. Cajueiros sopram sua verde vigília na fonte de um cajueiro. Nas dunas, meninos açoitam com a espinha dos peixes o dorso da claridade. Três jangadas, inclinadas a praia, aparam a luz com seus brancos dedos entrelaçados. O céu é uma vela inflada ao sopro salobre das ondas. Faiscante, a manhã marinha rola, em Fortaleza, à beira-sol (BS, p.15-16).

5

PESSOA, Op.cit., nota 64, p.82

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Esse poema, assim como “Pesca”, também se orienta segundo a passagem do tempo: as luzes da aurora revelam-nos um “pescador”; mas este, com os pés fincados sobre a “pedra”, não conhece, por certo, o “mistério das águas mais distantes”; trata-se, portanto, da pesca amadora ou de subsistência. O espaço é, nitidamente, a Beira-Mar, transfigurada tanto pelo espetáculo humano (o pescador, as peixeiras) quanto pela presença de elementos singulares à sua paisagem (os cajueiros, as jangadas na praia; bem como o olhar perscrutador do Morro do Teixeira, que a tudo assiste). O poema, em síntese, é uma série de quadros que, uma vez unidos aos demais, apreendem a imagem em sua totalidade. A sinestesia “canção vermelha” (v. 1) resulta da fusão entre a faina e o lúdico: cantando, enquanto tratam os “pargos”, as mulheres sublimam o extenuante trabalho, misturando ao sangue dos peixes acordes que as socorrem. Os “cajueiros” (v. 7), por sua vez, se abrigam do sol os que se encontram na praia, servem, também, em sua “verde vigília”, de orientação espacial ao “jangadeiro” – este, ao contrário daquele “pescador”, conhece os líquidos abismos do mar, e, sobrevivente, já divisa de sua jangada fragmentos mínimos da praia. As “dunas” (v. 10) compreendem, metonimicamente, o espaço social do morro, abrigo dos excluídos. A metáfora “açoitam/ com a espinha do peixe/ o dorso da claridade” (v. 11 a 13) estabelece dois planos de significação: a princípio, a integração do peixe ao universo daquela gente: é trabalho, é alimento e é brinquedo; por fim, a transfiguração da “espinha” em arma branca (navalha, alfanje): índices e sinais dirigidos à outra “cidade” que, sob a tenda da “claridade”, esquece-se de que há outras fomes e outros alimentos. As “jangadas” (v. 14), de velas já entrançadas a seus mastros, recolhem-se, momentaneamente, da aventura, dan-

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do passagem a outra jangada: a do próprio mar que, sob os ventos e correntes, parece içar o bojo das nuvens. O ígneo movimento da “manhã marinha” (v. 23) desemboca no adjunto adverbial “em Fortaleza”, (v. 24) justificando a imagem síntese: “beira-sol”: cidade à beira-mar e ensolarada. Segue-se, então, a leitura do poema “A praia”: O azul é um animal marinho, dormindo na praia do Mucuripe. Em seu dorso ancestral, barcos bebem ancorados o infinito. O tempo quebra na praia sujo de algas. Pescadores arrastam o azul, surpreendido na rede da manhã. A vida salta feito peixes, fora d’água, pelas ruas da cidade, boiando na claridade, onde homens logo se batem para ganhá-la. Depois, retorna à praia, ao sono escamoso e fundo das águas. (BS, p.17)

O poema, a princípio, imprime-nos a seguinte indagação: que azul é esse “azul”, que, “animal marinho”, abriga, “em seu dorso” os “barcos” sedentos? Antes de tudo, um ser

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primordial, a que o eu lírico apreende em sua contemplação da paisagem marinha. O tecido sinuoso da praia, em seus contornos de água e de azul, reproduz a forma icônica desse animal, ofertado, agora, aos olhos inebriados do espectador. A água é o elemento ordenador do poema, cujo movimento é circular: uma vez despertado o “azul”, os “pescadores” arrastam a rede vazia em direção ao mar; da mesma forma, ao longo da cidade, os homens em geral lançam-se à luta pela vida diária; esta “salta”, e, sendo todos “peixes” – os pescadores e os outros homens – , “logo se batem”, asfixiados pelo calor da conquista do pão. Depois, “a vida”, extenuada, “retorna à praia”, ao sono “das águas”, para que, outra vez renovado o “azul”, tudo recomece; enquanto não, os homens navegarão sobre as ondas dos sonhos. O poema “As dunas” imprime-se como uma marinha: Avançam, sorrateiras, tangidas pela mão simétrica do vento. A luz da manhã sobre elas escorre como ondas na maré cheia. Verdevivos, os arbustos se agarram em desespero à alva memória da areia. Ali, as dunas espreitam a cidade – o bote de areia armado – à espera do tempo.

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Tácitas, levam nas costas, esvoaçante, o presente; nos peitos, o passado semovente (BS, p.19).

As “dunas”, a partir do processo da prosopopeia, inscrevem-se em sua natureza bélica: pacientes, “espreitam a cidade”, enquanto “avançam,/ sorrateiras”, como soldados camuflados, em sua direção. O “desespero” dos “arbustos” antecipa-nos o dos homens, se, um dia, surpreendidos por esse “bote de areia”. A última estrofe compreende as “dunas” como guardiãs da própria memória da cidade: movem-se por sobre elas o presente e o passado: este, preciso, bem guardado, e ainda vivo, pois “semovente”, recupera-nos os olhos dos primeiros descobridores e / ou conquistadores; aquele, mais frágil, uma vez que o cotidiano possui a faculdade de dissolver tudo mais facilmente; mais tarde, apenas alguns fragmentos serão por nós recolhidos. Ressurge, então, o tecido do passado, com o poema “Martim Soares Moreno”: A mesma praia, as pedras, essas dunas e a memória do rio com sua corrente já trazem para a margem do presente o guerreiro Martim com as escunas. Ali fundou um forte de colunas destemidas. Sonhou na areia ardente uma cidade lusa, clara e rente. E degolou francês e ouviu graúnas pelas praias... Depois, tornou ao mar a serviço d’ El-Rey noutra contenda. Voltou, porém, num sonho de Alencar a viver a verdade de uma lenda.

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Em meu sangue, que é praia do passado, Martim Soares combate, ressonhado (BS, p.20).

O encontro do rio com o mar, bem como a contemplação da paisagem marinha, tudo recupera o encontro do conquistador Martim Soares Moreno com as terras do Siará Grande. A construção do forte concretiza o sonho de erguer aqui outro Portugal. Destemido, o mesmo conquistador que expulsara com sua espada os piratas franceses também havia a sensibilidade para o canto das graúnas: cujo negror das penas encontraria, “num sonho de Alencar”, nos cabelos da virgem, vivendo, assim, “a verdade de uma lenda”. Confessa o eu lírico ser o seu “sangue” uma “praia do passado”, onde o guerreiro português ainda, no presente, “combate, ressonhado”; ou seja, recusa-se a uma versão puramente histórica das origens de nossa terra, pois, em sua essência, o mito funde sonho e realidade. Assomam, agora, poemas em que se retratam tipos culturais de nossa terra, como “O Jangadeiro”: Jangadas amarelas, azuis, brancas logo invadem o verde mar bravio, o mesmo que Iracema, em arrepio, sentiu banhar de sonho as suas ancas. Que importa a lenda, ao longe, na história, se elas cruzam, ligeiras, nesse instante, o horizonte esticado da memória, tornando o que se vê mito incessante? As velas vão e voltam, incontidas, sobre as ondas (do tempo). O jangadeiro repete antigos gestos de outras vidas feitas de sal e sonho verdadeiro. Qual Ulisses, buscando, repentino a sua ilha, o seu rosto e o seu destino (BS, p.31).

O jogo cromático dos dois primeiros versos sugere as cores da bandeira do Ceará, erguida, liricamente, sob o azul do

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céu e as brancuras das espumas do mar. A partir de uma intertextualidade com José de Alencar, (“o verde mar bravio”), há uma nota inicial de erotismo: o movimento das ondas do mar é associado ao do corpo de Iracema quando da cópula com Martim. Observa-se, também, a fusão entre passado e presente, uma vez que a forma verbal “invadem” remete a imagem das “jangadas” às escunas do conquistador português. A ideia do “mito incessante” justifica-se pelo fato de que está fincada, no imaginário cearense, a natureza histórico-lendária da nossa formação. A aproximação entre o jangadeiro e Ulisses lembra-nos o fato de que aquele é um ícone da formação do povo cearense, pois, ao repetir “antigos gestos de outras vidas”, funde passado e presente, revivendo hoje a bravura de outrora, atualizando, simbolicamente, as peripécias do herói grego, sendo, como este, predestinado ao cumprimento de uma tarefa: “buscando, repentino, / a sua ilha, o seu rosto e o seu destino”.

O Cão dos Sentidos Nessa segunda parte, a primeira peça intitula-se “Praça”: A manhã me afoga, iluminada, com seu cardume de ruídos. Violento, o sol abre as comportas do azul As coisas avançam sobre mim, penetram dentro dos olhos, amedrontam-me:

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– o vermelho eriçado dos cartazes. Ah, estar aqui, às dez e meia da manhã, na Praça José de Alencar. A meu lado, um mendigo cata sobre a calçada a queixa sonante das moedas. A buzina amarela dos táxis corta a mão agitada das mãos. Dez ônibus sacolejam as ancas das esquinas. Engraxates esfregam com uma flanela o ódio reluzente nos pés dos homens. Vendedores de pano gritam a nudez das criaturas. Biscateiros beliscam a indiferença da estátua. Num canto da praça três pivetes pastoram o desdém metálico dos carros.

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Numa fila, malandros acenam para o meu coração pugilista. Padre Manfredo, na porta da igreja, debulha o roto rosário do abandono. O Teatro José de Alencar sopra em minha nuca o bafo peludo da vida. Ó manhã transfigurada. A loucura acende por um instante o rosto crispado dos objetos A praça invada uma outra praça. Transeunte do acaso, me perco entre as duas (BS, p.43-45).

A metáfora inaugural “afoga” ressalta a natureza inebriante da manhã na praça, onde o “cardume / de ruídos” configura o ir e o vir desordenado de pessoas e maquinarias numa sinestesia cubo-futurista. Percorrendo a praça, o eu lírico se sente absorvido pelos apelos os mais diversos, ideia reforçada pelo pleonasmo: “penetram dentro dos olhos”, e o clímax é a sedução da publicidade: “ – o vermelho eriçado / dos cartazes”. Se o primeiro movimento é absolutamente poético, sedimentado em jogos metafóricos e sinestésicos, o que faz com que a praça seja um espaço universal e imaginário, o segundo movimento, ao contrário, inscreve-se como prosaico: “Ah, es-

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tar aqui, / às dez e meia da manhã, / na Praça José de Alencar”, exatamente para iniciar o processo de singularidade do lugar, flagrando imagens não captadas pelos cartões-postais: a miséria dos mendigos, o caos do trânsito, os engraxates, os comerciários, os camelôs, os pivetes, os malandros, o abandono da arquitetura. O último movimento, a partir de “Ó manhã transfigurada”, inaugura uma outra praça, erigida na imaginação do eu lírico, que, “transeunte do acaso”, perde-se “entre as duas”: a real, que, até então, denunciara em seus mecanismos de penúria social e humana; e a outra, a que ele espera surgir quando a consciência do bem comum instalar-se no poder e na sociedade em geral. Em “Prisma”, o poeta escreve: Verde a voz por entre as árvores. Amarelo oleoso o ar do meio-dia. A memória é azul à beira-mar. Cinza, a hora que escorre dos edifícios. Vermelha a vertigem do poente. Violeta a raiz do sono. Branquíssimo este instante que a tudo resume (BS, p.78).

O espaço do poético é um vazio a preencher-se ininterruptamente; compreendendo um “instante” branco por demais, o branco é a união de todas as cores, da mesma forma

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as imagens poéticas unem-se e se esgotam. Nesse metapoema, a criação artística percorre a busca das palavras como se atravessasse o labirinto em cores de um prisma: a cidade, amanhecendo sob o “verde” canto dos pássaros, convoca o eu lírico a percorrer-lhe o corpo; e eis os caminhos da criação: se o “ar do meio-dia” é de um “Amarelo oleoso”, ou seja, se, viscoso, o cotidiano se lhe escapa em sua totalidade, se não consegue apreender-lhe as múltiplas manifestações, que, então, sirva-se da faculdade da transfiguração, bebendo, assim, o “azul” da “memória”. Desmaia o sol sobre a cinza dos edifícios, e, cansado de suas buscas, o eu lírico pode, finalmente, enraizar-se no sonho de sintetizar tudo isso. Outra configuração da temática social, em “Maria”: Diz que dá pernadas na lua. Entre uma cerveja e outra, decifra os bigodes do chinês. Com a mão esquerda, retira um búzio da boca de um marinheiro. Com a bacia das coxas, apara a resina do sexo. Arranha com as unhas esmaltadas a miçanga das estrelas. Depois dorme por entre gatos e palavras impublicáveis. Ave Maria, cheia de graças (BS, p.79).

O título “Maria” converte-se num desvio de uma imagem sacralizada pela cultura: de vestal passa a prostituta. Em consonância com a atmosfera lúgubre de “O cão dos sentidos”, o texto perfila a prostituição no universo da miséria: “Depois dorme por entre gatos”, alcoolizada. A metáfora “dá pernadas na lua” traduz a faina noturna da prostituta pela sobrevivência: ela, “Entre uma cerveja e ou-

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tra”, palmilha o desejo mais secreto dos homens: “os bigodes do chinês” – ressalte-se que, costumeiramente, associam-se exotismo e mistérios aos orientais. O caráter transgressor da prostituição é sintetizado pela “mão esquerda”, a que a tradição cristã associa ao demoníaco, ao pecaminoso: “a direita tem um sentido ativo, e a esquerda é passiva. Também a direita significa futuro; e a esquera, passado, sobre o qual o homem não tem poder. Enfim, a direita possui um valor benéfico e a esquerda parece maléfica”. 6 A metáfora “Arranha com as unhas esmaltadas / a miçanga das estrelas” acentua-lhe a penúria, presente inclusive no brilho falso de seus adornos. Fecha-se essa análise com o poema “Residência”; este, por sua vez, traz para o conjunto total dos poemas uma nota até então ausente: a do erotismo, consoante os versos que se seguem: O corpo de minha cidade é um naco de terra à beira-mar. Nele, as ondas quebram o tempo por entre as pedras. As dunas empinadas apontam-no Para o céu de minha boca. Traz sobre as ancas um sol selvagem tatuado. Um riacho corre até à foz de seu sexo salitroso. Pássaros marinhos migram de seus olhos para as mãos. Esquinas e gestos logo irrompem sobre a praça de seu ventre. Pelas ruas diariamente atravesso o mapa de seu sangue. Amar esta mulher é habitá-la. (BS, p.82) 6

CHEVALIER & GHEERBRANT,1989, p.343.

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Sofrendo um processo antropomórfico, a cidade de Fortaleza assoma ao eu lírico como um corpo de mulher; assim, uma sucessão metafórica enumera-lhe os peitos, (as dunas) as ancas, (as praias) o sexo (a barra do mar) os olhos, (os faróis do Mucuripe) o ventre (a praça) e suas veias (as ruas), para finalmente, consumar a posse: “Amar esta mulher é habitá-la”.

Referências Bibliográficas CHEVALIER, J. e GHEERBRANT. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. CONNOR, S. Cultura pós-moderna: introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 1993. ESPÍNOLA, Adriano. Beira-sol. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. PARDAL, Paulo de Tarso. Discurso do imaginário. Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2003. PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1986.

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A PAISAGEM E A FOTOGRAFIA ATRAVÉS DE NOVOS ESTUDOS DA GEOGRAFIA CULTURAL Naiana Paula Lucas dos Santos

A Geografia Cultural e o Conceito de Paisagem Os seres humanos com suas capacidades cognitivas diferenciadas também possuem compreensões de mundo diversas e consequentemente apreensões heterogêneas da paisagem que o cerca. Um exercício interessante é tentar perceber como a geografia pode saltar aos nossos olhos mesmo nos exemplos mais simples ou interessantes do cotidiano, através das percepções ligadas a visão, a audição, olfato, tato e paladar. Todavia, nunca possuiremos a mesma impressão da paisagem, pois pensamos e interpretamos de maneiras de paisagem. Na geografia cultural renovada a paisagem é carregada de significados e percebida como um campo repleto de interpretações. Surge um conceito que envolve a cultura, o significado e as práticas simbólicas engendrando novas formas de compreensão da paisagem. Nesse contexto, Silva (2001) afirma que a geografia cultural renovada possibilitou caminhos para os estudos de uma paisagem cultural que não é unilinear e uniforme, mas sim múltipla e repleta de variações com fragmentos temporais das sociedades. A geografia como ciência não pretende compreender todas as características internas de determinada cultura por si só, mas sim busca compreender as modificações no (do) espaço por meio da cultura, pois se o homem age interferindo em seu habitat ele produz e reproduz cultura. Assim, o sujeito é quem produz as manifestações culturais e o mesmo age

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modificando o espaço. Quando um grupo ou sujeito consegue perpassar e difundir cultura em outro território que não seja o seu de origem, isto possibilita o processo de ampliação cultural, ou seja, o processo de difusão cultural. Com a introdução da geografia cultural no Brasil durante a década de 1990 o conceito de paisagem passou a ser analisado de uma maneira mais aprofundada, inserido na geografia também com o viés cultural. Só para constatar que na geografia tradicional a paisagem era pautada na objetividade do meio físico, no caráter empiricista e na racionalidade da interpretação do objeto de estudo. A cultura popular, negligenciada pela geografia brasileira, constitui-se em importante temática para a inteligibilidade do país. [...] Os significados das diversas práticas espaciais associadas ao cotidiano, envolvendo as coisas correntes, e as manifestações menos frequentes ou periódicas estão, com raras exceções, a serem evidenciados pelos geógrafos brasileiros. As festas e a música popular estão, entre outras manifestações, entre aquelas práticas merecedoras de atenção (CORRÊA; ROSENDAHL, 2007 p.17).

O Brasil é um país culturalmente heterogêneo, indicam-se alguns temas interessantes para pesquisas e estudos sob a óptica investigativa geográfica através de assuntos como: [...] O caráter simbólico dos prédios, monumentos, praças, ruas, bairros, cidades e regiões; As trocas comerciais através dos mercados periódicos (feiras) e do comércio itinerante um estudo compreendendo a prática cultural no espaço e seus significados; A cultura popular em suas múltiplas manifestações e variação espacial; Os contatos e conflitos culturais resultantes do processo migratório interregional; A caracterização e delimitação de áreas culturais, inclusive áreas residuais e enclaves, num contexto de difusão de uma cultura com características globais (CORRÊA, 1995, p.16).

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Dessa forma, as manifestações populares, as religiões e os hábitos são exemplos de manifestações culturais. É importante também ressaltar a linguagem e a arte como símbolos culturais manifestados através das falas, dialetos, escritas, desenhos e sinais corporais. Assim, pode-se entender que a paisagem cultural é transformada e modelada a todo instante. O resultado dessa modificação é fruto da ação humana nos lugares formando novas composições espaciais. Nesse contexto, muitas perspectivas de análise têm sido propostas para compreender as muitas transformações existentes no espaço geográfico. Assim a geografia cultural atual torna-se cada vez mais em destaque a partir de estudos antes invisíveis pela seara geográfica: A geografia cultural é atualmente uma das mais excitantes áreas de trabalho geográfico. Abrangendo desde as análises de objetos do cotidiano, representação da natureza na arte e em filmes até estudos do significado das paisagens e a construção social de identidades baseadas em lugares, ela cobre numerosas questões. Seu foco inclui a investigação da cultura material, costumes sociais e significados simbólicos, abordados a partir de uma série de perspectivas teóricas (MCDOWELL, 1996, p.159).

Além disso, é necessário enfatizar a inserção na geografia cultural de temáticas como a literatura, a música, a pintura, a fotografia e o cinema que se destacam entre outras temáticas que foram retomadas ou surgiram diante das transformações da geografia. No intuito de construir uma teoria para a leitura da paisagem, Cosgrove (1998) busca compreensões que conduzam os geógrafos a metodologias mais interpretativas do que morfológicas, fazendo emergir, a partir da configuração de símbolos e signos, o verdadeiro significado da paisagem. O autor explica que o conceito de paisagem não é apenas uma maneira

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de visualizar algo existente sobre a superfície terrestre, mas sim uma composição do mundo em um momento que por si só não é estático, mas carregado de movimentações e interpretações, conforme a afirmação abaixo: A paisagem sempre esteve intimamente ligada, na geografia humana, com a cultura, com a ideia de formas visíveis sobre a superfície da terra e com a composição. A paisagem, de fato, é uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma “cena”, em uma unidade visual (COSGROVE,1998, p.98).

Cosgrove (1998) nos remete a um pensamento interessante ao explicar que a geografia deixou escapar muito do significado existente na paisagem humana, tendendo a reduzi-la a uma impressão impessoal de forças econômicas. É nessa perspectiva que devemos pensar sobre a ideia de aplicar aos estudos da paisagem humana algumas das habilidades interpretativas que possuímos ao estudar um livro, um poema, um filme ou um quadro, e a partir daí trata-la como uma expressão humana intencional com muitas camadas de significados. Nesse sentido, é necessário deixar essa estranheza de lado e partir para novos campos de estudos é o que propõe o autor ao difundir suas pesquisas geográficas. Perpassar o campo do visível, ou seja, algo que está a frente dos nossos olhos e a partir daí compreender a gama de interpretações é o que propõe Meining (1976), ao abordar várias interpretações diferentes de perceber a paisagem como: natureza, habitat, artefato, sistema, problema, riqueza, ideologia, história, lugar e estética. Para o entendimento dos sentidos de apropriação da paisagem Rieper (2007) explica que as características perceptivas são diferenciadas de um sujeito para outro, através de alguns fatores, como os valores culturais e as experiências vi-

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venciadas pelos sujeitos. De acordo com o pensamento da autora, sensação e sentimento são eventos relevantes no estudo da percepção, pois são estes que individualizam, humanizam, dão cheiro, história pessoal, vida, à construção de um espaço. Pode-se até falar em um mundo interior subjetivo e um mundo exterior carregado de racionalização e objetividade. Dessa maneira, relacionar ambos os lados faz parte do processo de formação e construção de imagens e paisagens. Desse modo, como propõe a nova Geografia Cultural o conceito de paisagem permeia a transposição do campo de visibilidade para o campo dos significados, através de interpretações nas quais o caráter subjetivo está entrelaçado ao poder de compreensão de determinada paisagem. Assim, entende-se que a paisagem existe para além do próprio sentido visual, sendo construída pelo observar diário repleto de surpresas conforme afirma Ferrara: Além do ver físico, simples sensação, há um ver inteligente a que se opõe ao cotidiano como continuidade perceptiva. Observar é produzir descontinuidade que desfaz o anonimato da vida diária (FERRARA, 2000 p.125).

Estudos que vinculam a paisagem e as fotografias estão sendo concebidos de maneira mais difundida, devido a proliferação de temas na geografia cultural que possibilitam o caminhar da geografia em meio as artes.

O Estudo Fotográfico Todavia, a arte contemporânea tem promovido uma ampliação e expansão de várias possibilidades criativas. Hoje a arte não é percebida somente por uma linguagem como pintura, escultura, desenhos, mas sim existem várias formas e diversas aplicações artísticas.

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Busca-se assimilar a fotografia enquanto manifestação artística e forma de intervenção social que proporciona uma memória e análise de momentos históricos dos sujeitos com seu entorno. Nesse sentido, refletindo sobre esse tema, nos deparamos com ações como a conservação e manutenção de imagens que nos remetem a histórias e momentos do passado. Quando visitamos amigos e familiares muito íntimos em alguns momentos nos deparamos com a visualização de fotos estampadas na sala em porta-retratos ou até mesmo álbuns de famílias, que nos são mostrados como uma forma de contar a história de vidas através das fotografias. Fotos de quando éramos crianças, de viagens, de aniversários em família são exemplos de momentos que ficam registrados. As fotografias são guardadas para relembrar os momentos que foram vividos, mas também em outros momentos essas fotografias podem remeter a sentimentos que não nos fazem bem e somos instigados a destruir imagens que não mais nos agradam que relembram momentos de tristeza ou raiva como uma tentativa de apagar o passado e na certeza de que essas fotografias não irão mais ressurgir diante do sujeito que a observa e não gosta mais do que vê diante de si. Assim a fotografia tem a capacidade de marcar um tempo e um espaço em um instante e ainda consegue ultrapassar esse espaço-temporal, através de sentimentos íntimos e profundos como chorar, sorrir e relembrar histórias. A imagem fotográfica seria um produto técnico e cultural no qual a obtenção do registro fotográfico se encontra relacionada diretamente ao processo de criação que dá origem à fotografia é o que pensa Boris Kossoy (2012), dessa maneira esse processo possibilita refletir sobre a imagem fotográfica enquanto meio de conhecimento através de suas utilizações e aplicações.

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A fotografia que gera a imagem é resultado de um processo criativo inserido na elaboração fotográfica. A construção da imagem fotográfica se dá pela conjuntura existente do mundo real que se materializa na imagem através de seus muitos códigos culturais e ideológicos. Dessa maneira, para entender as fotografias é necessário buscar o contexto no qual elas estão inseridas. Assim, Kossoy (2012) informa que a história da fotografia relaciona-se com o passado histórico e o avanço das técnicas, possibilitando a concretização desta enquanto veículo de comunicação até mesmo junto a expansão comercial através das indústrias voltadas para a área fotográfica. As apreensões e transformações no uso da fotografia foram acontecendo no decorrer do tempo, a sensação que se transmitia era que as pessoas no mundo pareciam mais familiares e próximas após a disseminação do conhecimento fotográfico. Essa proximidade era acarretada devido a proliferação de conhecimento de realidades existentes em outros lugares, estas realidades agora visualizadas através das fotos, antes eram transmitidas apenas através da escrita ou via oral por meio do repasse das histórias de fatos e momentos que aconteceram, assim como o registro das imagens era feito apenas através de desenhos e pinturas. Kossoy (2012) afirma que, por meio da reprodução das técnicas fotográficas em grande escala e das revelações das fotos feitas em papel, proliferou-se outro tipo de conhecimento e aprendizagem do real. Desse modo, Kossoy (2012) questiona o que seria a imagem fotográfica? A imagem fotográfica é o que resta do acontecido, fragmento congelado de uma realidade passada, informação maior de vida e morte, além de ser o produto final que caracteriza a intromissão de um ser fotográfico num instante dos tempos (2012 p.39).

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A fotografia seria resultado da ação do fotógrafo que em um determinado espaço-tempo preciso definiu um assunto específico e utilizou uma máquina fotográfica suficientemente capaz de captar a imagem fotográfica. Kossoy (2012) informa que três elementos são relevantes para a efetivação fotográfica. Os elementos seriam estes: o assunto, o fotógrafo e a tecnologia. É necessário inserir a fotografia em um contexto junto a outras fontes bibliográficas para entender e interpretar o que está para além da imagem e assim tentar chegar ao entendimento do acontecido que se propaga na aparente fotografia. Kossoy (2012) comenta um estudo pautado na interdisciplinaridade para compreender as imagens. [...] a proposição de um modelo metodológico de análise e interpretação das imagens fotográficas, entendidas como fontes históricas, modelo que tem sido adotado pelos pesquisadores e estudiosos, o que se confirma pela sua aplicabilidade em diferentes áreas das ciências humanas (2012, p.17).

A imagem é antes de tudo uma representação elaborada a partir do real que parte a priori do olhar do fotógrafo para uma posterior análise subjetiva do sujeito que a visualiza. As fotografias possibilitam refletir sobre os lugares e sujeitos que caracterizam e formam a paisagem. Dessa maneira, participam da composição da paisagem as ações do tempo, o acúmulo histórico, a arquitetura e as manifestações culturais. É necessário informar também que a paisagem não está pautada apenas na visualização de um lugar, mas sim em uma gama de apreensões existentes através de outros sentidos perceptivos e principalmente na interpretação subjetiva do sujeito diante da paisagem. A paisagem que nos cerca como os monumentos arquitetônicos existentes e os objetos históricos podem ser com-

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preendidos como fatia ou parte de uma realidade do presente ou do passado. Os indícios existentes na imagem fotográfica são as pistas inerentes ao próprio documento. Kossoy (2004) informa que as representações fotográficas possuem em si mesmos conhecimentos e dados do real, desse modo, são instrumentos de grande valor em uma pesquisa pautada na interpretação e entendimento fotográfico. Os indícios são as pistas, os vestígios existentes nas imagens fotográficas que se tornam importantes junto a referências bibliográficas que permeiam o campo de estudos em diversas áreas, possibilitando a ampliação dos estudos do sentido na imagem fotográfica. São informações que são repassadas através da forma escrita e visual que tornam possíveis entender as paisagens geográficas e a história por trás do registro fotográfico. Desse modo, entende-se que a fotografia vai além do que se mostra realmente. O assunto fixado na imagem tem sua própria explicação, uma história existente não necessariamente e nem sempre explícita na imagem fotográfica. Como um mistério determinado no espaço e no tempo que corresponde a própria imagem. Kossoy (2004) nos alerta que isso é característico da fotografia, mostrar algo existente, todavia seu significado consegue ultrapassar o que está posto na imagem fixa. Existe um conhecimento implícito nas fontes não verbais como a fotografia; descobrir os enigmas que guardam em seu silêncio é desvendar fatos que lhe são inerentes e que não se mostram, fatos de um passado desaparecido que imaginamos, em eterna tensão com a imagem presente que vemos no documento: realidades superpostas. Existe, sim, um pensamento plástico como afirmava Francastel. Não raro, memória, informação, propaganda, testemunho e ficção se confundem numa

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única imagem. Seguir decifrando essa forma de conhecimento é o desafio que nos move (2004, p.232).

Quando diante de uma fotografia o que realmente vemos? A nossa compreensão da imagem fotográfica é influenciada por várias compreensões de mundo pré-existentes em nossa mente, derivadas estas de nossas experiências e imaginações. Para Kossoy (2004) a fotografia nunca é totalmente imparcial, pois a primeira visualização existente foi a do fotógrafo que registrou o ato fotográfico, seja de maneira espontânea, seja incumbido desta tarefa. Assim a imagem fotográfica é uma forma de conhecimento na qual podemos visualizar alguns cenários do passado, todavia as imagens não reúnem por si só o total conhecimento do passado. Kossoy (2012) questiona se existe melhor exercício para reviver o passado que a apreciação solitária de nossas próprias fotografias? A fotografia e o passado associados levam a refletir e relembrar os momentos que já foram vivenciados através de uma experiência visual dos seres diante da imagem de si próprios, por meio de fotografia de diversas ocasiões seja dos momentos mais comuns do cotidiano assim como momentos importantes que já foram vividos no passado. Quando o homem vê a si mesmo através dos velhos retratos nos álbuns, ele se emociona, pois percebe que o tempo passou e a noção de passado se lhe torna de fato concreta. Pelas fotos dos álbuns de família, constata-se a ação inexorável do tempo e as marcas por ele deixadas [...] (2012, p.112).

Esse pensamento nos faz refletir acerca da maneira como nos envolvemos afetivamente com os conteúdos existentes nas fotografias, pois de uma maneira ou de outra nos dizem respeito e através delas afloramos nossos sentidos, vol-

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tamos ao passado, visualizamos como eram nossos amigos e como nós mesmos éramos, assim os sentimentos afloram. Kossoy (2012) exemplifica como uma espécie de viagem de volta ao passado sob a mediação da imaginação que possibilita reconstruir os acontecimentos em nossa mente. Nos álbuns de famílias, a cada página que percorremos, personagens nos saltam aos olhos e novos assuntos rememoram em nossa imaginação, um meio que possibilita reconstruir uma trajetória de vida através das fotografias. Nesse entendimento, quando se visualiza uma fotografia do passado é necessário refletir sobre a trajetória da fotografia e lembrar que atrás de toda fotografia existe uma história. Kossoy (2012) explica que a trajetória fotográfica é percorrida através de três estágios bem definidos. A primeira seria a finalidade para que ela exista de fato, esta finalidade pode ter sido do fotógrafo que se viu instigado a fotografar o acontecido de maneira espontânea ou então foi incumbido e pago para fotografar tal fato. A segunda intenção seria a materialização da fotografia. A terceira intenção seriam os caminhos os quais essa fotografia ainda vai percorrer. Nessa terceira intenção vale lembrar sobre os caminhos percorridos e: [...] As mãos que a dedicaram, os olhos que a viram, as emoções que despertaram os porta-retratos que a emolduram, os álbuns que a guardaram, os porões e sótãos que a enterraram e as mãos que a salvaram. Neste caso seu conteúdo se manteve, nele o tempo parou. As expressões ainda são as mesmas. Apenas o artefato, no seu todo envelheceu (2012, p.47).

A fotografia pode trazer de volta informações do passado, mas não consegue compreender os significados em sua plenitude, ou seja, o entendimento da realidade em sua totalidade como era no passado. Por trás da aparência ingênua da

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fotografia existe uma carga de pensamentos ideológicos que podem manipular o sentido espontâneo existente em uma fotografia.

A Leitura da Paisagem a Partir da Fotografia Dessa forma, para compreender a relação entre o olhar, a paisagem e o sujeito é possível exemplificar através do trabalho do fotógrafo contemporâneo o esloveno Evgen Bavcar que é cego e seus trabalhos promovem debates sobre o olhar que perpassa o campo do visível, o concreto e se expande para as sensações mais subjetivas; dessa forma Evgen Bavcar informa como compõe esse processo de formação das imagens: “Registro imagens de sonhos e procuro experimentar o maior número de sensações possíveis.” O fotógrafo tenta dirigir as imagens por meio do tato e da audição.

Foto 1 – Imagem registrada pela fotógrafa cega Amy Hildebrand

Outro exemplo inserido na mesma perspectiva é a fotógrafa americana Amy Hildebrand que nasceu cega por causa

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do albinismo. Na infância e na adolescência, ela passou por tratamentos médicos e passou a enxergar algumas formas, vultos e poucas cores. Apesar das limitações de sua visão, Amy optou por se formar em fotografia e através de suas imagens pode-se perceber a sensibilidade aguçada possibilitando até uma reflexão sobre o olhar sensitivo, que perpassa o inimaginável, perpassa o campo do visível. As questões teóricas que envolvem a arte fotográfica e o estudo de autores que discutem as transformações espaço-temporais e conceituais da fotografia são os assuntos que norteiam e possibilitam novos estudos geográficos. Busca-se assimilar a fotografia enquanto manifestação artística e forma de intervenção social que proporciona uma memória e análise de momentos históricos dos sujeitos com seu entorno. Estes exemplos foram trazidos para entendermos como a geografia cultural renovada se detém a novos estudos sem se prender apenas à análise objetiva de suas pesquisas. Pensar em como relacionar a geografia, os sujeitos, a fotografia e artes plásticas podem ser sim objetos de estudos geográficos e nesse contexto deve-se ressaltar a importância desses estudos para a sociedade e como os mesmos podem ser investigados sob a óptica geográfica. Dessa forma, entende-se que não possuímos a mesma impressão da paisagem, pois interpretamos de formas diferentes e assimilamos de maneiras diversificadas. Todavia, participam desse processo de construção da paisagem, as ações temporais que possibilitam a conservação de resistências e vestígios de civilizações ou arquitetura e manifestações culturais que compõem e transformam a paisagem. É necessário saber também que a paisagem não está pautada apenas no sentido visual, mas sim em uma gama de apreensões existentes através de vários outros sentidos perceptivos e principalmente na interpretação subjetiva do sujeito.

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Considerações Preliminares Portanto, na primeira etapa deste trabalho foram feitas reflexões sobre a Geografia e Paisagem e a relação destas com as artes. Na segunda etapa foram levantados alguns estudos conceituais sobre a fotografia. Na terceira etapa foram levantados exemplos que permeiam o campo da fotografia e uma possível análise junto a paisagem inserida na geografia cultural renovada. Desse modo, os significados da arte apresentam-se sob diversas interpretações, atuações e apropriações espaciais. Estas características podem contribuir para a compreensão da transformação da paisagem, através das modificações na composição espacial. Assim, assimilar a fotografia se apresenta como manifestação artística e forma de intervenção social proporciona uma memória e análise de momentos históricos que promovem análises perceptivas dos sujeitos com seu entorno.

Referências Bibliográficas CORRÊA, Roberto L. e Rozendahl, Zeny. Geografia cultural: introduzindo a temática, os textos e uma agenda. In: Correa, R.L e Rozendahl, Z. (Org.) Introdução à geografia cultural, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. ______. CORRÊA. Roberto Lobato. A dimensão cultural do espaço: Alguns Temas. Espaço e cultura. Rio de Janeiro: EDURJ, n. 1, out. p.1-21, NEPEC, 1995. COSGROVE, Denis. A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORREA, R.L e Rozendahl, Z. (Org.) Paisagem, tempo e cultura, Rio de Janeiro: EDUERJ, 1998.

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FERRARA Lucrécia D’Aléssio. Cidade: imagem e imaginário. In: Os significados urbanos. São Paulo, FAPESP: EDUSP, 2000. KOSSOY, Boris. Fotografia e história. 4. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2012. ______. Construção e desmontagem. Revista USP, São Paulo, n.62, p.224-232, junho/agosto 2004. MCDOWELL, L. A transformação da geografia cultural. In: GREGORY, D. et al. (Org.). Geografia Humana: Sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996. SILVA, Lígia Maria Tavares da. Fotografia e paisagem urbana. Revista de História, n. 6/7, dez.jan., 2000/2001. RIEPER, Ana. Cotidiano e paisagem: uma abordagem cultural. 2007. Disponível em: http://ebookbrowse.com/cotidiano-e-paisagem-uma-abordagem-cultural-pdf d216263630 Acesso em: 01 jun. 2012.

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O BENFICA DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA PAISAGEM ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS Rejane Maria de Souza Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior

Introdução A paisagem é constituída como uma importante temática que ao longo do tempo tem atraído a atenção dos geógrafos. As abordagens referentes ao tema se reportam aos estudos de geografia, iniciados no século XIX, na Europa. Nestes enfoques, a Geografia, para muitos desses estudiosos, era considerada a ciência das paisagens (MELO, 2001). Na análise da paisagem podemos apreender a cultura de determinados grupos sociais, observando como estes acompanham as mudanças que ocorrem cotidianamente em seu redor. Em virtude da importância deste conceito, não só para a Geografia, pretendemos analisar através das fotografiasas mudanças que ocorreram na paisagem do bairro Benfica após a criação da UFC. O bairro localizado ao sul do que se denomina centro de Fortaleza é hoje um espaço que concentra várias atividades, transformando-se em um lócus que vai além de um espaço residencial. Ele se configura como um bairro singular, principalmente, dentro do contexto educacional da cidade de Fortaleza. Nos últimos cinquenta anos o bairro vem concentrando inúmeras instituições de ensino, tornando-se a educação um referencial para quem conhece o Benfica, destacando-se como um bairro universitário devido ao fato de possuir diversas instalações da Universidade Federal do Ceará – UFC, na

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qual podemos destacar: a Reitoria e as pró-reitorias de Planejamento, Extensão, Administração e Assuntos Estudantis. Outras instalações da universidade são algumas Residências Universitárias, a Procuradoria Geral, Ouvidoria, Auditoria Interna, Seara da Ciência e o Centro de Treinamento e Desenvolvimento Regional – CETREDE, além de equipamentos culturais como o Museu de Arte, várias bibliotecas, a FM Universitária e as Casas de Cultura Estrangeira. Além das instalações da UFC, o bairro abriga o Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia do Ceará – IFCE; o Centro de Línguas Estrangeiras que pertence ao IFCE – CLEC e também algumas escolas de ensino fundamental e médio. É de relevância destacar também, a Faculdade de Direito da UFC no bairro Centro, na divisa com o Benfica e o Centro de Humanidades da Universidade Estadual do Ceará – UECE, localizado na avenida Luciano Carneiro no bairro de Fátima, bairro vizinho ao Benfica (VASCONCELOS JÚNIOR, 2009). Entendemos que a universidade propiciou diversas práticas espaciais no bairro, dentre elas as modificações em sua paisagem, percebida através do caminhar pelo Benfica, onde a presença da UFC é marcante, seja por seus prédios, pelo movimento de alunos, professores, funcionários e moradores que integram essa paisagem. Outra possibilidade de análise são as fotografias antigas do bairro, que apresentam contextos históricos, econômicos e culturais, entre outros. Percebemos que os estudos relacionados as paisagens culturais urbanas necessitam de profundas análises, fazendo-se necessário buscar metodologias adequadas para a presente pesquisa. Em virtude da complexidade que envolve o tema, destacamos a fotografia como a nossa principal fonte de análise, pois através desta podemos apreender as mudanças na paisagem do espaço em questão. Destacamos os arquivos fotográ-

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ficos da UFC e do senhor Nirez, responsáveis pela maioria das fotografias que serviram para análise do bairro Benfica.

A UFC e as Mudanças na Paisagem no Bairro do Benfica De acordo com Martins Filho (1994;1996)foi no ano de 1944 que tiveram início as negociações políticas acerca da criação de uma universidade no Ceará. Assim, o médico doutor Antônio Xavier Oliveira encaminhou ao Ministério de Saúde e Educação um relatório sobre a federalização da Faculdade de Direito. Foi durante a discussão sobre este pleito que, pela primeira vez foi ventilada a ideia de criação de uma universidade no Ceará, com sede em Fortaleza. Dessa forma, a ideia de uma universidade na cidade começou a ser tema de diversos debates, propiciando movimentos de apoio de vários setores da sociedade que pleiteavam a criação e instalação de uma instituição superior pública de ensino. Mas foi com a liderança do professor Antônio Martins Filho, que, no ano de 1953, elaborou um documento no qual especificava a necessidade da instalação de uma Universidade no Ceará, que o projeto tornou-se rea­lidade. Em 1954 foi aprovada a Lei que criava a Universidade do Ceará. No entanto, a publicação da lei ocorreu no ano de 1955 no Diário Oficial da União. A instalação da UFC consolidaria o Benfica como espaço da educação, visto que o bairro já vinha recebendo antes da UFC, instituições educacionais de importância na cidade, entre elas o Ginásio Santa Cecília (atualmente localizado na av. Virgílio Távora), o Ginásio Nossa Senhora das Graças que se transferiu para o bairro de Fátima, e a mais importante destas instituições, a Escola Industrial, hoje IFCE. As edificações onde funcionaram as instituições confessionais acima mencionadas foram adquiridas, também, com o tempo, pela UFC,

O BENFICA DA EDUCAÇÃO: UMA ANÁLISE DA PAISAGEM ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS

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como resposta a necessidade de novos espaços para os cursos que estavam sendo criados pela universidade recém instalada.(VASCONCELOS JÚNIOR, 1999). Neste contexto entendemos que o Benfica é um espaço privilegiado para o estudo das paisagens culturais urbanas, percebidas a partir do domínio dos sentidos. Segmentos sociais diversos entram nesse processo no dia a dia, moradores, alunos, professores, servidores públicos, comerciários, administradores, gestores, planejadores urbanos, vendedores de todo o tipo, comtemplando, mesmo que seja por um momento os vários contextos paisagísticos. Em relação a este contexto, Cosgrove (1998) nos fala que a paisagem não surgiu a partir de indivíduos ou pequenos grupos, ela é configurada a partir de um processo dialético entre a produção cultural e as práticas sociais, em um determinado momento histórico. A análise da paisagem do Benfica possibilita múltiplas possibilidades de enfoques, permitindo analisar o bairro através de diferentes aspectos da relação homem-lugar. No presente estudo, estão expressos vários momentos da ação da cultura e da acumulação de tempos sobre o espaço, refletindo as práticas sociais que são estabelecidas neste local. Para Luchiari (2001), ao pensarmos a paisagem como ação da cultura, percebemos que a passagem do tempo altera suas formas em múltiplas combinações. Se as formas são alteradas pela ação do tempo sobre o espaço, as funções e os significados também se transformam, fazendo com que a cidade esteja constantemente se refazendo. Ainda para a autora, a paisagem contemporânea é híbrida, um palimpsesto que exige a convivência de vários ritmos, percepções, escalas e perspectivas. Na tarefa de estudar a paisagem é necessário estar ciente do desafio de decifrar as representações contidas na mesma, em que é preciso desenvolver um olhar especial que permita

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alcançar as diversas dimensões do espaço e do tempo, pois a paisagem traz marcas dos indivíduos que a construíram, sendo possível ver esta dinâmica no espaço transformado, destruído e degastado pelo tempo (COELHO, 2009). Colaborando com este raciocínio, ao caminharmos pelo Benfica, principalmente na avenida da Universidade, percebemos nas edificações a presença da UFC, destacando os Centros de Humanidades 1 e 2, a Faculdade de Economia, Administração e Ciências Atuariais – FEAC, a Imprensa Universitária, as Casas de Cultura, o Museu de Arte da UFC – MAUC, o Restaurante Universitário, o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e a Reitoria, que é um símbolo arquitetônico para a cidade de Fortaleza. No processo de criação e consolidação da universidade, estes prédios passaram por diversas reformas para a adequação da instituição, a maioria destas reformas foi realizada no espaço interno destes imóveis. Desta forma, muitos prédios conservaram sua fachada arquitetônica, propiciando ao observador uma viagem no tempo e a percepção de um estilo de morar e viver na cidade, vivido em décadas passadas. As mudanças na paisagem não são sentidas pelas pessoas somente no olhar as edificações da UFC, mas através do ir e vir de inúmeros estudantes, professores e funcionários da instituição que se apropriam destes espaços, inserindo aí novas formas uso e ocupação. Informação esta que pode ser observada nos grupos reunidos à sombra das árvores, no entorno das cantinas, nos bares e lanchonetes próximos e nos pontos de ônibus, onde ocorre um intenso fluxo de pessoas nas proximidades da universidade. A paisagem cultural possui sentido através da construção coletiva da sociedade, pois as práticas culturais realizadas no dia a dia dão sentido àquilo que os nossos olhos conse-

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guem captar. Mas a paisagem vai além do visual, pois nela está contida os sentimentos daqueles, que a todo o momento, a (re)constroem. São várias as abordagens realizadas sobre o conceito a ser estudado, estando no centro do conflito diversas dicotomias, como: objetivo e subjetivo, sensível e factual, físico e fenomenológico. Pensar a paisagem em toda a sua complexidade é estar ciente destas dicotomias, podendo ser explicitada na relação entre objeto e sujeito, em que nas palavras de Berque (2004), compreende-se que: A paisagem não reside somente no objeto, nem somente no sujeito, mas na interação complexa entre os dois termos. Esta relação coloca em jogo diversas escalas de tempo e espaço, implica tanto a instituição mental da realidade quanto a constituição material das coisas (BERQUE, 2004, p.85).

Além dos aspectos materiais que envolvem a paisagem, é essencial levarmos em conta a subjetividade que está contida na paisagem do Benfica, assim como as ações dos sujeitos. As modificações realizadas na paisagem por estes, não são consequências somente dos padrões de consumo impostos pela sociedade moderna, pois nessa encontramos os sentimentos e as simbologias. Para muitos, o Benfica vai além de um simples bairro de Fortaleza, apresentando-se como um lugar que simboliza “segurança”, acolhimento e Liberdade. Esta observação pode ser conferida nas manifestações de cunho político e ideológico realizadas no bairro, na qual podemos explicitar como exemplo o movimento LGBTT1 e suas reivindicações. Assim, na paisagem do Benfica, o bairro se mostra como palco de momentos singulares na cidade de Fortaleza. 1

Significado da sigla LGBTT – Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais.

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Portanto, estudar a paisagem do Benfica é perceber no seu conjunto arquitetônico e em sua dinâmica social, propiciada pelos estudantes, servidores, professores e moradores a singularidade que este bairro possui, principalmente, após a criação da universidade. Entendemos que a universidade é o lócus de produção de conhecimento e onde se faz presente, de forma constante, novas ideias. Nesta perspectiva, o Benfica se configura como espaço do novo na cidade de Fortaleza, apresentando em seu cotidiano, através das práticas sociais características de vanguarda frente aos demais bairros de Fortaleza. Outro ponto relevante para a análise é discutir o lazer e a boemia, pois ambos estão fortemente presentes na paisagem do Benfica. O lazer se apresenta nas festas que acontecem no bairro, organizadas por estudantes as chamadas “calouradas”, em que os discentes veteranos preparam a recepção dos novos alunos recém-ingressos na Universidade. Assim como o lazer, a boemia se faz presente de forma intensa no Benfica, evidenciando esta outra possibilidade do ir e vir de moradores e transeuntes neste espaço, fato perceptível às noites caminhando pelo bairro, na concentração de estudantes, professores, artistas nos bares do Benfica. Vale ressaltar, que a maioria do público que frequenta os estabelecimentos ligados ao lazer e a boemia, possui, ou já possuiu alguma ligação com a UFC, assim como, com as outras instituições de ensino do bairro, destacando o IFCE, dentre outros. Continuando as abordagens referentes a paisagem do Benfica, o comércio também possui significância no bairro, onde mais uma vez destacamos a sua relação com a educação, pois muitos destes estabelecimentos comerciais, têm como objetivo principal, atender a demanda do público que reside e frequenta o bairro, destacando-se as papelarias, livrarias, lan-

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chonetes e lan houses. Outras edificações também epossuem uma relação direta com a educação, as quitinetes, moradias com preços acessíveis para os estudantes que vêm de outros lugares do Brasil e do mundo. Assim, entendemos a relevância do bairro dentro do contexto urbano de Fortaleza, destacando a universidade no processo de construção da paisagem, fazendo-nos refletir que apesar da paisagem urbana ser múltipla e diversificada, em muitos lugares encontramos significados e símbolos que refletem a cultura no espaço urbano. Em relação a presente análise, Netto e Alves (2011) descrevem que: A paisagem urbana pode ser vista, modificada, usada, destruída, consumida, vendida e também pode causar prazer estético, sendo tratada, por vezes, apenas como um “produto” sociocultural. Mais do que isto, ela é constitutiva das relações socioculturais, pois é, ao mesmo tempo, estruturada e estruturante. Sendo assim, paisagem é uma configuração de símbolos e signos socioculturais dispostos a inúmeras interpretações e percepções subjetivas, principalmente diante dos complexos processos urbanos da atualidade. (NETO E ALVES, 2011, p.15).

Nesse sentido entendemos que a cidade é interpretada como sendo o palco onde se produzem e se revelam inúmeras transformações sociais e culturais, operando em diversas direções numa intensa rede de relações. Dessa maneira, a paisagem urbana não pode ser concebida como uma forma que se produz simplesmente pela quantidade de moradias ou pelo adensamento populacional. É preciso assumir a perspectiva de uma construção coletiva que envolve as representações e imaginações como estratégias para a compreensão das simbologias da paisagem.

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A paisagem cultural não pode ser vista como única, mas como múltipla. Nela existem diversos olhares e vários fragmentos de diferentes realidades temporais que revelam a relação do indivíduo e dos segmentos sociais com o lugar, assim, como os valores dominantes nacionais e transacionais que influenciam este processo. A cidade de Fortaleza, neste contexto, é resultante de processos históricos, sociais e culturais. Estes foram associados a diferentes valores e definições, tornando a metrópole cearense singular e complexa. As paisagens na cidade apresentam estas características, podendo ser analisadas através dos seus prédios, avenidas, bairros e suas funcionalidades, que representam tempos diversos, o ontem, o hoje, e projeção do que será o futuro, vislumbrado nas novas construções, nas reformas e nas novas práticas culturais. Vislumbrando o ontem e o hoje no Benfica, enquanto processo de acumulação, na desconstrução e construção, concentrou instituições de ensino superior, tecnológico e profissional. Não obstante encontrarmos, também, escolas da educação básica como o Colégio Farias Brito, o Christus e o Colégio Adventista, de caráter privado e escolas públicas de ensino fundamental e médio com a do Centro dos Retalhistas, Figueiredo Corrêa e o Centro de Educação de Jovens e Adultos. Também há no Benfica centro de ensino técnico profissionalizante de caráter privado, que é o caso do CEPEP2 oferecendo cursos técnicos e profissionalizantes. A concentração de instituições educacionais no Benfica transformou o bairro, ampliando suas funções e atraindo novos projetos, propiciando novos olhares e novas temáticas para os estudiosos do espaço urbano, em especial, aqueles que 2

Significado da sigla CEPEP – Centro de Estudo e Pesquisa em Eletrônica Profissional e Informática Limitada.

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pesquisam as relações entre paisagem e educação. Neste sentido, o Benfica pode ser considerado, como já apresentamos, um bairro singular na cidade de Fortaleza.

A Fotografia como Possibilidade de Leitura da Paisagem no Benfica da Educação No contexto da presente análise, a fotografia será o nosso principal suporte enquanto registro de diferentes períodos e testemunhos das modificações da paisagem do bairro. Ela apresenta-se como um importante instrumento para a pesquisa. A partir de sua análise, somos conduzidos a uma área do conhecimento que trata das criações e produções deixadas pelo homem ao longo do tempo, refletidas através das experiências, dos significados e das simbologias. Aumont (1993) nos mostra a relação entre imagem paisagem e fotografia. Para o autor, a fotografia é ligada a multiplicidades de linhas graduadas na vida social, onde o pano de fundo são as narrativas acerca da paisagem. De tal modo entendemos que a paisagem possui uma ligação direta com as imagens e suas formas de representação Na imagem fotográfica estão indissociavelmente incorporados elementos materiais, ou seja, os de ordem técnica, que são os ópticos, químicos, eletrônicos, indispensáveis para a materialização da fotografia, mas, também estão presentes os elementos de ordem imaterial, que são os imagéticos e os culturais. “Estes últimos se sobrepõem hierarquicamente aos primeiros e, com eles, se articulam na mente e nas ações dos fotógrafos ao longo do tempo” (KOSSOY, 2012, p.27). Através das análises das imagens fotográficas podemos apreender a história de uma determinada sociedade, assim como as práticas culturais. De acordo com Kossoy (2012) os

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conteúdos das imagens sempre devem ser considerados como fontes históricas de abrangência multidisciplinar, podendo tornar-se uma fonte decisiva nas diferentes vertentes da investigação histórica. Continuando as abordagens realizadas por Kossoy (2012): As fotografias não se esgotam em si mesmas, elas são apenas o ponto de partida, a pista na busca de desvendar o passado. Elas nos mostram um fragmento selecionado das coisas, dos fatos, das pessoas, tal como foram congelados num dado momento de sua existência/ocorrência (KOSSOY, 2012, p.37). Foto 1 – Avenida da Universidade em 1938.

Fonte: portal arquivo Nirez.

As fotografias são um ponto de partida para desvendar o passado. Observamos que na foto acima podemos analisar diversos aspectos referente a história do bairro, assim como as mudanças na sua paisagem ao longo do tempo. Esta imagem retrata a avenida Visconde do Cauípe, que atualmente

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tem denominação de avenida da Universidade, recebendo este nome devido a importante presença da UFC no bairro. Diversas são as informações nesta fotografia, onde observarmos ao fundo o bonde na linha do Benfica. Do lado direito, se encontra o muro da casa de propriedade da Imobiliária Frota Gentil e onde moravam senhor Aziz Kalil, avô do senhor Tasso Jereissati, posteriormente o senhor José Albuquerque Monteiro e por último o casal Heitor e Nancy de Albuquerque Gentil, quando o imóvel junto com os outros dois desta quadra foram vendidos para a UFC. O muro seguinte é o da casa de José Campos Paiva e dona Beatriz Gentil Campos; o próximo é o Palacete do cel. José Gentil Alves de Carvalho. Do lado esquerdo está o muro da Chácara do doutor Edgar Cavalcante de Arruda, atual CETREDE – UFC. O imóvel seguinte era a chácara de propriedade de Manuel João Alpiniano Pombo, que, com a venda da chácara para Almerinda Albuquerque foi instalado no local o Ginásio Santa Cecília, adquirido posteriormente pelas Irmãs Damas da Instrução Cristã. (VASCONCELOS JÚNIOR, 1999). Com relação a fotografia apresentada acima da avenida da Universidade, observamos que a UFC adquiriu diversos imóveis, alterando as funcionalidades e a estrutura física, mesmo que na maioria das situações tenha preservado os estilos originais dos prédios antigos. Já a próxima fotografia retrata uma imagem aérea da av. da Universidade juntamente com o cruzamento da av. 13 de maio no ano de 1968. Nesta foto notamos um cenário mais moderno que a outra apresentara, avistando transportes atualizados para época, vias pavimentadas e na parte inferior da imagem o imóvel da Casa de Cultura Germânica e o Palacete Gentil (Reitoria), foram adquiridos pela Universidade no ano de 1956. Imóveis vendidos pela Imobiliária Frota Gentil. Estes imóveis passaram por

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diversas reformas, como a que ocorreu no ano de 1959, com a inauguração do auditório ao ar livre, denominado Concha Acústica. As reformas no Palacete (Reitoria) foram de ampliação e o seu estilo neoclássico foi respeitado. A Reitoria é o prédio mais bem preservado da cidade e o maior representante deste estilo arquitetônico da cidade de fortaleza. Foto 2 – Avenida da Universidade em 1968.

Fonte: portal arquivo Nirez.

A partir das imagens do bairro podemos constatar, tendo por base as ideias apresentadas por Kossoy (2012), que a fotografia é uma representação a partir do real segundo o ponto de vista do seu autor. Entretanto, levando em conta a materialidade registrada na imagem, a aparência de algo que se passou na realidade concreta, em dado espaço e tempo, pode ser considerada, também, como documento do real, uma fonte histórica (KOSSOY, 2012). A imagem fotográfica contém em si o registro de um fragmento selecionado do real: o assunto (recorte espacial)

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congelado num determinado momento de sua ocorrência (interrupção temporal). Em toda fotografia há um recorte espacial e uma interrupção temporal, fato que ocorre no instante do (ato) registro (KOSSOY, 2012, p.29). Os registros deixados pelas fotografias nos revelam um campo de conhecimento que trata das criações e produções humanas como uma experiência sensível do mundo, oferecendo diversas leituras. Para observar uma imagem é necessário ter em mente alguns objetivos sobre o que se ver e ler. Podem ser identificados na leitura de imagens aspectos referentes aos sentidos e aos significados, que remetem ao simbólico. Portanto, nas imagens fotográficas encontramos explicações de diversas realidades, pois estas guardam com elas vestígios do cotidiano e do imaginário popular (COELHO, 2009). As fotografias projetam elementos culturais que mantêm o universo imaginário, revelando sistemas de expressão que afetam e interferem na rede de possibilidades do observador. Ela é um documento que transmite significados culturais envolvendo múltiplos olhares na rede simbólica da paisagem, seja ela urbana ou rural. Nela percebemos a interação indissociável entre elementos subjetivos e objetivos. Quem a observa se depara com um mundo real projetado em um suporte material, sem descartar o caráter imaginário estabelecido na dimensão perceptiva que vai além do senso comum. As fotografias do Benfica não são um símbolo neutro, possuindo diferentes simbologias e múltiplas interpretações. Em sua análise percebemos aspectos relacionados a economia, a história e a cultura, que podem serem analisadas através das práticas cotidianas, incluindo aquelas ligadas ao lazer e a boemia, presentes intensamente na paisagem do bairro.

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Foto 3: Bar Cantinho Acadêmico

Fonte: Jornal Diário do Nordeste

Dubois (1993) por sua vez ressalta que a fotografia não é um símbolo neutro, possuindo codificações de diferentes temáticas no imaginário da sociedade, emergindo quadros que são determinados ou determinantes culturais. Para o mesmo tudo que se impõe ao receptor é fruto de uma concepção que necessita de um aprendizado, de um conhecimento que são representados através da cultura e das experiências vividas. A paisagem é um reflexo aparente da sociedade, em que a fotografia serve de instrumento para análise da mesma, nos mostrando os significados e simbolismo que perpassam o tempo. A sua análise enfatiza diversas leituras fundamentadas na representação da realidade, modeladas por estruturas profundas ligadas a um exercício de uma linguagem imagética carregada de uma organização simbólica para os sujeitos envolvidos na rede de significados. Nesse sentido, centramos em nossos esforços compreender as características atribuídas à fotografia, entendendo suas representações na paisagem do Benfica dentro do con-

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texto de criação, apropriações espaciais e permanência da UFC, objeto que esta dissertação pretende compreender. Portanto, compartilhamos daquilo que a fotografia expressa em seu sentido mais amplo, o sentido de representar o mundo.

Considerações Finais Para esta pesquisa, o conceito de paisagem foi de fundamental relevância, a medida permitiu referenciar teoricamente e compreender como ocorreu o processo de modificação da paisagem do bairro Benfica a partir de uma instituição de ensino superior. Esta abordagem partiu da necessidade de ampliar a nossa capacidade e olhares para a construção do espaço geográfico a nossa volta. Analisando a paisagem do Benfica, acredita-se que sua leitura através da fotografia possa ser um instrumento teórico-metodológico que possibilite a construção de uma das tantas, interpretações possíveis das paisagens urbanas. Ao analisar as fotografias, somos conduzidos para outros tempos, que nos levam a reconstruir narrativas sobre as formas de interação que uma sociedade constrói na relação com a natureza e na transformação do espaço onde vive. A partir deste contexto, pesquisar a paisagem do Benfica é perceber o jogo da modernidade e sua permanente necessidade de transformação. Na análise, apreendemos que foram criadas singularidades em sua paisagem, percebidas nas práticas sociais, no cotidiano das famílias que ali moram, nos funcionários públicos da UFC, nos estudantes universitários, na tradicional feira livre, na suas praças e sob a sombra das velhas mangueiras.

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PAISAGEM, MOVIMENTO, PERFORMANCE Jörn Seemann

Será que o conceito de paisagem se tornou uma ideia ultrapassada na Geografia? No decorrer dos últimos cem anos, surgiram muitas perspectivas diferentes, convergentes e divergentes acerca daquilo que o olho vê e a mente pensa quando confrontados com o espaço observado. Não se deve falar de uma evolução do conceito de paisagem desde as concepções mais “primitivas” até os arcabouços pós-modernos e pós-estruturalistas mais sofisticados. Trata-se de um processo em constante criação, um devir e convite para repensar a ideia. Essa diversidade e multivocalidade conceituais têm gerado muitos conflitos e incertezas entre os geógrafos. Não existem definições corretas ou erradas do conceito de paisagem. Há diferentes modos de ver e compreender (MEINIG, 2003; COSGROVE, 1998). Em outras palavras, cabe dizer que a discussão sobre paisagens literalmente está criando “paisagens intelectuais”. Cada abordagem tem as suas limitações e merece uma análise mais aprofundada. Sempre falta um aspecto, um detalhe ou um ângulo que não é levado em conta nesses modos de pensar. Sob essa premissa, o objetivo deste artigo é refletir sobre o potencial da ideia de paisagem na Geografia em face de novas teorias e metodologias nas ciências sociais e nas humanidades. Para esse debate, introduzo dois modos emprestados de áreas de conhecimento como teatro, arqueologia e antropologia que possam enriquecer a discussão: mobilidade e performance. Dividi o texto em três partes: na primeira, relato brevemente as tensões geradas pelo conceito de paisagem. Em seguida, apresento algumas reflexões sobre “paisagens

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em movimento” e possíveis formas performativas de diálogo entre o observador e o observado. A terceira parte inclui um estudo de caso sobre paisagem, mobilidade e performance, tendo como palco o Cariri cearense.

Paisagens em Tensão O conceito de paisagem na cultural ocidental surgiu no final do século XV como uma forma de ver o mundo externo, tendo como base o humanismo renascentista e suas concepções do espaço (COSGROVE, 1985, p.46). Com a consolidação da Geografia como disciplina acadêmica ainda no século XIX, a ideia de paisagem se tornou um dos conceitos centrais nos debates. Portanto, muitos geógrafos restringiram o estudo da paisagem às marcas visíveis. Forças mentais e práticas sociais que moldaram a paisagem não pertenciam ao objeto de estudo da Geografia (SCHLÜTER, 1906; SEEMANN, 2004). De certa forma, essa concepção reflete a definição do termo, que ainda pode ser encontrada em dicionários dos dias atuais: “extensão de território que se abrange num lance de vista”.1 Paisagem era o que o olho via e que os pintores paisagistas retrataram nas suas telas. Sob a influência de autores europeus, o geógrafo norte-americano Carl Ortwin Sauer (1889-1975) refinou esses princípios sobre o conceito, estabelecendo uma relação mais forte entre o meio ambiente e a produção humana do espaço. Para Sauer, o ponto de partida era a paisagem natural que seria transformada pelas ações antrópicas: “a paisagem cultural é modelada a partir de uma paisagem natural por um grupo cultural. A cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural é o resultado” (SAUER, 1998, p.59). Se1

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=paisagem

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gundo essa posição, paisagens eram vistas como produtos das interações entre as condições físicas (tempo, relevo solos etc.) e as práticas culturais (agricultura, atividades socioculturais etc.), o que, em décadas posteriores, gerou um atrito entre fatos objetivos e significados subjetivos e uma divisão artificial entre o meio físico e as ações humanas. Nos tumultuosos anos 70 do século XX, havia diversas reações políticas e filosóficas na Geografia, muitas como contracorrentes à Geografia quantitativa. Geógrafos humanistas se apropriaram do conceito de paisagem para revelar experiências, valores e conhecimentos humanos (TUAN, 1976; LEY e SAMUELS, 1978; MEINIG, 1979,) e interpretar paisagens vernaculares (JACKSON, 1984). Paralelamente, cientistas sociais marxistas submeteram o conceito de paisagem a uma análise crítica. Com base em pinturas artísticas, esses autores argumentaram que paisagens tinham uma carga simbólica e ideológica, responsável pela projeção de um modo de ver, muitas vezes hegemônico (BARRELL, 1980; COSGROVE, 1984). Mais recentemente, geógrafos culturais começaram a investigar o simbolismo e as camadas de ideologia em paisagens do presente, concebendo-as como resultados de lutas sociais (COSGROVE, 1998; MITCHELL, 1996, 2003, 2008). As diferentes abordagens sobre a paisagem sempre enfatizam um aspecto e deixam de lado, outros. Uma perspectiva meramente visual exclui processos sociais, o imaginário e interesses políticos, enquanto um enfoque na carga simbólica dá pouca atenção aos aspectos materiais. Portanto, essas tensões a respeito do conceito de paisagem não devem ser consideradas como impasses ou obstáculos, mas como desafios criativos e produtivos para interpretar e escrever sobre paisagens à luz de diferentes aportes filosóficos e agendas políticas que fundamentaram essas concepções (WYLIE, 2007, p.2).

PAISAGEM, MOVIMENTO, PERFORMANCE

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Uma das críticas mais pertinentes ao conceito de paisagem é a separação entre o observador e o espaço observado. O que permeia como ideia amplamente aceita é a imagem do pesquisador como figura externa da paisagem observada, alguém que registra fenômenos e processos de uma posição privilegiada, sem interferir no espaço. Em outras palavras, a paisagem nos distancia do mundo de uma maneira crítica, definindo uma relação particular com a natureza e aqueles que aparecem na natureza, e nos dá a ilusão de um mundo no qual podemos participar subjetivamente ao entrar na moldura da imagem seguindo a linha da perspectiva. Mas isso é uma entrada estética e não um engajamento ativo com a natureza ou o espaço que tem a sua vida própria (COSGROVE, 1985, p.55).2

Mais recentemente, geógrafos, antropólogos e arqueólogos começaram a repensar a paisagem com ênfase em aportes filosóficos da fenomenologia (TILLEY, 1994; HIRSCH e O’HANLON, 1995; INGOLD, 2000; WYLIE, 2007), retomando ideias como a noção heideggeriana de “habitar” e inserindo o observador dentro da paisagem. Desta maneira, o estudo de paisagens se torna uma experiência direta, porque o observador participa com o seu corpo nessas “paisagens de prática”, abrindo novas dimensões para a pesquisa: O desafio para os geógrafos culturais que estudam paisagens é como produzir geografias que são vividas, corporificadas e praticadas; paisagens que nunca se finalizam ou completam, que não são fáceis de serem emolduradas ou lidas. Essas geografias devem ser tanto sobre o dia-a-dia e o que não é excepcional como sobre o que é grande e distinto (CRESSWELL, 2003, p.280-281).

2

Todas as traduções do inglês para o português são de minha autoria.

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Paisagens são processos e não produtos, processos dinâmicos e em constante formação, nunca acabados que convidam o geógrafo/a geógrafa com seu corpo e seus sentidos a se entrosar. Neste contexto, dois mecanismos que não fazem parte do repertório tradicional dos conceitos geográficos dão suporte a essa abordagem: a mobilidade e a prática.

Movimento e Performance “Estar-na-paisagem” implica um modo diferente de trabalhar com o conceito de paisagem. Primeiro, os seres humanos na paisagem não são elementos estáticos como árvores ou prédios, mas seres móveis que se movem e locomovem, seja andando, pedalando na bicicleta, no carro, no avião ou outras modalidades (VANNINI, 2009; CRESSWELL e MERRIMAN, 2011), em escalas e dimensões diferentes desde viagens curtas de lazer até migrações internacionais de refugiados. Nos últimos dez anos, geógrafos culturais começaram a ler o espaço a partir do movimento, concebido como um aspecto central da vida humana e essencialmente espacial: “Por que se equipara a Geografia com fixidez e inércia? A mobilidade é simplesmente tão espacial – e tão geográfica – e tão central na experiência humana do mundo como o [conceito de] lugar [...] Mobilidade é uma forma de estar-no-mundo” (CRESSWELL, 2006, p.3). Há autores que falam de uma “virada de mobilidade” ou de um “paradigma de novas mobilidades” nas ciências sociais e nas humanidades (SHELLER; URRY, 2006; CRESSWELL, 2010), mas, na verdade, trata-se apenas de uma maneira diferente de ler o espaço. Nas pesquisas, é dada mais atenção aos processos e à “percepção-em-movimento” de modo que

PAISAGEM, MOVIMENTO, PERFORMANCE

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A paisagem deixa de ser entendida como um olhar fixo, estático e emoldurado e se torna a verdadeira interconectividade entre olho, corpo e terra, um ambiente perceptual e material que emerge constantemente. Desta, maneira, o que se escreve nessa área se ocupa com a experiência pela mobilidade, como ser e se tornar móvel (WYLIE, 2007, p.177).

O movimento é uma prática ou performance que uma pessoa realiza. Geografia significa movimento e mobilidade, e não há movimento sem ação. Por essa razão, a mobilidade não pode ser separada da prática ou da performance. O fim do século XX registrou outra virada, uma “virada performativa”, inspirada em novas maneiras de compreender o mundo, oriundas das mais diversas áreas de conhecimento desde estudos teatrais, antropologia, linguística e psicologia até a história da arte, filosofia e estudos da cultura visual que favoreceram a prática com os seus fluxos e redes a não a representação e sua fixidez (PERKINS, 2009, p.126). Em meados dos anos 1990, um grupo de geógrafos britânico definiu essa abordagem como “teoria não-representacional”. A ênfase está em práticas e formas não discursivas como teatro, dança, música e arte de performance e suas diferentes teorias e não nas representações e suas interpretações que se baseiam em modelos contemplativos de pensamento e ação. O pesquisador/ observador inevitavelmente se torna parte do cenário: “Não há lugar para o pesquisador se esconder: ele/ela precisa estar lá dentro/no meio do movimento” (THRIFT, 2000, p.556). Como funciona na prática? Um exemplo ilustrativo é a performance do projeto “As primeiras cinco milhas: a guerra do pequeno inglês” (PEARSON; SHANKS, 2001, p.142-146). O trabalho se baseia em uma história real sobre Augustus Brackenbury, um inglês que comprou mais do que 300 hectares de terras pantanosas no País de Gales em 1820, com a

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intenção de construir uma propriedade particular para a caça. Portanto, a população local que usava a área como pasto para os animais e explorava o turfo dos pântanos como combustível se opôs ao projeto e frustrou todas as tentativas do inglês de erguer uma casa. Em agosto de 1998, o teatrólogo Mike Pearson se vestiu como um cavalheiro vitoriano, empacotado em uma sobrecasaca, um colete bordado, perneiras de couro, uma cartola e luvas e carregando um microfone, uma unidade de baterias, fones de ouvido, um receptor e uma lâmpada de halogêneo para reviver as experiências de Brackenbury. Pearson caminhou por cinco milhas na paisagem dos pântanos galeses, acompanhado de um colega que carregava uma mochila com um rádio transmissor. As conversas da caminhada foram transmitidas, ao vivo, por ocasião de um programa de rádio bilíngue (inglês e galês) sobre o conflito histórico. A performance provocou uma discussão sobre autenticidade e identidade. Os ouvintes do programa começaram a especular sobre os acontecimentos na segunda década do século XIX, interpretando e questionando fatos, criando, desta maneira, um “mapa profundo” do lugar (p.144) e estabelecendo um diálogo entre o passado e o presente. Neste contexto, performance, história e geografia se complementaram como mistura de narração e prática científica e como abordagem integrada para gravar, descrever e ilustrar o mundo material do passado e do presente. Em outras palavras, atividades humanas são inscritas dentro da paisagem de tal maneira que cada falésia, árvore grande, riacho, pântano se torna um lugar familiar. As passagens diárias pela paisagem se tornam encontros biográficos para indivíduos, relembrando traços de atividades do passado e eventos anteriores e a leitura de signos – um tronco partido aqui, um marcador de pedra acolá. Por

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isso, todos os locais e paisagens estão embutidos nos tempos sociais e individuais da memória. Tanto os seus passados como seus espaços são crucialmente constitutivos dos seus presentes (TILLEY, 1994, p.27).

A combinação de movimento e prática não apenas ajudou a reconstruir o passado, mas também ressignificou processos e acontecimentos. O que tinha validade no passado, mas tem necessariamente o mesmo significado no presente. No caso da performance “As primeiras cinco milhas”, Mike Pearson se sentiu como um cavalheiro vitoriano, embrulhado em várias camadas de roupa. No lugar da população local hostil que abandonou o lugar ainda no século XIX, havia grupos de espectadores curiosos que observaram a performance a distância, por cima das colinas da região, escutando a cobertura na rádio.

(E)moção e Paisagem no Cariri Cearense A última parte deste ensaio consiste na breve descrição de uma experiência empírica no Cariri cearense durante a qual tive a oportunidade de pensar sobre paisagens, movimento e performance. Por ocasião da elaboração da minha tese de doutorado (SEEMANN, 2010), realizei um estudo cartográfico-performativo sobre as trajetórias do botânico brasileiro Francisco Freire Alemão (1797-1874) que, como presidente da Comissão Científica de Exploração, passou três meses na região, entre dezembro de 1859 e março de 1860, para coletar e estudar plantas.3 Durante a sua estadia, o cientista passou muito tempo coletando e classificando espécies 3 Para detalhes sobre as atividades da Comissão Científica de Exploração, também

conhecida pelo nome “Comissão das Borboletas”, veja Braga (1962), Porto Alegre (2003) e Kury (2009).

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botânicas, mas também se socializou com a população local. A convite de um fazendeiro, Freire Alemão realizou uma viagem curta de poucos dias para Pernambuco, atravessando a Chapada do Araripe várias vezes (Mapa 1). Ele anotou as suas observações sobre essa viagem minuciosamente no seu diário (FREIRE ALEMÃO, 2007). Com base nas suas descrições, procurei reconstruir o seu itinerário quase 150 anos depois da sua passagem pelo Cariri. Em seguido, apresento algumas reflexões sobre a reconstrução desse percurso. Mapa 1 – Itinerário da viagem de Freire Alemão (os números representam as diversas paradas no caminho)

No dia 30 de janeiro de 1860, às nove horas da manhã, Freire Alemão saiu a cavalo da cidade de Crato em companhia do zoologista Manuel Lagos, um coletor de plantas, um guia local e um escravo chamado Domingos para subir no paredão da Chapada do Araripe “pela ladeira do Belo Monte, que estava bastante arruinada, pelas últimas chuvas” (FREIRE ALEMÃO, 2007, p.45). O grupo de viajantes alcançou o topo do platô depois de uma hora e meia e seguiu a viagem por meio de uma vegetação de carrasco e sob um sol escaldante.

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Imagino Freire Alemão montado em um cavalo, seguindo uma trilha de terra, passando por casas coloniais e de pau a pique e depois propriedades rurais e engenhos, observando a paisagem e as variações na vegetação. Minha viagem é menos difícil, mais rápida, até rápida demais. Quase 150 anos depois, no dia 7 de julho de 2009, preparo a minha rota. Às sete e trinta da manhã e em companhia de um amigo, encontro o motorista da Universidade Regional do Cariri que nos levará nessa viagem em uma Kombi VW muito “batida”. Combino o itinerário com ele e sento-me na poltrona ao seu lado, um conjunto de cartas topográficas da área na escala 1: 100000 no meu colo. Durante a viagem tiro fotos da vegetação e da estrada e produzo alguns clipes de vídeo das paisagens que registro de passagem. Paisagem de passagem – essa foi boa. Da janela da Kombi, tenho a impressão de que a paisagem está se movendo e não o carro. Devido ao movimento, muitas imagens ficaram sem foco. O para-brisa serve como moldura, enquanto os limpadores e algumas rachaduras verticais no vidro marcam uma presença permanente nas fotos (figura 1). Figura 1 – O para-brisa como moldura de fotos (foto do autor, 2009)

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No final do primeiro dia da viagem, Freire Alemão e seus companheiros desceram uma ladeira íngreme, “ainda mui toscamente feita” (FREIRE ALEMÃO, 2007, p.46), e chegaram ao lado sul da chapada, “estrompados, suados e cobertos de poeira” (ibidem). Iam ficar na vila de Exu, um povoado “insignificante, de aspecto triste e miserável: a matriz que nunca se acabou, está caindo em ruínas, nunca foi rebocada e por dentro [...] está inteiramente nova” (FREIRE ALEMÃO, 2007). Diferentemente de Freire Alemão, nossa Kombi não encontra o povoado na primeira tentativa. O motorista desce com muita velocidade de modo que nem tive a chance de perguntar alguém ou consultar o mapa. Há 150 anos, Exu era uma vila nas encostas da chapada, mas devido aos frequentes desmoronamentos, a cidade foi transferida para uma área menos perigosa a cerca de dez quilômetros de distância. A minha carta topográfica não deixa dúvidas: Exu está lá, mas não é o Exu que procuro. No centro da cidade, alguns moradores me informam que o povoado agora é chamado de Gameleira. Outros nem sabiam que existia um Exu Velho. Confiro a informação no mapa. Achei! Lá está o local. Voltamos no caminho e localizamos a entrada que nos leva para uma fazenda, onde a proprietária confirma os nossos dados. Pergunto pela igreja “em ruínas” e ela aponta para uma trilha atrás da casa, um caminho quase fechado, com densa vegetação rasteira. De repente, os grossos muros da igreja aparecem, uma estrutura bombástica com arcos góticos, uma fortificação sem teto. Em baixo da vegetação, há restos dos alicerces, até uma cruz de madeira... e cobras. Sinto-me traído pelo Freire Alemão que escreveu no seu diário que “em toda a minha viagem pelo sertão não tive ocasião de encontrar uma serpente de qualquer natureza” (FREIRE ALEMÃO, 2007,

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p.125). Encontrei duas e a pele morta de outra. Nem falo do marimbondo que me atacou. As paredes massivas da igreja foram pichadas com inúmeros grafites, a maioria riscada nos muros mais do que três décadas atrás: Ana, Maria, Pinau, Dumga, Vita, Edna, Zezé, Estácio, Ribamar, Fitita, Lala… Alguns grafites têm data: o tenente Gusmão esteve lá no dia 14 de dezembro de 1967 e o Pedrinho em 16 de setembro de 1968. Freire Alemão esteve lá no dia 1º de fevereiro de 1860, mas ele não deixou uma mensagem para a posteridade (figura 2). Figura 2 – Marcadores humanos nas paredes da igreja (foto do autor, 2009)

Freire Alemão e eu enfrentamos muitos outros desafios no percurso da nossa viagem, mas cada um em seu ritmo. Tento imaginar como o botânico teria concebido a paisagem dentro de um carro. Penso em realizar a travessia pela chapada a pé. Na descrição do meu percurso, relatei as minhas dificuldades de geografizar a paisagem em movimento. O meu motorista, evidentemente, estava com pressa de chegar a um lugar e depois a outros, enquanto eu me interessava pela viagem e pelo movimento, atravessando uma paisagem que nada mais é do

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que o caminho e a conexão entre lugares, porque “lugares não têm locações, mas histórias. Amarrados pelos itinerários dos seus habitantes, lugares existem não no espaço, mas como nodos em uma matriz de movimentos” (INGOLD, 2000, p.219). Falar sobre cobras e marimbondos parece uma banalidade ou até uma “quebra-de-decoro” no ambiente de produção textual acadêmica. As únicas fontes sobreviventes sobre o Freire Alemão são o seu diário e o acervo da sua correspondência e dos seus inúmeros desenhos botânicos na Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro. Há apenas um mapa que o cientista esboçou durante a sua estadia em Exu, mas nenhum registro das paisagens da região. Os conteúdos do seu diário não dizem muito a respeito da sua vida cotidiana. Freire Alemão sua, sofre com o calor e fica de cama por mais do que uma semana para se curar de uma tosse persistente e uma gripe muito forte. Uma frase se repete frequentemente no seu relato pessoal: “de manhã estudei algumas plantas”. A nossa base é o texto que o botânico escreveu e não a sua experiência vivida. Ao reconstruir o percurso de Freire Alemão, procurei não apenas conhecer os lugares que ele visitou, mas também imaginar como se relacionou com a paisagem. Daí o termo (e)moção, uma mistura de emoção e movimento, uma imersão na paisagem (CRAINE e AITKEN, 2009; SEEMANN, 2012). Não sei se consegui me aproximar das paisagens pessoais do cientista.

Considerações Finais As paisagens não mudaram, mas o que mudou foram as maneiras de concebê-las. Este breve ensaio teve como objetivo repensar a ideia de paisagem à luz de novos focos. Meu maior argumento é que esse conceito pode ganhar novos impulsos quando combinado com mobilidade e performance.

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Sob essa ótica, paisagens se tornam paisagens vividas, “mediadas, trabalhadas, alteradas, repletas com significados e simbolismo e não apenas algo que se olha ou pensa, objetos para contemplação, visualização, representação e estetização” (TILLEY, 1994, p.26). Pode-se acrescentar mais uma definição à longa lista de definições do termo paisagem: “conjuntos percebidos e corporificados de relações entre lugares, a estrutura de sentimentos humanos, emoção, habitar, movimento e atividade prática dentro de uma região geográfica que pode possuir ou não fronteiras ou limites topográficos (TILLEY, 2004, p.25). Apresentei duas miniaturas para indicar possíveis caminhos para pesquisas. Portanto, os dois exemplos traduzem essas experiências apenas de uma maneira insuficiente, porque, afinal de contas, são apresentados em forma de textos que, por sua vez, não substituem as práticas espaciais corporificadas e as expressões de afeto, rejeição ou emoção da pessoa que experimentou e “habitou” a paisagem diretamente: “o texto presta tributo às vidas ordinárias inadequadamente porque valoriza o que é escrito ou falado e não as práticas e experiências multi-sensuais” (NASH, 2000, p.655). Estas reflexões servem como convite para repensar o conceito de paisagem, experimentar novas metodologias (inter e/ou transdisciplinares) e literalmente “adentrar” mais no espaço geográfico. Afinal, a Geografia também se consolida na prática e no movimento e não apenas no discurso.

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CAPÍTULO 4

Políticas Educacionais na Dinâmica Espacial

A EDUCAÇÃO COMO PRÁXIS TEOLÓGICA NA CONSOLIDAÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO PRESBITERIANISMO EM GARANHUNS-PE Carlos Roberto Cruz Ubirajara

Introdução A Educação brasileira sob a perspectiva da religião sempre ressaltou a atividade educacional católico-romana e preteriu as contribuições dos protestantes. Exemplo disso é Fernando Azevedo (1976, p.35) que, ao comentar a educação, no final do século XIX, destaca a católica e pouco mencionada protestante, dando a impressão de que esta contribuiu muito pouco com este segmento da sociedade. Assim, nos últimos anos acentua-se significativo debate da educação sob a perspectiva da religião focalizando ambas as tendências religiosas visualizando suas contribuições. No presente texto buscaremos refletir na tentativa de esclarecer – delimitando o presbiterianismo – que a educação sempre fez parte da práxis protestante e que suas missões entenderam que ela seria indispensável na implantação e consolidação do protestantismo no Brasil no geral e, em Garanhuns-PE de modo particular, área objeto de nosso estudo, contribuindo efetivamente para a consolidação da educação brasileira desde que aqui chegaram definindo sobretudo a sua espacialidade que é fruto de uma dinâmica proporcionada pelo diversos agentes sociais envolvidos, tendo em vista que as ações educacionais e, em alguns momentos, os conflitos que se instalaram, nesta cidade pernambucana, têm reflexo material e simbólico na produção do espaço à medida que este é apropriado pelas relações de poder, formando territórios.

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Desse modo, a presença de instituições religiosas desempenham um importante papel nas localidades em que se instalam tornando-se agentes (re) produtores de determinadas condições sociais, à medida que se apropriam, organizam, produzem e reproduzem o espaço ao seu redor, detêm significados e valores que não são meramente abstratos, mas organizados e vividos. Neste cenário entende-se que no espaço se materializam as relações sociais onde é possível a reprodução da sociedade, tendo nas ações educacionais uma forte aliada. Desta forma, podemos afirmar que o espaço da religião está incluído no espaço geográfico, pois ao se fazer uma análise, um ­estudo do profano e do sagrado, os geógrafos abordam categorias geográficas como população e território e, além disso, os fenômenos e as ações dos agentes em consonância com as ações educativas se espacializam.

A Práxis Teológica nas Concepções Educacionais Presbiterianas A educação enquanto agente de formação social transforma-se, através de suas práticas, em um importante instrumento de constituição da sociedade, contribuindo para o desenvolvimento de práticas espaciais, pois prioriza os componentes materiais, sociais, intelectuais e simbólicos da cultura do lugar em sua estrutura principal no tempo e no espaço, contribuindo para a organização geográfica das sociedades, resultando num tecido espacial cada vez mais denso, móvel, fluido e liso, que determina a estrutura geográfica complexa que a sociedade vai adquirindo no tempo. Conforme Ruy Moreira (1980) “um conteúdo social crescente impregna a essência do espaço, na medida que aumenta a densidade técnica, simbólica, econômica, política,

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cultural que dão vida e organizam a sociedade através das práticas espaciais, mudando sua natureza ontológica”. Neste sentido, a práxis enquanto processo pelo qual uma teoria, lição ou habilidade é executada ou praticada, se converte em parte da experiência vivida.Desse modo, Marx em seu clássico exemplo ilustrativo, em sua obra O Capital, compara a atividade das abelhas, ao construir a colmeia, com o trabalho de um mestre de obras ao construir uma casa. Por mais perfeita que seja a construção da colmeia, e por mais limitado que seja o trabalho do mestre de obras, este último possui algo essencialmente diferente: o mestre de obras imagina o que vai realizar, criando uma finalidade, um momento ideal, o qual almeja alcançar com seu trabalho. Marx postula a existência, pois, de um par teleológico consciente exclusivo da condição humana. Se entendermos o presbiterianismo e a educação em termos de ação, podemos a princípio, partir da conhecida Teoria da Ação Comunicativa de Jürgen Habermas (1980) para analisa-la. A Teoria da Ação Comunicativa é uma obra tardia na produção deste filósofo. Apesar de ter sido apresentada em alguns ensaios anteriores, ela tomou a forma de um livro homônimo em 1981. Stephen White (1995 p.35)) ainda nos diz que: Embora a elaboração formal da teoria da ação e racionalidade comunicativas só venha com a “virada linguística” do pensamento de Habermas, que ocorreu por volta de 1970, seu interesse por racionalidade foi evidente desde seus primeiros escritos.

O centro desta obra é ocupado por uma formulação quádrupla: Habermas (1997) afirma a existência de quatro “dimensões” de ação presentes na sociedade: teleológica, normativa, dramática e comunicativa, sendo que a primeira pode ainda se desdobrar em estratégica, afirmando a necessidade

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de se priorizar a comunicativa, evidenciando os problemas envolvidos na priorização de outras dimensões. A ação teleológica é a primeira a ser enunciada por Habermas. E é a ela que o referido autor dedica um grande espaço em seu trabalho. Neste artigo, estaremos referenciando unicamente esta dimensão com duas especificações: trabalharemos apenas com a dimensão estratégica da ação em relação com o que podemos chamar, dentro da tipologia criada por Antonio Gouveia de Mendonça (1990), de protestantismo histórico brasileiro. Sua nomenclatura deriva da palavra grega telos, que tem por significado “finalidade” ou “objetivo”. Assim, podemos afirmar que toda ação tem em si pelo menos uma “dimensão” teleológica; ou seja, todo e qualquer tipo de ação (inclusive as outras citadas por Habermas – estratégica, normativa, dramática e até mesmo a comunicativa), ainda que inconscientemente, está voltado para um determinado objetivo, uma determinada finalidade, um determinado telos. Segundo Marx, o agir teleológico do trabalho humano não será apenas um transformador do objeto. Sua atividade se dá dentro de um meio social e, nesta perspectiva, o produto de sua ação transforma este mesmo mundo social em que o homem se forma. A objetividade social é atualizada pela atividade sensível do homem enquanto sujeito. O modo de ser do homem, por sua vez, é gerado, conformado e confrontado com sua condição sócio-histórica. Portanto, no seu agir consciente, em que a partir da carência subjetiva e do conhecimento do mundo objetivo, o homem cria uma ideação, um plano de ação que pode efetuar no complexo-objeto, criando uma estrutura que servirá de bases para a própria construção subjetiva. Habermas deriva desta ação teleológica um segundo tipo, ao qual ele chama estratégica. Segundo o próprio autor, essa é uma dimensão da ação cuja utilização vem se avoluman-

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do nas sociedades modernas, sendo legitimada no âmbito econômico pelo direito privado e, no âmbito político, pela estruturação do Estado. A ação teleológica se amplia e se converte em ação estratégica quando, no cálculo que o agente faz de seu êxito, intervém a expectativa das decisões de pelo menos um outro agente que também atua com vistas à realização de seus próprios propósitos. Este modelo de ação é interpretado amiú­ de em termos utilitaristas; então se supõe que o ator elege e calcula meios e fins desde o ponto de vista da maximização de utilidade ou de expectativas de utilidade. Assim, a característica mais fundamental que difere a ação estratégica da teleológica é o fato de que ela leva em consideração o resultado de sua ação sobre pelo menos mais um ator. Diante deste contexto, chamaremos de pastoral estratégica a tendência encontrada na pastoral protestante histórica brasileira que privilegia a dimensão de ação que Habermas conceitua como tal. Da práxis enquanto axioma marxista deriva-se um corolário da maior importância: o homem vive no mundo e nele opera, sonha, ama e idealiza dias melhores, inevitavelmente promove mudanças, alterações transformações, partindo desse pressuposto basilar universal, é que podemos pensar em processos intervencionistas de educação; a educação aqui pensada como meios e ações que intermedeiam as relações intrínsecas entre o homem e a realidade social onde ele vive. É neste instante real, inseparável e indissociável de sua vivência com os meios externos circundada pela realidade que a educação ganha singularidade, importância e magnitude. O fazer educacional nas mais variadas formas e/ou práticas do fazer educacional formal que a humanidade historicamente conhece, tem sofrido inúmeras alterações ao longo de um processo histórico, econômico, cultural e social – todos esses interesses subordinados e financiados pela classe hege-

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mônica dirigente – que a humanidade conheceu até o presente independentemente do alinhamento político histórico, fato inconteste desta subordinação, tem sido o papel social que as práxis pedagógicas vêm assumindo ao longo desses períodos de construção socialmente edificada pelos homens. Desse modo, a Igreja Presbiteriana entendia que a educação seria um ponto relevante para expansão da obra missionária do Brasil “firmou-se no propósito de propagar seus princípios não apenas com a pregação do Evangelho, mas também através de escolas” (HACK, 2000, p.58). Por essa razão, os missionários abriram escolas junto às igrejas, como incentivo para que as crianças aprendessem a ler e, ao mesmo tempo, conhecessem a literatura religiosa de orientação presbiteriana. Esta ação cumpria duplo objetivo: Seria um instrumento de propagação da fé presbiteriana e havia a preocupação com a educação de inúmeros analfabetos brasileiros. Foi assim que, no final do século XIX, os presbiterianos alcançaram várias regiões brasileiras e chegaram a ter mais de 40 escolas primárias. Na maioria das situações, os próprios fiéis tomavam a iniciativa de edificar sua escola, a expensas próprias; pagavam professores e em muitos casos iam à noite, após o dia árduo na roça, estudar as lições que ocuparam seus filhos durante o dia, conforme pontua Ribeiro (1981, p.190). Os missionários e os recém-convertidos presbiterianos demonstraram a práxis teológica no sentido de que a teologia não só fundamentava-se nos ensinos teóricos, mas seria acompanhada da ação prática em prol da sociedade em que estavam inseridos. Com isso, as escolas presbiterianas se multiplicaram, mas somente algumas destas escolas se ­destacaram. Nesta perspectiva, a práxis teológica presbiteriana pode ser percebida quando entendeu que a teologia deveria fundamentar-se na reflexão e que a educação, enquanto ação seria

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indispensável para a consolidação da territorialidade do presbiterianismo no Brasil e de modo particular na microrregião de Garanhuns-PE área objeto de nosso trabalho (Mapa 01). Mapa 1 – Localização de Garanhuns no contexto de Pernambuco, bem como na mesorregião agreste

Fonte: Emanuel Furtado Bezerra, 2009.

No anseio de consolidar seus valores, ao longo de sua história, a Igreja Presbiteriana traçou vários projetos na tentativa de viabilizar a sua influência e definir o seu território. Entre suas ações podemos destacar a formação de intelectuais, cujo objetivo era a defesa dos ideais desta instituição apreendida enquanto agente produtor do espaço que atua de maneira planejada, buscando maximizar sua atuação. Entretanto, alguns conflitos são instalados nesse empreendimento, uma vez que a escola deverá trabalhar com valores e não com dogmas haja vista que não cabe à educação trabalhar com verdades absolutas pois tudo é questionável.

Garanhuns-PE: Caracterização Espacial O município de Garanhuns, área de referência para o estudo, é parte integrante do Agreste Meridional do Estado de

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Pernambuco, mais especificamente da microrregião Geográfica de mesmo nome (Garanhuns) (MRG- 186). Situa-se entre os paralelos de 8º 47’ 16,8’’ e 9º 04’ 33,6’’ de Latitude Sul e entre os Meridianos de 36º 18’ 5,4’’ e 36º 38’ 09’’ de Longitude Oeste de Greenwich em uma das porções mais elevados do Planalto da Borborema com 842 metros de altitude tendo o seu ponto mais elevado a 1.030 metros fatores, que contribuem para consolidação de uma média climática anual de 21º C, ou seja, o clima em Garanhuns é sempre ameno predominando de acordo com a classificação de Koopen o Csa, mesotérmico, de verões quentes, com chuvas de outono-inverno. Por apresentar peculiaridades geoambientais das quais vale salientar o clima/relevo assim como pelas atividades econômicas desenvolvidas, incluindo o turismo e a educação como setor de destaque, o município de Garanhuns – distando apenas 230 Km da capital do estado (Recife), com uma área de 493 Km² – é considerado o principal município do Agreste Meridional, ou cabeça urbana da microrregião geográfica. Possui uma área de 493 km² e uma população estimada em 135.000 habitantes, ocupando 0,50% do território do estado de Pernambuco. As condições naturais associadas aos aspectos socioculturais possibilitam à cidade e à região de Garanhuns, dentro do nordeste brasileiro, condições bastante singulares. Acredita-se ser este um dos pontos determinantes na escolha de Garanhuns em detrimento de outras áreas no projeto da Igreja Católica e por conseguinte da Igreja Protestante (Presbiteriana) de reestruturação de suas ações, principalmente com relação às ações instrucionais. A condição de lugar calmo, onde a altitude e a disposição geográfica influenciam permitindo maior retenção de umidade e condições climáticas mais amenas diferentes do conjunto “agreste-sertanejo pernambuca-

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no”, possibilitam dentro dos padrões estabelecidos pela Igreja a condição de lugar de oração e estudo. Neste particular, a cidade de Garanhuns possuía todos os atributos necessários a implantação e/ou instalação de instituições de ensino confessional (Católicos e Protestantes) uma vez que, de acordo com as diretrizes tridentinas, assim como os princípios normatizados e vivenciados pela Igreja Católica e protestante, a educação é entendida como cultivo da inteligência e de virtudes, promovendo uma educação integral que compreende a vigilância sobre os costumes e o cuidado com o adequado desenvolvimento das faculdades da alma. Tal proposta educativa só poderia ser desenvolvida em determinados espaços onde o verde, o clima ameno e o silêncio estivessem presentes (WERNET, 1987, p.75). Neste particular uma análise sistêmica das questões ambientais na referida área de estudo se tornam imperativas na medida que a compreensão das relações sociedade/natureza possibilitou a consolidação de um projeto educacional consistente transformando a cidade de Garanhuns em um Centro Educacional promissor redimensionando a lógica das relações sócio-espaciais.

A Ação Educacional da Igreja Presbiteriana Após a Constituição Republicana de 1891 Com a proclamação da República no Brasil em 1889 e a partir do novo regime, promulga-se a Constituição de 1891, em que o Estado foi decretado laico, pelo Decreto 119-A. É basicamente neste contexto que a liberdade de cultos religiosos, bem como o casamento civil e a secularização dos cemitérios também foram instituídas. Nesse ambiente republicano, já nas últimas décadas do século XIX, escolas americanas de

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confissão protestante já tinham êxito em São Paulo, uma vez que os missionários protestantes norte-americanos enviados por suas missões tinham planos de expansão evangelizadora e educacional. Havia também penetração do espiritismo no país, encontrando ambiente favorável entre aqueles que defendiam a mudança do regime monárquico para o republicano, os quais viam na educação a possibilidade de modernizar a nação (GIUMBELLI, 1997). Os colégios protestantes fundados antes da proclamação da República neste panorama, receberam novo impulso com a separação da Igreja e do Estado. [...] foi em grande parte através dos colégios, sob a influência direta de ministros e educadores protestantes que se processou no Brasil a propagação das ideias pedagógicas americanas que começaram a irradiar no estado de São Paulo (HACK, 1985, p.67).

Entre as estratégias utilizadas pelos missionários para divulgação do evangelho e da sua religião estavam as instituições educacionais pois a escola também despertava a solidariedade do novo grupo evangélico minoritário, que se sentia mais seguro e motivado a enfrentar as pressões e perseguições de grupos contrários à presença presbiteriana. Na visão dos protestantes (Batistas e Presbiterianos) de acordo com Ribeiro (1981, p.184) “o valor da educação estava vinculado à nova vida espiritual por acreditar que o “Evangelho dá estímulo a todas as faculdades do homem e o leva aos maiores esforços para avantajar-se- na senda do progresso”. A partir da República, com a liberdade religiosa conquistada e garantida no texto constitucional, a paisagem escolar e cultural adquiriu nova feição. Os Colégios Evangélicos Presbiterianos primavam por princípios educacionais que refletissem a convicção cristã em todos os aspectos da vida.

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Entendiam que a educação seria um ponto relevante para expansão da obra missionária. A adoção desses princípios estava ligada a visão global da própria educação, que os missionários e educadores norte-americanos traziam em sua própria formação religiosa e pedagógica, que conforme Hack (1985) tinham como preocupação básica: a eficiência do ensino, a formação integral do aluno, por julgar a educação não pela quantidade de conhecimentos obtidos mas, pela qualidade obtida com o desenvolvimento do indivíduo nos seus aspectos físico, intelectual e social. Avaliada pelo sucesso alcançado pelos estudantes através do trabalho, esforço e caráter. Sobre o professor repousava a grande responsabilidade da formação do aluno, não somente pelos seus ensinamentos, mas principalmente, pelo seu exemplo. Deveriam ainda, os referidos mestres, ter conhecimento básico das escrituras Sagradas, para defenderem a liberdade de consciência e a responsabilidade individual. Todas essas temáticas diretamente ligadas ao pensamento de Martinho Lutero e João Calvino, que preconizam a teologia não apenas como princípio teórico, mas devidamente revestida de prática cristã. Lutero e Calvino ressaltaram a práxis teológica porque pontuaram uma teologia engajada em todas as questões sociais. A práxis teológica desses Reformadores alcançou diferentes épocas e influenciou as missões estrangeiras que vieram ao Brasil quando da implantação do protestantismo no País. A educação enquanto práxis teológica em Lutero pode ser percebida quando ele procura comover e inflamar as autoridades alemãs a cuidarem e proverem acesso às escolas à juventude (LUTERO, 1995, p.309-325). Enquanto Calvino percebeu que as pessoas necessitariam da educação para absorverem os ensinamentos da fé reformada e para o exercício das suas profissões. Assim, a educação começaria desde a

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mais tenra idade e, se fundamentaria nos ensinamentos das Escrituras, o que resultaria na formação de cidadãos aptos para o serviço da Igreja, para o governo do Estado e para o exercício da cidadania (CALVINO, 2009, p.69-71).

Os Presbiterianos em Garanhuns Iniciando-se em São Paulo (1891), a Igreja Presbiteriana teve atuação destacada no Nordeste do Brasil. Em Garanhuns-PE de modo particular, além do trabalho evangelístico, foram lançadas as bases de duas importantes instituições educacionais: o Colégio Quinze de Novembro (fundado em 1900) (Foto 1)e o Seminário IBN- Instituto Bíblico do Norte (Foto 2). No final desse período, além de estar presente em todos os estados do nordeste, a Igreja Presbiteriana chegou ao Pará e ao Amazonas. De acordo com Matos (2012): “A primeira escola evangélica do nordeste foi o Colégio Americano de Natal (1895), fundado por Katherine H. Porter, esposa do Rev. William C. Porter.

Foto 1 – Colégio XV de Novembro. IBN Instituto Bíblico do Norte. Foto 2 – importantes instituições na consolidação do território Presbiteriano em Garanhuns

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Na mesma época, a cidade de Garanhuns começou a tornar-se um grande centro da obra presbiteriana uma vez que apresentava condições potenciais de desenvolvimento, sendo cabeça de um sistema urbano regional (grifo nosso). A terra fecunda, o clima aprazível, possibilitariam o favorecimento da expansão do evangelho, da sua crença, de sua cultura, dos seus valores, por acreditar que suas concepções estavam de acordo com a palavra de Deus, a Bíblia Sagrada (Foto 3). Foto 3 – Fundamento religioso Presbiteriano/Calvinista em fachada do Col. XV de Novembro.

Foto: Arquivo do autor. Garanhuns/2013.

Até a chegada do trem, na década de 1880/1890, segundo testemunhos de velhos moradores, conforme afirma Sette (1956): “Garanhuns pouco havia crescido”. A chegada do trem em 1887 foi o grande acontecimento, proporcionando foros de cidade à vila de Garanhuns, uma vez que a mesma já havia sido nesse período, elevada a categoria de cidade pela Lei provincial nº 1.309 de 04 de fevereiro de 1879, através de projeto do Barão de Nazaré. Em sua justificativa, apresentava notadamente fatores econômicos como motivos da proposição: a

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produção de derivados do leite, o potencial do turismo, haja vista o clima, a adaptação de imigrantes europeus e a grande feira que se realizava semanalmente ( função comercial regional). A eficiência do transporte ferroviário acelerou a dominância urbana de Garanhuns na região. A grande área do planalto antes conquistado pelos criadores de gado, que constituiu a primeira fase de organização do espaço Agrestino com a instalação das fazendas de criação (grifo nosso), era palco da consolidação e expansão pecuária, mas agora também ocupado por uma variada e lucrativa agricultura que passou a disputar terras com a pecuária. Baseando-se em trabalhos de vários autores do século passado como Aires de Casal e outros, Sette) (1956, p.42) afirma: “toda a bibliografia consultada refere-se ali ao cultivo de cereais, do fumo, do algodão e, sobretudo do café sem esquecer as atividades pastoris (grifo nosso)”. Muitos acreditam na hipótese de que é possível que a atração e as perspectivas expansivas destas riquezas agropecuárias tenham contribuído de forma significativa para que a estrada de ferro, antes endereçada ao Vale do São Francisco, viesse a mudar de roteiro, galgasse o planalto e não passasse além de Garanhuns. Como cidade ponta de trilhos, o antigo núcleo de habitações rurais passou a crescer muito depressa, transformando-se em um movimentado entreposto comercial a serviço dos numerosos municípios circunvizinhos e dos arredores, situados tanto em território pernambucano, como mesmo nos sertões do vizinho estado de Alagoas, consolidou-se assim a função urbana de Garanhuns. Desta maneira a seletividade espacial foi crucial para o sucesso desta empreitada. Para Corrêa (2003, p.36). “o homem decide sobre um determinado lugar por conta de fatores que se apresentam positivos em relação ao projeto estabelecido.

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Diante deste cenário surgem os Presbiterianos com a instalação do Colégio XV de Novembro que nasceu do trabalho do rev. Willian Buttler e sua esposa Rena Buttler e do rev. Martinho de Oliveira, com o apoio da Brazil Mission da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (Igreja do Sul), no ano de 1900. Desde sua fundação, percebe-se a práxis teológica como norteadora do Colégio, uma vez que sua visão e missão é ensinar os princípios bíblicos da fé cristã reformada e, ao mesmo tempo, cooperar para a formação do ser humano e da sociedade em seu entorno. Desde seu início, a escola sempre foi conceituada na comunidade local e, no primeiro período de sua instalação, atraiu pelo seu método pedagógico, alunos de muitas cidades do Nordeste, e fez dele um dos primeiros estabelecimentos a instalar cursos pré-primários, primário, ginasial e normal, com ênfase à música e ao esporte, naquela época, onde se desenvolve toda uma identidade religiosa, é a casa do fiel, o que favorece um exercício de fé e de proximidade das comunidades. Também exige, no entanto, a presença de um religioso especializado para cuidar e direcionar os demais agentes religiosos e assegurar o lugar da sua doutrina, a fim de manter a estabilidade religiosa (ROSENDAHL 2001). Para a autora, esse arranjo espacial da religiosidade [...]constitui o espaço de aproximação entre o local, o regional e o universal, isto é, entre as ações de controle local, regional e as ações na escala de mundo. Nesse processo, a instituição de ensino se apresenta como território onde são materializadas as ações políticoespaciais de controle da Igreja, visto que estas atuam sob orientação dos presbíteros que escolhem os espaços onde se localizam as instituições e as escolas religiosas.

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A Territorialidade das Ações Educacionais da Igreja Presbiteriana em Garanhuns Refletindo sobre a lógica da organização espacial a partir da geografia cultural, Cosgrove (1983) afirma que: Os seres humanos experienciam e transformam o mundo natural em um mundo humano, através de seu engajamento direto enquanto seres pensantes, com sua realidade sensorial e material. A produção e reprodução da vida material são necessariamente, uma arte coletiva, mediada na consciência e sustentada através de códigos de comunicação. Esta última é produção simbólica. Taís códigos incluem não apenas a linguagem em seu sentido formal, mas também o gesto, o vestuário, a conduta pessoal e social, a música, pintura, dança, o ritual, a cerimônia e as construções. [...] toda atividade humana é ao mesmo tempo, material e simbólica, produção e comunicação. Essa apropriação simbólica do mundo produz estilos de vida (paisagens distintas, (genres de vie) distintos e paisagens distintas, que são histórica e geograficamente específicos (COSGROVE, 1983. p.103).

Por essa razão ao analisarmos, numa perspectiva espacial, as ações da Igreja presbiteriana enquanto agente que se apropria, organiza, produz e reproduz espaço, notadamente no que se refere as ações educacionais enquanto instrumento de construção de uma práxis teológica, intenta-se dar inteligibilidade à dimensão de uma prática que envolve intenções, possibilidades e estratégias que variam tanto no tempo como no espaço, pois envolve aspectos espaciais e temporais qualificados socialmente. Segundo Corrêa, “no processo de organização de seu espaço o Homem age seletivamente. Decide sobre um determinado lugar segundo este apresente atributos julgados de interesse de acordo com os diversos projetos estabelecidos.”

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Portanto, a seletividade espacial é uma prática amplamente adotada no processo de decisões locacionais, as quais estão associadas ao processo de difusão espacial. A seletividade, no entanto, deriva de uma combinação entre atributos das localizações, mutáveis ao longo do tempo, e, neste caso, das necessidades e possibilidades da Igreja presbiteriana de construir, reconstruir e controlar territórios religiosos. Em realidade, o território, como um conceito-chave na geografia, é um importante instrumento de existência e reprodução do agente social que o criou e o controla, conforme argumentam Sack (1986), Bonnemaison (2002), Rosendahl e Corrêa (2003) e Rosendahl (1996, 1997, 2003 e 2005). O olhar geográfico reconhece no território um caráter cultural, além de seu caráter político, especialmente quando os agentes sociais são grupos culturais étnicos, conforme aponta Bonnemaison (2002). É por intermédio da paisagem cultural, impregnada de seus geossímbolos, que a cultura de um determinado grupo se inscreve no espaço. A religião também possui seus símbolos. Estes constituem marcas que identificam e delimitam seu território religioso. São espaços qualitativamente fortes, constituídos por fixos e fluxos, possuindo funções e formas espaciais que constituem os meios por intermédio dos quais o território realiza efetivamente os papéis a ele atribuídos pelo agente social que o criou e o controla. Desse modo, a Territorialidade religiosa, na abordagem da geografia cultural significa o conjunto de práticas desenvolvidas por instituições ou grupos religiosos no sentido de controlar um dado território. É fortalecida pelas experiências religiosas coletivas ou individuais que o grupo mantém no lugar sagrado e nos itinerários que constituem seu território. É uma ação para manter e legitimar a fé (ROSENDAHL, 2005).

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A história da trajetória da educação tem mostrado – com ampla e farta cobertura de fatos, a sua verdadeira face, muitas vezes, uma ferramenta de propagação, reprodução e continuidade de uma práxis voltada predominantemente para a consolidação de uma ideologia tornando possível a reprodução da sociedade, tendo nas ações educacionais uma forte aliada. Com a intenção de estabelecer raízes e implantar sua religião e, já que a pregação ocupava lugar central, a educação era fundamental para os presbiterianos, o que resultou no surgimento de várias escolas, dentre elas, o Colégio Presbiteriano XV de Novembro (1900). Dessa forma, a rede de escolas protestantes que foi sendo tecida na região de Garanhuns pode ser vista nesta perspectiva espacial, como um símbolo de poder que este agente social, no caso a Igreja Presbiteriana, visa imprimir. Com a instalação do referido educandário em Garanhuns-PE, os presbiterianos promoveram importantes transformações no espaço local, gerando novos fluxos de capitais, de informação e de pessoas. Os fluxos de capitais são percebidos diretamente na paisagem através das construções de novas edificações e até mesmo de um processo de redimensionamento da organização urbana desencadeado na criação do bairro de Heliópolis (Foto 4), onde se situa o referido educandário, caracterizado através da infraestrutura necessária para a viabilização dos cursos oferecidos pelo colégio, bem como pela formação dos alunos dessa instituição que adquiriam novos conhecimentos e que de alguma forma interagiam com a comunidade local disseminando os conhecimentos adquiridos, seja através de contatos pessoais ou então através das atividades de estágio curricular exigidas pela escola. Essa reconfiguração das relações sociais também está muito ligada à questão da territorialidade, pois é através dela que

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criamos um significado para o lugar (HAESBAERT, 2005, p.3). Ao darmos um significado para o lugar, estamos promovendo a sua apropriação, que se dará, então, através do uso e não necessariamente através da propriedade. Para Rosendahl (2001), “a organização interna dos territórios da Igreja é dinâmica e móvel no espaço. Os espaços religiosos se modificam no tempo e no espaço, às vezes por criação de novas instituições religiosas que se territorializam, às vezes por fragmentação das mesmas a partir da difusão das obras.

Foto 4 – Localização estratégica do Colégio XV de Novembro responsável pelo surgimento do bairro de Heliópolis em Garanhuns-PE

Nesse processo, a área objeto das atuações se apresenta como território onde são materializadas as ações político- espaciais de controle da Igreja, visto que estas atuam sob orientação dos presbíteros que escolhem os espaços onde se localizam os seminários e as escolas religiosas. Desse modo, é possível argumentar que o espaço urbano de Garanhuns é “reflexo tanto das ações que se realizam no presente como também daquelas que se realizaram no passado e que deixa-

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ram suas marcas impressas nas formas espaciais do presente” (CORRÊA, 1995, p.8). Os Missionários evangélicos oriundos dos Estados Unidos da América todos da religião cristã presbiteriana, portanto de orientação calvinista, que fixaram residência no estado de Pernambuco enfatizaram a formação de igrejas e a organização de escolas, uma vez que entre as estratégias utilizadas pelos missionários para divulgação do evangelho e da sua religião, estavam as instituições educacionais. No início eram escolas paroquiais que serviam de apoio ao ensino religioso das igrejas, quase sempre aos domingos pela manhã, donde se ouve chamar até os dias de hoje, escola bíblica dominical. O médico Willian Butler e sua esposa Rena Butler, formaram um desses casais de missionários norte-americanos que fixaram residência na cidade de Garanhuns em Pernambuco pouco antes de 1900, tendo em vista as concessões possibilitadas pelas constituição republicana de 1891, iniciando ali a pregação de sua filosofia religiosa” (VITALINO, 1999, p.71). O casal logo reconheceu que a população era,na sua maioria, formada por iletrados, e que portanto, era necessário o ensino preliminar no sentido de que seus ouvintes e posteriormente seguidores da religião, pudessem entender a leitura dos textos bíblicos e deles extraírem as lições desejadas. Observando essa enorme carência educacional o casal resolveu ministrar ao grupo de seus seguidores ou não, diversas disciplinas, acalentados pelo sonho de vê-los educados e prontos para a vida, além da prática religiosa que preconizavam (VITALINO, 1999, p.71).

Após organizar a escola em Garanhuns, o que correu em 1900, o casal Butler fixou residência na vizinha cidade de Canhotinho onde, além da igreja, fundaram um hospital haja vista que por serem calvinistas, entendiam que o alto índice

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de analfabetismo entre os pobres, enfermos e inválidos era incompatível com a Igreja reformada e, por esta razão deveriam ser educados e reeducados profissionalmente, conforme fosse o caso. Para continuar nos afazeres religiosos e dar prosseguimento ao então colégio recém-fundado, foi requisitado da cidade alagoana de Pão de Açúcar localizada às margens do rio São Francisco, o pastor de origem pernambucana Martinho de Oliveira. O Colégio tinha como membros mantenedores a junta de missões mundiais da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos (Board of Wold Missions of the Presbiterian Church, DIARIO OFICIAL p.7.562 de 1967) e a Igreja Presbiteriana do Brasil. ( Regimento Interno art. 4º ). Em seu livro Vitalino (1999, p.75), noticia com muita emoção: Cabe ao presbiterianismo, por iniciativa do então pastor Martinho de Oliveira, tarefa gloriosa, difícil e sublime de encarar mais seriamente o grande problema que constitui a obra inicial e patriótica de educar pioneiramente em Garanhuns.

Surgia assim o atual Colégio Presbiteriano XV de Novembro, cujo objetivo foi o de aliar os serviços religiosos a educação formal daquela cidade. Nesta perspectiva, a práxis teológica presbiteriana pode ser percebida a partir de quando a educação, enquanto ação estratégica seria indispensável para a consolidação da sua territorialidade. Agindo através de colégios ou simplesmente através da evangelização, ou de cursos livres em diversas instituições por eles (os presbiterianos) mantidas, as missões e seus membros carregam consigo essa ideia de que todas as suas atividades são intrinsecamente educativas. Neste sentido

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percebe-se fortes traços de uma chamada pastoral estratégica através do caráter fortemente cognitivo que marca inclusive a pregação de muitas das chamadas igrejas históricas ou, para usarmos a tipologia litúrgica proposta por Prócoro Velásques Filho (1990), as igrejas não litúrgicas (segundo ele, as presbiterianas, metodistas e batistas). “Nos templos destas Igrejas, o altar ganhou sintomaticamente o nome de ‘púlpito’. A pregação conquista assim o lugar mais privilegiado da celebração, o que faz com que frequentemente o atendimento ao serviço religioso seja determinado pela eloquência do pregador, por sua ortodoxia doutrinária, ou por ambas. Desse modo fé e educação são pontos centrais na leitura da dimensão do lugar, tendo em vista que a Igreja Presbiteriana enquanto instituição fundamentada no poder religioso, desenvolve em múltiplas direções ações que se territorializam, a partir da sua ação instrucional, daí na atualidade em Garanhuns, além do Colégio XV de Novembro e o IBN – Instituto Bíblico do Norte, existem outras importantes instituições educacionais como: a escola Ana Barros, a escola Adventista e o Instituto Presbiteriano de Heliópolis que apesar de ser estadual, funciona nas dependências da Igreja Presbiteriana só para citar alguns exemplos. Este direcionamento, visando um determinado público e com ações previamente planejadas, são semelhantes às de qualquer empreendimento empresarial, reproduzindo no espaço as estruturas necessárias à sua fixação, configurando uma relação entre espaço e poder. Esta argumentação amplia o significado de território e vai mais além, possibilita investigar o poder através de sua territorialidade, não perdendo de vista a dinamicidade do processo de análise em termos de espaço e tempo.

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Considerações Finais O presente estudo buscou realizar uma discussão em torno do complexo processo de difusão adotado pela Igreja Presbiteriana no Brasil, mais especificamente em Garanhuns-PE no qual privilegiou-se a educação enquanto práxis teológica na consolidação da sua territorialidade. A análise dos fatos proporcionou a percepção de que não existe religiosidade, educação nem escola deslocadas das relações conjunturais e estruturais, das disputas de forças políticas e econômicas. Os presbiterianos perceberam que seu principal trunfo era a educação e que, a maneira mais eficaz de enraizar-se nas vidas das pessoas, promovendo a perpetuação das práticas calvinistas de geração em geração, se daria pela formação de pessoas que defenderiam os ideais presbiterianos e repassariam essa doutrina às outras gerações. A dimensão política no espaço do sagrado, em especial, neste caso, aquelas voltadas para o campo da instrução, podem auxiliar pesquisas que estejam sendo desenvolvidas e que tenham em sua problemática o entendimento da seleção de lugares com fins previamente estabelecidos. Podemos perceber que, através de suas ações, os presbiterianos garantem sua inserção na sociedade, atuando não somente como força espiritual, mais também como uma força política que tem influenciado, principalmente, através da educação, os espaços em que se encontram. Este processo demonstra que a atuação da Igreja presbiteriana se dá de forma planejada, utilizando-se das mais variadas estratégias para administrar o território garanhuense, a partir de seus interesses – quer sejam religiosos ou não. Desse modo, o alvo da Igreja é a juventude, porém, a mesma é uma organização e, como tal, toma decisões baseadas no

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estudo do potencial dos lugares e dos riscos na implantação de investimentos. A instalação de uma Rede Protestante de Educação denota o valor da instrução para a Igreja Presbiteriana como instituição social e, principalmente, revela o nível de planejamento e administração estratégica que busca se manter presente e atuante na vida das pessoas e nos rumos da sociedade. Vislumbramos ainda indícios de que a Igreja Presbiteriana representou (e representa) um agente modificador do espaço. Nossas argumentações, todavia, caminham no sentido de afirmar que esse potencial de interferir nas transformações espaciais não é restrito ao recorte analisado, mas, sim, as multiescalaridades e multidimensionalidades de recortes de sua atuação. Logo, a abordagem das ações (principalmente as instrucionais) da Igreja Presbiteriana devem constituir um elemento a mais para análise do espaço, uma vez que suas ações são, por vezes, geradoras de conflitos e permitem manipular não só o poder espiritual, mas também do poder simbólico e político necessário a sua reprodução.

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A EDUCAÇÃO COMO PRÁXIS TEOLÓGICA NA CONSOLIDAÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO PRESBITERIANISMO EM GARANHUNS-PE

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AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DA IGREJA CATÓLICA NA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO DA CIDADE DE TERESINA-PI Stanley Braz de Oliveira

Considerações Iniciais Para conseguirmos entender o processo que envolve as relações políticas educacionais da Igreja Católica e a produção espacial urbana de Teresina, recorremos à Geo-história. Nesse sentido, fez-se uma análise da Igreja Católica como produtora espacial e gestora política no estado do Piauí e, a partir daí, compreender de onde vinha sua prática e seu poder de ação. Através de escolas confessionais, a Igreja Católica foi delimitando o espaço urbano da então planejada Teresina, não só demarcando, mas criando e educando à luz divina e se cristalizando como agente produtor espacial de extrema importância para o desenvolvimento da cidade. O que nos leva a afirmar que a educação foi sua principal técnica para esse processo. Esta análise é parte da pesquisa de Doutorado em desenvolvimento sobre a Geo-história de Teresina na perspectiva das ações da igreja católica no âmbito da educação.

A Geo-História: uma Contextualização A relação espaço e tempo é intrínseca onde os obstáculos da natureza são superados e com isso surgem novos espaços e a necessidade de conhecer essa dicotomia tempo/espaço que vai criando subsídios para a consolidação da Geo-história como ciência, em que, para se analisar o tempo ou espaço, é necessário se relacionar os dois (SANTOS, 1980). Com o surgimento de movimentos de renovação do pensamento geográfico

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no século XX, três movimentos fundamentam o pensamento Geo-histórico: a Geografia Histórica e Cultural, a Nova Geografia e a Geografia Radical ou Crítica, que deram suporte para a valorização da história nas análises dos processos espaciais. Conforme o pensamento de Braudel (1996b), era preciso quebrar a dialética tempo/espaço, visão que recebeu apoio de Vidal de La Blach, o qual agregou sua concepção e essa aliança propiciou novas compreensões sobre espaço, haja vista a ideia de “comunicação”, que, em suas teorias torna-se fundamental para o desenvolvimento científico, cristalizando-se na sua maior temática a da “circulação”, a que são agregadas às várias concepções sobre espaço e tempo, e, definitivamente, contribuem para a formação dessa nova ciência, a Geo-história, pois todas as contribuições que se propõem a analisar o espaço necessitarão do tempo, visto que, desde os primórdios das ciências geográficas já se utilizava o tempo para se entender o espaço, mesmo sem uma precisão real sobre ele. Nesse sentido, várias tentativas foram feitas pela ciência no intuito de quebrar essa dicotomia tempo/espaço, mas só tivemos essa quebra com maestria em Braudel (1996b). Essa evolução no pensamento da Geo-história torna visível que a História é uma das ciências mais próximas da Geografia, em que esta precisa daquela para entender os tempos passados para a construção do espaço, porquanto o espaço é resultante de diferentes períodos históricos. E, para conhecer o espaço, é necessário o entendimento de seu processo histórico, e esses fatos demonstram a relação intrínseca da ciência geográfica com a História, levando a várias discussões e contribuições como a do historiador Lucien Febvre que, através da Escola de Analles, fortalece a Geografia moderna e contribui para as inovações dentro do conhecimento geográfico. Assim como outros teóricos que produziram contribuições

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para a consolidação da Geo-história, dentre eles merecem destaques Jean Brunes, Augusto Longno, Carl Sauer, através da escola de Berkeley, que difundiu suas teorias sobre a História Cultural com um direcionamento aos das ações antrópicas sobre a paisagem, e que contribui também para o surgimento da Geografia Cultural, sem esquecer ainda Paul Claval, que também somou no desenvolvimento da Geo-história. A evolução do pensamento da História, através da valorização da Geografia, dentro de suas concepções, foi fundamental para a Geo-história como ciência, a partir das teorias do historiador Vidal de La Blach, que valorizaram significativamente a ciência geográfica como ciência que contribui para os estudos históricos, assim cristalizando a cientificidade da Geo-história que surge no século XXI trazendo uma renovação no pensamento da História, substituindo os relatos por análises vividas e por ações interdisciplinares entre a Geografia e a História e, dessa forma, modificando a concepção sobre espaço-tempo. Mas foi dentro da Escola de Analles citada anteriormente que a Geo-história ganha sua valorização científica através de Lucien Febvre, Henry Berr, Mac Bloch e de seu maior contribuidor, Fernand Braudel, pois, foi a partir da criação do tema “tempo de longa duração” que ele propõe a ruptura com a História Tradicional, levando-nos a ver as múltiplas temporalidades do tempo, superando o simplismo e o linearismo fragmentado da história tradicional. Segundo Santos (1996), essa percepção de Braudel cria arranjos de influências nas mais diversas ciências, desde as sociais às naturais e até mesmo podendo ser entendida como o processo de colonização da Geografia. Braudel, como citado anteriormente, dá à História e à Geografia várias contribuições. Para ele, a interdisciplinarida-

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de servirá para entender a complexidade do passado e seus isolamentos, criando a essência de totalidade dos fatos. A sua produção clássica, O Mediterrâneo, consiste na sua primeira contribuição para a Geo-história, quando lança a concepção de “longa duração”, proporcionando uma nova visão de tempo, que era limitada ao pensamento de tempo breve. Para Braudel (1996b), o curto prazo e o longo prazo coexistem e são inseparáveis, com isso ele agrega à Geografia uma nova visão de ver o espaço não somente no presente, mas também no passado, desconcentrando a Geografia das formas espaciais atuais, para se começar a ver o passado e a trajetória das ações no espaço, ligando a Geografia com a noção de longa duração de tempo. As contribuições para a Geo-história ao longo de seu desenvolvimento servirão de suporte parao entendimento das contribuições das ações educacionais da Igreja Católica para a produção do espaço urbano teresinense, pois só será possível a busca da evolução espacial através de uma análise dos fatos ao longo do tempo. Como a exemplificar esta produção científica que faz uma análise dos primórdios da produção espacial piauiense para entender a sua atualidade.

A Igreja Católica e o Território Piauiense O Piauí, que tem a sua produção territorial ligada à atividade pecuária, construiu uma cultura sertaneja entrelaçada pela religiosidade e pelos vaqueiros que representam a historicidade da produção do território piauiense. A maior parte das cidades piauienses foi criada a partir da atividade pecuária, que produziu as grandes fazendas que posteriormente originaram as primeiras cidades, organizando a estrutura político-administrativa.

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O calendário festivo religioso ligado à figura do vaqueiro, fato que está relacionado com a atividade pecuária que desbravou o território piauiense, cristalizando-o como província PIAUHY em 1758, explicita a hegemonia religiosa da igreja católica no território piauiense e contribui para o surgimento das primeiras vilas e, posteriormente, as primeiras cidades, tendo sua organização espacial formada pela cidade de Oeiras e as vilas de Valença, Marvão, Campo Maior, São João da Parnaíba, Nossa Senhora do Livramento do Parnaguá e Jerumenha, como ilustra a imagem a seguir. Nesse contexto, a Igreja Católica participou ativamente na produção espacial do Piauí, tornando-o território propício para a divulgação da fé proposta por ela. Nessa perspectiva, a maioria das vilas que posteriormente vieram a tornar-se cidades, tem nomes ligados à Igreja Católica, e as que não têm essa explícita relação, foram cristalizadas festividades religiosas que construíram a cultura do Piauí atrelada a ela, acompanhando o desenvolvimento

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populacional, disseminando o catolicismo popular e obtendo adesão significante da população piauiense da época. Embora não existisse uma articulação considerável entre as fazendas, vilas e cidades, a igreja produzia novenas nas fazendas condicionadas às festas em homenagem aos santos, que se tornariam os padroeiros das futuras cidades. Posteriormente, esses santos seriam os companheiros mais próximos aos fiéis, proporcionando-lhes uma ligação com o sobrenatural, construindo uma religiosidade vertical (BAKKER, 1974). Era visível a junção entre igreja e Estado, na qual a primeira atendia as cerimônias políticas, excluindo desses momentos os menos favorecidos, que só se integrariam nas novenas, festividades cristãs que favoreciam uma maior aproximação, mas com visível segregação entre os detentores de poderes políticos e administrativos. Todavia, era necessário estar no meio de todos os fiéis, visto que era através da religiosidade que a igreja mantinha o seu prestígio e poder na sociedade, usado para produzir as cidades piauienses. Como no período colonial a relação poder e religiosidade permanece ativa, visto que algumas cidades vão se tornando polo de desenvolvimento, consequentemente, a igreja dá maior importância a elas, estruturando sua administração de acordo com a importância da cidade e com as regionais administrativas do território piauiense, possibilitando assim o seu crescimento, a organização do Estado e da própria Igreja. Nesse sentido, a organização da Igreja fez comandos estratégicos, instalando em cada cidade polo de desenvolvimento uma diocese para cultivar e distribuir a religiosidade católica, o que contribuiu significativamente para a construção espacial do estado do Piauí. Essa configuração espacial dá início à produção territorial do Piauí, onde já é possível ver a presença da religiosidade

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na identificação das cidades como Nossa Senhora do Livramento e São João da Parnaíba, fato este que só foi possível devido à participação da Igreja Católica na produção espacial do Piauí, porquanto foi a primeira a reconhecer a existência deste Estado antes mesmo da Coroa Portuguesa, através da criação da freguesia de Nossa Senhora das Vitórias, que posteriormente viria a se tornar a capital da província e com uma nova denominação: Oeiras, que somente no século XIX perderia seu titulo de capital piauiense para a então planejada Teresina, que surge carregada de interesses políticos do Estado e da Igreja.

O Espaço Urbano Teresinense A cidade de Teresina explicita o modelo capitalista de produção, surge planejada nos anos de 1822, guiada por um interesse político do Estado e da Igreja. Cristalizou-se entre dois rios, Poti e Parnaíba, com a intencionalidade de gerar economia e uma maior ligação com o interior do estado, e como isso se formou uma paisagem urbana planejada, guiada pela ideologia capitalista da classe dominante da época. Também construiu um centro comercial às margens do rio Parnaíba, com armazéns e um comércio voltado às necessidades da sociedade que, orientada pelos ditames do capitalismo (CORRÊA, 2002), movimentava a produção do espaço urbano teresinense. É visível como os espaços urbanos agregam funções e serviços, em constante processo de mutabilidade, criando valores para o solo urbano, que se explicita a partir da inter-relação do trabalho e capital que alimentam as estratégias capitalistas, colocando o trabalhador como principal agente do espaço urbano, levando-nos a ver que o espaço é fruto de seus agentes, e que, através de seus interesses, cristalizam sím-

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bolos, constroem paisagens, estruturando o contexto sócio-espacial de um determinado lugar. Em Teresina, é possível identificar na relação tempo-espaço que dois agentes espaciais foram vitais para sua produção e organização: o Estado e a Igreja, que agregaram às suas ações, as ideologias com as ideologias capitalistas e produziram um espaço imbricado de filosofias e interesses. Com efeito, a Igreja Católica é um agente produtor do espaço urbano de capital importância, porquanto direcionou o crescimento da cidade, fazendo de suas escolas confessionais um instrumento de educação elitista e impulsionador do crescimento espacial, limitando o espaço urbano teresinense, induzindo-nos a aceitar o papel de agente produtor da Igreja Católica, que aliou educação com produção e organização espacial, valorizando os espaços nas proximidades de suas escolas e criando uma educação de alto custo voltada para atender a elite local. O fato de Teresina ser planejada difere de muitos outros espaços urbanos, dando a seus agentes o poder de guiar e organizar, através de estratégias políticas que originaram a cidade e foram imprescindíveis para seu desenvolvimento, desde sua criação, nos anos de 1822, fazendo-a evoluir espacialmente, direcionada pelas ações do Estado, sobretudo da Igreja, através de suas relações íntimas de poder. O potencial de polo atrativo que as capitais agregam e o seu desenvolvimento econômico e urbano transformaram Teresina em centro dinâmico e com maior facilidade de gerenciamento do restante do território estadual. Nesse sentido, a Igreja Católica participou da produção e organização do espaço teresinense de forma marcante através de seus templos, como a Igreja do Amparo, que se fixa como o marco da produção espacial urbana teresinense. Conforme imagem a seguir.

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Fonte: BRAZ, Ângela Napoleão. Estrutura urbana de Teresina no período de 1852 a 1900. [200-?]. (mimeo.), p.7.

O poder de produtor espacial da Igreja Católica permite-lhe se impor no espaço da cidade, determinando até onde ela iria, e nos momentos de perda de força, de poder ou decisão, se reorganiza e retoma o direcionamento da produção do espaço teresinense. Dessa forma, faz da Educação e das escolas confessionais instrumentos para se reorganizar como também para direcionar o crescimento da cidade: [...] as ações da Igreja Católica [...] visam enriquecer o entendimento de como se dão e de como se organizam as relações entre poder e espaço na produção de territórios. O estudo do território na perspectiva de se conhecer melhor a história da Educação e os desdobramentos das políticas educacionais é apenas um caminho de aborda-

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gem na procura sempre constante do entendimento do espaço enquanto multidimensional (VASCONCELOS JÚNIOR, 2011, p.158).

O traçado urbano teresinense demonstra o reflexo dos interesses de seus agentes. De acordo com Corrêa (2002), o espaço é um produto social, é através do uso do solo por seus agentes, que vai se organizando de acordo com os que o ocupam. O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica “apropriação” e não “propriedade”. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática. Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos “agentes” que o manipulam, tornando-o unifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e complexo (LEFEBVRE, 1986, p.411-412). As relações de poder e troca que aconteceram no espaço urbano teresinense demonstram a ligação entre os maiores agentes espaciais urbanos da cidade: a Igreja Católica e o Estado, que por muitos anos foram os principais gestores de sua produção, onde construíram espaços e se flexibilizaram quando necessário, produzindo a evolução da malha urbana da cidade através dos seus interesses capitalistas. E a igreja, a partir de suas ações educacionais, deu seu maior legado para a produção desse espaço. As ações da Igreja Católica na produção dos espaços urbanos brasileiros em geral sempre foram discutidas e analisadas, mas as suas ações educacionais não eram visualizadas, com destaque sobretudo nas análises espaciais. Portanto, analisar a Igreja e suas ações educacionais, que unem filosofias internas aos ditames capitalistas é, para a ciência, muito importante, dada sua inovação nas análises geográficas sobre o

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espaço urbano. Desse modo, é possível observar as dinamicidades dos agentes produtores espaciais de forma mais clara e objetiva, como a exemplificar a seletividade espacial da Igreja Católica, refletindo interesses e decisões, que vão resultar na difusão espacial (CORRÊA, 2003), usando-a para traçar sua apropriação e controle sobre o território, construindo assim a sua territorialidade religiosa, como reforçam Rosendahl e Corrêa (2006), ao afirmarem, categoricamente que o território, por ser um conceito-chave na Geografia, é um importante instrumento de existência e reprodução do agente social que o criou e o controla. Souza (2003) ratifica-o ao dizer que “O território é, fundamentalmente, um espaço definido por e a partir de relações de poder.” (SOUZA, 2003, p.78). Esses insights demonstram que o planejamento da Igreja se reorganiza ao usar a educação para a disseminação do catolicismo, demarcando assim seu território e se mantendo no poder, renovando sua importância dogmática e de agente produtor do espaço num entrelace de filosofias internas e ditames capitalistas. Corroborando a discussão, Vasconcelos Júnior (2006) reforça que a reestruturação institucional da Igreja Católica em recatolizar o povo nos moldes da Igreja Católica Romana, e não mais no modelo brasileiro, era o ponto de partida das novas políticas internas da Igreja, tendo início com a laicinização do ensino público e posteriormente com as escolas confessionais, que objetivavam reeducar a sociedade, modernizá-la dentro de suas novas ideologias e costumes, e conter as escolas acatólicas ou neutras, como consta no Concílio do Vaticano I. Assim, a Igreja Católica, unindo interesses, seleciona os melhores espaços para escolha e desenvolvimento da educação confessional. Com essas ações produtoras, Teresina trilhava seu desenvolvimento. Por seu turno, a Igreja precisava conservar

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seus dogmas e, com o desmembramento das dioceses do Piauí e Maranhão, que resultou na independência da Diocese de Teresina, esta foi elevada à categoria de Arquidiocese e Província Eclesiástica do Piauí em 9 de agosto de 1952, pela Bula Quaemadmodum Insignes do papa Pio XII, sendo posteriormente denominada Arquidiocese de Teresina. A Igreja segue os planejamentos internos, e as escolas confessionais e os seminários, que objetivavam fazer uma educação à Luz Divina, produziram o espaço urbano teresinense que, por ser planejado, se tornou mais fácil de conduzir seu crescimento e conservar a orientação religiosa do povo. Em 1906, surge a primeira escola confessional, vislumbrando a manutenção dos princípios católicos, ameaçados pelos republicanos, que não queriam mais a Igreja no comando da educação, condicionando à Igreja Católica a educação confessional, que fortaleceu seu poder de agente produtor e capitalista para o direcionamento do crescimento espacial urbano da cidade e obtenção de lucros com uma educação elitizada.

As Ações Educacionais da Igreja Católica e as Contribuições para a Produção Espacial Urbana de Teresina-PI Com a necessidade de manter-se em destaque, a Igreja Católica concretiza suas ações com a instalação das escolas confessionais em 1906. Por intermédio do Bispo Dom Joaquim Almeida são chamadas ao Piauí as irmãs Catarina de Sena, para instalar uma escola voltada para a educação feminina, que dessa forma colabora com a evolução social e espacial de Teresina. Essa escola denominou-se Colégio Sagrado Coração de Jesus – Colégio das Irmãs, que, após cristalizar sua ideologia, se instala na avenida Frei Serafim, uma das principais vias de fluxos da cidade da época e da atualidade,

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mostrando assim o poder de produção espacial e conservação dos dogmas da Igreja Católica, visto que a escola servia de limite espacial da cidade no sentido centro-norte.

Posteriormente este limite estabelecido pelo Colégio das Irmãs foi substituído por mais uma ação educacional da Igreja Católica, o Seminário Arquidiocesano Paulo VI, nas proximidades do rio Poti, limite que até então era o limite espacial da cidade, sendo superado após a construção da ponte Presidente Juscelino Kubitschek nos anos de 1959. Onde inicialmente possuía uma estrutura de madeira, com a evolução espacial e econômica de Teresina, ergue-se em seu lugar uma estrutura de concreto ligando definitivamente o centro da cidade à zona leste, até então isolada pelo limite natural do rio Poty. Paralelo à criação do “Colégio das Irmãs” e o seminário, tivemos o Colégio e Seminário Diocesano delimitando o espaço urbano da cidade no sentido sul, que, após passar por vários momentos de dificuldades, em 1º de fevereiro de 1925, com a denominação de “Colégio São Francisco de Sales”, reabre cristalizando mais uma ação educacional e de produção espacial da Igreja Católica, desenvolvendo a cidade no sentido centro-sul e, com isso, explicitando a sua ação de agente produtora no espaço urbano teresinense.

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1ª Construção Fonte: www.facebook.com.br

2ª Construção Fonte: www.facebook.com.br

Após o rompimento da barreira natural, o rio Poty, a cidade inicia um desenvolvimento no sentido leste, surgindo bairros, rompendo os limites urbanos até então delimitados, e com isso a Igreja Católica reorganiza o seu território criando a “Escola Agrícola Santo Afonso” e, com ela, um símbolo e um novo limite espacial urbano em Teresina. E assim Teresina foi se construindo e reconstruindo, tendo na igreja um agente absolutamente significativo para sua atual configuração espacial, carregada de simbologias, formas e historicidades construídas através das políticas internas daquela instituição religiosa, sem abrir mão da educação, um de seus maiores instrumentos de produção espacial.

Considerações Finais A Geo-história, através de sua visão científica, permite-nos entender a dicotomia tempo-espaço produzida pelas ações da Igreja Católica, agente produtora do espaço urbano de Teresina. Nesse contexto é que a Igreja, sempre lado a lado com o Estado, fez dos seus templos um símbolo clássico de que ali havia uma organização espacial. A análise sobre essa relação nos deu sustentabilidade para identificar como a Igre-

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ja Católica interferiu nesse ambiente, tendo em vista que a sua evolução espacial sempre caminhou pari passu com as ações educacionais daquela instituição religiosa, a qual foi instituindo os fixos e símbolos que direcionaram a cidade em sua malha urbana por muito tempo, sobretudo através do “Colégio Sagrado Coração de Jesus” (Colégio das Irmãs) e do “Colégio Diocesano”, ou do “Colégio Santo Afonso”. Nesse sentido, a Igreja Católica agiu ativamente, delimitando espacialmente os espaços urbanos de Teresina, cristalizando e perpetuando seu poder nos pontos estratégicos da cidade. A Igreja Católica e as escolas confessionais por meio do paradigma “educar à Luz Divina” conseguiram agregar ao mesmo tempo educação com planejamento espacial, direcionando e limitando o crescimento urbano da nossa cidade. Assim, fica evidente a interferência da Igreja Católica como agente espacial, que utilizou a educação como sua principal aliada nesse processo, a fim de construir uma cartografia que deixasse a sua marca no espaço e na história da cidade, explicitando o poder do sistema educacional como instrumento agregador e produtor de um espaço.

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AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DESBRAVANDO A FLORESTA Ednéa do Nascimento Carvalho

Para exercer a cidadania plena, é necessário ter acesso à informação e à tecnologia, sabendo utilizá-las. O foco da escola é a ciência, produção humana determinada historicamente por fatores econômicos, sociais e culturais, nos quais também interfere. Sendo assim, o ensino superior tem um papel importante na construção de um processo sólido de formação intelectual. O conhecimento de senso comum e o pensamento abstrato, voluntarista ou não, tendem a focalizar as instituições-chave como se seu rendimento constituísse uma função exclusiva de sua organização interna, de qualidade pessoal (ou de sua motivação) e da adequação das relações entre meios e fins (IANNI. 2005, p.274).

Desta forma, o conhecimento é o mais eficiente instrumento do homem, sem o qual não é possível alcançar o êxito pessoal e coletivo. A ciência e o consequente desenvolvimento tecnológico são o meio de compreensão e transformação da realidade material (natureza) e da sociedade. As dimensões políticas, ideológicas, econômicas, sociais e acadêmicas, tomadas, cada uma, de per si ou de forma articulada, tem sido exaustivamente tratadas pela literatura sobre a história da universidade brasileira de modo que, na ótica do trabalho aqui desenvolvido, buscamos deter nosso olhar sobre o modelo universitário como dimensão organizacional e espacial da universidade brasileira. Dessa forma, evitamos reproduzir as análises já realizadas que tomam como foco os determinantes estruturais e conjunturais da sociedade brasileira, em cada uma das suas épocas históricas (FIALHO, p.27, 2005).

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Os estudos acerca da Universidade no Brasil sempre foram temas de debates, e a partir do processo de (re) democratização do Estado Nação brasileiro, tornaram-se acirrados e polêmicos, ou seja, mais do que nunca, o desempenho da universidade como um agente educacional começa a ser discutido e questionado quanto ao seu comprometimento e sua funcionabilidade na sociedade brasileira. [...] Embora se fale muito de universidade brasileira, o que se predominou sob essa designação foi apenas um conglomerado de faculdades, escolas e institutos superiores. Sob a designação de universidades encontramos, a partir de 1920 até hoje, desde modestas instituições de ensino até enormes organizações constituídas de dezenas de unidades estanques (FÁVERO, 1980, p.9).

As primeiras tentativas de criação e consolidação do ensino superior no Brasil datam do início do século XX, buscando o aprimoramento intelectual da elite brasileira. Nos primeiros anos da República observa-se a necessidade de organização quanto ao ensino superior, isto é evidenciado nos estudos de Cunha (1986, p.147): “surgiram os primeiros estabelecimentos de ensino superior do Brasil com o nome de universidade, sendo a do Rio de Janeiro (1920) e a de Minas Gerais (1927) as que vingaram”. Segundo Fialho (2005, p.28), torna-se relevante apontar que o plano de consolidação da universidade brasileira alicerça-se em ambientes hostis e de inabaláveis relutâncias: “datam dessa mesma época, iniciativas de criação de instituições de ensino superior em outros Estados (Amazonas, São Paulo, Paraná)”. [..]fora e à revelia do poder central(p.198), a exemplo de: Universidade de Manaus (criada em 1909, reorganizada em 1913), dissolvida em 1926, fragmentando-se em três estabelecimentos isolados, dois dos quais posteriormente extintos, restando a Faculdade de Direito,

AS POLÍTICAS EDUCACIONAIS DESBRAVANDO A FLORESTA

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federalizada em 1949 e incorporada à Universidade do Amazonas que, embora instituída em 1962, somente foi instalada em 1965; Universidade de São Paulo, fundada em 1911, existente até 1917, a qual, “ao contrario das demais universidades passageiras, dela não restou uma só escola superior [...]. A universidade de São Paulo sucedida, criada em 1934, pelo governo estadual, reuniu [...] escolas oficiais existentes [...]”(p.206); e a Universidade do Paraná, instalada em 1912, obrigada a dissolver-se em 1915 – em face da restrição para a sua equiparação com as escolas federais, devido ao número de habitantes verificado no censo demográfico encontrar-se abaixo dos parâmetros estabelecidos -, recompondo-se somente em 1946, ano em que foi equiparada, sendo federalizada em 1950 (CUNHA APUD FIALHO, 2005, p.28).

Tais estudos envolvem não só a perspectiva de interiorização e ou criação de uma instituição de ensino superior, mas produz debates que levam ao entendimento do que seja a regionalização, a distribuição espacial dos agentes tais como: moradia, transporte, lazer, organização territorial e, sobretudo, não menos importante a polarização da área de influencia acerca das demais localidades circunvizinhas. A difusão de processos sociais se constitui em importante área de interesse da Geografia e de outras ciências sociais. Apesar da relevância da distribuição espacial dos fenômenos em um dado momento do tempo e sobre uma área particular, torna-se imprescindível resgatar os mecanismos que respondam pelas mudanças na distribuição desses fenômenos num determinado intervalo de tempo. Daí a validade dos estudos tanto empíricos quanto teóricos relativos aos processos de difusão espacial de inovações. (SILVA, 1995. p.25).

A dedução formal das proposições evidencia que as sucessões de difusão, especificamente, aqueles com base no aumento das inovações, não se apresenta de maneira imediata

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sobre toda a superfície terrestre, ou seja, algumas pessoas e alguns lugares terão acesso imediato às inovações, entretanto alguns terão acesso mais tarde e outros nunca as terão. Isso significa que essas características relacionadas à distribuição das inovações e a sua mudança no tempo e no espaço é sua dispersão de um local para outro, que representam fenômenos de difusão espacial (SILVA, 1995). Tal discussão caracteriza o processo de implantação de unidades de ensino superior, pois considera a ideia de definir áreas geográficas segundo alguns critérios expressos pela legislação desde muito cedo como, por exemplo: a densidade populacional, a caracterização espacial e, principalmente a difusão espacial de demanda para o ensino superior (FIALHO, 2005). É preciso, ao analisar o problema da expansão universitária, que se reduza o debate a seus termos essenciais, que são muito simples. Tão simples e tão claros que, sem a confusão deliberada, ou atoleimada, sua verdade se impõe tranquilamente. Devo dizer, antes de mais nada, que falo em nome de uma filosofia de expansão universitária consubstanciada nos seguintes postulados: a) a expansão constitui um processo ambíguo, que tanto poderá dilatar nossas mediocridades quanto provocar a ruptura do statu quo, com a introdução de novos marcos qualitativos; b) só na segunda hipótese a expansão representa um meio de desenvolvimento, pela substituição de um equilíbrio social por outro; c) a expansão constitui um fator de democratização, segundo a clientela a que vai beneficiar, a mudança de papéis que ensejará a seus destinatários – papéis na acepção esposada por sociólogos e antropólogos como Nadel, enfim, segundo a elevação de padrões de vida da comunidade, através dos serviços a serem desempenhados pelos novos quadros profissionais; d) a expansão pode realizar-se sob a forma de interiorização geográfica do ensino superior até o ponto em que, mediante um programa preparatório, se venha oferecer às populações do interior verdadeiras

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escolas superiores, e em segundo lugar, até o ponto em que as condições vigentes da área de inserção da escola permitam a absorção de profissionais por esta formados. Em suma, entendemos que a expansão do ensino superior é um empreendimento, e não uma festa. Nós a queremos, mas estamos dispostos a lutar por ela; muitos outros a querem, não a empreendem – limitam-se ao registro no cartório e ao ritual das inaugurações (FÁVERO, BRITO, 2006, p.73-74).

A partir dessa discussão percebe-se que ao fazer a ligação entre expansão universitária e desenvolvimento, ocorre a fixação de possibilidades ao que se pode oferecer como respostas autênticas e válidas à própria difusão espacial que se permite a sociedade e suas transformações. É perceptível neste momento apontar o quanto a política para o ensino superior possui um cunho próprio que se apresenta em uma hierarquia formal: seja por esquemas estruturalistas puramente formais, seja por sofreguidões cegas – que pretendem criar cursos, sem ver mais nada, nem mesmo as condições de que dependa a sua eficácia (FÁVERO, BRITO, 2006, p.74),

ou seja a criação de cursos e ou instituições baseadas em modelos oriundos das sociedades europeias, que por ora não respeita a legitimidade do local em relação aos sujeitos envolvidos, restringindo o acesso da maioria em função de interesses peculiares da minoria. (FÁVERO,BRITO, 2006). Ora a política de criação de escolas que na última década se vem realizando no Brasil resultou em crescimento, mas não em desenvolvimento. Com efeito, a expansão universitária e a criação de novas escolas têm resultado de um planejamento? Reestruturou-se a escala de recursos para que a expansão seja um fluxo de bens reais, e não de ilusões promocionalistas? Para que a qualidade

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acompanhe a quantidade, e não resulte no simples aviltamento da educação, à medida que cresce o divisor dos recursos? Houve uma transformação na contabilidade nacional? Houve transformação das condições reais da universidade, já que as formais têm na maioria das vezes, importância simplesmente adjetiva? Se nada disso aconteceu, estamos querendo novos efeitos, de velhas causas, como quem quer recolher ovos de ouro de uma galinha que não é a da fábula. A movimentação a que nos temos entregado nos últimos anos apenas disfarça o fundo imóvel das posições tradicionais. Por isso é que fizemos ressaltar em nosso parecer sobre as diretrizes do planejamento educacional que o desenvolvimento do ensino tem de provir de decisões políticas. Não se trata da política do Príncipe, que usa o direito de graça para realizar gestos gratuitos, como atos de outorga, mas do dinamismo democrático que leva o Estado a promover medidas de novos modos de existência, de novas formas de relação na sociedade, de nova estrutura de recursos públicos e de sua distribuição (FÁVERO, BRITO, 2006, p.83 e 84).

Em 1967, ao elaborar o parecer solicitado pelo Governo Federal, acerca das possibilidades da educação no Brasil, Trigueiro Mendes alertou para as políticas públicas voltadas para a educação brasileira e, principalmente, para aquilo que ele chamou de “soluções educacionais no Brasil”, referindo-se ao papel exercido pela sociedade mediante aos problemas apresentados pela educação. Atentou-se, ainda, em dizer que estavam delegando maciçamente os problemas de ordem nacional e ou regional as recém-instituídas universidades partindo de qualquer método de avaliação. Dentro do contexto a que nos estamos referindo, cada um se torna solidário, socius, do grande empreendimento que é a Nação. Onde não haja esse sentimento – da Nação como empreendimento – não pode haver a apercepção da necessidade da educação para todos. [...] ora,

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uma das características essenciais do desenvolvimento é que ele deve representar um empreendimento global, desfazendo-se gradativamente no fluxo do processo solidarizante a estrutura que o impede. Só a democracia – como consciência de participação responsável na comunidade nacional, vivida eficazmente por todos os que a integram – dará sentido a uma fórmula que entre nós tem sido mais, em muitos anos, que um slogan: educação para o desenvolvimento (FAVERO, BRITO, 2006, p.85).

Por isso é importante discutir que a busca por um “modelo universitário para a universidade brasileira” (FIALHO, 2005, p.29), apoiou-se na perspectiva de uma compilação dos mesmos procedimentos organizacionais por composições, possivelmente utilizados na formatação e ou criação das primeiras universidades brasileiras. A universidade brasileira esteve, também, desde seu principio, associada aos debates e à regulamentação em torno da liberdade de ensino, a qual gerou intensos conflitos entre liberais e positivistas. Essas divergências expressavam importantes fatores que acabaram por influenciar não só o processo de implantação da universidade no Brasil como a própria modalidade organizacional e espacial. Sob o peso de interpretações equivocadas e reacionárias, fruto, inclusive, do desconhecimento acerca da renovação experimentada pelos novos modelos universitários de então, no Brasil viria consolidar-se a opção por um caminho que não construía o almejado modelo mais orgânico de universidade. (FIALHO, 2005, p.29).

Entende-se, portanto, que durante os processos e as intencionalidades de criação das universidades brasileiras, ocorreram inspirações oriundas de outras culturas, especialmente a francesa, tida como uma importante alusão para as elites da época. (FIALHO, 2005).

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[...] a primeira e principal ideia francesa adotada no ensino superior, desde a estada da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, tenha sido a recusa de criação de uma universidade, fundando-se escolas isoladas. [...] essa posição teria sido assumida por muitos dirigentes de Estado, no Brasil, fazendo com que a Assembléia Geral Legislativa não aprovasse 42 projetos de criação de uma universidade em todo o período imperial. (CUNHA, 1986, p.137).

É notório quanto o Estado brasileiro, no que se refere ao ensino superior, sempre esteve desarticulado, permitindo, assim, a precariedade em relação às pesquisas em diversas áreas, que posteriormente refletiria, de maneira negativa quanto ao crescimento político, social e econômico do país. Isto é evidenciado na condução do processo de implantação espacial das universidades brasileiras. Em todo esse período, não se registra nenhuma exceção quanto à modalidade dos procedimentos para implantação do modelo universitário no Brasil: ele será, via de regra, fruto da justaposição de faculdades isoladas existentes, cujos exemplos encontramos tanto nos processos de criação como nos de extinção. [...] a preocupação do governo federal para com o controle das universidades tornava-se cada vez mais visível na legislação. (FIALHO, 2005, p.31).

A centralização do poder em criar ou extinguir as universidades em âmbito nacional, proporcionada por políticas públicas, produziram um espaço latente quanto ao ensino superior no Brasil. Tornando algumas regiões como centros de referencias a pesquisa, ensino e extensão e produzindo em outros uma configuração totalmente avessa, ou seja, sem nenhuma possibilidade no que diz respeito à educação superior. Os procedimentos adotados para a implantação do modelo universitário brasileiro revelam, portanto,

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problemas vários, no âmbito acadêmico e organizacional, em face da interdependência das dimensões espaço-temporais e funcionais da universidade. Tal constatação é igualmente exemplificada pelo período em que entra em cena o Estatuto das Universidades Brasileiras (1931), alimentada, a partir de então, pela diferenciação, cada vez mais nítida, entre as posturas liberal – seus partidários divididos entre os chamados antigos, elitistas, liderados por Fernando Azevedo, e os novos, identificados como igualitaristas, liderados por Anísio Teixeira – e autoritária. (FIALHO, 2005, p.34).

O papel que a universidade exerce quanto ao desenvolvimento está intrinsicamente relacionado à dimensão de sua atuação e missão: “certamente não há desafio maior para a universidade do que se reconhecer interligada à questão do desenvolvimento” (FIALHO, 2005, p.40). Isso implica em dizer que tal extensão fundamenta-se nas concepções históricas, políticas, sociais e educacionais as quais se propõe (FIALHO, 2005). Outro aspecto que fortaleceu e ainda fortalece a apropriação do espaço pela universidade brasileira são as transformações sócio-espaciais pelas quais o Brasil passou a partir do final do século XX e nas duas primeiras décadas do século XXI. A expansão urbana e demográfica, a universalização do ensino público a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, e, também da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – LDB 9.394/96; além da estabilização e do desenvolvimento econômico, social e tecnológico (NAVARRO DE BRITO, 1991b). Sendo assim, a organização espacial defendida pelo homem a partir de um processo, referendam-se a uma reunião de atitudes, que, por meio das mesmas, são pensadas, executadas, indeferidas e deferidas as formas e as interações espaciais. (CORREA, 2008). Daí a importância de caracterizar as praticas espaciais pensadas quando da implantação da universidade em determinadas regiões brasileiras.

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As práticas espaciais são ações que contribuem para garantir os diversos projetos. São meios efetivos através dos quais objetiva-se a gestão do território, isto é, a administração e o controle da organização espacial em sua existência e reprodução. Se as práticas espaciais resultam da consciência da diferenciação espacial, de outro lado são ingredientes através dos quais a diferenciação espacial é valorizada, parcial ou totalmente desfeita e refeita ou permanece em sua essência por um período mais ou menos longo (CORREA, 2008, p.35).

Portanto a espacialidade urbana de algumas cidades brasileiras, consideradas centros polarizadores, sofreu e sofre mudanças a partir da implantação de algum agente seja ele: político, econômico, educacional, cultural e social. Esses centros especializados ocorrem, sobretudo no sudeste, onde o Estado de São Paulo concentra 14 dos 26 centros dessa macrorregião. O sul possui 9 centros, dos quais 6 localizam-se no Rio Grande do Sul. Finalmente o Nordeste possui 5 centros universitários especializados. Deve-se ressaltar que é na região mais desenvolvida do País que ocorre o maior número de cursos, isto se devendo a maior demanda regional para certos cursos que, por diferentes razoes, se localizam isoladamente ou constituindo agrupamentos fora das características taxonômicas (CORREA, 1974. p.21).

O estudo que Correa (1974) nos apresenta refere-se à percepção de que no final dos anos de 1970, a localização espacial do ensino superior no Brasil, viria a fornecer subsídios de orientação quanto ao planejamento do sistema universitário no país, enfocando a questão espacial e as transformações advindas da implantação das instituições de ensino superior. É significativo colocar a questão nestes termos porque é de se pensar que os grupos estejam arranjados numa hierarquia de modo que as cidades maiores e com muitos

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tipos de cursos possuam os tipos de cursos encontrados nas cidades menores e com poucos tipos de cursos. Em outros termos, por ser o ensino superior uma atividade terciaria, é de se pensar que a sua localização espacial tenha atributos vinculados aos princípios da teoria das localidades centrais e para cada curso ou grupo de cursos quais os tamanhos, mínimo e médio, das respectivas cidades em que localizam (CORREA, 1974. p.03).

Portanto o tratamento da criação de um campus ou de uma Universidade representa para a espacialidade das cidades escolhidas um novo contexto urbano, por mais lento que pareça, ocorrem diversas mudanças. Significa dizer que o agente educacional conduz a concretização da rede de fixos e fluxos que vão se apropriando do espaço e, assim, consolidando a dinâmica espacial.

Referências Bibliográficas CORREA, Roberto Lobato. Contribuição à analise espacial do sistema universitário brasileiro. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, v. 36, n.1, p3, jan./mar. 1974. CÔRREA, Roberto Lobato. Espaço: um conceito-chave da Geografia. In: CASTRO, Iná Elias de. GOMES, Paulo Cesar da Costa. CÔRREA, Roberto Lobato (Orgs). Geografia: conceitos e Temas. 11ª. Edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. CUNHA, Luiz Antonio. A universidade temporã. 2. ed., revisada e ampliada. Rio de Janeiro: F. Alves, 1986. FIALHO, Nadia Hage. Universidade Multicampi. Brasília: Autores Associados: Plano Editora, 2005. FAVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. Universidade e poder. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980. FÁVERO, Maria de Lourdes de Albuquerque. BRITTO, Jader de Medeiros. (Orgs). Ensaios sobre educação e universidade/

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Dumerval Trigueiro Mendes. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2006. SILVA, Carlos Alberto Franco da. Os Avatares da Teoria da Difusão Espacial: uma revisão teórica. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, . 57, n. 1, p.25-51, jan./mar., 1995.

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UNIVERSIDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL Keila Andrade Haiashida

Introdução Em diversos países, o ensino superior tem sido valorizado e concebido como instrumento para o desenvolvimento regional. O papel das universidades sempre esteve inclinado à sua utilização pela sociedade como imperativo estratégico de desenvolvimento e progresso. Os países que souberam aproveitar as potencialidades dessas instituições evoluíram. Nosso estudo objetivou analisar por intermédio de pesquisadores da área como os documentos oficiais e as próprias universidades têm avaliado essa interface entre universidade e desenvolvimento regional. Para tanto, procedemos ao exame de três obras: O Estado e as políticas territoriais no Brasil, que permitiu compreender o enfoque territorial nos planos de desenvolvimento; A Universidade e o Desenvolvimento Regional, resultado de um seminário sediado pela Universidade Federal do Ceará e A terra, o homem e a educação: universidade para o desenvolvimento livro de compilação das principais ideias de José Mariano da Rocha Filho, fundador da Universidade Federal de Santa Maria. Reconhecemos que as universidades têm dado importantes contribuições à região, com a capacitação de recursos humanos, a pesquisa, o debate acerca dos problemas regionais, a ampliação e difusão da cultura e na interação que estabelecem com a sociedade. Na última década, foram criadas inúmeras instituições de ensino superior públicas e privadas, a grande maioria em cidades do interior do país. Nessa perspectiva uma das missões da universidade seria dialogar com a sociedade

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para ser capaz de produzir conhecimentos, considerando as características e as necessidades da região na qual está inserida.

O Enfoque Regional dos Planos Globais de Desenvolvimento A associação entre universidade e desenvolvimento foi fomentada na era Vargas (1930-1945 / 1951-1954) junto às políticas para modernização do país. Seu sucessor Juscelino Kubitschek (1956-1961) foi o responsável pela construção da nova capital federal, Brasília, executando, assim, um antigo projeto, já previsto em três constituições brasileiras, a mudança da capital federal como forma de promover o desenvolvimento do interior do Brasil e sua integração. O lema “50 anos em 5” evidencia seu interesse em acelerar o desenvolvimento nacional. João Goulart (1962-1964) prossegue com as políticas econômicas formuladas desde a década de 1950 e que se caracterizaram pela integração aos macroplanos de desenvolvimento, nos quais as questões setoriais, inclusive as regionais, passaram a ser integradas a uma estratégia que fosse válida para todo o país. Dessa forma, documentos como o Plano Trienal (1962), o Plano Decenal (1967-1976)1, O Programa Estratégico do Governo (1968-1970), o Programa de Integração Nacional (PIN, 1967), o I Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (I PND, 1972-1974), e o II Plano Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (I PND, 1975-1979)2 estabeleceram as políticas territoriais entre 1960 e 1970 e neles observamos o enfoque regional para planos globais de desenvolvimento. 1

O Plano Trienal e o Plano Decenal não foram implementados, mas suas formulações foram importantes para as políticas territoriais. 2 Desses apenas o Plano Trienal foi desenvolvido na gestão de João Goulart, os demais foram formulados durante o regime militar.

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Segundo Costa (2000), o Plano Trienal parecia ­dirigir-se principalmente para o problema nordestino3, já que suas diretrizes previam um esforço governamental para corrigir as “disparidades regionais” existentes no desenvolvimento econômico do país. No Plano Decenal pela primeira vez é apresentada de modo explicíto a proposta da integração nacional, como objetivo maior a ser perseguido pelo Estado. O PIN era formalmente dirigido ao Nordeste e à Amazônia, todavia durante sua execução ficou evidenciado que o objetivo central era a integração da Amazônia à economia nacional. A construção da Rodovia Transzamazônica, ligando o Nordeste ao extremo ocidente da Amazônia tornou-se o símbolo desse programa. Foi ainda edificada a Rodovia Cuiabá-Santarém que, junto às rodovias já existentes, ajudou a compor a base de circulação dentro do projeto de integração nacional. O I PND acentua a tendência do Estado de procurar enfocar em suas políticas territoriais estratégias de “Integração nacional” para expandir a “fronteira econômica” a partir do Centro-Sul, na direção do Centro-Oeste, Amazônia e Nordeste. No II PND percebemos uma mudança de enfoque, decorrente da política econômica global do país, num contexto de declínio dos investimentos e a partir de um diagnóstico do comportamento do comércio exterior brasileiro. Essa mudança repercutiu nas políticas territoriais, consubstanciadas em medidas agressivas relacionadas à expansão da fronteira econômica e ao tipo de ocupação econômica das chamadas “áreas vazias”. Nos projetos citados vemos a defesa da necessidade de levar o desenvolvimento a diferentes regiões do país, sobretudo aquelas consideradas mais atrasadas como o Nordeste e a Amazônia. Para tanto, foram criadas políticas territoriais que 3

A SUDENE acabará de ser criada.

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embora manifestassem o enfoque regional estavam inseridas em um plano global de desenvolvimento, pois o ideário da integração nacional foi muito presente nesse contexto histórico. Dentre as premissas para o desenvolvimento destacamos a educação que, nesse período, passa a ser reconhecida como um imperativo estratégico. Assim, vemos a constituição da tríade: desenvolvimento-educação-interiorização, pois a educação poderia induzir o desenvolvimento de regiões interioranas em descompasso com o ritmo assumido em outras partes do país.

Algumas Proposições Abordaremos a tese que defende a educação como instrumento para o desenvolvimento regional. Therrien e Cartaxo (1980) afirmavam que nesse debate dois temas eram centrais: as funções da Universidade no desenvolvimento regional (uma definição de atividades-fins) e a organização e planejamento das instituições universitárias (delimitação dos meios). Para análise das atividades-fins e demilitação dos meios numa Universidade que pretendesse o desenvolvimento regional os autores chamam atenção para uma tensão contínua nas atividades universitárias: os movimentos de reprodução e de transformação. Isso significa que a depender do modelo de Universidade que temos, os fins e os meios serão distintos. Assumimos o movimento de transformação, que pressupõe a universidade como uma instituição social capaz de incorporar a dimensão crítica como base de sua produção e superar as exigências limitadoras do movimento de reprodução. O Banco do Nordeste e a Sudene constataram, que até a década de 1980, as disparidades espaciais e de renda das regiões norte e nordeste ao invés de serem reduzidas haviam se acentuado. “Nesse período, diversas experiências foram

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desenvolvidas pelas Universidades da região na tentativa de participar e influir no padrão e nos rumos do desenvolvimento em processo” (THERRIEN e CARTAXO, 1980, p.20). Diversos pesquisadores dentre os quais destacamos Albuquerque (1980) reconhecem que as Universidades do Nordeste têm dado importantes contribuições à região, com a capacitação de recursos humanos, a pesquisa, o debate acerca dos problemas regionais, a ampliação e difusão da cultura e na interação que estabelecem com a sociedade. No Brasil e no Nordeste existe uma tendência a se subestimar a capacidade transformadora das Universidades, seu potencial de provocar mudanças sociais significativas. Isso decorre de uma visão estereotipada que representa essa instituição de forma alienada do contexto no qual se insere e afirma que seus ensinamentos, pesquisas e emanações culturais são também alienantes. É fato, contudo, que as Universidades têm mudado e estão cada vez mais cientes de seu papel social e da necessidade de responder as demandas que lhe são impostas, porém mais do que isso, da necessidade de fomentar novas demandas. Para Albuquerque (1980) o objetivo de obter melhor distribuição regional do desenvolvimento brasileiro comportaria, no caso do Nordeste: I – uma dimensão econômica, que envolve a aceleração do crescimento com vistas à redução das desigualdades inter-regionais; II – uma dimensão social, que contempla a melhoria da repartição interpessoal da renda e a redução da pobreza; III – uma dimensão política, que determina a descentralização das decisões quanto ao desenvolvimento e ampla participação da comunidade no processo de transformação econômico-social (p.24).

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Nessa perspectiva, uma das missões da Universidade seria contribuir para formulação de programas e projetos capazes de viabilizá-los, em examinar criticamente as políticas e programas governamentais, em execução ou em elaboração, com o objetivo de propor os ajustes pertinentes. Almeida (1980) chama atenção para as funções básicas da Universidade, já anunciadas por Therrien e Cartaxo (1980), a de reproduzir e de criar. Desenvolvimento é criação, produção de novas formas. Reprodução não é desenvolvimento, mas exerce uma função preliminar e introdutória relevante à sua função criadora, de ser memória ou depositária do conhecimento humano, uma comunicadora no tempo e no espaço. Assim, numa região menos desenvolvida, esta função de transferência ou incorporação espacial da informação universal tem o papel da inovação, com caráter desenvolvimentista, desde que orientada por uma atitude autonoma e não por um espírito de dependência (ALMEIDA, 1980, p.32).

A preservação da cultura regional é, portanto, outra contribuição que a Universidade pode oferecer e que terá impacto sobre o desenvolvimento, desde que fuja ao mero registro do pitoresco e do folclórico e da ideia de conservar formas pretéritas. A Universidade deve assumir o papel de defensora dos valores regionais com suas identificações e manifestações, participando de suas rotinas, isto é, rompendo os muros que a distanciam da sociedade. O Nordeste apresenta condições específicas, por esse motivo, quando se menciona desenvolvimento regional a pretensão é diminuir a distância com os estados mais desenvolvidos, além, de superar a dependência observada nas últimas décadas, fomentadas, por exemplo, pelos projetos assistenciais. Para tanto, Almeida (1980, p.41) questiona as estraté-

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gias polarizadas ou específicas que respondam a uma “luta regional” e afirma: De minha parte, só considero eficaz uma estratégia regional que integre o nordeste no desenvolvimento brasileiro, por participação, não por subordinação e dependência, ou colonialismo interno, como até agora tem ocorrido [...].

Chagas (1980) complementa que para ser fiel ao seu compromisso regional, a Universidade da região Norte e Nordeste não tem que converter-se em agência secundária de desenvolvimento, e de desenvolvimento econômico, a ministrar um ensino voltado mecanicamente ao mercado de trabalho, mas sim definir-se como um grau de ensino em íntima e recíproca dependência com os graus que a precedem; guardar coerência com a ideia de Universidade; ser autêntica no cumprimento de sua função (ensino, pesquisa e extensão); caracterizar-se de fato como Universidade brasileira, vinculando-se estritamente ao Projeto Nacional e, por fim, voltar-se para a realidade física e humana que a cerca, local e regional como justificação imediata de sua existência. Segundo Schwartzman (1980) para desempenhar sua função transformadora, as Universidades nordestinas teriam que formar grupos científicos de alto nível com independência de pensamento e atuação, pois para ele o que é fundamental nesta função transformadora é a “capacidade de pensamento original e independente que estes grupos geram, e não, necessariamente, os produtos específicos de suas pesquisas” (p.96). Para o pesquisador, os problemas do Nordeste, como os problemas do país de uma forma geral, não dependem de soluções técnicas, mas principalmente de soluções políticas e econômicas. “Em geral, é mais importante saber qual é o problema do que pretender ter a resposta” (p.96).

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A esse respeito, Alves (1980) chama atenção para as dificuldades dos docentes no curto tempo disponível para pesquisa científica ou tecnológica, terem condições de abordar problemas e encontrar soluções e defende que a pesquisa nas universidades esteja associada ao ensino, tendo como finalidade primeira o desenvolvimento da curiosidade característica do ser humano. Ademais, enfatiza que o apoio à pesquisa não deve ser questionado, mas suas linhas devem sofrer reflexão, pois ao apoiar áreas prioritárias ao desenvolvimento regional, deve ter clareza que prioridade não significa exclusividade. “No que tange à vocação regional, o excessivo apego poderá ser mais pernicioso que o descaso” (p.112). As linhas de pesquisa nas Universidades devem ser flexíveis, pois a vocação de uma região pode mudar. Demo (1980) complementa ao propor que a educação superior assume o mesmo desafio da política social, ou seja, se dedicar prioritariamente às camadas mais carentes da população, de “privilegiar as regiões mais atrasadas”, de ser intrinsecamente redistributiva, de visar a autossustentação econômica e política das comunidades. O que podemos aferir das diversas contribuições é que, ao discutir as funções da Universidade na promoção do desenvolvimento regional, devemos observar uma prática institucional relacionada a região na qual se situa. Muitos subestimam a Universidade como polo de desenvolvimento regional, mas não se pode negar que o espaço seja transformado por essa instituição. Andrade (1980) sugere a modificação dos currículos, programas e métodos, dando maior ênfase ao conhecimento específico dos problemas regionais; modificação na oferta de cursos de graduação e pós-graduação com maior peso no interesse do desenvolvimento regional; modificação nas relações da Universidade com a comunidade regional a partir da maior

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vinculação com os órgãos de desenvolvimento regional para definir demandas e orientar as ações institucionais; definição de um programa básico de pesquisas a ser desenvolvido pelas Universidades da região. É preciso alertar que uma experiência prática de Universidade e Desenvolvimento foi vivenciada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) através de um projeto idealizado por seu fundador José Mariano da Rocha Filho, responsável por inúmeras proposições cujos ecos ressoam até hoje. Dentre as propostas de Rocha Filho destacamos: a relação intrínseca entre universidade e desenvolvimento; a multiversidade; a universidade sem muros; os distritos geo-educacionais, dentro outros, que serão melhor debatidos no tópico que segue.

A Universidade como Centro de Desenvolvimento de Sua Área Geoeducacional4 Um achado interessante foi a formulação sobre áreas ou distritos geoeducacionais de José Mariano da Rocha Filho. O primeiro livro no qual abordou o assunto foi “USM: a Nova Universidade” de 1962 no qual apresenta a Universidade de Santa Maria como um modelo para o restante do país. Em 1973 produziu Universidade para o desenvolvimento: áreas-distritos geo-educacionais, que em função dos erros de impressão não chegou a ser distribuído. Uma das obras que iremos abordar A Terra, o Homem e a Educação: Universidade para o desenvolvimento (1993) foi organizada por sua filha Eugenia Mariano da Rocha Barichelo a partir da releitura de Universidade para o desenvolvimento: áreas-distritos geo-educacionais e da reunião de vários outros textos de Rocha Filho como: A nova Universidade das Américas, publicado 4

Esse é um dos subtópicos da obra de José Mariano da Rocha Filho (1993).

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nos Estados Unidos em 1973; A Terra, o Homem e a Educação, publicada no México em 1977, e um capítulo final que reúne trechos de várias obras que definem sua ideologia. José Mariano da Rocha Filho nasceu em Santa Maria (RS) em 1915. Formou-se em 1937 pela Faculdade de Medicina de Porto Alegre. Foi o fundador da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) considerada a primeira universidade federal no interior do Brasil. Defendeu a criação dessa universidade baseado no princípio que a “Universidade deve ser a alavanca do progresso de sua região”. Esteve ligado ao movimento de interiorização e democratização do ensino superior no Brasil. Foi membro do Conselho Federal de Educação e, como explicitado, criador das áreas ou distritos geoeducacionais, pelas quais defendia que a vocação do solo e a cultura da região deveriam orientar a educação. Como Conselheiro do Projeto Rondon, foi o idealizador e criador do primeiro campus avançado do ensino superior na Amazônia, em agosto de 1969. O antigo campus da UFSM em Boa Vista, no estado de Roraima, que deu origem à Universidade Federal de Roraima. A UFSM derivou da luta de José Mariano da Rocha Filho, desencadeada em 1946, quando conseguiu, liderando e articulando um amplo movimento no interior do Rio Grande do Sul, incluir no texto da constituição estadual um parágrafo que transformava a Universidade de Porto Alegre em Universidade do Rio Grande do Sul, através da anexação das duas faculdades então existentes no interior: Farmácia de Santa Maria e Direito de Pelotas. Em maio de 1949, ao se referir à incorporação, Rocha Filho fez o seguinte pronunciamento: Num país de tão grande extensão como o nosso, a descentralização do ensino superior constitui um imperativo inadiável. O conceito medieval de Universidade com seus institutos aglomerados em uma única cidade

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é sem dúvida obsoleto... Não será, pois, do interesse do governo planejar, nestes pontos, futuras universidades? (ROCHA FILHO, 1949).

Suas ideias foram fundamentais para o processo de democratização do acesso ao ensino superior no Brasil e na América Latina, e acabaram orientando o desenvolvimento e os rumos do ensino superior, conforme demonstra o depoimento do reitor da Universidade Autonoma de Guadalajara: En mi larga trayectoria como rector universitario, he tenido oportunidad de observar directamente el proceso de la Educación Superior en América Latina durante los últimos 30 años y de conocer algunos de sus protagonistas más distinguidos. Entre ellos está el Dr. José Mariano da Rocha Filho, quien fue Rector de la Universidad Federal de Santa Maria, institución que visité numerosas veces y con quien me asocié en diversas experiencias de colaboración educativa internacional. Su obra en la Universidad se caracterizó por su amplia visión de la sitiación educativa presente e futura y por las innumerables innovaciones que puso en práctica. Pienso que es uno de los grandes pioneros en el proceso de modernización de nuestra Educación Superior.5 (GUTIERREZ6 in ROCHA FILHO, 1993, p.13).

Rocha Filho foi nomeado cidadão honorário de dezenas de cidades gaúchas e brasileiras onde semeou e ajudou 5

Tradução livre: Em minha larga trajetória como reitor universitário, tenho tido a oportunidade de observar diretamente o processo de Educação Superior na América Latina durante os últimos 30 anos e de conhecer alguns de seus protagonistas mais distintos. Entre eles está o Dr. José Mariano da Rocha Filho, que era reitor da Universidade Federal de Santa Maria, instituição que visitei numerosas vezes e com quem me associei em diversas experiências de colaboração educativa internacional. Suas obras na Universidade se caracterizaram por sua ampla visão da situação educativa presente e futura e pelas inúmeras inovações que pôs em prática. Penso que é um dos grandes pioneiros do processo de modernização da nossa Educação Superior. 6 Dr. Luis Garibay Gutierrez Reitor da Universidad Autonoma de Guadalajara – México.

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a desenvolver o seu projeto de universidade comunitária, da universidade ligada a terra e ao homem que nela habita. Suas ideias mudaram a história do ensino superior e ultrapassaram as fronteiras do Rio Grande, como demonstra o título de Educador das Américas que recebeu em 1972, num encontro de reitores latino-americanos. Em 1999 foi eleito um dos 20 Gaúchos que marcaram o Século XX. Após realizar uma viagem por diversos países, visitando universidades como a John Hopkins University nos Estados Unidos, a Universidade da Pensilvânia, a Universidade de Harvard dentre outras afirmou “A Educação, hoje, transformou-se na preocupação máxima de todos os governos. Verificamos que a crise existente nesse setor varia dos países subdesenvolvidos aos países desenvolvidos, com soluções diferentes para uns e para outros” (1993, p.27). Ressaltava que o problema educacional brasileiro era extremamente complexo e, para determinar melhores soluções, seria necessário, em primeiro lugar, avaliar o nosso sistema educacional. Por isso uma de suas proposições foi estabelecer o entrosamento entre os diferentes graus de ensino. A Universidade Federal de Santa Maria constitui-se, assim, em oportunidade de demonstrar suas ideias de forma prática. Para tanto, sugere a construção da cidade universitária, que, segundo ele, seria “o conjunto de edificações dispostas de modo ordenado, de acordo com as funções que desempenham no âmbito da vida e do trabalho de uma Universidade” (ROCHA FILHO, 1993, p.33). Ao apresentar sua proposta de cidade universitária, chama atenção para a forma como as universidades se organizaram, ou seja, a partir de escolas isoladas, estanques, autônomas e dispersas. A proximidade em uma cidade universitária planejada facilita o uso de centros e institutos. A centralização de todos os serviços ad-

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ministrativos permite economizar de maneira impressionante os recursos públicos. Outra medida interessante foi a Universidade sem Muros, subsidiada pela necessidade de aproximar a universidade de sua comunidade. “Uma universidade não deve cingir-se unicamente dentro dos limites físicos dos seus campus. Ela deve ultrapassá-lo, tendo em vista a necessidade de prestar serviços efetivos à zona geo-econômica onde está situada” (1993, p.37). Insistiu no imperativo da Multiversidade, isto é, Universidades de campi múltiplos, planejados de acordo com as necessidades geoeducacionais de um distrito. A área geo-educacional de uma Universidade é definida como a região onde se situa e onde, por força das atividades que desempenha, orienta o ensino e a pesquisa em consonância com o seu microclima, com a formação do seu solo, a riqueza so seu subsolo e a variedade e aproveitamento de seus produtos, o que constitui a “vocação do solo”. Na experiência da UFSM, a área geoeducacional foi definida a partir da zona microclimática que seriam áreas com mesmo clima, mesmo solo e mesma precipitação pluviométrica, capaz por estas consições de desenvolver as mesmas culturas e as mesmas criações. A partir da identificação dessas zonas (zona do alto uruguai, zona das missões, zona da campanha, planalto central, encosta superior do nordeste, depressão central e serra do sudoeste) estava delimitada e estudada em suas potencialidades básicas a área geoeducacional, restava sugerir e planejar ações que apressassem o desenvolvimento dessa área. Dentre as diversas ações que objetivavam o desenvolvimento da área geoeducacional destacamos: estudo e pesquisa sobre os problemas mais importantes da região; a criação dos Colégios Integrados de Aplicação (colégios de nível médio)

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instalados nas zonas microclimáticas homogêneas que possibilitaram a efetiva participação da universidade no desenvolvimento global dos conjuntos de municípios, pelo aperfeiçoamento das técnicas e pela fixação do homem ao seu habitat e as atividades de extensão realizadas através de convênios no intuito de responder as demandas regionais. Em 1961, Rocha Lima defendeu a necessidade de um plano geral de desenvolvimento do Brasil, realizado com o apoio das Universidades. Ele esboçou a divisão do país em áreas ou distritos geoeducacionais, correspondendo cada um as universidades estatais existentes, pois acreditava que a elas seria mais fácil, tratando-se de estabelecimentos oficiais, cobrar do governo trabalhos de interesse da coletividade. A reforma de 1968 incorporou a ideia da divisão do país em distritos geo-educacionais, mas para Rocha Lima o desejo de pôr a proposta rapidamente em prática, induziu equívocos, que poderiam ser corrigidos para que a implementação ocorresse de fato. Rocha Lima pode ser considerado um visionário do movimento de interiorização do ensino superior e seus principios ecoam até hoje. A defesa da universidade para o desenvolvimento foi acionada pela educação e pelos educadores, assim como a multiversidade, a universidade sem muros, as cidades universitárias, as áreas geoeducacionais (ainda que sem o planejamento e critérios que ele defendia), dentre outros.

Considerações Finais Dentre as funções da universidade tem conquistado destaque a possibilidade de promover o desenvolvimento regional. Pensar sobre esse tema significa reconhecermos a influência que a universidade brasileira exerce em relação à sociedade.

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Neste sentido, as universidades vêm sendo consideradas como um dos elementos centrais para o desenvolvimento regional, uma vez que, causa influência direta sobre a região em que se localiza. Por um lado, atua como empregadora e como geradora de fluxos de gastos dentro da região. Por outro lado, existem impactos dinâmicos de interação entre as universidades e as empresas localizadas na região. Um exemplo interessante é o da Universidade Federal de Santa Maria, reflexo das ideias de seu fundador José Mariano da Rocha Filho. Essas ideias foram fundamentais para o processo de democratização do acesso ao ensino superior no Brasil e na América Latina, e acabaram orientando o desenvolvimento e os rumos do ensino superior, com conceitos como: multiversidade, a universidade sem muros, as cidades universitárias e as áreas geoeducacionais.

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CHAGAS, Valnir. A Universidade e a sua função de ensino. In: ANDRADE, Antonio Cabral de et al. A universidade e o desenvolvimento regional. Fortaleza: Edições UFC, 1980. COSTA, Wanderley Messias da. O Estado e as políticas territoriais no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2000. DEMO, Pedro. Extensão Universitária algumas ideias preliminares. In: ANDRADE, Antonio Cabral de et al. A universidade e o desenvolvimento regional. Fortaleza: Edições UFC, 1980. ROCHA FILHO, José Mariano da. A terra, o homem e a educação: universidade para o desenvolvimento. 2. ed. Santa Maria: Editora Pallotti, 1993. SCHWARTZMAN, Simon. Algumas sugestões sobre o papel e a organização da Pesquisa Científica nas Universidades do Nordeste. A Universidade e a Pesquisa. In: ANDRADE, Antonio Cabral de et al. A universidade e o desenvolvimento regional. Fortaleza: Edições UFC, 1980. THERRIEN, Jacques; CARTAXO, Helena. A Universidade e o desenvolvimento regional: elementos para um debate. In: ANDRADE, Antonio Cabral de et al. A universidade e o desenvolvimento regional. Fortaleza: Edições UFC, 1980.

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CAPÍTULO 5

Cidade, Memória e Patrimônio

ESPAÇO URBANO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL NAS FOTOGRAFIAS DO SÉCULO XIX Marcelo Eduardo Leite

Apresentação O presente artigo tem como objetivo central discutir questões relacionadas à espacialidade urbana e algumas possiblidades de representações sociais nas fotografias carte de visite1 feitas na cidade de São Paulo na segunda metade do século XIX. Para tal, nossa análise se detém em imagens feitas no ateliê Photographia Americana, de propriedade de Militão Augusto de Azevedo.2 O recorte proposto nos permite vislumbrar algumas formas de construção de autoimagens da população negra da cidade, especificamente nos final do Segundo Império, quando a escravidão negra caminhava para seu fim. É por meio de tais imagens, também, que exemplificamos alguns procedimentos específicos da profissão, a qual se fazia como mediadora das mais variadas formas de afirmação da sociedade no século XIX. Nosso enfoque tem como aspecto mais relevante o fato do referido estúdio ser diferenciado, ficando num espaço da cidade de São Paulo habitado e frequentado pela população 1 Derivadas do negativo de colódio úmido, as cartes de visite foram desenvolvidas

em 1854 pelo francês André Disdéri. Tais imagens consistem em retratos realizados em estúdio que, devido a um sistema de lentes múltiplas, eram produzidos em série. Medindo aproximadamente 5 x 9 centímetros, eram cortadas e coladas em pequenos cartões que levavam no verso o símbolo do ateliê que as produziu. Foi o produto fotográfico mais popular da segunda metade do século XIX em todo mundo. 2 As referidas fotografias estão aos cuidados da Seção de Documentação do Museu Paulista, sendo a coleção formada por livros de controle do ateliê e fotografias avulsas. No total são 12.000 imagens. Para fins de consulta, as imagens podem ser analisadas por meio de um banco de dados informatizado.

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negra, escrava ou não. Desta forma, a relação dele com a geografia urbana, determina sua maneira de ser. Este exemplo nos possibilita compreender como os fotógrafos participavam da afirmação de tal segmento, agindo à sua maneira no processo de modificação política e social de uma nação em transformação.

A Cidade de São Paulo dos Últimos Anos da Escravidão O século XIX é marcadamente um período de grandes transformações para a sociedade brasileira, nos seus mais variados aspectos. A segunda metade do século XIX é, por sua vez, um período no qual o Brasil vive uma razoável situação de estabilidade econômica. É neste momento que alguns costumes europeus chegam mais facilmente ao país: do modo de vestir às atividades culturais. Neste instante, evidencia-se de forma mais clara o paradoxo típico da dramática convivência entre nós de uma minoria rica e letrada e uma ampla camada pobre e analfabeta. As maiores cidades brasileiras contam com uma elite que se faz uso das modas europeias, copiam valores estéticos e buscam se afirmar sob tais valores. Sendo o leque, a echarpe e o xale, componentes indispensáveis da vestimenta, sem os quais uma mulher “de nível” não se apresenta em público. Para os homens, a cartola, a bengala e as luvas têm igual importância na construção simbólica da posição social. A cidade de São Paulo é espaço privilegiado para estas transformações. Capital de uma província que, a cada dia, tem um papel mais destacado na vida política e econômica da nação, caracteriza-se ainda por ser ponto de passagem e parada de inúmeras pessoas que se deslocam da capital imperial para as províncias do Sul. Sua população cresce rapidamente, indo

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de 25.000 em 1860, para 35.000 em 1880 e 47.000 habitantes em 1896. Parte dessa população vive na região periférica, nas quais são produzidos vários dos gêneros consumidos pela população, como hortaliças, frutas, laticínios etc (WISSENBACH, 1998, p.129-33). A divisão entre as regiões mais afastadas e a central é demarcada pelas pontes que cruzam os rios, riachos e córregos da cidade. Essas passagens exercem uma “[...] função simbólica na organização espacial”, delimitando não só uma mudança nas formas de ocupação propriamente dita, mas também nas regras de comportamento. É nelas que a cidade encontra também um espaço de interação social, por meio do vaivém das pessoas que se deslocam para o centro. Por elas passam tropeiros, carreteiros, lavadeiras, e escravos, que na sua maioria vão à região central, onde desenvolvem seus ofícios (WISSENBACH, 1998, p.179-83). A população escrava da cidade é, em 1872, de 3500 indivíduos, o que constitui aproximadamente 15% da população na época3. O contingente negro – cativo ou forro - residente na cidade, proporcionalmente pequeno, tem sua visibilidade multiplicada por ter como seu espaço de convívio e expressão a rua. É nela que a população negra se reúne, aglomerando-se nos largos e chafarizes, onde ocorrem as rodas de capoeira e batuque. Tais concentrações despertam a indignação de parte da população que define a casa como seu espaço de sociabilidade. A população branca, com sua vida reclusa e sua privacidade garantida, lança seus olhos críticos e sua moral sobre as formas de ser dessa população. Mas os limites geográficos da cidade vão aos poucos sendo alterados pelas transformações vividas, sendo a ferrovia um dos principais fatores de mudanças. A primeira a servir 3

Nesse momento, a população escrava da província de São Paulo é 156.612, para 837.734 pessoas no total (CONRAD, 1975, p.361).

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à província é inaugurada em 1867, ligando São Paulo a Santos, e tendo como objetivo principal o escoamento da produção cafeeira, que até então era feito com o uso de animais (SILVA, 1976, p.57). Dez anos depois, em 1877, foi feita a ligação com o Rio de Janeiro. As mudanças na sociedade realmente avançam, e alteram inúmeras formas de se fazer representar, de brancos e negros. E, ao construir as suas autoimagens, as pessoas têm nos fotógrafos aliados muito importantes. Assim, a população encontra um profissional que é cúmplice para sua afirmação no contexto social.

O Ofício Fotográfico e o Ateliê Photographia Americana Na década de 1860 delineia-se de forma mais clara o perfil do profissional da fotografia. É exatamente quando se popularizam a fotografia, o fotografado e o fotógrafo. Dezenas de manuais publicados e equipamentos mais modernos permitem que pessoas com pouco conhecimento técnico trabalhem nesse novo mercado. A sala de poses é o local do ateliê onde se constrói a cena fotográfica; é o espaço onde alguns elementos básicos se impõem para o seu funcionamento, tais como [...] telões pintados com decorações exóticas e barroquizantes, colunas, mesas, cadeiras, poltronas, tripés, tapetes, peles, flores, panejamentos, para criar imagens de opulência e dignidade (FABRIS, 1991, p.21).

Ao fundo da sala de poses, e enquadrando as costas do cliente, deveriam ser colocados painéis, sobretudo pinturas de paisagens diversas. Esses devem ser móveis a ponto de permitir a sua substituição, de acordo com o gosto do cliente, de modo a obter harmonia entre a imagem desejada e o retratado. Os retratos possuem na pose, no planejamento técnico e no uso correto de acessórios, tais como móveis e objetos,

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elementos pertinentes ao seu bom desenvolvimento. Dentre esses, talvez seja a pose o elemento que melhor contribui para diferenciar os retratos, motivo pelo qual o retratista procura evitar a massificação. Alguns manuais indicam como posicionar o olhar do retratado; outros dão sugestões de como posicionar o cliente diante da parafernália da sala de poses, apoiando o modelo nos móveis e pilares ou balaustradas da cena fotográfica. Outro ponto muito interessante, com relação à composição cênica, vem do fato de os fotógrafos muitas vezes se inspirarem nos retratos feitos pelos pintores. Tudo isso ocorre num momento em que os elementos da vida burguesa são difundidos com rapidez e as representações de status ganham importância diante de uma nova realidade que acena para a possibilidade de ascensão social. Nesse contexto, a vestimenta adquire enorme importância e passa a participar da construção dessa nova ordem. A fotografia, aliada à moda, passa a interagir no processo de construção e representação de novos valores. Nas palavras de Gilda de Mello e Souza, a moda serve [...] à estrutura social acentuando a divisão de classe; reconcilia o conflito entre o impulso individualizador de cada um de nós (necessidade de afirmação como pessoa) e o socializador (necessidade de afirmação como membro de grupo) [...],

exprimindo ideias e sentimentos. É também quando se evidencia de forma clara a moda masculina e a moda feminina, “[...] traduzindo os antagonismos dos ideais de masculinidade e de feminilidade”, mostrando-se um reflexo dos novos papéis sociais, traduzindo a divisão dos dois mundos (SOUZA, 1987, p.47-57). A roupa não só contribui para a afirmação dos valores sociais; ela é, antes de tudo, uma expressão da maneira de ser desse novo homem. Atentos aos novos valores estéticos da

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sociedade, os fotógrafos percebem a sua importância e procuram explorar, ao máximo, a roupa do retratado. É quando a casaca e a cartola tornam-se elementos imprescindíveis da ornamentação masculina burguesa: “[...] todo homem decente terá de possuir ao menos uma [...]” (SOUZA, 1987, p.54). Muitos homens são retratados envergando uma simbologia que os distancie do mero trabalhador braçal, já que é importante transpor a imagem típica dos primeiros representantes da classe burguesa. A indumentária feminina, ao contrário, tem nas formas arredondadas do corpo da mulher um ponto a ser destacado. Para a mulher, a beleza é salientada, sendo as vestimentas ricas em fitas, bordados e rendas. Assim, no campo estético e cultural, salienta-se o distanciamento entre a condição masculina e a feminina. Outro recurso muito explorado é o retrato de “corpo inteiro”, o que permite ao fotógrafo cercar o retratado de “[...] artifícios teatrais que definem seu status, longe do indivíduo e perto da máscara social, numa paródia de auto-representação [...]”, em que se unem realismo e idealização. No caso das cartes de visite, os retratos de “corpo inteiro” são a forma mais completa de junção da série de elementos mobilizados na elaboração da cena fotográfica. São também nestes retratos de “corpo inteiro” que os clientes podem introduzir a sua própria indumentária, trazendo desde objetos cotidianos à roupa do dia a dia, podendo ostentar traços da moda desejada, e muitas vezes inacessível. Procuram, por meio desses objetos, contar a sua própria história, já que os “retratos de corpo inteiro” agregam os fragmentos da personalidade do indivíduo, que são incorporados e reincorporados na sala de poses, que é o local onde se estabelece esta construção imagética que projeta os indivíduos. No bojo desta expansão da profissão de fotógrafo, no ano de 1862, chega à cidade de São Paulo, vindo do Rio de

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Janeiro, um dos personagens mais ilustres de toda a sua história: Militão Augusto de Azevedo. Vindo inicialmente para trabalhar como ator, acompanhando a Companhia Dramática Nacional, ele acaba, pouco depois, tornando-se fotógrafo, profissão que viria a consagrá-lo como um dos mais importantes que já passaram pela cidade. Tudo indica que a nova profissão é escolhida num processo de busca de um trabalho mais estável, já que é nesta época ele constitui família. Sua atividade tem início no ateliê Carneiro & Gaspar, onde foi como fotógrafo e gerente até 1875, momento que adquire o estabelecimento, transformando-o no ateliê Photographia Americana. As fotografias de Militão, de modo geral, se inserem num novo bloco de produções imagéticas do século XIX no Brasil, que tem nos retratos em estúdio seu produto mais popular. Esta etapa tem seu início por volta de 1860, com o surgimento de um grande número de ateliês fotográficos nas mais importantes cidades do país. Como a maioria dos estabelecimentos do período, o ateliê de Militão tem nas cartes de visite seu produto mais difundido. No período no qual Militão atua na cidade de São Paulo, existem aproximadamente seis ateliês fotográficos instalados, sendo que o ateliê Photographia Americana se destaca por ser mais popular que os demais. O preço pedido pelas cartes de visite no ateliê é um dos mais baratos de São Paulo, sendo que uma dúzia de retratos custa 5$000 (cinco mil réis) (LIMA, 1991, p.75). Mesmo reconhecendo que, pelas condições da sociedade brasileira na época, não podemos afirmar que tais imagens são um produto popular, por outro lado, é notório que as cartes de visite abarcam novos segmentos da sociedade. Ao observar as imagens por Militão notamos que foram retratados alguns personagens oriundos das camadas mais pobres da sociedade. Principalmente pelo fato do Photographia Americana estar localizado defronte à Igreja

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do Rosário, ponto de encontro da população negra paulistana, na rua da Imperatriz, 58. Isso, sem dúvida, dá a ele características bem peculiares, já que os outros estabelecimentos estão instalados nas regiões dos Largos da Sé e São Francisco. Isso explica em parte a grande quantidade de negros fotografados, bem como a própria forma em que estes aparecem nessas fotos: como cidadãos à procura de uma afirmação social. Ao estar próxima do ateliê, a Igreja do Rosário acaba tendo uma importância maior do que inicialmente possa parecer. Ao lado do templo existem pequenos casebres pertencentes a Irmandade e que são ocupados por negros. Ali, também está localizado o cemitério dos negros, nos quais o sepultamento era “[...] feito à noite, com ritual, próprio, em que são evocados, disfarçadamente, ritos ancestrais”. O local é ainda espaço para rituais religiosos, nos quais ocorriam “[...] danças e cânticos no adro, executando a célebre música Tambaque” (FERREIRA, 1971, p.38). No entorno, muitos se aglomeram nas quitandas, casinhas e escadas da própria igreja, sendo o comércio de rua muito intenso naquela área (DIAS, 1984, p.86). Dentre os personagens que usam da fotografia para se mostrar, a população negra é um grupo muito importante. É o período no qual os negros se distanciam da escravidão, e se fazer representar como homem livre é muito importante. Nesse sentido, é comum a sua utilização para a manifestação de status dentro de padrões e valores tradicionais da sociedade burguesa. As cartes de visite disponíveis como um bem de consumo podem ser, e são de fato, utilizadas por negros com melhores condições econômicas (alforriados ou não). Afinal, aos poucos esta população marginalizada vai tendo na fotografia uma possibilidade de afirmação social. Admitir essa projeção da população negra é chamar a atenção para a existência de certa “diversidade” de condição

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de vida entre os negros no país na segunda metade do século XIX, o que não significa desconhecer as dramáticas condições de dominação existentes entre brancos e negros no Brasil imperial. De qualquer modo, faz-se necessário reconhecer a existência de distintas possibilidades de inserção do negro na sociedade que se forma entre nós neste período do século XIX. Em 1850, com a extinção do tráfico internacional de escravos e, dez anos depois, com a aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, ocorre um crescimento acelerado dos processos de libertação de cativos, com a instituição de novas práticas, tais como: a não separação de famílias, o direito a pecúlio e a aquisição da liberdade pelo próprio escravo. Por outro lado, com o fim da entrada maciça de escravos africanos no país, e com o consequente crescimento do tráfico interno para sanar problemas de mão de obra, vemos o encontro de escravos vindos de diversas localidades do país e que são possuidores de experiências diferenciadas. A província de São Paulo é vital para essa discussão, já que nela se implanta tardiamente a sociedade escravocrata, possibilitando que observemos com mais nitidez essa heterogeneidade. Na São Paulo das últimas décadas da escravidão, a população escrava vai, paulatinamente, convivendo com uma população crescente de negros libertos. Só para termos uma ideia, a população escrava na província de São Paulo, segundo dados oficiais, é estimada em 116.985, em 1854, subindo para 174.622, em 1874, e mantém-se praticamente estável em 1884, totalizando 167.493 pessoas. Às vésperas do fim da escravidão, em maio de 1887, o total de escravos na província paulista corresponde a 107.329 indivíduos (CONRAD, 1975, p.345-65). Com um processo de “popularização” dos retratos, as representações de status, outrora restritas aos brancos, vão sendo cada vez mais praticadas pela população negra. Alguns dos negros

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[...] compareciam aos ateliês e contratavam os serviços do fotógrafo – cuja clientela é, na sua grande maioria, constituída só de brancos - fazendo-se representar segundo os moldes europeus: fraque, colete, cartola, luvas e bengala (KOSSOY e CARNEIRO, 1988, p.174-5).

Assim, se a indumentária burguesa dita moda e modela aqueles que buscam se inserir nesta sociedade, o homem negro, livre ou não, participa também desse jogo de afirmação social, ainda que em menor grau. Do retratista ao retratado, da cópia fotográfica ao observador, existe uma sequência que conta a história da imagem. Na composição da cena, alguns elementos ganham uma grande importância. Seja na escolha da pose, da roupa, da mobília ou da indumentária cênica, componentes que têm um papel fundamental nessa produção. Dois aspectos devem ser lembrados de imediato no que diz respeito às vestimentas. Primeiramente, devemos destacar o fato de os ateliês oferecerem aos seus clientes algumas peças para uso na composição das fotografias. Mas não podemos esquecer que é também na oficina fotográfica que as pessoas podem desfilar seu guarda-roupa pessoal. É nele também que os clientes exercitam, de certa maneira, seu senso crítico com relação à composição das fotografias. Opinando na construção dos retratos, eles interagem não só no processo de escolha da pose, roupa e indumentária, mas analisando os resultados obtidos. Ao analisarmos as imagens produzidas no Brasil, as que retratam a população negra merecem destaque. E, dentre elas, as produzidas por Militão Augusto de Azevedo são possuidoras de peculiaridades que merecem nossa atenção, para que percebamos as diversas formas de se fazer ver por meio da fotografia.

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A Representação dos Negros em São Paulo Dentre o material deixado por Militão Augusto de Azevedo, existe um número considerável de negros retratados, e para ilustrar ,selecionamos três deles. Na imagem 1, vemos um casal, que é também um exemplo de um segmento que procura com frequência os ateliês. Nesse caso, as cartes de visite servem para evidenciar a harmonia de papéis sociais. E, como alerta Miriam Moreira Leite, os retratos de casais são possuidores de um teor legitimador e publicitário; é por meio deles que muitas vezes estabelecemos uma relação com a própria lembrança do rito matrimonial (LEITE, 1993, p.111-28). Imagem 1 – Coleção Militão Augusto de Azevedo

Nessa imagem, um casal que, de pé, lança seus olhares diretamente à câmera do fotógrafo. O homem descansa o braço esquerdo sobre a mulher e toca o seu ombro. Na vestimenta, notamos suas calças apertadas ao corpo. Isso se evidencia pelo fato dele colocar a perna esquerda um pouco à frente, o suficiente para que o tecido se cole ao joelho. A casaca está presa apenas pelo botão superior, o que permite uma abertura, mostrando a parte inferior do colete, também aparentemente apertado. Seu olhar é sério, seus cabelos curtos e divididos ao meio.

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A mulher, apoiando o cotovelo esquerdo sobre o “balcão” da sala de poses, procura imobilidade. Assim como o companheiro, ela também veste roupa escura. Seu cabelo, dividido ao meio, aparenta ter sido preparado para a encenação fotográfica. O braço direito solto, e posicionado rente ao corpo, provoca uma simetria com o braço direito do homem. Sua roupa é apertada e colada ao seu corpo, na parte superior mostra algumas pregas e na inferior apresenta uma sequência de babados. As linhas provocadas pelo tecido acentuam, a meu ver, já mencionada, aparência do modelo. Esta imagem também nos remete à importância que deve ter um retrato desse tipo para a população negra, até pouco impossibilitada de constituir plenamente suas famílias. Dessa forma, devemos realmente considerar que a fotografia assume realmente um papel importante na afirmação desses segmentos, mesmo que, para tal, essas pessoas tenham que seguir padrões definidos pelos modismos predominantes. No segundo exemplo, vemos fotografias de crianças que, do ponto de vista de sua construção cênica, pouco diferem dos retratos de adultos em geral. Nas palavras de Ana Maria Mauad, o enquadramento apresentado demonstra a repetição de poses e o uso de vestimentas iguais às usadas para a clientela adulta. É verdade também que as roupas no século XIX não servem estilisticamente às crianças e aos pré-adolescentes. Outro elemento perceptível nas imagens é a existência de um “olhar adulto” nos retratados (MAUAD, 1999, p.142). Outro tipo de retrato comum é o que mostra irmãos posando juntos. Essas imagens cumprem, também, um papel de afirmação da unidade familiar. O exemplo da imagem 2 é uma boa amostra disso. Nela vemos dois jovens negros. Do lado esquerdo da fotografia, o menino, sentado confortavelmente na cadeira de madeira, veste um terno visivelmente

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folgado em seu corpo; isso pode ser notado principalmente nas golas do paletó. A expressão é séria, porém sua forma relaxada de sentar exprime descontração. Sua roupa está em sintonia com a moda da época, já que os jovens retratados no século XIX reproduzem a sisudez da moda masculina, já que os trajes leves e mais claros só são difundidos bem no final do século XIX (MAUAD, 1999, p.142).

Imagem 2 – Coleção Militão Augusto de Azevedo

Postada ao seu lado, a menina tem o braço direito apoiado sobre uma mesa. Seu olhar é sério e direto. Seu vestido branco, com babados, aparenta não estar ajustado perfeitamente ao seu corpo. Notamos, inclusive, que as mangas estão ligeiramente enroladas, detalhe que é mais visível no braço esquerdo. Os cabelos estão penteados ao meio. É comum, nessa modalidade de fotografia, que o irmão mais velho assuma uma aparência mais sisuda, demonstrando certa liderança, mas não é que parece ocorrer nessa fotografia. Mas o detalhe mais significativo dessa imagem, como dito, é constatarmos novamente a necessidade de afirmação da unidade familiar dos negros. É marcante, principalmente por esse momento, em que é iminente o fim da escravidão e, obviamente, quando essa população

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necessita ser visto, que deixando claro que agora é possível se estruturar em família. A imagem 3 é extremamente emblemática e já foi analisada anteriormente por Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro (KOSSOY e CARNEIRO, 1988, p.173-92). A referida fotografia mostra um jovem negro, que apresenta uma expressão extremamente rígida e séria, o que, neste caso, acentua a iminente busca de autoafirmação pelo modelo. Vestindo uma sobrecasaca preta visivelmente larga e alongada, chegando, inclusive, à altura dos joelhos, ele apoia sua mão esquerda sobre a “mureta com colunas” da sala de poses, o que faz dobrar o braço e denuncia ainda mais o alargamento das suas vestes. Sob a sobrecasaca, uma camisa branca que se estende até a altura dos pulsos. Ainda na camisa, podemos notar que foi colocada uma gola, que é mais um dos artifícios de vestimenta dos ateliês, muito usado para enriquecer as vestes de um cliente pobre. As calças são alargadas, e notamos a sombra da barra na perna direita. As pontas dos dedos da mão direita seguram uma bengala que, ao se posicionar em diagonal em relação às linhas do retrato, cria uma simetria com o antebraço esquerdo do modelo. Seu olhar, seguindo uma postura já vista por outros retratados, aparenta estar perdido num ponto qualquer do ateliê, o que, no nosso entendimento, imprime a ele um ar de descontração e segurança. Ao seu lado, descansa sobre a “mureta com colunas” o seu chapéu. Nos pés, um impecável e lustroso sapato, o que reafirma sua condição de pessoa livre. Ao estudar tais imagens, devemos estar atentos a um ponto muito significativo: os modos de vestir. Nas formas de representação por meio das cartes de visite, Carlos Lemos alerta para o fato de que, ao observarmos essas imagens, devemos estar atentos para que nelas não vejamos somente o “vestir”, mas também o “saber vestir”. Isso é pertinente, já que se observa, em

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alguns casos, que a indumentária acaba se tornando um incômodo para a pose, fazendo com que o retratado demonstre certo desconforto com o “personagem” que incorpora. Se isso é verdade, em muitos casos notamos exatamente o contrário, pessoas com posições antagônicas na sociedade, mas que, do ponto de vista das representações de status, possui a mesma desenvoltura para exibir os sinais da moda (LEMOS, 1983, p.58). Imagem 3 – Coleção Militão Augusto de Azevedo

As três imagens, ao serem analisadas sequencialmente, mostram que existem, entre a população em geral, maneiras diferenciadas de se fazer retratar. Ou seja, estamos novamente diante da questão do “vestir” e do “saber vestir”. No geral, o que essas imagens nos mostram de verdade é que estes homens, mulheres, crianças e adultos estão realmente em busca do seu lugar no contexto social e, para tal, contam com o imprescindível talento de Militão que, antes de tudo, é cúmplice dos indivíduos dessa cidade. Cidade que congrega os mais variados anseios e desejos e as mais variadas formas de dominação, que provocam, por sua vez, a imediata vontade de se afirmar. O fato é que, ao estudarmos tais imagens, sem termos anotações exatas realizadas pelo fotógrafo sobre os registros,

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é difícil afirmar com precisão quem são, exatamente, os homens retratados. Por outro lado, isso permite ao pesquisador levantar uma gama de questões que estão presentes no contexto social em questão. As imagens que observamos, sem dúvida, estão repletas de indícios que permitem entrever a realidade social dos mesmos. A década de 1880 é marcada pela transição do trabalho escravo para o trabalho livre, e a sociedade paulistana vai gradativamente convivendo com dois fatos distintos: a vinda da população imigrante europeia e a chegada de parte da população negra aos centros urbanos. A cidade de São Paulo que, como vimos, é também espaço para a afirmação da população negra que busca agora um lugar na sociedade em formação. As imagens de Militão são um bom exemplo de como essa população usa de artifícios, até então restritos à população branca, para se afirmar nessa sociedade em transição. Atuando até 1885, quando fecha seu ateliê, Militão deixa, porém, um rico material que é imprescindível para entendermos melhor a sociedade do século XIX. E, inventariando a fotografia brasileira, tais imagens aparecem como uma referência extremamente relevante para o entendimento da cidade de São Paulo, sua população e seus modos de vida. Ao abordarmos as imagens carte de visite que retratam a população negra, ele torna-se uma referência ainda mais forte. Aqui, nessa São Paulo que observamos, chegam e desaparecem valores, criando e, ao mesmo tempo, excluindo formas de expressão. Os negros retratados por ele são uma fonte insubstituível de informações e remetem a uma história que se dirige a alguns dos detalhes da vida desta população. Isso nos apresenta uma fonte imprescindível para se entender a sociedade brasileira do século XIX, podendo gerar variados respostas a um grande número de inquietações.

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Referências bibliográficas CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. DIAS, Maria Odila L. da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. FABRIS, Annateresa. Fotografia usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp, 1991. FERREIRA, Barros. O nobre e antigo bairro da Sé - Série História dos bairros de São Paulo – X. São Paulo: Prefeitura do Município, 1971. KOSSOY, Boris e CARNEIRO, Maria Luisa Tucci. O olhar europeu: o negro na iconografia brasileira do século XIX. São Paulo: Edusp, 1994. LEITE, Marcelo Eduardo. Militão Augusto de Azevedo: um olhar sobre a heterogeneidade humana e social de São Paulo (1865-1885). Dissertação (Mestrado em Sociologia). Araraquara SP: UNESP, 2002. LEITE, Miriam L. Moreira. Retratos de família. São Paulo: Edusp, 1993. LEMOS, Carlos. Ambientação Ilusória. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (Org.). Retratos quase inocentes. São Paulo: Nobel, 1983. MAUAD, Ana Maria. A vida das crianças no Segundo Império. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999. SILVA, Sergio. Expansão Cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1976, SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das roupas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas. – Escravos e forros em São Paulo (18501880). São Paulo: Hucitec, 1998.

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A CIDADE É A ROÇA: POLÍTICA E CULTURA NO CARIRI CEARENSE DE HOJE Edson Soares Martins Antônio Bilar Gregório Pinho Fernanda Lima Fernandes

A reflexão que pretendo aqui desenvolver não possui ainda a sistematicidade que pretendo conferir-lhe e deve, portanto, ser compreendida como um esboço do momento mais atual da construção do argumento e da exploração de seus componentes mais importantes. Uma das razões que me incomodam na proposição de um esboço como esse é que esse tipo de comunicação breve não serve à articulação necessária das dimensões sincrônica e diacrônica dos eventos e comportamentos que estão na base da atividade reflexiva, de modo que o velho problema do tempo cobra seu tributo de forma severa. A oportunidade de dialogar, contudo, faz-nos abdicar da maturação solitária e custosa que elegemos como imperativo de nossa colaboração aos estudos que versam sobre os variados aspectos da cultura no Cariri cearense. Proponho, de imediato, um recorte, que facilitará a exposição da tese central deste texto. Limitarei nossas considerações ao conjunto de agentes culturais com os quais temos lidado mais cotidianamente, que são os cantadores e brincantes do coco. A tese pretende explorar como as políticas culturais constroem um lócus musealizado e conservador como espaço privilegiado da ocorrência desse patrimônio cultural. Seguirei muito de perto a lição de Néstor Garcia Canclini, configurada, para o que nos interessa aqui, em seu Culturas híbridas. Eventualmente, um ou outro referencial pode se agrupar às nossas assertivas e argumentos, sem, todavia, disputar com o mestre mexicano o papel de eixo central das palavras que alinho aqui.

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Alguns Coquistas do Cariri: Pessoas e Grupos No cariri cearense, o Behetçoho – Núcleo de Pesquisa em Cultura Popular, vinculado à Universidade Regional do Cariri, vem trabalhando na identificação de cantadores de coco. Na etapa preliminar, recentemente concluída, dois grupos foram identificados no Crato, um em Juazeiro do Norte, além de um colaborador isolado no Crato e outro em Farias Brito. No universo dos, aproximadamente, cem cocos recolhidos, é possível inventariar no repertório cearense um conjunto significativo de temas, melodias e combinações melódico-textuais. Os cocos, em seu conjunto, aparentemente contêm poucas marcas temáticas e textuais que pudessem indicar uma particularidade regional, sendo mais marcante a proximidade com os cocos colhidos por Mário de Andrade, na viagem de 1928-1928 e pela Missão de 1938. O mesmo se pode dizer de D. Naninha (Crato) e Seu Ciro Tatu (Farias Brito), acentuando-se em seus repertórios o aspecto relevante que ocupa a preservação dos cocos, tal como aprendidos na infância, em inícios das décadas de 30 e 40 do século passado. Foto 1 – Mestra Maria da Santa e o Grupo Cultural Amigas do Saber, em apresentação no II Colóquio Nacional de Pesquisa em Cultura Popular. Crato, Universidade Regional do Cariri, 14 de abril de 2013

    Foto: Edson Martins

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A gente do Coco é o mais antigo grupo, criado em 1979. Foi formado a convite da professora responsável pela turma do Mobral, auxiliada por Edite Dias, instrutora que viria a se tornar mestra do grupo e que ainda hoje o lidera. O Grupo Cultural Amigas do Saber, mais recente, surgiu no final dos anos 1990, também a partir de experiências estimuladas em ambiente escolar. O grupo Coco Frei Damião, liderado pela Mestra Marinez, de Juazeiro do Norte, esteve em João Pessoa em dezembro de 2009, participando do I Encontro de Cocos do Nordeste, mas ainda não foi pesquisado pela equipe da URCA. Foto 2 – Mestra Edite Dias (à esq.), em apresentação das Mulheres das Batateiras (Grupo A Gente do Coco) no Largo da RFFSA. Crato, Concertos do Nordeste/BNB, 22 de fevereiro de 2013

      Foto: Edson Martins A pesquisa do Behetçoho, pela constituição dos tipos de colaboradores que reuniu, tem investido na distinção de dois cenários. O primeiro deles é aquele em que a comunidade assumia a forma peculiar de grupo circunstancial. Esse cenário tem extraordinária vitalidade como tesouro da memória; na vida material e concreta, não ocorre mais em seu formato ori-

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ginal, ao que parece. Referência constante dos mais velhos, esse formato comunitário descreve a forma como o coco era acontecimento agregador, suspendendo temporariamente as tensões possíveis e realçando os laços de compartilhamento da existência em grupo. Não por coincidência, é um cenário mutuamente colateral àquele do mutirão: a diversão coletiva sucede o trabalho coletivo e o trabalho coletivo convida à diversão coletiva. Na memória das mulheres, o agrupamento circunstancial tem, a partir do que se depreende de seus relatos, muito a ver com um tipo de diversão supervisionada, sendo permitido às moças e às mulheres casadas, sem ocorrência necessária do mutirão, reunirem-se regularmente à noite, para se divertir, cantando e dançando. Foto 3 – Dona Naninha (Ana Gouveia), cantando coco no II Colóquio Nacional de Pesquisa em Cultura Popular. Crato, Universidade Regional do Cariri, 14 de abril de 2013

      Foto: Edson Martins Outro cenário bem diverso é aquele em que o grupo se diferencia da comunidade e se constitui como gerador de demandas, entre as quais se destacam a perenidade e o reconhecimento (do) público. É este o caso dos grupos culturais e é o primeiro elemento da equação que aqui queremos investigar.

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Os Conflitos e a Questão do Valor Patrimonial A denominação como grupo cultural, em si, de largo e irrestrito uso no cariri cearense, já é indicativa de como a necessidade de (re)afirmação do valor patrimonial da brincadeira já opera de modo tensionado nas fronteiras criadas entre o grupo e sua comunidade: esses grupos reivindicam para si o pertencimento à esfera do patrimônio cultural, o que indica a existência de alguma resistência social que atuaria negando ou disciplinando esse reconhecimento. Um aspecto dessa resistência advém da própria comunidade: queixas são muito comuns no sentido de os grupos se sentirem hostilizados pela comunidade que, invariavelmente, constitui um anseio da agência dos próprios grupos. Essa agência intracomunitária – um agir em lugar de – promove uma identificação muito viva e, frequentemente, pungente, em função da luta por reconhecimento ser, invariavelmente, sentida como frustrante. Outro aspecto, igualmente importante é a relação dos grupos com os agentes que delineiam as políticas culturais no Cariri, diante dos quais os grupos atuam, voluntária ou involuntariamente, de modo que a sua agência assume um contorno extracomunitário. Reconhecemos, sem pretender ser exaustivos e ignorar nuances e graus intermediários, duas modalidades de constituição da agência extracomunitária: a pré-institucionalizada e a institucional. Também cumpre notar que emerge de cada um desses arranjos um tipo específico de zona de conflito, demarcada como fronteira que cinde o tecido comunitário e instaura um grupamento interno. O grau de alternância que os membros estabelecem entre si, passando da posição de líder-comunicador à de componente (com sua complexa hierarquização de níveis de prestígio intra e extragrupal), é o

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mais definitivo fundamento que nos permite arguir o estado de institucionalização que cada grupo experimenta. Quanto menor o grau de alternância, mais institucionalizado está o grupo, sendo bem marcado para todos que aquele que é o líder na hora em que a roda gira é ainda líder na hora em que ela se dissolve. Não é de estranhar, portanto, que o líder-comunicador no grupo também costume exercer outros papéis de liderança diante de sua comunidade. Há casos em que o líder do grupo exerce clara e inequívoca militância no movimento popular comunitário, mas também pode ser o organizador do coral da igreja, o promotor de campanhas e iniciativas de organização comunitária das mais variadas naturezas e finalidades ou rezar as renovações do Sagrado Coração, por exemplo. O caminho cada vez mais aplainado na direção da institucionalização conduz, em nosso sentir, àquele outro cenário, já observável em Pernambuco e Maranhão, por exemplo, em que o grupo afrouxa seu agenciamento dos anseios de representação e situa a si mesmo para além do território comunitário. Assim constitui fronteira entre a comunidade, a que ele quase não pertence mais, e o espaço artístico profissional, entendido como exterior à comunidade e homólogo à diversidade da cena social, percebida como mais ampla e englobante, ao qual ele não consegue pertencer em sua inteireza identitária. Passemos agora à consideração propriamente dita da investigação dos conflitos estabelecidos entre a vida comunitária intragrupal e sua luta por reconhecimento (Cf. HONNETH, [2003] 2009) no plano extragrupal. O edifício teórico de Axel Honneth permite arguir três importantes dimensões, que observamos no recorte em questão. Em primeiro lugar, a teoria privilegia um momento da esfera emotiva, em que o

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autorreconhecimento passa por uma autorrealização pessoal, ligada ao segundo momento, aquele da estima social, e ao terceiro, o da esfera jurídico-moral, em que se demanda o reconhecimento da autonomia propiciadora ao autorrespeito. Entendemos como conflito – acompanhando Honneth e a tradição em que ele se inscreve, mas fazendo do termo um uso deliberadamente delimitado – a quebra de expectativa quanto às pretensões normativas que regulam o reconhecimento entre sujeitos. Há conflito quando, por exemplo, um sujeito que rompeu os laços de pertencimento grupal passa por membro do grupo, voluntária ou involuntariamente. Se o grupo é pré-institucionalizado, esse conflito é vivido de modo desigual pelos componentes, verificando-se diversos níveis de concordância mútua entre cada subconjunto possível. Nos grupos institucionalizados, o conflito passa necessariamente pela figura do líder-comunicador, a quem se reconhece como habilitado a enunciar o grupo como sujeito uno, diante de um contexto sempre extragrupal. Mesmo nesses casos, é possível estabelecerem-se conflitos internos entre subconjuntos, mas os conflitos tendem a opor os subconjuntos e o líder-comunicador e não os subconjuntos entre si. Nessa capacidade de agenciar coletivamente os fundamentos de unidade representada, enxergamos mais uma característica decisiva da institucionalização do grupo. Observamos, para concluir mais essa passagem, que a situação do conflito do interior dos grupos não representa necessariamente algum tipo de tensão de ruptura e não engaja obrigatoriamente movências no sentido de um rearranjo das posições de prestígio e liderança. Constitui, pelo contrário, o modus vivendi necessário para o exercício do prestígio/liderança e, em sentido fundante, é mesmo necessário à própria autorrepresentação como grupo. A posição dos sujeitos – sen-

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do intervalar ou mediada, em uns casos, colinear ou imediata em outros – em relação à formação de fronteira criada pelo manejo dos conflitos é tão variada quanto no plano comunitário ou social, devendo ser afastada a ideia de uma posição específica do enfrentamento de conflitos. Todavia, parece-nos que o modo de situar-se quanto às fronteiras pode ser descrito em alguns poucos tipos básicos, tarefa que ainda cumpre realizar. Eminentemente ideológica e constitutivamente porosa, a fronteira é um dado material na vida intergrupal e sua percepção dificilmente está dissociada das dinâmicas de linguagem mobilizadas pelos membros do grupo. Um dado fortemente impregnado nas práticas discursivas dos grupos é a internalização das visões extragrupais.

A Gestão Cultural e as Políticas Públicas para a Cultura É evidente que, ao promover o deslocamento do coco de seu universo tradicional para a cena urbana, as políticas de gestão cultural – públicas ou privadas – promovem sua fetichização. Mas também seria muito ingênuo crer que essa promoção não seja permeada por contradições mais profundas. Canclini (1997, p.153) nos auxilia nesse raciocínio, ao advertir que, em vez de entender o consumo de arte como “eco dócil do que a política cultural [...] quer fazer com o público”, mais produtivo seria analisar referentemente a esse consumo “como sua própria dinâmica conflitiva acompanha e reproduz as oscilações de poder”. Sugere que perscrutemos aí os níveis de cumplicidade que se podem ter engendrado sob a aparência ostensiva da imposição, assim como as nuances de reconhecimento mútuo e da busca de estabilidade que orienta o poder político e, acrescentamos, a própria estratégia de vitalidade dos grupos, que se compreendem, em certa medida,

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como patrimônio que se legitima ao mesmo tempo em que se dá ao uso social instrumentalizado. Neste mesmo ensaio, Canclini já pontuara como o conflito pelo reconhecimento da legitimidade é um componente que não pode faltar à consideração do analista da cultura. Os grupos intuem, e com muita habilidade, a existência de uma comunidade hermenêutica possível (CANCLINI, 1997, p.152) e já avançaram muito no entendimento das formas de diálogo mais produtivas com essa instância mediadora do consumo e circulação de bens simbólicos. Enquanto isso, aqueles sujeitos depositários de valores da tradição e que se encontram em posição intervalar relativamente às fronteiras, não problematizam sua atividade produtora de sentido a partir das diretrizes de consumo de bens simbólicos, mas da luta por reconhecimento no plano do amor, do direito e da solidariedade, na expressão de Honneth. Trataremos de delinear aqui, mantendo-nos nos rumos da reflexão proposta por Canclini, alguns traços definidores das políticas públicas de cultura, no que interessa aos grupos de coco (e, por extensão, aos demais agrupamentos culturais que são atravessados pela predefinição de contextos que se exprimem em termos de URBANO versus RURAL). 1) O fascínio pelo popular, e a insistente e rebarbativa estratégia que lhe dá sustentação no discurso hegemônico, camuflam uma compreensão em que POPULAR equivale a PRIMITIVO e operacionalizam estratégias de apoio a uma compreensão de dinamismo e vigor da cena cultural do presente e de legitimação da compreensão hegemônica atual através do “reconhecimento” do patrimônio histórico-cultural. A noção mais consistente que embasa as compreensões de políticas culturais é a de que a promoção destas políticas

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significa a realização de eventos e de espetáculos. Não se localiza, em tempo algum, o esforço de constituir um programa ou ações de caráter duradouro que representem a valorização efetiva e o apoio aos “grupos culturais”. Toda a questão do reconhecimento passa, exclusivamente, pela criação de oportunidades de participação em eventos e espetáculos promovidos pelos agentes públicos e pelos equipamentos culturais que, sendo privados, atuam na esfera pública, por omissão desta ou por uma compreensão prévia de que a cena cultural é pouco densa e justificaria ações sobrepostas. Canclini desnuda os interesses que se harmonizam sob essa aparente competição: “Uns e outros buscam na arte dois tipos de rédito simbólico: os Estados, legitimidade e consenso ao aparecer como representantes da história nacional; as empresas, obter lucro e construir através da cultura de ponta, renovadora, uma imagem ‘não interessada’ de sua expansão econômica.” (p.89) No leito da espetacularidade desses estilos de gestão cultural, os agentes culturais do campo popular acabam por ser apreendidos como se possuíssem uma homogeneidade que não apenas não possuem como seria profundamente indesejável que possuíssem. Centenas de jovens, por exemplo, se dedicam à música tendo como referente uma esfera de produção e consumo de natureza popular (seja esta de massas ou não). Artistas plásticos, subjugados ao conceito operatório de “artesãos”, modelam, há décadas, no Cariri, uma sensibilidade estética profundamente enraizada em uma experiência de vida comunitária. Sujeitos se reúnem sob a consigna da devoção, dentro e fora da expressão religiosa hegemônica, e seu pertencimento à esfera da cultura popular é quase que rigorosamente ignorado, salvo quando se insere no aspecto restrito das romarias, que são percebidas como patrimônio histórico. Como síntese, parece-nos que a fórmula consagrada consiste

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em remeter essas práticas e formas artísticas a um domínio impessoalizado e pretérito, pois assim as formas de agenciamento das estratégias de legitimação dos padrões culturais hegemônicos atuais não teria que enfrentar, por exemplo, a resistência de sujeitos mais empoderados e mais refratários ao uso social instrumentalizado. Assim sendo, a política cultural para o campo da cultura popular baseia-se em promover a encenação do popular, associando-o ao universo rural e tornando-o alienígena na cidade, enquanto, por meio dessa encenação reiterada, simula-se o reconhecimento de seu valor. Tal reconhecimento é desmentido pelas circunstâncias. O arranjo técnico da iluminação e sonorização dos palcos, por exemplo, ignora o aspecto circular e dramático de algumas destas formas artísticas, chamadas pejorativamente de manifestações. Manifestação não é conceito que recubra o alto grau de investimento comunitário que está por trás da complexa organização de um reisado. Reisado é forma artística, enquanto manifestação é a encenação controlada, descontextualizada, empobrecida e rápida que os poderes públicos promovem em datas e contextos oficializados. A valorização se desmente quando a mais antiga universidade da região promove uma “programação cultural” paralela a uma programação “artística”, em que, nesta última, os artistas têm nome e currículo, ao passo que na primeira, todo mundo se reúne sob a denominação achatada de “grupos da tradição popular”. Na prática, é comum a ideia de que, para demonstrar publicamente a riqueza patrimonial da região, principalmente na presença de visitantes, o melhor modo seja convidar um grupo de coco ou um reisado para uma apresentaçãozinha rápida, ANTES do evento, o que permite, assim, não misturar as coisas... A lista de exemplos e situações em que tal prática ocorre não para por aqui e uma versão mais

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detalhada deste texto, com uma leitura pormenorizada dos “eventos” que, sem pretendê-lo, denunciam essa desqualificação, é tarefa que pretendemos concluir nos meses que virão. 2) O agenciamento social instrumentalizado dos artistas populares traduz uma cerimonialização do patrimônio artístico, que nega a complexidade do passado e do presente e, sob a consigna da democratização da cultura, cedem ao discurso do empreendedorismo e da autossustentabilidade naquilo que têm de pior: a introdução da lógica de consumo. Ao deslocar a prática e a forma artística de seus contextos, espetacularizando-as e fetichizando-as, submete-se a sua apreciação a uma fórmula de circulação que é regida por regras e costumes diversos daqueles de sua ocorrência cultural legítima. Falamos de legitimidade tendo em mente que, na eticidade do reconhecimento como forma de diálogo produtivo com o Outro, não é legítimo privar da autoridade e voz de comando aqueles que foram reconhecidos em seu grupo como portadores desses predicados. Um mestre e um contramestre não carregam essa credencial à toa, mas a cerimonialização é capaz de apresentá-los como sujeitos exóticos, via de regra, lançando mão da ideia de que é surpreendente que agricultores rudes sejam admitidos como indivíduos que fazem algo que, com liberalidade, podemos dizer que parece com arte... Para finalizar essa sessão, é necessária uma menção àquela fórmula especialmente infeliz da espetacularização que faz revezamento do que chamam e compreendem como “atrações”. A fórmula das “atrações” é a mesma que vemos em programas televisivos, em palcos de eventos etc. A concentração leviana de referências diversas promove um achatamento da experiência em duas dimensões cruciais: em primeiro lu-

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gar, ignora-se que aquela encenação é um momento sincrônico de uma vivência comunitária e contínua, o que pode ser desastroso, se o público que “consome” o espetáculo se deixa levar pelos protocolos habituais de manifestação de suas preferências; em segundo lugar, ignora-se que os artistas possuem uma consciência muito nítida sobre a forma artística em que eles estão engajados, mas nem sempre essa consciência exercita-se em pensar o engajamento de outras experiências, o que pode constituir um acúmulo de frustrações que têm peso importante na manutenção dos constituintes dos grupos. Atendendo os limites desta reflexão, deixaremos de considerar aqui alguns outros elementos importantes que, todavia, teremos o cuidado de nomear: a) as políticas públicas miniaturizam formas artísticas, assim como se faz nas estantes e nichos dos museus, como forma de ampliar a variedade dos tipos e formas em exposição; b) a idealização do passado mobiliza a categoria da autenticidade e isso tem consequências severas para a definição de ações prioritárias e c) a noção de preservação é antípoda da renovação e reelaboração, próprias da cultura popular. Finalizaremos esboçando algumas palavras sobre a noção de solidariedade, tal como proposta por Axel Honneth, como horizonte possível de uma base dialógica que permita pensar as ações culturais em outro modelo, menos autoritário e menos instrumentalizador das formas artísticas e dos sujeitos que as produzem.

Considerações Finais Entendemos que, no plano estrito do trabalho de pensar, emerge o convite urgente no sentido de investigar com profundidade a posição da noção de solidariedade nesse espa-

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ço poroso das fronteiras. Salvadori resume a importância do conceito para Honneth, ao sustentar que: A solidariedade (ou eticidade), última esfera de reconhecimento, remete à aceitação recíproca das qualidades individuais, julgadas a partir dos valores existentes na comunidade. Por meio dessa esfera, gera-se a autoestima, ou seja, uma confiança nas realizações pessoais e na posse de capacidades reconhecidas pelos membros da comunidade. A forma de estima social é diferente em cada período histórico: na modernidade, por exemplo, o indivíduo não é valorizado pelas propriedades coletivas da sua camada social, mas surge uma individualização das realizações sociais, o que só é possível com um pluralismo de valores (SALVADORI, 2011, p.191)

Ao entender o Coco como um fazer dentro da vida e que distingue aqueles que o dominam, praticam, apreciam ou relembram, sujeitos constituem em seu estar-no-mundo uma feição identitária que os torna engajados na demanda de um reconhecimento, inicialmente, afetivo. Por essa fronteira, transitam expectativas de apreciação positiva tensionadas na direção dos membros do grupo, dos indivíduos que comungam do valor comunitário e da massa anônima que cerca e se opõe ao espaço de produção e gozo dos afetos. Ao demandar amor como momento e forma exteriorizada de um primeiro tipo de reconhecimento, os grupos, que já não são agrupamentos circunstanciais, veem-se às voltas com um fazer que se tornou um posse e isso conduz ao risco de ter de lidar com outras formas de desrespeito, que nada mais têm a ver com amor. O Coco, em seu momento de coisa possuída, distingue seu possuidor, que deve agora lidar com aqueles que não possuem o Coco como marca de suas identidades, que podem ou não almejá-lo como um valor e que não estavam implicados no momento em que o Coco foi coisificado e impregnado pelas

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formas do pertencimento. O conflito agora, sempre não menos que duplo, tenta passar para um lado da fronteira carregando a reivindicação de um direito de posse, enquanto do outro lado transita em sentido oposto um outro sentido de posse, com critérios de valor, regras de uso, percursos de circulação e protocolos de hierarquização que fazem dessa segunda dimensão do reconhecimento a hora de lidar com regras que exigem um consensuamento interindividual ativo e multilateral. Mestres e Mestras do Coco, brincantes de hoje e de ontem, público da vizinhança e telespectadores invisíveis mas presentes, intelectuais, governantes, todos configuram, no sentido e na valorização dos usos do amor e do direito, uma mesma, gigantesca e única roda, em que a solidariedade encarna o terceiro momento do reconhecimento, a sua eticidade. Não é uma demanda futura, um problema a resolver nas fímbrias do amanhã. A solidariedade e o momento ético da luta por reconhecimento, no conjunto vivo das relações interindividuais que têm o Coco como centro de gravidade, entre indivíduos no cariri cearense, são uma construção histórica que viveu diversas configurações anteriores à atual e que, no seu aspecto sincrônico, configuram arranjos que se movem na direção de um esvaziamento social da experiência coletiva. Os que militam na esfera acadêmica têm o dever de solidariedade de tomar partido e formar fileiras na resistência à patrimonialização do Coco. Cabe a nós descrever e desnudar essa lógica de produção e consumo que descontextualiza, hierarquiza, esquematiza como produto e oferece ao consumo como especiaria exótica, o Coco. Cabe a nós, também e com o mesmo vigor, descrever e reconhecer esse Coco que ainda preenche os vincos do rosto sofrido de sertanejos e sertanejas, homens e mulheres, velhos em sua maioria, que cantam e pulam e pisam e riem como quando eram jovens e o seu fazer era deles.

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OS TRILHOS E O URBANO: A GEO-HISTÓRIA DO MUNICÍPIO DE CEDRO-CE Antônio Kinsley Bezerra Viana

Introdução Para entender o desenvolvimento atual da urbanização brasileira e como ela influenciou a formação socioespacial do nordeste, é preciso remontar ao inicio do século XX, quando a sociedade brasileira deixa de ser predominantemente agrária, e passa a requalificar seu espaço, substituindo por um modelo urbano-industrial. Este fenômeno elevou de forma significativa o número de pessoas nos centros urbanos, o país transforma sua matriz produtiva que até então era basicamente agrícola, pela indústria, este reflexo se observa pelo crescimento da população urbana. Neste mesmo período começa a estruturar-se a rede urbana brasileira, gerando um fluxo constante de pessoas, mercadorias e informação. A rede ferroviária teve uma importância imensurável para o Brasil durante muitos anos, pois além de permitir a circulação de pessoas e mercadorias por todos os rincões do país, colaborou para o surgimento de inúmeros municípios ao longo do território nacional, estabelecendo uma rede de cidades que se desenvolveram ao longo da malha viária. No sertão nordestino não poderia ser diferente, o fluxo de pessoas e mercadorias fez que inúmeros núcleos urbanos se desenvolvessem, muitos deles surgiram em função da própria estrada de ferro, transformando consideravelmente o espaço nordestino. Este artigo busca iniciar uma discussão sobre a evolução espacial destes municípios e, como se deu a formação do seu povo. De forma a compreender o grau de influência da

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rede ferroviária na formação socioespacial destes municípios. Para tal empreita, escolhi o município de Cedro, na Região Centro-Sul cearense, já que surgiu em função da linha férrea, e por sua localização geográfica estratégica (disponibilidade de água, proximidade do Cariri e do entroncamento da Paraíba), fez com que inicialmente se destacasse das demais cidades, sendo instalada no município, a oficina da linha férrea, o Senai e várias usinas de beneficiamento de algodão (O ‘Grady e Cia, Montenegro e Cia, Exportadora Cearense Ltda., Usina Cedro e a Tabajara e Cia), atraindo para a cidade pessoas de vários lugares, possibilitando uma diversidade sociocultural e atribuindo a este lugar e ao seu povo certa singularidade.

As Cidades e as Redes Urbanas Brasileiras O conceito de cidade é por vezes um tanto complexo, levantando constantemente certas polêmicas. A análise de tal espaço estará diretamente ligada às concepções ideológicas de quem o estuda. Dentre os vários autores que se propuseram a investigar tal temática está Roberto Lobato Corrêa, que afirma: Expressão de processos sociais a cidade reflete as características da sociedade. Esta definição tem o mérito da universalidade, quer em termos de tempo, quer de espaço, enquadrando tanto as cidades cerimoniais da China antiga, as cidades maia e asteca, como o burgo medieval, a cidade colonial e a metrópole moderna. Esta última constitui-se em um produto da economia de mercado, afetada direta e indiretamente pela industrialização, e da complexa sociedade estratificadas que emerge (CORRÊA, 2011, p.121).

Podemos dizer então que a cidade vai além de seus aspectos físicos e sociais, passando a não se resumir apenas às suas edificações, arruamentos, ou o modo como a população

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interage ou utiliza os mesmos, ou simplesmente quais são os atores sociais e econômicos que interagem neste espaço, a cidade em toda sua complexidade passa a ser muito mais do que cada um desses aspectos isolados. Passa a ser uma estrutura única, complexa, que registra nas suas espacialidades, a atuação conjunta dos diversos agentes que edificam o espaço urbano. De tal modo que, para compreender a cidade, é necessário ir além, analisando como as diferentes manifestações interagem nesse espaço ao longo do tempo (SPOSITO, 2008, p.20) A cidade passa a ser fruto da relação entre a sociedade e o espaço ao longo de sua historia, registrando no espaço urbano os resultados dessa relação e as características dessa sociedade em seus diversos aspectos (sociais, econômicas, culturais etc.), a dinâmica resultante transforma constantemente a cidade, (re)construindo o espaço urbano. Conforme Carlos: a ideia de cidade como construção humana, produto histórico-social, contexto no qual a cidade aparece como trabalho materializado, acumulado ao longo de uma série de gerações, a partir da relação da sociedade com a natureza. Expressão e significação da vida humana, a cidade a revela ao longo da história, como obra e produto que se efetiva como realidade espacial concreta em um movimento cumulativo, incorporando ações passadas ao mesmo tempo em que aponta as possibilidades futuras que se tecem no presente da vida cotidiana. Assim, o sentido e a finalidade da cidade (enquanto construção histórica) diz respeito à produção do homem e à realização da vida humana, de modo que, se a construção da problemática urbana se realiza no plano teórico, a produção da cidade e do urbano se coloca no plano da prática sócioespacial, evidenciando a vida na cidade. Isto porque a sociedade constrói um mundo objetivo através da prática sócioespacial, demonstrando em suas contradições um movimento que aponta um processo em curso, o qual tem sua base no processo de reprodução

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das relações sociais — realizando-se enquanto relação espaço-temporal (CARLOS, 2007, p.20)

A evolução das cidades e o fortalecimento de suas relações comerciais fizeram com que surgisse a necessidade de aprimorar os meios para a circulação de pessoas e mercadorias, no caso brasileiro esse processo se iniciou ainda no período colonial com as primeiras cidades portuárias, mas expandiu-se definitivamente por todo o território nacional com a consolidação da malha ferroviária no país, a partir do século XIX, estruturando uma rede urbana ao longo do seu percurso. Eliseu Savério Sposito confirma muito bem a importância da rede ferroviária quando afirma: O traçado das ferrovias que interligavam pequenos e grandes centros urbanos e, em nível intermediário, as aglomerações com características rurais – que ora cresciam e se tornavam cidades, ora desapareciam com a decadência da economia microrregional – são o primeiro desenho que se consolida na formatação da rede urbana brasileira (SPOSITO, 2008, p.62).

Mas foi somente a partir de 1950, com a massificação do consumo dos bens modernos e também do automóvel, mudam radicalmente o modo de vida, os valores, a cultura e a ocupação do solo urbano. A população brasileira cresceu de forma significativa e as cidades também tiveram sua aceleração em relação ao tamanho, formando imensas malhas urbanas, ligando uma cidade à outra. O geógrafo Milton Santos em seu livro A Urbanização Brasileira, descreve esse processo da seguinte forma: É apenas após a Segunda Guerra mundial que a integração do território se torna viável, quando as estradas de ferro até então desconectadas na maior parte do País, são interligadas, constroem-se estradas de rodagens,

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na maior parte do país, empreende-se um ousado de investimentos em infraestrutura. [...] O país se torna grande exportador, tanto de produtos não tradicionais (soja, cítricos), parcialmente beneficiados antes de se dirigir ao estrangeiro, quanto de produtos industrializados. A modernização agrícola, aliás, atinge, também produções tradicionais como o café, o cacau, o algodão; [...] As primeiras fases do processo de integração foram concentradoras das atividades modernas e dinâmicas, tanto do ponto de vista econômico quanto geograficamente (SANTOS, 2009, p.38-39).

O processo descrito por Milton Santos reflete perfeitamente o ocorrido no nordeste brasileiro, particularmente no território cearense, onde a expansão das estradas de ferro, possibilitou, além da circulação de pessoas e mercadorias, a instalação nas cidades que surgiram ao longo dos trilhos, de inúmeras indústrias com o intuito de beneficiar produtos derivados da culturas tradicionais locais, como a produção de ceras e óleos naturais e principalmente para o beneficiamento da pluma do algodão que neste período destacava-se pelo seu valor econômico. Justamente neste período instalam-se no município de Cedro cinco usinas beneficiadoras de algodão: O ‘Grady e Cia, Montenegro e Cia, Exportadora Cearense Ltda., Usina Cedro e Tabajara e Cia que posteriormente se tornaria a Coocedro Ltda.

A Ferrovia e a Consolidação da Rede Urbana Cearense A expansão da ferrovia Fortaleza-Baturité até a cidade do Crato e a consequente construção do ramal Camocim-Sobral-Crateús, foi um dos fatores de extrema importância para o processo de urbanização do sertão cearense, acabando por fortalecer o modelo urbano-industrial, o que possibilitava a

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disseminação de várias cidades ao longo do seu percurso. O desenvolvimento desses municípios se deu, justamente por possibilitarem o escoamento da produção agrícola do interior para os portos próximos, além de criar mercados consumidores para os produtos que chegariam pelos trilhos, vindos principalmente de Fortaleza. A atração populacional provocada pelas cidades em crescente desenvolvimento gerou uma formação socioespacial diferenciada, pois agregava no mesmo território, pessoas de origens e consequentemente valores culturais distintos. Cristalizando no espaço das mais variadas formas, um exemplo e a manifestação das diferentes vertentes da cultura popular, ou mesmo as distintas práticas religiosas, que marcavam definitivamente a paisagem. É possível compreender estas transformações espaciais nas palavras de Henri Lefebvre apud Roberto Lobato Corrêa, onde o espaço urbano passa a ser compreendido como: Fragmentado, articulado, reflexo e condicionante social, o espaço urbano é também o onde os diferentes grupos sociais vivem e se reproduzem. Isso envolve, de um lado, o cotidiano e o futuro. De outro, envolve crenças, valores, mitos, utopias e conflitos criados no bojo da sociedades de classes e em parte projetados nas formas espaciais: monumentos, lugares sagrados, uma rua especial, uma favela, lugares de lazer etc. [...] O espaço urbano torna-se, assim, um campo simbólico que tem dimensões e significados variáveis segundo as diferentes classes e grupos etários, étnicos etc. (CORRÊA, 2011, p.150-151).

Ainda no esforço de integração do território nacional e com o objetivo de atender o modelo econômico agroexportador da época, surge a estrada de ferro Fortaleza-Baturité, que iniciou as operações ferroviárias em 1873 com o primei-

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ro trecho de pouco mais de 7  km entre a Estação Central, em Fortaleza e a localidade de Parangaba. Funcionando com esse nome até 1909. Fruto da sociedade surgida no dia 5 de março de 1870, entre o senador Tomás Pompeu de Sousa Brasil,  Gonçalo Batista Vieira  (Barão de Aquiraz),  Joaquim da Cunha Freire (Barão de Ibiapaba), o negociante inglês Henrique Brocklehurst e o engenheiro civil José Pompeu de Albuquerque Cavalcante. O objetivo era o escoamento da produção serrana em Pacatuba e Maranguape para o porto de Fortaleza. Após a assinatura do contrato de construção da ferrovia entre a Companhia e o Governo Provincial do Ceará, o projeto passou a ter como ponto final a cidade de Baturité, produtora de café. Os trilhos do primeiro trecho, de 7,20 km, começaram a ser assentados em 1o de julho de 1873, sendo entregue ao tráfego em  14 de setembro  de 1873. O historiador Airton de Farias descreve esse episodio quando afirma: Em 1873, inaugurava-se com grande euforia o primeiro trecho da EFB, entre Fortaleza e Arrouches (Parangaba) e em 1976, o de Pacatuba. Havia planos para estender os trilhos até o vale do Cariri, mas desde o inicio – daí os atrasos das obras e os constantes auxílios do governo (FARIAS, 2007, p.114)

Em janeiro de 1916 inicia-se o prolongamento do via férrea em direção ao Crato, que seria inaugurada somente em 1926, sendo esta uma das estações mais importante, pois era o final do entroncamento norte-sul. Tanto que o ramal ficara conhecido como Fortaleza-Crato. Conforme relata Cortez: Era a última plataforma, para onde a máquina do progresso se dirigia. Nesse sentido, a estrada também era reconhecida como a via Fortaleza-Crato, uma denominação que colocava a urbe sul cearense lado a lado com

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a capital. De outro ângulo, Crato também podia ser o começo, o ponto de partida, já que saíam trens da cidade em direção a capital do Estado, uma classificação flexível, ao mesmo tempo, início e fim (CORTEZ, 2008, p.60)

A Geo-História do Município de Cedro A origem da cidade de Cedro teve início com a Fazenda de mesmo nome comprada pelo senhor João Cândido em 1908. A necessidade de intercâmbio entre Fortaleza e Crato favoreceu a construção da estrada de ferro que possibilitou a Fazenda ser elevada a categoria de Vila. Em 1915 houve uma seca que assolou o Ceará. Logo após, chegou a Fazenda de Cedro o engenheiro doutor Zabufon com uma equipe de operários para a construção da ferrovia que ligaria Fortaleza a Crato e que teria que passar pela Fazenda onde havia abundância d`água para abastecer todo o pessoal. Em 15 de novembro de 1916, a via-férrea ligando Fortaleza a Crato foi inaugurada, em convênio com o Governo Federal. Nesse dia, veio a Cedro o então senador João Tomé de Sabóia e Silva, Governador do Ceará. Por ocasião da visita o Senador elevou o povoamento de Cedro à categoria de Vila, pertencente ao município de Várzea Alegre. A partir de então, o povoado de Cedro começa a ter novo impulso, pouco a pouco erguiam-se casas, fundaram-se vendas, oficinas e capelinhas. Elevado à categoria de vila com a denominação de Cedro, pela lei estadual nº 1725, de 09-07-1920, teve seu território desmembrado dos municípios vizinhos de Várzea Alegre, Lavras da Mangabeira, Icó e Iguatu. Posteriormente a vila foi elevada à condição de cidade com a denominação de Cedro, pela lei estadual nº 2255, de 19-08-1925. Com terras férteis e com larga capacidade de produção de algodão, o município se destacou na região e tiveram im-

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plantadas em seu território cinco usinas de beneficiamento de algodão: O “Grady & Cia” – fábrica de resíduos, óleos vegetais, sabão e de beneficiamento de algodão, de propriedade de Natanael Cortez; “Usina Josué” – fábrica de beneficiamento de algodão, de Josué Alves Diniz; “Usina Montenegro” – fábrica de beneficiamento de algodão e arroz, de Montenegro & Cia; “Exportadora Cearense Ltda”- fábrica de beneficiamento de algodão e arroz, de propriedade de F. Moreira de Azevedo; “Usina Cedro” e a “Usina Tabajara” que anos depois se transformou na Cooperativa Agrícola e Industrial de Cedro – COCEDRO. Com o natural desenvolvimento da cidade, a educação foi marcada pela construção de um prédio para abrigar o Senai – Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, primeira escola profissionalizante da região. O Senai foi responsável pela preparação de muitos jovens cedrenses para o mercado de trabalho. Além da instalação da oficina da RFFSA, que atraía para o município uma legião de trabalhadores que se instalavam definitivamente na cidade. Nos trabalhos de Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez é possível perceber a importância da oficina para o município: Mesmo sendo ponto final, a estação cratense não era a maior nem a mais movimentada de todas. Outras unidades da RVC, como a situada em Cedro com as oficinas ferroviárias, tinham também bastante destaque no período. No entanto, Crato detinha uma importância significativa em virtude de sua posição na Linha Sul da Viação Cearense (CORTEZ, 2008, p.60).

Ao final da década de 1980, houve grande eclosão da “praga do bicudo” e a extinção do trem passageiro, período em que Cedro viu suas usinas se transformar em ruínas e seus campos ocupados por novas lavouras. O cidadão cedrense que antes vivenciara um período de prosperidade que durante dé-

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cadas havia possibilitado a geração constante de renda para o município, passou a migrar à procura de emprego em Fortaleza ou em outras regiões do país. Com isto, a agricultura familiar e a renda dos aposentados se tornaram as principais fontes de economia do município.

Conclusão A cidade de Cedro assim como tantas outras no nosso estado tiveram sua origem vinculadas à ferrovia, que no inicio do século XX foi responsável pela integralização do território cearense, ligando Fortaleza a Região do Cariri. Este fato possibilitou que muitas localidades e vilas ao longo da linha férrea se tornassem cidades, gerando um fluxo constante de pessoas, mercadorias e informação, consolidando uma rede urbana no Ceará. O que diferencia o município de Cedro dos outros é sua história e a formação do seu povo. Logo após sua emancipação política, a cidade recebe vários equipamentos para suprir algumas demandas regionais, a oficina da Rede Viação Cearense – RVC, uma escola do Senai, o que possibilitou a instalação de algumas usinas de beneficiamento de algodão, tornando a cidade ainda mais próspera, atraindo pessoas de vários lugares. Segundo Milton Santos em sua obra O Brasil: Território e sociedade no século XXI, esse período da história industrial brasileira se caracteriza por: É então que se estabelece uma rede brasileira de cidades, com uma hierarquia nacional e com os primórdios da procedência do urbanismo interior sobre o urbanismo de fachada. [...] O aparelhamento dos portos, a construção de estradas de ferro e as novas formas de participação do país na fase industrial do modo de produção capitalista permitiam às cidades beneficiárias aumentar seu coman-

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do sobre o espaço regional, [...] Rompia-se, desse modo, a regência do tempo “natural” para ceder lugar a um novo mosaico: um tempo lento para dentro do território que se associava a um tempo rápido para fora. Este se encarnava nos portos, nas ferrovias, e no telegrafo e na produção mecanizada (SANTOS, 2001, p.37).

A atração populacional provocada pela cidade em crescente desenvolvimento gerou uma formação socioespacial diferenciada, pois agregava no mesmo território, pessoas de origens e consequentemente valores culturais distintos. O que acabou por se cristalizar no espaço das mais variadas formas, exemplos desse processo são as manifestações das diferentes vertentes da cultura popular, ou mesmo as distintas práticas econômicas e culturais, que marcaram definitivamente a paisagem. Tal processo de estruturação espacial da paisagem pode ser vislumbrado na obra O Homem e a Terra de Eric Dardel, onde o autor afirma que: Muito mais que uma justaposição de detalhes pitorescos, a paisagem é um conjunto, uma convergência, um momento vivido, uma ligação interna, uma “impressão”, que une todos os elementos. [...] a paisagem não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate pela vida, manifestação de seu ser com os outros, base de seu ser social (DARDEL, 2011, p.31-32)

A cidade de Cedro reflete muito bem esse processo, pois ao andar em suas ruas é possível ver entre seus casarões e prédios, edificações que destoam na paisagem urbana, tendo como exemplo os templos religiosos, podem citar o caso do templo da Igreja Presbiteriana, construída em 1929 foi um dos primeiros no interior do Ceará, sua imponência e beleza arquitetônica rivalizavam com a Igreja da Matriz. Entre outros caso podemos citar a Rua do Caldeirão (tem esse nome

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por causa dos refugiados do Caldeirão que ali se instalaram), os ferreiros da localidade do Lajedo (herdaram seu ofício de um estrangeiro de nome Victor que deixou aos seus descendentes a arte da forja), a residência do comerciante italiano Ângelo Papaléo, além dos prédios das usinas, e por fim os prédios da RFFSA (estação, oficina e vila dos operários). Por essas e outras particularidades socioespacias, desta pequena cidade do Centro-Sul cearense, e assim como tantas outras cidades brasileiras que passam, por vezes, despercebidas no bojo das discursões sobre o espaço urbano pela maioria dos pesquisadores que se justifica toda e qualquer investigação cientifica realizada sobre os pequenos núcleos urbanos denominados por Santos (2005, p.85) como “cidades locais”.

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ESPAÇO E MEMÓRIA NA REPRESENTAÇÃO HISTÓRICO-CULTURAL MATERIALIZADA NA PAISAGEM DO NÚCLEO DE FORMAÇÃO HISTÓRICO DA CIDADE DE JUAZEIRO DO NORTE – CE1 Paulo Wendell Alves de Oliveira

Introdução Podemos afirmar que o espaço é edificado a partir da atuação de diferentes agentes que o constroem, modelam e (re)configuram os lugares e as paisagens, em diferentes períodos históricos de sua construção. No entanto, as atuações desses agentes deixam marcas na paisagem da cidade, proporcionando uma leitura geo-histórica, tendo como suporte a sua base material, expressa na paisagem urbana, bem como, em instituições da memória (museus, arquivos, bibliotecas, etc.) (NORA, 1993). Porém, essa base material está sendo constantemente modificada, principalmente no momento atual da nossa sociedade, onde o processo de globalização vem contribuindo para que todos os lugares sejam hoje bastante parecidos (SANTOS, 1994). Desta base material, muitos desses objetos se perdem, outros são destruídos, portanto, torna-se de fundamental importância resguardar essas representações histórico-culturais preservadas na paisagem da cidade, para que possamos apropriá-los e assim entender como se desenvolveu e se desenvolve a cidade. Recorrer somente às representações histórico-culturais não basta para compreender a memória da cidade, é necessário que esta (base material) dialogue com a memória social, 1

Este trabalho faz parte da pesquisa de dissertação intitulada “Espaço e Memória da Cidade: um estudo geo-histórico sobre o núcleo original de formação histórico de Juazeiro do Norte – CE”, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (ProPGeo/UECE).

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que desenvolve, pari passu, papel importante na compreensão do passado histórico-geográfico da cidade, principalmente em “cidades novas” como se apresenta Juazeiro do Norte. A memória social guarda os referenciais materiais, e com base na oralidade e em documentos históricos (narrativas), podemos recuperar essas imagens, possibilitando assim, o resgate deste passado, quando existem mais na cidade, recordando o modo de vida, as formas sociais, os conflitos, momentos de ruptura etc. Graças à memória, o tempo não está perdido, e, se não está perdido, também o espaço não está. Ao lado do tempo reencontrado, está o espaço reencontrado (ABREU apud POULET, 2012, p.25).

Esta memória coletiva vincula-se a um grupo social, que possue um lugar comum de convívio, o que permite que estes lugares e suas marcas fiquem guardados na memória desse grupo. [...] a capacidade de lembrar é determinada, não pela aderência de um indivíduo a um determinado espaço, mas pela aderência de um grupo do qual ele faz parte àquele mesmo espaço: um espaço em que se habitou, um espaço em que se trabalhou, um espaço em que se viveu. Um espaço, enfim, que foi compartilhado por uma coletividade por um certo tempo, seja ela a residência familiar, a vizinhança, o bairro, o local de trabalho [ou a cidade] (ABREU, 2012, p.26).

Nesse momento cabe discutir a função social da memória na percepção e recuperação histórico-cultural da paisagem, reportando assim a momentos que ficaram num passado distante, mas que podem ser resgatados através da oralidade, de documentos, fotografias, mapas etc. (SEEMANN, 2002). Cabe aqui discutir igualmente, a paisagem histórico-cultural, de modo a entendê-la, correlacionando-a a socie-

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dade que a construiu e que passa a ter identidade, pela singularidade que essa reporta e examinar, os processos de sua formação, permanência e substituição. Busca-se, com isso, vincular a produção espacial a esses dois conceitos, a paisagem histórico-cultural e a memória, pois a paisagem urbana é constantemente modificada pela sociedade, a partir de sua forma de se expressar culturalmente, bem como, a análise da oralidade como forma de recuperar essas paisagens que já não existem no núcleo de formação histórico da cidade de Juazeiro do Norte.

Espaço e Memória Maurice Halbwachs (2003) dedicou-se a estudar as diferentes formas sociais de manifestação da memória, ressaltando a inseparabilidade do tempo e do espaço na produção dessas memórias, sendo que o tempo da memória só se concretiza quando encontra a resistência de um espaço. As memórias carregam tanto traços individuais quanto coletivos, porém, as lembranças estão sempre ligadas à participação do indivíduo em diferentes grupos sociais, mesmo que tenhamos vivenciado acontecimentos sós, carregamos em nós a influência dos grupos de que fazemos parte, ou seja, nossas ações, atos e pensamentos, se explicam pelo fato de sermos seres sociais, enquadrados nesses grupos, e isso se deve ao fato, de que em nenhum instante, deixamos de estar encerrados em uma sociedade. “Uma “corrente de pensamento” social normalmente é tão invisível quanto a atmosfera que respiramos. Na vida normal, só reconhecemos sua existência quando a ela resistimos.” (HALBWACHS, 2003, p.46). Portanto, a memória de um indivíduo depende da relação que ele mantém com os diferentes grupos de que participa e que deles

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recebe influências, como a família, grupo de trabalho, a escola, a classe social, pessoas da vizinhança, igreja etc. (ABREU, 2012; BOSI, 2010; CORDEIRO, 2011; HALBWACHS, 2003). Sendo assim, por esse aspecto da memória, a lembrança não pode mais ser evocada, tal qual a vivenciada no instante de sua formação, pois nossas percepções, ideias e valores são diferentes daquele momento de outrora, dado o fato da vivência em sociedade. Bosi (2010), ao discutir a obra de Halbwachs, apresenta uma análise sobre esse fato: Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é mais a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos mais os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se [...]. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos do ponto de vista. (p.55).

Continuando nesse raciocínio, um exemplo apresentado é a impossibilidade de se fazer a leitura de um livro novamente, entendendo-se essa impossibilidade, pelo fato de que, ao relermos o livro, nossa percepção sobre o que ele conta será diferente da primeira leitura (BOSI, 2010). Isso serve para ilustrar o momento em que revivemos uma lembrança, onde o indivíduo não possui mais a mesma percepção de quando se formou essa memória no seu espírito. A memória é coletiva! Mas a lembrança se manifesta nos indivíduos. São os homens e mulheres que pertencem a esses grupos que recordam os fatos de outrora, são esses indivíduos que realizam o ato de contar sua memória, sendo assim, cada pessoa tem uma forma de entender a memória que se forma no seu grupo social, ou seja, a memória individual é sempre um ponto de vista sobre a memória coletiva.

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A influência que os grupos sociais de que fazemos parte exercem em nós, ao recordarmos lembranças ligadas à cidade, a paisagem urbana, também se faz presentes. Sempre que observamos a paisagem de determinado lugar, trazemos conosco não só nossa forma de compreendê-la, mais outros fatores externos, também condiciona nosso olhar, nossas memórias. Qualquer informação que o indivíduo já tenha sobre determinada cidade ou paisagem irá influenciar o seu olhar, logo, influencia na formação de sua memória. No desenvolvimento da cidade no decorrer dos períodos históricos que se sucedem, o lugar vai sofrendo modificações, e estas exercem influência em nossas memórias, pois passamos a sobrepor as paisagens desses diferentes períodos e as memórias ao serem recordadas irão flutuar nesse diferencial de tempo-espaço. Para que isso ocorra, e que seja possível reconhecermos essas lembranças, é necessário que essa paisagem concorde no seu essencial, mesmo apresentando certas divergências. Desse modo, as edificações e os espaços urbanos mesclam-se aos espaços da memória. Isto acontece num cenário de sobreposição entre as edificações que caracterizam momentos distintos da geografia urbana local (CORDEIRO, 2011, p.45).

Quando a paisagem urbana da cidade é modificada, suas ruas, sua arquitetura, seus topônimos, suas edificações, essas só podem ser recuperadas a partir da memória dos grupos sociais que conviveram com essa paisagem e que guardam esses lugares em suas memórias, porém, quando esse grupo deixa de existir, torna-se impossível reconstruir aquela paisagem do passado, pois a mesma desapareceu com o grupo social que conviveu com esse espaço. As memórias de determinados fatos só existem enquanto estão ancoradas a determinado grupo

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social, quando esse deixa de existir ou é substituído, perde-se a memória que eles carregavam, a única maneira de salvá-la é fazer com que as mesmas sejam transcritas em narrativas a partir dos indivíduos que constituem esses diferentes grupos sociais. As marcas deixadas pelos diferentes grupos sociais, como a arquitetura, a disposição das edificações na paisagem, o desenho de uma rua, os toponímias, todas essas imagens permitem que voltemos pela memória a momentos do passado, e recordemos de fatos que ocorreram nesse lugar isso reflete a importância morfológica da paisagem para a recuperação de determinadas lembranças. Logo, a morfologia de um lugar nos permite que determinada disposição física e sensível favoreça o reaparecimento de determinadas lembranças. Porém, não é pela simples capacidade de estar no lugar que determinada lembrança ressurge em nossa memória, nem mesmo pela disposição dos objetos contidos nesse espaço que não se alteraram com o passar do tempo, que evocamos essa lembrança, podemos recordar essa memória da mesma forma, sem que necessitemos que o local esteja lá, tal qual, de quando foi formada a lembrança, o que precisamos é da intensidade necessária para evocarmos essa lembrança, da mesma forma como se estivéssemos no lugar, naquele lugar. [...] sabemos muito bem que seriamos capazes de evocar esses mesmos objetos e esse mesmo lugar sem revê-los e até sem rever os que o circundam. Talvez não fosse a capacidade de voltar a pensar neles que nos estivesse faltando, mas a de pensar neles com a intensidade suficiente para nos recordarmos de todos os detalhes (HALBWACHS, 2003, p.54).

A estabilidade de determinados objetos dispostos em um determinado espaço, por um longo período de tempo, carrega a marca de diferentes grupos sociais, seus valores, o modo de vida, de relacionamento, de diversão, das manifesta-

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ções culturais, ao passo que, esse lugar também deixa marcas nos indivíduos, ou seja, “Quando inserido numa parte do espaço, um grupo o molda à sua imagem, mais ao mesmo tempo se molda e se adapta a coisas materiais que a ela resistem” (HALBWACHS, 2011, p.159). Ao retornar a esses lugares, cada objeto reencontrado recorda uma forma de ser do indivíduo e do grupo social, de como determinada sociedade convive com aquele lugar que pode desempenhar diferentes papéis. As imagens da cidade exercem papel fundamental para a memória dos grupos que nela habitam. Sua imobilidade espacial permite que as pessoas ali se reconheçam, pelas relações que realizam com seu grupo social e com os objetos que o circundam no espaço. O lugar, os objetos e os grupos sociais exercem papel de resistência, suas lembranças afloram mais facilmente em momentos de ruptura, na mudança da arquitetura de determinada parte da cidade, na mudança de funcionalidade de determinadas áreas que por muito tempo tiveram outro papel no modo de vida urbano, essas mudanças levam a perda de todo um conjunto de relações antes existentes que o indivíduo e os grupos sociais mantinham com aquele espaço e isso se constitui em um momento de ruptura. “[...] o grupo urbano não tem a impressão de mudar enquanto a aparência das ruas e das construções permanecem idênticas” (HALBWACHS, 2011, p.160). Esse aspecto de permanência exercido pelo que está materialmente produzido na paisagem da cidade traz um sentimento de estabilidade para o grupo social, com isso, a base material produzida e que se fixa no solo torna-se parte da vida dos indivíduos que convive com esse espaço, confundindo-se com a própria vida do grupo social. As mudanças na paisagem da cidade afetam mais um grupo social que está constantemente habituado com aquele lugar do que mesmo grandes

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acontecimentos, como os de nível nacional, isso se deve ao fato de que, para esse grupo social o que lhes interessa, são os acontecimentos existentes em seu circulo de convivência, o que ocorre fora deste tem um menor impacto. Entretanto, no momento mais atual de nossa sociedade, onde estamos sendo sempre bombardeados por notícias, nos “conectamos” a diversas partes do planeta e passamos a um ritmo de vida ditado agora pela mecanização do tempo-produtor, não temos mais tempo para parar e apreciar a paisagem e a estabilidade dos lugares (quando esses, de fato ainda existem). Com isso, torna-se mais fácil obtermos essa percepção da cidade imóvel, do modo de vida da cidade, dos relacionamentos dos indivíduos e de diferentes grupos sociais nas pessoas mais idosas da cidade, como já defendiam alguns autores (ABREU, 2012; BOSI, 2010; CORDEIRO, 2011). É nos velhos que repousam essas lembranças, de forma mais nítida. São eles, os velhos, que desempenham esse papel em nossa sociedade, pois dispõem do tempo necessário para recordar momentos de outrora, somando-se a isso toda uma vida que acompanhou diferentes períodos da sociedade da qual faz parte e do lugar no qual conviveu. Essas memórias estão mais vivas nas lembranças de Velhos, que exercem um papel fundamental na reconstituição desses espaços e dessas memórias perdidas. Nas lembranças dos velhos que vêm à luz em uma entrevista, podemos destacar os lugares dos quais recordam, os sentimentos que estão ligados a esses lugares e aos objetos desses espaços, o modo de como a vida se desenrolava, o ritmo da cidade que se altera e principalmente a mudança cultural que se sucede. (BOSI, 2010; CORDEIRO, 2011). Essas memórias se apresentam como um conteúdo cultural de um grupo social, que mesmo não tendo participado

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diretamente do mesmo fato, suas narrativas trazem elementos próximos o que caracteriza a cultura e a vivência desses indivíduos no mesmo grupo ao recordarem um mesmo fato e trazerem informações condizentes, cada um a sua maneira, de perceber determinado episódio. Nesse ponto ressalta Cordeiro (2011, p.39): A narração de fatos da memória dos indivíduos torna possível que se extraiam elementos para a reconstrução de um fundo de memória coletiva. Tal memória é uma operação que decorre da interseção de memórias individuais partilhadas em grupo e de acréscimos da memória social, e de todos os elementos que pertencem simultaneamente a esses conjuntos.

Portanto, esses são fatos condizentes com a atual realidade da cidade de Juazeiro do Norte, a qual vem sofrendo grandes transformações no seu núcleo original de formação histórico, que em relatos podemos perceber que não lembra em quase nada aquela paisagem de outrora. Recuperando as narrativas que existem nas instituições de memória e colhendo as lembranças de velhos (relatos orais – memórias vivas), com base em suas oralidades, poderemos recuperar uma boa parte dessa memória e somar na produção de uma leitura da memória do lugar, da memória da cidade de Juazeiro do ­Norte.

As Marcas de Ontem e de Hoje de Juazeiro do Norte Dedicaremos essa parte a apresentar algumas entrevistas2 já realizadas com pessoas idosas residentes na cidade de Juazeiro do Norte desde sua infância, e que relatam as transforma2

As transcrições das entrevistas se encontram no corpo do texto como forma de citação, apresentando o nome da pessoa que participou da entrevista através do relato de suas memórias.

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ções que foram perceptíveis no decorrer de suas vidas, com base em suas memórias, refazendo momentos de outrora e trazendo à luz paisagens que só existem em fotografias antigas ou somente nestas lembranças. Faz-se necessário, porém, apresentarmos uma síntese da formação territorial de Juazeiro do Norte. O primeiro dono de terras, no que hoje é o território de Juazeiro do Norte, foi o Capitão-Mor Manoel Rodrigues Ariosa, que recebeu as terras obtendo doação de sesmarias, no ano de 1703. Os primeiros núcleos de povoação da região vão surgir a partir da entrada de colonos, que iram desenvolver atividades ligadas à pecuária, tendo em vista o grande potencial natural existente na região. A povoação de Juazeiro do Norte dá-se de forma efetiva a partir do ano de 1827, quando o então padre Pedro Ribeiro, adquiri grandes extensões de terras, dentre elas o sítio Juazeiro3, situado à margem direita do rio Salgadinho, que avança sobre um terreno planáltico, denominado de Tabuleiro Grande, onde o mesmo passa a residir, constituindo residência, engenho de açúcar e uma capela devotada a Nossa Senhora das Dores. Nesse período desenvolve-se uma economia muito primitiva do lugar, sendo que este era pertencente à freguesia da Vila Real do Crato. Constitui-se assim o primeiro aglomerado do que hoje vem a ser Juazeiro do Norte. O lugarejo não demorou muito a despontar, aparecendo já na primeira metade da década de 1830 com a denominação de “Povoação do Joaseiro4”, sendo em 1858, 3

A toponímia do lugar deve-se, como consta na tradição oral, a três frondosos Juazeiros – árvore da caatinga nordestina, pertencente à família das ramnáceas, que é resistente as secas e possuí fruto comestível – que serviam de descanso para os viajantes, que iam a feira da Vila Real do Crato pela estrada de Missão Velha, foi onde se teve início, nos seus arredores, o arruado que deu origem ao lugar. 4 Essa grafia era utilizada até o período de 1914. Posteriormente passa a ser chamada de Juazeiro e em 1943 torna-se Juazeiro do Norte, para diferenciar-se do município de Juazeiro da Bahia.

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criado o distrito denominado de Núcleo de Joaseiro, subordinado administrativamente a freguesia da Vila Real do Crato. O povoado segue-se então em um processo lento de desenvolvimento, até o ano de 1872, que marca a chegada do padre Cícero, sendo que ele se constitui como um dos principais agentes simbólicos da rápida expansão do lugar, permanecendo como tal até os dias atuais. O mesmo apresenta-se como um líder carismático, que passa a ser obedecido pelas multidões, em função do seu carisma, ou seja, a qualidade excepcional que ele tinha de atender as massas (WEBER, 2012). Essa imagem de líder carismático apresenta-se pelo fato de sua fama de santo pelos sertões. Quando o Nordeste encontra-se assolado por graves secas, gerou um processo de migração, onde o Cariri Cearense tornou-se um local de acolhimento e esse momento serviu como forma de disseminar a fama carismática do Padre. Entretanto, o fato de maior relevância para expansão e consolidação de Juazeiro ocorre no ano de 1889, quando a hóstia torna-se tingida de sangue na boca da beata Maria de Araújo, apresentando-se então como um ato hierofânico (ELIADE, 2010), a manifestação do Sagrado a partir da figura de um homem, o padre Cícero. Esse episódio dá início a um grande êxodo rural em direção ao lugar, sendo em um primeiro momento, advindo das proximidades do Cariri, e em um segundo momento, com a repetição hierofânico, a notícia se espalha e toma proporção nacional, o que dá início a um processo de grande crescimento demográfico do lugar e que dará suporte para alavancar sua economia e consolidação territorial. No ano de 1909, depois de muitas lutas travadas desde 1907, o Juazeiro consegue sua emancipação, tornando-se Vila, pela lei estadual nº 1.028, isso se deve graças ao apoio político que o patriarca conquistou de outros coronéis de mu-

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nicípios vizinhos. Um dos principais argumentos utilizados nesse período para se conquistar a emancipação, foi a caracterização urbana da cidade (ver Foto 1) e os fatores advindos da mesma, como a população, comércio e a economia que se desenvolviam rapidamente com relação aos lugares vizinhos. Foto 1 – Juazeiro do Norte no ano de 1911

Fonte: Domínio Público, 2011.

A partir de sua consolidação e pela influência exercida pelo patriarca, Juazeiro vai ganhando cada vez mais projeção regional e nacional e atraindo cada vez mais um enorme fluxo migratório para localidade, o que a torna uma das principais cidades do Nordeste brasileiro nos dias atuais. Porém, atrelado a esse processo de desenvolvimento que se seguiu na cidade de Juazeiro do Norte, muito de sua memória urbana se perdeu, principalmente o que diz respeito à arquitetura da cidade, o modo de vida alterou-se e as principais transformações se deram no núcleo de formação da cidade, sendo que essas, em diferentes períodos, exercem funções diferentes segundo as demandas sociais do sistema vigente, isso pode ser comprovado nos relatos orais coletados de pessoas idosas da

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cidade, que vivenciaram suas infâncias no núcleo de formação da cidade e que acompanharam essas transformações. O senhor Raimundo de Araújo, memorialista de Juazeiro do Norte e que veio habitar nessa terra aos três anos de idade, quando questionado sobre as mudanças ocorridas na morfologia do núcleo de formação de Juazeiro do Norte nos relata: Eu sinceramente, gosto mais do Juazeiro do meu tempo de criança, porque era um Juazeiro calmo, Juazeiro que a gente vivia em família, um Juazeiro sossegado, consequentemente o povo tinha sossego, não vivia de portas fechadas, enfim. Em tudo, para mim, Juazeiro era melhor, naquele tempo quando eu era criança, adolescente, maduro, até uns dez anos atrás, pra mim era melhor. Não é que eu não goste de hoje, sou louco pelo Juazeiro, mais o Juazeiro do passado, Juazeiro a trinta, quarenta anos atrás era melhor. Agora, quanto aos prédios, realmente, existiam prédios aqui, que infelizmente não eram para serem destruídos, muito pelo contrário, deveriam ser tombados, mais infelizmente um de nossos prefeitos destruiu muita coisa, inclusive ele acabou com a rua mais histórica do Juazeiro, que foi a rua do Brejo onde tinha aquela escolinha (Grupo Padre Cícero) (ver Foto 2), que o padre Cícero teve aquele sonho quase acordado, com Jesus Cristo, autorizando ele ficar aqui para o nosso bem. Aí destruíram outras casas, praça cinquentenário, e por ai vai, né!? Então isso fere na gente, dói na gente, mais o que fazer? Os donos não têm sensibilidade, não têm respeito à história, são os próprios a venderem as casas.

Em outro relato o senhor Renato Dantas, nascido em Juazeiro do Norte, também memorialista dessa cidade, nos relata como era o modo de vida nos diferentes períodos em Juazeiro do Norte e fala de sua percepção com relação às transformações morfológicas:

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Foto 2 – Antigo Grupo Escolar Padre Cícero

Fonte: OLIVEIRA, 2012.

O cento de Juazeiro era muito calmo. Impressionante, eu nasci no centro de Juazeiro, eu nasci na rua Nova. Então, o Juazeiro era aquela coisa simples, singela, calma. De repente explodia com as romarias daí você não via mais cidade, você via gente e caminhão é uma transformação tão rica. Eu não sei assim, qual é o impacto dessa destruição física em outras pessoas por que em mim dá tristeza de perder aquele espaço, mais eu continuo tendo a referência daquele lugar onde, por exemplo, o mercado de carnes existia uma mulher chamada Dona Conceição que vendia pirô. Aí a gente ia comprar pirô na Dona Conceição, tinha Dona Chiquinha que vendia café. Então, hoje eu passo no estacionamento do SESC (onde funcionou o antigo açougue público) e sempre me lembro de Dona Conceição e de Dona Chiquinha porque eu sei que ali tinha Dona Chiquinha. A casa do sonho do Padre Cícero que era na rua do Brejo que foi totalmente destruída a rua do Brejo.

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Considerações Finais Apresentamos aqui alguns relatos sobre a memória da cidade de Juazeiro do Norte, o que nos demonstra a riqueza da percepção de vários indivíduos, contidos em um mesmo grupo social, que conviveram com as transformações sofridas no espaço urbano do núcleo de formação de Juazeiro do Norte e suas transformações morfológicas, que apresentam uma grande riqueza intersubjetiva na compreensão das transformações da cidade. Juazeiro do Norte é uma cidade onde encontramos pouquíssimos vestígios de sua morfologia urbana de períodos passados, porém, a cidade guarda um grande acervo de informações escritas, principalmente em livros escritos por memorialistas que buscam deixar seus relatos sobre a cidade de Juazeiro do Norte e sobre a figura do seu patriarca. Essas informações precisam imediatamente ser coletadas e servirem como base de estudos para compreender a evolução urbana de Juazeiro do Norte, bem como, buscarmos resgatar a memória daqueles que não possuem a condição de deixá-las escritas. Isso nos mostra a grande importância que a memória da cidade tem para o estudo do espaço urbano e da geografia histórica, principalmente em cidade novas que sofrem com o processo de crescimento e perdem sua memória urbana, recuperá-las é necessário e isso nos permitirá dar uma grande contribuição ao estudo das cidades.

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CAPÍTULO 6

Prática de Ensino e Livro Didático

ATLAS ESCOLAR MUNICIPAL: PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICOPEDAGÓGICO PARA OS ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Antônia Carlos da Silva Maria de Lourdes Carvalho Neta

Introdução A discussão sobre a elaboração de “Atlas Escolar Municipal” está vinculada ao projeto de extensão “Atlas Municipal de Altaneira: produção de material didático-pedagógico para os alunos da Educação Básica”, do Departamento de Geociências da Universidade Regional do Cariri – URCA. Vem sendo desenvolvido desde novembro de 2012 e atende, em linhas gerais, ao propósito de promover e sistematizar diálogos entre a Universidade e a escola por meio da produção de gêneros textuais que relacionem os recursos da cartografia escolar ao estudo da Geografia local. A referida produção, especificamente, tem como objetivo atender a comunidade escolar do município de Altaneira-CE; proporcionar aos alunos do curso de licenciatura em Geografia da Universidade Regional do Cariri o exercício da pesquisa em ensino; bem como, promover o intercâmbio com os profissionais da área em outras instituições de formação e de trabalho. A definição do município de Altaneira como referencial espacial para produção do Atlas Municipal foi orientada pelo fato deste ser o menor município em extensão territorial do Cariri cearense, condição esta que pode viabilizar melhores condições para a realização do projeto, e pelo fato do município apresentar carência de mapas e de material didático. As pesquisas no Brasil tratando do ensino da Geografia, da Cartografia Escolar e da produção de Atlas Escolar tem ga-

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nhado significativos espaços no meio acadêmico nas últimas décadas com os trabalhos de (OLIVEIRA, 1978), (PASSINI, 1994), (ALMEIDA, 2001), (ALMEIDA & PASSINI, 1989), (CASTELLAR, 2011), (BUENO, 2008), (FELBEQUE, 2001). Entre as contribuições destes pesquisadores destacam-se as direcionadas à fundamentação teórica, aos encaminhamentos metodológicos e à produção de materiais didáticos que podem subsidiar práticas de ensino de Geografia. Materializando essas discussões, emerge nos últimos anos uma maior atenção para os conteúdos relacionados com a Cartografia Escolar e a projetos relacionados à produção de Atlas Municipal em diversas regiões do Brasil. No caso da região Nordeste e, especificamente do Ceará, essas propostas ainda não receberam o merecido tratamento e encaminhamento no âmbito das universidades. Portanto, enfatiza-se a essencialidade do Atlas por ser uma proposta inédita em termos de concepção e realização, não apenas para o município de Altaneira, mas também para a região do Cariri. Além disso, é também uma proposta inovadora por considerar em sua metodologia o uso de uma linguagem visual e textual diversificada e adaptada ao nível de aprendizagem a que se destina. A abordagem metodológica aqui proposta assume uma pesquisa bibliográfica e de campo que vêm sendo empreendidas. Envolve a análise de temas relacionados à produção de Atlas Municipal e suas metodologias, e os conteúdos/conhecimentos da Geografia do município de Altaneira estabelecidos a partir dos objetivos do Atlas, no que diz respeito à forma e conteúdo.

O Local como Espaço de Vivência e Prática Escolar Nas orientações pedagógicas dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN para a Educação Básica, o estudo do

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local constitui um dos objetivos do ensino da Geografia desde os primeiros anos do Ensino Fundamental. Entre os objetivos explicitados está: reconhecer, na paisagem local e no lugar em que se encontram inseridos, as diferentes manifestações da natureza e a apropriação e transformação dela pela ação de sua coletividade, de seu grupo social (BRASIL, 1997, p.130).

Na escola, as práticas de ensino voltadas para a construção do conhecimento geográfico devem promover o entendimento dos conteúdos a partir do cotidiano do aluno e possibilitar a apreensão da relação entre o espaço local e o global. A utilização de textos didáticos em sala de aula que atendam aos objetivos supracitados não é tarefa fácil. Os professores têm enfrentado inúmeros entraves: encontrar produções didáticas orientadas para o estudo do local e identificar textos com linguagem adequada ao nível de desenvolvimento cognitivo dos alunos em termos de leitura e compreensão textual. Além disso, é preciso reconhecer que as condições de trabalho dos docentes inviabilizam a pesquisa e a produção sistemática de material para uso em sala de aula. Nesse contexto, reconhece-se a necessidade da elaboração de material didático direcionado para o estudo do local. Este tem como referência espacial o município de Altaneira, congregando diferentes textos escritos, imagético, gráfico e cartográfico. Vale destacar, ainda, que a produção do Atlas é essencial para os cursos de licenciatura em Geografia, pois é recorrente a preocupação dos professores e alunos no âmbito da graduação no que diz respeito: à essencialidade da cartografia como conteúdo de ensino e como ferramenta de aprendizagem; as inúmeras solicitações feitas pelos educadores das escolas onde são realizadas as práticas de pesquisa e a regência

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nas disciplinas de Estágios Supervisionados; além disso, é um exemplo de formalização de práticas de pesquisa que podem contribuir positivamente para a criação de outros espaços de diálogos como campo de atuação do docente em Geografia voltado para produção de material didático. Dessa feita, nas propostas oficiais de ensino, além dos conteúdos conceituais, são apontados os procedimentais e atitudinais. Essa concepção evidencia novos caminhos no tratamento da Geografia e não significa a minimização dos conceitos no currículo da Geografia Escolar, representa sim, o reconhecimento de outras dimensões que também são importantes na formação do aluno: o saber (conteúdos conceituais), o saber fazer (conteúdos procedimentais) e o ser (conteúdos atitudinais e valorativos) (COLL, 1996). Nessa concepção, a seleção dos conteúdos geográficos deve partir da realidade dos alunos, considerar os conteúdos significativos para a formação dos educandos e desenvolver os conceitos, os procedimentos e as atitudes/valores essenciais para construção do pensar geográfico, possibilitar a abordagem dos fenômenos socioespaciais de forma analítica, crítica e propositiva. Nas práticas escolares, esses conteúdos devem ser articulados aos objetivos e metodologias que devem favorecer a reflexão, a inferência, o questionamento, a compreensão e orientar a construção de saberes geográficos socialmente comprometidos com o local de vivência do aluno. O eixo norteador dos conteúdos do Atlas é a Cartografia Escolar, que encaminha os aspectos conceituais e valorativos numa perspectiva mais ampla para o estudo do município. A Cartografia Escolar busca desenvolver junto aos alunos as habilidades de mapear e de ler mapas. Esse conjunto de conhecimentos, que envolve a linguagem cartográfica, relacionado à Geografia, é uma importante ferramenta metodológica

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para obtenção de informações e representação da espacialidade dos fenômenos geográficos. Como conteúdo procedimental, vincula-se ao desenvolvimento de estruturas cognitivas que possibilitam a leitura e a produção de representações espaciais, como por exemplo, mapas e gráficos, que possuem uma simbologia específica cuja mensagem pode ser lida e interpretada. A cartografia é considerada uma linguagem, um sistema de comunicação imprescindível em todas as esferas da aprendizagem em Geografia, articulando fatos, conceitos e sistemas conceituais que permitem ler e escrever as características do território (CASTELLAR, 2011, p.129).

Esses conteúdos sistematizados no Atlas Escolar Municipal de Altaneira norteiam as práticas cotidianas dos alunos com os conteúdos da Geografia: localizando, estabelecendo interações, identificando conflitos, problematizando e interpretando os fenômenos geográficos do local. O tratamento pedagógico e didático da Geografia Escolar pressupõe, como foi exposto, a promoção da capacidade de ler e pensar o espaço geográfico. Nesse sentido, cabe indagar: Como promover o estudo do local a partir do uso de Atlas Escolares? Esse desafio norteia os encaminhamentos da produção do Atlas de Altaneira, no sentido amplo do conhecimento: lendo, identificando, analisando, estabelecendo relações, e pensando o espaço geográfico local. Para Schäffer (2006, p.87), ler e escrever em Geografia é uma estratégia cognitiva disciplinar que, na parceria com as demais áreas, permite ao aluno adquirir uma visão de mundo, reconhecer e estabelecer seu lugar no espaço geográfico. Portanto, pensar a leitura em Geografia é um compromisso que deve favorecer: a autonomia crescente do aluno na consulta e obtenção de informações, a aproximação permanente com o mundo real, o reconhecimento da multiplicidade

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de temáticas representadas, a identificação dos significados cognitivos da leitura do espaço geográfico.

A Produção de Materiais Didáticos e a Proposta de Atlas Escolares Municipais Diante da variedade de textos didáticos, vale questionar: qual o diferencial do Atlas Escolar em relação às demais produções didáticas? Os atlas podem ser entendidos como uma coleção de mapas, em diferentes escalas, que representam conteúdos diversos de um determinado espaço (mas não somente com esse objetivo). Podem ser elaborados com fins educativos, de planejamento e para estudos ambientais, urbanos, geopolíticos, entre outros. Libault (1975 apud BUENO, 2008) definiu seis tipos de atlas: de referência, mistos, especiais, monográficos, de organização e escolares. Em seus estudos, Felbeque (2001) classificou as publicações de alguns atlas existentes em três categorias: 1) Atlas de referência nacional, de concepção clássica de atlas como um conjunto de mapas “prontos” e “acabados”, sem atividade para o aluno e sem apresentação do material nem orientações metodológicas para o professor; 2) Cadernos de mapas, destinados à alfabetização cartográfica, utilizando diferentes linguagens como mapas, desenhos, fotos, maquetes, gráficos, imagens de satélite, textos explicativos, entre outras, centrados na atividade do aluno, com ou sem apresentação do material ou orientações para o professor; 3) Atlas escolares municipais, considerado como “um novo tipo de atlas”, com informações organizadas e dados atuais sobre os municípios. Os temas não têm uma sequência fixa, apresentação do material e de seus objetivos, com ou sem orientações metodológi-

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cas para os professores, e alguns destacam a participação de professores no processo de elaboração de atlas, o que pode possibilitar uma maior aproximação com suas demandas. Os atlas, com seus recursos gráficos, contemplam os objetivos mais gerais do ensino de Geografia: a localização de lugares; a composição de mapas temáticos relacionados aos aspectos físicos e humanos; o uso de várias escalas que permitam o estabelecimento de correlações entre distâncias; a visualização da representação espacial do lugar por meio de recursos variados (BUENO, 2008).

O Atlas Escolar Municipal, sob o enfoque pedagógico, é um material didático ou, melhor dizendo, um material curricular, um recurso do qual se lança mão nas situações de ensino-aprendizagem em todos os níveis de formação. Por incluir diferentes meios de representação do espaço, é um importante recurso no ensino de Geografia, depois dos livros didáticos (BUENO, 2008). Esses materiais têm por intuito atender à necessidade do professor e do aluno no desenvolvimento dos conteúdos escolares e especificamente dos conteúdos geográficos. Assim, esses Atlas são vistos como recursos auxiliares na prática docente, voltados para o trabalho com a linguagem cartográfica no ensino de Geografia. Os Atlas Escolares Municipais integram um conjunto de materiais gráficos, cartográficos, textuais e imagéticos, que possibilitam desenvolver atividades significativas para o ensino de conteúdos escolares. Dessa forma, podem constituir-se em importante recurso didático e pedagógico a serem utilizados para o estudo do município e possibilitar o desenvolvimento metacognitivo dos alunos e o aperfeiçoamento do trabalho dos professores. O estudo da Geografia tendo como referência espacial o município de Altaneira possibilita ao aluno perceber-se como

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participante do seu espaço de vivência, identificando os fenômenos que aí ocorrem, as relações estabelecidas e os processos/produtos delas resultantes. Esses conteúdos, no Atlas, têm como abordagem o enfoque de diferentes aspectos da localidade como: cultura, localização geográfica, processo histórico de ocupação, aspectos físicos (clima, vegetação original, geologia, geomorfologia, tipos de solo, rede hidrográfica) e aspectos sociais (uso do solo urbano e rural, demografia, mobilidade da população, circulação de mercadorias), entre outros. O município de Altaneira está localizado na microrregião de Caririaçu, esta vinculada à mesorregião Sul Cearense. Dista 389 km de Fortaleza e ocupa uma área de 73,296 km². Tem como municípios limítrofes: Farias Brito, Assaré, Santana do Cariri e Nova Olinda. Altaneira está dividido administrativamente em dois Distritos, a saber: Sede e São Romão (Figura 1). Figura 1 – Mapa do município de Altaneira

Os estudos realizados contemplaram o aprofundamento da temática, através da exploração de artigos, textos, livros,

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análise de material cartográfico e realização de trabalhos de campo no município, com o intuito de coletar dados para orientar os procedimentos de pesquisa e nortear as produções decorrentes. A coleta de dados consistiu em levantamentos documentais, para formação de um banco de informações, com materiais históricos, imagéticos e cartográficos, dentre outros. Gerou-se, a partir da interpretação de imagens de satélite, a primeira versão do mapa base da cidade (Figura 2). Atualmente, estão sendo realizadas visitas de campo para atualização da base cartográfica, com a identificação dos logradouros e alimentação de informações complementares. Figura 2 – Mapa da sede municipal de Altaneira

O Atlas vem sendo desenvolvido, em ­caráter participativo, por uma ­equipe de trabalho formada por professoras, bolsista de extensão e estudantes da URCA e conta com a colaboração de pesquisadores de outras instituições de ensino1. Como suporte para encontros de estudo, análise de material, encaminhamentos e produção dos textos didáticos tem-se o 1

A elaboração do Atlas é orientada pelas professoras Antônia Carlos da Silva e Maria de Lourdes Carvalho Neta, do Departamento de Geociências da URCA, e conta com a participação dos estudantes Antônia Marinalva Rodrigues Feitosa e Francisco Calixto Júnior. Além da colaboração da professora Adryane Gorayeb, da Universidade Federal do Ceará-UFC e do geógrafo Augusto Copque.

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Laboratório de Ensino de Geografia-LEG e o Laboratório de Geoprocessamento-LABGEO, vinculados ao Departamento de Geociências-URCA. Ambos disponibilizam materiais para consulta bibliográfica, ambiente para leitura, acesso a internet, computadores para elaboração e edição de mapas que viabilizam, em parte, a realização das atividades do projeto. O plano de trabalho envolve atividades de campo e em laboratório. Como encaminhamentos de pesquisa, destacam-se: Realização de visitas de campo ao Distrito de São Romão (Figura 3) e à Sede (Figura 4) para reconhecimento do local. E levantamento dos materiais didáticos já disponibilizados à comunidade escolar, bem como outras fontes de consulta (textos, mapas, depoimentos etc.) relacionadas aos conteúdos da Geografia. Figura 3 – Vista parcial do Vale do São Romão

Foto: SILVA, 2011.

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Figura 04 – Vista parcial da cidade de Altaneira

Foto: FEITOSA, 2013.

Nessa etapa de coleta, foram levantados os documentos referentes ao programa da disciplina de Geografia adotados pela Escola Municipal de Ensino Fundamental 18 de Dezembro e da Escola Estadual de Ensino Médio Santa Teresa. As coletas no município prosseguem, no sentido de obter as propostas de ensino da Secretaria de Educação do Município e avaliar os conteúdos indicados nos livros didáticos adotados pelos professores. O propósito é compor a base teórica para produção dos textos do Atlas, considerando tanto as questões postas nos documentos oficiais, quanto às necessidades pedagógicas dos professores em sala de aula.

Considerações Finais A escola é um espaço de aprendizagem para alunos e professores, e congrega teorias e práticas que são sistematizadas na forma dos conteúdos escolares. É um ambiente de e para socialização e recriação desses conteúdos, que deve favorecer a reflexão sobre as experiências cotidianas, a construção

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de novos olhares e intervenções socialmente articuladas sobre o espaço local, que é também global. Essa intervenção propositiva é, também, o compromisso do projeto “Atlas Municipal de Altaneira: produção de material didático-pedagógico para alunos da Educação Básica” como forma de aproximar, efetivamente, as reflexões feitas por docentes e discentes do curso de licenciatura em Geografia da URCA. Desafio é a expressão que tem marcado as discussões dos que estão diretamente envolvidos nessa relação entre a universidade e as escolas. O Atlas Municipal de Altaneira é uma das representações desses desafios, mas é também uma resposta a necessária interação entre pesquisa-ensino-extensão. Revela, acima de tudo, uma grande responsabilidade dos docentes e discentes envolvidos, por ser um material didático que tem gerado expectativas tanto no âmbito da produção quanto por aqueles que irão usufruir do material em suas práticas cotidianas ou como recurso didático em sala de aula. Reconhece-se o descompasso entre as intenções/condições de viabilização das atividades planejadas e a operacionalização da produção do Atlas. Daí considera-se que a conclusão do Atlas não encerra o projeto. É essencial a promoção de atividades de formação continuada dos professores do município de Altaneira e atualização/adequação dos textos do Atlas, de acordo com as percepções daqueles que o utilizarão. Assim, pode-se afirmar que as considerações não encerram os objetivos deste trabalho, há inúmeras constatações e reflexões que poderão alimentar as experiências em andamento e, também, ampliar o projeto para outros municípios do Cariri cearense. Assim, as considerações apontam, de forma ponderada os desafios atuais e direcionam, possivelmente, para outros ainda maiores. Esse é o caminho.

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Referências Bibliográficas ALMEIDA, Rosângela Doin. Do desenho ao mapa: iniciação cartográfica na escola. São Paulo: Contexto, 2001. (Caminhos da Geografia). ALMEIDA, Rosângela Doin; PASSINI, Elza Yasuko. O espaço geográfico: ensino e representação. São Paulo: Contexto, 1989. – (Repensando o ensino). BUENO, Miriam Aparecida. Atlas municipal e a ­possibilidade de formação de professores: um estudo de caso em Sena Madureira. Tese apresentada ao instituto de Geociências como parte de requisito para obtenção do título de doutor em Ciências. Campinas, São Paulo, 2008. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais – História/Geografia. Brasília: Secretaria de Educação Fundamental, Ministério da Educação e do Desporto, 1997. CARLOS, Ana Fani A. A geografia em sala de aula. São Paulo: Contexto, 1999, p.92-108. CASTELLAR, Sonia Vanzella. A cartografia e a construção do conhecimento em contexto escolar. In: ALMEIDA, Rosângela Doin de. (Org.) Novos rumos da cartografia escolar: currículo, linguagem e tecnologia. São Paulo: Contexto, 2011. CASTROGIOVANNI, Antônio Carlos et al. (org.). Geografia em sala de aula: prática e reflexões. Porto Alegre: Ed.UFRGS, 1998, p.33-48. COLL, Cesar. Psicologia e Currículo. São Paulo: Ática, 1996. FELBEQUE, Rosilene. Atlas escolares: uma análise das propostas teórico-metodológicas. In: Colóquio de Cartografia para Escolares, 4., Fórum Latino-Americano, 1., 2001, Maringá. Boletim de Geografia, Maringá, v. 19, n. 2, p.36-41, 2001. OLIVEIRA, Lívia de. Estudo metodológico e cognitivo do mapa. São Paulo: USP/Instituto de Geografia, 1978.

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PASSINI, Elza. Alfabetização cartográfica e o livro didático: uma análise crítica. Belo Horizonte: Lê, 1994. PEZZATO, João Pedro. PASSINI, Elza Yasuko. Projetos de elaboração de ATLAS MUNICIPAIS e melhoria do ENSINO DE GEOGRAFIA na rede de educação básica. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 26, Anais... Poços de Caldas/MG: 2003. Disponível em: www.anped.org.br/reunioes/26/posteres/joaopedropezzato.rtf Acesso em: 20 out. 2012. SCHÄFFER, Neiva Otero. Ler a paisagem, o mapa, o livro... Escrever nas linguagens da geografia. In: NEVES, Iara Conceição Bitencourt et al (Orgs.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2006.

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POR OUTRAS PRÁTICAS DE ENSINO DE HISTÓRIA Cícero Joaquim dos Santos

Início de Conversa Falar sobre outros convívios com a história, aqueles que incorporam as lutas pelo acesso ao prazer da história e o situam no conjunto das experiências sociais vividas e estudadas não se reduz a simples utopia irrealizável, embora esboce traços de lugares e experiências de conhecimento ainda parcialmente inexistentes. Discuti-los parte das tantas práticas que a aprendizagem de história, em escolas e fora delas, já elaborou e continua a realizar, evidenciando a profundidade deste campo de conhecimento também sob a ótica de contatos de muitos com o fazer saberes históricos, socializando seu prazer (SILVA, 2003, p.17-18).

Ao refletir sobre o prazer da história na última década do século XX, Marcos Silva (2003) problematiza suas historicidades, lançando provocações acerca das práticas e dos lugares de produção dos prazeres e desprazeres da história. Em uma clara alusão ao livro Apologia da História ou Ofício do Historiador, de Marc Bloch, Marcos Silva lembra-nos que a história agrega elementos de arte e de ciência e que tem a potencialidade de provocar um prazer crítico. Na análise deste historiador, o prazer da história é desfrutado por profissionais que comumente estão vinculados aos lugares de produção do conhecimento histórico (universidades, centros de pesquisas), portanto, aqueles presentes nos espaços de pesquisa e, de modo semelhante, aqueles que se deleitam sobre as produções artísticas. Fora desses espaços, a experiência do prazer em história era vivenciada em poucas nesgas e por poucos profissionais. De certo modo, os desprazeres confluem suas direções para as escolas, os museus, os

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arquivos, as bibliotecas e os monumentos públicos.1 Aspectos largamente presentes na nossa contemporaneidade. As causas identificadas como provocadoras dos desprazeres dos profissionais de história, elencadas por Marcos Silva (2003), são antigas e já muitas conhecidas por nós: baixos salários, escassa autonomia no trabalho, excesso de carga horária, livros didáticos defasados, dentre outras. Todavia, mesmo com tantas dificuldades, o autor nos indica que as mesmas práticas prazerosas, porém raras, podem nos sugerir experiências exitosas e, assim, elucidar outros convívios com a história, que possibilitem, portanto, a ampliação do acesso aos seus prazeres. Nesse direcionamento, Marcos Silva aponta para a indissociação entre pesquisa e práticas de ensino, sugerindo o desenvolvimento de ações educativas a partir dos usos da história imediata (tempo presente), da memória e do patrimônio histórico. A articulação entre pesquisa e ensino também já tinha sido apontada por Paulo Freire. Concordando com ele, reitero que: Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses quefazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade (FREIRE, 2011, p.30-31).

É importante, nesse sentido, historicizar experiências educativas vivenciadas por professores de história que agem 1 No Cariri cearense, tenho percebido que há fortes continuidades dos desprazeres da

história nos espaços escolares. Nos relatórios de estágio supervisionado em História, elaborados pelos professores egressos da Universidade Regional do Cariri (URCA) e depositados no Núcleo de Apoio Pedagógico e Pesquisa em Ensino de História (NUAPEH), é perceptível a permanência dos fatores identificados como provocadores dos desprazeres, demonstrados pelos discentes estagiários e os docentes.

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nos espaços escolares e fora destes, atuando na sociedade visando à construção da consciência crítica e histórica dos sujeitos a partir de práticas inovadoras, tidas por eles como prazerosas. Vale lembrar que a construção da consciência crítica e histórica é um dos principais objetivos da prática pedagógica do ensino de história. Nesse sentido, os estudos históricos podem colaborar com a formação de sujeitos críticos e cientes do lugar que ocupam na sociedade, no exercício da cidadania, enfim, no reconhecimento enquanto sujeitos históricos (SCHMIDT; GARCIA, 2003). Nos limites deste texto, pretendo refletir sobre a produção de jogos didáticos sobre memória e patrimônio cultural do Ceará, elaborados no ano de 2005, por professores das redes básicas de ensino, residentes em variados municípios cearenses, afinal: “Nós, professores, não apenas estamos na história, mas fazemos, aprendemos e ensinamos história” (FONSECA, 2006, p.127).

Por Outras Histórias: a Produção de Jogos Didáticos Dentre os desafios que tocam à prática de ensino de história nos dias atuais, destacamos a produção e os usos dos livros didáticos. Em consonância com os escritos de Circe Bittencourt (2011), tomamos o livro didático como um objeto cultural complexo. Assim, entendemos que eles são instrumentos integrantes da tradição escolar, estando entre aqueles mais utilizados por professores e alunos. Embora sejam muito criticados, e por muitos identificados como uma das principais mazelas do ensino de história, em virtude das deficiências de conteúdo, erros conceituais e de informações, além das lacunas, é importante considerar que não existe um livro didático ideal, pois estes também possuem suas historicidades.

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No nosso tempo, eles são mercadorias ligadas à indústria cultural do sistema capitalista. Também são suportes de conhecimentos escolares propostos pelos currículos educacionais e suportes de métodos pedagógicos. Juntamente com essas dimensões técnicas e pedagógicas, o livro didático precisa ainda ser entendido como veículo de um sistema de valores, de ideologias, de uma cultura de determinada época e de determinada sociedade (BITTENCOURT, 2011, p.302. Grifo do autor).

De acordo com Ferreira e Franco (2008), a produção dos livros didáticos se insere em um amplo cenário que envolve questões pertinentes ao ofício do historiador, às políticas públicas educacionais e aos processos de formação de professores. Nesse sentido, a produção de livros e de outros materiais didáticos se constitui como um importante exercício para redefinição do que ensinar e de como ensinar, evidentemente, em consonância com os currículos oficiais da disciplina escolar. Assim, conforme os autores, os desafios que tocam as práticas de ensino de história, a partir dos usos de livros didáticos, apontam para a necessidade de desenvolvermos a capacidade crítica dos alunos, a problematização das discussões e discursos presentes nos livros didáticos e a compreensão das diferentes temporalidades. Nessa trilha discursiva, é importante lembrar que, como afirma Régis Lopes Ramos, “estudar a história não significa saber o que aconteceu e sim ampliar o conhecimento sobre a nossa própria historicidade” (2004, p.24). Dessa maneira, se a natureza dos estudos históricos coloca em cena a reflexão sobre as nossas historicidades, é de fundamental importância, a elaboração de materiais didáticos alternativos que viabilizem a construção de conhecimentos sobre histórias que, vinculadas ao universo cultural dos alunos, possi-

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bilitem a construção de saberes críticos sobre suas próprias historicidades. A partir desta premissa, não podemos deixar de escutar as vozes dos profissionais que atuam nos espaços educativos escolares e de considerar suas demandas nos processos de construção de materiais didáticos que tenham como um dos seus objetivos dinamizar as práticas de ensino. Logo, no processo de produção de materiais didáticos, não basta seguir os parâmetros oficias presentes no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), nas diretrizes curriculares e em outros documentos que regulam os conteúdos escritos, as imagens e as atividades propostas nos livros para a educação escolar, é importante dar visibilidade às práticas educativas inovadoras e incentivar a publicização de outros materiais didáticos produzidos pelos docentes que atuam na educação básica. É necessário ver e ouvir as práticas e as reivindicações destes profissionais, pois são eles que irão usar e abusar, de diferentes formas, de tais objetos culturais. É importante dar visibilidade e considerar, desse modo, o saber docente que, conforme Maurice Tardif (2011) é social, tendo em vista que ele é partilhado por um grupo de agentes (professores); assegura, em um sistema que legitima e orienta uma definição e utilização dos saberes (uma vez que o reconhecimento do ofício requer um reconhecimento social); o próprio objeto do saber é social, pois abarca práticas e processos sociais; é dinâmico, à medida que o ensino se transforma com a dinâmica da sociedade, assim, os saberes a serem ensinados e as maneiras de ensinar também mudam; é construído no contexto de uma socialização profissional. Por tudo isso, o saber docente é entendido como um processo em construção, tecido nas interfaces do indivíduo com o coletivo.

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Dessa maneira, é válido salientar que as relações dos professores com os saberes nunca são relações estritamente cognitivas: são relações mediadas pelo trabalho que lhes fornece princípios para enfrentar e solucionar situações cotidianas (TARDIF, 2011, p.17).

Deste modo, ao refletir sobre as práticas de ensino nas escolas públicas cearenses, o professor José Erison de Lima afirmou que: As escolas públicas do Ceará são carentes de recursos didáticos capazes de dinamizar as atividades educativas, principalmente no que se refere ao conhecimento da realidade mais próxima do educando, conhecimento este que o leve a sentir-se sujeito dessa sociedade tão excludente.2

Publicada no primeiro semestre do ano de 2006, e seguindo esse mesmo raciocínio, com um tom de denúncia e reivindicação, a fala do professor Diego César reiterou que: Todos sabemos as dificuldades encontradas pelos professores e alunos no dia a dia em sala de aula. Além dos baixos salários, a escola pública é marcada pela falta de estrutura como bibliotecas (as que existem têm um acervo pequeno e defasado), os alunos têm um acesso restrito a material didático, o que força o professor a buscar meios (xerox) para sanar, mesmo que de forma parcial, tal problema. No ensino de história e geografia a situação se agrava quando o professor trabalha em suas aulas a realidade local, contemplando a temática do patrimônio cultural. São poucas as produções didáticas que enfocam a contexto dos alunos, e as que existem, em sua maioria, não trazem de forma adequada as discussões sobre a 2 Narrativa de José Erison de Lima. Professor da rede básica de ensino. Integrante

do curso de formação a distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará oferecido pelo IMOPEC, Grupo do município Alto Santo. In: Boletim Raízes, Fortaleza, n.54, abr/jun 2006, p.6.

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necessidade de se reconhecer e preservar o patrimônio cultural.3

Tais exigências dos docentes, também vinham sendo percebidas e discutidas entre o Instituto da Memória do Povo Cearense (IMOPEC) e os grupos de professores e agentes culturais que participam do curso de Formação a Distância sobre Memória e Patrimônio Cultural do Ceará, realizado pela referida Organização não Governamental (ONG). Em consonância com seus objetivos, esta instituição sugeriu aos membros do curso a distância a elaboração de jogos pedagógicos. A proposta lançou luz para que os professores da educação básica de vários municípios cearenses elaborassem jogos didáticos que incluíssem nos seus conteúdos os bens culturais dos municípios onde residiam e também das demais localidades cearenses. Com esse propósito, 33 professores se reuniram em uma oficina realizada em Fortaleza, nos dias 5 e 6 de março de 2006. Como resultado, foram elaborados três jogos pedagógicos “que pretendem estimular alunos e professores a descobrir, valorizar e preservar os lugares da memória do seu município, da sua região e do Ceará” (IMOPEC, 2006a, p.7; ALENCAR NORONHA, 2007). Foram eles: Bingo Cultural do Ceará, Trilha da Cultura Cearense e Descobrindo o Ceará.4 O primeiro parágrafo da apresentação dos três jogos, diz que: 3

Narrativa de Diego César dos Santos. Professor de História. Integrante do curso de formação a distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará oferecido pelo IMOPEC, Grupo do município de Barbalha. In: Boletim Raízes, Fortaleza, n.54, abr/jun 2006, p.6-7. 4 O Instituto da Memória do Povo Cearense está sediado no Centro de Fortaleza-Ceará, à avenida Dom Manuel, 1197, CEP: 60060-091. Sua fundação data de 31 de maio de 1988. Possui a missão de “Estimular o resgate e a atualização da memória do povo cearense em sua diversidade e contribuir para a construção de suas identidades como sujeito histórico”. Ver em: www.imopec.org.br. Os jogos pedagógicos mencionados foram registrados no Cartório Melo Júnior sob o nº 295400, aos 5 de junho de 2006.

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A memória de um grupo social, de um povo, assim como a memória individual, possui pontos de referência nos quais ela está apoiada. Esses pontos de referência são as tradições, costumes, lendas e mitos, as paisagens, as datas, os personagens, a música, a culinária, a arquitetura, os odores, o folclore e etc. Podemos chamar esses pontos de referências de “lugares de memória” (IMOPEC, 2006a, p.7).

Logo, no que diz respeito, aos conteúdos do material didático elaborado, percebemos que eles foram produzidos a partir do conceito “lugares de memória”, que foi difundido pelo historiador francês Pierre Nora (1993). Para ele, os lugares de memória existem porque não existem memórias espontâneas e naturais. Estes lugares sobre os quais as memórias se ancoram possuem aspectos simbólicos, funcionais e materiais, e são referenciais da memória social. Assim, do mais efêmero minuto de silêncio até os lugares físicos marcados pelas construções simbólicas, como monumentos públicos e museus, são reconhecidos como lugares de memória. Todavia, é importante ressaltar que esses referenciais foram entendidos pelo historiador francês como lugares institucionalizados, pensando ele, evidentemente, sobre a sociedade europeia do século XX. As cartilhas do IMOPEC ampliaram esse entendimento, pois, abarcaram também expressões das mais diversas, mesmo aquelas não institucionalizadas. Desta forma, as cartilhas apresentam desde referências às narrativas sobre personagens históricos, como é o caso da beata Maria de Araújo, padre Ibiapina, Leonardo Mota, Rachel de Queiroz, Pedro Boca Rica, Dona Fanca, vaqueiros e pescadores, dentre outros, aqueles construídos nas tradições orais, como o lobisomem. De igual modo, elas abarcam também as memórias construídas sobre cemitérios, casas de farinha, engenhos, paisagens da Chapada do Araripe, das dunas

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e da Caatinga. Além destas, outras diversas manifestações e expressões dos saberes e das tradições socialmente compartilhadas entre diferentes gerações foram contempladas, como é o caso da xilogravura, do artesanato (palha, barro e renda de bilro), da culinária, como o baião de dois e a tapioca. Além disso, as festividades sagradas e profanas foram inseridas, como a festa de Santo Antônio de Barbalha, a festa dos Caretas, em Jardim, e também as comunidades tradicionais como as dos índios Tapeba e Conceição dos Caetanos, dentre outras. Por fim, os jogos apontam para os problemas sociais que recobrem tais práticas, saberes e espaços, como as queimadas e os desmatamentos que ocorrem na caatinga; a devastação das dunas; a poluição dos rios cearenses; a destruição do patrimônio arquitetônico das cidades; a perda de referências do patrimônio imaterial, dentre outras. (IMOPEC, 2006abc). Nas narrativas de alguns dos professores que participaram da elaboração dos jogos didáticos, percebemos a expectativa que foi gerada durante a elaboração e a avaliação dos jogos, esta última realizada com os mesmos professores, em uma segunda oficina ocorrida em Fortaleza, nos dias 29 e 30 de abril de 2006.5 O entusiasmo dos docentes ao participarem da produção e por verem aspectos culturais das suas localidades retratadas nos jogos didáticos, bem como a expectativa sobre os usos destes nas salas de aula, foram evidenciados nas narrativas: A elaboração dos jogos na oficina de 2005 gerou certa expectativa quanto ao impacto que eles causariam dentro da escola onde serão aplicados. Apesar de terem sido elaborados por nós, professores, havia sempre um 5 A segunda oficina de jogos pedagógicos, que objetivou testar os jogos elaborados

pelos professores participantes da primeira oficina, contou com 33 participantes, residentes nos municípios de Alto Santo, Barbalha, Crato, Jaguaretama, Jaguaribara, Jaguaribe, Jardim, Juazeiro do Norte e Porteiras.

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anseio, uma curiosidade quanto à qualidade e à aplicabilidade de tais recursos pedagógicos. Quando da apresentação e teste dos jogos, na segunda oficina, já em 2006, podemos perceber que aquele material por nós elaborado, tem um significado maior do que imaginávamos. A qualidade do material e a riqueza de conteúdo das cartilhas dos três jogos superaram as expectativas e todas as dúvidas e incertezas geradas na oficina anterior foram substituídas agora pelo desejo e anseio de compartilhar aquela experiência com os alunos em sala de aula. No decorrer do encontro, já era claro o entusiasmo dos professores ao identificar nos jogos elementos culturais significativos para sua localidade. A partir de agora, alguns referenciais da memória seriam reconhecidos como parte integrante da riqueza cultural do nosso Estado, do nosso município ou localidade. O seu conteúdo proporciona ao aluno um maior contato com o que há de mais significativo relacionado à cultura, em sua comunidade, município e em todo o território cearense. Partindo de considerações teóricas de que crianças e adolescentes têm curiosidade por jogos e brincadeiras e através deles se relacionam com o meio físico e social, resta agora usar da ludicidade enquanto ferramenta pedagógica capaz de provocar a apropriação dos saberes e fazeres produzidos historicamente pela humanidade.6

Na narrativa percebemos claramente como a ludicidade foi apontada como um elemento de destaque nos jogos. Logo, horizontes de expectativas foram produzidos pelos professores responsáveis pela construção deste material educativo. Em tais horizontes, a associação do lúdico com os bens cultu6 Narrativa de José Erison de Lima. Professor da rede básica de ensino. Integrante

do curso de formação a distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará oferecido pelo IMOPEC, Grupo do município Alto Santo. In: Boletim Raízes, Fortaleza, n.54, abr/jun 2006, p.6.

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rais das localidades dos alunos foi indicada como o diferencial da proposta, ideal reforçada pelas narrativas dos alunos: “a gente aprende mais brincando”. As professoras Brígida de Sousa Bezerra, Flaith Bezerra Sales Xavier e Josefa Leonila de Souza, que naquele momento lecionavam na rede estadual de ensino, no município de Juazeiro do Norte, afirmaram que: A participação na oficina de jogos pedagógicos sobre memória e patrimônio cultural do Ceará, promovida pelo IMOPEC, com a finalidade de “levar às escolas, através do lúdico, dados e informações sobre o patrimônio cultural cearense”, veio contribuir de forma relevante para o nosso crescimento profissional, possibilitando uma maior interação entre o ensino-aprendizagem capaz de desenvolver a contextualização histórica do patrimônio cultural do povo cearense entre as diversas realidades de nossa gente, como também facilitar a aquisição de conhecimentos e promover a interdisciplinaridade. O estudo com a utilização dos jogos possibilitará uma maior integração entre professores e alunos na realização de um desejo comum, que é a alegria de aprender por meio de atividades significativas, além de estimular o educando a buscar informações; a fazer pesquisas; a refletir; a expor suas ideias e emoções a respeito dos lugares de memória do seu município, promovendo, assim, a construção de relações significativas entre os diversos lugares da memória do Ceará, como também ampliando sua inserção no espaço em que vive.7 (Grifo nosso).

Percepções semelhantes foram tecidas pelo professor Erison Lima, que ao aplicar os jogos com seus alunos, no mu7

Narrativa das professoras Brígida de Sousa Bezerra, Flaith Bezerra Sales Xavier e Josefa Leonila de Souza. Integrantes do curso de formação à distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará oferecido pelo IMOPEC, Grupo do município de Juazeiro do Norte. In: Boletim Raízes, Fortaleza, n.54, abr/jun 2006, p.7.

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nicípio de Alto Santo, notou os usos deste material pelos educandos e a clara identificação daqueles com os textos escritos e as imagens presentes nas cartilhas. Ao chegar à Escola, tive a preocupação de mostrar, primeiramente, a um grupo de professores por ocasião de um planejamento mensal, até porque era necessário envolver mais alguém no processo de aplicação dos jogos. E, de imediato, houve adesão à ideia e disposição de alguns em ajudar o trabalho. Em Alto Santo, na Escola Francisco Nonato Freire, onde os jogos já foram trabalhados em várias turmas de ensino fundamental e médio, é notório o interesse dos alunos em participar da atividade, observando as imagens, fazendo as leituras do conteúdo da cartilha, identificando nesta, lugares de memória do seu e de outros municípios cearenses, participando das discussões etc.8

Naquele mesmo momento, no ano de 2006, o material educativo elaborado coletivamente pelos professores e membros do IMOPEC também foi avaliado por estudantes de cursos de formação de professores (Licenciaturas Plenas), da região do Cariri cearense. Graduandos, estudantes do ensino médio e professores da rede municipal de Porteiras, membros do grupo Retratores da Memória de Porteiras (REMOP), narraram: Com jogos pedagógicos que refletem o patrimônio cultural dos cearenses, acreditamos que professores e alunos terão um importantíssimo instrumento no auxílio aos estudos regionais e locais, o que tende a facilitar a compreensão de nossa realidade, como também de nossas identidades culturais, ampliando, assim, nossos olhares. Percebemos hoje a necessidade de uma educação patrimonial. A falta de conhecimento sobre 8 Narrativa de José Erison de Lima. Professor da rede básica de ensino. Integrante

do curso de formação a distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará oferecido pelo IMOPEC, Grupo do município Alto Santo. In: Boletim Raízes, Fortaleza, n.54, abr/jun 2006, p.6.

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nossos bens culturais, muitas vezes, leva-nos a perdas de referências culturais significativas do nosso Ceará, como é o caso da Festa dos Caretas, em Porteiras. Por sua vez, na medida em que há a construção de conhecimentos a esse respeito, acreditamos no fortalecimento dos ideais afetivos de pertencimento, valor e identidade. Estamos felizes em participar da elaboração dos jogos e de sabermos que, juntos, estamos construindo um novo amanhã.9

Desse modo, os professores que colaboraram na construção dos jogos passaram a se sentir como sujeitos imersos na produção social da memória, em especial no que diz respeito à escrita didática sobre as localidades onde residem e sobre os demais espaços cearenses. De igual modo, demonstraram a satisfação e o prazer por conscientizar a população, por meio de recursos didáticos que promovam a ludicidade, para o entendimento (e a cobrança) dos seus direitos culturais. Por direitos culturais compreendemos aqueles direitos que o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade na qual faz parte, que vão desde o direito à produção cultural, passando pelo direito de acesso à cultura até o direito à memória histórica (FERNANDES, 1993, p.271).

De acordo com Oriá Fernandes (1993), o direito de produção cultural toma como referência a criatividade humana nas tessituras da cultura. Ou seja, parte do reconhecimento de que todos somos produtores da cultura. Assim sendo, recaímos na prerrogativa do direito ao acesso daquilo que produzimos, portanto, dos bens culturais frutos da sociedade a qual pertencemos. Concomitantemente, tal entendimento aponta 9

Narrativa dos integrantes do curso de formação a distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará oferecido pelo IMOPEC, Grupo do município de Porteiras. In: Boletim Raízes, Fortaleza, n.54, abr/jun 2006, p.7.

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para o direito à tradição e aos bens (materiais e imateriais) representativos do passado da sociedade. Assim, estreitamos os laços entre a história e a educação patrimonial. Para Ricardo Oriá Fernandes (2009), a educação patrimonial é caracterizada pelos fins atribuídos ao processo educativo, concernente ao patrimônio cultural. Em outras palavras, ela é direcionada à formação dos cidadãos cientes dos seus direitos culturais e, por conseguinte, conscientes da importância da salvaguarda e valorização dos seus bens culturais. Logo, A educação patrimonial nada mais é do que a educação voltada para questões referentes ao patrimônio cultural, que compreende desde a inclusão, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, de temáticas ou conteúdos programáticos que versem sobre o conhecimento e a conservação do patrimônio histórico, até a realização de cursos de aperfeiçoamento e extensão para os educadores e a comunidade em geral, a fim de lhes propiciar informações acerca do acervo cultural, de forma a habilitá-los a despertar nos educandos e na sociedade o senso de preservação da memória histórica e o consequente interesse pelo tema (FERNANDES, 2009, p.141-142).

Nessa construção, a utilização das escolas, museus, bibliotecas, arquivos e outros centros culturais, bem como dos demais lugares e suportes de memória nas práticas educativas é fundamental para a compreensão da diversidade e, não contraditoriamente, da identidade cultural de uma determinada sociedade. Portanto, para a construção de práticas de ensino de história que incorporem a diversidade cultural, como no caso do uso de jogos pedagógicos sobre a memória e os bens culturais dos cearenses. Desse modo, a educação histórica e patrimonial corroboram tanto para a construção da consciência crítica e histórica,

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quanto para o fortalecimento da autoestima, elevação do sentimento de pertença e a construção das identidades culturais dos discentes e docentes. De tal maneira, o trabalho com o ensino de história a partir dos jogos pedagógicos poderá ser direcionado à construção e reconhecimento da cidadania cultural.

Considerações finais Partindo das reflexões sobre os prazeres e desprazeres da história (SILVA, 2003), e direcionando nossa análise para a complexidade que recobre a produção de materiais didáticos que incorporem os saberes e as referências culturais dos educandos nos processos de ensino-aprendizagem, percebemos uma postura multicultural (ética e política) de professores cearenses que, reunidos a convite do IMOPEC, construíram coletivamente três jogos educativos, almejando colaborarem com a formação dos educandos a partir da ludicidade. Mediante as narrativas escritas dos professores, percebemos os usos políticos dos saberes docentes na incorporação dos lugares de memória dos cearenses e dos problemas sociais a eles relacionados nos materiais didáticos. Vimos que esta foi uma ação em busca da produção e socialização do prazer da história para públicos diversos, escolares e não escolas. Nas palavras do professor Erison Lima: “Sem dúvida, está sendo prazerosa essa experiência que torna a aula dinâmica e participativa.” E ele conclui dizendo: “Certamente, esses jogos contribuirão para um maior intercâmbio entre os municípios cearenses, uma vez que, trabalhados na comunidade, tornam acessíveis os locais da memória que antes pareciam irrelevantes”. 10 10 Narrativa de José Erison de Lima. Professor da rede básica de ensino. Integrante

do curso de formação a distância sobre memória e patrimônio cultural do Ceará

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Como em um jogo, cujos brincantes entrecruzam espacialidades e temporalidades, para a construção dos saberes didáticos é imprescindível o entrelaçamento entre saberes diversos, dentre os quais está aquele que Tardif chamou de saber docente. De igual modo, a construção do prazer na história suscita o acesso dos múltiplos sujeitos aos prazeres também diversos, o que poderá tornar a relação entre práticas de ensino de história e os usos de materiais didáticos menos tediosa.

Fontes INSTITUTO DA MEMÓRIA DO POVO CEARENSE (IMOPEC). Boletim Raízes: Na trilha da cultura. Fortaleza, Ano 15, n. 54, abr./jun. 2006. ______. Bingo Cultural do Ceará. Fortaleza: IMOPEC, 2006. ______. Trilha da cultura cearense. Fortaleza: IMOPEC, 2006. ______. Descobrindo o Ceará. Fortaleza: IMOPEC, 2006.

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BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história e geografia. 2. ed. Brasília, 2000. ______. Secretaria de Educação Média e Tecnologica. Parâmetros curriculares nacionais. Ensino Médio: ciências humanas e suas tecnologias. Brasília, 1999. FERREIRA, Marieta de Morais; FRANCO, Renato. Desafios do ensino de História. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 41, p.79-93, 2008. FERNANDES, José Ricardo Oriá. Educação patrimonial e cidadania: uma proposta alternativa para o ensino de história. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n. 25/26, p.265-276, set.92/ago.93. ______. Memória e ensino de história. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico em sala de aula. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2009, p.104-116. FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino em história: experiências, reflexões e aprendizados. 12. ed. Campinas, SP: Papirus, 2011. ______. História local e fontes orais: uma reflexão sobre saberes e práticas de ensino de história. História oral, v.9, n.1, p.126-141, 2006. ______. SILVA, Marcos A. Ensinar história no século XXI: Em busca do tempo entendido. 4 ed. Campinhas,SP: Papirus, 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. 43. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. História e cidadania: por que ensinar história hoje? In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologias. 2. ed. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009, p.168-183.

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NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. São Paulo, n.10, p.7-28, 1993. RAMOS, Francisco Régis Lopes. O direito à memória no ensino de história. Trajetos, Fortaleza, v.7, n.13, p.187-197, 2009. ______. A danação do objeto: o museu no ensino de História. Chapecó: Argos, 2004. SCHIMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar história. São Paulo: Scipione, 2004. ______. GARCIA, Tânia Braga. O trabalho histórico na sala de aula. História e ensino, Londrina, v. 9, 2003, p.223-241. SILVA, Marcos A. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo: Brasiliense, 2005. TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 12 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

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SÉRIE DIÁLOGOS INTEMPESTIVOS

1. Ditos (mau)ditos. José Gerardo Vasconcelos; Antonio Germano Magalhães Junior e José Mendes Fonteles (Orgs.). 2001. 208p. 2001. ISBN: 85-86627-13-5. 2. Memórias no plural. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Magalhães Junior (Orgs.). 140p. 2001. ISBN: 85-86627-21-6. 3. Trajetórias da juventude. Maria Nobre Damasceno; Kelma Socorro Lopes de Matos e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 112p. 2001. ISBN: 85-86627-22-4. 4. Trabalho e educação face à crise global do capitalismo. Enéas Arrais Neto; Manuel José Pina Fernandes e Sandra Cordeiro Felismino (Orgs.). 2002. 218p. ISBN: 85-86627-23-2. 5. Um dispositivo chamado Foucault. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Magalhães Junior (Orgs.). 120p. 2002. ISBN: 85-86627-24-0. 6. Registros de pesquisa na educação. Kelma Socorro Lopes de Matos e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2002. 216p. ISBN: 85-86627-25-9. 7. Linguagens da história. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Germano Magalhães Junior (Orgs.). 2003. 154p. ISBN: 85-7564084-4. 8. Esboços em avaliação educacional. Brendan Coleman Mc Donald (Org.). 2003. 168p. ISBN: 85-7282-131-7. 9. Informática na escola: um olhar multidisciplinar. Edla Maria Faust Ramos; Marta Costa Rosatelli e Raul Sidnei Wazlawick (Orgs.). 2003. 135p. ISBN: 85-7282130-9. 10. Filosofia, educação e realidade. José Gerardo Vasconcelos (Org.). 2003. 300p. ISBN: 85-7282-132-5. 11. Avaliação: Fiat Lux em Educação. Wagner Bandeira Andriola e Brendan Coleman Mc Donald (Orgs.). 2003. 212p. ISBN: 85-7282-136-8. 12. Biografias, instituições, ideias, experiências e políticas educacionais. Maria Juraci Maia Cavalcante e José Arimatea Barros Bezerra (Orgs.). 2003. 467p. ISBN: 85-7282-137-6. 13. Movimentos sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade. Kelma Socorro Lopes de Matos (Org.). 2003. 312p. ISBN: 85-7282-138-4. 14. Trabalho, sociabilidade e educação: uma crítica à ordem do capital. Ana Maria Dorta de Menezes e Fábio Fonseca Figueiredo (Orgs.). 2003. 396p. ISBN: 85-7282-139-2. 15. Mundo do trabalho: debates contemporâneos. Enéas Arrais Neto, Elenice Gomes de Oliveira e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2004. 154p. ISBN: 85-7282-142-2. 16. Formação humana: liberdade e historicidade. Ercília Maria Braga de Olinda (Org.). 2004. 250p. ISBN: 85-7282-143-0. 17. Diversidade cultural e desigualdade: dinâmicas identitárias em jogo. Maria de Fátima Vasconcelos e Rosa Barros Ribeiro (Orgs.). 2004. 324p. ISBN: 85-7282144-9. 18. Corporeidade: ensaios que envolvem o corpo. Antonio Germano Magalhães Junior e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2004. 114p. ISBN:85-7282-146-5. 19. Linguagem e educação da criança. Silvia Helena Vieira Cruz e Mônica Petralanda Holanda (Orgs.). 2004. 369p. ISBN:85-7282-149-X. 20. Educação ambiental em tempos de semear. Kelma Socorro Lopes de Matos e José Levi Furtado Sampaio (Orgs.). 2004. 203p. ISBN: 85-7282-150-3. 21. Saberes populares e práticas educativas. José Arimatea Barros Bezerra, Catarina Farias de Oliveira e Rosa Maria Barros Ribeiro (Orgs.). 2004. 186p. ISBN: 85-7282-162-7.

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22. Culturas, currículos e identidades. Luiz Botelho de Albuquerque (Org.). 231p. ISBN: 85-7282-165-1. 23. Polifonias: vozes, olhares e registros na filosofia da educação. José Gerardo Vasconcelos, Andréa Pinheiro e Érica Atem (Orgs.) 274p. ISBN: 857282166-X. 24. Coisas de cidade. José Gerardo Vasconcelos e Shara Jane Holanda Costa Adad. ISBN: 85-7282-172-4. 25. O caminho se faz ao caminhar. Maria Nobre Damasceno e Celecina de Maria Vera Sales (Orgs.). 2005. 230p. ISBN: 85-7282-179-1. 26. Artesania do saber: tecendo os fios da educação popular. Maria Nobre Damasceno (Org.). 2005. 169p. ISBN: 85-7282-181-3. 27. História da educação: instituições, protagonistas e práticas. Maria Juraci Maia Cavalcante e José Arimatea Barros Bezerra. (Orgs.). 458p. ISBN: 85-7282-182-1. 28. Linguagens, literatura e escola. Sylvie Delacours-Lins e Sílvia Helena Vieira Cruz (Orgs.). 2005. 221p. ISBN: 85-7282-184-8. 29. Formação humana e dialogicidade em Paulo Freire. Maria Ercília Braga de Olinda e João Batista de A. Figueiredo (Orgs.). 2006. ISBN: 85-7282-186-4. 30. Currículos contemporâneos: formação, diversidade e identidades em transição. Luiz Botelho Albuquerque (Org.). 2006. ISBN: 85-7282-188-0. 31. Cultura de paz, educação ambiental e movimentos sociais. Kelma Socorro Lopes de Matos (Org.). 2006. ISBN: 85-7282-189-9. 32. Movimentos sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade II. Sylvio de Sousa Gadelha e Sônia Pereira Barreto (Orgs.). 2006. 172p. ISBN: 85-7282-192-9. 33. Entretantos: diversidade na pesquisa educacional. José Gerardo Vasconcelos, Emanoel Luís Roque Soares e Isabel Magda Said Pierre Carneiro (Orgs.). ISBN: 85-7282-194-5. 34. Juventudes, cultura de paz e violências na escola. Maria do Carmo Alves do Bomfim e Kelma Socorro Lopes de Matos (Orgs.). 2006. 276p. ISBN: 85-7282-204-6. 35. Diversidade sexual: perspectivas educacionais. Luís Palhano Loiola. 183p. ISBN: 85-7282-214-3. 36. Estágio nos cursos tecnológicos: conhecendo a profissão e o profissional. Gregório Maranguape da Cunha, Patrícia Helena Carvalho Holanda, Cristiano Lins de Vasconcelos (Orgs.). 93p. ISBN: 85-7282-215-1. 37. Jovens e crianças: outras imagens. Kelma Socorro Lopes de Matos, Shara Jane Holanda Costa Adad e Maria Dalva Macedo Ferreira (Orgs.). 221p. ISBN: 85-7282-219-4. 38. História da educação no Nordeste brasileiro. José Gerardo Vasconcelos e Jorge Carvalho do Nascimento (Orgs.). 2006. 193p. ISBN: 85-7282-220-8. 39. Pensando com arte. José Gerardo Vasconcelos e José Albio Moreira de Sales (Orgs.). 2006. 212p. ISBN: 85-7282-221-6. 40. Educação, política e modernidade. José Gerardo Vasconcelos e Antonio Paulino de Sousa (Orgs.). 2006. 209p. ISBN: 978-85-7282-231-2. 41. Interfaces metodológicas na história da educação. José Gerardo Vasconcelos, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Zuleide Fernandes de Queiroz e José Edvar Costa de Araújo (Orgs.). 2007. 286p. ISBN: 978-85-7282-232-9. 42. Práticas e aprendizagens docentes. Ercília Maria Braga de Olinda e Dorgival Gonçalves Fernandes (Orgs.). 2007. 196p. ISBN 978.85-7282.246-6. 43. Educação ambiental dialógica: as contribuições de Paulo Freire e as representações sociais da água em cultura sertaneja nordestina. João B. A. Figueiredo. 2007. 385p. ISBN: 978-85-7282-245-9. 44. Espaço urbano e afrodescendência: estudos da espacialidade negra urbana para o debate das políticas públicas. Henrique Cunha Júnior e Maria Estela Rocha Ramos (Orgs.). 2007. 209. ISBN: 978-85-7282-259-6.

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45. Outras histórias do Piauí. Roberto Kennedy Gomes Franco e José Gerardo Vasconcelos. 2007. 197p. ISBN: 978-85-7282-263-3. 46. Estágio supervisionado: questões da prática profissional. Gregório Maranguape da Cunha, Patrícia Helena Carvalho Holanda e Cristiano Lins de Vasconcelos (Orgs.). 2007. 163p. ISBN: 978-85-7282-265-7. 47. Alienação, trabalho e emancipação humana em Marx. Jorge Luís de Oliveira. 2007. 291p. ISBN: 978-85-7282-264-0. 48. Modo de brincar, lembrar e dizer: discursividade e subjetivação. Maria de Fátima Vasconcelos da Costa, Veriana de Fátima Rodrigues Colaço e Nelson Barros da Costa (Orgs.). 2007. 347p. ISBN: 978.85-7282-267-1. 49. De novo ensino médio aos problemas de sempre: entre marasmos, apropriações e resistências escolares. Jean Mac Cole Tavares Santos. 2007. 270p. ISBN: 978.85-7282-278-7. 50. Nietzscheanismos. José Gerardo Vasconcelos, Cellina Muniz e Roberto Kennedy Gomes Franco (Orgs.). 2008. 150p. ISBN: 978.85-7282-277-0. 51. Artes do existir: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda e Francisco Silva Cavalcante Júnior (Orgs.). 2008. 353p. ISBN: 978-85-7282-269-5. 52. Em cada sala um altar, em cada quintal uma oficina: o tradicional e o novo na história da educação tecnológica no Cariri cearense. Zuleide Fernandes de Queiroz (Org.). 2008. 403p. ISBN: 978-85-7282-280-0. 53. Instituições, campanhas e lutas: história da educação especial no Ceará. Vanda Magalhães Leitão. 2008. 169p. ISBN: 978-85-7282-281-7. 54. A pedagogia feminina das casas de caridade do padre Ibiapina. Maria das Graças de Loiola Madeira. 2008. 391p. ISBN: 978-85-7282-282-4. 55. História da educação — vitrais da memória: lugares, imagens e práticas culturais. Maria Juraci Maia Cavalcante, Zuleide Fernandes de Queiroz, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e José Edvar Costa de Araujo (Orgs.). 2008. 560p. ISBN: 978-85-7282-284-8. 56. História educacional de Portugal: discurso, cronologia e comparação. Maria Juraci Maia Cavalcante. 2008. 342p. ISBN: 978-85-7282-283-1. 57. Juventudes e formação de professores: o ProJovem em Fortaleza. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos e Paulo Roberto de Sousa Silva (Orgs.). 2008. 198p. ISBN: 978-85-7282-295-4. 58. História da educação: arquivos, documentos, historiografia, narrativas orais e outros rastros. José Arimatea Barros Bezerra (Org.). 2008. 276p. ISBN: 978-857282-285-5. 59. Educação: utopia e emancipação. Casemiro de Medeiros Campos. 2008. 104p. ISBN: 978-85-7282-305-0. 60. Entre línguas: movimentos e mistura de saberes. Shara Jane Holanda Costa Adad, Ana Cristina Meneses de Sousa Brandim e Maria do Socorro Rangel (Orgs.). 2008. 202p. ISBN: 978-85-7282-306-7. 61. Reinventar o presente: . . . pois o amanhã se faz com a transformação do hoje. Reinaldo Matias Fleuri. 2008. 76p. ISBN: 978-85-7282-307-4. 62. Cultura de paz: do Conhecimento à Sabedoria. Kelma Socorro Lopes de Matos, Verônica Salgueiro do Nascimento e Raimundo Nonato Júnior (Orgs.) 2008. 260p. ISBN: 978-85-7282-311-1. 63. Educação e afrodescendência no Brasil. Ana Beatriz Sousa Gomes e Henrique Cunha Júnior (Orgs.). 2008. 291p. ISBN: 978-85-7282-310-4. 64. Reflexões sobre a fenomenologia do espírito de Hegel. Eduardo Ferreira Chagas, Marcos Fábio Alexandre Nicolau e Renato Almeida de Oliveira (Orgs.). 2008. 285p. ISBN: 978-85-7282-313-5.

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65. Gestão escolar: saber fazer. Casemiro de Medeiros Campos e Milena Marcintha Alves Braz (Orgs.). 2009. 166p. ISBN: 978-85-7282-316-6. 66. Psicologia da educação: teorias do desenvolvimento e da aprendizagem em discussão. Maria Vilani Cosme de Carvalho e Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Orgs.). 2008. 241p. ISBN: 978-85-7282-322-7. 67. Educação ambiental e sustentabilidade. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2008. 210p. ISBN: 978-85-7282-323-4. 68. Projovem: experiências com formação de professores em Fortaleza. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2008. 214p. ISBN: 978-85-7282-324-1. 69. A filosofia moderna. Antonio Paulino de Sousa e José Gerardo Vasconcelos (Orgs.). 2008. 212p. ISBN: 978-85-7282-314-2. 70. Formação humana e dialogicidade em Paulo Freire II: reflexões e possibilidades em movimento. João B. A. Figueiredo e Maria Eleni Henrique da Silva (Orgs.). 2009. 189p. ISBN: 978-85-7282-312-8. 71. Letramentos na Web: Gêneros, Interação e Ensino. Júlio César Araújo e Messias Dieb (Orgs.). 2009. 286p. ISBN: 978-85-7282-328-9. 72. Marabaixo, dança afrodescendente: Significando a Identidade Étnica do Negro Amapaense. Piedade Lino Videira. 2009. 274p. ISBN: 978-85-7282-325-8. 73. Escolas e culturas: políticas, tempos e territórios de ações educacionais. Maria Juraci Maia Cavalcante, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Edvar Costa de Araujo e Zuleide Fernandes de Queiroz (Orgs.). 2009. 445p. ISBN: 97885-7282-333-3. 74. Educação, saberes e práticas no Oeste Potiguar. Jean Mac Cole Tavares Santos e Zacarias Marinho. (Orgs.). 2009. 225p. ISBN: 978-85-7282-342-5. 75. Labirintos de clio: práticas de pesquisa em História. José Gerardo Vasconcelos, Samara Mendes Araújo Silva e Raimundo Nonato Lima dos Santos. (Orgs.). 2009. 171p. ISNB: 978-85-7282-354-8. 76. Fanzines: autoria, subjetividade e invenção de si. Cellina Rodrigues Muniz. (Org.). 2009. 139p. ISBN: 978-85-7282-366-1. 77. Besouro cordão de ouro: o capoeira justiceiro. José Gerardo Vasconcelos. 2009. 109p. ISBN: 978-85-7282-362-3. 78. Da teoria à prática: a escola dos sonhos é possível. Adelar Hengemuhle, Débora Lúcia Lima Leite Mendes, Casemiro de Medeiros Campos (Orgs.). 2010. 167p. ISBN: 978-85-7282-363-0. 79. Ética e cidadania: educação para a formação de pessoas éticas. Márie dos Santos Ferreira e Raphaela Cândido (Orgs.). 2010. 115p. ISBN: 978-85-7282-373-9. 80. Qualidade de vida na infância: visão de alunos da rede pública e privada de ensino. Lia Machado Fiuza Fialho e Maria Teresa Moreno Valdés. 2009. 113p. ISBN: 978-85-7282-369-2. 81. Federalismo cultural e sistema nacional de cultura: contribuição ao debate. Francisco Humberto Cunha Filho. 2010. 155p. ISBN: 978-85-7282-378-4. 82. Experiências e diálogos em educação do campo. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos, Carmen Rejane Flores Wizniewsky, Ane Carine Meurer e Cesar De David (Orgs.) 2010. 129p. ISBN: 978-85-7282-377-7. 83. Tempo, espaço e memória da educação: pressupostos teóricos, metodológicos e seus objetos de estudo. José Gerardo Vasconcelos, ­Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Edvar Costa de Araújo, José Rogério Santana, Zuleide Fernandes de Queiroz e Ivna de Holanda Pereira (Orgs.). 2010. 718p. ISBN: 97885-7282-385-2.82. 84. Os Diferentes olhares do cotidiano profissional. Cassandra Maria Bastos Franco, José Gerardo Vasconcelos e Patrícia Maria Bastos Franco. 2010. 275p. ISBN: 978-85-7282-381-4.

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85. Fontes, métodos e registros para a história da educação. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, R ­ aimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e Francisco Ari de Andrade (Orgs.) 2010. 221p. ISBN: 978-85-7282-383-8. 86. Temas educacionais: uma coletânea de artigos. Luís Távora Furtado Ribeiro e Marco Aurélio de Patrício Ribeiro. 2010. 261p. ISBN: 978-85-7282-389-0. 87. Educação e diversidade cultural. Maria do Carmo Alves do Bomfim, Kelma Socorro Alves Lopes de Matos, Ana Beatriz Sousa Gomes e Ana Célia de Sousa Santos. 2009. 463p. ISBN: 978-85-7282-376-0. 88. História da educação: nas trilhas da pesquisa. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, ­Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e Francisco Ari de Andrade (Orgs.) 2010. 239p. ISBN: 978-85-7282-384-5. 89. Artes do fazer: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda (Org.). 2010. 335p. ISBN: 978-85-7282-398-2. 90. Lápis, agulhas e amores: história de mulheres na contemporaneidade. José Gerardo Vasconcelos, Samara Mendes Araújo Silva, Cassandra Maria Bastos Franco e José Rogério Santana (Orgs.) 2010. 327p. ISBN: 978-85-7282-395-1. 91. Cultura de paz, ética e espiritualidade. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos e Raimundo Nonato Junior (Orgs.). 2010. 337p. ISBN: 978-85-7282-403-3. 92. Educação ambiental e sustentabilidade II. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2010. 241p. ISBN: 978-85-7282-407-1. 93. Ética e as reverberações do fazer. Kleber Jean Matos Lopes, Emílio Nolasco de Carvalho e Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Orgs.). 2011. 205p. ISBN: 978-85-7282-424-8. 94. Contrapontos: democracia, república e constituição no Brasil. Filomeno Moraes. 2010. 205p. ISBN: 978-85-7282-421-7. 95. Paulo Freire: teorias e práticas em educação popular — escola pública, inclusão, humanização (Org.). 2011. 241p. ISBN: 978-85-7282-419-4. 96. Formação de professores e pesquisas em educação: teorias, metodologias, práticas e experiências docentes. Francisco Ari de Andrade e Jean Mac Cole Tavares Santos (Orgs.). 2011. 307p. ISBN: 978-85-7282-427-9. 97. Experiências de avaliação curricular: possibilidades teórico-práticas. Meirecele Caliope Leitinho e Patrícia Helena Carvalho Holanda (Orgs.). 2011. 208p. ISBN: 978-85-7282-437-8. 98. Elogio do cotidiano: educação ambiental e a pedagogia silenciosa da caatinga no sertão piauiense. Sádia Gonçalves de Castro (Orgs.). 2011. 243p. ISBN: 978-857282-438-6. 99. Recortes das sexualidades. Adriano Henrique Caetano Costa, Alexandre Martins Joca e Francisco Pedrosa Ramos Xavier Filho (Orgs.). 2011. 214p. ISBN: 978-857282-444-6. 100. O Pensamento pedagógico hoje. José Gerardo Vasconcelos e José Rogério Santana (Orgs.). 2011. 187p. ISBN: 978-85-7282-428-6. 101. Inovações, cibercultura e educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Vania Marilande Ceccatto, Francisco Herbert Lima Vasconcelos e Júlio Wilson Ribeiro (Orgs.). 2011. 301p. ISBN: 978-85-7282-429-3. 102. Tribuna de vozes. José Gerardo Vasconcelos, Renata Rovaris Diorio e Flávio José Moreira Gonçalves (Orgs.). 2011. 530p. ISBN: 978-85-7282-446-0. 103. Bioinformática, ciências biomédicas e educação. José Rogério Santana, Lia Machado Fiuza Fialho, Francisco Fleury Uchoa Santos Júnior, Vânia Marilande Ceccatto (Orgs.). 2011. 277p. ISBN: 978-85-7282-450-7. 104. Dialogando sobre metodologia científica. Helena Marinho, José Rogério Santana e (Orgs.). 2011. 165p. ISBN: 978-85-7282-463-7.

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105. Cultura, educação, espaço e tempo. Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, Keila Andrade Haiashida, Lia Machado Fiuza Fialho, Rui Martinho Rodrigues e Francisco Ari de Andrade (Orgs.). 2011. 743p. ISBN: 978-85-7282-453-8 106. Artefatos da cultura negra no Ceará. Henrique Cunha Júnior, Joselina da Silva e Cicera Nunes (Orgs.). 2011. 283p. ISBN: 978-85-7282-464-4. 107. Espaços e tempos de aprendizagens: geografia e educação na cultura. Stanley Braz de Oliveira, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, José Gerardo Vasconcelos e Márcio Iglésias Araújo Silva (Orgs.). 2011. 157p. ISBN: 978-857282-483-5. 108. Muitas histórias, muitos olhares: relatos de pesquisas na história da educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Gablielle Bessa Pereira Maia e Lia Machado Fiuza Fialho (Orgs.). 2011. 339p. ISBN 978-85-7282-466-8. 109. Imagem, memória e educação. José Rogério Santana, José Gerardo Vasconcelos, Lia Machado Fiuza Fialho, Cibelle Amorim Martins e Favianni da Silva (Orgs.). 2011. 322p. ISBN: 978-85-7282-480-4. 110. Corpos de rua: cartografia dos saberes Juvenis e o Sociopoetizar dos Desejos dos Educadores. Shara Jane Holanda Costa Adad. 2011. 391p. ISBN: 978-85-7282-447-7. 111. Barão e o prisioneiro: biografia e história de vida em debate. Charliton José dos Santos Machado, Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior e José Gerardo Vasconcelos. 2011. 76p. ISBN: 978-85-7282-475-0. 112. Cultura de paz, ética e espiritualidade II. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2011. 363p. ISBN: 978-85-7282-481-1. 113. Educação ambiental e sustentabilidade III. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2011. 331p. ISBN: 978-85-7282-484-2. 114. Diálogos em educação ambiental. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos e José Levi Furtado Sampaio (Org.). 2012. 350p. ISBN: 978-85-7282-488-0. 115. Artes do sentir: trajetórias de vida e formação. Ercília Maria Braga de Olinda (Org.). 2011. 406p. ISBN: 978-85-7282-490-3. 116. Milagre, martírio, protagonismo da tradição religiosa popular de Juazeiro: padre Cícero, beata Maria de Araújo, romeiros/as e romarias. Luis Eduardo Torres Bedoya (Org.). 2011. 189p. ISBN: 978-85-7282-462-0.91. 117. Formação humana e dialogicidade III: encantos que se encontram nos diálogos que acompanham Freire. João Batista de Oliveira Figueiredo e Maria Eleni Henrique da Silva (Orgs.). 2012. 212p. ISBN: 978-85-7282-454-5. 118. As contribuições de Paramahansa Yogananda à educação ambiental. Arnóbio Albuquerque. 2011. 233p. ISBN: 978-85-7282-456-9. 119. Educação brasileira em múltiplos olhares. Francisco Ari de Andrade, Antonia Rozimar Machado e Rocha, Janote Pires Marques e Helena de Lima Marinho Rodrigues Araújo. 2012. 326p. ISBN: 978-85-7282-499-6. 120. Educação musical: campos de pesquisa, formação e experiências. Luiz Botelho Albuquerque e Pedro Rogério (Orgs.). 2012. 296p. ISBN: 978-7282-505-4. 121. A questão da prática e da teoria na formação do professor. Ada Augusta Celestino Bezerra, Marilene Batista da Cruz Nascimento e Edineide Santana (Orgs.). 2012. 218p. ISBN: 978-7282-503-0. 122. História da educação: real e virtual em debate. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana. Lia Machado Fiuza Fialho. (Orgs.). 2012. 524p. ISBN: 978-857282-509-2. 123. Educação: perspectivas e reflexões contemporâneas. Alice Nayara dos Santos, Ana Paula Vasconcelos de Oliveira Tahim e Gabrielle Silva Marinho (Orgs.). 2012. 191p. ISBN: 978-85-7282-491-0.

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124. Úlceras por pressão: uma Abordagem Multidisciplinar. Miriam Viviane Baron, José Rogério Santana, Cristine Brandenburg, Lia Machado Fiuza Fialho e Marcelo Carneiro (Orgs.). 2012 315p. ISBN: 978-85-7282-489-7. 125. Somos todos seres muito especiais: uma análise psico-pedagógica da política de educação inclusiva. Ada Augusta Celestino Bezerra e Maria Auxiliadora Aragão de Souza. 2012. 183p. ISBN: 978-85-7282-517-7. 126. Memórias de Baobá. Sandra Haydée Petit e Geranilde Costa e Silva (Orgs.). 2012. 281p. ISBN: 978-85-7282-501-6. 127. Caldeirão: saberes e práticas educativas. Célia Camelo de Sousa e Lêda Vasconcelos Carvalho. 2012. 135p. ISBN: 978-85-7282-521-4. 128. As Redes sociais e seu impacto na cultura e na educação do século XXI. Ronaldo Nunes Linhares, Simone Lucena, e Andrea Versuti (Orgs.). 2012. 369p. ISBN: 978-85-7282-522-1. 129. Corpografia: multiplicidades em fusão. Shara Jane Holanda Costa Adad e Francisco de Oliveira Barros Júnior (Orgs.). 2012. 417p. ISBN: 978-85-7282-527-6. 130. Infância e instituições educativas em Sergipe. Miguel André Berger (Org.). 2012. 203p. ISBN: 978-85-7282-519-1. 131. Cultura de paz, ética e espiritualidade III. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Org.). 2012. 441p. ISBN: 978-85-7282-530-6. 132. Imprensa, impressos e práticas educativas: estudos em história da educação. Miguel André Berger e Ester Fraga Vilas-Bôas Carvalho do Nascimento (Orgs.). 2012. 333p. ISBN: 978-85-7282-531-3. 133. Proteção do patrimônio cultural brasileiro por meio do tombamento: estudo crítico e comparado das legislações estaduais — Organizadas por Regiões. Francisco Humberto Cunha Filho (Org.). 2012. 183p. ISBN: 978-85-7282-535-1. 134. Afro arte memórias e máscaras. Henrique Cunha Junior e Maria Cecília Felix Calaça (Orgs.). 2012. 91p. ISBN: 978-85-7282-439-2. 135. Educação musical em todos os sentidos. Luiz Botelho Albuquerque e Pedro Rogério (Orgs.). 2013. 300p. ISBN: 978-85-7282-559-7. 136. Africanidades Caucaienses: saberes, conceitos e sentimentos. Sandra Haydée Petit e Geranilde Costa e Silva (Orgs.). 2012. 206p. ISBN: 978-85-7282-590-0. 137. Batuques, folias e ladainhas [manuscrito]: a cultura do quilombo do Cria-ú em Macapá e sua educação. Videira, Piedade Lino. 2012. 399p. ISBN: 978-857282-536-8. 138. Conselho escolar: processos, mobilização, formação e tecnologia. Francisco Herbert Lima Vasconcelos, Swamy de Paula Lima Soares, Cibelle Amorim Martins, Cefisa Maria Sabino Aguiar (Orgs.). 2013. 370p. ISBN: 978-85-7282-563-4. 139. Sindicalismo sem Marx: a CUT como espelho. Jorge Luís de Oliveira. 2013. 570p. ISBN: 978-85-7282-572-6. 140. Catharina Moura e o Feminismo na Parahyba do Norte: processos, mobilização, formação e tecnologia. Charliton José dos Santos Machado, Maria Lúcia da Silva Nunes e Márcia Cristiane Ferreira Mendes (Autores). 2013. 131p. ISBN: 978-85-7282-574-0. 141. Sequência Fedathi: uma proposta pedagógica para o ensino de matemática e ciências. Francisco Edisom Eugenio de Sousa, Francisco Herbert Lima Vasconcelos, Hermínio Borges Neto, et al. (organizadores). 2013. 184p. ISBN: 978-85-7282-573-3. 142. Transdisciplinaridade na educação de jovens e adultos: colcha de retalhos – conhecimento, emancipação e autoria. Ada Augusta Celestino Bezerra e Paula Tauana Santos. 2013. 109p. ISBN: 978-85-7282-476-7.

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143. Pedagogia organizacional: gestão, avaliação & práticas educacionais. Marcos Antonio Martins Lima e Gabrielle Silva Marinho (organizadores). 2013. 221p. ISBN: 978-85-7282-496-5. 144. Educação e formação de professores: questões contemporâneas. Ada Augusta Celestino Bezerra e Marilene Batista da Cruz Nascimento (organizadoras). 2013. 368p. ISBN: 978-85-7282-576-4. 145. Configuração do trabalho docente a instrução primária em Sergipe no século XIX (1826-1889). Simone Silveira Amorim. 2013. 331p. ISBN: 978-85-7282-575-7. 146. Dez anos da Lei No 10.639/03: memórias e perspectivas. Regina de Fatima de Jesus, Mairce da Silva Araújo e Henrique Cunha Júnior (Orgs.). 2013. 366p. ISBN: 978-85-7282-577-1. 147. A História, Autores e Atores: compreensão do mundo, educação e cidadania. Rui Martinho Rodrigues. 2013. 306p. ISBN: 978-85-7282-583-2. 148. Os intelectuais. Rui Martinho Rodrigues. 2013. 164p. ISBN: 978-85-7282-581-8. 149. Dinamérico Soares do Nascimento: uma história de poesia, paixão e dor. Charliton José dos Santos Machado, Eliel Ferreira Soares e Fabiana Sena (Autores). 2013. 76p. ISBN: 978-85-7282-580-1. 150. História e Memória da Educação no Ceará. José Gerardo Vasconcelos,

Lia Machado Fiuza Fialho, José Rogério Santana, Lourdes Rafaella Santos Florêncio, Rui Martinho Rodrigues, Dijane Maria Rocha Víctor e Stanley Braz de Oliveira (Orgs.). 2013. 218p. ISBN: 978-85-7282-591-7.

151. Pesquisas Biográficas na Educação. José Gerardo Vasconcelos, José Rogério Santana, Lia Machado Fiuza Fialho, Dijane Maria Rocha Victor, Antonio Roberto Xavier e Roberta Lúcia Santos de Oliveira (Orgs.). 2013. 299p. ISBN: 978-85-7282-578-8. 152. Vejo um museu de grandes novidades, o tempo não para... Sociopoetizando o museu e musealizando a vida. Elane Carneiro de Albuquerque. 2013. 233p. ISBN: 978-85-7282-587-0. 153. A construção da tradição no Jongo da Serrinha: uma etnografia visual do seu processo de espetacularização. Pedro Somonard. 2013. 225p. ISBN: 978-85-7282-588-7.

154. Medida socioeducativa de internação: educa? Ercília Maria Braga de Olinda (Organizadora). 2013. 370p. ISBN: 978-85-7282-592-4. 155. Palavras e admirações. Fernando Luiz Ximenes Rocha. 2013. 208. ISBN: 978-85-7282-593-1. 156. Educação Ambiental e sustentabilidade IV. Kelma Socorro Alves Lopes de Matos (Organizadora). 2013. 564p. ISBN: 978-85-7282-596-2. 157. Educação Brasileira: rumos e prumos. Francisco Ari de Andrade, Dijane Maria Rocha Víctor e Regina Cláudia Oliveira da Silva (Orgs.). 2013. 462p. ISBN: 978-85-7282-594-8. 158. Currículo: diálogos possíveis. Alice Nayara dos Santos e Pedro Rogério (organizadoras). 2013. 418p. ISBN: 978-85-7282-585-6. 159. Pesquisas educacionais biográficas. Lia Machado Fiuza Fialho, Gildênia Moura de Araújo Almeida (Orgs.). 2013. 166p. ISBN: 978-85-7282-600-6. 160. Hierópolis: o sagrado, o profano e o urbano. Raimundo Elmo de Paula Vasconcelos Júnior, Jörn Seemann, Josier Ferreira da Silva, Christian Dennys Monteiro de Oliveira e Stanley Braz de Oliveira (Organizadores). 2013. 486p. ISBN: 978-85-7282-603-7.

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Este livro, com o formato final de 14cm x 21cm, contém 486 páginas. O miolo impresso em papel Off-Set 75g/m2 LD 64cm x 88cm. A capa impressa no papel Cartão Supremo 250g/m2 LD 66cmx96cm. Tiragem de 1.000 exemplares. Impressão no mês de outubro de 2013. Fortaleza-Ceará.

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